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Servir e celebrar o rei: o cerimonial de aclamação de D. João VI e a Casa Real Portuguesa no Rio de Janeiro GIOVANNA MILANEZ DE CASTRO 1 1) Introdução Este artigo resulta de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós- Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP, intitulada “Serviço e celebração nos trópicos: a Casa Real Portuguesa no Rio de Janeiro do período Joanino (1808-1821) 2 ”. Ele tem por objetivo analisar a cerimônia de aclamação de D. João VI ocorrida no Rio de Janeiro em 1818, percebendo neste ritual a presença de uma instituição de enorme importância para a realeza lusitana: a Casa Real Portuguesa. 2) Os cerimoniais de aclamação dos reis em Portugal e a atuação da Casa Real Portuguesa: um panorama As monarquias do Antigo Regime europeu sempre conviveram com a constante necessidade de manter e reforçar o poder de seus reinantes, que eram as peças-chave da engrenagem que mantinha em funcionamento um governo absolutista. O reforço desse poder passava, muitas vezes, pelo engrandecimento da imagem do soberano e, nessa operação, as festas e cerimoniais cumpriam papel fundamental 3 . O ciclo de vida dos reis, de seus governos e de suas famílias dava espaço para que esses eventos se realizassem: os nascimentos, batismos, casamentos, a subida ao trono e a morte eram comemorações ritualizadas, por ser o discurso da celebração extremamente eficaz para a manutenção do poder real, porque era construído não só pela palavra, mas pelos gestos, símbolos e representações (pelo visual, portanto). Engrandecimento da imagem e instrumento de dominação política: através dos discursos operados pelos cerimoniais, os reis garantiam sua imposição perante as outras classes sociais que os rodeavam, porque a grandeza apresentada nesses eventos mostrava aos 1 Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, com financiamento de pesquisa da CAPES. 2 Pesquisa orientada pela Profª Drª Leila Mezan Algranti, e desenvolvida dentro da área de estudos “Política, Memória e Cidade” (IFCH/UNICAMP). 3 Peter Burke empreendeu importante estudo que tomou o reinado do monarca francês Luis XIV como foco, em que tratou das formas de construção da imagem pública do rei nos vários momentos de sua vida. Como o autor mostrou, a preocupação com as representações do soberano eram questões de governo, e no caso de Luis XIV envolviam ministros e também ele próprio, atuando na elaboração e aprovação daquilo que envolvia sua figura. Nessa empreitada, festejos e cerimoniais envolvendo o rei e seu governo tinham espaço significativo. Para mias: BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

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Servir e celebrar o rei: o cerimonial de aclamação de D. João VI e a Casa Real

Portuguesa no Rio de Janeiro

GIOVANNA MILANEZ DE CASTRO1

1) Introdução

Este artigo resulta de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-

Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP,

intitulada “Serviço e celebração nos trópicos: a Casa Real Portuguesa no Rio de Janeiro do

período Joanino (1808-1821)2”. Ele tem por objetivo analisar a cerimônia de aclamação de D.

João VI ocorrida no Rio de Janeiro em 1818, percebendo neste ritual a presença de uma

instituição de enorme importância para a realeza lusitana: a Casa Real Portuguesa.

2) Os cerimoniais de aclamação dos reis em Portugal e a atuação da Casa Real

Portuguesa: um panorama

As monarquias do Antigo Regime europeu sempre conviveram com a constante

necessidade de manter e reforçar o poder de seus reinantes, que eram as peças-chave da

engrenagem que mantinha em funcionamento um governo absolutista. O reforço desse poder

passava, muitas vezes, pelo engrandecimento da imagem do soberano e, nessa operação, as

festas e cerimoniais cumpriam papel fundamental3. O ciclo de vida dos reis, de seus governos

e de suas famílias dava espaço para que esses eventos se realizassem: os nascimentos,

batismos, casamentos, a subida ao trono e a morte eram comemorações ritualizadas, por ser o

discurso da celebração extremamente eficaz para a manutenção do poder real, porque era

construído não só pela palavra, mas pelos gestos, símbolos e representações (pelo visual,

portanto).

Engrandecimento da imagem e instrumento de dominação política: através dos

discursos operados pelos cerimoniais, os reis garantiam sua imposição perante as outras

classes sociais que os rodeavam, porque a grandeza apresentada nesses eventos mostrava aos

1 Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, com financiamento de pesquisa da CAPES. 2 Pesquisa orientada pela Profª Drª Leila Mezan Algranti, e desenvolvida dentro da área de estudos “Política, Memória e Cidade” (IFCH/UNICAMP). 3 Peter Burke empreendeu importante estudo que tomou o reinado do monarca francês Luis XIV como foco, em que tratou das formas de construção da imagem pública do rei nos vários momentos de sua vida. Como o autor mostrou, a preocupação com as representações do soberano eram questões de governo, e no caso de Luis XIV envolviam ministros e também ele próprio, atuando na elaboração e aprovação daquilo que envolvia sua figura. Nessa empreitada, festejos e cerimoniais envolvendo o rei e seu governo tinham espaço significativo. Para mias: BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

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outros a sombra do poder, a impossibilidade do questionamento, a necessidade da submissão.

Os dominados eram, assim, domesticados pelo uso desse ‘capital simbólico’ que os monarcas

detinham, como apontou Bourdieu em sua obra O poder simbólico (BOURDIEU, 1989 apud

FILHO, 2009: 2)

“O domínio pela força nem sempre é duradouro ao contrário do poder simbólico, uma espécie de poder invisível, que permite se impor pela mobilização na qual as idéias são implícitas formando um universo simbólico, composto de sistemas simbólicos, possuidores de cadeias de símbolos como instrumentos de integração social. Isso permite a legitimação da dominação pois produz efeitos reais sem aparente dispêndio de energia. É uma espécie de jogo social” (FILHO, 2009: 2).

Através das simbologias, dos protocolos, da encenação e do efêmero que

caracterizavam os cerimoniais régios também se assegurava a demonstração e a manutenção

das posições e distâncias sociais que imperavam na realidade. Nessas sociedades cortesãs,

como atestou Norbert Elias ao usar o exemplo da corte de Luis XIV, o rei era a pessoa central

e soberana, que agrupava em si a prerrogativa de elevar socialmente aqueles que estavam à

sua volta, pois era a fonte principal de obtenção da nobreza (ele detinha e distribuía os títulos

nobiliárquicos da Coroa) (ELIAS, 1987:13). Esses elementos sociais nobilitados (os

cortesãos) necessitavam do rei para manter sua distinção social e para se manter como grupo

coeso e, portanto, se vergavam à vontade régia (ELIAS, 1987: 91). O distanciamento do

monarca e da nobreza do restante da hierarquia social era marcado por muitos aspectos

externos, visíveis: a etiqueta, a ostentação, o luxo, os símbolos e a representação. Nesse

sentido o uso dos cerimoniais foi fundamental, por agregar em grandiosos eventos todos esses

aspectos:

“A boa compreensão das condições de seu poder absoluto, das necessidades de prestígio e de autorrepresentação que impregnava o seu pensamento e a sua sensibilidade e que estava de acordo com a sua posição na escala social e com os ideais da sociedade de corte a que pertencia, dá-nos também a chave para compreender o envolvimento pessoal do rei [Luis XIV] no cerimonial: com efeito, nunca teria podido submeter os outros ao espartilho da etiqueta e da representação, seu instrumento de domínio, se ele próprio não respeitasse e cumprisse” (ELIAS, 1987: 110 – com adição de colchetes da autora)

