29
Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar. Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011 Página 1 (27) Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr. António França, da Área de Património Histórico e Museus da Câmara Municipal de Ovar, sobre a descoberta de uma grande peça de madeira de uma presumível embarcação tradicional antiga numa zona recuada da praia do Furadouro 1 , o signatário, aproveitando uma deslocação de serviço a Angeiras (Vila do Conde) 2 na 5ª feira, 24 de Junho, regressou nessa mesma tarde por Ovar, visitando de seguida ao local do achado com o referido técnico. Observação preliminar O vestígio estava situado por detrás da primeira linha de dunas, imediatamente a sul do enrocamento e do esporão, no termo sul da zona urbana do Furadouro, que marca justamente o início do vasto areal que se estende para sul. Consistia numa longa peça de madeira de forte secção quadrangular, deitada sobre um dos lados, orientada aproximadamente no sentido norte-sul, quase paralelamente à praia, semi-enterrada na base de um pequeno morro dunar que a oeste a escondia do resto da praia e do mar. A sua parte norte aflorava a superfície e apresentava uma longa escarva lisa (dita também (lavada) virada para leste. Era claramente um segmento de uma das peças axiais mais importantes da estrutura de um grande navio de madeira naufragado nas proximidades. Na ausência de qualquer ferramenta, a observação da peça foi sumária, mas permitiu concluir que se justificava plenamente a realização de uma missão para a sua exposição completa, condição para a sua observação detalhada e o seu registo arqueográfico por desenho e fotografia. No final dessa visita retornou-se à sede da Câmara Municipal de Ovar, onde fomos recebidos com a maior cordialidade e atenção pelo senhor Vereador da Cultura, Dr. Vítor 1 Os antecedentes do caso encontram-se no respectivo processo oficial DANS 2010/024. 2 Deslocação efectuada para o reconhecimento do local de um achado da época romana na zona marítima fronteiriça diante de Labruge. Acompanharam o signatário Miguel Aleluia, da DANS, e Pedro Oliveira, seu colaborador. Foto: F. Alves Fig, 1 – Localização do achado. Fig, 2 – Observação preliminar da peça Furadouro 1.

Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

(27

)

Introdução

Na sequência do contacto estabelecido com o Dr. António França, da Área de Património Histórico e Museus da Câmara Municipal de Ovar, sobre a descoberta de uma grande peça de madeira de uma presumível embarcação tradicional antiga numa zona recuada da praia do Furadouro1, o signatário, aproveitando uma deslocação de serviço a Angeiras (Vila do Conde)2 na 5ª feira, 24 de Junho, regressou nessa mesma tarde por Ovar, visitando de seguida ao local do achado com o referido técnico.

Observação preliminar

O vestígio estava situado por detrás da primeira linha de dunas, imediatamente a sul do enrocamento e do esporão, no termo sul da zona urbana do Furadouro, que marca justamente o início do vasto areal que se estende para sul.

Consistia numa longa peça de madeira de forte secção quadrangular, deitada sobre um dos lados, orientada aproximadamente no sentido norte-sul, quase paralelamente à praia, semi-enterrada na base de um pequeno morro dunar que a oeste a escondia do resto da praia e do mar. A sua parte norte aflorava a superfície e apresentava uma longa escarva lisa (dita também (lavada) virada para leste.

Era claramente um segmento de uma das peças axiais mais importantes da estrutura de um grande navio de madeira naufragado nas proximidades. Na ausência de qualquer ferramenta, a observação da peça foi sumária, mas permitiu concluir que se justificava plenamente a realização de uma missão para a sua exposição completa, condição para a sua observação detalhada e o seu registo arqueográfico por desenho e fotografia.

No final dessa visita retornou-se à sede da Câmara Municipal de Ovar, onde fomos recebidos com a maior cordialidade e atenção pelo senhor Vereador da Cultura, Dr. Vítor

1 Os antecedentes do caso encontram-se no respectivo processo oficial DANS 2010/024. 2 Deslocação efectuada para o reconhecimento do local de um achado da época romana na zona marítima fronteiriça diante de Labruge. Acompanharam o signatário Miguel Aleluia, da DANS, e Pedro Oliveira, seu colaborador.

Foto: F. Alves

Fig, 1 – Localização do achado.

Fig, 2 – Observação preliminar da peça Furadouro 1.

Page 2: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

(27

)

Ferreira, com quem se fez o ponto da situação e se delinearam as iniciativas futuras, às quais foi garantido um total apoio. Deste modo foram subsequentemente tomadas as necessárias providências, nomeadamente junto da autoridade marítima, de preparação logística e planeamento operacional, assim como de constituição da equipa.

Furadouro 1

A missão Furadouro 1 teve lugar na 2ª feira, dia 28 de Junho, e envolveu os seguintes elementos: o signatário, Miguel Aleluia, João Coelho e Adolfo Martins (da DANS), Catia Charter, Sandra Marques (alunas da cadeira de Arqueologia Náutica e Subaquática, de Licenciatura em Arqueologia da UNL, ministrada pelo signatário), Pedro Oliveira, António Teixeira, Filipa Galito da Silva e Brígida Meireles (alunos de Mestrado em Arqueologia Naval da Universidade Autónoma de Lisboa).

Fases dos trabalhos

1. A adequação da área de intervenção foi a primeira medida tomada, como é obrigatório tanto em arqueologia de campo, como em qualquer estaleiro de obra3; seguidamente, o terreno à volta da peça em questão foi objecto de decapagem e nivelamento superficial (Fig. 3).

2. A escavação nessa faixa contígua continuou por decapagem controlada, uniformemente aplicada a toda a volta da peça, até à sua exposição completa, por ser necessário acautelar a possibilidade de se estar perante uma estrutura complexa ou desmantelada, ou mesmo com partes enterradas debaixo dela, apesar de se tratar aparentemente de uma peça isolada (Fig. 4).

