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INTRODUÇÃO

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1. Sobre o impermanente interseccionismo entre Poesia e Filosofia

Quer se deseje definir, “o símbolo da modernidade poética portuguesa”1 (para

a paternidade duma sucessão sinfónica de ismos com a qual gerações de intelectuais se

nutriram com voracidade) ou até a “condição possível da filosofia”2 (para ter entregue

aos filósofos de profissão, já despojada de sentido, a milenária granítica oposição entre

platonismo e anti-platonismo) não podem existir incertezas em atribuir a Fernando

Pessoa a designação de poeta decisivo e inigualável no universo cultural lusófono.

Também, e sobremodo, se o nosso olhar apontar para a extraordinária

transbordante “saída” de material inédito inerente à sua mítica arca que, passados

pouco mais de 70 anos da sua morte, aflora em superfície com periodicidade para nos

restituir uma obra in fieri onde os conteúdos, e os aproamentos que os introduzem, se

misturam e contraem, renovando-se incessantemente.

Isto traduz-se, fundamentalmente, na prolificação de uma antologia babélica de

apontamentos fragmentários que os seus leitores começaram a descobrir sob o formato

de núcleos conceptuais entre os quais a denúncia da necessidade de recodificar

categorialmente o homem e as suas faculdades cognitivas, a reviravolta do plano

lógico-dimensional do binómio realidade-irrealidade, a assunção do onírico, do mito e

da loucura como instâncias superestruturais da existência; a fundação de uma nova

religião inspirada na primitividade grega e a investidura messiânica de guias culturais e

espirituais de um povo tributadas aos poetas.

À luz disso depreende-se que as soberbas caracterizações dos seus fingimentos

são o resultado de uma fusão entre tragédia e razão especulativa, drama e escrita lírica

que visa superar, “transcender”, sublimar e subsumir, aquele espaço metafísico onde o

seu intérprete, pluralizando-se, se situa apartado daquele eu empírico que fala em seu

nome e, como iremos constatar, irá tornar-se no principal obstáculo na elaboração de

uma dialéctica do multíplice.

A dimensão pluralista da obra de Pessoa é aquela de quem, por tudo sentir, tudo

querer ser e nada poder sintetizar, entrega a sua hiperconsciência de “novelo 1 Cf. Eduardo Lourenço, Pessoa e Portugal e Portugal e Pessoa, in AA.VV., A Arca de Pessoa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa 2007, p.28 2 Cf. Alain Badiou, Uma tarefa filosófica: ser contemporâneo de Pessoa, in Idem, Pequeno manual de inestética, tradução de Joana Chaves, Instituto Piaget, Lisboa, 1998, pp. 57-68.

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embrulhado para o lado de dentro” ao fracasso de se deixar ganhar pela tentação do

desdobramento. Um autor que teve de se exceder para se procurar. Que teve de

desaparecer para se achar. Que muito antes de revelar ao mundo a sua família

heteronímica (com personalidades, registos estilísticos e programáticos, percepções e

ideias no singular, enquanto, cumulativamente, denunciam um modo de transformar-se

em outro ou o dissipar do próprio nome), ficando-lhe, em certas medidas refém, tinha

erguido já uma sólida arquitectura de compósitos géneros literários e diferentes

critérios hermenêuticos. Entre eles o desenvolvimento do género filosófico, em Pessoa

sempre inconcluso mas nunca inconcludente, ocupa um lugar de excelência sendo

também a confirmação de um pensamento pluralista repleto de composições destinadas

a perfazer livros filosóficos que não saíram do estádio embrionário, escritos não

associados a qualquer projecto embora agrupáveis por categorias, diálogos ou contos

filosóficos, pequenas produções sobre filósofos e escolas filosóficas e transcrições

feitas a partir de livros lidos.3 Catalogado com a designação de E3, o espólio de

Fernando Pessoa hospeda um núcleo de catorze envelopes, nos quais se incluem, ao

todo, 148 documentos: cinco envelopes (151, 152, 153, 154, 155) são denominados de

“Filosofia”, um (15A) identificado como “Filosofia-Metafísica”, quatro (15B1, 15B2,

15B3, 15B4) nomeados de “Filosofia-Psicologia”. Conclui o conjunto um outro grupo

de 4 envelopes (22, 23, 24 e 25), designados como Textos Filosóficos por constar dos

fragmentos que compõem a edição antológica coligidas por António de Pina Coelho

em 19684. Fora destas secções os documentos de teor filosófico não são ocorrências

raras, o que certifica a importância de uma reedição útil para fixar melhor os trechos

que já viram à luz e tratar do que continua a ficar inédito. Contundo, o pioneirismo e o

valor dos contributos de Pina Coelho no quadro do estado da arte dos estudos

pessoanos não se discute. Será especialmente com o trabalho Os Fundamentos

Filosóficos da obra de Fernando Pessoa, posterior à edição dos Textos Filosóficos, que

Pina Coelho fornecerá um validíssimo vademecum para futuras gerações de estudiosos

em torno da vertente mais especulativa da obra pessoana. Entre os seus méritos mais

pujantes destacamos dois: a reivindicação, ao lado de projectos e reflexões filosóficas

3 Cf. Nuno Ribeiro, «“Tive em mim milhares de filosofias” – questões para a edição dos escritos filosóficos inéditos de Pessoa» in in Cultura Entre Cultura, Lisboa, Âncora, Número 3, Primavera-Verão, 2011, pp. 192-200 4 Cf. Fernando Pessoa, Textos Filosóficos, estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho, 2 vols., Lisboa, Ática, 1968.

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explícitas, de toda uma série de tópicos originados em sede filosófica que impregnaram

indiscriminadamente a redacção de vastas porções de escritos em prosa e poesia (cujos

itinerários mais explorados são combinatórias de pares de conceitos opostos como

percepção e intelectualização, aparência e essencia, ser e não-ser, espírito e matéria; o

espanto originário do existir, a comprovação da relatividade de tudo em tudo, a ânsia

do infinito, a obsessão para os sentidos comuns atribuídos à palavra e a sombra ou

negação desse sentido comum) e uma ampla retrospectiva sobre as leituras de volumes

de incidência filosófica que tiveram o seu auge já em tenra idade.

De facto, antes da produção literária pessoana atingir a sua máxima expressão,

logo a seguir à conclusão da sua estada na África do Sul – marcada pela assimilação

dos clássicos gregos e da literatura vitoriana – e ao seu regresso a Portugal, a formação

intelectual do escritor atravessa um ponto de viragem entre 1905 e 1907, coincidente

com o surgimento dos proto-heterónimos Charles Robert Anon e Alexander Search,

“proprietários”, respectivamente, de 3 e 25 livros. São os anos em que Pessoa frequenta o

então chamado Curso Superior de Letras na Universidade de Lisboa. Durante esta fase

de estudo e pesquisa de carácter mais académico, teve a possibilidade de estabelecer os

primeiros densos e extensos convívios com diversos autores, linhas ou correntes de

pensamento universais, mutuados pelas repetidas interlocuções com livros que

costumava consultar na Biblioteca Nacional. Outros, a maioria, iam integrando a sua

biblioteca particular actualmente composta por 1313 títulos (1419 volumes) e dispersa

em diferentes pontos da cidade de Lisboa: 1060 títulos estão guardados na Casa

Fernando Pessoa, 151 com os herdeiros Manuela Nogueira e Luís Miguel Rosa, três na

posse de Miguel Freitas da Costa (neto de Maria Madalena Nogueira de Freitas, prima

de Fernando Pessoa) e 99 custodiados no espólio da Biblioteca Nacional.

A biblioteca abrange todas as classes de conhecimento e foi subdividida

seguindo o sistema de Classificação Decimal Universal (CDU):

Classe 0 – Generalidades.

Classe 1 – Filosofia. Psicologia.

Classe 2 – Religião. Teologia.

Classe 3 – Ciências Sociais. Direito. Administração.

Classe 4 – Classe vaga.

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Classe 5 – Matemática. Ciências naturais.

Classe 6 – Ciências aplicadas. Medicina. Tecnologia.

Classe 7 – Arte. Belas-Artes. Recreação. Diversões. Desporto.

Classe 8 – Linguística. Filologia. Literatura.

Classe 9 – Geografia. História. Biografias.

Apesar da classificação vigente, existem volumes que residem na classe não apropriada

por causa de uma listagem, remontante a 1996, que resolveu bastante apressadamente

as dúvidas na colocação de títulos cuja demarcação temática ainda hoje aparece incerta

devido à “promiscuidade” das disciplinas tratadas. No que concerne à tão chamada

Classe 1 “Filosofia e Psicologia” constituída por 181 títulos, Pablo Javier Pérez López,

no seu recente Poesia, Ontologia y Tragedia en Fernando Pessoa, tenta fazer clareza

circunscrevendo a contagem de livros com conteúdo filosóficos a 805. Se a esse

número juntarmos uns 20 textos de idêntica natureza espalhados nas restantes classes

da biblioteca, teríamos uma percentagem conclusiva do 6% do total da biblioteca

particular pessoana. A percentagem, porém, está destinada a aumentar ao analisarmos

as muitas listas de livros para consulta e aquisição e até os diários de vida e de leituras

presentes no espólio pessoano. No diário talvez mais conhecido da sua “terceira

adolescência”6, datado de 1906 e escrito em inglês, o seu fervor filosófico deduzível

pelos registos de leituras de compêndios de histórias da filosofia (menciona

particularmente Anaximandro, a Escola Jónica e a Escola Eleática a Lógica e a

Metafísica de Aristóteles e a Crítica da Razão Pura de Kant) torna-se quase tão

insustentável que num breve apontamento chega a admitir: “Must read more poetry , so

as to neutralize somehow the effect of perfect philosophy”. A exigência de acalmar a

fome atávica que vem do perene interrogar, a necessidade de lenir o martírio que

provoca a mania do inesgotável raciocinar, a urgência de remediar ao abuso de reduzir

o mundo e a consciência à unidade, pouco tempo depois incitaram Pessoa a converter

esse desabafo de juventude nas coordenadas com as quais direccionar a sua passagem

5 Pablo Javier Pérez López, Poesía, Ontología y Tragedia en Fernando Pessoa, Morata de Tajuña, Editorial Manuscritos, 2012, p. 100. 6 “No que posso chamar a minha terceira adolescência, passada aqui em Lisboa, vivi na atmosfera dos filósofos gregos e alemães, assim como na dos decadentes franceses, cuja acção me foi subitamente varrida do espírito pela ginástica sueca e pela leitura da «Dégénérescence», de Nordau.”, Fernando Pessoa, Correspondência. 1923-1935, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 279.

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sobre o palco do mundo. No dispositivo de equilíbrio por meio do qual dominar o seu

espírito. Num vislumbre de coerência para agregar as suas agitadas incoerências: ao

passo que devorava as leituras de todas as principais teorias filosóficas da área

ocidental, desde Heráclito a Górgias, de Platão a Descartes, de Pascal a Berkeley, de

Bergson a Hegel, deleitava-se com Byron, Keats, Mallarmé, Goethe, Poe, Oscar Wilde

e Guerra Junqueiro não para desautorizar a autoridade sistémica dos primeiros

mediante a irreverência do aludir simbólico dos segundos; enquanto se interessava em

evolucionismo, psicanálise positivismo idealismo e nihilismo, mergulhava em

Kalidasa, Khayyám, Hafiz, Nezami, Tagore, Confúcio e Buda, não para testemunhar a

superioridade do espírito sobre a matéria, mas para procurar novos abrigos e respostas

mais sólidas face aos enigmas da existência. Lá onde a física encontra a metafísica, lá

onde o método encontra o imprevisível, lá onde o Logos encontra o Mito, lá onde as

fronteiras de dois mundos em eterna contenda, o da poesia e da filosofia, tornam-se

porosas e criam brechas, fendas por onde escorre uma sabedoria antiga e moderna que

reconhece a unidade como multiplicidade, o todo como fragmentos, o monólogo como

diálogo. Da tentativa de vincar este precioso legado que Pessoa deixou na e com a sua

obra, nasce então o nosso intuito de querer ilustrar algumas dinâmicas do fértil diálogo

entre o universo da sua escrita e o de autores que o precederam ou que lhe foram

coevos. Daremos também oportuno ressalto às leituras e as anotações autógrafas ou

marginalia transcritas nas margens dos livros pertencentes à sua biblioteca particular.

Essas inscrições autógrafas (sublinhados, pequenas marcas, sinais gráficos e

apontamentos deixados na qualidade de pistas e referência para, simplesmente,

favorecer uma maior assimilação de argumentos lidos; frases implicando diversíssimas

opiniões de admiração, crítica, interrogação, refutação; composições originais e

revisitações de pensamentos alheios), têm sido avaliadas por alguns, errónea e

pretensiosamente, como marginais, mas em variadíssimos casos permitem introduzir

ou acrescentar preciosas e inesperadas informações exegéticas acerca dos processos

mentais do Fernando Pessoa leitor/anotador e dos momentos de interacção com os

autores de cada obra lida e anotada. Outra importante peculiaridade concerne ao iter

genésico de muitos projectos, trabalhos e actividades que Pessoa desenvolveu durante

toda a sua vida. Deste modo, constituem um instrumento de valor histórico e cultural,

tão decisivo como o mais celebrado tesouro do espólio.

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2. Objectivos e abordagem hermenêutica

Para desenvolver detalhadamente o nosso empreendimento, pensámos elaborar

uma sequência de quatro capítulos. Todos privilegiam um enfoque de tipo

comparatista.

No que toca ao primeiro capítulo, procuraremos evidenciar como Fernando

Pessoa, aproximando-se e, ao mesmo tempo, distanciando-se do saudosismo de

Teixeira de Pascoaes, foi cantor de uma saudade atemporal, criadora e redentora.

Reflectiremos também sobre o seu perfil de autêntico transcendental da vida em que o

Tudo e o Nada irrompem, tornando-se intercambiáveis no seguimento de uma

Aufhebung de distância e ausência, tanto em relação ao próprio eu empírico, como ao

horizonte da sua projecção transpessoal no simbólico, no Imanifesto e no inconsciente

do reviver o ser criança.

Sucessivamente, pretende-se mostrar sob que aspectos essa via catártica tece

laços com uma das tónicas mais representativas do pensamento poético de Giacomo

Leopardi (1798-1837): o apego às ilusões e às recordações de momentos passados

irrepetíveis, vividos e revividos como sendo reais apenas na memória. As recordações,

dispensadoras do único prazer não caduco entre as desagregantes manifestações

desiderativas do existir humano, em Pessoa e Leopardi são o elemento fecundante da

imaginação poética. São também o fogo dinamogénico capaz de transmitir e resgatar

formas arcaicas de sabedoria e conhecimento, das quais as civilizações modernas,

assim como todas aquelas que caminham para a modernidade, não podem prescindir,

sendo o património da Tradição (especialmente a da Grécia pagã) a plataforma de onde

se parte para alcançar o novo por conhecer.

Quando Jorge Luis Borges, em carta de 2 de Janeiro de 1985 sob pedido de José

Blanco assina uma carta idealmente dirigida a Fernando Pessoa para comemorar, no

catálogo da exposição Fernando Pessoa, poète pluriel o cinquentenário da morte,

muitos biógrafos do escritor argentino se terão lembrado da primeira referência que

Borges fez a Fernando Pessoa, 34 anos antes. Precisamente em ocasião da redacção de

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uma entrada enciclopédica intitulada Portugal (hasta el siglo xx inclusive)7. Apesar de

ter transcrito mal o nome de Alberto Caeiro e de chamar os heterónimos de

“pseudónimos”8, Borges tem a intuição de acostar o mestre da galaxia heteronímica a

Walt Whitman. Limitam-se a essas breves notas os vestígios de uma menção explícita

de Pessoa da parte de Borges. Na verdade, o segundo mal conhecia a literatura do

primeiro ignorando, por consequência, um detalhe extremamente revelador de um dos

muitos cruzamentos intelectuais entre duas estéticas: Pessoa como Borges tinham lido

em juventude Schopenhauer. O propósito do segundo capítulo será então analisarmos

os frutos dessa educação livresca comum que, quer em Borges quer em Pessoa, se

traduz numa firme recusa dos impulsos de uma Vontade metafísica votada

exclusivamente à auto-afirmação autofágica; numa denegação de uma auto-

representação monolítica, pré-determinada, imutável da ipseidade humana e do que lhe

está à volta; numa refutação das noções de livre arbítrio de espaço e de tempo.

No terceiro capítulo é nossa intenção dar conta de determinadas ascendências

do pensamento de Friedrich Nietzsche na obra de Pessoa, sem descurar a sua biblioteca

particular. O livro De Kant à Nietzsche de 1910 de Jules de Gaultier, que apresenta

consistentes passagens sublinhadas, constituirá o cerne da nossa análise. Ainda nesta

parte da tese, um certa proeminência adquirirá a interpretação nietzschiana da arte

como suprema manifestação da vida, como tensão e harmonização do dionisíaco e

apolíneo, sendo que a arte, em virtude da sua força transfiguradora, é concebida como

uma exuberância vital, uma aceitação alegre do que há de terrível, doloroso, profundo e

inexplicável na existência. Não esquecendo que em Nietzsche retirar a fonte original de

qualquer solipsismo, isto é, o Eu, corresponde ao deixar irromper a vida pletoricamente

com todas as suas representações, servir-nos-emos de algumas passagens do livro

encimado, lidas e destacadas por Pessoa. Fundamentaremos, assim, a teoria que vê na

encenação das ficções heteronímicas um mergulho na noção polissémica de alteridade.

Dessa imersão, o poeta/filósofo sai cumprindo uma desconstrução do conceito de 7 Cf. Jorge Luis Borges, Textos recobrados, vol. III, Emecé, Buenos Aires, 2007, p. 56; Patricio Ferrari e Jerónimo PIZARRO, «Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges», in Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo. Organização de Fernando Cabral Martins, Lisboa Editorial Caminho, 2008. pp. 91-92. 8 “Hacia 1912, ANTONIO SERGIO acusa a Pascoaes de anhelar un pasado inaccessible y de rehusar lo contemporáneo. Algo después, empieza a destacarse FERNANDO PESSOA, cuyo Mensagem aparecerá en 1933 y que fue equiparado a Walt Whitman, mereció el epíteto de genial e hizo sentir su influencia en ambas costas del Atlántico. Tenía el hábito de abundar en seudónimos; bajo el de Alberto Caerio [sic] firmó poemas que se niegan a las especulaciones del intelecto y exaltan la pura visión de las cosas.”, Jorge Luis Borges, Textos recobrados, op. cit., p. 56.

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verdade de todo semelhante à enunciada por Nietzsche já a partir das suas primeiras

obras.

Finalmente, no último capítulo, decidimos estipular uma aproximação entre a

função epistemológica que Pessoa e o filósofo japonês Nishida Kitarō atribuem às

sensações. Figura de proa da filosofia intercultural do século XX, o reconhecido

fundador da célebre “Escola de Kyoto”, na sua obra monumental, questiona e

desmonta a alegada solidez da antinomística, identidade-diferença, “tradição oriental”-

“tradição ocidental” com uma dinâmica conceptual de cariz dialéctico, através da qual

o trajecto da contradição não se extingue, impedindo que qualquer termo ou ideia

particular se coloque e se configure como resposta definitiva e resolutiva. Nessa senda,

insistiremos sobre algumas das mais significativas aplicações estéticas da sua lógica

influenciada pela filosofia zen: o valor dinâmico da arte, a sua capacidade de vivificar a

experiência e de permitir o relevamento da união íntima entre sujeito e objecto.

Promulgador de uma fenomenologia baseada em colocar-se face às coisas de

modo a não outorgar antítese nenhuma entre elas e o seu olhar translúcido e vigilante,

simples, pacificado e liberto dos apegos da mente, veremos como chega a dialogar

idealmente com Alberto Caeiro no que respeita à postura de querer atingir os dados

ônticos apenas pela maneira como aparecem, não tanto ao observador, mas sim ao acto

específico do observar. Já na parte final, constataremos também a contiguidade com

Bernardo Soares ao deslocar a realidade para um espaço ulterior metafísico e abismal,

denominado Nada Absoluto. Centro descentrado onde convergem a presença e a

ausência, a representação conceptual e o silêncio, a clausura e a máxima abertura.

Onde até a ideia de oposição e de unidade afluem e se compenetram estabelecendo um

ponto de contacto com um terceiro interlocutor: a doutrina budista de anattā e anicca.

Fecha o trabalho um anexo que reúne imagens de páginas de livros da biblioteca

pessoana e de documentos do espólio (oportunamente transcritos) remetentes directos

para o interesse cultivado por Pessoa, ao longo da vida, para tradições, literárias,

filosóficas e religiosas de áreas orientais e médio-orientais. O levantamento do material

integrou um dossiê de nossa concepção que chegou a ser publicado em «Os Orientes de

Fernando Pessoa» in Cultura Entre Culturas, nº 3, Primavera-Verão, Lisboa, Âncora,

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pp. 148-185. Contámos, para tal, com a colaboração do Professor Doutor Jerónimo

Pizarro e Patricio Ferrari.

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CAPÍTULO I

A universalização da Saudade

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1.1. Ser saudoso e ser Saudade Vimos da sombra e vamos para a sombra. Só o presente é nosso, mas que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro?

Jacinto do Prado Coelho

De acordo com Eduardo Lourenço, a essência da cultura moderna não reside,

como habitualmente se julga, na ausência de religião, de metafísica, de ética ou de

estética.

Pelo contrário, o que caracteriza a modernidade, juntamente com a sua tensão

para a heterogeneidade, pluralidade e ambiguidade, é o excesso de tudo que confere às

assímptotas, nas quais se inscrevem as certezas ou as crenças dos homens e do mesmo

mundo, muitas vezes palco, ao longo do século passado, de uma série de horrores e de

desastres sem fim, uma dimensão não unitária, essencialmente estilhaçada e

metamórfica. Em oposição, porém, a tais fenómenos destrutivos, as letras e as artes

responderam, como aliás já acontecera em épocas históricas passadas, com toda uma

quantidade de obras sublimes que, acabando em muitas ocasiões por simbolizar a

vontade de remissão daquelas gerações anteriores à nossa, hoje em dia continuam a ser

lidas, estudadas e apreciadas por uma actualidade em que o tempo não é extinguível

pelo tempo. Este, sem dúvida, é o caso da obra criada por Fernando Pessoa.

Desfolhando e confrontando mais pormenorizadamente os escritos heterónimos,

descobre-se de facto, que, por exemplo, Ricardo Reis é o médico monárquico de fé

pagã, auto-exilado no Brasil após a implantação da República de 1910 que atinge dos

modelos clássicos gregos e latinos a obsessão por uma disciplina mental e estilística,

que organiza e mede a pureza expressiva da sua poética e com a qual verte as

sensações em pensamentos. Dos epicuristas vai absorver a apologia da suprema

indiferença. Da impassibilidade estóica uma intensa serenidade na aceitação da

relatividade de todas as coisas. Enquanto os alegados valores de riqueza, amor e glória,

se tornam claros desvalores, em Ricardo Reis materializa-se um “faquirismo da

sensibilidade” baseado em “fitar o Nada, em sorrir e pedir vinho”, numa estratégia

ataráxica que revisita, de raiz, o carpe diem horaciano.

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O semi-heterónimo Bernardo Soares é, depois, um discreto e solitário

correspondente comercial, que duma janela do escritório no qual trabalha, situado na

antiga “baixa” lisboeta – exactamente como no caso do Fernando Pessoa-si-próprio –

contempla, absorto em meditações metafísicas e devaneios sinestésicos, tudo o que de

relevante ou de banal acontece nas estradas, nos cafés e nas lojas circundantes, para

registá-lo depois obsessivamente, sob forma de apontamentos, transcritos com a

minúcia maníaca do contabilista alienado. O resultado é o diário de um homem sem

qualidade a quem “a vida parece ter limitado as asperezas ou apagado os contornos”

para se resignar ao próprio estado de endémica inadequação às coisas. As suas

reflexões envolvem-no na prostração de quem nada sabe, a não ser hesitar ou

abandonar-se à abulia originada pelo não-sentido da existência, e que por ter indagado

incessantemente, considera-se pura inércia consciente.

Fecha o círculo dos avatares pessoanos mais corroídos pelo calvário de “não

poder querer ser nada” o exuberante e caótico Álvaro de Campos: “dandy de estirpe

maldita” retratando-se como um vencido, como um falhado, como um marginalizado,

como “um cão tolerado pela gerência” que escreveu alguns dos grandes poemas

metafísicos das literatura portuguesa. O duplo porventura mais extrovertido e excessivo

concebido por Pessoa, por aquele seu programa de viver a vida até ao seu extremo,

num transbordar de frenéticas emoções para chegar ao nível supremo da vertigem.

O todo que ele persegue abarca não apenas a escala integral dos objectos

materiais, senão também a inapreensível imensidade de todas as possibilidades

imaginativas.

Possesso pela febre da modernidade, é o único heterónimo a apresentar uma

linha evolutiva, passando de uma fase decadente a uma fase futurista em que emerge o

lamento delirante da Energia e do Progresso, o culto por sensações violentas, que se

conclui numa fase final, dominada pela atonia, o desencanto, o tédio e o mal de viver9

por interpretar a existência quotidiana, uma morte que revivemos a cada novo dia.

Pessoa, além de dirigir, como fez toda uma vida, o seu olhar indagador até aos

recantos mais profundos da sua alma, orientou-os com magistralidade e decepção, para

a situação de decrepitude e esfacelo social, político e cultural da Europa e de Portugal

9 Cf. Amina di Munno, Fernando «Pessoa,“un oceano senza confini”», in Fernando Pessoa, Il

violinista pazzo, trad. italiana de Amina di Munno, Milano, Mondadori, 1995, p. 135.

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no início do século XX, mantendo, quase sempre intacto na sua prosa e na sua poesia,

um sincero e iluminado espírito de denúncia.

Vertido, quer externamente (na sociedade), quer internamente, no aludido

contraste uno versus muitos, o processo de emersão, em que a identidade alvorece

como um brilho momentâneo, e imersão, em que a expectativa duma coerência literária

abala sob o peso da inflação de estéticas heteronímicas, pode ser interpretado como o

inevitável navegar à deriva duma subjectividade dilacerada, para a qual, a assumpção

do tempo submisso ao do binómio diatríbico ficção-verdade, é o eixo central de onde

irradiam posições poéticas entre si irredutíveis.

A obra de Pessoa assume esta tendência, de certa maneira, autonomamente, se

tivermos em conta a plausível influência do sentimento da Saudade, configurada, por

um lado, como reflexo psico-telúrico da paisagem terrena na personalidade dos

indivíduos que compõem uma civilização e, por outro lado, e mais importante, como

fusão ou síntese osmótica de culturas de povos históricos diferentes que nesta paisagem

se cruzaram10:

Iberia

O fundo romano-grego-arabe-semita da n[ossa] mentalidade. Viu-o T[eixeira] de Pascoaes quando ona linguagem nevoenta e absurda dos mysticos, fallou no “aria e semita” em n[osso] sangue. Mas viu certo, sob a sua confusão verbal. A intuição do *mystico subjaz a incoherencia do *mysticismo.11

10 Cf. Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português, Lisboa, Edições Roger Delraux, 1978, pp.

72-73. 11 BNP/E3, 97-43r.

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Salvaguardando na sua semântica a alegria da perda, a lacuna do Ser no ser

imperfeito, a feliz melancolia de quem não se conforma, não se resigna, com o facto

bruto dos factos que compõem a vida, transitarem e desaparecerem, a palavra-

sentimento saudade acolhe a tentativa de junção do sujeito com a sua ipseidade volátil.

Subtraída continuamente ao fundamentalismo do raciocinar determinador,

marca o inevitável ponto de chegada e de partida em que, mais cedo ou mais tarde,

todos nós descobrimos estar inseridos e do qual parece impossível desprendermo-nos, a

não ser através de uma dialéctica infinita de auto-definição e redefinição do indivíduo.

Quando o sujeito a traceja, inclui-se a si próprio num espaço saudoso, isto é,

numa solidão melancólica, para que a falta duma identidade específica de referência, se

transforme num sentimento existencial capaz de condicionar a actividade especulativa

da mesma.

Vale a pena assinalar que, com efeito, uma correcta morfologia da Saudade é

inseparável duma acepção de Soedade, isto é, uma dor suave do estar longe, fortemente

contraditória: estarmos ausentes de nós próprios depende de um desejo frustrado de

plenitude, do desalento da nossa condição de absoluta “identidade” solitária. Uma

solidão insustentável.

Outro pressuposto preeminente da compenetração saudosa é a auto-captação do

sujeito na qualidade de centro descentrado de uma interacção de forças desde o âmbito

anímico, “interior”, até às múltiplas interpolações com o mundo externo.

A saudade, portanto, ao invés de uma atitude ideológica, representaria uma

maneira de viver, de estar no mundo, com que o sujeito tende a idealizar a realidade

concretamente não possuída. Fá-lo visualizando um bem ausente e compreendendo

como essa própria ausência lhe insemina a esperança de uma unidade futura.

Enquanto manifestação da distância, a saudade faz do perto longe, e

sincronicamente permite a relação com o mais longínquo, o mais separado. É a

desintegração das barreiras dimensionais de espaço e tempo como sistema de vínculos

eternizados, infinitos, onde não é lei as coisas sucederem-se ou substituírem-se, pela

irrupção do continuum entre passado e futuro. O passado e o futuro só são intuídos

imediatamente pela faculdade racional do homem e da sua concomitante prerrogativa

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em formar conceitos, sendo sempre no presente imediato do sujeito que formula as

abstracções do passado e do futuro em que estes são passíveis de se realizarem.