As ações, gestos, modos e participações dos elementos sociais nos cerimoniais sempre

espelhavam a realidade social vigente. Mesmo que o rei não fosse o principal homenageado e

celebrado (poderia ser um familiar seu) ele era figura presente e principal. Assistindo de

forma muito próxima, e até atuando nos cerimoniais, estavam os cortesãos, os nobres, e

cargos importantes do governo monárquico, sem falar do corpo da Igreja - presença

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fundamental para aliar a realeza terrena à celeste4. Com maior reserva e distância estava o

restante da sociedade: a massa dos súditos espectadores, que contemplava ao longe, mas que

não deixava de ser a testemunha fundamental (e para qual muito do didatismo dos cerimoniais

era dirigido). Portanto, “a organização da posição de cada indivíduo num evento festivo, estar

atento a cada detalhe, se preocupar com cada detalhe, para sua elaboração não servia só como

uma forma de ostentação e demonstração de status e poder, mas marcavam essencialmente as

distâncias entre os membros da sociedade de corte” (GONÇALVES, 2010: 3)

Todo o panorama acima traçado envolvia também a monarquia portuguesa, que

igualmente fez amplo uso dos cerimoniais para marcar o ritmo da vida, governo e poder dos

reis. No que tange ao caso lusitano, o presente artigo deseja deter-se em um cerimonial

específico, de enorme tradição: o da aclamação dos soberanos. Ocorrida a morte de um

reinante (e após as devidas pompas fúnebres) era o momento do sucessor assumir o trono:

para tanto era feita a cerimônia de aclamação, na qual o novo rei era levantado, reconhecido.

No caso português, não ocorria coroação: a coroa era objeto simbólico presente no cerimonial,

porém ela não era colocada na cabeça do soberano. Segundo Jacqueline Hermann, a coroa não

assumiu para os reis portugueses o caráter fundamental que teve a outras monarquias: o cetro,

no caso lusitano, era o objeto mais fundamental (HERMANN, 2007: 144). Outros autores

associam este papel secundário da coroa no cerimonial português ao mito sebastianista: o

monarca D. Sebastião teria levado consigo a coroa portuguesa e, desde então, os reis não

foram mais coroados.

A aclamação marcava a chegada de um novo rei em Portugal de forma jurídica e

simbólica, se utilizando de um rígido protocolo que delimitava as ações a serem tomadas, as

pessoas e objetos que deveriam estar presentes, e as palavras a serem proferidas. No que toca

ao aspecto jurídico, a cerimônia era o momento em que o soberano assumia publicamente o

trono que lhe era de direito por hereditariedade e legitimidade. Ao mesmo tempo, era o espaço

em que se prestavam os juramentos: o rei, de bem reger e governar seus povos de acordo com

as tradições, e os súditos, de acolher e respeitar seu novo monarca. O desenvolvimento desse

ritual era marcado por um amplo conjunto de símbolos impressos no espaço, nos objetos e nas

presenças: o engrandecimento do rei e seu governo, a demonstração da boa ordenação e

4 Tal associação se mostrou fundamental para dar mais força ao poder dos reis no Antigo Regime: a vida terrena era sempre muito marcada pelos aspectos religiosos e, nesse contexto, as monarquias precisavam investir os soberanos de sacralidade. A pessoa do rei, como já apontou Kantorowicz, era tida como composta por dois corpos: o humano (perecível e mortal) e um outro, superior (e pela posse dele lhe era dada a dignidade real, para exercer em Terra o ofício régio). A presença do grupo religioso nas diversas cerimônias da realeza servia para afirmar que ao lado da monarquia, daquele que foi escolhido e ungido para ser o rei, estava a Igreja, representante de Deus na Terra. (KANTOROWICZ, 1998 apud HERMANN, 2007).

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manutenção das hierarquias sociais, a promessa da fidelidade ao novo soberano (vinda de

todas as camadas sociais que passariam a estar sob o comando dele e que a este evento

deveriam estar presentes – cortesãos membros do governo e o povo), a garantia da

continuidade, o reforço dos laços vassálicos, da obediência e da submissão ao novo reinante.

Este trabalho irá se focar no cerimonial de aclamação do rei português D. João VI

(1816-1826), ocorrido na cidade do Rio de Janeiro em 06 de fevereiro de 1818. Se uma

aclamação já era cercada de importância e significação, pode-se dizer que esta foi um

exemplar singular. Primeiramente porque se tratou da ascensão de um rei europeu nos

trópicos: desde 1808 a Família Real lusitana e sua Corte estavam sediadas na capital do

Brasil, e aqui ainda permaneciam, de forma que a América Portuguesa pode ser palco da

aclamação de um soberano do Velho Mundo. Outra questão é perceptível pelas datas: em

1816 falecia no Rio de Janeiro a mãe de D. João, a rainha D. Maria I. Ainda que ele estivesse

no governo de Portugal desde 1792 com príncipe regente, ela ainda era tomada por reinante.

Anunciada sua morte, e passados os cerimoniais fúnebres, já deveriam ser colocados em

prática os preparativos para a aclamação do novo rei. Mas não foi esse o caso: D. João VI foi

aclamado quase dois anos após o falecimento da monarca5. Mesmo passado este tempo o

cerimonial foi feito com muito zelo, estrita observação protocolar e grandiosidade: mostra do

quanto o ritual era indispensável para marcar a chegada do novo rei, porque era tradicional,

tinha o valor jurídico e simbólico necessário para sacramentar o seu reinado.

Ao analisar este evento em específico, deseja-se perceber a presença de um grupo que

atuava muito próximo ao soberano, tanto no cotidiano privado e palaciano do rei quanto nas

cerimônias que cercavam a realeza: os oficiais da Casa Real Portuguesa. Esta antiga e

tradicional instituição, formada por um conjunto amplo de servidores, atuava diretamente com

o monarca e sob suas ordens, cuidando de seu âmbito doméstico nos mais variados aspectos:

dentro dos aposentos do rei (a Câmara Real), nas práticas religiosas (a Capela Real), na

alimentação e comensalidade (Cozinha, Mesa e Ucharia), no exercício da caça (Caça e

Coutadas), no âmbito das cavalariças e nas questões de proteção (a Guarda)6.

5 Para Jacqueline Hermann este atraso no cerimonial de aclamação de D. João VI foi pouco estudado pela historiografia, e pode ter sido causado por uma série de fatores que envolviam o governo joanino naquele momento. Disputas no cenário europeu, a pressão pelo retorno do soberano a Portugal, as alianças com os ingleses, dentre outros, são motivos que a autora levanta para justificar o porquê desse lapso de quase dois anos sem a aclamação do rei, quando o que deveria ter vigorado era a máxima ‘rei morto, rei posto’ (HERMANN, 2007). 6 Os estudos do mestrado, ainda em andamento, mostram que essa configuração da domesticidade régia, dividida basicamente em seis áreas de atuação, se assentou junto aos monarcas do século XVII em diante. Em períodos mais afastados do que este é possível ver diferentes divisões, mas que já apontavam para esta que se apresentou no período absolutista e que, salvo algumas modificações seguiu até o início do século XX. Rita Costa Gomes, em seu estudo sobre a corte dos reis portugueses no final da Idade Média (seu recorte são os séculos XIV e XV), apresentou uma Casa Real dividida em três

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Trabalhar tão próximo ao rei era, de acordo com a mentalidade cortesã imperante à

época, um dos serviços mais nobres, pois significava estar em sua presença, participar

ativamente de seu cotidiano e, possivelmente, obter privilégios, mercês e uma posição

socialmente destacada. Era o reflexo do contexto social da época, como atestou Norbert Elias:

importava estar em meio ao soberano, e ali se manter e ser reconhecido por ele. Nesse sentido,

a Casa Real espelhava a vida cortesã e todas as suas especificidades. Por isso, ela foi um dos

grandes redutos em que os nobres e Grandes da Corte puderam empregar-se, já que a eles só

era permitido trabalhar em funções nobilitantes7. Os ofícios disponíveis na Casa eram

divididos em dois pólos: os oficiais-mores (ou maiores) e os oficiais menores. No primeiro

grupo, os cargos eram ocupados por membros da alta nobreza do reino, muitos deles titulares

(Marqueses, Condes, Viscondes, Barões). No outro, os ocupantes poderiam ser desde

membros destacados na sociedade até plebeus, entendidos como aqueles que se dedicavam a

ofícios mecânicos8.