3. Através de sondagens pontuais verificou-se então que por baixo dela não existiam outras peças.

3 Esta providência é por vezes negligenciada por falta de escola, uma vez que a tarefa arqueológica preliminar deve ser sempre a de arrumar o espaço de trabalho, delimitando-o e limpando-o se necessário – porque além de a qualidade do cenário de uma escavação arqueológica ser um dever público, preparar o terreno em Arqueologia é uma marca de profissionalismo.

Figs. 3 e 4 – Preparação e limpeza preliminares do terreno e da paça Furadouro 1.

Foto: F. Alves Foto: F. Alves

Page 3: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 3

(27

)

4. Passou-se então à fase de limpeza da peça por pincelagem não abrasiva, de modo a que todos os pormenores das suas faces expostas, especialmente a de topo, ficassem à vista para o registo arqueográfico, o qual incidiu sobre cada uma das suas quatro faces (Fig. 5).

5. Uma vez completamente exposta e limpa, foram tiradas as medidas e observadas em primeira mão as suas diversas particularidades. A mais notória foi tratar-se de uma peça compósita, constituída por duas unidas entre si, a maior sendo o grande madeiro de secção quadrangular, terminando a norte numa escarva lisa, e a mais pequena sendo um pranchão denteado, que por se ter fracturado cobria apenas a parte sul da anterior (Fig. 6).

Foto: F. Alves

Fig, 6 – Vista da peça Furadouro 1 completamente exposta e limpa, no fim dos trabalhos preliminares.

Foto: J. Coelho

Fig. 5 – Limpeza de pormenor de uma das faces da peça Furadouro 1.

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Page 4: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 4

(27

)

6. Seguidamente, com caneta indelével, foi feito sobre manga plástica em contacto directo o desenho de pormenor da superfície de topo da peça (Fig. 7)4.

7. A peça foi então rodada com o auxílio de uma grua disponibilizada a pedido da autarquia pelo corpo de Bombeiros local, e cada uma das três restantes faces foi objecto do mesmo tipo de registo arqueográfico (Fig. 8).

4 O que se pode designar desenho cautelar, uma vez que o desenho definitivo, de retaguarda, requer técnicas mais rigorosas e uma logística adequada (vide in Alves, F., 2009 e 2011).

Fig, 7 – Desenho cautelar, por contacto directo.

Foto: F. Alves

Foto: J. Coelho

Fig, 8 – Rodagem da peça Furadouro 1 com auxílio de uma Grua.

Page 5: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 5

(27

)

8. Finalmente, a peça foi removida pela referida grua (Figs. 9 e 10), e transportada para depósito num armazém municipal, onde será oportunamente efectuada a sua arqueografia definitiva.

9. Todas estas fases foram fotografadas, assim como foram feitas as necessárias fotografias da peça Furadouro 1, panorâmicas de pormenor, assim como das suas quatro faces em orto-mosaico vertical (por João Coelho).

Foto: F. Alves

Fig, 11 – Montagem da sequência fotográfica, em orto-mosaico, da parte sul da face superior da peça Furadouro 1 in situ, na extensão correspondente à tábua de hastilhas.

Figs, 9 e 10 – Recuperação e transporte final da peça Furadouro 1.

Fotos: J. Coelho – Montagem: F. Alves Alves

Foto: J. Coelho

Foto: F. Alves

Page 6: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 6

(27

)

Page 7: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 7

(27

)

Observações e comentários

Como referido, a primeira observação efectuada foi a de não se tratar de uma só peça, mas de duas peças adossadas, claramente deitadas de lado, viradas para leste (terra) (Figs. 12 e 13a), em que a mais pequena e de menor espessura, de face externa denteada, isto é, rebaixada alternadamente (Fig. 13b), ocupava em extensão apenas a parte sul da maior peça5.

Admitiu-se inicialmente que este denteado poderia corresponder ao normalmente talhado no próprio maciço da sobrequilha, destinado ao seu encaixe axial sobre o dorso das cavernas (as quais são por sua vez assentes axialmente sobre a quilha), o que constitui uma característica típica dos navios antigos de diversas tradições construtivas. Tal seria o caso, por exemplo, do navio de Cattewater, Reino Unido, do século XVI, de tradição construtiva ibero-atlântica (Fig. 14), em que o denteado está bem patente no troço alargado da sobrequilha (a carlinga), em cuja pia era inserido o pé do mastro grande.

5 As fotos de perspectiva, como a da Fig. 12, tiradas com uma objectiva de 28mm, deformam os alvos, alongando as respectivas extremidade proximais e encurtando as distais. Ver o efeito comparativo nas fotos das Figs. 27 e 28, tiradas com diferentes objectivas.

W (mar)

E (terra)

Fig. 12 – Vista de NE da peça Furadouro 1. Fig. 13a) – Croqui da secção da parte compósita peça, na posição em que foi encontrada. Fig. 13a) i) – arestas simétricas sotadas (seccionadas longitudinalmente). Fig. 13b) – Croqui do pranchão denteado.

Fotos: J. Coelho

Fig. 13a)

Fig. 13b)

i)

i)

Fig. 14 – Pormenor dos fundos do navio de Cattewater

(in Redknap, 1984).

Pia da carlinga Caverna Tábua de resbordo (sotada internamente para encaixar no alefriz) Quilha

Alefriz

Denteado

Foto: F. Alves

Page 8: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 8

(27

)

Em Portugal, um exemplo equivalente encontra-se nos destroços do mítico navio Arade 1, da 2ª metade do século XVI, descoberto em 1970 durante a dragagem de bacia de rotação do anteporto de Portimão, e recentemente objecto de uma tese de doutoramento6.

Na ocasião, uma equipa do CPAS fez o registo arqueográfico desses destroços, o primeiro de que há memória em Portugal. Entre estes notáveis croquis, que ficaram por publicar durante quase três décadas7, pode observar-se o da sua sobrequilha denteada (Fig. 15).

6 Loureiro, V., 2011. 7 Alves, F., 1999. Os croquis aqui apresentados correspondem às figuras 6 (: 52) e 20 (: 60) deste texto.

