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ESCRAVIDÃO, GENERO E AFETIVIDADE NO MARANHAO SETECENTISTA.
NILA MICHELE BASTOS SANTOS 1
Resumo
O presente artigo busca analisar as relações escravistas e de gênero que se construíram na sociedade maranhense
do sec. XVIII, evidenciando o poder e a afetividade nesse contexto. Através da documentação, que se constituirá
em testamentos, processos de divórcios e autos de denuncia propõem-se diminuir os silêncios impostos a esses
homens e mulheres escravizados que por várias vezes foram vistos como seres incapazes de subjetividades.
Mesmo estes não tendo escrito nada sobre si, podemos no âmbito do provável, por meio da leitura das
entrelinhas e dos “espaços em Brancos” da documentação, acessar um universo valorativo que não era restrito
apenas aos livres, mas a todos que compartilhavam da mesma época. Nessa perspectiva optamos por trabalhar
utilizando a categoria de gênero para aporte teórico, pois entendemos que além desta ser uma categoria
relacional possuí a capacidade de articular diversas variáveis conferindo uma historicidade para além dos corpos
sexuados que os sujeitos comportam.
Palavras- chave: Gênero, Escravidão. Maranhão Colonial.
INTRODUÇÃO
O presente estudo surge de um anseio claro em desconstruir tipos de visões sobre a
escravidão e o gênero, nas quais homens e mulheres escravizados constituíam-se como seres
incapazes de subjetividades. Esse olhar sobre uma “História Única”, ainda largamente
difundida na educação básica, é possivelmente um dos responsáveis pela constituição de
estereótipos de pessoas e temporalidades que em nome de construção cultural favorece a
distorção de identidades.
Ao iniciarmos a investigação sobre Maranhão colonial, procuramos nos desprender
dessas noções de identidades fixas, percebendo assim, uma complexa rede de experiências
humanas incapazes de serem compactadas apenas em uma única explicação. Em meio às
leituras das transcrições de testamentos de pessoas no Maranhão Setecentista, verificamos
experiências que contestam a noção da “História Única” da escravidão, possibilitando-nos
enxergar relações entre sujeitos escravizados e seus proprietários, que contradizem a ideia do
escravizado apenas como uma vítima inerte de um sistema puramente coercitivo, o qual o via
como mera categoria econômica. Afim de melhor analisar a polissemia presente na
documentação, utilizamos das acepções da história do cotidiano e da história cultural, além da
visão de poder de Foucault e de circularidade cultural de Ginzburg. Optamos também, por 1 Mestranda em História Social (Universidade Federal do Maranhão) [email protected]
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trabalhar utilizando a categoria de gênero para aporte teórico, pois entendemos que além desta
ser uma categoria relacional possuí a capacidade de articular diversas variáveis, conferindo
uma historicidade para além dos corpos sexuados que os sujeitos comportam.
A análise da documentação nos leva a inferir que entre o conflito e as negociações,
os sujeitos escravizados buscaram adequar-se à nova realidade em que estavam inseridos;
buscando uma sobrevivência melhor, criaram estratégias, abusaram da criatividade, serviram-
se de artimanhas, seduções e tudo mais que tivessem a seu alcance e embora não possamos
acessar de fato a subjetividade dos envolvidos, podemos nos mover no âmbito do provável e
através da leitura semiótica dos “entre linhas” da fala dos dominantes, conceber o cotidiano
do sistema escravista de uma maneira diversa, de tal modo que relações sociais, que são
próximas, física ou emocionalmente, pessoais, íntimas em termos sexuais, de cuidado e
reconhecimento sejam consideradas como parte do sistema escravista e conectada formação
da própria identidade dos sujeitos que as praticam.
1. NOVOS OLHARES SOBRE A ESCRAVIDÃO
Ignes Maria de S. Jozê2 filha do capitão português Francisco Nunes de Carvalho e da
carioca Theodozia de Jesuz, era uma senhora da qual poderíamos dizer que possuía uma
considerada riqueza, viúva do capitão Antonio da Costa Teyxeyra, em 1758 possuía uma
canoa de trinta palmos, mais de vinte cabeças de gado e algumas vacas em fazendas de
conhecidos, algumas roças de mandiocas e quarteis de cana, possuía também um número
considerável de armas de fogo, e joias de ouro, coisas de grande valor para sociedade
maranhense do século XVIII. Essa rica senhora contraiu um segundo matrimonio, mas
conseguiu a sua nulidade, com a autorização do juízo Eclesiástico, o seu segundo marido, que
nunca chegou de fato a ser, não teve, portanto, direitos nenhum sobre ela ou seus bens, seu
herdeiro foi somente seu único filho Josê da Costa Teyxeyra. Dona Ignes era uma devota de
Nossa Senhora das Mercês e também uma senhora de escravos, possuía cerca de dezesseis,
entre homens e mulheres, além de outros emprestados, alugados e até um sub judice, mas
entre tantos escravizados apenas o escravo Francisco recebeu a alforria, pelo bom serviço,
lealdade e “pelo amor Com que Criou os meuz filhos”. Mas o porquê da predileção?