No contexto dos cerimoniais de aclamação régios – não apenas no de D. João mas

também daqueles que o antecederam e inspiraram sua cerimônia - é possível ver muitos dos

cargos principais (os cargos mores) atuando no ritual, tanto pelo ofício que desempenhavam

quanto pela nobreza que ostentavam (afinal, como visto, a nobreza tinha que estar presente na

aclamação do rei). Abaixo, ao analisar o protocolo e as descrições da aclamação de D. João

VI, deseja-se perceber quais cargos eram esses e quais eram suas funções, fosse no dia-a-dia

da privacidade régia, fosse no grande dia da aclamação do novo rei.

grandes setores: Aula, Câmara e Capela, já sendo possível verificar nesses espaços cargos como o Mordomo-Mor, Camareiros, Físicos, Reposteiros, Capelães (oficias importantes e que atuaram na Casa por longo período – em alguns casos até sua extinção, ocorrida em 1910) (GOMES, 1995: 12-18). 7 Segundo o Tratado jurídico das pessoas honradas, àqueles que possuíam honras (os títulos de distinção política) era vedado o exercício público de ofício mecânico, sob pena de perda da mercê obtida. O trabalho mecânico era associado à condição plebéia. Tratado jurídico das pessoas honradas escrito segundo a legislação vigente à morte D´ElRei D. João VI. Lisboa: Imprensa de Lucas Evangelista, 1851, Título I). 8 Muitos eram os cargos mores dentro da Casa Real no período absolutista. Eles se ligavam geralmente à chefia de algumas das áreas da domesticidade régia, ou desempenhavam funções de importância em alguns dos setores ou para a estrutura como um todo. Para o governo de D. José I (1750 – portanto próximo ao contexto tratado neste artigo), José Subtil apresentou uma listagem de aproximadamente 37 cargos mores nas seguintes posições: Alferes Mor, Almotacé Mor, Aposentador Mor, Armeiro Mor, Capelão Mor, Capitão da Guarda Real, Capitão da Guarda Real Alemã, Copeiro Mor, Corregedor do Crime da Corte e Casa, Esmoler Mor, Estribeiro Mor, Gentil-Homem da Câmara, Meirinho Mor, Mestre Sala, Monteiro Mor, Mordomo Mor, Porteiro Mor, Provedor das Obras Reais, Reposteiro Mor, Tesoureiro da Casa Real, Trinchante, Vedor. (SUBTIL, 2008: 144). A título de perceber como a Casa empregava um número elevado de pessoas, vale apontar que Pedro Cardim, tratando da estrutura no século XVII, afirmou que, no total de oficiais maiores e menores, ela beirava meio milhar de pessoas. Pensando, como também apontou Cardim, que a Casa Real era regulada grandemente pela tradição e normas fixas em sua disciplina, pode-se concluir que no início do século XIX, apesar da extinção de alguns cargos, a Casa certamente tivesse um numero igualmente elevado de servidores (CARDIM, 2002: 22-27).

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3) “Real, Real, Real, Pelo Muito Alto e Muito Poderoso Rei o Senhor Dom João VI

Nosso Senhor”: a aclamação do monarca no Rio de Janeiro

Para a análise do cerimonial de aclamação de D. João VI esse artigo vai se utilizar de

algumas fontes que, juntas, constroem um quadro bastante preciso do evento. É possível

dividi-las em dois grupos: num primeiro, aquelas produzidas com o intuito de organizar o

festejo (feitas, portanto, no âmbito dos ‘bastidores’). Em outro, relatos produzidos pelos

espectadores do cerimonial, feitos para informar os leitores sobre os acontecimentos.

Pode-se considerar que a base dessa explanação é um documento intitulado “Plano de

ordens e forma que devem servir como cerimonial para a soleníssima função da feliz

aclamação d’El Rei Nosso Senhor”, constante no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro9. Esta

espécie de protocolo do cerimonial aponta o que deveria ser feito do momento da chegada de

D. João VI ao ritual de aclamação em diante, sem se ater ao espaço onde os acontecimentos se

dariam. Pela simbologia que este palco da aclamação assumia, e por perceber em seu arranjo a

participação da Casa Real Portuguesa, julga-se ser necessária uma breve explanação, apoiada

nos relatos existentes, especialmente aqueles produzidos pelo memorialista e padre Luis

Gonçalves dos Santos (SANTOS, 1825: 217-234).

O local escolhido para sediar o evento foi o Terreiro do Paço (ou Largo do Paço), área

central e de grande importância para a cidade do Rio de Janeiro de então: ali estava o Paço da

cidade (primeira morada de D. João em solo fluminense quando de sua chegada, e que em

1818 era um dos palácios da Família Real), além de importantes partes do governo

monárquico. Era um amplo espaço de circulação de pessoas e de sociabilidade: assim, foi o

cenário escolhido desde a chegada da Corte para sediar comemorações relacionadas à realeza,

e com a aclamação de D. João não foi diferente. Para tal celebração foi erigido junto à parte

do Paço que dava no fundo do Terreiro um grande anexo, chamado de varanda, totalmente

aberta em arcos para permitir a visão daqueles que estavam de fora. Ela tomava toda a

extensão do Paço ao fundo do Largo, chegando até a porta da Capela Real, prédio que

também fazia parte do complexo palaciano. Dentro e fora, ela era marcada pela magnitude,

pela profusão dos símbolos monárquicos (escudos, armas reais, brasões) e por uma

simbologia clássica que se referia às virtudes e qualidades do novo soberano (os gênios, os

9 ANRJ, Fundo Casa Real e Imperial Mordomia Mor, códice 569 (“Papéis relativos à sagração e coroação de D. Maria I, D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II (1777-1841)”), fls. 39-45.

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deuses gregos, etc). Ali dentro, cercado dessas marcas espaciais e das pessoas que deveriam

estar presentes de forma mais próxima ao ritual, D. João foi coroado rei sexto de seu nome,

assistido por imensa massa de súditos (SANTOS, 1825: 218-220). O desenho da varanda,

segundo as descrições, ficou a cargo do arquiteto do rei João da Silva Muniz, e a direção das

obras foi depositada nas mãos de Joaquim Jose de Azevedo, Barão do Rio Seco e, à época,

Almoxarife da Casa das Obras e Paços Reais, uma repartição da Casa Real que tinha a seu

encargo cuidar das obras e de alguns aspectos da materialidade que envolvia os Paços10.

Apesar do plano de ordens não especificar o horário da cerimônia, sabe-se pelos

relatos que ela se iniciou às quatro horas da tarde do dia 06 de fevereiro. Segundo ele, D. João

sairia de seus aposentos dentro do Paço para se dirigir à varanda, acompanhado dos Grandes

Títulos de sua Corte e de oficiais da Real Casa, bem como dos Bispos (SANTOS, 1825: 222).

