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65 O PROCESSO JUDICIAL NA VIA DE RESGATE CULTURAL E DA AUTODEFINIÇÃO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA, MEDIANTE O ESTUDO DA FAMÍLIA SILVA, EM PORTO ALEGRE (RS) SIMONE BATISTELA Mestranda UFBA [email protected] Introdução A emergência de comunidades remanescentes de quilombos e a procura pela legalização de terras no Rio Grande do Sul é a inspiração desse trabalho. Acredita-se que o resgate histórico dessas comunidades em conexão com a realidade maior, constitui uma contribuição importante para a história cultural do Rio Grande do Sul e do Brasil, considerando que as pesquisas e publicações nessa área ainda são bastante escassas. Além desse aspecto, verifica-se nos estudos relativos a quilombos uma enorme lacuna no que diz respeito aos trâmites legais para regulamentação das terras e a forma do processo judicial no que tange a uma via de resgate cultural da comunidade, conforme previsto no artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Brasileira de 1988, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (art. 68 do ADCT). São inúmeros os trabalhos que analisam a questão quilombola, as vivências das comunidades, sua ligação com o passado de escravidão, suas manifestações culturais e o percurso até chegar a autodefinição. Discute-se, igualmente, a formação da identidade negra no Rio Grande do Sul, colocando a questão quilombola como uma forma de resistência significativa tanto quanto, os movimentos negros organizados. Outro enfoque muito comum é visto nas questões de disputa com possíveis proprietários das terras, vizinhança, prefeituras e construtoras, nos casos dos quilombos localizados nas áreas urbanas; na ação de mediadores, criação de políticas públicas, além da ressemantização do termo quilombo e seu distanciamento da definição étnica indígena. 2 Porém, pouca atenção é dada quanto ao papel do processo Universidade Federal da Bahia - Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA/CEAO). 2 Ver trabalhos de Eliane Cantarino O’Dwyer e RS Negro.

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O PROCESSO JUDICIAL NA VIA DE RESGATE CULTURAL E DA AUTODEFINIÇÃO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA, MEDIANTE O

ESTUDO DA FAMÍLIA SILVA, EM PORTO ALEGRE (RS)

Simone BatiStela∗

Mestranda UFBA [email protected]

Introdução

A emergência de comunidades remanescentes de quilombos e a procura pela legalização de terras no Rio Grande do Sul é a inspiração desse trabalho. Acredita-se que o resgate histórico dessas comunidades em conexão com a realidade maior, constitui uma contribuição importante para a história cultural do Rio Grande do Sul e do Brasil, considerando que as pesquisas e publicações nessa área ainda são bastante escassas.Além desse aspecto, verifica-se nos estudos relativos a quilombos uma enorme lacuna no que diz respeito aos trâmites legais para regulamentação das terras e a forma do processo judicial no que tange a uma via de resgate cultural da comunidade, conforme previsto no artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Brasileira de 1988, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (art. 68 do ADCT). São inúmeros os trabalhos que analisam a questão quilombola, as vivências das comunidades, sua ligação com o passado de escravidão, suas manifestações culturais e o percurso até chegar a autodefinição. Discute-se, igualmente, a formação da identidade negra no Rio Grande do Sul, colocando a questão quilombola como uma forma de resistência significativa tanto quanto, os movimentos negros organizados. Outro enfoque muito comum é visto nas questões de disputa com possíveis proprietários das terras, vizinhança, prefeituras e construtoras, nos casos dos quilombos localizados nas áreas urbanas; na ação de mediadores, criação de políticas públicas, além da ressemantização do termo quilombo e seu distanciamento da definição étnica indígena.2 Porém, pouca atenção é dada quanto ao papel do processo

∗ Universidade Federal da Bahia - Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA/CEAO).2 Ver trabalhos de Eliane Cantarino O’Dwyer e RS Negro.

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judicial na positivação da luta pela posse do território.