2 Traslado dos autos do testamento 1758 – 12 – 22 Ignes Maria de S. Jozê (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p. 106)
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Convivendo dentro da micropolítica do cotidiano, pôde esse escravo mostrar-se, aos olhos de
sua senhora, como algo mais que uma simples mercadoria, e sim um sujeito capaz de amar,
ser leal e digno de confiança.
Testamentos como os de Dona Ignes Maria, contradizem a historiografia oficial da
década de 1960, que via o escravo como uma mera mercadoria e, por conseguinte, incapaz de
produzir cultura. Liderados por Florestan Fernandes, e conhecidos posteriormente como a
“Escola de São Paulo”, esse grupo de pensadores tentaram entender a transição do mundo
escravista para o mundo capitalista, suas ideias estavam centradas na concepção de que a
escravidão aniquilava o escravo e com ele o ser humano que estava escravizado,
Para eles, a escravidão é a pedra basilar no processo de acumulação do capital,
instituída para sustentar dois grandes ícones do capitalismo comercial: mercado e
lucro. A organização e regularidade da produção para exportação em larga escala
– de que dependia a lucratividade – impunha a compulsão ao trabalho. Para obtê-
la, coerção e repressão seriam as principais forma de controle social do escravo.
Apontam “a violência como vínculo básico da relação escravista”. O cativo,
legalmente equiparado a uma mercadoria, poderia – no dizer de Fernando
Henrique Cardoso – chegar até a coisificação subjetiva, isto é, a “sua
autoconcepção como negação da própria vontade de libertação; sua auto-
representação como não homem”. (QUEIROZ: 2007, p.106)
Por essa visão não havia família, divertimento, autonomia ou mesmo subjetividade, o
escravo era apenas um individuo passivo incapaz de projetos próprios e de produzir cultura.
Sua única forma de resistência era a partir da violência, a qual já era acostumada, pois
constantemente lhe era infligida, era apenas com as fugas, rebeliões, suicídios ou assassinato
de seus senhores que o escravo poderia praticar alguma ação, ou seja, apenas com o crime ou
aniquilação completa de si mesmo, ele seria um sujeito subjetivo.
A afetividade não se constituía em um objeto de estudo, e entre senhores e sujeitos
escravizados era colocada como impraticável, contudo a investigação mais minuciosa da
documentação, no Maranhão setecentista, nos revela possibilidades diferentes. Nos
testamentos, por exemplo, senhores diferenciam seus escravos permitindo que alguns
ficassem livres ao passo que outros permanecessem em cativeiro, é o caso de João da Cunha,
proprietário de escravos, natural da freguesia de Mosteiro de Vieira, comarca de Guimarães,
Arcebispado de Braga, que em 1745, ao ditar seu testamento em São Luís do Maranhão,
declara:
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[...] declaro que por minha morte deycho forros e izento de todo captiveiro ao negro
Manuel da nascão mina cazado com Maria da nasção [ilege.] minha escrava a qual
por minha morte tão bem deycho forra e da mesma forma deycho forro por minha
morte a um filho dos ditos meus escravos por nome João.
Declaro que possuo hu’negro por nome Domingos da naçam Sejé ao qual por
minha morte deycho forro. (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p.62).
No mesmo testamento João da Cunha afirma que
Declaro que possuo hu’negro por nome Domingos da naçam Sejé ao qual depois
que de eu falecer o deyxo a qualquer um dos meus Testamenteyros que asseytar
minha Testamentária o que llhes deycho em remuneração do trabalho q’ com ella
há de Ter // Declaro que possuo outro escravo por nome Francisco de nasção
[ileg.] o qual poderão meus Testamenteyros vender logo depois de meu falecimento
para com o dinheiro delle darem comprimento aos meos legados".. (MOTA; SILVA;
MANTOVANI: 2000, p.62)
É possível inferir que existia uma predileção do senhor para com alguns de seus
escravos e acreditamos que a condição básica para o surgimento de tal afeição foi à
proximidade. O contato mais íntimo e cotidiano fez do escravizado uma parte ativa na vida
diária do senhor e provavelmente, proporcionando relações fundamentadas em laços de
afetividade e poder.