Plano trans-temporal da plena possibilidade, necessidade e confluência de tudo

no todo, não transmissível ou comunicável eideticamente, a Saudade, em definitivo,

imanentiza-se naquilo que detemos sem o possuir no nosso espírito: a apercepção de

uma solidão do mesmo e do outro semelhante ou até coexistente nas demais tradições

de diferentes cantos do mundo, a anyoransa anyorament catalã, a morriña galega, a

Sehnsucht alemã e a e a dor12 romana a que a poesia vai dando vida no seu processo de

12 “Como saudade, en portugués, dor es la palabra que más plenamente caracteriza al pueblo

rumano. No es una palabra creada por eruditos ni por ninguna escuela mística. No es tampoco, un sustantivo que por azar se encuentre en el lenguaje vulgar, como por ejemplo, Sehnsucht, o sobre todo, en la poesía, como melancolía y nostalgia. Es, por excelencia, la expresión popular, de origen netamente popular y con una circulación amplísima en todas clases de la sociedad rumana. Si se quisiese encontrar una ínfima diferencia entre saudade y dor, está en la fuerza de circulación del vocablo rumano. Es difícil hablar media hora con un campesino rumano sin oír pronunciar la palabra dor. Etimológicamente deriva el término del latín, de dolor, y los diccionarios lo traducen así: 1) deseo ardiente (p. ej. mi-e dor de casa, tengo un deseo ardiente de casa); 2) nostalgia (p. ej. dor de tara, «mal du pays», en francés; «Heimweh», en alemán); 3) tener pena de alguna cosa o de alguien (a duce dorul cuiva); 4) pasión, amor (p. ej. a muri de dorul cuiva, morir de amor por alguien; a se uita cu dor, mirar con pasión; il lovea dorul de Joanna, sentía (él) despertar su pasión por Juana; 5) satisfacer el deseo de alguien (de vrei tu sa-mi faci pe dor, si tú quieres satisfacer mi ardiente deseo), [.] A veces, dor, pasión interna e infeliz por alguien, y de tal manera fuerte que pueda transfigurar la propia Naturaleza en patética desesperación: «Dorul meu de e-asi cânta /Dealurile ar rasuna.» «Si yo pudiese cantar mi dor, los montes retumbarían!» Y aún más: quedarían llenos de tristeza. –«Y diría al bosque que quedase sin hojas, y al trigo que no creciese, y a los árboles que no diesen fruto, ni vino las viñas– si mis penas yo pudiese así disiparlas!» [.] Dor expresa el estado de alma indefinible de quien no está satisfecho con el presente, de quien no puede vivir el instante que transcurre y se siente atraído por el pasado, por un lugar distante, por un paisaje de ensueño. Dor no tiene únicamente por causa la soledad; es el sentimiento agravado por la soledad misma, debido a la ausencia del ser amado. Ausencia que destruye el cumplimiento de un destino, que impide al ser el integrarse a la vida con toda su plenitud. Dor no es siempre la «nostalgia de alguna cosa»; se sufre de dor, independientemente de cualquier causa exterior precisa. El ser entero sufre de dor; es un destierro del alma, una profunda melancolía, que revela, quizá, la condición del hombre en el Cosmos. En este caso, dor alcanza un valor metafísico e incluso religioso; traduce la tristeza del hombre separado del Creador, la vacuidad del ser humano abandonado en el mundo. En cierto modo dor se transforma en la fórmula patética de la condición humana de la soledad amargada por el sentimiento de que nos faltó algo, de la vida fallida, de la pérdida de ventura. Muchas canciones populares rumanas comienzan por una invocación, una especie de diálogo com el dor. «Ma, dorule mai!» «Oh, tú, mi dolor!» Es una fórmula frecuente en esos cantares. Dor se personaliza, se anima de vida propia, y el hombre se dirige a él exactamente como a una persona. [.] El campesino rumano imaginó incluso un país lejano, perteneciente a la geografía fabulosa, en donde se encontraban «los Palacios de Dor»: Curtile Dorului. Allí era donde se inscribía en tablas la historia de todos los amores, los nombres de todas las doncellas que despertaban pasiones, que provocan dor en el corazón de los hombres. Esos «Palacios» son el imperio del dolor. Estamos en presencia de una personificación mística del dor, que se considera como el Eros Universal. Ya no es un desdoblamiento del ser humano que sufre de amor o de aislamiento, es un personaje místico, autónomo, la encarnación universal del dor. […] Cuando un rumano dice que siente dor por algo, téngase la certeza de que en esse momento desea ese algo con todo su ser, íntegramente, con el cuerpo y con el alma, con carne y hueso, en la feliz y rigurosa expresión unamunesca.”, Mircea Eliade, El Español, Semanario de la política y del espíritu, año II, nº 27, 1 de mayo de 1943, Madrid, p. 6.

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renovação contínua, por oposição à opinião comum que quer a saudade como uma

particularidade idiomática exclusivamente luso-galaica.

O próprio Fernando Pessoa parece resgatar a universalidade do vocábulo num

dos marginalia semeado no livro The Life of Percy Bysshe Shelley de Edward Dowden,

pertencente à sua biblioteca particular. Na página 314 do volume encontramos o

apontamento autógrafo “saudade” na conclusão de um depoimento de Mary Shelley,

com início na página anterior, acerca duma conversa entre as muitas protagonizadas

pelo marido poeta e por Byron, na altura da residência suíça dos fugidios consortes.

O parágrafo mais interessante é o seguinte:

When Albè [por “Albè” entende-se aqui Byron] speaks and Shelley

does not answer, it is a thunder without rain – the form of the sun

without heat or light –as any familiar object might be shorn of its best

attributes; and I listen with an unspeakable melancholy that yet is all

not pain.13

Edward Dowden, The Life of Percy Bysshe Shelley, (CFP, 9-24, p. 314) [detalhe]

A substancial concomitância do binómio ausência-presença converte o

sentimento da saudade numa interacção que não tende para uma síntese, ou seja, que

não extingue a sua força num contacto homogeneizador, mas continua a regenerar-se

mudando de tonalidade: ora na ausência, ora na presença. Haverá sempre, portanto,

alternância entre sujeito saudoso e objecto de saudade. E, sobretudo, haverá sempre

distância entre o que somos e o que sonhamos ser. O desencanto e a anulação mantêm

a Saudade em tensão. A evocação do bem de que se carece, é acompanhada por uma

13 Edward Dowden, The Life of Percy Bysshe Shelley, London, Regan Paul, Trench, Trübner &

Co., Ltd.,1896, pp. 313-314; cf. Jerónimo Pizarro, Patricio Ferrari, Antonio Cardiello, A biblioteca particular de Fernando Pessoa – Acervo Casa Fernando Pessoa, vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 2010.

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espécie de posse translata do mesmo e concretiza-se na representação por parte da

memória.

A verdadeira perda é compensada, assim, pela aquisição idealizada; a

imaginação do objecto ausente é realizada no tempo presente, atenuando o sentimento

da privação mediante o materializar-se da recordação.

Em nota à 7ª edição de Mensagem de Pessoa, editada pela Ática, David

Mourão-Ferreira comenta: “Toda a obra de Fernando Pessoa é, porém, comparável

àquele deus bifronte (a que ele próprio algures se referiu), com uma face que olha o

passado e outra que olha para o futuro.”14 Jacinto do Prado Coelho vai mais longe e

sugere como, para “Fernando Pessoa, recordar não é reviver, é apenas verificar com

dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não nos é permitido recuperar.”15

Na paisagem saudosa, Pessoa, então, parece estar perfeitamente inscrito, ainda

que na sua poética ele não faça um uso insistente, estrondoso, do termo saudade, e essa

não seja apresentada como uma componente fundamental16.

Apesar do uso limitado do termo, é indiscutível que a poesia da saudade entra,

por direito, na obra pessoana. Desvinculando-se de tudo o que lhe confere o estatuto de

emblema nacional, não deixa de ser o ponto fulcral em torno do qual se colocam

perspectivas diferentes, à luz daquele carácter peculiar da saudade, fundado na situação

vital: o momento existencial.

Isto deve-se, provavelmente, ao facto de que a considerou já muito “explorada”

pelo movimento saudosista, encarnado por Teixeira de Pascoes, que teve entre os seus

seguidores entusiásticos, durante uns tempos, o mesmo Pessoa na qualidade de

colaborador da revista A Águia, manifestação da ideologia representada pelo grupo de

Renascença Portuguesa.

Este grupo de escritores, animado pela proclamação da República de 5 Outubro

de 1910 (alguns anos mais tarde Pessoa estimará o evento totalmente prejudicial para o

14 David Mourão-Ferreira, «Nota» in Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa, Ática, 1978, p. 11 15 Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa / São Paulo,

Editorial Verbo, 1998, p. 89. 16 “O vocábulo saudade […] está longe de constituir-se num dos seus bordões líricos

polarizadores frequentes. Com efeito, ao alongo dos 11 volumes que constituem a sua obra poética publicada [dado que Alfredo Antunes escrevia em 1983, os 11 volumes de poesia a que se referia eram, portanto, os da editora Ática], esta palavra aparece apenas 59 vezes; e ainda assim, na maioria dos casos, na forma plural: saudades – o que é muito menos significativo.”, Alfredo Antunes, Saudade e Profetismo em Fernando Pessoa – Elementos para uma antropologia filosófica, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1983, p. 109.

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destino de todo o país), a partir da cidade do Porto, tentou redescobrir o valor da acção

nacional através do profetismo de um ressurgimento em nome daquela alma lusitana,

cujo núcleo teria sido representado pelo próprio sentimento de saudade.17

Pessoa sentiu-se atraído pelo movimento e integra-o publicamente em 1912,

mas a sua participação, embora até então confiante, não é tão incondicional como a do

filósofo “criacionista” Leonardo Coimbra, de Álvaro Pinto, e especialmente de

Pascoaes. Na verdade, a experiência acaba em 1914 por causa da recusa de publicar na

revista o seu “drama estático” O Marinheiro.

Embora não faltem rigorosos registos pregadores de uma saudade pessoana na

qual a fenomenologia também é de uma lonjura presente “do que me è presente”18, em

Saudade e profetismo em Fernando Pessoa, livro de 1983 que viria a ser referência

incontestável para os estudos pessoanos, Alfredo Antunes, na linha da intuição de

David Mourão-Ferreira, canaliza a chama fria da saudade perfilhada por Pessoa em

duas correntes aglutinadoras: a saudade do passado e a saudade do futuro.

A primeira coincide com a celebração entristecida, não tanto da infância

biográfica ou histórica, quanto da infância simbólica, metafísica, transcendentalizada,

interpretada quase como uma condição Pré-adâmica, numa palavra, mítica, comum a

qualquer indivíduo; o reino do jogo, do imaginário e do imagístico da inocência, da

pureza e da alegria; o rebuliço contagiante da criança sonhadora, lembrado e

contracenado em adulto no palco heteronímico19.

17 Como explicita António Quadros: “A Renascença Portuguesa traz consigo duas aspirações

fundamentais: a de portugalizar a República e concomitantemente reportugalizar a nação, levando o seu patriotismo natural da fase afectiva ou apaixonada despertada pelo Ultimatum e pelos fugazes entusiasmos revolucionários até a um estádio superior de consciência, de lucidez e de convicção reflectida e fundamentada (o que correspondia aos desejos expressos por Fernando Pessoa no texto já citado); e a de dar um conteúdo espiritualista (à falta de melhor palavra), um conteúdo axiológico, teleológico e ético ao ideário republicano triunfante, visto como pequenamente positivista e anticlerical, sem alternativa para o fundo religioso do povo português, ainda que tal conteúdo tivesse laivos de livre-pensamento ou de heterodoxia relativamente ao catolicismo ortodoxo (e também aqui o espiritualismo heterodoxo de Pessoa vai ao encontro de heterodoxo espiritualismo de um Pascoaes, de um Leonardo ou de um Cortesão).”, António Quadros, «Situação de Fernando Pessoa na cultura portuguesa», in Fernando Pessoa, Obra poética e em prosa, Organização, introduções e notas de António Quadros, Porto, 3 vols, vol. II, Prosa 1, Lello & Irmão, 1986, p. 20.

18 Cf. António Braz Teixeira, «Breve nota sobre a saudade no Livro do Desassossego», in Nova Águia – Revista de Cultura para o Século XXI, Sintra, Nova Águia & Zéfiro, Nº 7 -1º Semestre, 2011, pp. 67-68; Bruno Béu de Carvalho, «Fernando Pessoa e a saudade do presente – uma aproximação», in Cultura Entre Cultura, op. cit., pp. 21-31.

19 “Ó meu passado de infância, boneco que me partiram! / Não poder viajar para o passado, para aquela casa e aquela afeição, / E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!”, Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Menor. Edição de Cleonice Berardinelli, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 66; “Quando era criança / Vivi, sem

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O outro ramo da saudade é o estuário da consciência expectante, um antegostar

imaginado, com base em experiências anteriores; um anseio de futuro tantas vezes

indissociável do pesar por aquilo em vias de acontecer e prestes a ser perdido, noutros

momentos convertível numa fé no porvir como horizonte de esperança.20

Supondo que se possa colocar uma linha divisória explícita entre a experiência

poética e filosófica, acreditamos, no entanto que, em Fernando Pessoa, a reflexão

acerca do sujeito requer tomar em consideração o sentimento de saudade com todas as

suas implicações, uma vez que este seja subsumido como o único campo possível,

dentro do qual a poesia se orienta.

Uma maneira equivalente e metafórica de descrevê-lo, seria uma estrada que o

poeta atravessa por coincidências históricas e culturais responsáveis pelas influências

do seu estilo poético, mas da qual, cedo, tenta afastar-se traçando um roteiro totalmente

pessoal. O novo itinerário levá-lo-á pelos meandros duma saudade, a ser interpretado

como um zumbido de fundo, e não como um gorgolejo dum vórtice dentro do qual

tudo converge e se perde na definibilidade do sentimento à maneira de Pascoaes.

Este murmúrio ecoa no microcosmo-sujeito. Acompanha ritmicamente a

transfiguração do recordar em símbolo de uma individualidade perdida já no simples

propósito de a conceber. Mesmo porque já e desde sempre perdida, Pessoa cultiva uma

forte afecção nostálgica no que respeita às lembranças da infância e alimenta através

daquelas, não apenas uma nostalgia dos momentos felizes irrecuperáveis, como

também uma análise, que faz da recordação um dispositivo de reintegração da natureza saber, / Só para hoje ter / Aquella lembrança. / E hoje que sinto aquilo que fui. / Minha vida flue, / Feita do que minto, / Mas nesta prisão, / Livro unico, leio / O sorriso alheio / De quem fui então.”, BNP/E3, 118-29r; cf. Fernando Pessoa, Poemas de Fernando Pessoa 1931-1933, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. I, Tomo IV. Edição de Ivo Castro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 159; “Quando as crianças brincam / E eu as oiço brincar, / Qualquer coisa em minha alma / Começa a se alegrar. / E toda aquella infância / Que não tive me vem, / Numa onda de alegria / Que não foi de ninguém. / Se quem fui é enigma, / E quem serei visão, /Quem sou ao menos sinta / Isto no coração.”, BNP/E3, 118-14r; cf. Ibidem, 135.

20 “Saudoso já d’este verão que vejo. / Lagrimas para as flores d’elle emprego / Na lembrança invertida / De quando hei de perdel-las.”, BNP/E3, 51-99r; cf. Idem, Poemas de Ricardo Reis, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. III, Edição de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, pp. 73-74; “Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li. / Quero pensar, mas doe-me o que irei concluir. / O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir / É tudo uma cousa como qualquer cousa que já vi.”, BNP/E3, 69-1r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa 1915-1920, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. I, Tomo II. Edição de João Dionísio, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 127; “Tenho em mim como uma bruma / Que nada é nem contem /A saudade de coisa nenhuma, / O desejo de qualquer bem. / Sou envolvido por ela /Como por um nevoeiro /E vejo luzir a última estrela /Por cima da ponta do meu cinzeiro.”, BNP/E3, 33-33r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa – 1934-1935, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. I, Tomo V. Edição de Luís Prista, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, p. 94.

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do sujeito, pendurado entre o seu desejo de identidade, entre a temporalidade colhida

como fluxo do devir e entre a mesma lembrança, impasse e reencontro da

individualidade extraviada, evaporada.

A frequência com que Pessoa se refere comovidamente ao passado 21, isto é, a

uma época irremediavelmente desaparecida, conduziu como referido, à preparação em

idade adulta de um cancioneiro das voltas abertamente apologéticas a favor de uma

meninice vista como reino d’encanto e da inocência, no qual se descobrem os

benefícios da ingenuidade, em contraposição a um mundo de adultos, impregnado pela

proliferação de leis e normas comportamentais, edificado sob o pressuposto da

objectividade e realismo. Um mundo infinitamente menos atraente respeitante ao

primeiro, devido a um progressivo desapego da esfera do fantástico; sendo este último,

local onde não se registam divisões entre o possível e o impossível e a verdade é

sempre relativa não necessitando do critério da evidência. Onde a propensão, enraizada

em muitas crianças, a cultivar o instinto fantasioso de circundar-se de amigos

imaginários inventados por diversão – típico dos seus jocosos deleites de interacção

com o outro – foi para Pessoa, como acenámos, uma intrincadíssima experiência

literária, que almejava impulsionar além dos confins do engano artístico.

Pessoa era vinculado a tudo isto, como o admite José Gil: “De certo modo,

Fernando Pessoa nunca deixou morrer nele o poder infantil de devir outro […].”22 A

pueril exuberância lúdico-imaginária, focada na atitude de reelaborar e repovoar de

modo fantástico toda a realidade, é segundo o estudioso, no caso do nosso poeta,

deveras um presságio de uma autêntica revolução coperniciana que investe os

fundamentos da sua interioridade, enquanto um efectivo “plano virtual de consistência,

ou de imanência, onde se actualizam os heterónimos”23, “condição de todos os

devires”24 pois a criação de um heterónimo, ou a passagem de um heterónimo para

outro implica sempre um mergulhar na infância, um devir criança25.

21 “[...] tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas, no passado que não

sei o que é, fenómenos puramente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo.”, Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, volume XII, Tomo I, Edição de Jerónimo Pizarro, Imprensa-Nacional-Casa da Moeda, 2010, p. 329.

22 José Gil, Diferença e negação na obra de Fernando Pessoa, Lisboa, Relógio D’Água, 1999, p. 87.

23 Ibidem, p. 94. 24 Ibidem, p 92. 25 Cf. Ibidem.

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Como consequência, os três grandes heterónimos principais surgem como os

três amplos e compenetráveis olhares exteriores com os quais Pessoa tenta recuperar o

olhar simples e transparente da infância perdida26.

Soares no seu Livro, bem que inelutavelmente denuncia: “O tempo! O passado!

Aí algo, uma voz, um canto, um perfume occasional levanta em minha alma o panno

de bôca das minhas recordações... Aquillo que fui e nunca mais serei! Aquillo que tive,

e não tornarei a ter!”27, no entanto prontifica-se a sentenciar que “Deus creou-me para

creança, e deixou-me sempre creança.”28 Noutras palavras, é apenas em virtude do

manter da condição de eterno rapaz, subtraindo a infância dum quadro temporal de

ordem cronológica, que Pessoa-Soares pode, portanto, ambicionar o milagre de

preservar o espírito puro com o qual essa, na qualidade de “sonho que se tece”,

promove a difusão de “outros espaços onde se movem outras personagens com outras

emoções”29 e onde se desenrola o jogo da impersonificação do Outro.

Ter evocado em mais duma ocasião o nome do “bardo vidente das subtilezas da

Natureza”, de acordo com a bela escolha de palavras de Pedro Teixeira da Mota,

originário de Amarante, sem lhe ter consagrado um adequado estudo retrospectivo,

induz-nos a modular com maior perícia alguns dos aspectos mais importantes da

interpretação pascoalina do sentimento da saudade.

Joaquim Teixeira de Pascoaes viveu sempre para a escrita, numa expansão

tremenda de sentimentos, imaginação e consciência, animando a natureza visível e

invisível, pressentido em tudo e no todo, instintos, emoções e princípios, uma Unidade

universal.

Entre os textos doutrinários de Pascoaes, alguns proferidos em conferências

que, sem serem tão flamejantes na retórica, mesmo assim acenderam aspirações,

libertavam comoções e iluminavam, O Génio português na sua expressão filosófica,

poética e religiosa, de 1912-1913 (bem aprofundado em 1918-1919) com Os poetas

Lusíadas), é deveras indicativo acerca das qualidades e especificidades da alma

lusitana, da sua língua e dos seus poetas, na Europa e no resto do Mundo. Aí enuncia

26 Cf. Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado – Leitura estructurante do drama em gente,

Lisboa, Gradiva, 2003, p. 123. 27 BNP/E3, 5-76r e 77r; cf. Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit., p 106. 28 BNP/E3, 1-37r; cf. Ibidem, p. 205 29 José Gil, Diferença e negação na obra de Fernando Pessoa, op. cit., p. 93.

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os alicerces saudosistas da alma portuguesa: o desejo é a parte material e a lembrança,

a parte espiritual da Saudade.

A saudade que Pascoaes define sempre como um misto de lembrança e

esperança (ou lembrança e desejo, dor e desejo), não corresponde ao sentimento da

perda de um objecto e ao desejo do seu retorno, mas à atracção do que foi perdido sem

jamais ser possuído. É um desejo sem objecto determinado, “saudades de tudo”, como

num verso de António Nobre. Aliás, aquilo que caracteriza o desejo e o distingue da

necessidade é a aparição, nele, do infinito, e nessa medida o desejo é desejo de tudo,

que se intensifica na sua realização. Diremos que a saudade aparece como uma força

poética, um princípio de poesia, a musa nocturna inspiradora:

Senhora da manhã vitoriosa E também do crepúsculo vencido. Ó senhora da noite misteriosa, Por quem ando, nas trevas, confundido. Perfil de Luz! Imagem religiosa! Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido! Corpo, que é alma escrava e dolorosa, Alma, que é corpo livre e redimido. Mulher perfeita em sonho e realidade. Aparição divina da Saudade...30

Universal, portanto, ela faz que na palavra do homem seja possível a ligação do

anterior ao futuro, do pré-verbal, caótico, informe, à criação, às formas; A saudade é

impulso vital, a origem do mundo como tensão entre morte e vida, Aion e Kronos que

comunicam, deixando da passagem um rasto que a palavra poética ilumina. A saudade

é a inteligência do desejo, o conhecimento de uma realidade não subjectiva, em que

tudo está em tudo, o finito contém o infinito e há coexistência ou até absorção das mais

variadas tradições, a que a poesia vai dando vida no seu processo de renovação

irrepreensível.

O apropriar-se da tradição aqui não significa fixação ou retrocesso no tempo,

mas recuperação pela memória tornada consciência, no presente, da qual há-de brotar

um rumo no porvir. “O homem transviado tem de voltar atrás, ao local seu conhecido,

para aí retomar a verdadeira via, o rumo que o levará ao seu destino. O que parece um

30 Teixeira de Pascoaes, Senhora da Noite/ Verbo Escuro, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 15.

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regresso não é mais, afinal, do que um avanço.”31 O passado vale enquanto energia

criadora, como o patenteia a conclusão pascoalina em Homenagem a António Nobre:

“A tradição e a revolução, o passado e o futuro em amorosa concordância, eis o nosso

ideal.”32

O verdadeiro sentido da história de Portugal, para Pascoaes, assenta na

Saudade, a qual abarca estruturalmente, em ilação presente, a lembrança do passado

que excita o desejo criador do futuro. Na fidelidade ao passado alimenta-se uma fé no

porvir; a Saudade é “a sagrada lembrança do Futuro”33.

Como doutrinador afecto à Saudade, Pascoaes vislumbra nela o seu poder de

referência, a protagonista da sua missão poética e patriótica, e a única força propulsora

capaz de dar aos portugueses a consciência da sua personalidade lusitana e humana.34

No íntimo deste pensamento metafísico, tomou forma um pensamento nacional

e nacionalista que exige extrair da história de Portugal um perfil espiritual susceptível

de regenerar a pátria de um longo período de desvario e erro, isto é, de um prolongado

período decadentista.

Torna-se assim patente, por Miguel Real, que “a intenção nacionalista de

Teixeira de Pascoaes reside na conversão do espírito decadente português num espírito

glorioso e triunfante, heróico de cariz exemplar para os outros povos europeus, e, deste

modo, na reabilitação da dignificação da imagem de Portugal por si própria.”35

O que Teixeira de Pascoaes propõe e com ele o grupo de intelectuais que

apoiavam o seu projecto, é fundamentalmente uma “refundação de Portugal”, um

retorno às “fontes originárias da sua vida histórica”, para aí se encontrar o húmus pátrio

cujas qualidades permita seguir a verdadeira via nacional. Sob o aspecto pedagógico, é

de igual modo é necessário abandonar o positivismo cientista do experimentalismo

europeu com predomínio das ciências naturais e técnicas, e retornar à antiga escala

axiológica onde dominavam, prioritária e privilegiadamente, os valores morais e

nacionais. “Duas grandes qualidades possui o povo português: O Génio Aventureiro e

31 Idem, Arte de Ser Português, Lisboa, Edições Roger Delraux, 1978, p. 19. 32 Idem, «Homenagem a António Nobre in Idem», in Cadernos do Tâmega, 6, 1991, p. 69. 33 Idem, Regresso ao Paraíso, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986, p. 112. 34 Cf. Idem, A Era Lusíada in Idem, A Saudade e o Saudosismo: Dispersos e Opúsculos,

Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p. 156. 35 Miguel Real, «O perfil de Portugal segundo Teixeira de Pascoaes», in AA. VV., Nova Águia

– Revista de Cultura para o Século XXI, Sintra, Nova Águia & Zéfiro, Nº 4 – 2º Semestre, 2009, p. 45.

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38

o Temperamento Messiânico […]”36, aventura criadora do futuro e esperança

messiânica com cíclico ressurgimento do passado, passado e futuro unidos pela ponte

emotiva da Saudade ou pelo que Pascoaes designa por “religião da Saudade”: Portugal

e “o Espírito Lusitano criarão uma Nova Era […], uma Nova Religião […] e uma Nova

Religião quer dizer uma Nova Arte […], uma Nova Filosofia e um Novo Estado.”37

Para condensar de uma vez por todas a linha mestra do vasto e compósito

programa de renascença cultural alimentado pelo visionarismo pascoalino, pedimos

auxílio às palavras de Paulo Borges, que no seu ensaio Índias espirituais e ilusão em

Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa: Portugal como centro do descentramento e

re-orientação do velho mundo Europeu-ocidental salienta que:

O renascimento da nação, entendido como reintegração da alma nacional “na sua intimidade e natureza originária”, cumprindo “o seu destino civilizador” e não-religioso – sendo esta “nova religião” “a ansiedade poética das almas para a perfeição moral, para a beleza eterna e para o mistério da Vida” sob a forma “própria e original” da “Saudade” – processa-se pela demanda de uma “Índia” espiritual onde as Descobertas marítimas se desdobram numa odisseia imaterial conduzida pela aspiração saudosa.38

O respeito pelo passado cultural e pela terra – que configuram a identidade de

uma história e o génio de um povo – será o responsável pela abertura a um futuro,

preconizado como horizonte de esperança, também por Fernando Pessoa, numa altura

em que já se tinha concretizado a fractura com o organigrama de Renascença

Portuguesa.

Com efeito, Pessoa, embora contraponha ao conceito de sentimento-ideia e de

emoção reflectido por Pascoaes, a ideação complexa, ou seja, uma poesia (vaga, subtil

e complexa) e procure o equilíbrio entre objectividade e subjectividade subjacente às

noções de nitidez, plasticidade e imaginação, prefira um Paganismo à Grega liberto do

jugo de Roma e da Igreja Católica à conciliação do naturalismo pagão com o

espiritualismo cristão e, enfim, substitua o “Camões colectivo” sonhado por Pascoaes,

com o “Bandarra colectivo”, apelando à substituição de Fátima por Trancoso e

36 Teixeira de Pascoaes, O Génio Português – Na Sua Expressão Filosófica, Poética e

Religiosa, Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1913, p. 10. 37 Idem, O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1912, p. 10. 38 Paulo Borges, «Índias espirituais e Ilusão em Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa ou de

Portugal como centro de descentramento e re-Orientação do Velho Mundo europeu-ocidental», in Idem, Uma visão armilar do mundo – A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010, pp. 68-69.

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39

defendendo a perspectiva de um “sebastianismo racional”, como diz numa carta a

Casais Monteiro, prossegue o projecto de Pascoaes39, não deixando de se mover na

esfera do neoplatonismo e da saudade de uma pátria oculta que nos parece perseverar,

como uma marca modernista, já desde a influência das leituras dos poetas metafísicos

ingleses da sua juventude e na poesia lavrada em inglês.

Para parcial confirmação desta tese, vejam-se os discursos apologéticos em prol

de Pascoaes, contidos em dois textos pessoanos posteriores ao mencionado afastamento

do círculo dos intelectuais da Águia.

O primeiro é de 1915. É o fragmento inicial de um escrito, contemporâneo ao

advento de Orpheu, de intervenção política que não chega sequer a ser completado,

publicado só postumamente com o título Carta a Um Herói Estúpido. Pessoa organiza

vários esboços desta carta em “reacção” à chegada de um herói de guerra, chamado

Francisco Xavier de Aragão que lutou, no Sul de Angola, em Dezembro de 1914,

contra as tropas alemãs que invadiram o território, então colónia Portuguesa. Pessoa

terá lido a notícia do regresso do herói e da sua respectiva entrevista ao jornal A

Capital, de 24 de Agosto de 1915. Nela, Aragão fala do seu cativeiro de sete meses na

cidade angolana de Naulila, com o explícito fim de propugnar a entrada de Portugal na

Grande Guerra ao lado dos Aliados para vingar a afronta alemã. Leiamos:

Acontece que, enquanto estas sinistras coisas se passam nas ruas e nas praças, outras

se preparam, lentamente, na divina sombra das almas. Assim é que, pouco tempo

depois de proclamada a República, apareceu no Porto a “Renascença Portuguesa”.

Nucleou essa instituição florescente em torno ao alto pensamento português do Poeta

Teixeira de Pascoaes. Desviou-se depois, é certo, do seu nítido primeiro intuito.

Abandonou a flagrante intenção portuguesa com que começara. Mas no fundo essa

intenção ainda existe, e enquanto exista a grande Alma lusitana de Pascoaes, tal

corrente, creio, existirá. Sem plena consciência, é certo, mas com um sagrado instinto

patriótico, Pascoaes e os que o seguiram procuraram chegar a um conceito português

da Vida. É a primeira tentativa que no género se fez em Portugal. Os poetas da

“Renascença” puseram-se a elaborar — como poetas, por certo, mas pelos poetas é

que estas coisas começam — uma atitude perante o sistema do Universo, que se

revelasse portuguesa inteiramente.

39 Cf. Cf. Luís Filipe B. Teixeira, «Pascoaes/Pessoa: A origem de uma divergência ou o

caminho-de-ferro da Saudade ao Transcendentalismo», in Idem, Pensar Pessoa, Porto, Lello Editores, 1997, p. 53.

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40

Com efeito, não há outro problema hoje de mais importância do que o de criar uma

alma portuguesa. A antiga alma nacional, mesmo que ainda existisse, já não servia. E

preciso, para que haja um Portugal Novo, haver uma Nova Alma Portuguesa. Para que

possa haver uma política nacional, uma cultura nacional, qualquer coisa nacional, seja

o que for, o primeiro passo a dar é espiritual, é criar aquela fonte nacional donde essas

coisas todas, depois inevitavelmente partirão.40

O segundo testemunho, presumivelmente dos meses finais de 1914, é o excerto

conclusivo de um documento intitulado O Sebastianismo – sua renascença, e é, se

possível, uma fonte ainda mais tangível da profunda admiração nutrida pela

extraordinária carga transcendental da Saudade pascoalina:

A divinização da Saudade. Pascoaes está creando maiores cousas, talvez, do que

elle proprio mede e julga. A alma lusitana está grávida de divino.41

[BNP/ E3, 125A-84v]

Os 14 volumes da autoria de Teixeira de Pascoaes, albergados actualmente na

Biblioteca Particular de Fernando Pessoa e muitos deles publicados nas décadas dos

anos 20 e 30, revelam, como o interesse do poeta de Mensagem junto do grande teórico

do saudosismo não foi extemporâneo, não se limitando apenas aos anos em que pouco

lidava com o aparecimento das primeiras vanguardas da literatura portuguesa.

40 Fernando Pessoa, Carta a um Herói Estúpido, Prefácio, estabelecimento do texto e notas,

Jerónimo Pizarro, Lisboa, Ática, 2010, pp. 35-36. 41 Idem, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional, Recolha de textos de Maria Isabel

Rocheta e Maria Paula Morão, introdução organizada por Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1979, p. 51.

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41

1.2. O prazer dolorido da ricordanza: Leopardi e Pessoa

Com as devidas proporções e as necessárias distinções do caso, é possível

sustentar que um interesse de similar magnitude terá ocorrido também com a

assimilação da obra do maior expoente da escola lírico-subjectiva do romantismo

italiano, extremamente próxima do complexo enredo emocional e poiético associado à

instância idiossincrática luso-galega da Saudade: a de Giacomo Leopardi.

