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1 ESCRAVIDÃO, GENERO E AFETIVIDADE NO MARANHAO SETECENTISTA. NILA MICHELE BASTOS SANTOS 1 Resumo O presente artigo busca analisar as relações escravistas e de gênero que se construíram na sociedade maranhense do sec. XVIII, evidenciando o poder e a afetividade nesse contexto. Através da documentação, que se constituirá em testamentos, processos de divórcios e autos de denuncia propõem-se diminuir os silêncios impostos a esses homens e mulheres escravizados que por várias vezes foram vistos como seres incapazes de subjetividades. Mesmo estes não tendo escrito nada sobre si, podemos no âmbito do provável, por meio da leitura das entrelinhas e dos “espaços em Brancos” da documentação, acessar um universo valorativo que não era restrito apenas aos livres, mas a todos que compartilhavam da mesma época. Nessa perspectiva optamos por trabalhar utilizando a categoria de gênero para aporte teórico, pois entendemos que além desta ser uma categoria relacional possuí a capacidade de articular diversas variáveis conferindo uma historicidade para além dos corpos sexuados que os sujeitos comportam. Palavras- chave: Gênero, Escravidão. Maranhão Colonial. INTRODUÇÃO O presente estudo surge de um anseio claro em desconstruir tipos de visões sobre a escravidão e o gênero, nas quais homens e mulheres escravizados constituíam-se como seres incapazes de subjetividades. Esse olhar sobre uma “História Única”, ainda largamente difundida na educação básica, é possivelmente um dos responsáveis pela constituição de estereótipos de pessoas e temporalidades que em nome de construção cultural favorece a distorção de identidades. Ao iniciarmos a investigação sobre Maranhão colonial, procuramos nos desprender dessas noções de identidades fixas, percebendo assim, uma complexa rede de experiências humanas incapazes de serem compactadas apenas em uma única explicação. Em meio às leituras das transcrições de testamentos de pessoas no Maranhão Setecentista, verificamos experiências que contestam a noção da “História Única” da escravidão, possibilitando-nos enxergar relações entre sujeitos escravizados e seus proprietários, que contradizem a ideia do escravizado apenas como uma vítima inerte de um sistema puramente coercitivo, o qual o via como mera categoria econômica. Afim de melhor analisar a polissemia presente na documentação, utilizamos das acepções da história do cotidiano e da história cultural, além da visão de poder de Foucault e de circularidade cultural de Ginzburg. Optamos também, por 1 Mestranda em História Social (Universidade Federal do Maranhão) [email protected]

INTRODUÇÃO - snh2015.anpuh.org · Nossa Senhora das Mercês e também uma senhora de escravos, possuía cerca de dezesseis, entre homens e mulheres, além de outros emprestados,

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ESCRAVIDÃO, GENERO E AFETIVIDADE NO MARANHAO SETECENTISTA.

NILA MICHELE BASTOS SANTOS 1

Resumo

O presente artigo busca analisar as relações escravistas e de gênero que se construíram na sociedade maranhense

do sec. XVIII, evidenciando o poder e a afetividade nesse contexto. Através da documentação, que se constituirá

em testamentos, processos de divórcios e autos de denuncia propõem-se diminuir os silêncios impostos a esses

homens e mulheres escravizados que por várias vezes foram vistos como seres incapazes de subjetividades.

Mesmo estes não tendo escrito nada sobre si, podemos no âmbito do provável, por meio da leitura das

entrelinhas e dos “espaços em Brancos” da documentação, acessar um universo valorativo que não era restrito

apenas aos livres, mas a todos que compartilhavam da mesma época. Nessa perspectiva optamos por trabalhar

utilizando a categoria de gênero para aporte teórico, pois entendemos que além desta ser uma categoria

relacional possuí a capacidade de articular diversas variáveis conferindo uma historicidade para além dos corpos

sexuados que os sujeitos comportam.

Palavras- chave: Gênero, Escravidão. Maranhão Colonial.

INTRODUÇÃO

O presente estudo surge de um anseio claro em desconstruir tipos de visões sobre a

escravidão e o gênero, nas quais homens e mulheres escravizados constituíam-se como seres

incapazes de subjetividades. Esse olhar sobre uma “História Única”, ainda largamente

difundida na educação básica, é possivelmente um dos responsáveis pela constituição de

estereótipos de pessoas e temporalidades que em nome de construção cultural favorece a

distorção de identidades.