Fig. 15 – Croqui dos destroços do navio Arade 1, da 2ª metade do século XVI, descobertos em 1970, elaborado na ocasião por uma equipa de mergulhadores do CPAS, em que se podem observar os pormenores da sobrequilha denteada.

Page 9: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 9

(27

)

Contudo, não era esta a identificação correcta da peça Furadouro 1. Com efeito, a sua estrutura compósita e o pormenor do seu denteado apontavam para um outro significado.

Este significado prende-se com uma tradição de construção de navios bem mais tardia do que a dos referidos casos, e que perdura até à nossa época – ou quase – se atendermos que o declínio da grande construção de madeira iniciado no século XIX teve o apogeu da sua agonia na 2ª metade do século XX.

A peça compósita Furadouro 1 é, na realidade, não uma sobrequilha, mas um segmento de quilha, sobre a qual assenta uma tábua de hastilhas, cujo denteado se destina ao encaixe axial dos pés ou das faces inferiores das cavernas, como se pode observar na obra de Edmundo Castanheira (Fig. 16)8.

A este propósito, o autor refere o seguinte:

“A parte superior da quilha acima da linha que une as arestas superiores dos dois alefriz, dá-se o nome de tábua de hastilhas.

Havendo dificuldade em obter madeira que nos forneça uma peça inteira para a tábua das hastilhas, esta será formada por uma grossa prancha solidamente cavilhada com a quilha.

Na tábua de hastilhas é aberto um entalhe de cada lado do plano de simetria, denominado hastilheira, conforme fig. 27.

Estes entalhes cujo comprimento no sentido de proa à popa é precisamente igual à largura das cavernas, tem por finalidade encastrar estas na quilha.”

O fragmento de tábua de hastilhas da peça Furadouro 1 encontra-se solto da quilha na sua maior parte dianteira (norte), sendo nesta fase ainda prematuro adiantar os pormenores da sua fixação à quilha e às cavernas, assim como à sobrequilha.

8 Vide Bibliografia.

Fig. 16 – Estrutura axial (em secção) dos fundos de um navio com o pormenor da

quilha equiparável ao da peça Furadouro 1 (in Castanheira, 1991: 63, Fig. 27).

Page 10: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

0 (27)

Em contrapartida, o pormenor da sua zona de fractura merece algumas considerações, especialmente pelo facto de esta zona coincidir justamente com a aresta externa, superior, do “dente-batente” da longa escarva da quilha, que constitui a sua restante parte obliquamente rebaixada em toda a sua extensão.

Seja dito que a fractura da tábua de hastilhas neste local não é de admirar, porquanto ela coincide justamente com o plano deste “dente-batente”. Este representa, aliás, um típico ponto de fragilidade de qualquer peça compósita (neste caso prolongada através de segmentos escarvados), razão pela qual tantos vestígios navios destroçados quebram justamente os cascos nessas zonas de assemblagem estruturais e apresentam frequentemente nessas zonas um dos lados das extremidades de rotura (Fig. 17).

Na extremidade oposta (sul), a tábua de hastilhas encaixava perfeitamente no maciço de topo da peça, que para o efeito fora rebaixado propositadamente, deixando o seu topo esculpido, em reserva (Fig. 18).

De referir, a propósito, que o afeiçoamento deste topo parece significativo, no sentido em que o seu encurvamento parece servir de encosto à correspondente face contacto de uma outra peça. Esta hipótese merece no entanto reserva, porquanto o mais natural neste caso seria o de este contacto, hipoteticamente terminal, dever ser feito através de uma escarva. De assinalar neste topo sul, dos dois lados, a existência de uma forte concreção ferruginosa que aparentemente corresponde a

Fig 18 – Extremidade sul da peça Furadouro 1, em que é visível o encaixe perfeito da tábua de hastilhas no seu topo rebaixado.

Fig. 19 – Extremo sul da peça Furadouro 1, claramente afeiçoado (rematado em encurvamento), vendo-se dos dois lados borbotos de concreção ferruginosa, aparentemente indiciando um mesmo cavilhamento.

Foto: F. Alves

Foto: J. Coelho

Fig. 17 – Extremidade norte do fragmento de casco da presumível nau da Índia Nossa Senhora dos Mártires,

naufragada em 1606 na barra do Rio Tejo, nas imediações da fortaleza de São Julião da Barra.

Vê-se, a eixo, à direita, a extremidade dianteira da escarva vertical da quilha,

e à esquerda, recuado, o seu batente, testemunhos exemplares da sua zona de fractura.

Foto: F. Alves

Page 11: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

1 (27)

uma cavilha de ferro vertical que o atravessa (Fig. 19).

A mais destacada particularidade da quilha Furadouro 1 é a de apresentar uma escarva lisa em toda a extensão da sua parte norte. No local, esta escarva encontrava-se na vertical, virada para leste (terra), pelo que teria a sua face virada para cima na sua posição funcional, original (Figs. 20 e 21).

Este tipo de assemblagem é muito comum na carpintaria naval de todos os tempos, designadamente nas peças longitudinais de reforço estrutural dos navios (quilhas, sobrequilhas, escoas e dormentes)9, pelo que a peça Furadouro 1 atesta à partida, sem surpresa, que se trata de um segmento de uma quilha compósita – i.e. feita de segmentos – pormenor arquitectural sobejamente referido e justificado pelos dois expoentes máximos da arquitectura da arquitectura naval portuguesa, europeia e mundial, dos finais do século XVI e dos inícios do XVII, Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha (Fig. 22), como resultado da rarefacção das espécies arbóreas suficientemente poderosas e longas, susceptíveis de nelas se poderem talhar quilhas “de um só pao” (Oliveira).

Por outro lado, este facto está já amplamente atestado arqueologicamente em Portugal (por exemplo, nos destroços do navio Ria de Aveiro A10, dos meados do século XV (Fig. 23), e nos da presumível Nossa Senhora dos Mártires11 (Fig. 17 e 25).