Resistência Negra em solo Gaúcho

É notável ao longo dos tempos, a perpetuação de grupos formados por ex-escravos e seus descendentes no território do Rio Grande do Sul, mantendo e preservando diversas características peculiares atribuídas a este grupo étnico. Principalmente nas regiões de Pelotas, muito embora o trabalho escravo tenha sido empregado em todas as atividades, foram com as charqueadas que a escravidão se consolidou no Estado, segundo Mário Maestri, “O arroio Pelotas [...] era o ponto aonde se concentraram as primeiras charqueadas da Província” (MAESTRI, 1979:69). Dada a escassez bibliográfica sobre a presença do negro no Rio Grande do Sul, Maestri afirma,

Embora os africanos escravizados, ou os seus descendentes, tenham desempenhado um papel determinante na história do RS, de modo geral, podemos ainda hoje afirmar que “os nossos cronistas, os historiadores [...] e toda a literatura gaúcha não se ocuparam do negro senão acidental, ligeira e negligentemente. [...] Daí o mito da “província branca”, livre ou quase, do peso de um passado escravista; do proprietário de escravos do sul “bom senhor” (MAESTRI, 1979:67).

A afirmação de Maestri contraria a ideia de que não houve negros no estado e que a escravidão foi “branda”. Sabe-se, no entanto, que um grande contingente de mão-de-obra escrava africana localizava-se nas charqueadas. As charqueadas eram estabelecimentos manufatureiros produtores, em larga escala, de carne salgada para exportação. Segundo Sandra Pesavento, “as charqueadas sulinas, eram conhecidas como purgatório dos negros” (PESAVENTO, 1984:42). Dependiam da escravidão e representavam um importante setor da economia rio-grandense. Para Mário Maestri,

Será a charqueada, na última vintena do século XVIII, a responsável pela estruturação de um sólido regime social de produção escravista no Rio Grande do Sul [...] Será a charqueada que possibilitará, por primeira vez, os meios necessários para uma introdução significativa de “escravos novos” em nossos territórios (MAESTRI, 1984:54).

A mão-de-obra escrava além de ser utilizada nas charqueadas, se estendia a toda a cadeia criada para atender essa atividade, sendo muito comum o serviço escravo estar ligado às atividades agropecuárias. No Rio Grande do Sul, bem como em todo o Brasil, houveram tentativas de fugas e rebeldias, as fugas geralmente se davam para a fronteira, já que a “América Castellana” estava livre da escravidão e da metrópole. Porém sobre as resistências dos escravos gaúchos nos informa Nicolau Dreys:

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Os negros do Rio Grande do Sul seja qual for sua aparente resignação [...] várias tentativas fizeram eles, em tempos diferentes, para imprimir a toda população negra um movimento insurrecional, mas todos os projetos falharam, e não podiam deixar de falhar, à vista da imensa potência de repressão que está na circunstância de desenvolver a população branca do país (DREYS, 1961:168).

Com o fim da escravidão uma parte das famílias permaneceu trabalhando nas

terras das fazendas, enquanto outras foram procurar novos meios de sobrevivência nas cidades, preservando suas características étnico-sociais.

Segundo dados extraídos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), contamos aproximadamente com 134 comunidades quilombolas e com 35 processos abertos, somando um total de 82 comunidades certificadas entre os anos de 2004 e 2010.

A Constituição de 1988, através de seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, garante aos quilombolas o direito a posse definitiva das suas terras; e o Decreto Lei 4887/03 dá ao INCRA a competência para a realização de todo o processo de regularização fundiária das áreas dos quilombos no país. Porém, para que essa titulação seja concedida é necessário que a comunidade se identifique como tal, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, considerando que é elemento fundamental para a identificação das comunidades a autodefinição que “será demonstrada através da simples declaração escrita da comunidade interessada ou beneficiada com dados da ancestralidade negra, trajetória histórica, resistência à opressão, culto e costumes.” 3

A consciência de descender de um regime escravocrata nem sempre está presente nas comunidades observadas. Estudos recentes feitos com a Comunidade Remanescente de Quilombo Família Silva, localizada no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre (RS), primeira comunidade urbana a ser titulada no Brasil e a obter a regulamentação de suas terras, em 25 de setembro de 2009, revelam que o processo de resgate de sua cultura é essencial. Conhecer e preservar suas origens, ensinando aos mais novos os costumes deixados pelos seus antepassados, faz parte da aceitação de identidade quilombola, sendo que a luta árdua para permanecer no seu território interfere diretamente para esse resgate. Para José M. Arruti,