Ao iniciarmos a investigação sobre Maranhão colonial, procuramos nos desprender

dessas noções de identidades fixas, percebendo assim, uma complexa rede de experiências

humanas incapazes de serem compactadas apenas em uma única explicação. Em meio às

leituras das transcrições de testamentos de pessoas no Maranhão Setecentista, verificamos

experiências que contestam a noção da “História Única” da escravidão, possibilitando-nos

enxergar relações entre sujeitos escravizados e seus proprietários, que contradizem a ideia do

escravizado apenas como uma vítima inerte de um sistema puramente coercitivo, o qual o via

como mera categoria econômica. Afim de melhor analisar a polissemia presente na

documentação, utilizamos das acepções da história do cotidiano e da história cultural, além da

visão de poder de Foucault e de circularidade cultural de Ginzburg. Optamos também, por 1 Mestranda em História Social (Universidade Federal do Maranhão) [email protected]

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trabalhar utilizando a categoria de gênero para aporte teórico, pois entendemos que além desta

ser uma categoria relacional possuí a capacidade de articular diversas variáveis, conferindo

uma historicidade para além dos corpos sexuados que os sujeitos comportam.

A análise da documentação nos leva a inferir que entre o conflito e as negociações,

os sujeitos escravizados buscaram adequar-se à nova realidade em que estavam inseridos;

buscando uma sobrevivência melhor, criaram estratégias, abusaram da criatividade, serviram-

se de artimanhas, seduções e tudo mais que tivessem a seu alcance e embora não possamos

acessar de fato a subjetividade dos envolvidos, podemos nos mover no âmbito do provável e

através da leitura semiótica dos “entre linhas” da fala dos dominantes, conceber o cotidiano

do sistema escravista de uma maneira diversa, de tal modo que relações sociais, que são

próximas, física ou emocionalmente, pessoais, íntimas em termos sexuais, de cuidado e

reconhecimento sejam consideradas como parte do sistema escravista e conectada formação

da própria identidade dos sujeitos que as praticam.

1. NOVOS OLHARES SOBRE A ESCRAVIDÃO

Ignes Maria de S. Jozê2 filha do capitão português Francisco Nunes de Carvalho e da

carioca Theodozia de Jesuz, era uma senhora da qual poderíamos dizer que possuía uma

considerada riqueza, viúva do capitão Antonio da Costa Teyxeyra, em 1758 possuía uma

canoa de trinta palmos, mais de vinte cabeças de gado e algumas vacas em fazendas de

conhecidos, algumas roças de mandiocas e quarteis de cana, possuía também um número

considerável de armas de fogo, e joias de ouro, coisas de grande valor para sociedade

maranhense do século XVIII. Essa rica senhora contraiu um segundo matrimonio, mas

conseguiu a sua nulidade, com a autorização do juízo Eclesiástico, o seu segundo marido, que

nunca chegou de fato a ser, não teve, portanto, direitos nenhum sobre ela ou seus bens, seu

herdeiro foi somente seu único filho Josê da Costa Teyxeyra. Dona Ignes era uma devota de

Nossa Senhora das Mercês e também uma senhora de escravos, possuía cerca de dezesseis,

entre homens e mulheres, além de outros emprestados, alugados e até um sub judice, mas

entre tantos escravizados apenas o escravo Francisco recebeu a alforria, pelo bom serviço,

lealdade e “pelo amor Com que Criou os meuz filhos”. Mas o porquê da predileção?

2 Traslado dos autos do testamento 1758 – 12 – 22 Ignes Maria de S. Jozê (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p. 106)

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Convivendo dentro da micropolítica do cotidiano, pôde esse escravo mostrar-se, aos olhos de

sua senhora, como algo mais que uma simples mercadoria, e sim um sujeito capaz de amar,

ser leal e digno de confiança.