Tal acompanhamento seria aberto pelos Porteiros, oficiais da Casa Real responsáveis pelo

abrir e fechar das portas do palácio (e aqui com uma função muito simbólica de abrir o

cerimonial) (BLUTEAU, 1728 (Vol. 6): 633). Esses Porteiros trariam consigo duas insígnias

importantes, e que os distinguiam: primeiramente vinham os Porteiros da Cana, que

possivelmente eram assim chamados por portar instrumentos de sopro rústico, chamados

Cana11. Após vinham os Porteiros da Maça, que traziam nos ombros um bastão pesado usado

para assinalar a chegada das pessoas, a Maça12.

Em seguida viriam os oficiais da Casa Real responsáveis pela Armaria, ou seja, pela

distribuição, uso e regulamentação das armas e brasões da nobreza. Estavam distribuídos

conforme sua hierarquia: primeiro vinham os três Reis de Armas (representando os domínios

mais importantes do império português: Portugal, Algarves e Índia), seguidos dos três Arautos

(representando as mais importantes cidades do Reino: Lisboa, Silves e Goa) e, por fim, os três

Passavantes (representando as mais importantes vilas: Santarém, Lagos e Cochim). Todos

vestiriam cotas de armas, uma espécie de capa por sobre as vestes, e que os diferenciava pela

posição onde o escudo real estava bordado: os Reis de Armas o traziam no peito com a coroa,

10 Os estudos do mestrado, ainda em andamento, apontam que essa repartição pertencente à Casa Real tinha a seu encargo prover os Paços reais com obras de melhorias e manutenções, e cuidar de fornecer a materialidade necessária para o serviço que ali era desenvolvido (como chaves, itens para o fornecimento e abastecimento de água, depósitos e armazéns, madeira para as construções, etc), sem contar o pessoal necessário para o serviço palaciano (destaque para trabalhadores envolvidos no abastecimento de água – os Moços da Água ou Aguadeiros -, os Serventes e as Varredeiras necessárias para a limpeza). Tanto Azevedo como Muniz aparecem registrados na documentação da Casa das Obras e Paços Reais nos postos que justificam sua menção no relato de Luis Gonçalves dos Santos quando este fala da varanda. Para mais: ANRJ, Códice 265 (“Casa das Obras e Paços Reais”). 11 Partindo do pressuposto de que a Cana é uma insígnia de anúncio dos Porteiros, assim como a Maça, a única referência encontrada foi a do dicionário histórico de Antonio de Moraes Silva, que assinala que Cana é uma flauta rústica. SILVA, Antonio de Moraes. Dicionario da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1789, p. 333 (Vol. 1) 12 Definição de Maça disponível no site do projeto Glossário Portas Adentro, da Universidade do Minho. Para mais: http://www.portasadentro.ics.uminho.pt/index.asp.

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os Arautos o traziam ao peito no lado direito sem a coroa, e os Passavantes o traziam no peito

ao lado esquerdo sem a coroa13.

O plano prossegue indicando que compusesse imediatamente o cortejo real os Moços

da Câmara e os Moços Fidalgos. Os Moços da Câmara, como o nome já assinala, eram jovens

de boa família atuantes na Casa Real no desempenho de funções na Câmara Real (nos

aposentos do rei), geralmente ligadas ao vestir e despir do monarca (BLUTEAU, 1728 (Vol.

2): 70; SILVA, 1789 (Vol. 2): 307). Ser Moço Fidalgo significava receber do rei, ainda na

juventude, o foro da Casa Real denominado Moço Fidalgo: um título de fidalguia ligado a

este espaço de serviço direto ao monarca. Dentre todos os foros da Casa Real que poderiam

ser dados, este era o único que tinha exercício efetivo no Paço quando convocado: exercício

este que poderia estar ligado a celebrações14. Em seguida, deveria vir o Corregedor do Crime

da Corte e Casa, um magistrado da Casa de Suplicação do Brasil, ligado aos assuntos cíveis e

até econômicos das comarcas onde atuava15.

Em seguida ficou indicado pelo plano que deveria vir a nobreza, os Grandes Titulares

da Corte (Marqueses, Condes, Viscondes e Barões), e eclesiásticos (os Bispos). Todos viriam

descobertos e formando duas alas, a dos seculares e dos religiosos16. No meio delas deveriam

vir oficiais da Casa Real, portando suas insígnias (Luis Gonçalves dos Santos relatou que

eram apenas os oficiais mores que vieram entre as alas)17. Imediato a essa formação seguiria o

Ministro Secretário de Estado: conforme detalhou a edição extraordinária do dia 10 de

fevereiro de 1818 da Gazeta do Rio de Janeiro, se tratava do Ministro Secretário de Estado

Thomaz Antonio de Villanova Portugal18. Após ele, seguia-se o Merinho Mor, que deveria

trazer em mãos uma vara (sua insígnia): este era um oficial de justiça, responsável pela

aplicação de lei e prisão de fidalgos e membros da nobreza (estas eram pessoas que, por sua

13 BLUTEAU, Raphael. Op. Cit (“Rei de Armas”: Vol. 7, p. 209; “Arauto”: Vol. 1, p. 468; “Passavante”: Vol. 6, p. 306). SILVA, Antonio de Moraes. Op. Cit (“Rei de Armas”: Vol. 2, p. 587; “Arauto”: Vol. 1, p. 171; “Passavante”: Vol. 2, p. 408). 14 Tratado jurídico das pessoas honradas. Op. Cit, título XLVI. 15 Uma importante nota que esclarece acerca deste cargo está na transcrição comentada do plano de aclamação de D. João VI disponível no site temático do Arquivo Nacional. Para mais: http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=620&sid=74. 16 O termo ‘descobertos’ se refere ao uso de chapéu ou barrete na cabeça. Se cobrir significava por na cabeça o chapéu ou barrete, e descobrir-se era não usá-los na cabeça (mas ainda assim se portava o acessório seguro pela mão, por exemplo). BLUTEAU, Raphael. Op. Cit (Vol. 2, p. 627). 17 Sobre as insígnias que competiam a cada um dos cargos de importância da Casa Real, os estudos em andamento revelaram alguns exemplos que indicam que estes objetos simbólicos se relacionavam ao serviço que se prestava na privacidade régia. Podemos citar como exemplo o caso dos Gentis-Homens da Câmara, que portavam junto a si uma chave dourada, simbolizando (e permitindo) o acesso à Câmara régia. ANRJ, Códice 265, fls 40-41. 18 Como explicou Jacqueline Hermann, Thomaz Antonio de Villanova Portugal foi um ministro muito importante nos anos finais de reinado de D. João VI no Brasil. Entre 1817 e 1821 ele chegou a acumular todos os ministérios do governo régio (Negócios do Reino, Negócios da Fazenda, Negócios Estrangeiros e da Guerra, Negócios da Marinha). (HERMANN, 2007:42). Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 10 de fevereiro de 1818 (disponível em http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta_rj_1818/gazeta_rj_extra_1818_002.pdf).

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grandeza e condição, não poderiam ser presos pela justiça ‘comum’). Segundo a edição da

Gazeta Extraordinário do Rio de Janeiro, o ofício era ocupado pelo Conde de Viana, que

trazia junto a si uma vara branca19. Junto ao Meirinho Mor viria o Bispo do Rio de Janeiro, D.

José Caetano da Silva Coutinho, ocupando o ofício de Capelão Mor da Casa Real: a questão

religiosa estava presente na domesticidade régia, que contava com a assistência de um corpo

religioso (liderado pelo Capelão Mor) e de uma capela para seus serviços - a Capela Real,

interna ou anexa ao Paço (como era o caso do Paço da cidade, no Rio de Janeiro).