9 Sublinhe-se que as escarvas verticais são comuns nas quilhas dos navios desta época, enquanto que nos navios mais tardios, como o do Furadouro, dominam as escarvas horizontais (na realidade oblíquas). 10 Alves, F. et al., 2001.

Fig. 20 – A peça Furadouro 1 na sua posição funcional, original.

Fig. 21 – A zona da escarva da quilha da peça Furadouro 1 na sua posição funcional, original.

Fig.22 – escarva lisa (neste caso vertical), segundo Lavanha.

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Page 12: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

2 (27)

Antes de descrever em pormenor o segmento de quilha da peça Furadouro 1, e por necessidade de encadeamento lógico desta descrição, seja referido que as arestas da sua face superior (de assentamento da tábua de hastilhas) se encontram obliquamente sotadas (Fig. 13a - i) + i)). Quer isto dizer que estas arestas simétricas estão longitudinalmente seccionadas, ficando assim definidos, ao longo das partes laterais superiores da quilha, debaixo dos bordos laterais da tábua de hastilhas, rasgos longitudinais equivalentes aos alefrizes, para o encaixe das tábuas de resbordo (Fig. 26).

A escarva lisa horizontal, de “dente-batente”, do segmento de quilha da peça Furadouro 1 é uma peça particularmente complexa do ponto de vista formal. Com efeito, a par do plano 11 Alves, F. et al., 1998, e Castro, F., 2005. Vide também, numa perspectiva comparativa, em Alves et al., 2000.

Figs. 23 e 25 – Segmentos das quilhas dos navios Ria de Aveiro A e da presumível Nossa Senhora dos Mártires. Fig. 24 – Esquema axonométrico de uma escarva lisa vertical num troço de quilha.

Fig. 26 – Pormenor do sotamento da aresta da face da quilha em que assenta a tábua de hastilhas. A escarva lisa horizontal (na realidade oblíqua em posição funcional) desenvolve-se a partir plano do “dente-batente”, que por sua vez coincide com o plano de rotura daquela tábua.

Aresta sotada

Dente-batente da escarva

Foto: F. Alves

Foto: P. Gonçlves ou F. Castro?

Foto: F. Alves

Page 13: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

3 (27)

longitudinal e oblíquo da sua face, que intersecta o plano teórico da base da peça, ela tem as suas arestas laterais duplamente sotadas, um dos sotamentos (C) parecendo corresponder ao prolongamento do plano do sotamento das arestas situado debaixo das bordas da tábua de hastilhas (Figs. 27 e 28)12. Isto poderá querer dizer que esse plano teria a função de alefriz, mesmo que parcialmente. Daria assim apoio e encaixe às tábuas de resbordo (aqui mais de apoio do que encaixe), o que parece no entanto relativamente insatisfatório como

explicação. Os outros planos de sotamento não têm por ora explicação.

À falta de outras partes originalmente conexas, pouco mais se poderá dizer, que não seja alvitrar no escuro; como ter eventualmente existido um conjunto mais ou menos complexo de peças com assemblagens longitudinais, escarvadas e sotadas inversamente, de secção transversal complexa, compósita e/ou facetada, constitutivas de um leggo suficientemente

12 Apresentam-se aqui – deliberadamente – duas tomadas de vista de perspectiva de N-NE, idênticas, realizadas com duas objectivas diferentes (vide nota 6: 6), cada qual com a inerente deformação.

A

A

B

B

C

C

D

B’

E

E

Figs. 27 e 28 – Descrição dos planos (em posição funcional):

A – Plano da escarva lisa horizontal (na realidade, oblíqua). B – Face lateral vertical. B’ – Face lateral vertical, rebaixada (dente em plano transversal). C – Plano oblíquo do sotamento da aresta de A, terminando em dente transversal triangular. D – Plano oblíquo de sotamento da aresta da face superior da quilha e da face lateral B, constitutivo de uma base de alefriz D. E – Plano de sotamento das arestas das faces A, B e C, para presumível prolongamento da base de alefriz D.

D

B’

A

A

Foto: F. Alves

Foto: J. Coelho

Page 14: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

4 (27)

consolidado para assumir a função de eixo maior estruturante central de um navio – o todo constituindo uma quilha sobremaneira compósita.

Quanto mais não seja por esta indefinição, a quilha Furadouro 1 é uma peça excepcionalmente interessante, mais por colocar perguntas do que por trazer respostas.

As particularidades da quilha Furadouro 1 não ficam no entanto por aqui. O lado da peça que no local estava virado para cima (face B), a c. 1m para sul da extremidade de rotura da tábua de hastilhas, apresentava um dente de rebaixamento dessa superfície, ao longo de toda a sua extensão (face B’) (Fig. 29).

Não se encontrou ainda explicação para este dente, que apenas se encontra presente nesse lado da quilha. Com efeito, se isto se passasse numa sobrequilha, e se existisse um outro dente simétrico, ambos poderiam corresponder à necessidade de “trancar” os eventuais deslizamentos longitudinais entre ela e uma peça contígua, de reforço longitudinal lateral – um contraforte, segundo Castanheira13. Isto, teoricamente, porque na realidade não conhecemos nenhum exemplo similar. A resposta a esta questão fica portanto igualmente em aberto.

Finalmente, a base da quilha, a sua face inferior, é parcialmente plana. Quer isto dizer que, apesar de atestar um talhe regularmente plano nos seus terços extremos, apresenta uma notória bossa no seu terço mediano, como se pode verificar nas Figs. 30 e 31.

13 À imagem do que os egípcios faziam há mais de quatro mil anos com as linguetas não cavilhadas, usadas não para unir tábuas, mas para evitar o seu deslocamento longitudinal.

Fig. 29 – Dente de rebaixamento de uma das superfícies laterais da quilha – um enigma por desvendar.

B’

B

Foto: F. Alves

D

Page 15: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

5 (27)

Nesta mesma zona merece ser assinalado um pormenor: a presença de um prego de ferro dobrado, cuja extremidade proeminente e concrecionada parece corresponder a uma cabeça rebitada, conservando ainda a anilha (Figs. 30 a 33).