Testamentos como os de Dona Ignes Maria, contradizem a historiografia oficial da

década de 1960, que via o escravo como uma mera mercadoria e, por conseguinte, incapaz de

produzir cultura. Liderados por Florestan Fernandes, e conhecidos posteriormente como a

“Escola de São Paulo”, esse grupo de pensadores tentaram entender a transição do mundo

escravista para o mundo capitalista, suas ideias estavam centradas na concepção de que a

escravidão aniquilava o escravo e com ele o ser humano que estava escravizado,

Para eles, a escravidão é a pedra basilar no processo de acumulação do capital,

instituída para sustentar dois grandes ícones do capitalismo comercial: mercado e

lucro. A organização e regularidade da produção para exportação em larga escala

– de que dependia a lucratividade – impunha a compulsão ao trabalho. Para obtê-

la, coerção e repressão seriam as principais forma de controle social do escravo.

Apontam “a violência como vínculo básico da relação escravista”. O cativo,

legalmente equiparado a uma mercadoria, poderia – no dizer de Fernando

Henrique Cardoso – chegar até a coisificação subjetiva, isto é, a “sua

autoconcepção como negação da própria vontade de libertação; sua auto-

representação como não homem”. (QUEIROZ: 2007, p.106)

Por essa visão não havia família, divertimento, autonomia ou mesmo subjetividade, o

escravo era apenas um individuo passivo incapaz de projetos próprios e de produzir cultura.

Sua única forma de resistência era a partir da violência, a qual já era acostumada, pois

constantemente lhe era infligida, era apenas com as fugas, rebeliões, suicídios ou assassinato

de seus senhores que o escravo poderia praticar alguma ação, ou seja, apenas com o crime ou

aniquilação completa de si mesmo, ele seria um sujeito subjetivo.

A afetividade não se constituía em um objeto de estudo, e entre senhores e sujeitos

escravizados era colocada como impraticável, contudo a investigação mais minuciosa da

documentação, no Maranhão setecentista, nos revela possibilidades diferentes. Nos

testamentos, por exemplo, senhores diferenciam seus escravos permitindo que alguns

ficassem livres ao passo que outros permanecessem em cativeiro, é o caso de João da Cunha,

proprietário de escravos, natural da freguesia de Mosteiro de Vieira, comarca de Guimarães,

Arcebispado de Braga, que em 1745, ao ditar seu testamento em São Luís do Maranhão,

declara:

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[...] declaro que por minha morte deycho forros e izento de todo captiveiro ao negro

Manuel da nascão mina cazado com Maria da nasção [ilege.] minha escrava a qual

por minha morte tão bem deycho forra e da mesma forma deycho forro por minha

morte a um filho dos ditos meus escravos por nome João.

Declaro que possuo hu’negro por nome Domingos da naçam Sejé ao qual por

minha morte deycho forro. (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p.62).

No mesmo testamento João da Cunha afirma que

Declaro que possuo hu’negro por nome Domingos da naçam Sejé ao qual depois

que de eu falecer o deyxo a qualquer um dos meus Testamenteyros que asseytar

minha Testamentária o que llhes deycho em remuneração do trabalho q’ com ella

há de Ter // Declaro que possuo outro escravo por nome Francisco de nasção

[ileg.] o qual poderão meus Testamenteyros vender logo depois de meu falecimento

para com o dinheiro delle darem comprimento aos meos legados".. (MOTA; SILVA;

MANTOVANI: 2000, p.62)

É possível inferir que existia uma predileção do senhor para com alguns de seus

escravos e acreditamos que a condição básica para o surgimento de tal afeição foi à

proximidade. O contato mais íntimo e cotidiano fez do escravizado uma parte ativa na vida

diária do senhor e provavelmente, proporcionando relações fundamentadas em laços de

afetividade e poder.

Pela ótica dos historiadores da década de 1970, influenciados pelas ideias marxistas,

a figura do escravo foi apenas mais uma ferramenta na macroestrutura do sistema econômico.

Ele não era um ser, mas sim uma mercadoria que trabalhava, fruto de um modo de produção

escravista, “historicamente novo”, onde os castigos considerados “pedagógicos” eram

rotineiros e diários, o que implicava em um clima de aterrorização permanente da massa

escrava (GORENDER: 1978), essa violência estrutural era vista como inata ao sistema e

confirmava a face cruel da escravidão e a passividade do escravo.

Nessa perspectiva a mulher escrava não passava de uma peça, da qual o sistema

escravista utilizava para gerar lucros. Além de sua força de trabalho como agricultora,

cozinheira, lavadeira, arrumadeira, mucama, etc. a lógica da escravidão também se apropriou

do corpo feminino da escrava, alugando-as como ama-de-leite, prostituindo-as ou mesmo

tornando-as alvos dos ataques sexuais dos senhores.