Pela ótica dos historiadores da década de 1970, influenciados pelas ideias marxistas,
a figura do escravo foi apenas mais uma ferramenta na macroestrutura do sistema econômico.
Ele não era um ser, mas sim uma mercadoria que trabalhava, fruto de um modo de produção
escravista, “historicamente novo”, onde os castigos considerados “pedagógicos” eram
rotineiros e diários, o que implicava em um clima de aterrorização permanente da massa
escrava (GORENDER: 1978), essa violência estrutural era vista como inata ao sistema e
confirmava a face cruel da escravidão e a passividade do escravo.
Nessa perspectiva a mulher escrava não passava de uma peça, da qual o sistema
escravista utilizava para gerar lucros. Além de sua força de trabalho como agricultora,
cozinheira, lavadeira, arrumadeira, mucama, etc. a lógica da escravidão também se apropriou
do corpo feminino da escrava, alugando-as como ama-de-leite, prostituindo-as ou mesmo
tornando-as alvos dos ataques sexuais dos senhores.
Segundo Sônia Giacomini, (apud Pacheco: 2006, p. 163),
A lógica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus contornos mais
brutais no caso da mulher escrava. A apropriação do conjunto das potencialidades
dos escravos pelos senhores compreende, no caso da escrava, a exploração sexual
do seu corpo, que não lhe pertence pela própria lógica da escravidão.
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Não queremos diminuir o caráter violento da escravidão, mas essa concepção
“lógica” do sistema, antes de desmistificar os estereótipos, mantem a mulher escrava como
um indivíduo incapaz de resistir à coisificação que lhe era imposta e inerte aos ditames do
senhor.
No testamento de João Theófílo de Barros, rico proprietário do Maranhão
setecentista (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p.76), vemos a construção de laços que
são inexplicáveis somente por essa visão dialética de dominação e opressão. Em seu desejo
post-mortem, João Theófilo preocupou-se com uma escrava em particular, determinou,
portanto como ficaria seu sustento, seu modo de viver, quem garantisse seu vestiário, as
pessoas que iriam servi-la e até com seus rituais fúnebres, fazendo questão de enterrá-la com
todas as honras que se dispunha a época, como se percebe no seguinte trecho:
Declaro mais que tenho hua’ Preta minha escrava por nome Sylvana may dº prº
meu testamenteyro a qual pello bom servisso que me tem feito pelo amor de D.º e
como Couza pia a deyxo forra, livre e izenta de captyveiro de que ficara com o
mesmo filho enqunto elle dº lhe der o que tratamento he may, obridigo [sic] de may
como seo {{203v}} Como seu vestuário todos os anos na forma que o fazia, e
morrendo esta a levara a Villa a enterrar em tumba e a acompanhada com as
comunidades [ileg] com seu officio e todas as missas de corpo presente dos
sacerdotes que se acharem, e lhe dara este hua’ rapariga pequena para servir. .
(MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p.79)
A preocupação de João Theófilo com Sylvana contraria um relacionamento senhor–
mercadoria e a própria coisificação do sujeito escravizado, pois os indícios nos levam a crer
que esta escrava tornou-se especial aos olhos de seu senhor e conseguiu por meio disso criar
espaços de liberdade que garantisse sua sobrevivência como individuo autônomo.
É apenas na década de 1980 que os historiadores vão à busca da subjetividade do
escravo sem defender uma “democracia racial”. Kátia Matoso, por exemplo, analisando
variada documentação como cartas de alforria, processos judiciais e arquivos policiais,
propõem-se a reconstituir a visão do escravo sobre sua condição de cativo, analisando a sua
despersonalização quando transformado em mercadoria e a construção de novos espaços em
que ele pudesse construir uma identidade, que garantisse seu status de pessoa. Segundo ela
"Ser escravo no Brasil”, título de seu livro,
Não é uma figura de estilo, implica o desejo de adotar o próprio ponto de vista do
escravo. Apontar a vontade de acompanhar cada passo de sua vida individual e
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coletiva [...] Buscamos penetrar na mentalidade desses homens novos, escravos
africanos, escravos crioulos, isto é, os nascidos no Brasil, [...] de todos os tipos e
cores de peles e pêlos. (MATOSO: 1982, p.12)
Matoso abriu espaços para pensar a escravidão sobre outro prisma - a necessidade do
escravizado de adaptar-se ao cativeiro e encontrar formas para sobreviver melhor. Nesse
cotidiano o cativo buscou lançar mão de estratégias e negociações com seus senhores que lhes
rendesse espaços para negar a coisificação imposta pelo sistema.