Esta particularidade da base da quilha da peça Furadouro 1, que terá de ser objecto de uma observação mais aprofundada, é por sua vez bem visível aereamente, na fase de levantamento da peça pela grua disponibilizada (Fig. 34).

Figs. 30 e 31 – Vista da peça com a base virada para cima, na qual é claramente visível a “bossa” desta face, podendo também observar-se uma protuberância bastante oxidada, constituída por uma cavilha de ferro dobrada, com uma grande cabeça rebitada e a respectiva anilha (Figs. 32 e 33).

Figs.32 e 33 – Cavilha com cabeça rebitada e a respectiva anilha (vista de topo) e o seu desenho de perfil.

Foto: F. Alves

Foto: A. Martins

Foto: J. Coelho

Foto: J. Coelho

Page 16: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

6 (27)

Dimensões e outros atributos14

Peso: c. 700kg15.

Orientação do eixo longitudinal: Azimute horizontal: 340º.

Comprimento: c. 7,75m.

Largura (espessura transversal): 0,325m (na extremidade S); 0,395m (junto ao dente da escarva); 0,39m (na extremidade N da escarva).

Altura (espessura vertical): 0,34m (na reserva da extremidade S); 0,34m (a 0,25m S-N); 0,3m (imediatamente a N da extremidade S em reserva, até 2,5m S-N, a partir do qual a bossa começa a formar-se); 0,36m (a S do eixo da anilha); 0,37m (na bossa a eixo da anilha, até ao eixo da aresta superior da escarva).

Escarva

Comprimento da face: 2,9m.

Largura (espessura transversal): 0,395 (junto ao dente); 0,39m (na extremidade N).

Altura do dente-batente: 0,04m.

Altura (espessura vertical): 0,11m (na extremidade N).

14 Agradeço à minha aluna do seminário de Mestrado, Fátima Claudina a colaboração prestada nos trabalhos de verificação das medições em questão. 15 Lido no dinamómetro da grua do camião dos Bombeiros, que removeu a peça no final do dia.

Fig. 34 – Vista da remoção final da peça Furadouro 1, em que se pode perfeitamente observar o seu perfil.

Foto: A. Martins

Page 17: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

7 (27)

Tábua de hastilhas

Comprimento: 4,56m.

Comprimento mínimo e máximo preservado das faces superiores dos dentes: 0,145m (dente 6 S-N) e 0,25m (dente 7).

Comprimento mínimo e máximo do espaço rebaixado entre dentes: 0,265m (espaço 6 S-N, muito deteriorado); 0,33m (espaço 5 S-N)16.

Largura mínima e máxima dos dentes: 0,31m (dente 1); 0,37m (dente 9 = extremo N, junto à aresta do dente da escarva).

Altura (espessura vertical) máxima nos dentes: 0,12m.

Outras medidas relevantes

Comprimento do sotamento D (Figs. 26 a 29): 1,625m.

Notas adicionais

Entre os numerosos transeuntes locais e estivantes, que por curiosidade se dirigiram aos membros da equipa, contou-se um residente local, o senhor António José Oliveira Ferreira, que informou que a peça Furadouro 1 dera à costa acerca de 2/3 anos e provinha dos destroços de um navio naufragado nas proximidades, nos quais se emalhavam frequentemente as redes de pesca, o que causava grande transtorno aos pescadores, e que por isso foram arrastados para a praia.

Mas disse também que a algumas centenas de metros para sul, mais para trás das dunas do que a peça Furadouro 1, existiam outros vestígios de madeira do mesmo género (que já nos tinham assinalado, pelo que tínhamos decidido ir vê-los no final do dia). Segundo a informação, parte destes vestígios deixados a norte da praia acabaram por ser levados pelas marés, mais para sul – razão pela qual o tractor da pesca os arrastara para trás das dunas.

Deste modo, no final do dia, o signatário e parte da equipa foram ver este segundo núcleo de destroços (Figs. 35 a 37). E ficou claro, pela sua importância, que era forçoso voltar lá para uma consistente observação preliminar.

16 Este é verdadeiramente o parâmetro descritivo fundamental da tábua de hastilhas, porquanto permite conhecer a espessura do cavername (presumivelmente duplo, ao qual cada espaço rebaixado entre dentes servia de encaixe. Assim, com vista à estimativa desta espessura, apresenta-se o comprimento de cada um dos 8 espaços (entre os seus 9 dentes) – sublinhando no entanto a pouca fiabilidade destas medidas, devido à grande degradação dos lados e das superfícies dos dentes desta peça: Espaço 1 (S-N): 0,28cm; Espaço 2: 0,32cm; Espaço 3: 0,325cm; Espaço 4: 0,32cm; Espaço 5: 0,33cm; Espaço 6: 0,265cm; Espaço 7: 0,305cm; Espaço 8: 0,295cm. Em conformidade com estas medidas, os elementos das meias cavernas deveriam ter entre 14 e 16cm de espessura.

Page 18: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

8 (27)

Furadouro 2

Três dias depois da primeira missão, na 5ª feira, 1 de Julho, uma equipa constituída pelo signatário, João Coelho, Miguel Martins, Catia Charter, Sandra Marques e Brígida Meireles, voltou ao sítio e efectuou a observação e o registo sumário deste conjunto de peças por fotografia e medição. Era com efeito evidente que a complexidade estrutural deste conjunto era muito maior do que no caso da peça Furadouro 1, exigindo mais tempo e uma logística apropriada.

Finalmente, nos dias subsequentes, os vestígios de Furadouro 1 e 2 foram levados pelos serviços municipais para o mesmo local do primeiro, para serem posteriormente objecto de estudo pormenorizado.

Observações e comentários

O referido conjunto era constituído mais a leste, por uma única peça, consistindo num longo segmento de quilha, e a oeste, a poucos metros dele, por um conjunto de peças ainda em conexão, ao qual pertencia claramente uma meia caverna solta, caída a leste na imediata contiguidade daquele conjunto.

Fig. 35 – Vista geral do sítio Furadouro 2, para leste. Fig. 36 – Segmento de quilha. Fig. 37 – Conjunto ainda em conexão.