O plano de ordens para o cerimonial da aclamação de D. João VI mandava que após o

Meirinho Mor e o Bispo Capelão Mor viesse o Alferes Mor, portando a Bandeira Real

enrolada: servia esse ofício o Conde de Barbacena (GAZETA, 1818). Este era um antigo cargo

com função no exército: acompanhar o rei em campanhas e batalhas, portanto a bandeira que

só poderia ser desenrolada por ordem do soberano. Há muito tinha assumido a função

honorífica de levar o estandarte real em cerimônias, saimentos e eventos da realeza no geral

(BLUTEAU, 1728 (Vol. 1): 244; SILVA, 1789 (Vol. 1): 91). Depois dele vinha o Capitão da

Guarda Real, que no âmbito da Casa Real era o responsável pela guarda pessoal do rei. Servia

então este ofício o Marques de Belas e, conforme constam os relatos, a guarda do Paço e os

Arqueiros (que estavam sob sua alçada) estavam prostrados no Terreiro do Paço próximo à

varanda20.

O plano mandava que viesse então, por assim dizer, núcleo da realeza: o infante D.

Miguel abriria a chegada das figuras reais, servindo na cerimônia de aclamação como

Condestável, um ofício que, assim como o Alferes Mor, era há muito honorífico. Ele traria

junto a si o estoque desembainhado (uma espécie de espada com a qual o Condestável devia

assistir nos eventos), e deveria portá-lo levantado em punho, como era de costume21. Em

seguida, vinha a figura central e mais importante do cerimonial: o rei a ser aclamado. D. João

VI, como apontam as descrições, vinha ricamente vestido com o manto real, seguro na cauda

pelo Conde de Parati, Gentil-Homem da Câmara Real (o plano de ordens mandava que o

Gentil-Homem da Câmara que estivesse servindo naquela semana desempenhasse esse papel,

19 BLUTEAU, Raphael. Op. Cit (Vol. Vol. 5, p. 399); SILVA, Antonio de Moraes (Vol. 2, p. 284). Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro. Op. Cit. 20 SILVA, Antonio de Moraes. Op. Cit (Vol. 2, p. 104). SANTOS, Luis Gonçalves dos. Op. Cit, p. 221-222. Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro. Op. Cit. 21 Antigamente, o Condestável era um importante servidor da guerra, que vinha junto ao rei quando este estava em campanha, e era o mais importante presente depois do monarca (e se este não estivesse, a pessoa mais importante era o Condestável). Estar presente em Cortes e eventos com o estoque real desembainhado já era uma de suas antigas funções, e se tornou a principal logo que o cargo passou a ser honorífico, e chamado a servir apenas em eventos da realeza. Segundo o plano de ordens do cerimonial de D. João VI, o estoque seria entregue a D. Miguel por mando do Tesoureiro da Casa Real, Joaquim José de Azevedo, Barão do Rio Seco. BLUTEAU, Raphael. Op. Cit. (Vol. 2, p. 447); SILVA, Antonio de Moraes. Op. Cit (Vol. 1, p. 439).

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e Luis Gonçalves dos Santos esclarece ao leitor que se tratava do dito Conde, também

designado para servir como Camareiro Mor nesse evento)22. Junto ao monarca se colocaria o

príncipe D. Pedro. O príncipe e o infante estariam acompanhados, ainda, de seus oficiais

privados - os camaristas - como assinala o plano de ordens do cerimonial23.

Muito próximo ao rei, do seu lado esquerdo, deveria estar o Mordomo Mor da Casa

Real (possivelmente D. Pedro estaria ocupando o lado direito). Este era o cargo mais

importante dentro da Casa Real, responsável pelo governo da mesma e de todas as suas áreas.

Recebia as ordens do rei sobre o âmbito privado e a repassava a todos os seus subordinados.

Também era responsável pelo despacho de todos os filhamentos da Casa Real. Tinha, ainda,

importante função em cerimoniais: assistia sempre próximo ao rei portando sua insígnia (um

bastão chamado por muitos de ‘negrinha’), “e nos acompanhamentos não ia mais ninguém,

para além do Condestável com o seu estoque, entre o Mordomo Mor e o rei e no ato das

Cortes situava-se à esquerda do rei24”. Servia na função de Mordomo Mor para esta ocasião o

Marques de Angeja, mas na realidade quem desempenhava o cargo era Thomaz Antonio de

Villanova Portugal, que nele ficou de 1818 e 1821 (GAZETA, 1818). Porém, Villanova

Portugal, como visto, já estava presente pelo seu ofício de Secretário de Estado, que exercia

cumulativamente ao de Mordomo Mor.

Na entrada da varanda se encontrariam os menestréis (os músicos), que deveriam

tanger seus instrumentos assim que D. João adentrasse à mesma com seu acompanhamento:

as charamelas (instrumentos de sopro), as trombetas e os atabales. No Terreiro do Paço, a

população já estava presente para assistir ao evento e, dentro da varanda, a chegada do

monarca e sua comitiva vinha completar as presenças necessárias ao evento, pois muitos dos

convidados já estavam organizados hierarquicamente na construção, que para este propósito

era composta de três estrados colocados em níveis diferentes, além de balcões: a acomodação

22Ofício de grande importância no âmbito da privacidade régia, o Camareiro Mor tinha a jurisdição sobre todos os que atuavam na Câmara do seu senhor (sendo, portanto, o cargo mais importante desse ambiente). Bluteau ainda aponta que ele, nos atos de juramento e cortes, levava a parte da roupa de seu senhor que se arrasta ao chão (a capa), e assistia atrás de sua cadeira (BLUTEAU, 1728 (Vol. 2): 70). No ambiente da Câmara régia também havia a presença dos Gentis Homens, que eram homens nobres que serviam ao rei em seus aposentos. Como apontado pelo plano, eles eram divididos no serviço ao soberano, revezando-se semanalmente. SANTOS, Luis Gonçalves dos. Op. Cit, p. 223-224. BLUTEAU, Raphael. Op. Cit (Vol. 4, p. 56). 23 Segundo Antonio de Moraes Silva, Camarista era um “homem nobre, que tem por insígnia uma chave dourada na aba do bolso, a qual é da Câmara Real; serve nela ao Rei, e pessoas reais, e tem entradas nas Câmaras do Paço, onde estão as pessoas reais, onde tem ElRei, os Conselhos, e Despacho, etc”. SILVA, Antonio de Moraes. Op. Cit. (Vol. 1, p. 329). 24 BORREGO, Nuno Pereira. Mordomia Mor da Casa Real foros e ofícios (1755-1910). Lisboa: Tribuna da História, 2008, p. 19-20. Sobre o distintivo do Mordomo Mor, Borrego aponta que sua origem pode remontar ao governo de D. João II: era numa vara com 133,8 cm de altura, 5 de diâmetro e 790 gr, constituída por haste de marfim e castão de ébano em forma de cabeça antropomórfica, representando uma mulher africana. A haste subdivide-se em sete segmentos de tamanhos decrescentes, separados entre si por anéis de ébano lisos. Existe hoje um único exemplar no Museu dos Coches em Lisboa, que data do século XVIII, o que pode significar que um modelo anterior tenha desaparecido no terremoto de 1755 ocorrido em Lisboa. Op. Cit, p. 56.