É tendo em conta o dolorido afinco leopardiano em sondar a separação daquele

Eu que todos nós fomos outrora, facto que roga a que nos detenhamos em alguns dos

factores de adjacência entre Pessoa e Leopardi.

Um bom ponto de partida talvez seja sobressair a presença de dois livros da

autoria do pensador originário de Recanati, precisamente uma colectânea de poemas

em língua italiana42 e uma edição francesa43 da sua poesia completa, com abundantes

marcas de leitura, todavia não atribuíveis ao punho de Pessoa.

Atesta, depois, a incidência de Leopardi no espólio pessoano, uma sucessão de

menções directas datáveis entre a segunda e a terceira década do século passado: 1) por

duas vezes o nome do poeta italiano é integrado no Educação do Estóico do Barão de

42 Giacomo Leopardi, Conti scelti: batracomiomachia ed estratto dai paralipomeni. Con com-

menti del professore Raffaello Fornaciari, 9.ª tiratura, Firenze, G. Barbera, 1924 (CFP, 8-315). 43 Idem, Poésies complètes: Dialogue du passant et du marchand d’almanachs; Dialogue de la

nature et d’un islandais; Eloge des oiseaux; Dialogue de Malambrun et de Farfarello; Dialogue de la nature et d’une âme; Pensées choisies. Traduction inédite de Victor Orban. Notice biographique et bibliographique par Alphonse Séché. Paris, Louis-Michaud éditeur, 1909, «Bibliothèque des poètes français et étrangers» (CFP, 8-316).

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42

Teive. Nomeadamente, em dois trechos em inglês de semelhantes premissas

argumentativas.

Demonstrando conhecer a biografia do poeta italiano, Pessoa, no primeiro texto,

remete-se para Freud e, indirectamente, para a sua célebre teoria do nexo carência

sexual-psiconeurose para criticar uma tragicómica fórmula leopardiana negadora da

existência de Deus:

Leopardi This is one of the cases in which we must all be Freuds. It is impossible to leave out the sexual explanation, because that would be leaving Leopardi out of his own problem □ The worst of this sort of tragedy is that it is comic. It is not comic in the sense that Swinburne’s love-poems are comic. “I am shy with women: therefore there is no God” is highly unconvincing metaphysics.44

No documento que se segue, bastante mais extenso, o nome de Leopardi

aparece juntamente com o de Antero de Quental e Vigny, poeta, dramaturgo e filósofo,

ícone do pessimismo francês do século XIX.

O tom amargurado e ressentido do longo dactilografado, leva Richard Zenith a

argumentar que Pessoa imputa a Leopardi e aos outros dois poetas a atitude romântica,

de serem incapazes de conceber a realidade como algo situado fora deles próprios,

atribuindo essa atitude, no caso de Leopardi, à falta de relacionamento com o sexo

oposto45.

44 BNP/E3, 14C-44r; cf. Fernando Pessoa, A Educação do Stoico, Edição Crítica de Fernando

Pessoa, Série Maior, vol. IX. Edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007, p. 58. Os sinais utilizados na fixação deste texto e de outros escritos pessoanos aqui reproduzidos são: □ espaço deixado em branco.

45 Richard Zenith, «Post-mortem», in Barão de Teive, A Educação do Estóico, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 99.

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43

Three Pessimists. The three victims of the romantic illusion, and they are especially victims because none of them had the romantic temperament. All three were destined to be classicists, and, in their manner of writing, Leopardi always was, Vigny almost always, Quental only so in the perfect cast of his sonnets. The sonnet is non-classical, however, though, owing to its epigrammatic basis, it should be so. All three were thinkers, Quental most of all, for he head real metaphysical ability, Leopardi afterwards, Vigny last, but sill far ahead in that respect of the other French romantics, with whom, naturally, he should be compared in that respect.46

2) De algum modo, é-lhe equivalente um fragmento do Livro do Desassossego

alegadamente de 1929, coevo do anterior.

Veja-se esta passagem do segundo parágrafo: “Os que choram o mal do mundo

são isolados — não choram senão o proprio. Um Leopardi, um Anthero não teem

amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo

é um cárcere.”47

Enfim é preciso assinalar um poema de 1934, cujo título é um mais que alusivo

Canto a Leopardi.

46 BNP/E3, 14D-23r; cf. Fernando Pessoa, A Educação do Stoico, op. cit., p. 60. 47 BNP/E3, 1-69r; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit., p. 184.

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44

BNP/ E3, 33-34r

Canto a Leopardi

Ah, mas da voz examine pranteia O coração afflicto respondendo: «Se é falsa a idéa, quem me deu a idéa? Se não ha nem bondade nem justiça Porque é que anseia o coração na liça Os seus inuteis mytos defendendo? Se é falso crer num deus ou num destino Que saiba o que é o coração humano, Porque ha o humano coração e o tino Que tem do bem e o mal? Ah, se é insano Querer justiça, porque qu’rer justiça Querer o bem, para que o bem querer? Que maldade, que □ , que injustiça Nos fez p’ra crer, se não devemos crer? Se o dubio e incerto mundo, Se a vida transitória Têm noutra parte o íntimo e profundo Sentido, e o quadro ultimo da historia, Porque há um mundo transitorio e incerto Onde ando por incerteza e transição, Hoje um mal, uma dor, e □ , aberto Um só dorido coração?

35r

A paysagem de gelo interior Da vida, mixto vão de gosto e dor, Mas, porque mixto, má, e porque má □ E □ a mente Contempla em êxtase sem fé nem calma O abysmo que é o mundo para a alma – O todo – sta □ Assim, na noite abstracta da Razão, Inutilmente, majestosamente, Dialoga comsigo o coração, Falla alto a si mesma a mente; E não ha paz nem conclusão, Tudo é como se fôra inexistente.

[Cf. PESSOA, Fernando, Poemas de Fernando Pessoa – 1934-1935, op. cit., pp. 96-97.]

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45

Antonio Tabucchi, no seu ensaio Fernando Pessoa leitor de Giacomo Leopardi,

sublinha a assimilação, no escritor português, de três temáticas principais de timbre

leopardiano48, todas subjacentes à obra introduzida:

a) o conflito Natureza-Razão imperante no mundo físico (emergente na fase da

estética leopardiana correspondente ao assim chamado pessimismo

histórico49).

b) o conceito de tédio, (pilar do consequente pessimismo cósmico50).

c) a ligação Infinito-Mistério (tão patente no poema L’infinito51).

48 Antonio Tabucchi, «Fernando Pessoa leitor de Giacomo Leopardi», in Estudos Italianos em

Portugal, Lisboa, Instituto Italiano de Cultura, Nº 48-49-50, 1985-1986-1987, pp. 91-105. Cf. também Mariagrazia Russo, Um só dorido coração – Implicazioni leopardiane nella cultura letteraria di lingua portoghese, Viterbo, Sette Città, 2003, pp. 160-162.

49 pessimismo histórico (1816-1820): a antítese da natureza-razão. Investigando a causa da miséria humana, Leopardi segue o ensinamento de Rousseau, e afirma, com a sua “Teoria das Ilusões”, que os homens eram felizes somente na era primitiva ou na antiguidade, enquanto viviam em estreito contacto com a natureza. Ali tudo era espontaneidade, autenticidade, vitalidade, mas eles quiseram sair dessa feliz ignorância e inocência instintiva, fazendo uso da razão e das leis mecânicas que regulam a vida. Foram em busca do verdadeiro da nossa condição terrena. As conquistas da razão foram todavia catastróficas: a razão denunciou a vaidade das ilusões, de que a natureza, entendida como entidade positiva e benéfica e benevolente que, se não for desviada ou contrastada por outras forças, conduziria os homens à felicidade. A história dos homens, então, adverte Leopardi, não é progresso, mas uma decadência de um estado de inconsciente felicidade natural, a um estado de dor consciente, descoberto pela razão. O que tem acontecido na história da humanidade, inevitavelmente, se repete, uma espécie de milagre na história de cada indivíduo. Da idade da felicidade inconsciente, que é a da infância, da adolescência e da juventude, em que tudo sorri à sua volta e o mundo se mostra cheio de magia e promessas, sai-se para entrar na idade da razão, na idade do árido verdadeiro, da dor consciente e incurável.

50 Pessimismo cósmico (1823-1830): antítese da natureza e do homem, despoletada depois de 1820. Coincide com a “conversão” de Leopardi do belo à filosofia. Leopardi redefine drasticamente e distorce a sua visão fenoménica da primeira fase. A responsabilidade da miséria humana recai agora inteiramente sobre a natureza, entretanto redefinida de “madrasta”, que determina a tendência humana ao prazer e incute nos homens o amor próprio e a necessidade de felicidade, sem de modo algum responder a esta necessidade; aliás contribui fortemente para tornar a vida humana um conjunto de decepções, de sofrimentos. Assim como Schopenhauer, a vida em Leopardi oscila imparável como um pêndulo entre a dor e o tédio num eterno vésper sem crepúsculo restaurador, porque se a dor não exclui no homem a esperança e a possibilidade de superá-la, o tédio é a angústia e o desespero posterior à renúncia de qualquer esperança.

51 “Sempre caro mi fu quest'ermo colle, / e questa siepe, che da tanta parte / dell'ultimo orizzonte il guardo esclude. / Ma sedendo e mirando, interminati / spazi di là da quella, e sovrumani / silenzi, e profondissima quïete / io nel pensier mi fingo, ove per poco / il cor non si spaura. E come il vento / odo stormir tra queste piante, io quello / infinito silenzio a questa voce / vo comparando: e mi sovvien l'eterno, / e le morte stagioni, e la presente / e viva, e il suon di lei. Così tra questa |immensità s'annega il pensier mio: / e il naufragar m'è dolce in questo mare.”, Giacomo Leopardi, Canti, Milano, Garzanti, 2009, pp. 119-120. “Il movimento che nel primo verso unisce il tempo indeterminato di un’affezione antica e lo sguardo sulla siepe si trasforma – grazie al limite che escludendo annuncia e nascondendo dispiega – in un pensiero dell’oltre: un pensiero che ha la finzione come suo ritmo («Io nel pensier mi fingo.»). Le figure di un’appartenenza interiore – il colle, la siepe – mostrano il legame profondo con l’oltre che li costituisce. La finzione esplora, degli spazi, dei silenzi e della quiete, l’estremo confine con l’impossibile e con l’insondabile, la sognia di uno sprofondamento nell’infigurabile, nel non rappresentabile: si spalanca una cosmologia nella quale gli spazi in fuga

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46

Desviando o trajecto comparativo Pessoa-Leopardi do primeiro ao segundo elo

do confronto, parámos diante d’algumas significativas permeabilidades entre a

inalienável intercalação de desejo e lembrança da alma portuguesa, como vimos

peculiar em Pessoa, e “espargata” entre o real e o conceito do real, entre o prazer e o

objecto de prazer, entre o desejo e o objecto de desejo, abundantemente debatida pelo

poeta e pensador italiano no Zibaldone di Pensieri, cume de uma “prosa nova

metodologicamente guiada por uma cultura clássica aberta às provocações

significativas da modernidade romântica.”52

Neste gigantesco diário pessoal de 3619 páginas, publicado postumamente em

1898, cujo fragmento mais antigo é de 1817 e o mais recente é de 1832, Leopardi reúne

uma miscelânea de anotações filosóficas, esquemas, reflexões morais, juízos estéticos,

um dossier preparatório de parte dos 111 aforismos, concernentes a umas das suas

derradeiras empresas editoriais e pequenos idílios.

Compõe-se de folhas autógrafas, redigidas apenas para uso particular, que

desvendam um homem, um poeta, um erudito, um esteta e um crítico, já extremamente

intempestivo, de acordo com a renomada acepção nietzschiana.

As meditações de Leopardi sobre o prazer, neste caderno de apontamentos

torrenciais, partem duma premissa: a raiz de qualquer movimento rumo ao prazer é o

“desejo de agradar” e não “um prazer” qualquer. Mais precisamente, é o que dá

conteúdo ao desejo e conduz a sua tensão. Contudo, é justamente a permanente

distância entre desejo e a sua “realização” a encalhar a abordagem lógica leopardiana, a

virá-la para o questionamento de cada ilusória satisfação, do ilimitado deste buraco

negro que é o desejo em si; o seu impossível apagamento. Os comentários extensos à

volta do prazer que inundam o Zibaldone desde o fragmento 165 ao 183 aproam a uma

conclusão embrionária em Julho de 1820:

divorano ogni limite («interminati»), i silenzi fluttuano al di sopra di ogni umana percezione («sovrumani», la quiete s’inabissa nell’assenza di ogni fremito, di ogni movimento («profondissima»).”, Antonio Prete, Finitudine e Infinito – Su Leopardi, Milano, Feltrinelli, 1998, p. 42.

52 Sílvio Castro, «Leopardi e Fernando Pessoa: projecto e anteprojecto do “livro único” no Zibaldone e no Livro do Desassossego, in Estudos Italianos em Portugal, Lisboa, Instituto Italiano de Cultura e Lisboa, Nova Série, Nº 4, 2009, p. 202.

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47

Conseguito un piacere, l’anima non cessa di desiderare il piacere, come non cessa mai di pensare, perché il pensiero e il desiderio del piacere sono due operazioni egualmente continue e inseparabili dalla sua esistenza.53

A impossibilidade de conter, circunscrever o prazer “em duração” e “em

extensão”, o impedimento de “colmatar” com um certo contentamento a demanda do

desejo, não elimina o desejo, ao contrário, fomenta um desejo maior: é uma condição

em que nunca se pode ter a experiência efectiva do estado de prazer, da sua

“plenitude”; uma condição oca, explicável somente acrescentando que a experiência

predestinada a preencher esse desejo, a experiência do infinito, é um fenómeno

“materialmente irrealizável”:

Il fatto è che quando l’anima desidera una cosa piacevole, desidera la soddisfazione di un suo desiderio infinito, desidera veramente il piacere, e non un tal piacere; ora nel fatto trovando un piacere particolare e non astratto, e che comprenda tutta l’estensione del piacere, ne segue che il suo desiderio non essendo soddisfatto di gran lunga, il piacere appena è piacere, perché non si tratta di una piccola ma di una somma inferiorità al desiderio e oltracciò alla speranza. E perciò tutti i piaceri debbono esser misti di dispiacere, come proviamo, perché l’anima nell’otternerli cerca avidamente quello che non può trovare, cioè una infinità di piacere, ossia la soddisfazione di un desirio illimitato.54

Neste jogo áspero, a imaginação, a “faculdade imaginativa”, funciona em dois

níveis: por um lado oferece ao desejo imagens de prazeres irreais, logo fecunda de

objectivos inatingíveis os caminhos do desejo, por outro, “remedia” à dramática

experiência da distância, propondo-se como lenitiva e compensatória, um oásis: “Il

piacere infinito che non si può trovare nella realtà, si trova così nella imaginazione,

dalla quale derivano la speranza, le illusioni ec.”55

Outro abrigo contra a incontrolável procura de prazeres é, para Leopardi, o

preservar-se na ignorância: no não-saber encontra-se a raiz da imaginação e da

esperança, transfigurada, tanto nesta obra monumental do génio italiano como em

outras mais juvenis, na efígie do puer, isto é, da criança ingénua, inocente, em

53 Giacomo Leopardi, Zibaldone di Pensieri, Milano, Mondadori, 2 vols., vol. I, 1983, p. 147,

fr. 183. 54 Ibidem, pp. 134-135, fr. 166-167. 55 Ibidem, p. 135, fr. 167.

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48

comunhão com o fenoménico56, criadora de universos fantásticos, como a entendia

Pessoa:

L'immaginazione come ho detto è il primo fonte della felicità umana. Quanto più questa regnerà nell'uomo, tanto più l'uomo sarà felice. Lo vediamo nei fanciulli. Ma questa non può regnare senza l'ignoranza, almeno una certa ignoranza come quella degli antichi [...] La speranza è infinita come il desiderio del piacere, ed ha di più la forza se non di soddisfar l'uomo, almeno di riempierlo di consolazione, e di mantenerlo in piena vita. La speranza propria dell'uomo, degli antichi, fanciulli, ignoranti, è quasi annullata per il moderno sapiente.57

Fitar com cognição a ilusão, subtrai à ilusão a sua força poiética, leva-a no

recinto das funções a usar e controlar. Arrasta a esperança na zona insidiosa das

ideologias, dos dogma: só o filósofo antigo, e as atitudes culturais derivadas dos efeitos

da sua “sabedoria” poderão reter a paixão dentro de dinâmicas também modernas.

Na modernidade persiste um vislumbre da imaginação dos antigos, um rasto

que a poesia tem testemunhado, e da qual algumas atitudes são a prova: por exemplo, o

gosto pelo indeterminado, o movimento do olhar para além do limite, procurando um

relacionamento com o infinito como extrema dilatação do tempo e do espaço; a

“curiosidade” de que fala Montesquieu, a “multiplicidade de sensações” que esconde

os limites duma sensação determinada e que “confunde a alma e a faz vaguear de

prazer em prazer sem aprofundar qualquer um”; “a maravilha” que “rende a alma

atónita, a abrange toda e a torna incapaz naquele momento de desejar”; e finalmente, a

56 “I fanciulli trovano il tutto nel nulla, gli uomini il nulla nel tutto.”, Ibidem, p. 304, fr. 527. “Il

sapere del poeta non è soltanto «divino», iniziale. Ma riflesso, secondo, derivato. Presuppone questo tempo divino, iniziale. Il tempo del puer. E però non solo lo presuppone, sì bene cerca di attingerlo. Fa dell’originario, dell’inconsapevole «stato divino» – che è del puer come della natura – il suono d’elezione. La poesia sorge solo in quanto si separa, si estranea da esso, e ne fa il suo passato sempre presente, sempre a venire.”, Raffaele Bruno, «Poesia e filosofia», in AA. VV, Poesia e Filosofia, Milano, FrancoAngeli, 2000, p. 25

57 Giacomo Leopardi, Zibaldone di Pensieri, op. cit., 136, fr. 169. “Considerato alla stregua dell’uomo naturale, il fanciullo leopardiano vive in una sorta di comunione con il mondo fenomenico, di cui scorge, dalla superiore prospettiva dell’entusiasmo, della passione, della comunicazione irrefrenabile delle proprie sensazioni, i legami più nascosti, i nessi analogici che l’espressione poética restituisce sulla página attraverso le immagini. Perché la fanciullezza […] è la condizione stessa del poetare; eppure questa insensibilità del fanciullo, che vive istintivamente a contatto com la natura; questa sua irrazionalità che collima com la fantasia; questa sua infanzia che ripete la più antica infanzia del mondo parlano, piuttosto che un habitat, di un habitus per molti aspetti al di qua dell’umano. Un habitus che lega l’infanzia, qualsiasi infanzia, all’istinto di una realtà senza storia, non costringibile tra le maglie della raison illuministica.”, Roberto Deidier, «Il fanciullo animale. Leopardi, Nietzsche e un’icona novecentesca», in AA. VV., Poesia e Filosofia, a cura di Raffaele Bruno, Milano, Franco Angeli, 2000, p. 106.

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novidade58. Em suma, as “variantes de um conhecimento desatado do conhecimento”,

como diria Antonio Prete59, num tempo não presente, isto é, na memória e na espera,

num tempo virtual.

Neste cenário hologramático, a “lembrança” (ricordanza), a “repetição”

e o que elas implicam, ou seja, a presença de ansiedade e jogo, de pesar e consolo, de

evocação e apagamento, compensam a ausência da percepção real do prazer.

A reflexão sobre a ausência do tempo do prazer, afecta as regiões da psique

onde a lembrança administra a sua soberania, que é o poder de empurrar para o

reconhecimento da poesia, de interromper as cadeias de sensações dolorosas, de tornar

a repetição num jogo, ou melhor, de colocar o sujeito dentro da ordem simbólica da

ficção, da narrativa.

A dissolução do prazer no passado e no futuro é uma espécie de reacção face ao

fracasso do desejo: a ilusão de “ter desfrutado” e a esperança do vir a desfrutar, é a

própria essência da diversão.

A esta valorização, substitutiva da efemeridade tácita no prazer, Leopardi chega

no final do Verão de 1824, precisamente no momento em que redige os Detti

58 “L’anima cercando il piacere in tutto, dove non lo trova, già non può esser soddisfatta. Dove

lo trova, abborre i confini per le sopraddette ragioni. Quindi vedendo la bella natura, ama che l'occhio si spazi quanto è possibile. La qual cosa il Montesquieu (Essai sur le goût, De la curiosité, p. 374. 375.) attribuisce alla curiosità. Male. La curiosità non è altro che una determinazione dell'anima a desiderare quel tal piacere, secondo quello che dirò poi. Perciò ella potrà esser la cagione immediata di questo effetto, (vale a dire che se l'anima non provasse piacere nella vista della campagna ec. non desidererebbe l'estensione di questa vista), ma non la primaria, nè questo effetto è speciale e proprio solamente delle cose che appartengono alla curiosità, ma di tutte le cose piacevoli, e perciò si può ben dire che la curiosità è cagione immediata del piacere che si prova vedendo una campagna, ma non di quel desiderio che questo piacere sia senza limiti. Eccetto in quanto ciascun desiderio di ciascun piacere può essere illimitato e perpetuo nell'anima, come il desiderio generale del piacere. Del rimanente alle volte l’anima desidererà ed effettivamente desidera una veduta ristretta e confinata in certi modi, come nelle situazioni romantiche. La cagione è la stessa, cioè il desiderio dell'infinito, perchè allora in luogo della vista, lavora l’immaginazione e il fantastico sottentra al reale. L’anima s’immagina quello che non vede, che quell'albero, quella siepe, quella torre gli nasconde, e va errando in uno spazio immaginario, e si figura cose che non potrebbe se la sua vista si estendesse da per tutto, perchè il reale escluderebbe l'immaginario. Quindi il piacere ch’io provava sempre da fanciullo, e anche ora nel vedere il cielo ec. attraverso una finestra, una porta, una casa passatoia, come chiamano. Al contrario la vastità e moltiplicità delle sensazioni diletta moltissimo l'anima. Ne deducono ch’ella è nata per il grande ec. Non è questa la ragione. Ma proviene da ciò, che la moltiplicità delle sensazioni, confonde l’anima, gl’impedisce di vedere i confini di ciascheduna, toglie l’esaurimento subitaneo del piacere, la fa errare d’un piacere in un altro senza poterne approfondare nessuno, e quindi si rassomiglia in certo modo a un piacere infinito. Parimente la vastità quando anche non sia moltiplice, occupa nell'anima un più grande spazio, ed è più difficilmente esauribile. La maraviglia similmente, rende l'anima attonita, l’occupa tutta e la rende incapace in quel momento di desiderare. Oltre che la novità (inerente alla maraviglia) è sempre grata all'anima, la cui maggior pena è la stanchezza dei piaceri particolari.”, Giacomo Leopardi, Zibaldone di Pensieri, op. cit., pp. 138-139, fr. 171-172.

59 Cf. Antonio Prete, Il pensiero poetante – Saggio su Leopardi, Milano, Feltrinelli, 2006, p. 21.

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memorabili di Filippo Ottonieri, talvez, entre o conjunto de obras das “Operette

morali”, uma das mais importantes, anómalas e menos conhecidas, enquanto no

Zibaldone, desde Janeiro de 1921, tende a vincar a essência do prazer vivido, apenas à

dimensão do futuro:

Rispondendo a uno che l’interrogò, qual fosse il peggior momento della vita umana, disse: eccetto il tempo del dolore, come eziandio del timore, io per me crederei che i peggiori momenti fossero quelli del piacere: perché la speranza e la rimembranza di questi momenti, le quali occupano il resto della vita, sono cose migliori e più dolci assai degli stessi diletti.60

A observação, aqui, aponta para o deslizar dos alegados “momentos de prazer”,

de acordo com um adiamento progressivo e extenuante do limiar do gozo, até à sua

inversão num tempo ilusório. Em outros termos, na assunção do tempo do prazer como

já acontecido, e na auto-convicção de que o evento aconteceu: a revisitação mnemónica

da diversão passada, torna-se a razão para a busca e a ideação de um novo gozo. O

momento da espera é a única sede do “prazer possível”, porque o prazer “não é nunca

passado nem presente, mas sempre e somente futuro”.61

Lembrança, como referida há pouco, o mais caro substantivo empregue pelo

poeta, reúne nos seus laços semânticos o que é onírico e o movimento que reabsorve,

dum fundo apagado ou perturbado, o tema da recordação. Em seguida, faz com que

impulsione outras imagens de diferente ordem categorial, permitindo recuperar do

interior a condição psicológica da adolescência. O Eu é então ser então catapultado

numa situação de ardente expectativa para o futuro, verdadeiro motor da existência

humana.

Algo de substancialmente análogo ocorre em Fernando Pessoa: nele é possível

comparar duas linhas de discurso subjacente ao tema da recordação. O primeiro tem

lugar numa dimensão onde a infância perdida segue um tempo diacrónico na qual os

eventos passados retornam como presente na memória do poeta que os revive como

parte integrante do seu próprio presente, átomos constituintes da sua individualidade,

onde a sua característica de instantes passados surge continuamente reconvertida num

60 Giacomo Leopardi, «Operette Morali», in Idem, Tutte le opere a cura di F. Flora, Milano,

Mondadori, vol. I, 1937, p. 159. 61 “Il piacere umano (così probabilmente quello di ogni essere vivente, in quell'ordine di cose

che noi conosciamo) si può dire ch'è sempre futuro, non è se non futuro, consiste solamente nel futuro.”, Ibidem, p. 306, fr. 532.

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presente necessário à identidade do instante vivido, sendo continuamente transformado

em tempo sincrónico. O segundo chama a si a recordação essencialmente como

perdida, como caída, como emblema de uma irremediável ausência da qual todo e

qualquer pensamento produzido para preenchê-la não faz mais que aumentar o nosso

sentimento de saudade, determinando uma condição existencial onde o sujeito se

encontra inserido, e de onde não é possível sair enquanto conatural ao próprio

pensamento, ao desejo humano de uma condição de preenchimento:

Leva me longe, meu suspiro fundo, Além do que deseja e que começa, Lá muito longe, onde o viver se esqueça Das formas metafísicas do mundo.62

Quer de uma forma, quer de outra, a recordação coloca em evidência a falta de

unidade do sujeito que se encontra sempre numa condição de suspensão entre a

disgregação da sua presumível individualidade no âmbito das memórias, que,

revelando-se como constitutivas, manifestam a fragilidade e a condição de queda da

qual, de agora em diante, irremediavelmente, o sujeito perdeu a sua identidade unitária

onde vive somente a recordação. O círculo da memória continua a produzir imagens de

identificação, elementos constitutivos, fragmentos a partir dos quais não existe mais

um todo unitário a que se possam referir.

Entre uma transformação e outra no âmago da recordação não há propriamente

continuação, carácter que assume todos os planos da recordação no seu interior, mas

passagem repentina, hiato, vazio onde existe ordem e muito menos linguagem. Este

salto representa continuamente a condição da qual caímos, o espaço sem lugar que

Pessoa vê como irremediavelmente perdido e de onde a recordação pode somente

prefigurar-se num indizível vazio que dissolve abruptamente a sua própria presença:

But when I ask what means that pageant I And would look at it suddenly, I lose The sense I had of seeing it, nor can try Again to look, nor hath my memory a use That seems recalling, save that it recalls

62 BNP/E3, 16-11r; cf.Fernando Pessoa, Poesie 1902-1914, edição Manuela Parreira da Silva,

Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 47.

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An emptiness of having seen those walls.63

A recordação permite aceder a um sistema de planos de existência que, em

simultâneo, representam o retorno do passado em conjunto com a criação do presente

na forma de um tornar-se recordação do próprio sujeito. Tal dá-se através de uma

sequência de intervalos, espaços não regulados, que permitem a deslocação das várias

posições quer seja no tempo diacrónico (a recordação da infância na medida em que há

uma nova ligação histórica com o passado), quer numa dimensão sincrónica onde o

passado é contemporaneamente o espaço presente.

Voltando à origem da nossa comparação e para fecharmos um círculo, todo o

conhecimento é um reconhecimento, uma reminiscência para Leopardi; tudo já

aconteceu. O jogo do estar no mundo já esgotou a sua imprevisibilidade e seus restos

espalham-se nesta sobrevivência que é a vida inercial. A arte é “coisa do passado”,

porque o prazer que gera é confiado a uma “repercussão ou reflexo da antiga imagem”.

O que conduz a lembrança ao castelo encantado das ilusões – “Il più solido

piacere di questa vita è il piacer vano delle illusioni”64, frisa Leopardi – é a lonjura: a

qual protege da adição ao instante saudoso e é um bálsamo pelo espírito:

Del resto la rimembranza quanto piú è lontana, e meno abituale, tanto piú innalza, stringe, addolora dolcemente, diletta l’anima, e fa piú viva, energica, profonda, sensibile, e fruttuosa impressione, perch’essendo piú lontana, è piú sottoposta all’illusione; e non essendo abituale né essa individualmente, né nel suo genere, va esente dall’influenza dell’assuefazione che indebolisce ogni sensazione.65

A fantasmagoria da produção simbólica ínsita nas ilusões, desmente os que

vêem nelas um apego, uma demissão. A distância não é somente uma distância

“interior”, a medida de um interstício em movimento desde a infância, é sobretudo um

desgaste dos contornos, a ausência da fonte de som, ou luz, uma não definição do

campo extensivo e cognitivo, uma ocultação de ordem geométrica.

A lonjura, o indefinido, o vago, que acompanham cada recordação, são na

mundividência leopardiana, conotações específicas e irremovíveis do “poético” e por

63 BNP/E3, 49A4-8v e 48D-41v; cf. Fernando Pessoa, Poemas ingleses, Edição Crítica de

Fernando Pessoa, Série Maior, vol. V, Tomo I. Edição de João Dionísio, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, p. 77.

64 Giacomo Leopardi, Zibaldone di Pensieri, op. cit., p. 52, fr. 51. 65 Ibidem, vol. II, p. 673, fr. 1860-1861.

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sua vez o poético, a língua da poesia, fura o horror do irreversível e devolve o facto

acontecido em palavra, o jamais em ritmo, o tempo-cinza em tempo do canto; acarreta

o pensamento até ao extremo do seu naufrágio na ultrafilosofia, – a feliz divisa que

Leopardi consigna num fragmento a 7 de Junho de 1820 – que outra coisa não é senão

o conhecimento que colhe o intieiro e intimo66.

Nesta noção de “inteiro”, conflui a não-separação entre superfície e

profundidade, entre essência e ressonância, entre natureza e forma. O mesmo se

verifica em relação a Fernando Pessoa, quando nos alerta com os notórios versos de

Ricardo Reis, o heterónimo mais devoto à Ananke da mitologia grega, irmã da

Saudade:

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua tôda Brilha, porque alta vive. 67

1.3. Tradição como futuro do passado

A epifania do momento poético tem a sua origem nas relações temporais, na

fuga e nos reencontros de imagens, na reelaboração e nos reenvios extra estéticos dos

dados percebidos e não pode prescindir do recuperar e reunir, integrando-os em

contextos actuais, conteúdos de pensamentos éticos, morais, religiosos e estéticos,

pertencentes ao património da Tradição, quase sempre entendida, por engano, como

algo estático, caduco e obsoleto, a rota oposta ao caminho que leva ao novo e ao

original, e que ao invés, representa a plataforma de onde se embarca para alcançar o

novo por conhecer68. Essa posição justifica-se constatando que, tal como Thomas

66 “[...] la salvaguardia della libertà delle nazioni non è la filosofia nè la ragione, come ora si

pretende che queste debbano rigenerare le cose pubbliche, ma le virtù, le illusioni, l'entusiasmo, in somma la natura, dalla quale siamo lontanissimi. E un popolo di filosofi sarebbe il più piccolo e codardo del mondo. Perciò la nostra rigenerazione dipende da una, per così dire, ultrafilosofia, che conoscendo l'intiero e l'intimo delle cose, ci ravvicini alla natura.”, Giacomo Leopardi, Zibaldone di Pensieri, op. cit., p. 99, fr. 114-115.