Ao serem identificadas como ‘remanescentes’, aquelas comunidades em lugar de representarem os que estão presos às relações arcaicas de produção e reprodução social, aos misticismos e aos ativismos próprios do mundo rural, ou ainda os que, na sua ignorância, são incapazes de uma militância efetiva pela causa negra, elas passam a ser reconhecidas como símbolo

3 Compreensão explicitada no art. 7º, § 1º, da Instrução Normativa nº 16 de 24/03/04, do INCRA (Insti-tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

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de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e militância negra, dando ao termo uma positividade que no caso indígena é apenas consentida. Com efeito, o uso da noção, em ambos os casos, implica, para a população que o assume (indígena ou negra), a possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos, na política local, diante dos órgãos e políticas governamentais, no imaginário nacional e, finalmente, no seu próprio imaginário (ARRUTI, 1997:22).

Histórias recuperadas pelas lembranças dos mais velhos reconstroem com imagens e ideias de hoje experiências do passado, esses conjuntos de representações provam a resistência dos grupos quilombolas. Por sua vez, essas lembranças em muitos casos e especificamente na Família Silva, as histórias foram contadas pelos mais velhos, porém não houve uma preocupação inicial que esta fosse guardada e reproduzida, tanto que lembranças dos tempos da escravidão já são inexistentes na comunidade. As lembranças datam de 1940, ano em que a Família Silva se estabelece em Porto Alegre, vinda de São Francisco de Paula, município localizado nos campos de cima da serra, no Rio Grande do Sul. Município esse onde já haviam quilombos, conforme afirma Maestri, “Nas atas das sessões de 3 de dezembro de 1834, da câmara municipal de São Francisco de Paula, podemos, no entanto, encontrar referência direta a “quilombolas” e à falta de meios da Câmara para combatê-los” (MAESTRI, 1984:133). Essas informações e a comprovação da importância do restabelecimento dos laços com o passado, verificada na fala dos próprios moradores do Quilombo dos Silva, através dos relatos dos mais velhos, foram dados necessários para compreender o processo judicial em questão e a definição da identidade quilombola do grupo.

Uma vez que a autodefinição se tornou base para o início do processo para regularizar a posse das terras e este geralmente costuma ser lento, buscamos então, analisar de que forma essa espera pode ser positiva para a comunidade em questão, uma vez que essa invariavelmente deverá “reconhecer” toda sua trajetória histórica, muitas vezes tocando em questões difíceis, como as lembranças da escravidão e o sofrimento a que seus antepassados foram submetidos. Essa positivação por sua vez não exime a discriminação e as situações de preconceito a quais as comunidades estão constantemente expostas, como, enfrentamentos com a polícia, investidas de possíveis donos de terras, medo de perder sua moradia e com ela perder a vida comunitária, o núcleo fundador do ser quilombola. Juntamente com a posse das terras a comunidade remanescente de quilombo assume uma nova posição diante dos órgãos públicos, município, bairro e vizinhança, além de passar a ter acesso às políticas específicas que procuram contribuir para a melhora das condições sociais dos envolvidos. A titulação certamente não representa o fim da luta, mas é fundamental para despertar a autoconfiança dessas populações excluídas que buscam uma reparação. A posse das terras asseguram também a possibilidade de pleitear perante os legisladores, administradores

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e dirigentes do governo brasileiro, um atendimento às condições mínimas de acesso ao direito e à cidadania plena, como prevê o dispositivo constitucional.