Fotos: J. Coelho

Foto: A. Martins Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Page 19: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 1

9 (27)

1. O segmento de quilha

Depois de uma elementar desmatação do local e da limpeza do segmento de quilha, verificou-se que o mesmo se encontrava em péssimo estado de conservação, apresentando- se quase completamente corroído na sua base e em significativas partes da superfície das suas faces.

A peça jazia de lado com a sua face dorsal virada para norte e estava disposta aproximadamente no sentido leste-oeste. A sua extremidade W apresentava-se completamente degradada, mas a de L bastante menos.

A escarva de dente

O mais expressivo pormenor da face sul desta extremidade (correspondente à sua face inferior em posição funcional) era a presença de uma escarva de dente (Figs. 39 e 40).

A escarva apresentava como pormenores de destaque os dois cantos internos do rebaixamento para o dente escavados em canelura sub-circular, a ¾ do respectivo perímetro (Fig. 41), para a inserção de cavilhas de madeira de secção circular com a função de aqua-stop, as quais se encontravam ainda preservadas (Figs. 42 a 44). Complementarmente, a meio da face terminal da escarva, não rebaixada, existia uma canelura em meia-cana para um terceiro aqua-stop.

Fig. 38 – A quilha Furadouro 2, vista W-L. Fig. 39 – A quilha Furadouro 2, vista L-W, com a sua escarva terminal

Fig. 40 – Vista da escarva de dente (fêmea) do segmento de quilha Furadouro 2, em que são visíveis as respectivas arestas internas em forma de canelura para aqua-stop, assim como a meia-cana para um terceiro aqua-stop, a meio do plano terminal da escarva, não rebaixado.

Foto: F. Alves Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Meia-cana de um aqua-stop a meio do plano terminal da escarva

Rebaixamento para o dente da peça oposta

com um aqua-stop em cada topo

Alefriz

Foto: F. Alves

Page 20: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

0 (27)

Apesar de bastante erodida, a peça tinha todos os atributos clássicos de uma quilha, com os alefrizes simétricos bem marcados.

Uma particularidade forneceu entretanto um dado de natureza técnica e cronológica muito interessante. Com efeito, na base da quilha eram visíveis pontos de verdete indicativos da presença de produtos de corrosão do cobre (Figs. 45 e 46). Eram vestígios de cabeças de pequenos pregos de cobre que fixavam o folheamento de cobre às obras vivas do navio (incluindo portanto à quilha), protecção típica do casco dos navios desde os finais do século XVIII, mas sobretudo generalizada no século XIX 17, o que baliza cronologicamente o navio em questão.

17 Vide Krisman, K. & Jordan, B., 1999.

Figs. 42 a 44 – Pormenor das cavilhas de madeira dos cantos do rebaixamento da escarva, com a função de aqua-stop.

Fig. 41 – Croqui explicativo dos pormenores da parte rebaixada (para o dente) da escarva da quilha Furadouro 2 (F. Alves).

Figs. 45 e 46 – Pormenor da disforme face inferior da quilha Furadouro 2 em que são visíveis cabeças de pregos de cobre, para a fixação do folheado do mesmo metal, para protecção das obras-vivas do casco contra os xilófagos.

Foto: F. Alves Foto: F. Alves Foto: F. Alves

Foto: F. Alves Foto: F. Alves

L //

// L = 0,745m

L = 0,71m

Page 21: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

1 (27)

Dimensões básicas do segmento de quilha

Comprimento: 6,75m.

Largura: 0,25/0,27m.

Altura: 0,28m (a 3,6m S-N, local em que estava mais bem preservada).

Alefriz

Altura da banda superior da quilha: 0,05m

Largura da banda superior do alefriz: 0,07 a L; 0,09 a W. A banda inferior é mais estreita.

2. O conjunto de peças em conexão estrutural

O conjunto em conexão estrutural original é composto pelos seguintes elementos (Fig 47):

- Uma peça axial longitudinal de poderosa secção quadrangular ovalada, pequena em comprimento, cuja parte superior, denteada, é formada por dois rebaixamentos entre três partes sobrelevadas. Foi convencionalmente designada K.

- Uma caverna de braços pequenos, um deles “no ar”, a leste, e o outro, a oeste, deitado na areia, inserida na metade meridional do espaço rebaixado mais a sul. Foi designada C, e os seus braços CbW e CbL18.

- Um meio-braço longo, deitado igualmente a oeste, adossado a CbW, excedendo-o em comprimento e igualmente inserido no espaço rebaixado mais a sul, neste caso na sua metade setentrional. Foi designado BW.

- Um pequeníssimo fragmento de tabuado ainda subsistia semi-pregado na face externa de CbL (Fig. 48).

Um curto fragmento de meio-braço deitado solto na areia imediatamente a leste do conjunto, verificou-se ser o elemento simétrico de BW, graças ao seu pé preservado (Fig. 49). Foi designado BL.

18 De referir que esta caverna C se encontra fissurada mais ou menos a eixo, o que no terreno impediu verificar se a peça é de facto unitária, embora circunstancialmente rachada, ou se é efectivamente feita de dois braços.

Fig. 47 – O conjunto total Furadouro 2 visto de sudoeste. Fig. 48 – Fragmento de tabuado ainda preso ao braço da caverna. Fig. 49 – Pé do meio-braço BL, solto.

C K

CbL

CbW

K

BW

BL

BL K

Fig. 47 Fig. 48

Fig. 49 Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Page 22: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

2 (27)

A peça K apresenta na sua extremidade sul um seccionamento transversal nítido e limpo. Em contrapartida, a sua extremidade norte apresenta indícios de um seccionamento idêntico, mas incompleto, disto sendo expressão alguns pontos periféricos da madeira, não seccionados (Figs. 50 e 51). Aliás, como é bem visível nesta última vista, ao longo da banda interna do maciço terminal (N) houve um seccionamento transversal iniciado mas não concluído, que aparentemente testemunha que esta maciça peça longitudinal, certamente bem longa, foi intencionalmente serrada, provavelmente no acto de desmantelamento destes vestígios, ainda no mar ou já mesmo em terra.