67 Fernando Pessoa, Poemas de Ricardo Reis, op. cit., p. 82. 68 Cf. Ricardo Daunt, T. S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven, São Paulo,

Landy Editora, 2004, p. 61.

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Stearns Eliot irá declarar em The humanism of Irwing Babbitt, e The possibility of a

poetic drama, dois textos capitais da sua produção ensaística: “se o nosso problema é

construir o futuro, nós somente podemos fazê-lo a partir de materiais do passado;

devemos usar a nossa hereditariedade, ao invés de negá-la”69 porque “ao perder de

vista a tradição, nós perdemos o contacto com o presente.”70

No domínio das artes, e melhor ainda, no da literatura, isto traduz-se pelo

postulado de que a tradição literária é um repositório vivo de formas, conceitos e

práticas; um processo altamente dinâmico, no qual não se trata de medir forças com o

passado, mas de assimilar este que habita o nosso presente, nutre-se dele e altera-se de

acordo com a mutação do mesmo presente do qual fazemos parte71. É neste seguimento

de ideias que surge a célebre frase de Tradition and the Individual Talent, onde

“nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo

significado. O seu significado, a sua avaliação, é a avaliação da sua relação com os

poetas e os artistas mortos”72, que por sua vez, subentende a concepção da poesia

“como um todo vivo de toda a poesia já escrita”, em que o valor, a importância, bem

como o sentido histórico duma obra de arte, só podem ser determinados em relação ao

conjunto das obras que, antes dessa, ocupavam o cenário artístico73.

O assunto primordial do ensaio atesta que o poeta deve colocar-se no eixo

central do próprio tempo histórico, consciente de que o seu passado “the whole of the

literature of Europe from Homer”, é, nesse entretanto, presente e condicionante do seu

acto criativo, enquanto o que está a ter lugar no mesmo âmbito cultural no tempo, lhe é

69 Cf. Thomas Stearns Eliot, «The humanism of Irwing Babbitt», in Idem, Essays ancient and

modern, London, Faber and Faber, 1936, p. 80. 70 Cf. Idem, The possibility of a poetic drama, in Idem, The sacred wood. Essays on poetry and

criticism, New York, Barnes and Noble, 1928, p. 62. 71 “A tradição é de significado mais amplo. Não pode ser herdada e se a quisermos, tem de ser

obtida com árduo labor. Envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico o qual podemos considerar quase indispensável a quem continue a ser poeta para além do seus vinte e cinco anos. E o sentido histórico compreende uma percepção não só do passado mas da sua presença; o sentido histórico compele o homem a escrever não apenas como a sua própria geração no sangue, mas também com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero, e nela a totalidade da literatura da sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do intemporal bem assim como do temporal e do intemporal e do temporal juntos é o que torna um escritor tradicional. E é ao mesmo tempo, o que torna um escritor mais agudamente consciente do seu lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade.”, Thomas Stearns Eliot, «A tradição e o talento individual», in Idem, Ensaios de doutrina crítica, Guimarães, Lisboa 1997, pp. 22-23.

72 Ibidem, p. 23. 73 Cf. Ibidem, p. 27.

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contemporâneo. Este conhecimento, esta consciência da qual o poeta deve ser detentor,

é o que Eliot denomina de “historical sense”.

O poeta ideal, na sua obra, não fala, e nem deve falar de si, mas os seus

sentimentos devem tornar-se universais e serem reconhecidos como tal, o comum

património do Homem. Por seu lado, o crítico não deve prestar uma apreciação acerca

da obra de arte, numa perspectiva impressionista e individualista, devendo, porém,

exprimir o seu parecer segundo uma unidade de medida universal.

Ainda sob o tópico de T.S. Eliot, a sua obra-prima, The waste land, remete para

um conjunto de clássicos da antiguidade, tais como Os Fastos ou As Metamorfoses de

Ovídio, bem como textos relativos ao “submundo” da magia, do ocultismo e da fábula,

formas de cultura saídas do gueto da superstição e tornadas objecto de cuidadoso

estudo, mas também, e sobretudo, focando-se nas teorias estéticas dos poetas ingleses

do início do século XVII, em relação aos quais, o mesmo Fernando Pessoa mostra ter

uma dívida muito grande.

De facto, é de fundo semelhante à lírica de autores como Donne, Marvell,

Crashaw, Townshend, Herbert, sendo esta caracterizada por uma imagética centrada na

confluência de paixão e pensamento, sensibilidade e intelecto analítico, e direccionada

para o objectivo de transportar o pensamento para a esfera do sentir, até criar um fluxo

unitário em que a emoção e o raciocínio se fundem, e onde o poema é um objecto

construído a partir das intersecções de pensar e sentir, ou de sentir e pensar74, o motivo

que instigou T.S. Eliot, ao ponto de levá-lo a escrever, ao longo de quase toda a vida,

dezenas de artigos sobre a importância de tal prática literária, e que para Fernando

Pessoa se consolidou, desde os anos da sua educação escolar em Durban, como uma

referência marcante.

Para além da afinidade em interpretarem a expressão criativa, não como a

manifestação do artista em relação à sua individualidade, através da composição

artística ou da obra, mas como uma representação que transcende o próprio indivíduo,

que captura o próprio néctar duma vontade que nada tem de personalístico75, exaltando

74 Cf. Ricardo Daunt, T.S.Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven, op. cit., p. 99. 75 Em Tradition and the Indivitual Talent, T.S. Eliot apresentará o que ele próprio designa como

uma “Teoria Impessoal da poesia” que implica um trabalho de despersonalização que também ele designa como uma condição do carácter autónomo ou puro da obra: “O que acontece é uma rendição contínua de si próprio, como ele é no momento, a algo mais precioso. O progresso de um artista reside

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o valor da novidade em arte, apelam ambos para a necessidade de convocar a tradição

na apreciação dessa mesma novidade até como modo de distinguir o verdadeiro novo

da excentricidade singular.76 Pessoa, tal como Eliot, sustenta que o novo deve o seu

valor à aproximação que protagoniza relativamente ao passado77 e, pelo punho de

António Mora, o pré-heterónimo (aparece antes de 1914), como sistematizador do

objectivismo absoluto do mestre Alberto Caeiro, formaliza a glorificação da Grécia

clássica sem descurar dos trâmites modernos:

Devo a minha compreensão dos litteratos de Orpheu a uma leitura atturada sobretudo dos gregos, que habilitam quem os saiba ler a não ter pasmo de cousa nenhuma. Da Grecia Antiga vê-se o mundo inteiro, o passado como o futuro, a tal altura emerge, dos melhores cumes das outras civilizações, o seu alto pincaro de gloria criadora.78

Sendo o repto de um crítico literário, o reconhecimento da legitimação do

verdadeiro valor estético do novo e da originalidade, este não poderia ter uma atitude

diversa do demonstrar a identificação esses mesmos valores.

No parecer de Mora, o saber ler implica que se seja detentor de uma mestria em

assimilar cada particularidade, em salvaguardar cada célula atómica, que cada autor é,

criando uma adaptação que induz a segui-lo, a afeiçoar-se a ele. A habilidade que

advém dessa experiência, expressão sinonímica do ser ninguém ou da

num contínuo auto-sacrifício, numa extinção contínua da personalidade.”, Thomas Stearns Eliot, «A tradição e o talento individual», op. cit., p. 26.

76 Erostratus, antologia em língua inglesa de textos posteriores a 1929, cujo tema incide no fenómeno e nas condições da celebridade póstuma, com a sua insistência na primazia da tradição, sem a qual nenhuma inovação frutífera seria possível, estabelece mais pontos de contactos com o T.S. Eliot ensaísta. Este trabalho inacabado é uma ode, uma referência a um pouco afamado grego (Heróstrato), que em 356 a.C., conduziu à consumição em chamas do templo de Diana em Éfeso, tendo como único propósito o deixar gravado o seu nome na eterna memória. Tal acto, contra uma das consideradas, posteriormente, sete maravilhas do mundo antigo, levou a que os éfesos interditassem a simples menção do nome do perpetrador, o que instigou ao acréscimo da sua fama e propiciou a sua longevidade. Na actualidade, a figura deste obscuro grego, não é habitualmente referida ou tida na memória, porém até ao século XX foi um marco histórico e cultural célebre e vastamente nomeado. Pessoa, em seu Erostratus, confronta-nos com a terrível verdade sobre os livros: somente algumas obras ficam na memória das culturas após centenas ou milhares de anos. Talvez um ou dois livros representativos de cada época ou grupo na história da civilização. Os demais caem no esquecimento e na indiferença.

77 “Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira sciencia, cessam as agencias principais, de cuja existencia a civilização deriva.”, BNP/E3, 13A-10r; cf. Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit. p. 513.

78 BNP/E3, 20-81v; cf. Idem, Obras de António Mora, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, volume VI. Edição de Luís Felipe Teixeira, Imprensa-Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 370.

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despersonalização, passa por saber ler todos através da soma de conhecimentos antigos

e novos.

Na visão de Rita Patrício sobre Pessoa, podemos verificar que ao atingir “esse

grau de se saber ser vários, parece ter-se encontrado a perspectiva certa a partir da qual

se pode ler correctamente um dos autores ou vários textos particulares. Esse ponto de

vista encontrado, que inclui mas supera todos os particulares experienciados, permite

inscrever num plano universal a experiência do texto que seja original”.79

O facto de o autor ter percorrido, famélico, um sem número de páginas de livros

referentes a épocas tão diferentes entre si, possibilitou a que o Pessoa crítico literário,

nas mais variadas circunstâncias, fosse dono de uma percepção absoluta do Mundo, um

olhar transcendente a diversos tempos.

Contemplar o mundo da janela da Grécia Antiga, seria deparar-se com um

instante, um momento externo à mensura cronológica, imóvel, de onde se poderia

observar e ter nas mãos o mundo inteiro. Este equiparar-se-ia a um lugar idílico porém,

nesse lugar, nada mais se alcança além de um mundo intemporal, onde a manifestação

tautócrona do passado e futuro, invalida a ambos.

Posto isto, o que dominar a leitura dos clássicos gregos e abraçar o mundo com

um olhar universal, terá sido educado “a não ter pasmo de cousa nenhuma”, dado que

esse tipo de mundo não contém em si nada de original, pois todo o essencial já foi

escrito e relatado.

Em contrapartida, um leitor tão pródigo, mais facilmente, sabe aventurar-se nos

territórios consagrados à estética:

A estas horas claras em que a primavera chega, eu sinto, entre as flores e a emoção dos sonhos, uma tristeza imensa de não saber grego. A lingua grega é uma introdução á esthetica. Ha frases de Eschylo que são tão nitidas que a gente pode pegar n’ellas com a mão, e examinal-as de perto “Riso innumero das ondas”… quem deu jamais o mar como o poeta que escreveu esta phrase? Murmurio humido das ondas.80

79 Rita Patrício, «Da Grécia antiga vê-se o mundo inteiro», in AA. VV., A Arca de Pessoa, Steffen Dix, Jerónimo Pizarro organizadores, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2007, p. 224. 80 BNP/E3, 75-3r; cf. Patricio Ferrari, «Pessoa e a língua grega: o "murmurio humido das ondas"», in Jornal i, ano I, n.º 169, Lisboa, 19 de Novembro, 2009, p. 39.

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Na tentativa de cumprir o seu sonho juvenil de ser criador de mitos, Fernando

Pessoa, na sua fase artística mais inovadora e experimental (1913-1918) dedicou-se a

uma densa produção de “ismos” literários e filosóficos. À diferença de outros, tais

como o atlantismo, o paulismo, o interseccionismo, e sensacionismo, enquadráveis

numa conjuntura, predominantemente, modernista, o neopaganismo pessoano ostenta

alguma continuidade com a época das revitalizações dos antigos deuses, florescida na

literatura alemã do século XVIII, nas obras de Goethe, Schiller, Heine e Hölderlin e

conclamada depois com o advento de Nietzsche.

Para todos estes gigantes do romantismo alemão, os deuses olímpicos e de

outras tradições arcaicas não eram simplesmente representações artísticas, mas sim

seres vivos que dominavam a vida humana em praticamente todas as situações.

A superação da Razão que conduz à desumanização, a aquisição de uma

racionalidade vital, poética, paradoxal, revive em Pessoa, através da sua adesão ao

paganismo como formulação mítica, conscientemente, assumida da crença na

existência real e, materialmente, superior dos deuses, isto é, a aceitação da

materialidade do sagrado: o sagrado faz parte da vida e liga-se a ela ao ponto de

afirmar que a própria vida, e tudo o que permite amá-la, se torna manifestação desse

sagrado.

Nisto tudo, o homem é o animal humano que assume a sacralidade como

prerrogativa da sua condição de semideus ou, se se preferir, de Deus de alma mortal.

Neste sentido, este paganismo é uma superação quer do racionalismo quer do

romantismo, ou melhor, uma fusão destes “ismos” convertidos em desejos conscientes,

e não em crenças cegas, dogmáticas e monolíticas.

Assim, os deuses pagãos face ao Deus cristão, alvo dos ataques conjuntos da

companhia heteronímica pessoana, “são os deuses do mundo material” enquanto os

deuses egípcios, gregos e romanos, são meras criações dos homens, ou, como diz

Pessoa, “Homens melhorados”.

Ora, uma grande parte da obra de Pessoa está marcada por uma intenção de

modernização do panteão grego e latino; por uma urgência de resgate do mesmo em

detrimento da racionalidade abstracta e da metafísica ocidental de descendência cristã,

e impõe-se como momento hermenêutico fundamental para compreender a pluralidade

de estilos, mundividências e filosofias integrantes no nosso autor, bem como a

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pluralidade da sua consciência. Noutras palavras, o jogo heteronímico pode ser

entendido como a chave de um projecto criador mais vasto, o paganismo

transcendental, entendido como religião estética do sensacionismo, um perspectivismo.

plural e aberto, acompanhado muitas vezes de um carácter programático81:

A religião pagan é polyteista. Ora a natureza é plural. A natureza, naturalmente, não nos surge como um conjuncto, mas como “muitas cousas”, como pluralidade de cousas. Não podemos affirmar positivamente, sem o auxilio de um raciocínio interveniente, sem a intervenção da intelligencia na experiência directa, que exista, deveras, um conjuncto chamado Universo, que haja uma unidade, uma cousa que seja uma, designavel por natureza. A realidade, para nós, surge-nos directamente plural. O facto de referirmos todas as nossas sensações á nossa consciencia individual é que impõe uma unificação falsa (experimentalmente falsa) á pluralidade com que as cousas nos apparecem. Ora a religião apparece-nos, apresenta-se-nos como realidade exterior. Deve portanto corresponder ao characteristico fundamental da realidade exterior. Esse characteristico é a pluralidade de cousas. A pluralidade de deuses, portanto, o primeiro characteristico distinctivo de uma religião que seja natural.82

O moderno homem ocidental, cuja mentalidade está vinculada a 2000 anos de

monoteísmo cristão, já não consegue aceitar a natureza como uma pluralidade, pois há

um pensamento racional que interliga a recepção visual e o entendimento das coisas.

Ainda que não descubramos, em Pessoa, qualquer alusão particularizada à obra

de Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, é

possível afiançar a existência de uma certa familiaridade do poeta com a mesma,

potencialmente derivada à leitura de John Mackinnon Robertson, ao qual foi buscar os

vocábulos “Cristismo” e “Cristista”, mas, também, através da tese de Gibbon que

encarou o Cristianismo como o prolongamento, a razão principal para o declínio do

Império Romano. Este é um tema, profundamente, debatido e enfatizado, de uma

forma bastante detalhada, pelos heterónimos Ricardo Reis e António Mora. E é com

esta conotação nefasta, que o Cristismo faz a sua aparição nos textos elaborados por

estes pagãos ortodoxos – em oposição à heterodoxia de Fernando Pessoa ortónimo,

81 Uma contagem aproximativa mas fiável, aponta para cerca de 300 papéis (maioritariamente

folhas soltas ou páginas de cadernos ainda intactos), cuja maioria ficou inédita em vida, não tendo Pessoa chegado a concluir programas, livros ou opúsculos (tais como Os Regressos dos Deuses, Os Fundamentos do Paganismo, o Paganismo Superior e as Obras de Alberto Caeiro) que, de acordo com as suas expectativas, deviam promover e exaltar o culto do politeísmo como essência da mitologia, a adopção da criação como ideal humano e a concepção do universo como fenómeno essencialmente objectivo.

82 BNP/E3, 21-13r; cf. Fernando Pessoa, Obras de António Mora, op. cit., p. 180.

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convicto que o “erro e a morbidez” do Cristismo derivam do facto de não ter sabido

interiorizar o paganismo, como o expoente máximo de, todas e quaisquer, formas

danosas de que se possam ter ideia, sendo que os discípulos desta religião, vivem não

só ao redor desta decadência, bem como no cerne da mesma83.

Um retorno à Grécia, berço da nossa civilização, seria, segundo António Mora,

a única solução, a única terapia que poderia proporcionar a cura para “o morbo

cristista”.

Para a implementação e continuação dum movimento de combate à confusão,

ao misticismo triste, ao excesso e ao racionalismo dominantes, eram fundamentais e

imprescindíveis duas peças, os dos pilares da Cultura Grega, mais concretamente, o

culto da Razão e do Espírito Crítico. Para Pessoa, sempre que se refere a um

movimento “profundamente renovador”, significa que este é, obrigatoriamente, um

movimento cultural, porém, “não há profundo movimento cultural que que não seja um

movimento religioso”. Surge, então, a carência, a busca imprescindível em voltar aos

deuses e reaver o vigor, a energia do Paganismo, de corroborar, como fez Ricardo Reis,

que a “única verdadeira tradição civilizada é a tradição pagã”84 sendo o Helenismo, por

conta de Mora, a alvorada da nossa génese civilizacional:

A mais antiga tradição da nossa civilização é a tradição grega. Devemos reatá-la. Temos que nos crear uma alma grega, para podermos continuar a obra da Grecia. Tudo posterior á Grecia tem sido um erro e um desvio. […] Não ha arte senão a arte grega. Não ha beleza senão como a Grecia a creou. Reconhecemos isto —

83 “A moral christan é a moral da fraqueza (?) e da incompetencia, a metaphysica do christismo

é a metaphysica da falta de atenção e de concentração; a esthetica do christismo é a esthetica do predomínio da sensibilidade sobre a intelligencia. O christismo é a inversão dos valores humanos. […] Ainda, na sua forma catholica – a mais abjecta de todas, porque o protestantismo de certo modo impoz uma disciplina por via do seu latente paganismo nórdico – a religião christan é uma religião da decadência romana. Quem vive dentro do christianismo, vive ainda no imperio romano em decadencia.”, BNP/E3, 21-18v; cf. Idem, Prosa de Ricardo Reis, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 90; “O christianismo, pelas trez origens que teve, trouxe comsigo trez elementos: (1) pela sua origem plebeia, trouxe o essencial sentimento christão, tal qual os opprimidos o podiam criar – o sentimento democratico, o da liberdade, egualdade e fraternidade; (2) pela sua origem num meio imperial, qual o romano, trouxe o seu elemento imperialista, de vontade de dominio, de intenso fervor de proselytismo; (3) pela sua origem entre uma mistura de raças e de povos, qual a creou o império romano, o christianismo trouxe um cosmopolitismo especial, mystico mais do que outra cousa. Assim o christianismo apresenta-se, desde o seu inicio, com todos os characteristicos de uma decadencia – sobretudo quando se considera em relação ao meio pagão onde nasceu. […] Assim, uma vez organisado, o christianismo não passa de uma decadencia organisada. Uma vez organisado, a sua acção dissolvente e imoral mina toda a sociedade antiga, e cria, aqui um imperio ocidental estremunhado e que se afunda; alli, uma Byzancio, estagnado resultado do seu espírito corruptor.”, BNP/E3, 140-6r-v; cf. Idem, Obras de António Mora, op. cit., pp. 261-262; “Estamos ainda assistindo á decadência do Imperio Romano. Poucos dão por isto.”, BNP/E3, 12I-40v; cf. Ibidem, p. 265.

84 BNP/E3, 21-4v; cf. Idem, Prosa de Ricardo Reis, op. cit., p. 178.

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muitos de nós — obscuramente. Na realidade, a nossa alma anda tão longe d’isso que todos os dias trahimos a nossa longinqua mãe, a Grecia Antiga.85

Com os gregos nasceu a sciencia propriamente dita, o espirito scientifico, a mentalidade superior. Antes d’isso bastava, ao fazer philosophia, crear um systema que não se contradissesse a si-proprio; depois passou a ser preciso crear um systema que não contradissesse os factos. Os factos nasceram na Grecia. Só na Grécia é que a philosofia começou propriamente a separar‑se da religião; a não buscar, portanto, satisfazer os nossos sentimentos, mas a noção das cousas.86

Aqui Pessoa cruza o caminho com uma das mais puras verdades de Antero de

Quental: “o espírito grego no seu virtuosismo, avançou quase todas as conclusões de

quase todos os sistemas possíveis, de sorte que tudo se encontra na Filosofia grega

[…].”87 E sobretudo, cruza-se com Jorge Luis Borges, com o qual compartilhou como

constataremos, também a condição de discípulo de um imponente númen tutelar da

filosofia contemporânea: Arthur Schopenhauer.

85 BNP/E3, 21-53av; cf. Ibidem, p. 182. 86 BNP/E3, 22-4v; cf. Idem, Obras de António Mora, op. cit., p. 323 87 Antero de Quental, Cartas, Introdução, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins, 2

vols.; vol. I, Universidade dos Açores / Ed. Comunicação, 1989, p. 217.

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CAPÍTULO II

Schopenhauer “educador” de Pessoa e Jorge Luis Borges

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2.1. A luta da Vontade e a luta contra a Vontade

Aproximados por uma profusão de textos apócrifos e heterónimos, por um

meditado e conflituoso pasmo, uma consternação gnóstica, frente ao insondável destino

do homem e o mistério da origem do mundo, pela translação categorial entre o plano

do real e do imaginário, Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges partilharam também uma

desmedida admiração pelo análogo núcleo de formidáveis figuras do panorama

literário universal entre os quais se distinguem, graças às pegadas que deixaram na

estética dos dois, Shakespeare, Thomas Browne, Whitman, Chesterton, Carlyle,

Emerson, H.G. Wells e Wilde. Contextualizando esse legado intelectual a uma

literatura mais estritamente filosófica, acontece que o nome de Schopenhauer desponta

com veemência nos dois autores já em pleno decurso de adolescência.

Cabe portanto às sucessivas páginas aclarar – de forma comparada – em que

“formato” o filósofo alemão “amanhece” nas obras de Jorge Luis Borges e como se

“insinua” nos desempenhos literários e filosóficos de Fernando Pessoa.

Tentaremos desvendar o assunto abordando, ainda que fugazmente, algumas

das conclusões localizáveis nas suas composições poéticas, de crítica literária e de

prosa ficcionista, sobre a negação da personalidade individual e sobre a ilusoriedade de

espaço, tempo e livre arbítrio. Antes de avançar numa tarefa extremamente complicada

dada a vertiginosa complexidade dos vínculos envolventes, será oportuno dar um passo

para trás, no sentido de recuar a uma época em que os jovens Borges e Pessoa, já

entrelaçados pela mesma sina que os vê educados num tecido familiar e social

anglófono e anglófilo mergulham, pela primeira vez, na leitura de Schopenhauer.

As raras discrepâncias substanciais têm a ver com os contextos ambientais onde

em ambos se realiza o “descobrimento” dalgumas das linhas mestras do autor de

Parerga e Paralipomena.

Para Borges, a “periférica” Genebra de 191488, imersa numa paz privilegiada e

surreal se a compararmos com o horror tangível que daí a pouco se iria espalhar em

88 Ao lembrar, alguns anos depois, aquele período da sua vida passado na Suíça em companhia da

família, Borges declarou numa entrevista que depois veio a ser uma decisiva testemunha autobiográfica: “At some point while in Switzerland, I began reading Schopenhauer. Today, were I to choose a single philosopher, I would choose him. If the riddle of the universe can be stated in words, I think these words would be in his writings. I have read him many times over, both in German and, with my father and close friend Macedonio Fernández, in translation.”, Jorge Luis Borges, The Aleph and other stories

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quase toda a Europa ao estalar da Primeira Guerra Mundial. Para Pessoa, a Lisboa de

pouco posterior a 1905 encruzilhada dos seus primeiros e escrupulosos confrontos com

o “mestiço” mundo das disciplinas filosóficas. São os anos em que, durante a breve

frequência do então chamado Curso Superior de Letras89, o propósito de efectuar uma

pesquisa subsidiária para a entrega de um trabalho escolar concernente às inúmeras

diatribes éticas levantadas pela conflituosa norma sobre a pena de morte90, o exorta a

adquirir um exemplar de 1903 dum ensaio publicado em 1841 por Schopenhauer. Este

texto, no original alemão perfazia um volume cujo título era Über die Freiheit des

Willens. Na sua tradução francesa passa a chamar-se Essai sur le libre arbitre91 (ainda

hoje custodiado na biblioteca particular de Pessoa, ostenta bastantes sublinhados e

algumas notas autógrafas a tinta preta) e é a nona reimpressão duma dissertação

galardoada, em 1939, pela Real Sociedade Norueguesa de Ciências de Trondheim.

Certamente esperançoso de se assegurar do prémio para o melhor ensaio

entregue, Schopenhauer terá sido levado, no ano anterior, a competir no prestigiado

concurso também ante a imperdível ocasião de atacar duramente os “sofistas” idealistas

e espiritualistas do seu tempo e de reafirmar a sua doutrina ética, apresentando-a como

o mais consequente desenvolvimento crítico das grandes intuições kantianas. Já em

1936, com um pormenorizado aparato de referências, indicações e interpretações,

Schopenhauer pretendera em Über den Willen in der Natur, conseguir um objectivo

análogo. A geral indiferença com a qual o público culto alemão tinha acolhido os seus

esforços precedentes, aconselhou-o, porém, a arriscar a tentativa de se pronunciar sobre

1933-1969 in Idem, Autobiographical essay, New York, E. P. Dutton & Co., 1970, pp. 216-217. No ensaio Avatares de la Tortuga inserido na obra Discusión de 1932, afirmará algo semelhante ao dizer, acerca das doutrinas filosóficas de que teve conhecimento: “He examinado las que gozan de cierto crédito; me atrevo a asegurar que sólo en la que formuló Schopenhauer he reconocido algún rasgo de universo.”, Idem, Discusión, in Idem, Obras Completas 1923-1972, Buenos Aires, Emecé Editores, 1984, p. 258. Ainda mais exemplificativo da relevância conferida à filosofia de Schopenhauer parece esta declaração feita no epílogo de El Hacedor: “Pocas cosas me han ocurrido más dignas de memoria que el pensamiento de Schopenhauer o la música verbal de Inglaterra.”, Idem, El Hacedor, in Idem, Obras Completas 1952-1972, vol. II, Buenos Aires, Emecé Editores, 2007, p. 248.

89 Cf. Luís Prista, Pessoa e o Curso Superior de Letras in AA. VV., Memórias dos Afectos – Homenagem da Cultura Portuguesa a Giuseppe Tavani, Lisboa, Colibri, 2001, pp. 157-185.

90 Numa nota pertencente a um diário redigido em inglês em 1906 lê-se: “Planned and wrote a little of an English Work against the death penalty, and, perhaps, against unkind incarceration. Must read books on free-will to be able to attack the death penalty.”, Fernando Pessoa, Cadernos, Edição crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. XI, tomo I. Edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009 p. 259.

91 A entrada do volume corresponde por extenso a Arthur Schopenhauer, Essai sur le libre arbitre, Traduit en français pour la première fois et annoté par Salomon Reinach, 9ème éd., Paris, Félix Alcan Éditeur, 1903.

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o “livre arbítrio” mais radicalmente do que fizera no passado, transbordando fora dos

recintos racionalistas fabricados pelo génio de Königsberg. Não podendo contornar

nestas páginas embrionárias o sinuoso trajecto da clivagem que Schopenhauer bipartiu

no seu livro, remetemo-las para outro momento do nosso estudo. Em alternativa, deter-

nos-emos um pouco à volta das eloquentes apreciações e das primeiras conclamadas

divergências do abstractismo kantiano que brotam, em 1818, no apuramento exegético

de Die Welt als Wille und Vorstellung.

A análise transcendental de Kant, respondendo às aspirações metafísicas do

racionalismo juntamente com as intenções precisas de fundar criticamente a

possibilidade de saber metafísico-matemático, havia identificado na estrutura do sujeito

pensante as condições, a priori, da actividade do próprio pensamento. No entanto, ao

confundir o Intelecto com a Razão mancha-se de um deslize que acaba por violar uma

longa tradição filosófica.

Com esta definição, Kant reduz o intelecto àquilo que, tradicionalmente, se

entendia por razão: a superficialidade hodierna que, frequentemente, usa

indistintamente os termos intelecto e razão, como se não tivessem significados bem

distintos, arrisca Schopenhauer, tem origem kantiana.

Não menos grave é o facto de que a experiência intelectual, verdadeira e própria

(noética) é, assim, desvalorizada e até apagada, como se séculos de filosofia e de

sabedoria, centrados em tal experiência, não tivessem jamais existido. Especialmente

no último século, para Schopenhauer, ter-se-ia difundido a alteração dos respectivos

significados, criando uma confusão da qual o próprio Kant seria o responsável ou, pelo

menos, cúmplice, como é expressamente repetido em várias ocasiões e, sobretudo, na

Critica da filosofia kantiana: “egli non ha in nessun luogo, e si tratta di un punto

fondamentale, distinto la conoscenza intuitiva e la conoscenza astratta con precisione, e

proprio perciò, come vedremo in seguito, si è avvolto in contraddizioni insolubili.”92

Schopenhauer teve, precocemente, a noção do abstraccionismo kantiano, do

qual denunciou várias vezes os equívocos e os exageros. A filosofia volta a ser para ele

interpretatio Vitae, revisitação racional do real concreto. Não é, como indignamente a

92 Idem, Il mondo come volontà e rappresentazione, trad. italiana a cura di Nicola Palanga e Ada

Vigliani, Milano, Mondadori, 2000, p. 600. Nas páginas seguintes (601-603) desenvolve mais pormenorizadamente as teorias sobre as alegadas falhas do sistema kantiano.

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designou Kant “uma ciência de puros conceitos”, uma combinação de ideias abstractas,

como muitas vezes a entenderam Fichte, Schelling, Hegel e Schleiermacher.

É um saber objectivo fabricado em torno dos conceitos mas os conceitos devem

derivar das intuições. A experiência interior e exterior é, portanto, o fundamento

original, não a experiência das ciências individuais, cujas investigações acabam por

esmagar a unidade do ser, mas a experiência em geral, beneficiando também das

conclusões das ciências individuais, traz o seu insubstituível contributo para uma

síntese unitária e orgânica do conhecimento.