Segundo Sônia Giacomini, (apud Pacheco: 2006, p. 163),

A lógica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus contornos mais

brutais no caso da mulher escrava. A apropriação do conjunto das potencialidades

dos escravos pelos senhores compreende, no caso da escrava, a exploração sexual

do seu corpo, que não lhe pertence pela própria lógica da escravidão.

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Não queremos diminuir o caráter violento da escravidão, mas essa concepção

“lógica” do sistema, antes de desmistificar os estereótipos, mantem a mulher escrava como

um indivíduo incapaz de resistir à coisificação que lhe era imposta e inerte aos ditames do

senhor.

No testamento de João Theófílo de Barros, rico proprietário do Maranhão

setecentista (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p.76), vemos a construção de laços que

são inexplicáveis somente por essa visão dialética de dominação e opressão. Em seu desejo

post-mortem, João Theófilo preocupou-se com uma escrava em particular, determinou,

portanto como ficaria seu sustento, seu modo de viver, quem garantisse seu vestiário, as

pessoas que iriam servi-la e até com seus rituais fúnebres, fazendo questão de enterrá-la com

todas as honras que se dispunha a época, como se percebe no seguinte trecho:

Declaro mais que tenho hua’ Preta minha escrava por nome Sylvana may dº prº

meu testamenteyro a qual pello bom servisso que me tem feito pelo amor de D.º e

como Couza pia a deyxo forra, livre e izenta de captyveiro de que ficara com o

mesmo filho enqunto elle dº lhe der o que tratamento he may, obridigo [sic] de may

como seo {{203v}} Como seu vestuário todos os anos na forma que o fazia, e

morrendo esta a levara a Villa a enterrar em tumba e a acompanhada com as

comunidades [ileg] com seu officio e todas as missas de corpo presente dos

sacerdotes que se acharem, e lhe dara este hua’ rapariga pequena para servir. .

(MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p.79)

A preocupação de João Theófilo com Sylvana contraria um relacionamento senhor–

mercadoria e a própria coisificação do sujeito escravizado, pois os indícios nos levam a crer

que esta escrava tornou-se especial aos olhos de seu senhor e conseguiu por meio disso criar

espaços de liberdade que garantisse sua sobrevivência como individuo autônomo.

É apenas na década de 1980 que os historiadores vão à busca da subjetividade do

escravo sem defender uma “democracia racial”. Kátia Matoso, por exemplo, analisando

variada documentação como cartas de alforria, processos judiciais e arquivos policiais,

propõem-se a reconstituir a visão do escravo sobre sua condição de cativo, analisando a sua

despersonalização quando transformado em mercadoria e a construção de novos espaços em

que ele pudesse construir uma identidade, que garantisse seu status de pessoa. Segundo ela

"Ser escravo no Brasil”, título de seu livro,

Não é uma figura de estilo, implica o desejo de adotar o próprio ponto de vista do

escravo. Apontar a vontade de acompanhar cada passo de sua vida individual e

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coletiva [...] Buscamos penetrar na mentalidade desses homens novos, escravos

africanos, escravos crioulos, isto é, os nascidos no Brasil, [...] de todos os tipos e

cores de peles e pêlos. (MATOSO: 1982, p.12)

Matoso abriu espaços para pensar a escravidão sobre outro prisma - a necessidade do

escravizado de adaptar-se ao cativeiro e encontrar formas para sobreviver melhor. Nesse

cotidiano o cativo buscou lançar mão de estratégias e negociações com seus senhores que lhes

rendesse espaços para negar a coisificação imposta pelo sistema.

É nesse sentido que Maria Odila Leite analisa a São Paulo do século XIX, revelando

a complexidade das relações pessoais que uniam escravas e proprietários. Segundo ela, alguns

destes tinham seus sustentos todo providos pelo pecúlio das escravas ganhadeiras, de modo

que a improvisação dessa subsistência, no seu dia a dia, implicava numa dependência mútua

que oferecia à escrava a oportunidade de ter sua importância reconhecida e gratificada. Como

a própria Maria Odila Leite afirma (1984, p.162):

O treino e a esperteza de vendedoras de ganho, que garantia a sobrevivência das

proprietárias, também se desdobravam numa dimensão exclusiva das próprias

escravas, avós e mães solteiras sustentavam suas famílias morando em quartos de

aluguel pela cidade, principalmente na Sé; como escravas usufruíam da confiança

de suas donas, que com frequência acabavam por alforriá-las; além disso, gozavam

de prestigio e de influência entre os próprios escravos, tornando-se lideres de seu

convívio social e religioso: no seu quotidiano de trabalho e de lazer, alternavam os

cantos estratégicos de comércio ambulante com a intensidade de 'pontos’ mágico -

religiosos dos seus cultos improvisados.