Presume-se, a partir da superfície rebaixada visível, que todas elas possuiriam o que esta mostra no seu lado meridional: uma pequena pia rectangular (Figs. 51 e 52) para a mecha de um pé de caverna ou dos respectivos braços simétricos, se estas forem compósitas.

Figs. 50 e 51 – Extremidades sul e norte da peça K.

Fig. 52 – Vista de leste do rebaixamento setentrional da peça K com a sua pia.

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Page 23: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

3 (27)

Por sua vez, como já é visível na figura anterior, é notória a pequena deslocação sofrida pelo pé do braço BW (Fig. 53).

Decidiu-se então colocar o braço BL na sua posição original, tendo então sido verificado que este era fixado ao braço contíguo da caverna C (CbW) por intermédio de cavilhas de madeira (Figs. 54 e 55).

Fis. 53 – Vista da deslocação sofrida pelos pés da caverna C e do meio-braço BW.

Fig. 54 – O fragmento do meio-braço BL no seu lugar de origem.

Figs. 55 – Uma cavilha de madeira para a fixação dos braços encontrava-se ainda preservada. Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Page 24: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

4 (27)

De assinalar deste modo que este cavername é composto por unidades mistas (formadas por elementos duplos emparelhados), característica do sistema alternado convencional vigente até à época contemporânea na construção dos navios de madeira. Sistema este em que cada caverna inteiriça (ou não?) de braços simétricos curtos, embaraça lado a lado com dois longos braços individuais, simétricos, dando assim origem a uma sequência transversal alternada em conformidade com o esquema seguinte (Fig. 56).

Fig. 56 – Esquema de um cavername alternado: Pequenas cavernas axiais = . . Longos 1os meios-braços = .

2os braços (não presentes em Furadouro 2) = .

Entretanto, decidiu-se colocar a peça K na sua posição original (Figs. 50, 57 e 58).

Figs. 57 – O conjunto em conexão estrutural Furadouro 2, em posição funcional vista de sul.

Figs. 58 – O conjunto em conexão estrutural Furadouro 2, em posição funcional vista de norte.

Foto: F. Alves

Page 25: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

5 (27)

Após a colocação do conjunto em conexão estrutural Furadoro 2 em posição funcional, tornou-se imprescindível observar a sua única parte até então não colocada à vista – a sua base. O resultado foi surpreendente, devido a um pormenor até então insuspeitado. A base da peça K era efectivamente plana – mas fora rebaixada relativamente aos seus bordos laterais – internamente mantidos em forma de batente vertical, e externamente conservando o encurvamento próprio do exterior da peça (Figs. 59 e 60) – como que formando uma calha para o encaixe no dorso de uma peça abaixo situada, que provavelmente era a quilha (Fig. 61).

Figs. 59 e 60 – A base da peça K e o seu rebaixamento, denteado lateralmente.

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Foto: F. Alves

Fig. 61 – Esquema da secção da parte inferior da peça K, com a sua base rebaixada e o seu denteado lateral.

Page 26: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

6 (27)

Este simples pormenor permitiu concluir que a peça K assentava obrigatoriamente numa outra peça longitudinal, cujo dorso nela encaixava entre os seus dentes laterais. Resta saber agora, se ela assentava numa quilha – desempenhando assim o papel de uma tábua de hastilhas (hipótese que nos parece mais provável) – ou se ela-própria é um segmento amputado de uma quilha, adaptada para assentar numa contraquilha. Em qualquer dos casos, levaria obrigatoriamente19 por cima, axialmente e longitudinalmente, uma sobrequilha.

Outra questão será tentar-se determinar se a quilha Furadouro 2 corresponderia ao conjunto em conexão, o que provavelmente não se conseguirá, porquanto além serem ambas segmentos de peças compósitas – e nada permite auspiciar que os segmentos de cada uma eram justamente os que encaixavam entre si (se fosse esse o caso). Tanto mais que no caso da peça K estaríamos apenas perante o que resta (seccionado) de um segmento de uma tábua de hastilhas (neste caso, mais propriamente um poderoso madeiro do que uma simples “tábua”…).

E é tudo o que momentaneamente podemos dizer sobre as peças Furadouro 1 e 2.

Dimensões

Peça K

Comprimento: c. 1,215m

Largura: c. 0,6m

Altura (espessura vertical): c. 0,28m

Comprimentos do denteado (de S para N; d = dente; e = espaço):

d1: 0,18m / e1: 0,35m (dos quais 0,315 preenchidos pelo duplo cavername) / d2: 0,13m / e2: 0,355m / d3: 0,2m.

Pia de e2:

Comprimento: c. 0,23m.

Largura: c. 0,17m.

Altura (profundidade): c. 0,08/0,1m.

Largura da base rebaixada: c. 0,285/0,29m.

Caverna C

Envergadura (nas extremidades): c. 2,46m.

Largura: c. 0,175m.

Altura (espessura vertical): c. 0,28m.

Meio-braço BW

Comprimento: c. 2,59m.

Largura: c. 0,155m.

19 Por imperativo de rigidez estrutural, tanto longitudinal (stiffness), como transversal, para sujeição do cavername.

Page 27: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

7 (27)

Altura (espessura vertical): c. 0,21m.

Meio-braço BL (incompleto)

Comprimento: c. 1,46m.

Largura: c. 0,17m.

Altura (espessura vertical): c. 0,26m (fase superior in situ) / 0,28m (face inferir in situ).

Comprimento do bisel do pé: c. 0,34m.

Conclusões preliminares

1. A peça Furadouro 1 não pertence ao mesmo contexto arqueológico do conjunto Furadouro 2, querendo isto dizer que estas não provêm do mesmo navio naufragado.