Não estamos na presença, no entanto, de um repúdio absoluto do

transcendentalismo kantiano: a Estética transcendental de Kant continua a ser sempre

para Schopenhauer o maior título de glória do filósofo de Königsberg: graças a ele, o

pensamento vira-se para si mesmo e reconhece as próprias condições, a própria forma e

os próprios limites; esta pesquisa formalista tem o seu valor, precisamente, na

identificação dos meios para descobrir o sentido genuíno da realidade em si; não

portanto para confirmar as correntes que o sujeito impõe a si próprio, mas para

estabelecer as bases de uma metafísica fundamentada mais solidamente do que o velho

ingénuo realismo, já definitivamente afastado da crítica kantiana.

Um outro elemento que Schopenhauer exalta no kantismo, considerando-o até o

ponto de partida da própria doutrina, é a distinção entre fenómeno e númeno, que ele

radicaliza. De acordo com Schopenhauer, por um lado, existe o complexo dos

fenómenos, que são considerados simples aparências, como rostos superficiais das

coisas, por outro lado, existe a dimensão substancial das próprias coisas, que escapam

ao conhecimento intelectual.

São ambos apenas dois aspectos concomitantes – o interior e o exterior – de

uma única realidade. Do primeiro ponto de vista o mundo à nossa volta não existe se

não como uma representação, isto é, sempre e apenas em relação com um outro ser, o

percipiente. Nenhuma verdade é para Schopenhauer mais certa, mais absoluta e mais

clara do que esta: o mundo inteiro não é outro que o objecto em relação ao sujeito e

não existe a não ser para o sujeito. O mundo é representação. O mundo não existe

como totalidade significante autónoma, mas como dispersão de meras representações –

cujo significado e valor dependem do sujeito.

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A subjectividade, todavia, paira, de certo modo, acima das suas representações

como uma autoconsciência imóvel não sujeita nem ao tempo nem ao espaço; não

sucumbe à lei do devir, mas é a consciência que o condiciona; não se coloca numa

espacialidade mas assume-se como o lugar ideal de casa objecto percebido e

perceptível; não é pluralidade, mas um centro de consciência para o qual convergem os

raios do vasto círculo fenoménico.

É a sede na qual se manifesta uma força absolutamente irredutível à

representação, uma força primitiva que não é um objecto entre os objectos e que

desafia todas as determinações causais da parte das outras coisas: a este respeito, o

corpo é expressão de vontade. A coisa em si, que Kant havia declarado incognoscível e

que os idealistas haviam eliminado como contraditória é, portanto, vontade. As

características fundamentais desta vontade numénica são a unidade e a irracionalidade.

A vontade é uma, já que, não sendo determinada a priori pelas formas do

conhecimento, não está sujeita às condições do espaço e do tempo e, portanto, ao

princípio da individuação. A vontade é a obscura e terrível energia do mundo que se

objectiva em formas sempre diferenciadas e ordenadas segundo uma escada de

complexidade crescente.

Totalmente irracional (a razão existe somente no mundo da representação do

qual é a expressão mais elevada, sendo a faculdade dos conceitos, isto é, das

representações mais complexas, sínteses das representações imediatas da sensibilidade

ou do intelecto) não obedece sequer às prescrições da moral. A vontade é, por isso

tudo, uma aspiração sem fim e sem propósito, uma orientação que não conduz a

qualquer ordem ou a qualquer aquisição definitiva93.

Junto da dimensão da representação, através da intuição do corpo e do seu

sofrimento, o sujeito descobre ser instigado por um ímpeto originário e incontrolável

de continuar nesta vida que é ao mesmo tempo a morte do eu. Nomeadamente, o

sujeito intui que rasgado o véu das aparências das entidades fenoménicas – que

Schopenhauer reconduz directamente à noção védica de Māyā – aparece uma instância

93 “La volontà, in tutti i gradi del suo fenomeno, dai più bassi ai più alti, manca affatto d’un

fine ultimo e d’uno scopo; continuamente aspira, perché aspirare è la sua unica essenza, a cui non pone termine alcun fine raggiunto; non è quindi capace di nessun appagamento finale. [...] E questo si ripete all’infinito: mai un termine, mai un definitivo appagamento, mai un riposo.”, Idem, Il mondo come volontà e rappresentazione, trad. italiana di Paolo Savj-Lopez e Giuseppe De Lorenzo, 2 vols; vol. II, Bari, Laterza, 1997, p. 339.

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fundadora que se auto-cria perseguindo constantemente a obtenção da sua necessidade

incontrolada e cega de afirmação no orgânico e no inorgânico94.

Esta vontade que nunca sacia a sua fome de existência e sobrevivência é o rosto

dum Devir cósmico, não apenas antropológico, privado de objectividade, fundo, razão,

forma ou τέλος governando todos os objectos existentes no universo.

Por analogia a ποίησι subjectiva da representação transforma-se num momento

expressivo da ποίησις cósmica e distingue-se pela produção de ficção, imagens,

aparências, como num caleidoscópio, sem objectivo nem origem, regido por uma falta

absoluta de objectividade e de fundamentação, pois o númeno é ele mesmo

transfigurável. Neste fluxo, o homem vive trespassado pela tensão fitando um sossego

inalcançável, fruto da impossibilidade da conjunção consigo mesmo; continuamente

atormentado pelo desejo e pela representação, obcecado pelo auto-fingimento e pelo

fingimento duma paz irrealizável, permanece então algemado à própria identidade

ficta, consoante a modalidade do principium individuationis, dominadora da esfera dos

fenómenos.

Ora, a ideia do labirinto autopoiético, das representações e das ópticas

falsificadas saudadas como força produtiva cósmica, e o receio da inexistência de um

mundo exterior como critério de referência objectiva, parece ser um traço que Borges e

Pessoa têm em comum com o filósofo de Danzig, precisamente quando as ficciones

Borgeanas e a poética do “fingir” pessoano, cerne de discursos a pospor nas próximas

páginas, prefiguram uma importante consequência conscientemente assumida pelos

dois escritores: pôr em cena o teatro do mundo, da biblioteca-infinito95, do universo (ou

talvez seja mais correcto falar em pluriverso) corresponde ao pôr em cena eles mesmos

nele, como actores inter-agentes que, ao alternar-se no palco do enredo literário, jogam

o seu papel ontológico de disfarce e transubstanciação, em que a realidade concreta do

mundo, inatingível, ascende, na esteira de Schopenhauer, a realidade emotiva interior e

deflagrada.

94 “La volontà considerata in se stessa è inconsciente: è un cieco, irresistibile impeto, qual noi già

vediamo apparire nella natura inorganica e vegetale, com'anche nella parte vegetativa della nostra propria vita. Sopravvenendo il mondo della rappresentazione, sviluppato per il suo servigio, ella acquista conoscenza del proprio volere e di ciò ch'ella vuole, che altro non è se non il mondo, la vita, così come si presenta.”, Ibidem, p. 305.

95 Cf. Jorge Luis Borges, La Biblioteca de Babel, in Idem, Ficciones, Madrid, Alianza Editorial, 2008, pp. 86-99.

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Penetrando mais profundamente na densa selva das suas obras, temos que

reconhecer que às declarações pessoanas “Sou nada… Sou uma ficção…”96, “Meu

Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que

há entre mim e mim?”97, “Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro,

que afinal era eu.”98, “Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei

para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me

confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim […]”99, “Nesta vida, em

que sou meu sono, / Não sou meu dono, / Quem sou é quem me ignoro e vive / Através

desta névoa que sou eu / Todas as vidas que eu outrora tive, / Numa só vida. / Mar sou;

baixo marulho ao alto rujo, / Mas minha cor vem do meu alto céu, / E só me encontro

quando de mim fujo. / […] Não sei quem sou. Sou um emissario meu. Não me conheço

□ […]”100, há uma continuidade intransponível com a célebre máxima do Borges

criador de contos e de mundos fantásticos contida em La nadería de la personalidade,

“El Yo no existe”101 e com os versos de The thing I am: “He olvidado mi nombre. No

soy Borges / (Borges murió en La Verde, ante las balas) / […] Soy la carne y la cara

que no veo […]”102; “Soy el que sabe que no es menos vano / que el vano observador

que en el espejo / de silencio y cristal sigue el reflejo / o el cuerpo (da lo mismo) del

96 BNP/E3, 69-31

r; cf. Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, op. cit., p. 261.

97 BNP/E3, 2-76r; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit., p. 372. Na tentativa de retratar um paralelismo entre ele o poeta persa Omar Khayyám, Pessoa avulta: “Omar tinha uma personalidade; eu infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Quem , como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo, mas num sucessivo e diverso mundo interno. A sua philosophia, ainda que queira ser a mesma que a de Omar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as philosophias que critique; Omar podia rejeitar a todas, pois lhe eram externas; não posso eu rejeitar, porque são eu.”, BNP/E3, 1-2r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa – Rubaiyat, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. I. Edição de Maria Aliete Galhoz, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 79).

98 BNP/E3, 2-29r; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit., p. 416. 99 BNP/E3, 2-76r; cf. Ibidem, op. cit., p. 372. 100 BNP/E3, 33-1r e 1a; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa 1931-1933, op. cit., p.107. 101 Jorge Luis Borges, Inquisiciones, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 102. Na página seguinte

do mesmo livro, Borges explicita o seu hermetismo niihilista: “no soy la realidad visual que mis ojos abarcan, pues de serlo me mataría toda oscuridad y no quedaría nada en mí para desear el espectáculo del mundo ni si quiera para olvidarlo. Tampoco soy las audiciones que escucho pues en tal caso debería borrarme el silencio y pasaría de sonido en sonido, sin memoria del anterior. Idéntica argumentación se endereza después a lo olfativo, lo gustable y lo táctil y se prueba co ello, no solamente que no soy el mundo aparencial – cosa notoria y sin disputa – sino que las apercepciones que lo señalan tampoco son mi yo. Esto es, no soy mi actividad de ver, de oír, de oler, de gustar, de palpar. Tampoco soy mi cuerpo que es fenómeno entre los otros.”, Ibidem, p. 103.

102 Idem, Tutte le opere, a cura di Domenico Porzio, Milano, Mondadori, 1996, p. 1098.

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hermano. / […] Soy el que es nadie, el que no fue una espada | en la guerra. Soy eco,

olvido, nada.”103

Esta primeira implicação estética e ontológica resulta intimamente de uma

ligação com uma segunda, de procedência ética e cosmogónica, que poderia ser

enunciada na fórmula quase paradoxal de produzir o desapego de qualquer tipo de

pretensão ilusória de identidade da consciência, através do excesso de réplicas

ficcionais de si próprio.

É o paroxismo dos labirintos, dos duplos, dos espelhos que em nenhum dos dois

casos comportaria a pacificação num “além” irrepresentável, mas sim uma

desidentificação, uma deslegitimação de qualquer individuação (quebra da adesão

imediata ao principium individuationis) cuja finalidade é a possibilidade de um

acolhimento diferente do mesmo acontecer, erigindo universos imaginários e paralelos

de espessura coesa, que desafiam os padrões físicos e psicológicos do único universo

dedutível empiricamente. A incompatibilidade com o nosso universo de leitores,

porem, é tal só aparentemente, porque ao passo que a leitura se afunda nesse outro

universo, sede da reinvenção do real, reparamos nas propostas, ali solucionadas, para

dar sentido à inexplicabilidade da vida.

Por ser a minha auto-afirmação uma ameaça à sobrevivência da harmonia

constituída do cosmos, um mal a extirpar, lá, a ipseidade, converte-se em infindável

desapropriação de si. O outro, a alteridade, o estranho, o que parecia exterior à minha

realidade interna passa a ser parte integrante e maioritária da minha personalidade; o

outro aninha-se em mim e a nova projecção da minha existência é um situar-se entre o

uno, o mesmo, o outro e os outros. É o prenúncio de um modo de ser que supõe sempre

uma universalidade que o ultrapassa, sintetizável, porventura, na expressão ninguém é

cada um e cada qual é todos, endógena em vários contos e breves ensaios de Borges:

Nadie es alguien, un solo hombre inmortal es todos los hombres.104

103Idem, La Rosa profunda, in Idem, Obras Completas 1975-1985, Vol. III, Buenos Aires, Emecé

Editores, 2004 p. 89. “La lógica borgeana es Ser Nadie-Ser Todos-Ser mi obra, como el hilo de Ariadna en el que se busca, se persigue y se pierde. Borges no es, deviene en su obra, está siempre «pasando» por ella, en sus palabras o en sus metáforas. Eso hace un Borges-Sujeto, siempre inacabado, abierto, en fuga perpetua de sí mismo, excéntrico (salido de su centro), en tránsito.”, Daniel Boromei, Los Espejos y el Otro en la obra de Jorge Luis Borges. Literatura y Psicoanálisis, in AA. VV., Borges y los otros – Jornadas I-I-II (2001-2002-2003), compilación Maria Gabriela Barbara Cittadini, Buenos Aires, Fundacion Internacional Jorge Luis Borges, 2005, p. 345.

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Nuestro destino es trágico porque somos, irreparablemente, individuos, coartados

por el tiempo y por el espacio; nada, por consiguiente, hay más lisonjero que una fe

que elimina las circunstancias y que declara que todo hombre es todos los hombres

y que no hay nadie que no sea el universo.105

E também, como focalizaremos mais oportunamente no próximo capítulo, nas íntimas

confissões poéticas de Pessoa:

Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todos.106

Perspectivadas a abolição do “eu” individual107 (agora já sem fundamentação),

a destituição do solipsismo, da subjectividade não adequados a conter no seu interior a

104 Jorge Luis Borges, El Aleph, Madrid, Alianza Editorial, 2008, p. 22. 105 Idem, Thomas Carlyle: De los héroes. Ralph Waldo Emerson: Hombres representativos, in

Idem, Obras Completas 1975-1988, vol. IV, Buenos Aires, Emecé Editores, 2007, pp. 43-44. Noutros dois acontecimentos literários separados por um intervalo de pouco mais de uma década, Borges chama em causa Schopenhauer, desta vez sem incomodar intermediários: “Schopenhauer reduce todas las personas del universo a encarnaciones o máscaras de una sola (que es, previsiblemente la Voluntad), y declara que todos los sucesos de nuestra vida, por aciagos que sean, son invenciones puras de nuestro yo como las desdichas de un sueño.”, Idem, Un libro de Thomas Mann sobre Schopenhauer, in Ibidem, p. 438. “Aquí se acaba la historia de la sentencia, básteme agregar, a modo de epilogo, las palabras que Schopenhauer dijo, ya cerca de la muerte, a Eduard Grisebach: «Si veces me he creído desdichado, ello se debe a una confusión, a un error. Me he tomado por otro, verbigracia, por un suplente que no puede llegar a titular, o por el acusado en un proceso por difamación, o por el enamorado a quien se muchacha desdeña, o por el enfermo que no puede salir de su casa, o por otras personas que adolecen de análogas miserias. No he sido esas personas; ello, a lo sumo, ha sido la tela de trajes que he vestido y que ha desechado. ¿Quien soy realmente? Soy el autor de El mundo como voluntad y como representación, soy el que ha dado respuesta al enigma del Ser, que ocupará a los pensadores de los siglos futuros. Ese soy yo, ¿Quién podría discutirlo en los años que aún me quedan de vida?». Precisamente por haber escrito El mundo como voluntad e representación, Schopenhauer sabía muy bien que se un pensador es tan ilusorio como ser un enfermo o un desdeñado y que él era otra cosa, profundamente. Otra cosa: la voluntad.”, Idem, Otras Inquisiciones, in Idem, Obras Completas 1952-1972, vol. II, Buenos Aires, Emecé, 2007, p. 139.

106 BNP/E3, 20-67r a 67v; cf. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1966, pp. 93-94.

107 Pode-se ler em Borges: “Quiero abatir la excepcional preeminencia que hoy suele adjudicarse al yo: empeño a cuya realización me espolea una certidumbre firmísima, y no elcapricho de ejecutar una zalagarda ideológica o atolondrada travesura del intelecto. Pienso probar que la personalidad es una trasoñación, consentida por el engreimiento y el hábito, mas sin estribaderos metafísicos ni realidad entrañal. Quiero aplicar, por ende, a la literatura las consecuencias dimanantes de esas premisas, y levantar sobre ellas una estética, hostil al psicologismo que nos dejó el siglo pasado, afecta a los clásicos y empero alentadora de las más díscolas tendencias de hoy […] No hay tal yo de conjunto.”, Jorge Luis Borges, Inquisiciones, op. cit., pp. 92-93. Na heteronímia pessoana, o Ultimatum de Campos, entre outra congérie de obras de semelhante incontornável valor, constitui um claro exemplo da procura de desagregação e descentralização territorial da noção de sujeito, da alma como algo de único e indivisível: “Abolição do preconceito da individualidade […] a de que alma de cada um é uma e indivisivel.”,

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inteira realidade intuída pela consciência108 e, em sua oposição, incentivada a aceitação

do lema de que cada história humana é equivalente – pois que todos os homens

partilham o mesmo trajecto existencial – o passo seguinte dado por ambos os autores

foi minar a essência daquele liberum arbitrium indifferentiae, contra o qual fortemente

se atira Schopenhauer em Über die Freiheit des Willens que, como dito, o Pessoa

jovem estudante de filosofia tomou conhecimento em 1906 numa edição francesa. Da

leitura deste livro resultaram diversos escritos fragmentários e projectos filosóficos

infelizmente quase sempre inconclusos.

Por meio das frases sublinhadas nesta edição e das anotações que se encontram

no espólio de Pessoa, podemos concluir que se tratou de uma leitura muito atenta e

particularmente fecunda109.

2.2 Livre arbítrio e determinismo irredutível Com o seu usual método de enfrentar, imediatamente e de modo mais directo, o

miolo de cada problema, Schopenhauer abre o discurso com a análise do conceito de

liberdade e com a resoluta afirmação de que o seu significado é sempre e

essencialmente, negativo, colocando-se, assim, na tradição de Demócrito e Espinosa.

Na argumentação de Schopenhauer, a liberdade é, para encetar, “a ausência de

qualquer obstáculo ou impedimento.”110

Dado que os obstáculos que se opõem às acções humanas podem ser de três

tipos diversos, isto é, físicos, intelectuais e morais, também o conceito de liberdade

deve ser distinto nas três subespécies diferentes, da liberdade física, intelectual e moral.

Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, volume X. Edição de Jerónimo Pizarro, Imprensa-Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2009, p. 267.

108 “Ser una cosa es inexorablemente no ser todas las otras cosas.”, Jorge Luis Borges, Otras Inquisiciones, op. cit., p. 123. “Ficarei o Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta, Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo, mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do próprio mistério, da própria Vida. Habitarei eternamente o deserto morto de mim, erro abstracto da criação que me deixou atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia (estéril) do regresso a ser.”, Fernando Pessoa, Escritos Autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, edição e posfácio de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp. 143-144.

109 Cf. Antonio Pina Coelho, Os fundamentos filosóficos da Obra de Fernando Pessoa, 2 vols., vol. II, Lisboa, Verbo, 1971, pp. 64-74.

110 “Schopenhauer has pointed out — that the primitive notion of liberty is «absence of obstacles», a purely physical notion. And in our human conception of liberty the notion helds.”, BNP/E3, 23-49r; cf. Idem, Textos filosóficos, vol. I, op. cit., p. 206.

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Arthur Schopenahuer, Essai sur le libre arbitre (CFP, 1-135, p. 22)

Sendo a liberdade empírica, a carência de todo e qualquer tipo de obstáculo

material, trata-se, também, de uma noção abstracta, meramente física – como também

escreveu Pessoa nas suas anotações – onde, por norma, as acções do homem são

condicionadas e obstruídas devido, quase sempre, às mais convincentes e diversas

razões. No que diz respeito à liberdade física, o homem não diverge do animal: “Man is

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perfectly an animal and the only primitive sense in this case is the sense of physical

freedom.”111

Seguindo, passo a passo, Schopenhauer e a sua ideia empírica da liberdade

física, diluída na simples expressão “estou livre de fazer o que quero”, a apreciação que

mediante essa liberdade se pode validar o livre arbítrio é para Pessoa falaz e

inconsistente, sendo insuficiente para resolver uma questão que, com maior rigor, teria

que ser expressa da seguinte forma: “Podes até querer o que queres?”.

Arthur Schopenahuer, Essai sur le libre arbitre (CFP, 1-135, p. 28) [detalhe]

Para ultrapassar um impasse, em que até a análise filosófica da controversa

problemática do livre arbítrio parecia não avançar, Schopenhauer sugere retomar e

reavaliar, a um nível mais “profundo”, a reflexão acerca de um termo muito comum no

vocabulário dos seus acérrimos adversários idealistas, até constituir o alicerce da sua

doutrina: a autoconsciência. Através duma crítica afiada e penetrante dos pressupostos

metafísicos de Fichte e Schelling, Schopenhauer defende que aquele termo se refere só

à consciência do próprio eu em antítese à consciência das outras coisas, isto é, à nossa

mesma faculdade cognitiva, no sentido já atribuído por Kant.

Direccionada “com todas as suas forças para o exterior”, ou antes “teatro do

real mundo exterior”, esta faculdade alcança, intuitivamente, o seu âmago teorético,

111 Ibidem, p. 208.

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elabora-o em conceitos, logo, ordena-o e compõe-no, desencadeando infinitas

combinações através das palavras. Toda a realidade fenoménica é o indiscutível

domínio desta parte preponderante da nossa consciência.

O âmbito da “autoconsciência” é, ao contrário, algo de mais limitado e

definido; uma forma de liberdade intelectual, reduzida a um “uso livre do intelecto nos

processos das decisões”, não coincidindo com a “verdade em si do que é”. O conceito

mais importante para Schopenhauer acaba então por ser a liberdade moral.

Existe, de facto, segundo ele, uma derivação da nossa consciência que não

manifesta dúvida ou perplexidade: é o sentimento de responsabilidade pelo que

fazemos, a incontornável evidência de que, apesar de tudo, nós somos sempre os

autores das nossas acções. Assim sendo, a liberdade não desaparece do discurso

filosófico de Schopenhauer, para ser meramente “transferida”, isto é, retirada do

território das simples acções para ser levada a “uma região superior”.112

Tudo indica que seja a “região metafísica”, o “espaço místico” da vontade,

único abrigo de uma liberdade que, sendo tal, é ao mesmo tempo negada ao indivíduo

empírico, à sua realidade e à sua escolha existencial. Mas o que é essa liberdade na

realidade, e qual o seu significado e valor para o indivíduo? É algo que a brilhante e

depurada prosa de Schopenhauer não revela, apontando para uma fundamentação

totalmente imperscrutável; a uma essência totalmente transcendental na qual reside a

representação do teatro da vida.

Apenas na reflexão deste conceito é possível aproximarmo-nos de um

entendimento do livre arbítrio. Schopenhauer e Pessoa entenderam a ideia da liberdade

moral, não propriamente como primordial, embora a ideia geral da liberdade não deixe

de ser puramente metafísica, tal como Pessoa escreveu: “[The] idea of liberty [is] a

purely metaphysical idea.”113

É por meio destas reflexões que atingimos a famosa conspecção de

Schopenhauer, em que este atesta, indubitavelmente, que o homem pode agir como

deseja, mas que não pode desejar o que deseja. Na emblemática mescla pessoana entre

112 “La libertà dunque non è eliminata dal mio discorso, ma soltanto spostata, cioè portata dal

territorio delle singole azioni, dove sappiamo che non la si può incontrare, più in alto, in una regione superiore, ma non facilmente accessibile alla nostra conoscenza, vuol dire che è trascendentale.”, Arthur Schopenaheur, La libertà del volere umano, trad. italiana di Ervino Pocar, Bari, Economica Laterza, 2004, p. 147.

113 BNP/E3, 23-49v; cf. Fernando Pessoa, Textos filosóficos, vol. I, op. cit., p. 206.

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citação e pensamento próprio deparamo-nos com um contexto idêntico: “«I can do

what I will.» Of thus there is of course no doubt. So long as I am not emprisoned nor

chained nor paralitic, nor hindered by any physical obstacle, I am free: l can do what I

will. «But can I will what I will and will nothing else?» The great question is all

here.”114

Portanto, postular o livre arbítrio significa, simplesmente, que cada acção

humana se torna um milagre inexplicável, um efeito sem causa, um evento

absolutamente casual, incompreensível e inexplicável por qualquer mente racional.

Na visão de Schopenhaeur, toda e qualquer coisa que ocorra, irá,

infalivelmente, ocorrer, e para fixar melhor a relevância do raciocínio, serve-se da frase

latina: “Quidquid fit necessário fit”. Frase esta, presente nas notas e observações do

jovem estudante de Filosofia em Lisboa, com o acréscimo: “All acts are determined

and necessary.”115

BNP/E3, 24-67v

114 BNP/E3, 23-49v; cf. Ibidem, p. 208. 115 “Being is determined as being and not-being because the principle of negativity is the centre of

our intellect. From that basis the principle of contradiction, which only can be when a thing has a contrary. The only thing really free is the Absolute Will or Universal Will which, being indetermined, is thereby absolute or free. Only power can be free, because it is not act. All acts are determined and necessary. Quidquid fit necessario fit. (Schopenhauer?). The internal mind. (Search’s hypothesis).”, BNP/E3, 24-67v; cf. Idem, Textos Filosóficos, vol. II, op. cit., pp. 91-92.

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Arthur Schopenahuer, Essai sur le libre arbitre (CFP, 1-135, p. 122) [detalhe]

Um dos fundamentos do pensamento pessoano reflecte neste determinismo. Um

testemunho evidente vem do deixar António Mora declarar, quase nove anos após ter

lido Schopenhauer que: “Tudo é determinismo; tudo é determinado. A liberdade é uma

illusão, não passa no campo real, de uma illusão necessária á vida. Para agir, no proprio

sentido é preciso querer que a acção é livre.”116

Sumariamente, não apresenta dificuldade no comprovar que o homem pode

fazer o que quer. Cabe a si a decisão de caminhar num lado ou no outro do passeio, de

terminar com a sua vida ou não, pois trata-se de deliberações triviais. Porém ao nível

racional, este apenas possui um nível reduzido de compreensão das razões e dos

116 BNP/E3, 24-66r; cf. Idem, Obras de António Mora, op. cit., p. 246.

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motivos que norteiam o seu querer, ou seja, ele tem o poder de fazer o que quiser, mas

fá-lo por necessidade.

Sabe-lo bem também Ricardo Reis que, alheio a qualquer excesso na dor e no

prazer, deseja tornar-se na reincarnação do equilíbrio, da contenção, do domínio seguro

das paixões, da serena aceitação do próprio destino. E procurando dar, a si mesmo, a

ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, numa das suas odes mais conhecida

acrescenta:

Só esta liberdade nos concedem Os deuses: submetermo-nos Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos Porque só na ilusão da liberdade A liberdade existe.

Nem outro jeito os deuses, sobre quem O eterno fado pesa, Usam para seu calmo e possuído Convencimento antigo De que é divina e livre a sua vida. Nós, imitando os deuses, Tão pouco livres como eles no Olimpo, Como quem pela areia Ergue castelos para encher os olhos, Ergamos nossa vida E os deuses saberão agradecer-nos O sermos tão como eles.117

À fé na suprema liberdade do espírito, Schopenhauer opunha o corajoso e

aberto reconhecimento de uma comum sorte, fatal e irrevocável, a ideia da fatalidade

da existência, que os supremos poetas tinham aceite como o último e indiscutível

significado dum destino, tanto cósmico como individual. Entre eles Pessoa, sob a

designação também de Sorte, Fatum, Ananke ou Fado:

Nada ha que tão notavelmente determine o auge de uma civilização, como o conhecimento, nos que a vivem, da esterilidade de todo exforço, porque nos regem leis implacaveis, que nada revoga nem obstrue. Somos, porventura, servos algemados ao c[a]pricho de deuses, mais fortes porém não melhores que nos,

117 BNP/E3, 51-18r; cf. Idem, Poemas de Ricardo Reis, op. cit., p. 108.

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subordinados, nós como elles, á regencia ferrea de um Destino abstracto, superior á justiça e á bondade, alheio ao bem e ao mal.118

Fóra de nós só apprehendemos uma realidade exterior a um destino inmutavel, nem justo nem injusto, alheio assim ao bem como ao mal, que nos seja a nós e a ella. Tudo mais fingimol-o ou sonhamo-lo, é sonho consciente ou inconsciente119. […] acima dos deuses, no sistema pagão, paira sempre o Ananke, o Fatum, incorpóreo, submetendo os deuses como os homens aos seus decretos inexplicados120. Depois pensemos, creanças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vae para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses121.

Como acima dos deuses o Destino É calmo e inexoravel, Acima de nós-mesmos construamos Um fado voluntario Que quando nos opprima nós sejamos Esse que nos opprime, E quando entremos pela noite dentro Por nosso pé entremos122.

O único milagre que Deus fez é o universo. A Lei, Fatum, elemento abstracto de Deus e pelo qual Deus está desencarnadamente manifesto no mundo, se oppõe o Christo que é o desejo do Regresso a Deus, o desejo de Liberdade, de não haver Fatum123.

Paralelamente, em Jorge Luis Borges, no soneto La Pantera do livro La Rosa

profunda, o destino desse animal, a um tempo concebido individual e

arquetipicamente, nos dois últimos versos é definido, por recurso à ideia de fatalidade e

da repetição involuntária de um “monótono camino”: “[…] La jornada / Que cumple

cada qual ya fue fijada […]”124; o poema La Trama, do livro La Cifra, dá expressão à

118 BNP/E3, 155-13; cf. Idem, Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação, Textos

estabelecidos e comentados por Pedro Teixeira da Mota, Lisboa, Lencastre, 1988, p. 87. 119 BNP/E3, 12I-94r; cf. Idem, Obras de António Mora, op. cit., p. 298. 120 BNP/E3, 21-25v; cf. Idem, Prosa de Ricardo Reis, op. cit., p. 124. 121 BNP/E3, 51-12r; cf. Idem, Poemas de Ricardo Reis, op. cit., p. 98. 122 BNP/E3, 51-17v; cf. Ibidem, pp. 102-103. 123 BNP/E3, 24-113r; cf. Idem., Textos Filosóficos, vol. II, op. cit., pp. 142-143. 124 Jorge Luis Borges, La Rosa profunda, in Idem, Obras Completas 1975-1985, op. cit., p. 84.

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análise de que o menor evento quotidiano está necessariamente subordinado à mesma

rede causal, à mesma trama fatal que originou um acontecimento histórico

paradigmático como o do assassínio de Júlio César:

En el segundo patio la canilla periódica gotea, fatal como la muerte de César. Las dos son piezas de la trama que abarca el círculo sin principio ni fin, el ancla del fenicio, el primer lobo y el primer cordero, la fecha de mi muerte y el teorema perdido de Fermat. A esa trama de hierro los estoicos la pensaron de un fuego que muere y que renace como el Fénix. Es el gran árbol de las causas y de los ramificados efectos; en sus hojas están Roma y Caldea y lo que ven las caras de Jano. El universo es uno de sus nombres. Nadie lo ha visto nunca y ningún hombre puede ver otra cosa125.