Esses estudos mostram caminhos possíveis para analisarmos a documentação da qual

nos debruçamos. Temas antes desprezados, hoje ajudam a construir uma História na qual os

sujeitos não são apenas dados quantitativos ou, as vítimas da exclusão social, ou ainda meros

depositários de um único discurso homogeneizador.

2. ESCRAVIDÃO, GENERO E IDENTIDADE

Para compreender os aspectos da afetividade e as relações afetivo-sexuais, entre

livres e escravizados, percorremos alguns estudos feministas e do campo da História das

Mulheres. Optamos então, por trabalhar utilizando a categoria de gênero como aporte teórico,

contudo algumas ponderações sobre o termo devem ser postas.

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Segundo Linda Nicholson (2000, p.9), “‘Gênero’ é uma palavra estranha no

feminismo. Embora para muitas de nós ela tenha um significado claro e bem conhecido, na

verdade ela é usada de duas maneiras diferentes, e até certo ponto contraditórias”. O Gênero,

como toda e qualquer categoria, não possui um único atributo e ao logo da história seus usos e

sentidos foram se formando e resinificando de acordo com os estudos e as experiências

daqueles que o usava. As diferentes maneiras, que Nicholson fala que ele é usado, são palco

de vários debates na academia.

Popularmente, o termo Gênero é utilizado para definir as diferenças entre os sexos,

contudo como categoria de análise histórica ele ganha outros sentidos. Segundo Joan Scott é

com as feministas americanas, preocupadas em rejeitar o determinismo biológico que

inferiorizava as mulheres, através das “diferenças sexuais”, que o termo passou a ser usado

como uma categoria que define o que é socialmente construído,

O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das

feminilidades. As que estavam mais preocupadas com o fato de que a produção dos

estudos femininos centrava-se sobre as mulheres de forma muito estreita e isolada,

utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional no nosso

vocabulário analítico. Segundo esta opinião, as mulheres e os homens eram

definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de qualquer um poderia

existir através de estudo inteiramente separado. (SCOTT: 1996. p. 3)

Desse modo, uma “Historia das Mulheres” em que as colocavam como um sujeito

universal passou a ser questionada, uma vez que estas mulheres não poderiam ser isoladas de

seus espaços, era necessário pensar em estudos que problematizasse suas práticas e

representações no âmbito das relações entre os sexos.

Os estudos feministas em grande parte vão contribuir para a disseminação do termo,

produzindo críticas incisivas ao modelo dominante, em geral racista e sexista. Contudo a

multiplicidade do movimento feminista também gerou uma pluralidade de conceitos sobre

gênero, que vão desde a um substituto para “Mulheres”, um meio de distinguir a prática

sexual dos papéis atribuídos a elas e aos homens, até uma maneira de demonstrar as

“construções sociais” dos papéis destinados a cada um (SCOTT: 1996).

Neste estudo, o Gênero é compreendido como uma categoria relacional que possuí a

capacidade de articular diversas variáveis, conferindo uma historicidade para além do

binômio homem/mulher; razão/emoção; corpo/mente. A categoria usada seguirá na visão pós-

estruturalista de Joan Scott que define o gênero como “um elemento constitutivo de relações

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sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, [...] é uma forma primeira de

significar as relações de poder” (SCOTT: 1996, p.21).

Nas relações escravistas do Maranhão setecentista o “ser escrava” adquiria uma

variedade de definições, pois cada indivíduo (homens, mulheres, escravos, livres, senhor,

senhoras...) forjavam suas teias relacionais e de sociabilidade de acordo com suas

necessidades. Não cremos, portanto em noções de identidades fixas que reduzem os processos

históricos e impedem a visualizações de relações afetivas dentro de um sistema econômico

que também é politico e cultural.