2. A proximidade do segmento de quilha e do conjunto de peças em conexão de Furadouro 2 não garante que ambas provenham do mesmo navio naufragado; e o segmento de quilha isolado de Furadouro 2, apesar de a sua face dorsal ter uma largura próxima da equivalente da base da peça K do mesmo conjunto de achados, também não o garante.

3. Pelas observações efectuadas e pelos dados recolhidos, os dois conjuntos da praia do Furadouro configuram uma proveniência de mais de um navio – dois ou três, ainda a confirmar – se possível.

4. Estes conjuntos podem ser cotejados com fontes históricas ou arqueológicas sobre naufrágios, ou mesmo com eventuais pesquisas subaquáticas, sem ou com métodos geofísicos de detecção remota, mas os resultados seriam escassos ou mesmo nulos, porque, mais do que provavelmente, jamais se conhecerão as localizações dos respectivos contextos de origem, condição de base para uma eventual possibilidade comparativa.

5. Não obstante, o conjunto de peças identificadas como pertencendo a diferentes navios naufragados ao largo do Furadouro, na sua diversidade tipológica e eventualmente, cronológica, constituem um study case de grande interesse para uma investigação de arqueologia náutica – muito especificamente centrada na arquitectura dos navios de madeira menos antigos, por vezes muito menos estudados e documentados, designadamente dos pontos de vista arqueológico e arqueográfico, do que outros bem mais antigos.

6. De resto, a natureza fragmentária deste conjunto de vestígios, ao mesmo tempo muito limitada e diversificada, revela-se no entanto de excepcional interesse, menos pelas respostas que dá, do que pelas perguntas que coloca. Ora, como se sabe, isto constitui o próprio paradigma de qualquer processo investigativo – se não mesmo, por vezes, a sua única, insubstituível e fundamental contribuição para o conhecimento.

7. De qualquer modo, como já foi dito, o trabalho realizado terá de ser completado oportunamente – com a brevidade possível – desta vez em estaleiro de retaguarda, de modo a completar e corrigir as observações e os registos arqueográficos efectuados.

Bem hajam finalmente todos os que tornaram viável este singelo ensaio de recuperação do passado – a começar pelos que, pela Câmara Municipal de Ovar, e pelo corpo de Bombeiros local, a diversos níveis, despoletaram e apoiaram os trabalhos efectuados, a par

Page 28: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

8 (27)

de todos aqueles que neles participaram directamente – membros da DANS, colaboradores, colegas e estudantes universitários(as).

Page 29: Introdução Na sequência do contacto estabelecido com o Dr

Alves, Francisco, 2011, Missões de reconhecimento de vestígios de navios naufragados, abandonados na praia do Furadouro, Ovar.

Trabalhos da DANS, 46 Setembro 2011

Página 2

9 (27)

Bibliografia

Alves, Francisco, Castro, Filipe, Rodrigues, Paulo, Garcia, Catarina, & Aleluia, Miguel, 1998, Arqueologia de um naufrágio. In Afonso, Simonetta Luz, comis. e coord., 1998, Nossa Senhora dos Mártires – A Última Viagem (catálogo também editado em castelhano e inglês): 183-215. Pavilhão de Portugal/Expo’98 e Ed. Verbo, Lisboa.

Alves, Francisco, 1999, Acerca dos destroços de dois navios descobertos durante as dragagens de 1970 na foz do rio Arade (Ferragudo, Lagoa). In Ventura, M., coord., As Rotas Oceânicas – Sécs. XV-XVII (Actas das 4as Jornadas de História Ibero-Americana, Portimão, 7 a 9 de Maio de 1998): 29-92. Ed. Colibri, Lisboa.

Alves, Francisco, Rodrigues, Paulo & Castro, Filipe, 2000, Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa. In Ars Náutica – Fernando Oliveira e o seu Tempo, Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). In Actas da 9ª Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia / Proceedings of the IX International Reunion for the History of Nautical Science and Hydrography (Aveiro, 19-24 de Setembro 1998): 225-256. Ed. Patrimonia. Cascais.

Alves, Francisco, Rieth, Eric, Rodrigues, Paulo, Riccardi, Edoardo, Garcia, Catarina, Aleluia, Miguel & Rodrigo, Ricardo, 2001, The hull remains of Ria de Aveiro A, a mid-15th century shipwreck from Portugal: a preliminary analysis. In Alves, F., ed., 2001, Proceedings of the International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition – Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach (Lisboa, 7-9 de Setembro de 1998). Trabalhos de Arqueologia, 18: 317-345. IPA, Lisboa.

Alves, Francisco, 2009, O navio português do século XVI de Oranjemund, Namíbia – Relatório das missões realizadas pela equipa portuguesa em 2008 e 2009. Trabalhos da DANS, 45. DANS, Lisboa, Novembro. (http://www.igespar.pt/media/uploads/dans/TheOranjemundShipwreck.pdf).

Alves, Francisco, 2011, The 16th century Portuguese shipwreck of Oranjemund, Namibia – Report on the missions carried out by the Portuguese team in 2008 and 2009. Trabalhos da DANS, 45. DANS, Lisbon, April. (http://www.igespar.pt/en/patrimonio/arqueologianauticaesubaquatica/).

Castanheira, Edmundo, 1991, Manual de Construção do Navio de Madeira. Dinalivro, Lisboa.

Castro, Filipe, 2005, The Pepper Wreck. College Station, Texas.

Krisman, Kevin & Jordan, Brian, 1999, Angra A: The copper-fastened wreck at Porto Novo (Angra do Heroísmo, Terceira island, Azores-Portugal). Revista Portuguesa de Arqueologia, 2.1: 249-254. IPA, Lisboa.

Loureiro, Vanessa, 2011, L’Epave Arade l - L’influence des chantiers régionaux sur la tradition de construction navale ibéro-atlantique. Tese de Doutoramento em Arqueologia da Universidade de Paris 1 - Pantheon-Sorbonne, orientada por Eric Rieth, Directeur de Recherche do CNRS.

Redknap, Mark, 1984,The Cattewater wreck - The investigation of an armed vessel of the early sixteenth century. BAR British Series, 131. National Maritime Museum, Greenwich.