Comunidade Quilombola da Família Silva e a Legislação

Os Silva buscaram se fortalecer politicamente perante o poder local e da sociedade em que vivem, desde a década de 1970, quando já buscavam a regularização fundiária e a atenção das ações de políticas públicas. Depois de vários pedidos negados de uso capião, em 2002, os integrantes do próprio grupo se organizaram e apresentaram sua demanda de regularização de terras ocupadas e daquelas perdidas, por meio do Artigo 68 ADCT, junto ao Ministério Público Federal. Tal medida foi tomada na tentativa de impedir sua remoção do território que ocupavam e percebiam como seu. Por outro lado, foi também uma tentativa de se proteger das constantes invasões e agressões promovidas com o apoio da Brigada Militar, denúncia esta, presente tanto nos relatos dos integrantes da Família Silva como no Laudo Antropológico construído por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após serem reconhecidos como comunidade quilombola afrodescendente e descendente de escravos por diversos agentes externos, tais como a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, o Movimento Negro Unificado do Rio Grande do Sul, o Instituto de Acessoria as Comunidades Remanescentes de Quilombo, o Ministério Público Federal e a Fundação Palmares. Em 2004 iniciaram-se as pesquisas que gerariam o Relatório Técnico, a última etapa do processo que culminaria na posse legal da área reivindicada. No entanto, a espera foi longa, já que somente em setembro de 2009 suas terras foram finalmente reconhecidas. Segundo dados extraídos do Relatório Técnico, a Família Silva, como a própria denominação evidencia, tem uma origem comum, sendo acionada através do idioma do parentesco, fator aglutinador dos seus integrantes e nexo de territorialidade do grupo. Os Silva formam uma população negra descendente de escravos, a sua origem comum e a base sobre a qual se estrutura o processo de luta pela manutenção de suas terras. A origem do grupo, expressa através da metáfora da família, é uma fonte primária da etnicidade e, nesse sentido, é constitutiva do caráter étnico do grupo e suas fronteiras étnicas. A persistência dessa comunidade negra no território reivindicado reflete a sua luta contra a exclusão social sofrida pelas pessoas que compõe o grupo, situação agravada pela sistemática expulsão das populações pobres promovida pela lógica do crescimento e urbanização da cidade. Deste modo, os integrantes da Família Silva, ao adotarem a denominação de

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remanescentes de quilombo, estão buscando positivar a forma como eles se vêm e são vistos pelos demais, como grupo negro, onde estão ligados entre si por relações de parentesco, para obterem o reconhecimento de seus direitos enquanto cidadãos da nação brasileira. A inserção no Artigo 68 ADCT e a Convenção 169 OIT foram à base para que a Família Silva se reconhecesse como tal e positivasse sua descendência quilombola. O processo da Família Silva, sem dúvida, é um exemplo de que o processo judicial pode ser uma via para o resgate cultural e autodefinição das comunidades quilombolas, seja no Rio

Grande do Sul ou no Brasil. Muito embora os governantes brasileiros acreditassem que a abolição da

escravidão não traria mais problemas com escravos no Brasil, a crescente procura de comunidades descendentes de ex-escravos reclamando a posse das terras onde vivem, tal como regulamenta o Artigo 68 ADCT da Constituição, nos mostra uma realidade bastante diversa daquela imaginada. Sobre tais reivindicações Stuart Hall afirma que “as políticas de reconhecimento, as lutas contra o racismo e pela justiça social, são respostas ao preconceito, à injustiça, à discriminação e à violência em relação ao outro” (HALL, 2003:46).

Apesar de terem seus direitos previstos pela Constituição muitos grupos enfrentam diversos obstáculos e dificuldades para viverem nas terras herdadas de seus ascendentes de origem escrava. Acreditava-se que o quilombo não teria mais razão para existir depois do fim do regime escravocrata, que esses grupos iriam desaparecer como resíduo. Assim como prevê o uso da nomenclatura “remanescente”. Com a ressemantização do termo quilombo e o abandono da definição Imperial, o território quilombola passou a exercer um papel importantíssimo nas relações das comunidades com o mundo externo e com suas ideias sobre pertencimento e liberdade. De acordo com Georgina Nunes,

Território de quilombo, para os quilombolas, é um lugar em que são produzidas formas de portar-se, sentir-se e situar-se no mundo, significa uma consciência emergente, um autoconhecimento, talvez, um autoconhecimento das suas necessidades que se constitui no passo elementar para sonhar um mundo de menos necessidade e, consequentemente, mais liberdade (NUNES, 2006:141).