É nesse sentido que Maria Odila Leite analisa a São Paulo do século XIX, revelando
a complexidade das relações pessoais que uniam escravas e proprietários. Segundo ela, alguns
destes tinham seus sustentos todo providos pelo pecúlio das escravas ganhadeiras, de modo
que a improvisação dessa subsistência, no seu dia a dia, implicava numa dependência mútua
que oferecia à escrava a oportunidade de ter sua importância reconhecida e gratificada. Como
a própria Maria Odila Leite afirma (1984, p.162):
O treino e a esperteza de vendedoras de ganho, que garantia a sobrevivência das
proprietárias, também se desdobravam numa dimensão exclusiva das próprias
escravas, avós e mães solteiras sustentavam suas famílias morando em quartos de
aluguel pela cidade, principalmente na Sé; como escravas usufruíam da confiança
de suas donas, que com frequência acabavam por alforriá-las; além disso, gozavam
de prestigio e de influência entre os próprios escravos, tornando-se lideres de seu
convívio social e religioso: no seu quotidiano de trabalho e de lazer, alternavam os
cantos estratégicos de comércio ambulante com a intensidade de 'pontos’ mágico -
religiosos dos seus cultos improvisados.
Esses estudos mostram caminhos possíveis para analisarmos a documentação da qual
nos debruçamos. Temas antes desprezados, hoje ajudam a construir uma História na qual os
sujeitos não são apenas dados quantitativos ou, as vítimas da exclusão social, ou ainda meros
depositários de um único discurso homogeneizador.
2. ESCRAVIDÃO, GENERO E IDENTIDADE
Para compreender os aspectos da afetividade e as relações afetivo-sexuais, entre
livres e escravizados, percorremos alguns estudos feministas e do campo da História das
Mulheres. Optamos então, por trabalhar utilizando a categoria de gênero como aporte teórico,
contudo algumas ponderações sobre o termo devem ser postas.
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Segundo Linda Nicholson (2000, p.9), “‘Gênero’ é uma palavra estranha no
feminismo. Embora para muitas de nós ela tenha um significado claro e bem conhecido, na
verdade ela é usada de duas maneiras diferentes, e até certo ponto contraditórias”. O Gênero,
como toda e qualquer categoria, não possui um único atributo e ao logo da história seus usos e
sentidos foram se formando e resinificando de acordo com os estudos e as experiências
daqueles que o usava. As diferentes maneiras, que Nicholson fala que ele é usado, são palco
de vários debates na academia.
Popularmente, o termo Gênero é utilizado para definir as diferenças entre os sexos,
contudo como categoria de análise histórica ele ganha outros sentidos. Segundo Joan Scott é
com as feministas americanas, preocupadas em rejeitar o determinismo biológico que
inferiorizava as mulheres, através das “diferenças sexuais”, que o termo passou a ser usado
como uma categoria que define o que é socialmente construído,
O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das
feminilidades. As que estavam mais preocupadas com o fato de que a produção dos
estudos femininos centrava-se sobre as mulheres de forma muito estreita e isolada,
utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional no nosso
vocabulário analítico. Segundo esta opinião, as mulheres e os homens eram
definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de qualquer um poderia
existir através de estudo inteiramente separado. (SCOTT: 1996. p. 3)
Desse modo, uma “Historia das Mulheres” em que as colocavam como um sujeito
universal passou a ser questionada, uma vez que estas mulheres não poderiam ser isoladas de
seus espaços, era necessário pensar em estudos que problematizasse suas práticas e
representações no âmbito das relações entre os sexos.
Os estudos feministas em grande parte vão contribuir para a disseminação do termo,
produzindo críticas incisivas ao modelo dominante, em geral racista e sexista. Contudo a
multiplicidade do movimento feminista também gerou uma pluralidade de conceitos sobre
gênero, que vão desde a um substituto para “Mulheres”, um meio de distinguir a prática
sexual dos papéis atribuídos a elas e aos homens, até uma maneira de demonstrar as
“construções sociais” dos papéis destinados a cada um (SCOTT: 1996).