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dos convocados foi dirigida pelo Visconde de Asseca, que atuava como Mestre Sala

(SANTOS, 1825: 225-226). Ao adentrar na varanda, o cortejo régio se dispersaria para os

locais que deveriam ser ocupados por cada um. D. João VI se dirigiria para o outro extremo

da armação, onde estava o estrado mais elevado, chamado de estrado pequeno. Nele estava,

embaixo de um grande dossel, o trono régio coberto por um rico pano, e do lado uma mesa

que continha os itens que seriam utilizados no ritual: o cetro, a coroa, o missal e o crucifixo

(SANTOS, 1825: 220-221). Para que o rei se sentasse era a função do Reposteiro Mor da

Casa Real descobrir a régia cadeira: tarefa assumida pelo que então desempenhava o cargo, o

Marques de Castelo Melhor, que prontamente o fez. Antes de se acomodar no trono, D. João

VI precisava saudar a Rainha D. Carlota Joaquina, as Princesas e Infantas: todas já estavam

previamente acomodadas no balcão que estava mais próximo ao dossel do trono25. A varanda

contava ainda com outros quatro balcões que seguiam no correr da construção: num deles

estavam Damas portuguesas e austríacas, e em outro as Açafatas. No quarto balcão estavam

os titulares, e no quinto e último estavam os membros do corpo diplomático, acompanhados

de suas senhoras26.

O plano de ordens mandava que, antes do rei ocupar o trono, lhe fosse entregue o

cetro: para tanto o Tesoureiro da Casa Real Barão do Rio Seco colocaria o objeto numa salva

dourada (uma espécie de bandeja), e repassaria ao Conde de Parati (o mesmo Gentil-Homem

que trouxe a cauda do manto no cortejo). Depois que D. João ocupasse seu trono deveriam ser

acomodados seus filhos ao seu lado direito, no mesmo estrado pequeno: um pouco atrás

ficaria D. Miguel com o estoque em punho, e mais à frente e próximo ao trono se colocaria D.

Pedro (os camaristas de Suas Altezas deveriam ficar detrás deles). O plano pedia ainda que

atrás do trono assistisse à cerimônia um Gentil-Homem da Câmara, mas não especifica qual:

pelos relatos de Luis Gonçalves dos Santos sabe-se que havia três Gentis Homens da Câmara

de D. João assistindo ao rei no evento, o Marques de Torres Novas, D. Nuno José de Souza

Manoel e o já referido Conde de Parati (que se deduz ter sido o designado para assumir o

25“A esse tempo já a Rainha Nossa Senhora, e as Sereníssimas Senhoras Princesa Real, Princesa D. Maria Theresa, e Infantas, como também a Sereníssima Senhora Princesa D. Maria Francisca Benedita, e Infante D. Sebastião, com as respectivas Camareiras Mores, se achavam na primeira tribuna próxima ao Real Trono”. SANTOS, Luis Gonçalves dos. Op. Cit, p. 224. No séquito que acompanhava as mulheres da Família Real, a figura da Camareira Mor era de grande importância, pois auxiliava as senhoras no âmbito privado, em seus aposentos (um espaço muito freqüentado por elas). 26 A informação sobre a ocupação dos balcões vem do relato de Luis Gonçalves dos Santos (Op. Cit, p. 224). As Damas, muitas delas nobres, acompanhavam as mulheres da Família Real, e até desempenhavam funções na sua domesticidade. Tem-se a presença das damas austríacas devido à recente presença de D. Leopoldina na Corte Joanina: seu casamento com D. Pedro acontecera em 1817, e parte do séquito que a acompanhou da Áustria para o Brasil ainda se encontrava no Rio de Janeiro. As Açafatas eram criadas que, no âmbito da Casa Real, ficavam responsáveis pelo vestir e despir das senhoras da Família Real (Rainhas, princesas, infantas), e ainda pelo cuidado e transporte de suas vestes (SILVA, Antonio de Moraes, Op. Cit, Vol. 1, p. 21).

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lugar porque atuava como Camareiro Mor). Abaixo desse estrado menor havia outro, e

posicionados nele, à direita do trono, estaria o corpo religioso: o Bispo Capelão Mor vinha

logo depois do degrau entre os estrados, muito próximo ao rei. Ao seu lado estavam outros

prelados: os bispos de Angola, Pernambuco, Prelado de Goias, de Moçambique, de S. Thomé.

No lado esquerdo desse segundo estrado se posicionariam próximos ao degrau que dava

acesso ao trono o Mordomo Mor e o Ministro Secretário de Estado. No mesmo lado esquerdo,

mais afastado, estaria o Meirinho Mor, e depois os Marqueses em ala. Em seguida, estavam os

Grandes da Corte (Condes, Viscondes, Barões) e outros oficiais da Casa Real.

Entre este estrado do meio e o terceiro havia degraus, e cada um deles foi ocupado

conforme a hierarquia estabelecida no plano de ordens. No mais alto deles, se colocou o

Alferes Mor com a bandeira enrolada. No degrau seguinte deveriam se colocar os membros

do Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Do segundo degrau para baixo se colocaram

membros dos seguintes tribunais e repartições do governo régio: Mesa do Desembargo do

Paço e da Consciência e Ordens, Conselho da Fazenda, Casa da Suplicação, Conselho

Supremo Militar, Real Junta do Comércio, Real Junta dos Arsenais do Exército, Real Erário e

os Deputados da Universidade de Coimbra. Também nestes degraus estavam outros

religiosos, os prelados maiores das ordens regulares. Beirando o terceiro estrado estavam os

Reis d’Armas, Arautos, Passavantes, Porteiros da Cana e da Maça. Por fim, no terceiro

estrado estariam em pé Fidalgos e mais todas as outras pessoas convidadas que não ocuparam

outro espaço específico.

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Estando todos dessa forma acomodados conforme solicitava o plano de ordens, se

iniciaria o ritual de aclamação do novo rei. O Secretário de Estado Villanova Portugal deveria

fazer sinal para o Rei de Armas Portugal, para este avisar ao Desembargador do Paço (Luis

Gonçalves dos Santos indicou que se tratava de Luis Joze de Carvalho e Mello) que subisse

para pronunciar a prática à Sua Majestade (SANTOS, 1825: 226). O Desembargador deveria

subir ao estrado abaixo do trono, e nesse momento o mesmo Rei de Armas pronunciaria em

alto som as seguintes palavras: “Ouvide, ouvide, ouvide, estai atentos”. Dito isso, Carvalho e

Mello fez uma profunda reverência ao monarca e iniciou a prática, recitando uma oração.

Finda esta, voltou a reverenciar o rei, e retornou ao seu lugar. Vem então o Reposteiro Mor

Marques de Castelo Melhor, para colocar diante do rei, como era de seu ofício, o material que

havia recebido do Guarda Tapeçarias da Casa Real: uma cadeira rasa (espécie de mesinha)

com uma almofada, e outra para colocar aos pés do monarca para que ele se ajoelhasse. Na

“Planta e prospecto geométrico da régia varanda que se erigiu para a feliz aclamação do nosso augusto soberano o S. D. JOÃO VI em a corte do Rio de Janeiro”: É possível ver por este esquema um traçado panorâmico da varanda da aclamação do rei. Ao mesmo tempo, um prospecto com legendas que explicam ao leitor como estava dividida internamente esta armação: ela mostra o caminho que D. João percorreu com seu acompanhamento até a entrada da construção, indicada pela letra M. Depois, todo o caminho até o extremo esquerdo, formado pelos estrados, levava ao trono régio. Ao fundo (letras F, G, H, I, L), estavam os balcões –a tribuna da Rainha, Princesas e Infantas era a de letra F, mais próxima ao trono. Outro ponto importante: no ponto indicado em E ficou comodada uma mesa (nesse prospecto chamada de “Banco da Escritura”) onde o Escrivão da Câmara de D. João escreveu e lavrou o auto de aclamação do novo rei.(SANTOS, Luis Gonçalves dos. Op. Cit. (Vol. 1) , p. 377).