Qualquer episódio, qualquer facto mínimo, antevê uma rígida determinação agente ou,

como afirma o narrador no conto El Zair: “[…] no hay hecho, por humilde que sea, que

no implique la historia universal y su infinita concatenación de efectos y causas.”126

No conto La escritura de Dios, o mago Tzinacán antes de relatar a sua

revelação numinosa, ao meditar sobre a sua condição de homem encarcerado, divulga a

cogitação de vínculo determinista, acerca do modo como as causas exteriores ou

motivos, condicionam o destino pessoal, na seguinte sentença: “Um hombre se

confunde, gradualmente con la forma de su destino; un hombre es, a la larga, sus

circunstâncias.” Por último, em Deutsches Requiem, conto entre os mais memoráveis

de El Aleph, o nazi Otto Dietrich zur Linde é a voz moldada por Borges para entoar,

que não há gesto ou acontecimento humano, incluindo os mais abomináveis e

terríficos, capazes de fugir à lei implacável do determinismo cósmico127.

125 Idem, La Cifra, Ibidem, p. 311. 126 Idem, El Aleph, op. cit., p. 130. 127 “En el primer volumen de Parerga und Paralipomena releí que todos los hechos que pueden

ocurrirle a un hombre, desde el instante de su nacimiento hasta el de su muerte, han sido prefijados por él. Así, toda negligencia es deliberada, todo casual encuentro una cita, toda humillación una penitencia, todo fracaso una misteriosa victoria, toda muerte un suicidio.”, Ibidem, p. 97.

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Seja qual for o reverso da moeda em que apostaram os dois autores, as posições

aqui descritas tendem a convergir para um fatalismo radical e irónico responsável da

destabilização dos pilares e dos eixos nos quais se assenta a Razão, abananando

inexorável e irremediavelmente, também os conceitos de que esta se serve para

conceber, colocar e medir tanto a realidade fenoménica como o defluir dos eventos:

Mundo confranges-me por existir.

Tenho-te horror porque te sinto ser

E compreendo que te sinto ser

Até às fezes da compreensão.

Bebi a taça (...) do pensamento

Até ao fim; reconheci-a pois

Vazia e achei horror. Mas eu bebi-a.

Raciocinei até achar verdade,

Achei-a e não a entendo. Já se esvai

Neste desejo de compreensão

Inatendido inalteravelmente,

Neste lidar com seres e absolutos

O que em mim por sentir me liga à vida

E pelo pensamento me faz homem.

Já não penso como antes, nem que existo

Nem que existisse. E neste orgulho certo

Fechado mais ainda e alheado

Me vou do limitado e relativo

Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.

Com dolorosas incompreensões

E com compreensões mais dolorosas […]128.

Schopenhauer, e antes dele Kant, tinham empregue os termos sentido externo e

sentido interno para denominar as capacidades do conhecimento pelas quais

pressentimos a realidade externa a nós e a nossa realidade interior e profunda. Assim

sendo, se as nossas representações do mundo material envolvem, a todo o momento, a

junção dessas duas manifestações do espaço e do tempo, que a priori experenciamos

isoladamente – adjunção essa que é executada, segundo a doutrina gnoseológica de

128 Fernando Pessoa, Fausto – Tragédia subjectiva, texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha,

Lisboa, Presença, 1988, p. 166.

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Schopenhauer pela habilidade axiomática da percepção – ou seja, tais representações

do que nos é oferecido como externo a nós, cingem-se ao nosso sentido interior e à sua

forma: o tempo.

Em plena aderência a esta linha conceptual, a corroboração de uma

temporalidade e de uma espacialidade interiores que não correspondem às exteriores,

às aristotélicas e cartesianas, levam Pessoa, em dados momentos, a degradar a Ciência

ao nível dum “saber vão, pobre e cego”129, a negar de todo a existência do espaço130 ou,

quando muito, a reduzi-lo a uma região de propriedade exclusiva do intelecto

subjectivo131, a conferir ao tempo “o nada vivo em que estamos”, na sintética descrição

de Álvaro de Campos, e para onde vamos132 até encontrar, “do outro lado” o seu

“duplo”133, a consistência impalpável duma miragem134.

129 “A sciencia, a sciencia, a sciencia… / Ah, como tudo é nullo e vão! / A pobreza da

intelligencia / Ante a riqueza da emoção!”, BNP/E3, 33-46r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa – 1934-1935, op. cit., p. 173; “Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.”, Idem, Poesias, edição de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor, Lisboa, Ática, 1942, p 216.

130 “If space exist, it must exist somewhere. Where? In space. And where does this space exist? In another space. But space cannot exist thus, by itself. Space cannot be the reason of its own existence. This can be said only of Being. Therefore space does not exist. But is it logical, is it rational to ask where space exists? Does not the word where presuppose a space? Yes and no. It presupposes a space merely because space becomes necessary to us for the conception or perception of anything, of any object. This brings the argument to where it was that space exists by itself. We do but take space as an object when we ask where it is. But space cannot exist by itself, for what exists by itself is that which bears in its essence, (in its name) the reason of its existence. This can be true but of Being. Therefore space (unless it be identical with Being) does not exist. «The question where does space exist?» is natural to man, but merely because man has need of the idea of space. Either space does not exist, or it exists by itself. By itself only Being can exist. Space is inexistent.”, BNP/E3, 24-26; cf. Idem, Textos Filosóficos, op. cit., pp. 41-42.

131 “Não vejo difficuldade essencial em construir um instrumento de precisão, para uso auto-analytico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente aços e bronzes, mas do espirito. E talvez mesmo assim que elle deva ser construído. Será talvez preciso arranjar a idéa de um instrumento de precisão, materialmente vendo essa idéa, para poder proceder a uma rigorosa analyse intima. E naturalmente será necessario reduzir tambem o espirito a uma especie de materia real com uma especie de espaço em que existe. Depende tudo isso do aguçamento extremo das nossas sensações interiores, que, levadas até onde podem ser, sem duvida revelarão, ou crearão, em nós um espaço real como o espaço que ha onde as cousas da materia estão, e que, aliás, é irreal como cousa. Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Talvez a investigação científica do futuro venha a descobrir que tudo são dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso.”, BNP/E3, 8-11v e 12r; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit., pp. 68-69.

132 “O único espaço é o tempo, e o tempo é nada.”, BNP /E3 44-15r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa 1915-192, op. cit., p. 223.

133 “Viajei. Julgo inutil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e mezes; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possivel medil-o.”, BNP /E3 4-80r e 81r; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit., p. 26.

134 “Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que elle tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fóra. A das emoções sei tambem que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação d’elle. A dos sonhos é errada; nelles roçamos o tempo, uma vez

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É objectivamente difícil não admitir nestas passagens a comparência de indícios

da doutrina gnoseológica do idealismo transcendental de Schopenhauer para qual o

espaço e o tempo, independentemente de serem percepcionados no mundo da realidade

empírica, são, na sua origem, duas intuições puras que definem a actividade do nosso

conhecimento sensível a priori ou, como sinteticamente defende Schopenhauer, são

duas funções do nosso cérebro que condicionam e favorecem a possibilidade do acesso

à experiência concreta do mundo.

Tampouco Jorge Luis Borges suporta esta tese quando troça do conhecimento

científico chegando, num primeiro momento, a negar, no conto utópico Tlön, Uqbar,

Orbis Tertius, transposição narrativa de um mundo à beira do paroxismo e do

histerismo onírico, a pertença do raciocínio matemático a um sistema cosmogónico

completo e conclusivo de codificações (as coincidências entre os resultados de uma

única operação concluída cada vez por pessoas diferentes, são explicadas por uma

prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro. Julgo, ás vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho.”, BNP/E3, 3-73r; cf. Ibidem, pp. 387-388. Sobre a imaterialidade e irrealidade física do tempo, Schopenhauer assere: “Il fatto che il tempo scorre ovunque e in tutte le teste in modo perfettamente uniforme lo si potrebbe assai bene comprendere se esso fosse qualche cosa di puramente esteriore, oggettivo, se fosse qualcosa di percepibile mediante i sensi, come i corpi. Ma non è così: non possiamo né vederlo né toccarlo. Inoltre esso non è affatto puro movimento o una qualsivoglia mutazione dei corpi: questa piuttosto è dentro il tempo, che dunque è già da essa presupposto come condizione: infatti l’orologio va avanti o indietro, ma non è il tempo che va con esso; bensì quell’elemento uniforme e normale, a cui si riferisce que presto e quel lentamente, è il reale decorso del tempo. [L’orologio misura il tempo ma non lo fa]. Se tutti gli orologi si fermassero, se persino il sole restasse fermo; se ogni e qualsiasi movimento o mutamento cessasse: ciò non impderibbe nemmeno per un attimo il decorso del tempo, bensì esso proseguirebbe il suo corso normale e scorrerebbe senza essere accompagnato da mutamenti. Tuttavia il tempo, come si è detto, non è qualcosa di percepibile, di dato esteriormente e di efficiente su di noi, insomma non è qualcosa di propriamente oggettivo. Allora non rimane da supporre altro se non che esso risieda in noi, che sia il nostro proprio processo mentale in continuo progresso o, come dice Kant, la forma del senso interno e di tutto il nostro rappresentare; sicche esso costituisce l’armatura ultima del palcoscenico di questo mondo oggettivo. Quella uniformità del suo corso in tutte le teste dimostra, più di qualunque altra cosa, che noi tutti siamo immersi nello stesso sogno, anzi che è un solo essere a sognare quel sogno.”, Arthur Schopenhauer, Parerga e Paralipomena, traduzione italiana di Mazzino Montinari, 2 vols., Vol. II, Milano, Adelphi, 2007, pp. 58-59. Una magistral sinopse das categorias de Tempo e Espaço em Schopenhauer devemo-la a Giuseppe Faggin: “Il tempo e lo spazio, in quanto forme a priori non si possono togliere via dal pensiero, ma il pensiero può togliere via tutto da essi: essi sono perciò divisibili all’infinito, omogenei, onnipresenti, vuoti, indeterminati e non hanno principio nè fine. [...] Il tempo per la sua assoluta idealità non produce per sè solo nessun effetto fisico né cambia nulla nel riposo o nel movimento di un corpo. [...] Anche lo spazio è ideale e intuibile a priori e perciò incorporeo e spirituale: lo spazio è uno solo e tutti i diversi spazi sono sue parti non successive ma simultanee. Esso è immobile e dura perpetuamente, ma tutto il moto è in esso ed è possibile solo in esso. Lo spazio si misura direttamente con se stesso e indirettamente con movimento che avviene simultaneamente nel tempo e nello spazio: esso rende possibile la persistenza della sostanza ed è la condizione a priori della geometria. Ciò prova che lo spazio appartiene al nostro intelletto, di cui è parte integrante e fornisce i primi fili al tessuto ideale sul quale viene poi rappresentato il variopinto mondo degli oggetti.”, Giuseppe Faggin, Schopenhauer - Il mistico senza Dio, Firenze, La Nuova Italia, 1951, pp. 54-55.

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associação de ideias e por exercícios mnemónicos); ou que desde a La penúltima

versión de la realidad até à Historia de la eternidad, de La doctrina de los ciclos, à La

Creación y P. H. Gosse e desde a Nueva refutación del tiempo, até à recolha poética El

otro, el mismo, refute e desconheça a atendibilidade da dimensão espácio-temporal em

favor de uma sua circularidade inquebrável135, de uma simultaneidade de tempos em El

jardín de senderos que se bifurcan136.

É ainda sob a influência da doutrina de Schopenhauer que podemos

compreender o sentido do poema La Recoleta do seu primeiro livro poético Fervor de

Buenos Aires:

[…] sólo la vida existe. el espacio y el tiempo son formas suyas, son instrumentos mágicos del alma, y cuando ésta se apague, se apagarán con ella el espacio, el tiempo y la muerte, [...]137

Mais correctamente Borges considera o tempo “un tembloroso y exigente

problema, acaso el más vital de la metafísica.”138 É sensível à sua inerente obscuridade:

por exemplo, que não se pode determinar a direcção ou que não se pode sincronizar139.

135 “Negar el tiempo es dos negaciones: negar la sucesión de los términos de una serie, negar el

sincronismo de los términos de dos series. [..] Por la dialéctica de Berkeley y de Hume he arribado al dictamen de Schopenhauer: «La forma de la aparición de la voluntad es sólo el presente, no el pasado ni el porvenir; éstos no existen más que para el concepto y por el encadenamiento de la conciencia, sometida al principio de razón. Nadie ha vivido en el pasado, nadie vivirá en el futuro: el presente es la forma de toda vida, es una posesión que ningún mal puede arrebatarle… El tiempo es como un círculo que girara infinitamente: el arco que desciende es el pasado, el que asciende es el porvenir; arriba, hay un punto indivisible que toca la tangente y es el ahora. Inmóvil como la tangente, ese inextenso punto marca el contacto del objeto, cuya forma es el tiempo, con el sujeto, que carece de forma, porque no pertenece a lo conocible y es previa condición del conocimiento» (Welt als Wille und Vorstellung, I, 54).”, Jorge Luis Borges, Otras Inquisiciones, op. cit., pp. 156-157.

136 “A diferencia de Newton y de Schopenhauer, su antepasado no creía en un tempo uniforme, absoluto. Creía en infinitas series de tempos, en una red creciente y vertiginosa de tiempos divergentes, convergentes y paralelos. Esa trama de tiempos que se aproximan, se bifurcan, se cortan, o que secularmente se ignoran, abarca todas las posibilidades. […] El tiempo se bifurca perpetuamente hacia innumerables futuros.”, Idem, Ficciones, op. cit., p. 116.

137 Idem, Fervor de Buenos Aires, in Idem, Obras Completas 1923-1972, op. cit., p. 18. 138Idem, Historia de la eternidad, in Ibidem, p. 353. 139 Inspirado certamente também por Platão, que via no tempo (ao qual pertencem os objectos)

uma imagem móvel da eternidade (à qual pertencem as ideias) e Plotino, segundo o qual para perscrutar e definir a natureza do tempo é indispensável conhecer primeiro a eternidade, Borges reflecte e escreve densamente sobre essa questão. Julga ter individuado “uma boa antecipação” dela na matemática moderna e no exemplo dos números infinitos da teoria dos conjuntos. A sua explicação da eternidade é paradoxal (ao ponto de ele próprio dizer que nega a sua fé): as possíveis experiências humanas são em número finito porque a vida é demasiado pobre e, mais cedo ou mais tarde, acaba por se repetir.

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Borges estava de tal forma fascinado pelo problema do tempo (e, por outro

lado, pela eternidade) que cede, mais de uma vez, à tentação de compilar a sua história

móvel. Não se deixou intimidar pelas ideias arriscadas ou improváveis, e aliás foi

seduzido mesmo por aquelas menos convincentes e engenhosas.

Primeiramente, contemplou os mundos virados ao contrário em que o tempo

corre do futuro para o passado ou nos quais o homem psicologicamente prevê o futuro

mas não o presente ou esquece o passado – filosoficamente, a memória não é menos

prodigiosa que a adivinhação do futuro.

Em segundo lugar, julgou a absurda hipótese de um segundo tempo, no qual

flui, rápida ou lentamente, o primeiro, e a sua generalização num número infinito de

vezes, cada um dos quais brota no precedente140.

Em terceiro lugar, disserta em torno da possibilidade de um tempo

perfeitamente causal, refém de um infinito passado hipotético, que é real somente a

partir da criação: por exemplo, um mundo no qual os dinossauros nunca existiram

porque a criação teve lugar depois do seu desaparecimento, mas os seus esqueletos

existem e podem ser achados por arqueólogos e espeleólogos141.

Finalmente, Borges pareceu gostar de especial modo da possibilidade de modificar o

passado e de transferi-lo do contexto físico ao psicológico142. Como justamente

sentenciou Piergiorgio Odifreddi “aplicada à literatura, uma tal ideia deixa de ser uma

provocação e torna-se uma estética.”

140 “Hacia 1843, Schopenhauer la redescubre. «El sujeto conocedor», repite, «no es conocido

como tal, porque sería objeto de conocimiento de otro sujeto conocedor» (Welt als Wille und Vorstellung, tomo segundo, capítulo diecinueve).”, Idem, Otras Inquisiciones in Idem, Obras Completas 1952-1972, vol. II, op. cit., p. 26.

141 “El primer instante del tiempo coincide con el instante de la Creación, como dicta san Agustín, pero ese primer instante comporta no sólo un infinito porvenir sino un infinito pasado. Un pasado hipotético, claro está, pero minucioso y fatal. Surge Adán y sus dientes y su esqueleto cuentan treinta y tres años; surge Adán (escribe Edmund Gosse) y ostenta un ombligo, aunque ningún cordón umbilical lo ha atado a una madre. El principio de razón exige que no haya un solo efecto sin causa; esas causas requieren otras causas, que regresivamente se multiplican10; de todas hay vestigios concretos, pero sólo han existido realmente las que son posteriores a la Creación. Perduran esqueletos de gliptodonte en la cañada de Lujan, pero no hubo jamás gliptodontes. Tal es la tesis ingeniosa (y ante todo increíble) que Philip Henry Gosse propuso a la religión y a la ciencia. Ambas la rechazaron. Los periodistas la redujeron a la doctrina de que Dios había escondido fósiles bajo tierra para probar la fe de los geólogos; Charles Kingsley desmintió que el Señor hubiera grabado en las rocas «una superflua y vasta mentira». En vano expuso Gosse la base metafísica de la tesis: lo inconcebible de un instante de tiempo sin otro instante precedente y otro ulterior, y así hasta lo infinito.”, Ibidem, pp. 31-32.

142 “Direi che il futuro è irrevocabile, ma non così il passato, giacché ogni volta che ricordiamo qualcosa lo modifichiamo, per povertà o ricchezza della nostra memoria, secondo come lo si voglia vedere.”, Jorges Luis Borges, Conversazioni con Osvaldo Ferrari, org. Francesco Tentori Montalto, Milano, Bompiani, 1986, p. 122.

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A teoria borgeana é que cada autor cria os seus precursores: a sua obra modifica

a nossa concepção do passado porque consente ler os textos precedentes como se esses

fossem suas antecipações e, portanto, de maneira completamente diversa da forma

como foram concebidos.

As palavras, rendidas à autoridade da arte e da filosofia, acabam por contar uma

história que surpreende também o seu criador e a realidade emancipa-se da

historicização graças ao potencial explicativo proveniente da energia poiética libertada.

A traduzibilidade, a comunicabilidade ostensiva da experiência estética é, portanto,

ilusória. Explica-se e realiza-se somente nas e com as palavras; a realidade pensada ou

imaginada, a passível de ser comunicada, é outra da realidade fenoménica, apercebida

como próxima dos sentidos. O preceito de Borges, estende-se à rebours a Pessoa e

naturalmente a Schopenhauer:

Só o que se pensa é que se pode communicar aos outros. O que se sente não se pode communicar.143

Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio (?) evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o “mundo exterior” comum a nós e a eles é o “mundo exterior” real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em mim?144

Apesar da arte e da vida germinarem do espaço, não ocupam todavia o idêntico

lugar, sendo cada um, um termo ontologicamente distinto. Escreve Soares: “Sim, a

Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente”.

Num cenário onde a destituição do Real, do racionalismo científico e das suas

articulações a priori dão-se como definitivas, há, contudo, algo “salvaguardado” com

tenacidade quer por Borges quer por Pessoa: a convicção, já enunciada por

Schopenhauer, de que o meio artístico é “o ramo do conhecimento em que está

contemplada a verdadeira essência do mundo, no seu subsistir fora e

independentemente de cada relação”145, uma alternativa à vida ascética que “alivia da

vida sem aliviar de viver”, que ajuda a libertar: libertar o homem do sofrimento, da

143 BNP/E3, 20-116r; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., p. 176. 144 Idem, Livro do Desasocego, op. cit., p. 463, cf. António de Pina Coelho, Os fundamentos

filosóficos da obra de Fernando Pessoa, vol. II, op. cit., p. 165. 145 Cf. Arthur Schopenhauer, Il mondo come volontà e rappresentazione, vol. II, op. cit., pp. 24-

25. No que respeita esse tema cf. também Jorge Luis Borges, De la alta ambición en el arte, in Idem, Textos Recobrados 1931-1935, Buenos Aires, Emecé Editores, 2001, pp. 352-353.

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paixão, enaltecidos na pura contemplação do sublime (a dano do belo146), da forma

abstracta, na inconsciência, na perda da individuação; o horizonte experiencial

encharcado de quietismo, o sono e o sonho em que se degusta o melífluo sabor da

consumpção, embora não duradoura, da insaciável Vontade autodevoradora:

A arte tem valia porque nos tira daqui.147

A arte tem por fim repousar o espirito. É o somno das civilizações.148

A arte livra-nos illusoriamente da sordidez de sermos. Emquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis. O amor, o somno, as drogas e intoxicantes, são fórmas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo effeito que ela. Mas amor, somno, e drogas tem cada um a sua desillusão. O amor farta ou desillude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruina de aquele mesmo physico que serviram de estimular. Mas na arte não ha desilusão porque a illusão foi admitida desde o princípio. Da arte não ha despertar, porque nella não dormimos, embora sonhassemos. Na arte não ha tributo ou multa que paguemos por ter gozado d’ella. O prazer que ella nos offerece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagal-o ou que arrepender-nos d’elle. Por arte entende-se tudo que nos delícia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.149

Toda a literatura, e sobretudo toda a poesia, corresponde a um desejo de fugir a vida.150

A arte suprema tem por fim libertar – erguer a alma acima de tudo quanto é estreito, acima dos instintos, das preocupações morais ou imorais. […] Toda a arte deve dar prazer – o typo de prazer é que varia. A arte inferior dá prazer porque distrahe, liberdade porque liberta das preocupações da vida; a arte superior

146 “Ciò che adunque distingue il sentimento del sublime dal sentimento del bello, è questo: nel

bello il puro conoscere há preso senza lotta il sopravvento, mentre la bellezza dell’ogetto, ossia la conformazione di esso, che ne lascia facilmente conoscer l’idea, há senza opposizione e quasi inavvertitamente la volontà e la conoscenza delle relazioni, che la serve, allontanato dalla conscienza; e lasciata questa sopravvivere come puro soggetto del conoscere, sì che della volontà non resta neppure un ricordo: invece nel sublime quello stato del puro conoscere è raggiunto solo mdiante un cônscio ed enérgico districarsi dalle relazioni di quello stesso oggetto com la volontà, riconosciute sfavorevoli; e mdiante un libero elevarsi, accompagnato dalla conscienza, sopra la volontà come sopra la conoscenza ch a lei si riferisce. Codesta elevazione deve non soltanto esser guadagnata consapevolmente, ma anche conservata; l’accompagna quindi un continuo ricordo della volontà, ma non di un singolo, individuale volere umano in genere, in quanto esso è genericamente expresso per mezzo della sua oggettità, ossia del corpo umano.”, Arthur Schopenhauer, Il mondo come volontà e rappresentazione, vol. II, op. cit., p. 232.

147 BNP/E3, 3-10r; cf. Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit., p. 194. 148 BNP/E3 22-4r ; cf. Idem, Textos Filosóficos, vol. I., op. cit., p. 9. 149 BNP/E3, 3-3r; cf. Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit., p. 481. 150 BNP/E3, 71A-32r; cf. Idem, Prosa de Álvaro de Campos, Edição de Jerónimo Pizarro e

António Cardiello, Colaboração Jorge Uribe, Lisboa, Ática, 2012, p. 276.

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menor dá prazer porque alegra, liberdade porque liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta, liberdade porque liberta da propria vida.151

O conhecimento desvinculado da vontade – isto é, a verdadeira e própria

actividade metafísica – não passa de uma atitude estética: a transformação do mundo

num espectáculo que se pode examinar com desinteressado prazer. A arte, ou mais

concretamente, a reacção que a arte induz no espectador, é o paradigma deste tipo de

experiência da realidade.

Lê-se em Schopenhauer: “Il godimento del bello, il conforto che l’arte può

dare, l’entusiasmo dell’artista, che gli fa dimenticare i travagli della vita [...] tutto ciò

poggia sul fatto che [...] l’in-sé della vita, la volontà, l’essere medesimo sono un

perenne soffrire, in parte miserabile, in parte orrendo, mentre l’essere medesimo quale

semplice rappresentazione, puramente intuita, o riprodotta dall’arte, libera da dolore,

offre un significante spettacolo.”152

Uma geração mais tarde, Nietzsche teria afirmado a mesma ideia, ainda que

com a atitude de quem quer ir além de qualquer doutrina anterior. A expressão,

utilizada pelo mesmo: “O mundo é justificável apenas como fenómeno estético”,

significa isto, que só transformado em fenómeno estético é que o mundo é suportável.

O desígnio declarado do capítulo seguinte é levarmos à compreensão de como, este

princípio cabal, preserva a sua continuidade também na obra de Fernando Pessoa.

151 BN/E3, 18-44r a 44v; cf. Idem, Página de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, edição de

Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1996, p. 53. 152 Arthur Schopenhauer, Il mondo come volontà e rappresentazione, op. cit., p. 358.

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CAPÍTULO III

Pessoa leitor de Gaultier: De Kant à Nietzsche (1910)

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3.1. Arte trágica e poiésis heteronímica Sou isso, diz ele, desde a nascença até ao fundo do coração, tirando, atraindo, levantando e criando, um atirador, um amestrador e um educador.

153

Friedrich Nietzsche O que é preciso é compenetrarmo-nos de que, na leitura de todos os livros, devemos seguir o autor e não querer que elle nos siga. A maior parte da gente não sabe ler, e chama lêr a adaptar a si o que o autor escreve, quando, para o homem culto, comprehender o que se lê é, ao contrario, adaptar-se ao que o autor escreveu. Pouca gente sabe lêr, os eruditos, propriamente taes, menos que ninguem.

António Mora

Numa passagem do Des livres, ensaio incluído no livro II, que faz parte da biblioteca

pessoal de Fernando Pessoa, Michel de Montaigne pronuncia-se da seguinte forma

sobre a prática da leitura: “Je ne cherche aux livres qu’à m’y donner du plaisir par un

honneste amusement; ou si j’estudie, je n’y cherche que la science qui traicte de la

connoissance de moy mesmes, et qui m’instruise à bien mourir et à bien vivre.”154

Apesar de se aproximar do poeta francês, no que respeita à propensão lúdica atribuída

ao acto de ler Pessoa, todavia, distancia-se pela atitude mais reservada com a qual

medita sobre o tema do auto-conhecimento, alcançado através do contacto com os

livros. Disso é prova tangível uma nota, provavelmente do início dos anos 10, onde o

poeta português formula a seguinte reflexão, imbuída da mistificação teatral que tanto

distingue a sua obra heteronímica:

I have outgrown the habit of reading. I no longer read anything except occasional newspapers, light literature and casual books technical to any matter I may be studying and in which simple reasoning may be insufficient. The definite type of literature I have almost dropped. I could read it for learning or for pleasure. But I have nothing to learn, and the pleasure to be drawn from books is of a type that can with profit be substituted by that which the contact with nature and the observation of life can directly give me.

155

153 “Je suis cela, dit-il, dès l'origine jusqu'au fond de coeur, tirant, attirant, soulevant et élevant,

un tireur, un dresseur et un éducateur. ”, Friedrich Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, traduit par Henry Albert, ed. in-8, Paris, Mercure de France, [s.d.], pp. 335. Cf. Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, 4ème ed., Paris, Mercure de France, 1910, p. 31.

154 Michel de Montaigne, Les essais de Montaigne, Publiés d’après l’édition de 1588, avec les

variantes de 1595, vol. II, Paris, Ernest Flammarion Éditeurs, [s.d.], p. 91. 155

Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit., p. 20.

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Os numerosos volumes não inerentes à literatura ligeira ou a documentos

técnicos, adquiridos numa época posterior à data que se considera fronteira genésica

dos seus alter-ego (Março 1914) e em seguida agrupados no acervo de livros, revistas e

folhas soltas com o qual é hoje composto o arquivo hemero-bibliográfico de Fernando

Pessoa, são, com efeito, testemunhos de como nem tudo o que ele argumenta nessa

passagem deve ser interpretado literalmente. Mas não só. Da mesma forma,

perspectivam-se indicadores de como as disciplinas filosóficas constroem um objecto

de estudo intenso e recorrente sobretudo nos biénios 1906-1907 (como já adiantámos)

e 1915-1916. A este último filão pertence o livro de De Kant à Nietzsche (na quarta

edição de 1910)156 da autoria de Jules de Gaultier, filósofo e ensaísta francês, trinta

anos mais velho que o poeta seu leitor, crítico feroz do academismo filosófico tão em

voga na França da sua época157. O exemplar do livro de Gaultier conservado na Casa

Fernando Pessoa encontra-se muito trabalhado, em termos de passagens sublinhadas

(que terão sido colocadas pouco antes de 1915), sobretudo na secção relativa à

exposição de alguns princípios de matriz mais helenista de Nietzsche (pp. 251-332). De

Kant à Nietzsche exibe uma assimilação elitista e positiva que supera a filosofia

moderna e pertence ao restrito número de textos mais ou menos monográficos

dedicados ao pensador alemão que se conserva na biblioteca de Fernando Pessoa.

Esses textos ajudam a provar que a recepção de Nietzsche, por parte de Pessoa,

foi, fundamentalmente indirecta158 e confirmam a dificuldade em estudar a questão das

156 A primeira edição é de 1900. 157

A profunda hostilidade perante a philosophie officielle francesa, entre os séculos XIX e XX, levou Jules de Gaultier (1858-1942) a não prosseguir a profissão de filósofo, como demonstra a sua escolha de uma carreira no Ministério do Tesouro e não como docente universitário. Esse princípio também se constituirá o centro de muitas das suas análises filosóficas e de crítica literária (entre as quais Le Bovarysme, Essai sur le Pouvoir de l’Imagination de 1902 e Le génie de Flaubert de 1912) onde investiga, através de uma perspectiva estranha ao dogma da academia, a evolução da humanidade. A sua abordagem foi uma tentativa de explicar os processos da mutação no espectáculo fenoménico, recorrendo a uma interpretação do bovarismo que passa pela sua definição de “faculdade concedida ao sujeito de se aperceber como algo de diferente de si próprio” por trás da qual se esconde um efectivo distúrbio da personalidade causado pelo binómio ambição-fracasso. De Jules de Gaultier, na biblioteca particular de Pessoa, além de De Kant à Nietzsche encontra-se apenas La dépendance de la morale et l’indépendance des mœurs, Paris, Société du Mercure de France, 1907. Sobre Flaubert em Pessoa, consultar Fernando Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, volume VII, Edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 435-436.

158 Juntamente com O Anticristo, como revela Jerónimo Pizarro, referindo-se a Pessoa e aos

anos da sua formação universitária: “o jovem estudante parece ter lido Assim falava Zarathustra na tradução espanhola de Pedro González-Blanco e foi através dela e de pelo menos mais dois autores franceses, Eugène de Roberty (Frédéric Nietzsche, 1902) e Jules de Gaultier (De Kant à Nietzsche, 4ª

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influências do pensamento nietzschiano na obra de Pessoa, o qual tem sido um

problema bastante explorado, prevalentemente na última década159. Não faltam

contributos160 a destacar a evidente contiguidade entre os dois autores a sublinhar

paralelos: a maneira de encarnar a denúncia da decadência da civilização humana, a

repulsa da ideia iluminista de progresso evolucionista e científico, e o desprezo pelo

cristianismo (acusado de espalhar pelo mundo o “morbo mental” da crença em

princípios morais negadores da vida e da desigualdade natural dos seres; os anúncios

super-humanos impregnados de individualismo aristocrático). Aqui estudaremos a

questão das influências do pensamento nietzschiano na obra de Pessoa, sem descurar a

sua biblioteca pessoal e, nomeadamente, o livro de Gaultier cujo penúltimo capítulo

evoca, logo no princípio, Nietzsche e a sua peremptória adversão à alegada

cientificidade e incorruptibilidade dos sistemas filosóficos:

Tout système philosophique est l'objectivation dans la mentalité d'un tempérament prenant conscience de ses manières d'être, de ses désirs et de ses aversions, érigeant en bien ce qui le favorise, en mal ce qui lui est contraire. – Cette idée domine et éclaire toute la philosophie de Nietzsche […].