Logo é necessário implodir com essas representações que estabilizaram o mundo

social e definiram os papéis de pertencimento ligado às culturas étnicas, raciais, linguísticas,

religiosas e de gênero, em que os indivíduos são vistos como um sujeito unificado e fechado

em si. As especificidades de cada grupo devem ser analisadas como campos historicamente

plurais, dentro de práticas discursivas e materiais, frutos não de uma, mas de várias

identidades, algumas vezes conflitantes e até não determinada. Nessa perspectiva Stuart Hall

(2006, p. 12-13) reflete,

A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e

não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes

momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro

de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal

modo que nossas identificações estão sendo deslocadas. Se sentimos que temos uma

identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos

uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora 'narrativa do eu'. A

identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao

invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se

multiplicam, somos confrontados por multiplicidade desconcertante e cambiante de

identidades possíveis, em cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao

menos temporariamente.

Corroborando dessa ideia, as mulheres escravizadas e senhores no Maranhão

setecentista não foram categorias fixas; as relações criadas entre eles revelam um aspecto

cultural de uma clivagem social de hierarquias e a construção de rede de sociabilidades que

desenvolviam novas identidades,

Como a identidade é, em parte, sustentada pelos outros, ela é afectada tanto pelas

alterações produzidas nas redes de sociabilidade do actor, como pelas alternativas

que lhe são oferecidas. A experiência da identidade torna-se mais diversificada e

instável porque os seus pontos de ancoragem e os seus referenciais também o são. A

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identidade já não está apenas ligada à pertença, mas também ao desejo de pertença

e àquilo que é necessário fazer para o concretizar. (BRANDÃO: 2010, p. 19)

Desse modo, os sujeitos escravizados no Maranhão setecentista, buscando sobreviver

da melhor maneira possível, criaram estratégias ligadas a um desejo de pertença e necessidade

de reconhecimento. Os concubinatos entre senhores e mulheres escravizadas, as alforrias

“pelos bons serviços que me tem feito”, ou “pela lealdade com que me serviu” e ainda a

herança deixada para filhos de escravas, pode ser apontado como um exemplo do que estamos

falando.

Ao ditar seu testamento em 1751, João Theófílo declara não possuir “herdeiro algum

forçado”, afirmava na verdade, que sempre vivera solteiro. Entretanto, viver solteiro na

sociedade colonial do século XVIII, não significava necessariamente viver só, o proprietário

instituiu como seu universal herdeiro o filho de uma escrava,

[...] Em prº lugar pesso ao mosso José Bruno que criei em minha caza em segundo

lugar ao R.Pe.M.el de Souza queirao’ por servisso de D.s {{119v}} de Deos e por

me fazerem mce serem meus testamenteiros [...]// E pa que não haja dúvida algua’

soubre meu prº testamenteiro por ser filho de hua’ minha escrava por nome

Silvana já desde agora lhe dou plena Liberde pello amor de Dº [...].(MOTA;

SILVA; MANTOVANI: 2000, p. 75)

[...] tenho disposto instituo Universal herdeiro pello amor de Deos e por me ajudar

com todo cuidado no trabalho das minhas fazendas ao dito meu Prº testamentrº

Joze Bruno de Bayrros [...]. (MOTA; SILVA; MANTOVANI: 2000, p. 81)

Jose Bruno era filho de Sylvana, a mesma escrava que teve seu modo de viver e os

ritos fúnebres garantidos no testamento do proprietário. Isto não significa dizer que essas

mulheres escravas, que compartilhavam uma vida com seus senhores eram indivíduos

puramente racionais e premeditavam conscientemente suas condutas, mas na verdade

reconhecer que era possível forjar espaços de escolhas diante das condições sociais em que

estavam.

João Theófílo não deixou apenas Jose Bruno como herdeiro, inúmeras pessoas entre

livres e escravas receberam uma parte da herança, uns mais outros menos, diferenças que

demonstrava os vários níveis de predileção deste senhor. Em especial, ele deixa a três

meninas, “crias da casa”, bens consideráveis, os motivos são expostos por ele da seguinte

maneira:

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Declaro que em minha casa criei tres raparigas com todo amor e caridade por

assim mo merecerem, as quais se chamam Ana Luzia e Cosma [...].