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cadeira rasa, o Bispo Capelão Mor depositaria o missal aberto, e sobre ele o crucifixo de

prata. O alto prelado da Casa Real deveria se ajoelhar junto a essa preparação próxima ao

trono, o mesmo fazendo dois bispos que seriam as testemunhas do juramento que D. João

faria: segundo Gonçalves dos Santos, eram os bispos de Azoto Prelado de Goiás, e de

Leontopoli Prelado de Moçambique.

De acordo com o plano de ordens, o Secretário de Estado avisaria então ao rei que era

chegada a hora de seu juramento, e o mesmo deveria se ajoelhar na almofada que estava a

seus pés. Passando o cetro para a mão esquerda, ele colocaria a direita na cruz e no missal, e

repetiria as palavras que lhe eram ditas pelo mesmo Secretário, que também estaria de

joelhos. Segundo outro códice presente no Arquivo Nacional, tal juramento tinha o seguinte

teor: “Juro e prometo com a graça de Deus vos reger, e governar bem, e direitamente, e vos

administrar direitamente Justiça, quanto a humana fraqueza permite; e de vos guardar vossos

bons costumes, privilégios, graças, mercês, liberdade, e franquezas, que pelos Reis Meus

Predecessores vos foram dados, outorgados, e confirmados27”. Terminado o juramento, todos

se levantam e retornam aos respectivos lugares. O Secretário de Estado se dirigiria então ao

segundo estrado, imediatamente após o trono, e no meio dele leria em voz alta a fórmula do

Juramento, Preito e Homenagem que os presentes haviam de ir fazer a D. João: “Juro aos

Santos Evangelhos tocados corporalmente com a minha mão, que eu recebo por nosso Rei, e

Senhor verdadeiro, e Natural, o Muito Alto, e Muito Poderoso, o Fidelíssimo Rei D. João

Sexto Nosso Senhor, e lhe faço preito, e homenagem segundo o foro destes reinos28”. Passada

a instrução do juramento a todos, o Bispo Capelão Mor e o Reposteiro Mor mudariam de

lugar a cadeira rasa com a cruz e o missal, colocando-os de frente para o trono na parte

esquerda.

Feito o novo arranjo, D. Pedro faria seu juramento, se ajoelhando e colocando a mão

direita sobre a cruz e o missal, indo beijar a mão do rei ao final, e retornando ao seu lugar. O

mesmo faria D. Miguel, trocando o estoque para a mão esquerda. Depois disso, o Alferes Mor

desenrolaria a Bandeira Real, e o Rei de Armas Portugal diria em voz alta que fossem beijar a

mão do monarca os Grandes Títulos, Seculares e Eclesiásticos, e todas as mais pessoas da

nobreza como se achavam, sem precedências nem prejuízos de nenhum direito que os nobres

viessem a ter uns sobre os outros (ficava assim esclarecido que, para este ato, não haveria

27 “Forma de juramento de ElRei Nosso Senhor”. ANRJ, Códice 849. 28 “Esta é a forma do juramento, que os Grandes, Títulos Seculares, Eclesiásticos, e Nobreza destes Reinos, que aqui estão presentes, hão de fazer a ElRei Nosso Senhor, que é o mesmo juramento costumado que em tais atos se faz aos Reis destes reinos, e seus antecessores”. ANRJ, Códice 849.

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hierarquias). Tendo todos os presentes assim o feito, Thomaz Antonio de Villanova Portugal

se dirigiria ao rei, que lhe indicaria que aceitava o juramento, preito e homenagem que haviam

feito a ele. O Secretário de Estado então faz esse anúncio aos presentes, descendo em meio ao

estrado e bradando: “ElRei Nosso Senhor aceita os juramentos, preitos e homenagens, que os

Grandes, Títulos Seculares, Eclesiásticos, e mais pessoas da nobreza que estaes presentes,

agora lhe fizestes29”. Declarada a aceitação o Alferes Mor, portando a bandeira desenrolada,

pronunciaria em alto som a fórmula da aclamação do novo rei: “Real, Real, Real, pelo Muito

Alto e Muito Poderoso Senhor Rei D. João VI Nosso Senhor”, no que deveria ser seguido

pelos Reis de Armas, e depois por todos os que estavam na varanda, acompanhados do tanger

dos menestréis30.

29 “Forma de aceitação dos juramentos”. ANRJ, Códice 849. 30 O plano de ordens para a aclamação de D. João VI no códice 569 do Arquivo Nacional marca estas palavras como as da forma de aclamação do rei. No códice 849 elas aparecem com pequenas diferenças: “Real, Real, Real, pelo Muito Alto, Muito Poderoso, o Fidelíssimo Senhor Rei D. João VI, Nosso Senhor” “Forma da Real Aclamação e Levantamento dos Pendões”. ANRJ, Códice 849.

“Aclamação do rei D. João VI no Rio de Janeiro”: Nesta gravura, Debret mostrou o aspecto interno da varanda, no momento em que o Secretário de Estado anunciou que D. João aceitou o juramento, gerando aplausos e vivas daqueles que estavam assistindo. Por este desenho é possível entender melhor a distribução que se imprimiu naquele espaço: no patamar mais elevado, embaixo do dossel: ve-se D. João no trono com o cetro, tendo no seu lado direito os filhos D. Pedro (à frente) e D. Miguel (mais ao fundo com o estoque levantado). De seu lado esquerdo estava a mesa com a Coroa e o Alferes Mor com a Bandeira Real desenrolada. Logo nos pés do trono, a almofada e o missal para que todos fizessem o juramento ao novo rei. Na parede à direita, o balcão com a Rainha, as Princesas, Infantas e suas Camareiras-Mores. No estrado de baixo podemos ver ao lado direito do trono o corpo religioso, sendo o Bispo Capelão Mor o que está próximo ao degrau entre os estrados. No final dos traços de Debret é possível ver o degrau que separava o segundo estrado do terceiro. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 604-605.

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Feito isso (e após reverenciar o novo rei), o Alferes Mor seguiria com a bandeira

desenrolada (e acompanhado dos Porteiros da Cana e Maça, dos Reis de Armas, Arautos e

Passavantes) para o meio da varanda, onde se tinha acesso a um pequeno estrado de três

degraus bem no meio da armação, e que se projetava para o Terreiro do Paço (na planta e

prospecto geométrico, apresentado acima, ele está assinalado com a letra E). Nele deveriam

subir o Alferes Mor e o Rei de Armas Portugal, que se dirigiriam ao povo que se aglomerava

no Largo. O mesmo Rei de Armas bradaria: “Ouvide, ouvide, ouvide, e estai atentos”, e o

Alferes Mor, em seguida: “Real, Real, Real, pelo Muito Alto e Muito Poderoso Rei Dom João

VI do nome Nosso Senhor”. Os outros Reis de Armas, Arautos e Passavantes, assim como

todos os que estivessem na varanda, deveriam pronunciar a fórmula da aclamação. O povo,

como relatou Santos, estava no mais completo júbilo e felicidade.

Acabado este anúncio, era o momento de ir à Capela Real. O mesmo Rei de Armas

Portugal anunciaria aos presentes que, por ordem do rei, só deveriam acompanhá-lo em

procissão até lá aqueles que o vieram acompanhando em sua chegada à varanda. Sob o som

dos Menestréis, D. João se levantaria de seu trono e, portando o cetro à mão, percorreria toda

a extensão da varanda até a sua entrada, fazendo este percurso próximo às grades da armação

para que o povo pudesse vê-lo. O plano de ordens designava que o rei deveria fazer três

paradas para que fosse visto pela aglomeração no Terreiro do Paço.