161

ed., 1910), e um inglês, Alfred Benn (Revaluations, 1909), que formulou uma ideia mais precisa da sua filosofia.”, Jerónimo Pizarro, A representação da Alemanha na obra de Fernando Pessoa, in AA. VV, Românica, Nº 15, Lisboa, Edições Colibri, 2006, p. 96. Agrega-se a essa lista de volumes de incidência nietzschiana que Pessoa possuiu, pareceu ter possuído ou quis possuir, La Philosophie de Nietzsche (1898) de Henri Lichtenberger, Nietzsche e L’immoralisme (1902), de Alfred Fouillé, Nietzsche His Life and Works de Maximilian August Mügge (1910) e sobretudo Entartug (na sua tradução francesa Dégénérescence) de Max Nordau (1849-1923), um pensador húngaro de adopção alemã e formação médica, muito em voga na viragem do século XIX para o XX. Como nos refere Nuno Ribeiro: “Este livro não consta na Biblioteca Particular de Pessoa, mas é referido pelo menos em quatro listas de leituras. Na edição de Escritos sobre Génio e Loucura são apresentadas as notas de leitura que Pessoa fez deste livro, o que prova que o leu. O segundo volume de Dégénérescence contém uma secção de cem páginas intitulada «Frédéric Nietzsche» que é a fonte de inspiração para as considerações que Pessoa faz acerca da genialidade e loucura de Nietzsche.”, Nuno Ribeiro, Fernando Pessoa e Nietzsche: O pensamento da pluralidade, Lisboa, Verbo, 2011, p. 54.

159 Outros trabalhos mais recentes e significativos focados no tema, são os de Steffen Dix, «Pessoa e Nietzsche: deuses gregos, pluralidade moderna e pensamento europeu no princípio do século XX», in Clio – Revista do Centro de Historia da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 139-174; António Azevedo, Pessoa e Nietzsche, Lisboa, Instituto Piaget, 2005; Mattia Riccardi, «Dionysus or Apollo? The heteronym Antonio Mora as moment of Nietzsche's reception by Pessoa», in Portuguese Studies, vol. 23, nº 1, 2007, pp. 109-123; Adelino Braz, Pessoa et l’ombre de Nietzsche. Le tournant manqué du renversement des valeurs, Paris, Éditions Lusophone, 2008; Pablo Javier Pérez López, Poesía, Ontología y Tragedia en Fernando Pessoa, op. cit., pp. 193-369.

160 Para um conhecimento mais abrangente e pormenorizado deste tipo de bibliografia, aconselha-se a consulta de José Blanco, Pessoana, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, onde a entrada “Nietzsche” é amplamente representada.

161 Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, op. cit., pp. 251-252.

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Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche (CFP, 1-52, pp. 251-252) [detalhe]

Apesar de não ostentar nenhuma intervenção manuscrita nem sinais de leitura, a

passagem encimada acabou por se sedimentar na memória de Pessoa, quando a revisita

à sua maneira, resgatando as variáveis históricas que Nietzsche rejeita:

Friedrich Nietzsche

1. O proprio Nietzsche asseverou que uma philosophia não é senão a expressão de um temperamento. Que □ Não é assim, sufficientemente. As theorias de um philosopho são a resultante do seu temperamento e da sua epoca. São o effeito intellectual da sua epoca sobre o seu temperamento. Outra cousa não podia ser.

162

Ou quando, num documento pouco anterior a este – que os principais

especialistas da prosa desassossegada de Fernando Pessoa, excepto Pizarro, atribuem a

Soares – postula: “É inútil argumentar com qualquer philosopho, pois a sua philosophia

não depende do seu intelecto mas sim do seu caracter.”163

162 BNP/E3, 19-99r; cf. Fernando Pessoa, Página de Estética e de Teoria e Crítica Literárias,

op. cit., p. 333. 163 Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Organização e fixação de inéditos de Teresa

Sobral Cunha, 2 vols., vol. II, Lisboa, Presença, 1990, p. 104.

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Contrariamente à premissa inicial, a presente secção do livro de Gaultier não

fornece a Pessoa outras indicativas causas de contrariedades. Em contraponto, na

página 304, logo na primeira linha da folha, o detalhe da apreciação “Ainsi l’œuvre

d’art est la suprême explication de la Vie” sublinhada pelo punho do ilustre leitor,

sugere um tácita coesão Nietzsche-Pessoa via Gaultier.

Esta ideia já tinha sido esboçada por Nietzsche em escritos juvenis como O

Nascimento da Tragédia (1872) e A Filosofia na Época Trágica dos Gregos (1873),

onde o filósofo já adverso ao critérios metodológico da filologia académica alemã,

propõe, pela primeira vez, uma apreciação do mundo clássico bem diferente daquela da

cultura europeia dos seus tempos (interprete de uma civilização grega da decadência,

depositária de uma força criadora extinta).

A ideia, consolidada posteriormente na Gaia Ciência, consiste na recuperação

do molde originário do espírito grego, o conúbio de dois elementos primordiais

contrapostos, embora interagentes, que Nietzsche, em diferentes graus, absorve de

Schopenhauer e Wagner. O primeiro, luminoso, bem definido, propagador de um

mundo de formas límpidas, oníricas e harmoniosas através da escultura e das artes

figurativas, que conheceu com a afirmação do Renascimento, uma nova fase áurea. O

segundo, mais “barbárico”, obscuro, irracional, indefinido e ambíguo, detector e

detentor do caos no ser; fautor do vitalismo, da espontaneidade e da loucura visionária

atiçada por músicas e danças inebriantes164. Resgatando estes dois impulsos atávicos da

epopeia olímpica dos helenos165, Nietzsche revisita à sua maneira uma componente

central da estética kantiana: a arte transforma, com um acto de aquiescência, a fraqueza

164 Recorda Gianni Vattimo: “Questo rapporto fra apollineo e dionisiaco è anzitutto un rapporto

di forze all’interno dell’uomo singolo, che all’inizio dell’opera nietzsche paragona agli stati del sogno (l’apollineo) e dell’ebbrezza (il dionisiaco); e che funziona nello sviluppo della civiltà come la dualità dei sessi nella conservazione dellea specie. Tutta la cultura umana è frutto del gioco dialettico di questi due impulsi (Triebe); che poi si specificano anche più determinatamente, come Kunstriebe, impulsi artistici.”, Gianni Vattimo, Introduzione a Nietzsche, Roma-Bari, Laterza, 2005, p. 16.

165 “Il Greco conobbe e sentì i terrori e le atrocità dell’esistenza: por poter comunque vivere, egli dovè porre davanti a tutto ciò la splendida nascita sognata degli dèi olimpici. L’enorme diffidenza verso le forze titaniche della natura [...] fu dai Greci ogni volta superata, o comunque nascosta e sottratta alla vista, mediante quel mondo artistico intermedio degli dèi olimpici.”, Friedrich Nietzsche, «La nascita della tragedia», in Idem, La nascita della tragédia, trad. italiana di Giorgio Colli e Mazzino Montinari, vol. III, tomo 1, Milano, Adelphi, 1972, p. 32.

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humana em força, a impotência em potência, a hesitação em certeza, a destruição em

criação ébria166.

Se na perspectiva de Kant a arte certifica e alimenta a finitude humana, sendo

uma das suas manifestações positivas fundamentais, para o jovem professor de

Filologia Clássica em Basileia, a arte desmascara no homem o infinito das

possibilidades e a exaltação do Si.

Considere-se Diónisio: ele é símbolo da adesão voluntária e entusiástica ao

carácter original, irracional, e virulento da vida. É quem impõe a sua aceitação e a sua

afirmação167. Deus da embriaguez, do júbilo, da mania, agitador de fortes pathemata

(paixões), bane cada renúncia subtraindo-se ao principium individuationis e pressupõe

166 Na ebriedade, Nietzsche evidencia um aspecto dúplice: o sentimento da força e o da

plenitude. Este potenciamento da força deve ser entendido como o poder-além-de-si-mesmo, como uma relação com o ente na qual o próprio ente é vivido como mais existente, mais rico, mais transparente, mais essencial. O potenciamento não quer dizer que objectivamente assuma o controlo um a mais, um aumento de força, mas deve ser entendido no sentido da disposição do ânimo. Também a sensação de plenitude não significa um acúmulo crescente de eventos interiores, mas aquele ser disposto a deixar-se predispor de modo que nada lhe pareça estranho e nada demais; que está aberto a tudo e pronto a tudo: a exaltação máxima e a oportunidade máxima, lado a lado. Assim deparamo-nos num terceiro aspecto do sentimento de embriaguez: a interpenetração recíproca de todos os melhoramentos de todas as faculdades de fazer e contemplar, de receber e dirigir a palavra, de comunicar e deixar-se ir livremente. Dessa forma entrelaçam-se estados que racional e geralmente são estranhos entre si. Por exemplo: o sentimento de embriaguez religiosa e a excitação sexual (dois sentimentos profundos, afinal quase coordenados de forma surpreendente). Aquilo que Nietzsche entende como sentimento de embriaguez como sentimento estético fundamental, também é esclarecido tendo como base o fenómeno oposto: os estados não artísticos de quem está sóbrio, de quem está cansado, exausto, árido, empobrecido, de quem empalidece e desaparece, daquele em cujos olhos a vida agoniza. A embriaguez é um sentimento. Mas da comparação entre o estado artístico e o estado não artístico é particularmente claro que com o termo embriaguez Nietzsche não entende um estado passageiro, que desaparece rapidamente como uma ressaca. É portanto difícil tomar a embriaguez por afecto, mesmo que definíssemos este termo no sentido mais exacto obtido anteriormente. Aqui, como no caso anterior, continua a ser difícil, senão impossível, aplicar termos de uso comum, tais como afecto, paixão, sentimento como determinações essenciais, sem averiguação.

167 “Dionísio se metamorfoseia em afirmações múltiplas, tanto mais que não se resolve no ser original ou não reabsorve o múltiplo mum fundo primitivo. Afirma as dores da crença, tanto mais que não reproduz os sofrimentos da individuação. É o deus que afirma a vida, para quem a vida tem de ser afirmada, mas não justificada nem resgatada. O que impede, todavia, este segundo Dionísio de se sobrepor ap primeiro, é o facto de o elemento supra-pessoal acompanhar sempre o elemento afirmador e atribuir-se finalmente o benefício.”, Gilles Deleuze, Nietzsche e la filosofia, tradução de António M. Magalhães, Porto, RÉS, [s.d.], p. 22; “Dioniso è l’impossibile, l’assurdo che si dimostra vero con la sua presenza. Dioniso è vita e morte, gioia e dolore, estasi e spasimo, benevolenza e crudeltà, cacciatore e preda, toro e agnello, maschio e femmina, desiderio e distacco, giuoco e violenza, ma tutto ciò nell’immediatezza, nell’interiorità di un cacciatore che si slancia spietato e di una preda che sanguina e muore, tutto ciò vissuto assieme, senza prima né dopo, e con pienezza sconvolgente in ogni estremo. E alla fine questa contraddizione è qualcosa di ancora più divergente, più insanabile di quella che i Greci hanno sperimentato in se stessi. Nel contemplare Dioniso, l’uomo non riesce più a staccarsi da se stesso, come fa quando vede gli altri dèi: Dioniso è un dio che muore. Nel crearlo l’uomo è stato trascinato a esprimere se stesso, tuto se stesso, e qualcosa ancora al di là di sé. Dioniso non è un uomo: è un animale e assieme un dio, così manifestando i punti terminali delle opposizioni che l’uomo porta con sè.”, Giorgio Colli, La Sapienza Greca, 3 vols., vol. I, Milano, Adelphi, 2005, p. 15.

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uma reconciliação com a natureza na própria natureza. Objecto de culto em rituais

xamânicos e comemorativos, celebrava o poder irrefreável dos instintos acabando por

unir o seu nome quer à tragédia, entendida como transposição de uma composição

literária um palco repleto de actores mascarados, quer ao trágico como categoria da

existência regida pela hybris, pela crueldade, pelo delito, pelo conflito interior e pelas

controvérsias insanáveis168 contingentes à experiência do sofrimento. Nelas o homem,

a par dos deuses, toma conhecimento, mesmo graças ao agente imaginário e lúdico do

espectáculo teatral, de um mundo transeunte e desventurado – a encenação do Mito –

sobre o qual grava inevitavelmente o cinismo e o grotesco do Destino.169

Na representação trágica o espectador tem, por conseguinte, um papel activo:

não considerava o momento teatral como um entretenimento, mas uma realidade

alternativa, fundada nas suas próprias leis, onde se apercebia que aquilo não era apenas

um assistir passivo: aquele espectáculo era a essência do mundo, contagiante,

arrebatadora dos objectos considerados reais.

Por outras palavras, a tragédia nasceu de uma espécie de interpretação, feita

pelo poeta, e dos actores que a encenam do mito, de modo que este assume um valor

universal e possa melhor representar a tragédia da vida de cada homem. O mito torna-

se assim um paradigma da condição humana e, paralelamente, o herói mítico, que antes

era estático e fixo na sua dimensão heróica, agora é multifacetado, ambíguo, à mercê

de paixões que o perturbam e sujeito a forças superiores que lhe traçam o destino. Tal

destino, para cada herói, já foi marcado no mito. O espectador já conhece as suas

168 “Devozione, straordinaria maschera dell’impulso vitale! Abbandono a un compiuto mondo

di sogno, che conferirà la più elevata sapienza etica! Evasione dalla verità, per poterla adorare di lontano, nascosta nelle nuvole! Conciliazione con la realtà, in quanto enigmatica! Rifiuto dello scioglimento degli enigmi, visto che non siamo dèi. Prostrazione gioiosa nella polvere, calma felice nell’infelicità! Suprema espropriazione dell’uomo nella sua suprema espressione! Glorificazione e trasfigurazione di tutte le vie dell’orrore e della paura esistenziali come vie che salvano dall’esistenza! Trionfo della volontà nella sua negazione!”, Friedrich Nietzsche, La visione dionisiaca del mondo, trad. italiana di Sergio Givone, Roma, Newton Compton, 2007, p. 64.

169 “Um conflito no espírito helénico entre o amor da Vida total e, por outro lado, o constrangimento a que obriga a sociedade. A religião grega, na sua última essência, é a adoração desta Vida plena, sem o cuidado do mundo. […] A lição dos deuses não era plenamente seguida sobre a terra pelos homens; então os gregos sentiram a necessidade de expiar a culpa, de viver a Vida divina, de, por um momento, se integrar no Universo. E a tragédia não é mais do que a provocação do estado de espírito que o levará a abandonar a vida social pela Vida plena; a tragédia é ainda uma orgia de Dioniso, a agitação interior que rompe todos os laços que prendem a alma e a impedem de se unir a Deus.”, Agostinho da Silva, «A Religião Grega», Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, in Idem, Estudos sobre Cultura Clássica, org. de Paulo A. E. Borges, Lisboa, Âncora, 2002, pp. 175-176.

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acções e participa do paradoxo da sua condição: livre de escolher mas destinado a um

fim já escrito.

A transfiguração do horrível e do absurdo destino em imagens ideais, todavia,

não seria metabolizada e tolerada sem a modulação e a disciplina da visão plástica

conseguida por meio das artes figurativas, isto é, através da inoculação do elemento

plástico-visual no reinado do extra-rapresentativo170; da dimensão apolínea no

dionisíaco171.

Gaultier, a tal propósito, salienta na página 302 do seu livro, as seguintes

palavras, pontualmente destacadas por Pessoa com um traço a tinta preta: “Ce que l’art

Dionysien ajoute à l’art Apollinien, c’est la conscience chez l’artiste de l’identité du

spectacle et du spectateur.”

170 Cf. Sandro Barbera, «Apollineo e dionisiaco. Alcune fonti non antiche di Nietzsche», in AA.

VV., La “biblioteca ideale” di Nietzsche, a cura di Giuliano Campioni e Aldo Venturelli, Napoli, Guida Editori, 1992, pp. 45-70.

171 “C’est l’union de l’esprit Apollinien et de l’esprit Dionysien qui, selon Nietzsche, a donné

naissance à la tragédie grecque. La conception pessimiste de la vie qui s’y manifeste, l’inéluctable destin que l’on y voit peser sur tous les actes, qui marque d’un sceau religieux les événements les plus cruels, qui incline toute morale sous le faix de la nécessité et divinise l’horrible, cette conception pessimiste «chez les Grecs de l’époque la plus forte, la plus vaillante», s’explique par l’initiation dionysienne. C’est elle qui permet au Grec d’affronter le réel.”, Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, op. cit., p. 302. “Il coro tragico è il simbolo della massa dei seguaci di Dioniso, la cui ebbrezza oblitera il principio di individuazione. Il che in freddi termini teoretici si può chiamare uno stato di immediatezza extrarappresentativa. «In questo incantamento chi è esaltato da Dioniso vede ae stesso come satiro contempla il dio, cioè egli vede nella sua trasformazione una nuova visione fuori di sè, come compimento apollineo del proprio stato… Secondo questa conoscenza dobbiamo intendere la tragedia greca in quanto coro dionisiaco, che sempre di nouvo si scarica in un mondo apollineo di immagini».”, Giorgio Colli, Scritti su Nietzsche, Milano, Adelphi, 1995, p. 111.

Eugen Fink, com admirável perspicácia, descreve assim a “incameração” dos impulsos Dionisíaco e Apolíneo nos alvores da produção filológico-filosófica nietzschiana: “Egli era partito dagli impulsi artistici dell’uomo, per porre, analogicamente, le forze esistenziali del sogno e dell’ebbrezza, Apollo e Dioniso, come principi cosmici; ciò che lì era filo conduttore, viene ora reinterpretato attraverso le scoperte compiute seguendo questo filo. Partendo dagli impulsi artistici dell’uomo, Nietzsche giunse ad entrambi i principi metafisici del mondo – e ora si spiega la stessa arte umana come avvenimento cosmico. Attraverso l’uomo e nell’uomo, nella misura in cui egli si apra nell’arte alle forze cosmiche fondamentali di Dioniso e Apollo, si compie un avvenimento cosmico. […] Nietzsche cerca la più alta unione e compenetrazione del dionisiaco e dell’apollineo, e la trova nell’antica tragedia. Questa per lui non è una forma dell’arte, che sgorga dalla bella apparenza e in essa si perda, ma – detto paradossalmente – la rapprensentazione apolínea del dionisíaco stesso; l’appartenenza del bello è quis cossa da una corrente che proviene da quelle profondità che essa copriva; nella luce si aggirano come fantasmi le ombre della nota; il «fenomeno» lascia in un certo senso trasparire l’essere che gli sta dietro; il fenomeno viene riconosciuto «come tale» e contemporaneamente in-tuito; dietro alla bella imagine si mostra l’onda che la affonda. Nella tragedia coesistono entrambi: l’abisso dell’Uno Originario che si manifesta soltanto nella música e il luminoso mondo di sogno delle figure, uniti, l’uno dentro l’altro; Apollo e Dioniso formano un legame di «fratellanza».”, Eugen Fink, La filosofia di Nietzsche, trad. italiana di Pisana Rocco Traverso, Padova, Marsilio, 1993, pp. 28-29.

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A julgar pelos fragmentos pessoanos, referentes ao exclusivo dom do poeta de

levar o Universo no homem ao grau de suprema consciência172, podemos supor que a

frase de Gaultier, além de atestar a importância fulcral na estética nietzschiana da

ligação espectáculo-espectador, deve ter cativado Pessoa, também para o papel

atribuído ao artista: o possuidor da visão identitária desse binómio, o grande

divinizador e dinamizador da vida.

Trata-se de uma posição que Nietzsche inaugurara já dois anos antes da

aparição do Nascimento da Tragédia nos esboços de duas suas palestras O Drama

Musical Grego e Sócrates e Tragédia. São publicações póstumas que, apesar de

inevitáveis reformulações culminadas numa fase mais “iluminista” que se afasta

bruscamente de Wagner e Schopenhauer173, não largará nunca, demonstrando o quanto

não varia nele as convicções dos textos mais filológicos: a confiança no fenómeno

transfigurador e revitalizador da arte174. Em concreto a não ser deposta, é a eleição da

172

“Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante coisa, mais terrível missão – dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística. […] Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito. […] tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade.”, Fernando Pessoa, Correspondência. 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, pp. 140-142. “Mais do que outra, quereria que a minha acção pela vida fosse a de educar os outros a sentir cada vez mais para si proprios, e cada vez menos segundo a lei /dynamica/ da collectividade.”, BNP/E3, 5-40r; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit, p. 102.

173 N’ O Nascimento da tragédia e nas Considerações intempestivas, nos textos relativos ao projecto do “livro do filósofo”, a arte ainda estava ligada seja a uma função cultural e existencial severa, seja na forma de um contraste tipo ideal entre a liberdade da necessidade do intelecto intuitivo operante na arte, irónico e divertido, e a submissão à necessidade e à realidade da abstracção conceptual. O Nietzsche “espírito livre” pós-wagneriano, é portador de uma avaliação diferente, que, se conserva de um lado a noção de difusão da arte na dinâmica vital intuída e já descrita nas obras anteriores e nos seus relativos esboços, vê agora a presença não de exemplos metafísicos-vitalistas mas em todo o campo da quotidianidade das relações interpessoais e nas articulações da vida social e do seu todo: “Ogni arte, ogni filosofia, possono essere considerate come uno strumento di cura e di aiuto al servizio della vita che cresce e lotta: esse presuppongono sempre sofferenze e sofferenti. Ma ci sono due specie di sofferenti, quelli che soffrono per la sovrabbondanza della vita, che vogliono un’arte dionisiaca e quindi una visione e una percezione tragica della vita, e quelli che soffrono per l’impoverimento della vita, che con l’arte e la conoscenza cercano la tranquillità, il silenzio, il mare in bonaccia, liberazione da se stessi attraverso l’arte, o anche l’ebbrezza, lo spasimo, lo stordimento, la follia. Alla doppia esigenza di questi ultimi corrisponde tutto il romanticismo nelle arti e nelle conoscenze, a costoro corrispondevano (e corrispondono) tanto Schopenhauer quanto Richard Wagner, per nominare i più celebri e significativi tra i romantici che allora io non riconobbi – peraltro non a loro pregiudizio, come mi si può concedere in tutta onestà.”, Friedrich Nietzsche, La gaia scienza, trad. italiana di Francesca Ricci, Roma, Newton Compton, 1996, p. 225, fr. 370.

174 “Non senza profondo dolore so ammettere che gli artisti di tutti i tempi nel loro più alto volo hanno portato a celeste trasfigurazione proprio quelle idee che noi oggi riconosciamo come false: essi sono gli esaltatori degli errori religiosi e filosofici dell’umanità, e non sarebbero potuti esserlo senza la fede nella assoluta verità di quegli errori. Ma, se in genere diminuisce la fede in una tale verità, se

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estética como princípio ontológico fundamental; de efectivo Organon175 da filosofia e

da ciência, uma vez que a arte, em virtude da sua força instigadora, se substancializa

assevera em exuberância vital, em aceitação alegre do que há de terrível, doloroso e

sem sentido na existência176, segundo o exemplo do homem pré-teorético que

conseguiu suportar a atrocidade e a absurdidade de “termos nascido”, contrariamente

ao seu desdenhável sucessor.

Nos esquemas de Nietzsche, esse ser degenerado que viveu indemne ao longo

dos séculos até chegar a nós, encontra o seu protótipo e progenitor em Sócrates.

Responsável, muito mais que Eurípides – o primeiro a reduzir o mito trágico a uma

sucessão de acontecimentos racionalmente encadeados e compreensíveis – pela

assunção do método do entendimento da realidade, mediante uma metamorfose abusiva

da metáfora em conceito lógico177, que afundou o homem no esquecimento da nossa

origem.

A condenação de Sócrates é, em Nietzsche, total e irremissível: improbação do

anti-artista, do destruidor da ciência, do fundador do predomínio da moral; censura do

próprio tempo, da classe à qual Sócrates pertencia, da dialéctica, vista como o

instrumento prevaricador do afirmar-se da “plebe” a custo dos Nobres como o indício

impallidiscono i colori dell’arcobaleno sugli ultimi confini dell’umano conoscere e fantasticare, allora non potrà mai più fiorire quella specie d’arte.”, Eugen Fink, La filosofia di Nietzsche, op. cit., p. 54

175 Cf. Ibidem, p. 31 e Luigi Rustichelli, La profondità della superficie. Senso del tragico e

giustificazione estetica dell’esistenza, Milano, Mursia, 1992, p. 143. 176 “Avremo acquistato molto per la scienza estetica, quando saremo giunti non soltanto alla

comprensione logica, ma anche alla sicurezza immediata dell’intuizione che lo sviluppo dell’arte è legato alla duplicità dell’apollineo e del dionisiaco, similmente a come la generazione dipende dalla dualità dei sessi, attraverso una continua lotta e una riconciliazione che interviene solo periodicamente. Questi nomi noi li prendiamo a prestito dai Greci, che rendono percepibili a chi capisce le profonde dottrine occulte della loro visione dell’arte non certo mediante concetti, bensí mediante le forme incisivamente chiare del loro mondo di dèi. Alle loro due divinità artistiche, Apollo e Dioniso, si riallaccia la nostra conoscenza del fatto che nel mondo greco sussiste un enorme contrasto, per origine e per fini, fra l’arte dello scultore, l’apollinea, e l’arte non figurativa della musica, quella di Dioniso: i due impulsi cosí diversi procedono l’uno accanto all’altro, per lo piú in aperto dissidio fra loro e con un’eccitazione reciproca a frutti sempre nuovi e piú robusti, per perpetuare in essi la lotta di quell’antitesi, che il comune termine «arte» solo apparentemente supera; finché da ultimo, per un miracoloso atto metafisico della «volontà» ellenica, appaiono accoppiati l’uno all’altro e in questo accoppiamento producono finalmente l’opera d’arte altrettanto dionisiaca che apollinea della tragedia attica.” Friedrich Nietzshe, La nascita della tragedia, op. cit., p. 21

177 “Sócrates, estilizado n’ O Nascimento da tragédia, é responsabilizado pela substituição da

metáfora pela verdade, da arte pela filosofia, da intuição pela razão, enfim, pela substituição do homem intuitivo pelo homem teórico. Ele é acusado de ser a raiz clássica da decadência e da racionalidade modernas e Eurípides, seu discípulo, o trágico que matou a tragédia.”, António Azevedo, Pessoa e Nietzsche, op. cit., p 141.

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da “decadência”: uma decadência que, também, é social, na afirmação das classes

inferiores.

Se, na opinião do filósofo alemão, subverter o socratismo constitui um

imperativo irrenunciável para o homem moderno também reproduzido por António

Mora178, então o seu êxito poderá ser garantido apenas pela recuperação daquela

vontade de gerar o alógico, que foi perdida, agindo ele próprio sobre o mundo. Pois o

verdadeiro artista, o homem criativo, não é o artífice de formas “simples”, nem o

demiurgo de universos imaginários antes erguidos e depois arrasados com a mesma

facilidade. É quem, colocando-se perante o devir, mistura o que é conflito e

contraditório, intervém sobre a realidade, plasma-a de acordo com a sua vontade, até

elevar a Arte à suprema Kultur179 e elegê-la mestra da vida180.

Modelar a realidade significa, desde os níveis mais elementares, em

observância dos axiomas da antiguidade clássica, filtrá-la com um mecanismo selectivo

que saiba retirar dela os indicadores maioritariamente representativos, para os

recompor numa ordem renovada.

O artista, em suma e segundo a perspectiva clássica, opera como um fabricador,

um artífice de uma poiētēs, que mediante uma técnica e uma particular habilidade

reprodutiva combina um kósmos artificial análogo e, para certos versos semelhante, ao

kósmos real. Como, também, afirmava Democrito, o kósmos artístico pressupõe o acto

de construir, do tektáinesthai, expressão verbal que se aproxima, com a raiz tek-,

178 “O polyteísmo hellenico é o reconhecimento de que os seres são semelhantes a obras de

arte, de que toda a creação é do mesmo genero, e só a differença enorme que vae de homens para deuses marca a differença enorme que vae de só poder crear morte e poder crear vida. No fundo, ambos os phenomenos são erros, ingenuidades, como todos os phenomenos religiosos; mas o polytheismo grego é um avanço sobre o grosseiro espiritualismo, idealismo, transcendentalismo, occultismo, dos indios e dos judeus, que Platão, na hora de decadencia da Grecia, havia de reconstituir desnacionalizadamente aliás. Platão foi um dos grandes inimigos da Grecia. Aristoteles não poude destruir o mal que elle fez. No proprio peripatetico ha laivos da corrupção espiritualista e idealista do que, afinal, foi seu mestre. Socrates foi, na verdade, o chefe dos sophistas; na verdade foi inimigo da Patria.”, BNP/E3, 18-20r; cf. Fernando Pessoa, Página de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, op. cit., 22-23.

179 Cf. Luigi Rustichelli, La profondità della superficie. Senso del tragico e giustificazione

estetica dell’esistenza, op. cit., p. 167. 180

“O valor essencial da arte está em ella ser o indicio da passagem do homem no mundo, o resumo da sua experiencia emotiva d’elle; e, como é pela emoção, e pelo pensamento que a emoção provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a sua verdadeira experiencia, regista-a elle nos fastos das suas emoções e não na chronica do seu pensamento scientifico, ou nas historias dos seus regentes e dos seus donos*. Com a sciencia buscamos comprehender o mundo que habitamos, mas para nos utilizarmos d’elle; porque o prazer ou a ansia só da comprehensão, tendo de ser geraes, levam á metaphyisica, que é já uma arte. Deixamos a nossa arte escripta para guia da experiencia dos vindouros, e encaminhamento plausivel das suas emoções. É a arte, e não a historia, que é a mestra da vida.”, BNP/E3, 18-2r; cf. Fernando Pessoa, Página de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, op. cit., p. 3.

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juntar, ao termo grego téchne. A construção de um kósmos tem êxito, sendo mais bela e

atraente, tanto quanto, o que foi imitado, resplendece aos olhos com a luz que lhes é

própria. Por analogia, o artista também obtém o seu objectivo em virtude da facilidade

que tem em alterar os próprios meios expressivos adequando-os à situação que estes

devem representar e às circunstâncias em que, diante da obra acabada, são recebidos.

Resumidamente, a sua actividade, quer no momento da produção quer naquele da

fruição, é conectada e envolve-se sempre num preciso kairós, isto é, numa justa

ocasião: o que o artista consegue segmentar da realidade deve ser depois devidamente

inserido e adaptado às reacções dos fruitivos. Eles devem depois colher o prazer

estético dado pela identidade entre a obra e a realidade nela representada.

A arte não nasce da contemplação resignada, mas da perdição total, vital e

consciente no desejo, na necessidade. A arte abstracta, isenta de sofrimento ou de

prazer, de desejo, é como uma serpente que persegue a própria cauda. Para Nietzsche,

o slogan l'art pour l'art, não tem qualquer valor, já que o fim da arte não deve ser a

arte, mas a felicidade, a promessa de uma existência, plena e completa. A arte

“operatividade técnico-pragmática” é a manipulação da experiência interna, do

próximo e da realidade social e cultural181 é o meio para superar tudo aquilo que irá

deprimir o homem.