Porém, para que aja esse reconhecimento do território e do sentir-se quilombola, é necessário que essas comunidades aceitem e principalmente reconheçam suas origens étnicas e sua história, quando o termo etnicidade segundo Phillipe Poutignat e Jocelyne Fenart “refere-se a um conjunto de atributos ou de traços tais como a língua, a religião, os costumes, o que aproxima da noção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros, o que a torna próxima da visão de raça” (POUTIGNAT & FENART, 1998:86). Esse resgate é o ponto de partida para iniciar o processo de posse do território conforme

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as bases do Artigo 68 ADCT e da convenção da OIT que coloca a autodefinição como elemento fundamental para a identificação das comunidades.

Dessa forma, cabe ao grupo quilombola reconstruir seu passado seja a partir de documentos, seja a partir de relatos dos mais velhos; essa última tem se mostrado de fundamental importância nessa viagem de volta às origens, de volta a um passado que não está diretamente e vivamente ligado a todos os membros do grupo em questão, que busca pela posse de seu território. Sabendo que o território posto a autodefinição deixa de ser apenas um local de moradia, representando a ligação real com os ancestrais e assim sendo primordial para que os traços étnicos e culturais possam ser mantidos e cultuados, passando de geração a geração através de “causos” contados pelos avós ou bisavós, aqueles que são os guardiões da memória do grupo. Ecléa Bosi enfatiza que,

O marco ancestral se constitui, também, como forma de comprovar a existência de quilombos; eles são recuperados através das histórias buscadas na lembrança dos velhos e das velhas. Este rememorar estabelece vínculos com o presente porque, na maioria das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje as experiências do passado (BOSI, 2001:51).

Nesse sentido as comunidades remanescentes de quilombo não devem ser vistas como algo que parou no tempo, arcaicas e não desenvolvidas como foi o caso da definição de quilombo que ficou congelada. O grupo deve ser percebido como um possuidor de características comuns a um grupo específico, no entanto, essas características do passado estarão imersas em uma realidade atual. Trata-se de uma reconstrução identitária, cabendo aos próprios membros do grupo étnico se auto-identificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão (O’DOWYER, 2002:24). Porém nas pesquisas de campo e nas leituras é muito comum nos depararmos com dúvidas quanto a relevância dessa autodefinição, os agentes se mostram receosos por não saberem até que ponto pode ser positivo ou negativo assumir sua identidade e seu passado, já que a sociedade ainda hoje estigmatiza, e discrimina, mesmo que de forma velada o afro-descendente.

Tratando-se do Rio Grande do Sul, onde se julga não haver negros, esses grupos constituem o que chamamos de minorias étnicas. Segundo Michael Banton “as minorias étnicas são grupos que possuindo atributos nacionais, desejam viver em Estados que não tem como base os seus costumes, língua, religião e valores” (BANTON, 1979:12). Essa visão de Banton pode ser adotada para explicar a condição dos grupos afro-descendentes no estado gaúcho, uma vez que a sociedade age encobrindo a história de um povo e sobrepondo uma cultura sob a outra. Algo comum a maioria dos países onde houve colonização. Stuart Hall afirma:

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[...] Os traços negros, “africanos”, escravizados e colonizados, dos quais havia muitos, sempre foram não-ditos, subterrâneos e subversivos, governados por uma “lógica” diferente, sempre posicionados em termos de subordinação e marginalização. [...] os enormes esforços empreendidos, através dos anos [...] de juntar ao presente essas “rotas culturais” fragmentarias, frequentemente ilegais, e reconstruir suas genealogias não ditas, constituem a preparação do terreno histórico de que precisamos para conferir sentido à matriz interpretativa e às auto-imagens de nossa cultura, para tornar o invisível visível (HALL, 2003:41-42).