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Descendo pela escada da varanda que dava para o Terreiro do Paço, D. João e sua

comitiva chegariam à porta da Capela Real, onde o Bispo Capelão Mor e todo o grupo

religioso já os estaria esperando. D. José Caetano da Silva Coutinho estava embaixo de um

pálio, segurando a relíquia do Santo Lenho (um fragmento da cruz de Cristo): quando o rei se

aproximasse do Bispo, ajoelharia perante ele e beijaria a relíquia. Depois todos seguiriam em

procissão junto ao Santo Lenho para dentro da igreja, onde segundo o plano de ordens estava

preparado um sitial para que o rei se acomodasse e fizesse a oração31. Um pouco mais adiante

do espaço preparado a D. João ficou D. Pedro, e imediato a ele D. Miguel com o estoque na

mão em punho. Por fim, o Alferes Mor também se encontraria perto deste grupo. Aos oficiais

da Casa Real e aos títulos da Corte o plano mandava que ficassem em alas dentro da igreja, da

melhor forma que pudessem se acomodar. Sobre os acontecimentos dentro da Capela Real, o

plano de ordens é bastante sucinto, pouco falando a respeito.

Quem muito relatou o que se passou ali dentro foi Luis Gonçalves dos Santos, e aqui

se utiliza de seu relato para complementar a análise. Segundo o mesmo, tendo D. João se

acomodado, e já estando na Real Capela todos os que nela deveriam se acomodar (a Rainha,

Princesas e Infantas já estavam previamente acomodadas nos camarotes da igreja), ele fez sua

oração. O Bispo Capelão Mor colocou a relíquia no troneto do altar e todos em pé cantaram o

31 Sitial era uma espécie de cadeira com almofada aos pés, e que tinha uma mesa adiante, coberta com um tapete e contendo outra almofada. Para mais: Site temático Glossário Portas Adentro (Op. Cit.), verbete “sitial”.

“Vista do Largo do Palácio no dia da aclamação de Dom João VI”: Essa gravura mostra o momento em que D. João subiu no elevado que foi feito no meio da varanda (no qual anteriormente o Rei de Armas e o Alferes Mor haviam estado para fazer a aclamação ao povo) para fazer uma das paradas que o plano de ordens designava. Por esta perspectiva, é possível ter outra dimensão da constituição e ocupação da varanda, além da aglomeração no Terreiro do Paço. Vê-se no extremo direito da imagem a escadaria que dava acesso à Capela Real. DEBRET, Jean Baptiste. Op. Cit, p. 607.

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hino religioso Te Deum Laudamus, tocado pelos músicos da Capela e da Câmara do rei32.

Terminado o canto, o Capelão Mor declamou as orações de costume. Por fim, tirou a relíquia

do altar e, com ela, benzeu ao rei e aos presentes: nesse momento, D. Miguel abateu o

estoque, e o Alferes Mor enrolou a Bandeira Real. Devolvido o Santo Lenho ao altar, o Bispo

congratulou e se despediu de D. João, se retirando com toda sua comitiva para a sacristia da

Igreja. Já era noite quando o novo rei, com seu cetro na mão e acompanhado daqueles que

desde o início foram junto a ele, saiu da Capela Real, subiu as escadas da varanda, passou por

dentro dela e, por uma porta colocada atrás do trono régio, adentrou ao Paço33. Findou-se,

assim, o ritual de aclamação de D. João VI.

4) Conclusão As festas, cerimoniais e rituais se tornaram importantes objetos de estudo para os

historiadores. Tal fato se deve à riqueza de informações que as fontes desses eventos podem

revelar: costumes e modos de vida, relações e hierarquias sociais, práticas simbólicas e

ritualísticas nos mais variados âmbitos da vida (política, religião, cultura). Assim, estudar tais

momentos leva o pesquisador para além do fato em si. O estudo dos cerimoniais de aclamação

é uma das muitas possibilidades: por estes instantes de exaltação da monarquia é possível ver

todas as especificidades que cercavam os governos absolutistas e suas figuras principais, os

reis.

Não foi diferente no cerimonial de aclamação aqui analisado: através dele, pode-se

desvelar o universo que circundava a monarquia portuguesa, e que sob condições muito

particulares entronava seu novo rei na colônia americana. Entender a aclamação de D. João

VI é perceber a sociedade, a política, as crenças, os costumes e as vivências que, sob muitos

aspectos, sustentavam a tradicional monarquia lusitana, da qual ele passaria a ser o maior

representante. Uma aclamação levada a cabo com muita pompa e riqueza, acompanhada de

perto por alguns poucos, juramentada pela presença dos que se aglomeravam no Terreiro do

Paço.

32 Há uma divergência entre o plano de ordens e os relatos de Santos: segundo o plano, o Te Deum seria entoado à porta da Capela, seguindo a procissão que levaria o Santo Lenho para dentro do prédio. Já Santos, como visto, relatou que o mesmo hino foi entoado lá dentro, estando todos acomodados. 33 Outra divergência entre os documentos: o plano de ordens indicou que acompanhasse D. João para dentro do Paço apenas os oficiais da Casa Real. O plano de ordens destacou ainda que terminado tudo, o rei voltaria ao Paço sob o som dos Menestréis, fato que não foi descrito por Gonçalves dos Santos.

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Pelas fontes analisadas foi possível perceber que a participação dos grupos sociais era

extremamente necessária para sacramentar, e em alguns aspectos até legalizar, a elevação do

novo rei. A presença desses sujeitos era fato tradicionalmente estabelecido, conforme mostrou

o protocolo da aclamação, e a ocupação dos espaços apontava para a hierarquia social

observada na vida da monarquia: o rei ao centro, com a nobreza e as principais figuras do

governo régio ao seu redor, e a grande massa dos súditos como espectadores-testemunhas das

acontecimentos.

Procurou-se, aqui, entender o ritual que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro e, de

forma mais específica, perceber a participação de um grupo muito próximo à realeza: a Casa

Real Portuguesa. Muitos de seus oficiais mores, como visto, desempenharam importantes

papéis dentro do cerimonial (alguns deles muito próximos ao novo rei). Vários desses

mesmos oficias maiores, para além da importância na domesticidade régia, eram também

membros da nobreza, grupo social de extrema importância para a própria manutenção da

monarquia. Dessa forma, percebe-se que a ligação entre a Casa Real e a nobreza era bastante

estreita, sendo a Casa Real espaço privilegiado para este grupo nobre, que almejava e

precisava estar próximo ao seu soberano. E estar presente não apenas no cotidiano da realeza,

mas também nos seus momentos de ritualidade: espaços de bendizer a monarquia, que

firmavam a garantia da continuidade, do sucesso, da promessa de fidelidade ao novo rei.

5) Bibliografia e Fontes

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Fundo Casa Real e Imperial Mordomia Mor, Códice 265 – “Casa das Obras e Paços Reais”. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Fundo Casa Real e Imperial Mordomia Mor, Códice 569 – “Papéis relativos à sagração e coroação de D. Maria I, D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II (1777-1841)”. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Fundo Casa Real e Imperial Mordomia Mor, Códice 849 – “Forma do juramento de D. João VI de bem reger e governar os seus súditos e dos grandes Títulos Seculares, Eclesiásticos e Nobreza, prestando-lhe preito e homenagem”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1728 (8 volumes). DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 604-605.

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