Declaro que a dita mossa Ana tive em hua’ m.er casada, digo Ana e recolhi a ma

casa pelo amor de D.º por encobrir hua’ falta de sua may m.er casada[...].

Declaro que a rapariga Luzia que criei tão bem em casa com muita caridade é filha

de hua’ minha serva já falecida por nome Romana por cja causa pelo amor de Deus

a deixo forra e livre[...].

Declaro da mesma forma ter em minha casa outra rapariga por nome Cosma filha

de outra minh escrava já falecida chamada Sizilia por cuja causa a deixo pelo amor

de D.º forra livre e isenta de toda pensão de captiveiro [...].(MOTA; SILVA;

MANTOVANI: 2000, p. 77)

A todas João Theófílo deixou bens como panos, louças, colheres, roupas finas e

escravos, preocupou-se também com o futuro delas, deixando-lhes um bom dote, mas o

condicionando, assim como a herança recebida, a um casamento com “pessoa capaz”, desse

modo João Theófilo seguia a premissa da época, “casar e comprar cada qual com seu igual”

(CORREIA, 2004, p. 109) e elegia Jose Bruno como responsável pelo sustento dessas moças,

até seu casamento. Infelizmente, não temos subsídios para justificar a predileção de João

Theófilo, mas nem essa é nossa intenção, desejamos na verdade demonstrar que para

compreender a complexidade das relações escravistas é necessário ir além do que foi posto

pelos estudos da História política e econômica. As relações entre homens e mulheres;

escravizados e sujeitos livres, se forjavam na vida diária, nas microesferas ora públicas ora

privadas, nas relações de afetividade que foram construídas e no poder exercido.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da história da escravidão, à luz da documentação, traz novos olhares sobre

o tempo e a trajetória das mulheres escravizadas, que muito mais que o mero sobreviver

buscaram estratégias que garantissem um “bem viver”. Assim, muitas alcançaram a liberdade

“pelos bons serviços prestados”, seduziram, deixaram-se seduzir, tiveram filhos com seus

senhores e garantiram seus espaços de autonomia. Mulheres como Sylvana souberam utilizar

dessas estratégias e suas trajetórias nos ajudam a questionar as categorias estanques que

buscam explicar as relações por determinismos biológicos ou por binarismos de oposição.

Homens e Mulheres, livres e escravizados no Maranhão setecentista conviveram sob

o mesmo signo da cultura e a hierarquia dos papéis sociais a quais estão submetidos não

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podem ser encarados como estado de natureza fixa, apesar de seguirem códigos pré-

determinados,

Regras, como culturas, não são nem puramente aleatórias nem rigidamente

determinadas – o que quer dizer que ambas envolvem a ideia de liberdade. Alguém

que estivesse inteiramente eximido de convenções culturais não seria mais livre que

fosse escravo delas. (EAGLETON, 2005, p.13).

Os sujeitos históricos, portanto não são meros fantoches de seus meios sociais, tão

pouco a realidade em que estão inseridos é facilmente modificada a partir de vontades

individuais. É no coletivo que as categorias, vão se automoldando e introduzindo no mundo

um grau de autorreflexividade constante e mutável.

É por essa perspectiva que acreditamos ser particularmente importante lançar um

olhar sobre as relações afetivas e afetivo-sexuais, entre os sujeitos livres e escravizados, sem

que essas análises caiam no determinismo homogeneizantes de classe, gênero ou raça. Ao

contrário buscamos enxergá-los como indivíduos culturalmente construídos e para além dos

corpos sexuados que os comportam.

REFERENCIAS

BRANDÃO, Ana Maria. “Identidades sexuais e de gênero: do modelo de análise ao

percurso de investigação”. In. BRANDÃO, Ana Maria. E se tu fosses um rapaz?

Homoerotismo feminino e construção social da identidade. Porto: Edições Afrontamento,

2010. pp.17-41

CORREIA, Maria da Gloria Guimarães. Do Amor nas terras do Maranhão: um estudo

sobre o casamento e o divorcio entre 1750 e 1850. Niterói, 2004. Tese (Doutorado em

História) – Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004. 339 p

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo: UNESP,

2005

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova – São Paulo: Companhia

das letras, 2002.

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro:

DP&A Editora, 2006

12

LEITE, Maria Odila. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:

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