Essa ideia marginalizada do afro-descendente condiciona os grupos a tomarem atitudes submissas em relação ao grupo social dominante, isso pode ter sido notado nas entrevistas realizadas com a Família Silva onde os membros justificam a demora na sua autodefinição como quilombolas por terem receio de serem ainda mais discriminados pela vizinhança e pelos órgãos do Estado onde buscavam a posse das terras através do uso capião, por desconhecerem o Artigo 68 ADCT e seus direitos como um todo. A ameaça de perder suas terras através de inúmeras investidas por parte de possíveis donos, e as enganações a que foram submetidos por pessoas que agiram de má fé, motivaram os Silva a buscar informações e irem sozinhos a luta na busca não só de uma terra, mas de sua cultura que deveria ser preservada. Quando a cultura deve ser entendida, segundo a análise de Hall,

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma “arqueologia”. A cultura é uma produção [...] não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação (HALL, 2003:44).

Esse sentimento de identidade, conforme descreve Hall, muitas vezes somente é percebido pelas comunidades quilombolas no momento em que se vêem “obrigadas” a provar sua pertença. Nesse sentido o Estado coloca os próprios representantes quilombolas como legítimos interlocutores diante das agências regulamentadoras, a palavra do quilombola se torna mais efetiva que as análises feitas por agentes externos.

O processo judicial enfrentado pelas comunidades uma vez que parte do princípio da autodefinição, dá ao quilombola diretamente a tarefa de se identificar e ao mesmo tempo justificar sua reivindicação, já que não basta se denominar descendente de ex-escravo é preciso igualmente identificar nas práticas desse grupo características específicas.

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Considerações Finais

Este caminho de volta feito pelas comunidades remanescentes de quilombo seja no Rio Grande do Sul, seja em qualquer outro estado do Brasil, geralmente se dá em situações de intenso conflito, já que essas terras são objetos de disputa, no caso especifico de quilombos urbanos, situação essa exemplificada pelo Quilombo dos Silva, a disputa se deu devido ao local de suas terras, que estão localizadas hoje em um bairro de classe média alta, onde a terra vale muito, o embate se deu diretamente com construtoras que queriam aquele local para construir condomínios luxuosos.

Uma vez que a presença do grupo também é indesejável por tratar-se de uma comunidade humilde e afro-descendente dentro de um espaço destinado a pessoas com grande poder aquisitivo. As relações do grupo com o meio externo, representado pelo bairro onde vivem e pela vizinhança, são em grande parte alteradas com o processo pela posse das terras. A comunidade não muda apenas a forma com que ela se relaciona com seu passado, mas com seu meio como um todo. Para Arruti,

No processo (na maioria, se não na totalidade das vezes, conflituoso) de nomeação de um grupo como “remanescente”, produzem-se uma série de mudanças que atingem aquelas comunidades, tanto na sua relação com os que rodeiam – sejam as populações vizinhas, os poderes locais ou os aparelhos de Estado -, quanto nas relações entre seus próprios atores, com acomodações, disputas e muitas vezes a própria criação de chefias e formas de ordenamento político, com a alteração dos significados atribuídos às festas e rituais, com a reelaboração da memória e com a alteração do status dos guardadores da memória, que passam a desempenhar um papel sem precedentes na vida do grupo (ARRUTI, 1997:23).

O processo de nomeação conforme esclarece Arruti, se mostra o principal meio para que as famílias não só se autodefinam como remanescentes de quilombo, assumindo sua identidade de origem, resgatando os valores culturais, mas também para que mudem a forma com que se relacionam com o meio onde vivem, assumam um papel de agentes políticos participativos. Muitas vezes a criação de lideranças dentro do próprio grupo é consequência da necessidade de se defender e de representar seus interesses juntos aos órgãos públicos, isso contribui positivamente para a emergência de militâncias negras como símbolos de identidade, cultura e como modelo de uma luta. Na Família Silva uma das representantes do grupo afirma que a luta se deu a partir do momento em que a Comunidade soube de seus direitos, de seu papel social e lamenta por aqueles que ainda vivem em condições de submissão por não ter conhecimento de si próprio e de seu valor enquanto sujeito ativo na sociedade.

Portanto, a hipótese defendida por Arruti, confirmada nas palavras da moradora do Quilombo dos Silva, de que o reconhecimento como remanescente que para muitas

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comunidades tem se mostrado uma via importante, senão única de garantir suas terras e sua voz política, antes de ser um ato natural de identificação, as obriga a compreender as transformações operadas na ideologia dominante para que possam aceitar e se adaptar a esses novos papéis.

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