Neste estudo, o Gênero é compreendido como uma categoria relacional que possuí a
capacidade de articular diversas variáveis, conferindo uma historicidade para além do
binômio homem/mulher; razão/emoção; corpo/mente. A categoria usada seguirá na visão pós-
estruturalista de Joan Scott que define o gênero como “um elemento constitutivo de relações
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sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, [...] é uma forma primeira de
significar as relações de poder” (SCOTT: 1996, p.21).
Nas relações escravistas do Maranhão setecentista o “ser escrava” adquiria uma
variedade de definições, pois cada indivíduo (homens, mulheres, escravos, livres, senhor,
senhoras...) forjavam suas teias relacionais e de sociabilidade de acordo com suas
necessidades. Não cremos, portanto em noções de identidades fixas que reduzem os processos
históricos e impedem a visualizações de relações afetivas dentro de um sistema econômico
que também é politico e cultural.
Logo é necessário implodir com essas representações que estabilizaram o mundo
social e definiram os papéis de pertencimento ligado às culturas étnicas, raciais, linguísticas,
religiosas e de gênero, em que os indivíduos são vistos como um sujeito unificado e fechado
em si. As especificidades de cada grupo devem ser analisadas como campos historicamente
plurais, dentro de práticas discursivas e materiais, frutos não de uma, mas de várias
identidades, algumas vezes conflitantes e até não determinada. Nessa perspectiva Stuart Hall
(2006, p. 12-13) reflete,
A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e
não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro
de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo deslocadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos
uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora 'narrativa do eu'. A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao
invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, em cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao
menos temporariamente.
Corroborando dessa ideia, as mulheres escravizadas e senhores no Maranhão
setecentista não foram categorias fixas; as relações criadas entre eles revelam um aspecto
cultural de uma clivagem social de hierarquias e a construção de rede de sociabilidades que
desenvolviam novas identidades,
Como a identidade é, em parte, sustentada pelos outros, ela é afectada tanto pelas
alterações produzidas nas redes de sociabilidade do actor, como pelas alternativas
que lhe são oferecidas. A experiência da identidade torna-se mais diversificada e
instável porque os seus pontos de ancoragem e os seus referenciais também o são. A
9
identidade já não está apenas ligada à pertença, mas também ao desejo de pertença
e àquilo que é necessário fazer para o concretizar. (BRANDÃO: 2010, p. 19)
Desse modo, os sujeitos escravizados no Maranhão setecentista, buscando sobreviver
da melhor maneira possível, criaram estratégias ligadas a um desejo de pertença e necessidade
de reconhecimento. Os concubinatos entre senhores e mulheres escravizadas, as alforrias
“pelos bons serviços que me tem feito”, ou “pela lealdade com que me serviu” e ainda a
herança deixada para filhos de escravas, pode ser apontado como um exemplo do que estamos
falando.
Ao ditar seu testamento em 1751, João Theófílo declara não possuir “herdeiro algum
forçado”, afirmava na verdade, que sempre vivera solteiro. Entretanto, viver solteiro na
sociedade colonial do século XVIII, não significava necessariamente viver só, o proprietário
instituiu como seu universal herdeiro o filho de uma escrava,
[...] Em prº lugar pesso ao mosso José Bruno que criei em minha caza em segundo
lugar ao R.Pe.M.el de Souza queirao’ por servisso de D.s {{119v}} de Deos e por
me fazerem mce serem meus testamenteiros [...]// E pa que não haja dúvida algua’
soubre meu prº testamenteiro por ser filho de hua’ minha escrava por nome
Silvana já desde agora lhe dou plena Liberde pello amor de Dº [...].(MOTA;
SILVA; MANTOVANI: 2000, p. 75)
[...] tenho disposto instituo Universal herdeiro pello amor de Deos e por me ajudar
com todo cuidado no trabalho das minhas fazendas ao dito meu Prº testamentrº
Joze Bruno de Bayrros [...]. (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p. 81)
Jose Bruno era filho de Sylvana, a mesma escrava que teve seu modo de viver e os
ritos fúnebres garantidos no testamento do proprietário. Isto não significa dizer que essas
mulheres escravas, que compartilhavam uma vida com seus senhores eram indivíduos
puramente racionais e premeditavam conscientemente suas condutas, mas na verdade
reconhecer que era possível forjar espaços de escolhas diante das condições sociais em que
estavam.
João Theófílo não deixou apenas Jose Bruno como herdeiro, inúmeras pessoas entre
livres e escravas receberam uma parte da herança, uns mais outros menos, diferenças que
demonstrava os vários níveis de predileção deste senhor. Em especial, ele deixa a três
meninas, “crias da casa”, bens consideráveis, os motivos são expostos por ele da seguinte
maneira:
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Declaro que em minha casa criei tres raparigas com todo amor e caridade por
assim mo merecerem, as quais se chamam Ana Luzia e Cosma [...].
Declaro que a dita mossa Ana tive em hua’ m.er casada, digo Ana e recolhi a ma
casa pelo amor de D.º por encobrir hua’ falta de sua may m.er casada[...].
Declaro que a rapariga Luzia que criei tão bem em casa com muita caridade é filha
de hua’ minha serva já falecida por nome Romana por cja causa pelo amor de Deus
a deixo forra e livre[...].
Declaro da mesma forma ter em minha casa outra rapariga por nome Cosma filha
de outra minh escrava já falecida chamada Sizilia por cuja causa a deixo pelo amor
de D.º forra livre e isenta de toda pensão de captiveiro [...].(MOTA; SILVA;
MANTOVANI: 2000, p. 77)
A todas João Theófílo deixou bens como panos, louças, colheres, roupas finas e
escravos, preocupou-se também com o futuro delas, deixando-lhes um bom dote, mas o
condicionando, assim como a herança recebida, a um casamento com “pessoa capaz”, desse
modo João Theófilo seguia a premissa da época, “casar e comprar cada qual com seu igual”
(CORREIA, 2004, p. 109) e elegia Jose Bruno como responsável pelo sustento dessas moças,
até seu casamento. Infelizmente, não temos subsídios para justificar a predileção de João
Theófilo, mas nem essa é nossa intenção, desejamos na verdade demonstrar que para
compreender a complexidade das relações escravistas é necessário ir além do que foi posto
pelos estudos da História política e econômica. As relações entre homens e mulheres;
escravizados e sujeitos livres, se forjavam na vida diária, nas microesferas ora públicas ora
privadas, nas relações de afetividade que foram construídas e no poder exercido.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da história da escravidão, à luz da documentação, traz novos olhares sobre
o tempo e a trajetória das mulheres escravizadas, que muito mais que o mero sobreviver
buscaram estratégias que garantissem um “bem viver”. Assim, muitas alcançaram a liberdade
“pelos bons serviços prestados”, seduziram, deixaram-se seduzir, tiveram filhos com seus
senhores e garantiram seus espaços de autonomia. Mulheres como Sylvana souberam utilizar
dessas estratégias e suas trajetórias nos ajudam a questionar as categorias estanques que
buscam explicar as relações por determinismos biológicos ou por binarismos de oposição.
Homens e Mulheres, livres e escravizados no Maranhão setecentista conviveram sob
o mesmo signo da cultura e a hierarquia dos papéis sociais a quais estão submetidos não
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podem ser encarados como estado de natureza fixa, apesar de seguirem códigos pré-
determinados,
Regras, como culturas, não são nem puramente aleatórias nem rigidamente
determinadas – o que quer dizer que ambas envolvem a ideia de liberdade. Alguém
que estivesse inteiramente eximido de convenções culturais não seria mais livre que
fosse escravo delas. (EAGLETON, 2005, p.13).
Os sujeitos históricos, portanto não são meros fantoches de seus meios sociais, tão
pouco a realidade em que estão inseridos é facilmente modificada a partir de vontades
individuais. É no coletivo que as categorias, vão se automoldando e introduzindo no mundo
um grau de autorreflexividade constante e mutável.
É por essa perspectiva que acreditamos ser particularmente importante lançar um
olhar sobre as relações afetivas e afetivo-sexuais, entre os sujeitos livres e escravizados, sem
que essas análises caiam no determinismo homogeneizantes de classe, gênero ou raça. Ao
contrário buscamos enxergá-los como indivíduos culturalmente construídos e para além dos
corpos sexuados que os comportam.
REFERENCIAS
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percurso de investigação”. In. BRANDÃO, Ana Maria. E se tu fosses um rapaz?
Homoerotismo feminino e construção social da identidade. Porto: Edições Afrontamento,
2010. pp.17-41
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História) – Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004. 339 p
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo: UNESP,
2005
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MOTA, Antonia da Silva; SILVA, Kelcilene Rose; MANTOVANI, José Dervil. Cripto
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NICHOLSON, Linda. “Interpretando o Gênero”. Estudos Feministas, vol. 8, n. 2, 2000, p.
9-41
PACHECO, Ana Cláudia Lemos. Raça, gênero e relações sexual-afetivas na produção
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