Será também por essa discriminante que Pessoa sentenciará: “– Só Arte é útil.

Crenças, exercitos, imperios, attitudes e direitos* tudo isso passa. Só a arte fica,

porisso só a arte vê-se, porque dura –.”182

A receita da transmutação de todos os valores, aplicável indistintamente tanto

ao indivíduo como à sociedade183, herda da arte o seu arranque demolidor184, a sua

181 Cf. Franco Gallo, Nietzsche e l’emancipazione estetica, Roma, manifestolibri, 2004, p. 36. 182 BNP/E3, 18-1r; cf. Fernando Pessoa, Página de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, op.

cit., p. 3. 183 “La trasvalutazione dei valori in Nietzsche costituisce il tentativo cosciente di trascendere la

crisi e di trovare basi salde su cui erigere un nuovo e stabile ordine di valori. Queste basi non si fondono ricorrendo ancora una volta all’utopia di una nuova società, bensì solo plasmando nella personalità di ognuno un nuovo ordine al di là della crisi. [...] La trasvalutazione di Nietzsche non va nella direzione dei valori cristiani, ma presuppone un «cambio di cuore» che, come un processo della personalità, è l’equivalente della «metanoia» cristiana. La trasvalutazione dunque non presuppone semplicemente un nuovo sistema etico, ma richiede un riforma radicale della personalità.”, Eric Voegelin, Anni di Guerra, trad. italiana Gian Franco Lami, Soveria Mannelli, Rubbettino Editore, 2001, pp. 60-62.

184 “La nostra ultima gratitudine verso l’arte. Se non avessimo consentito alle arti ed escogitato questa specie di culto del non vero. La cognizione dell’universale non verità e menzogna che ci è oggi fornita dalla scienza, – il riconoscimento dell’illusione e dell’errore come condizioni dell’esistenza conoscitiva e sensibile, – non sarebbero affatto sopportabile. Le conseguenze dell’onestà sarebbero la

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transacção reabilitativa. Por corolário a poesia trágica (seu veículo por excelência),

converte-se em espelho da poiesis cosmogónica de onde provém a multiplicidade dos

seres singulares, assim como a obra é produzida pelo artista.

Na Gaia Ciência, Nietzsche admoesta:

[…] dobbiamo imparare dagli artisti, e per il resto essere più saggi di loro. In essi, infatti, questa loro sottile forza cessa di solito, laddove cessa l’arte e comincia la vita; noi, invece, vogliamo essere i poeti della nostra vita e in primo luogo nelle cose minime e più quotidiane.

185

Rectifica, portanto, que o desígnio da arte é o de servir como ferramenta na

criação de um mundo favorável à vida. A teoria outorga à arte o modelo geral da

ostentação da vontade de poder, ou seja, uma interpretação ontológica da dinâmica

estético-criativa, mais uma vez, remetente para uma simbiose jubilante do autor no

fruir do espectáculo artístico.

Como sugerem os sinais gráficos de um parêntese lateral e de um “N.B.”

acrescentados na página 307 do livro de Gaultier, de modo a destacar um longo

parágrafo, parecia que Pessoa, já nesta sede e no sulco do filósofo originário de

Rocken, não separava do regozijo da obra de arte exclusivas propriedades reguladoras

e harmonizadoras:

náusea e il suicídio. Ora però la nostra onestà ha una controforza che ci aiuta a eludere tali conseguenze: l’arte intesa come buona volontà dell’apparenza. Non sempre impediamo al nostro occhio di arrotondare compiutamente, di creare forme poetiche definite: e allora non è più l’eterna incompiutezza quella che trasportiamo sul flusso del divenire; perché pensiamo di trasportare una dea, e siamo superbi e come fanciulli in questo nostro servigio. In quanto fenómeno estético, ci è ancora sopportabile l’esistenza, e mediante l’arte ci è concesso l’occhio e la mano e soprattuto la buona coscienza del poter fare di noi stessi un siffatto fenomeno. Dobbiamo, di tanto in tanto, riposarci dal peso di noi stessi, volgendo lo sguardo là in basso su di noi ridendo e piangendo su noi stessi da una distanza di artisti: dobbiamo scoprire l’eroe e anche il giullare che si cela nella nostra passione della conoscenza, dobbiamo, qualche volta, rallegrarci della nostra folia per poter stare contenti della nostra saggezza! E, próprio perche in ultima istanza siamo gravi e seri e piuttosto dei pesi che degli uomini, non c’è nulla che ci faccia tanto bene il berretto del monello: ne abbiamo bisogno di fronte a noi stessi – ogni arte tracotante, ondeggiante, danzante, irridente, fanciullesca e beata ci è necessaria per non perdere quella libertà sopra le cose che il nostro ideale esige da noi. Sarebbe per noi una ricaduta, incappare proprio con la nostra suscettibile onestà nel pieno della morale e per amore di esigenze più che severe, poste a questo punto in noi stessi, diventare anche noi dei mostri e spauracchi di virtù. Dobbiamo poter sovrastare anche la morale: e non soltanto starcene impalati lassù con l’angosciosa rigidità di chi teme ad ogni istante di scivolare e di cadere; ma, inoltre, ondeggiare e giocare su di essa! Come potremmo perciò fare a meno dell’arte, e anche del giullare? Finché continuerete a provarei n qualche modo vergogna di voi stessi, non entrerete in mezzo a noi!”, Friedrich Nietzsche, Umano troppo umano, trad. italiana di Ferruccio Masini, vol. V, tomo 2, Milano, Adelphi, 1965, p. 115-116.

185 Idem, La gaia scienza, op. cit., p. 173, fr. 299.

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Et voici que peu à peu ces activités qu’elle engendrait et qui figuraient sur la scène du monde perdent leur pouvoir d’illusionner. Leur jeu se ralentit, la dernière force qui les animait les délaisse, la cause anémiée n’a plus le pouvoir de s’objectiver dans le devenir en nouveaux phénomènes. Tout mouvement s’arrête et l’ensemble des activités passées et futures se fige dans l’immédiat présent en la pose immobile et souveraine de l’œuvre d’art.

186

A convergência confirma-se anos mais tarde em dois ensaios profusamente

favoráveis aos méritos literários de António Botto. Uma recensão à segunda edição do

livro Canções,187 no qual Pessoa dizia encontrar “a intuição do fundo trágico do ideal

helénico” e o artigo António Botto e o ideal estético criador, integrado em 1932 aos

“Marginalia” de Cartas que me foram devolvidas do mesmo Botto:

Não podendo buscar consolação espiritual na religião, força é que a busquem na vida. Como, porém, encontrá-la na vida, se a vida é imperfeita, e o imperfeito, por sua natureza, não pode construir ideal, porque o ideal é perfeição? Aperfeiçoando a vida, para que a sua imperfeição lhes doa menos. Aperfeiçoando-a como? Objectivamente não pode ser, porque a acção humana sobre o universo é menos que limitadíssima. É portanto só subjectivamente que se pode aperfeiçoá-la, aperfeiçoando o conceito e o sentimento dela. A consolação e o repouso, no que podem atingir-se, só a Arte, portanto, os pode dar. A Arte é, com efeito, o aperfeiçoamento subjectivo da vida

188.

Fazer arte é torar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza objectiva, beleza acrescentada à que há no mundo. Fazer arte é aumentar a vida, porque é aumentar a compreensão, ou a consciência dela.

189

Já director da revista Athena190, Fernando Pessoa tinha fortalecido as suas

argumentações com uma espessa nervura pedagógica:

[…] Artes de influenciar. São essencialmente as artes de civilização. O seu fim é transmittir civilização, passar de umas gerações para outras o resultado do trabalho psychico de cada uma. As artes de influenciar são portanto: a) representativas de resultados civilizacionaes, e não de tipos psychicos [...].

186 Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, op. cit., p. 307. 187 Cf. António Botto, Canções, Edição, prefácio e notas Jerónimo Pizarro e Nuno Ribeiro,

Lisboa, Guimarães, 2010. 188 Fernando Pessoa, «António Botto e o ideal estético em Portugal», in Contemporânea 3,

Julho de 1922; cf. Idem, Crítica / Ensaios, artigos e entrevistas, edição de Fernando Cabral Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 177.

189 Idem, António Botto e o ideal estético criador, in Ibidem, pp. 450-451. 190 Revista de arte mensal sai em Outubro de 1924 e conclui a sua curta existência com a

publicação do quinto número, em Junho de 1925, apesar de ter data de Fevereiro do mesmo ano. É a segunda revista em que Pessoa aparece como director depois do estrondoso fracasso de Orpheu. É também a vitrina literária onde se estreiam, pela primeira vez, Alberto Caeiro e Ricardo Reis apresentando um número conspícuo respectivamente de poemas e odes.

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O ideal do artista influenciador é alto na proporção em que ele tem consciencia do seu mister, na proporção em que tem consciencia do seu papel de influenciador de gerações futuras, e da sua missão de quem deve deixar perennemente aumentado o patrimonio spiritual da humanidade. Os poetas antigos tinham esta consciencia; a decadencia d’ella entre os modernos, substituida pela ansia da popularidade immediata, apanagio finalista das artes inferiores, é um dos mais fortes sintomas da nossa degradação moral (spiritual).

Artes de influenciar a) o fim representativo: o artista procura, ao fazer a sua obra, deixar alguma coisa que represente o estado da sua epocha (?) b) o fim valorizador: [o artista procura deixar] alguma coisa que dê valor á sua pátria (ou á humanidade). c) o fim instrutivo: [o artista procura deixar] alguma coisa que perennemente mande nas almas.

191

Uma via para conseguir esta condição propícia, não imune ao êxtase sensorial, é

enunciada por Gualtier comentador de Nietzsche na página 309: “Sachez transmuer

toute sensation en perception, retirez moi de toutes sensations étrangères, non pour

renier la Vie, mais pour la percevoir en une sensation unique de beauté: amor fati. ”

Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche (CFP, 1-52, p. 309) [detalhe]

Retirar a fonte original de qualquer solipsismo, isto é o Eu192, para deixar

irromper a vida pletoricamente, com todas as suas representações, afigura-se, por

191 BNP/E3, 18-26v e 27r; cf. Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria Literárias, op.

cit., p. 31.

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consequência, caminho certeiro para a vida atingir o estatuto de experimento, ou seja,

de processo de transformação e de questionamento do conhecimento, que não possui

um ponto fixo de partida nem de chegada; puro acto de auto-contradição e de

ultrapassagem que o sujeito conhecedor faz coincidir com um drama teatral complexo

e variado em que nenhum dos actores participantes se mostra consciente do próprio

ofício193.

Novamente, o parentesco entre os dois autores aflora à luz do que Pessoa

argumentará, sob a forma de prolegómenos à sua obra heteronímica na fase final da sua

existência:

A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substancia dramatica, embora de forma varia – aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de philosophias. É, não sei se um privilegio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é que o author d’estas linhas – não sei bem se o author d’estes livros – nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, supposta, que mais propriamente do que elle proprio pudesse ter esses sentimentos. Ha authores que escrevem dramas e novellas; e nesses dramas e nessas novellas attribuem sentimentos e idéas ás figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou idéas suas. Aqui a substancia é a mesma, embora a fórma seja diversa. A cada personalidade mais demorada, que o author d’estes livros, conseguiu viver dentro de si, elle deu uma indole expressiva, e fez d’essa personalidade um author, com um livro, ou livros, com as idéas, as emoções, e a arte dos quaes, elle, o author real (ou porventura apparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevel-as, o medium de figuras que elle-proprio creou. Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão teem nada que ver com quem as escreve. Elle nem concorda com o que nellas vae scripto, nem discorda. Como se lhe fôsse dictado, escreve; e, como se lhe fosse dictado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que dictava, acha interessante – porventura só por amisade – o que, dictado, vae escrevendo. O author humano d’estes livros não conhece em si-proprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente differente do que elle é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as differenças de ser outrem. Que esta qualidade no escriptor seja uma forma da hysteria, ou da chamada dissociação da personalidade, o author d’estes livros nem o contesta, nem o appoia. De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade de si-proprio, que concordasse

192 “Ciò che mi divide nel modo più profondo dai metafisici è questo: non concedo loro che

l’«io» sia ciò che pensa; al contrario considero l’io stesso una costruzione del pensiero, dello stesso valore di «materia», «cosa», «sostanza», «individuo», «scopo», «numero»; quindi solo una funzione regolativa, col cui aiuto si introduce, si inventa, in un modo del divenire, una specie di stabilità e quindi di «conoscibilità».”, Friedrich Nietzsche, Frammenti postumi 1884-1885, trad. italiana a cura di Sossio Giametta, Milano, Adelphi, 1975, p. 203, fr. 35.35.

193 Cf. Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, op. cit., pp. 304-305.

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com esta, ou com aquella, theoria, sobre os resultados escriptos d’essa multiplicidade.

194

3.2. Verdade e Ficção no sentido extra-moral

Mestre do pensar contra si próprio, tal como Nietzsche, Pessoa ilustra a

maneira como a teatralização do guião heteronímico pode ser intrepretada em virtude

duma coscienzalização alternativa ao ver-se hiato, cisão e fenda, terreno fértil para a

reprodução de pavor, desespero e desolação ontológica: o indivíduo, de impessoal, de

desubstancializado, de desgregado, isto é, de ausente a si próprio, devém muita

gente195. Deixa-se habitar por uma co-presença múltipla de alteridades simultâneas; e

descobre qual o carácter essencial da existência, a coexistência. A coexistência abre-se

à mobilidade da relação, entre a subjectividade e aquilo que a transcende, mas a mesma

subjectividade é, por sua vez, como queria Nietzsche, uma pluralidade196. Uma relação

recíproca dos instintos que emerge como plano de resolução das problemáticas

apresentadas pela estética pessoana através do pilar sensacionista de sentir tudo de

todas as maneiras: o mais plausível trajecto para a condição necessária à realização do

mandamento nietzschiano de chegar a ser o que se é.

Por trás, há uma poética que, como vimos nos capítulos anteriores, corrobora

um pensamento polifónico, cuja coerência parece derivar da uma admissão de

inesperada incompletude apesar das multiplicidades convocadas, assim como podemos

averiguar num outro emblemático fragmento, conjecturalmente de 1915:

194 BNP/E3, 20-70r a 72r; cf. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op.

cit., 95. 195 “Dal punto di vista del pensiero cosciente il mondo appare come una somma enorme di

incastonati l’uno nell’altro: con il che veramente il concetto di individuo è abolita.”, Friedrich Nietzsche, Frammenti Postumi, Volume Primo, Autunno 1869-Aprile 1871, Milano, Adelphi, 2004, pp. 141-142, fr. 5.79.

196 “Forse non è necessario assumere un soggetto unico; forse è altrettanto permesso assumere

una pluralità di soggetti, la cui fusione e lotta stiano alla base del nostro pensiero e in genere della nostra coscienza. ... Le mie ipotesi: il soggetto come pluralità.”, Idem, Frammenti Postumi 1884-1885, trad. italiana di Sossio Giametta, Milano, Adelphi, 1975, p. 336-337, fr. 40.42. “non riusciamo più affatto a sentire una unicità dell’ego, siamo sempre sotto una pluralità.”, Idem, Aurora e Frammenti Postumi (1879-1881), trad. italiana di Mazzino Montinari, Ferruccio Masini, Milano, Adelphi, 1964, p. 443, fr. 6.80.

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Não sei quem sou, que alma tenho. […] Quando fallo com sinceridade não sei com que sinceridade fallo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ansias que repudio. A minha perpetua attenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um caracter que talvez eu não tenha, nem ella julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. […] Como o pantheista se sente árvore* e até a flôr eu sinto-me varios seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada*, individuado por uma suma de não-eus sinthetizados n’um eu postiço.

197

O autor original, “escultor” de entidades artísticas, vê-se então relegado a uma

existência de criador fictício, o que valida a sua transformação num contorno cheio de

virtualidade a par das outras personagens inventadas, enquanto o seu desaparecimento

constitui uma ordem que se subtrai continuamente à acção de clausura do pensamento,

deixando atrás de si, somente, personagens literárias: processo de verdades in fieri que

se automatizam mantendo-se, ao mesmo tempo, internos e externos a um percurso de

desvendamento do verdadeiro, que evade cada um dos heterónimos e que muito tem a

ver com as afirmações redigidas no livro de Gaultier (obviamente sublinhadas).

A este respeito, confronte-se duas passagens das páginas 319 e 306, sobre a

natureza do filósofo, fabulador e inimigo do telos categorizante: (1) “La vertu du

philosophe est donc d’engendrer des illusions fortes”198, (2) “il devra détacher son

moi de tout ce qui n’est pas joie contemplative, s’abstraire de toute joie directe prise

aux actes, retrancher de lui-même tout appétit destiné à satisfaire un instinct autre que

l’Instinct de Connaissance.”199

Por ser o mundo, do que podemos ter consciência, apenas um mundo de

superfícies e signos, ou, como clama o Fausto pessoano, sendo “tudo símbolo e

analogia”, também o sujeito como qualquer outro elemento e fenómeno deste mundo, é

um novelo de signos, nunca completamente determinável. A sua identidade é

197 BNP/E3, 20-67; cf. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit., pp.

93-94. 198 Em torno disso Paulo Borges sustenta: “A experiência heteronímica é pois a plena

correspondência do sujeito à vida proteica e de todas as coisas, ao devir metamórfico que é o jogo a i-lusão […] do absoluto a transparecer na miríade de cambiantes formas e aparências do mundo.”, Paulo Borges, O jogo do mundo – Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, Lisboa, Portugália Editora, 2009, p. 11.

199 Note-se como as palavras do livro de Gaultier têm algum reflexo na seguinte observação de

marca pessoana: “Um assumpto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo. Para suscitar desejos, serve melhor uma photografia pornographica.”, BNP/E3, 18-44v; cf. Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, op. cit., p. 53.

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constituída, apenas, pelo nome que na sua unidade permite o acesso a uma ordem

conceitual. O sujeito é, sempre, heterónimo, ou seja, processo de identificação do

evento caracterizante de uma determinada experiência subjectiva, na medida em que

esta não é mais atribuível a um sujeito físico, único, mas pede sempre uma redefinição

da mesma, enquanto refém de uma opticidade que já não é directamente condutível a

uma identidade predefinida.

Fazendo, talvez, um apressado paralelismo, porém funcional ao objectivo de

compreender o tema do sujeito em Pessoa, notamos como os vários heterónimos

representam diversas posições determinadas e que Pessoa, o qual na sua poesia,

concretamente, nunca aparece senão como ortónimo de si mesmo, assume a função de

colocar em ordem o seu próprio espaço “interior”, de escutar o andamento, de

conformar-se aos seus ditames. De pôr em contacto as várias partes, sendo em

simultâneo, espectador e actor.

O heterónimo é, por sua vez, um intervalo, no interior do qual, uma

representação conceptual, dotada de uma particular sensibilidade literária, admite,

como sua função, a tarefa de circunscrever um aspecto do sentir, o que permite

conhecer a própria identidade, a qual resulta sempre num fingir em relação a um sujeito

“absoluto”, sem, para tal, prejudicar a veracidade da experiência, vivida enquanto

experiência em acto.

O sujeito pessoano assemelha-se ao prisioneiro da caverna de Platão, com a

diferença que neste, em vez de tentar libertar-se, de forma a compreender a Verdade

que lhe é revelada no exterior, permanece na sua condição, intuindo que a imagem

projectada na parede tem a mesma verdade do sol que a ilumina, rendendo-a visível.

Concluindo, o fingimento está em ambas e mormente naquele que as contempla

num diálogo entre as múltiplas posições que compõem a sua identidade. Junto da

categoria do sujeito é também o significado de verdade, em Pessoa, a requerer uma

redefinição, uma sua procura constante, pois: “A verdade, se ella existe, / Ver-se-ha

que só consiste / Na procura da verdade, / Porque a vida é só metade […]”200 ou, até

mais radicalmente: “A arte é uma mentira que suggere uma verdade.”201

O modelo continua a ser Nietzsche: com o propósito de dar a conhecer a

proveniência metafórica da linguagem e evidenciar o aspecto ilusório do

200 BNP/E3, 33-45r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa – 1934-1935, op. cit., p.170. 201 BNP/E3, 75-18.

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conhecimento, é-nos revelado em Acerca da verdade e da mentira no sentido extra-

moral, que a propensão humana em busca da verdade foi, desde sempre,

essencialmente um equívoco, despojando assim o conhecimento de todo e qualquer

valor absoluto e invalidando o seu objectivo de chegar a uma verdade inviolável sobre

o real.

Em oposição ao que se pressupõe, o impulso à verdade, segundo Nietzsche, é

regido por uma força superior (a conservação da vida), dado que é necessário para

viver em sociedade, determinar acordos, conferindo crédito à palavra de outrem, qual

instância portadora de uma verdade. Como tal desponta de um acordo com uma

determinada conjuntura e em certas condições, com isso, proporcionando entendimento

entre os homens. O conhecimento apresenta-se como mais nada que uma convenção,

dada a necessidade latente entre os homens em obterem algo em comum entre eles, de

forma a firmar uma regularidade e criar um certo equilíbrio que permita e incentive a

paz da vida social202.

Os seres humanos são criaturas que conduzem a vida em prol da veracidade dos

fenómenos, através de conceitos e incessantes buscas. O problema é que o intelecto,

pressionado pelo ímpeto da procura da verdade, necessita proceder tendo como base

uma homogeneização do real, estando apto nesse caso a reunir a pluralidade e a

disparidade dos entes num só conceito.

A possibilidade da palavra abarcar e compreender todo o sentido e significado dos

entes e, dessa forma, determinar a verdade é, porém, posto em dúvida a partir da

generalização que o conceito impõe, já que é específico do dizer conceitual subtrair as

diferenças que se dão no real para encontrar uma presumida identidade ou essência dos

entes203.

Para Nietzsche não pode existir uma linguagem universal, absoluta e estável,

adequada ao real e à sua multiplicidade, cujos códigos permitam a apreensão sobre o

que são concretamente estes entes: acreditar que uma linguagem chegue ao fundamento

dos fenómenos equivale a esquecer-se da efectiva valência do termo verdade: um mero

202 “In quanto l’individuo vuole conservare se stesso di fronte ad altri individui, in uno stato di

cose natural egli si serve dell’intelletto per lo più soltanto per la simulazione; ma poiché l’uomo vuole anche esistere, sai per bisogno, sia per noia, socialmente e come in un gregge, stipula un patto di pace e si adopera per cancellare dal suo mondo almeno il più brutale bellum omnium contra omnes.”, Friedrich Nietzsche, Verità e menzogna in senso extra-morale, trad. italiana a cura di Sergio Givone, Roma, Newton Compton, 2007, p. 94.

203 Cf. Ibidem, p. 96.

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instrumento de agregação. Esta sofreu diversas interpretações e classificações ao longo

dos tempos. Inicialmente foi vista como metáfora, antropomorfismo, mais tarde como

forma figurativa, posteriormente como corriqueira e vulgar, sendo, por último,

finalmente considerada como “linguagem verdadeira”.

Toda a linguagem é, nada mais nada menos que o elo. A transmissão arbitrária e

criativa que nos permite expor a nossa experiência de seres humanos sem, para tal,

referir, ao contrário do que seria esperado, o modo de ser verdadeiro da realidade.

Nesse sentido, a fonte da linguagem não está na lógica: é procurada na

imaginação, na disposição que o homem tem, como animal fantástico – de acordo com

a definição de Ortega y Gasset – de criar analogias e modelos em contenda por uma

maior compreensão do mundo à semelhança do homem204.

A busca pela verdade é claramente fruto dessa luta e cobre qualidades

contrárias: frieza e paixão; apartação e participação; o sentido de proximidade e

distância; da Vida e da Morte; exigindo a estranha e paradoxal aptidão para abstracção

das coisas e do Mundo, dos nossos tormentos e das nossas acções. Ao mesmo tempo é

a tendência a manter com isso tudo uma relação de intimidade, de aproximação, de

abandono espontâneo. É uma capacidade reflexiva, dupla, inata no poeta como no

filósofo, os quais, em Nietzsche, se carregam facilmente de denotações sinonímicas,

como se constata nos testemunhos abaixo. O segundo, particularmente interessante,

uma vez que é um excerto do livro de Gaultier, vergado a tinta preta por Pessoa:

C’è un solo mondo, ed è falso, crudele, contraddittorio, corruttore, senza senso

[...]. Un mondo così fatto è il vero mondo [...]. Noi abbiamo bisogno della

menzogna per vincere questa “verità”, cioè per vivere... L’uomo deve essere per

sua natura un mentitore, deve essere prima di ogni altra cosa un artista.205

La science de la Connaissance elle-mème n'a-t-elle pas d'ailleurs appris à Nietzsche

que, pour instituer l'intrigue de la vie phénoménale connaître n'est rien, vouloir la

vérité n'est rien? Qu'est-ce donc qui vaut pour la vie? Le non-vrai, répond la

science de la Connaissance, le mensonge créateur du réel. Quel est le héros réclamé

204 Cf. Ibidem, p. 98. 205 Idem, Frammenti postumi 1887-1888, trad. italiana di Sossio Giametta, Adelphi, Milano

1971, pp. 396-397; “La verità è brutta: abbiamo l’arte per non perire a causa delle verità.”, Idem, Frammenti postumi 1888-1889, trad. italiana di Sossio Giametta, Adelphi, Milano. p. 289.

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par la vie? Celui qui apporte des goûts et des couleurs, qui met des valeurs dans le

choses. C'est celui-là que Nietzsche appelle maintenant le philosophe.206

Quanto temos vindo a expor nas páginas anteriores deixa poucas dúvidas sobre

a correcta interpretação de ambas as citações: o artista que aceita a mentira como

suprema ilusão, faz da arte um triunfo da vida e do amor para ela. Como se pode

inferir, não estamos longe das orientações leopardianas: a ilusão constitui o momento

central do desenvolvimento ético do ser humano. Como tal, revela-se como uma mola

propulsiva que sustém a acção e valoriza os projectos de transformação da existência.

Graças às ilusões, nas quais nos apoiamos, convencionalmente, através da

interacção de uns com os outros, a contraposição entre o mundo dos múltiplos sentidos

– o único real – e aquele do fingimento, fruto do agir da consciência do dado sensorial,

é experienciada, dispondo diante do homem, um novo horizonte do sentir, com o

intento de denotar a ambígua semântica do termo verdade: o resultado de uma

quantidade, imensa, repleta de erros necessários, sem os quais seria impossível querer,

agir, viver, porque “abolir as grandes ilusões já completamente assimiladas, destruiria a

humanidade.”207

Essa, nem mais nem menos, é a mensagem dum soberbo oximoro de António

Mora “Fingimos e sonhamos para poder viver […]” que ganha textura noutro lugar da

sua obra:

Quantos generos de ficções ha?

1. Ficções que formam a religião ou a metaphysica.

2. Ficções que formam a moral e os costumes.

3. Ficções que formam a esthetica.

Servem as primeiras de guiar-nos nas nossas relações universaes; as segundas nas

nossas relações sociais; as últimas nas nossas relações com nós-proprios.208

206 Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, op. cit., pp. 318. 207 Cf. Paulo Borges, «A cultura entre ilusão e des-ilusão – para um nomadismo inter e trans-

cultural», in Cultura Entre Culturas, Lisboa, Âncora, Número 1, Primavera-Verão, 2010, p. 10. “L’illusione è necessaria all’essere per vivere. L’illusione è necessaria per procedere alla cultura. Che cosa vuole l’insaziabile impulso conoscitivo? In ogni caso è ostile alla cultura. La filosofia cerca di domarlo; è uno strumento della cultura.”, Friedrich Nietzsche, Frammenti postumi, Volume Terzo, Estate 1872-Autunno1873, a cura di Mario Carpitella e Federico Gerratana, Milano, Adelphi, 2005, p. 39, fr. 19.64.

208 BNP/E3, 12I-96r; cf. Fernando Pessoa Obras de António Mora, op.cit., pp. 297-298.

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Quando Pessoa aponta “Reconhecer o não verdadeiro como condição essencial

da vida” está a transcrever Nietzsche209, recorda-nos Pedro Teixeira da Mota210,

embora a fonte primária da versão pessoana pareça mais uma vez indicar De Kant à

Nietzsche.

Jules de Gaultier, De Kant à Nietzsche, (CFP, 1-52, p. 13) [detalhe]

A apropriação da passagem da autoria de Gaultier confirma-se em pelo menos

duas circunstâncias: numa sequência de 5 versos poéticos do Fausto, em tom

interrogativo “[...] Porque pois buscar / Sistemas vãos de vãs filosofias / Religiões,

seitas, pensadorias/ Se o erro é a condição da nossa vida50, / A única certeza da

existência?”211 e em tom assertório e peremptório num curto trecho do Livro do

Desassossego: “A procura da verdade – seja verdade subjectiva do convencimento, a

objectiva da realidade, ou a social do dinheiro ou do poder – traz sempre comsigo, se

nella se emprega quem merece premio, o conhecimento ultimo da sua inexistência.”212

Julgar poder verbalizar directamente a “verdade” é ingenuidade ou má-fé.

Ocorre, então, operar em filosofia como opera a vida na sua instantaneidade:

ocultando-se por detrás de uma máscara.

209 “Reconhecer os juízos falsos seria renunciar à vida, negar a vida.”, Friedrich Nietzsche, Para

além de Bem e Mal – Prelúdio a uma filosofia do futuro, Actualização de texto, introdução, notas e apêndice Delfim Santos [Filho], Lisboa, Guimarães, 1986, p. 18, fr. 4.

210 Pedro Teixeira da Mota, «Introdução», in Fernando Pessoa, Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação,op. cit., p.18

211 Fernando Pessoa, Fausto – Tragedia subjectiva, op. cit., 163. Cf. Pablo Javier Pérez López, Poesía, Ontología y Tragedia en Fernando Pessoa, op. cit., p. 269.

212BNP/E3, 3-10r; cf. Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit., p. 194.

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Avisa Nietzsche: “Tudo o que é profundo ama a máscara; […] Todo o espírito

profundo necessita de uma máscara: mais ainda, um redor de todo o espírito profundo

cresce incessantemente uma máscara, graças à interpretação sempre falsa, quer dizer,

superficial, de cada palavra, de cada passo, de cada sinal de vida que ele dá.”213

A máscara é portanto um meio ambíguo, por trás do qual, a verdade ama

esconder-se para resguardar a sua profundidade, mas que, por outro lado, utilizamos

para não ver a realidade, para fugir dela.

Em 1935, Pessoa, precisamente mascarado de Álvaro de Campos, reelabora o

tema da ficção, interpretando-a como sinceridade intelectual:

A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em tôda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam.214

A ficção torna-se a sinceridade do intelectual daquele período histórico e

pessoal, em que, segundo Pessoa, a queda definitiva do dogma da verdade implica que

o pensamento do sujeito, da ficção e do verdadeiro em si mesmo, se disponham sobre

um único plano dentro do qual não se possa mais separar nitidamente uma verdade de

um sujeito que a vive como ficção. O sujeito deixa-se dominar pelos pensamentos

acerca da verdade e nestes finge a própria identidade; é nesta ficção que este encontra a

possibilidade de perscrutar a própria realidade reflexa.

Ser sincero, para Pessoa, significa admitir a inevitável ficção de si e a

conseguinte indecisão sobre a própria existência, ou sobre a verdade ou falsidade

daquela ficção que nos constitui, retendo-nos na teia de um sentimento de precariedade

desassossegada:

Quantas vezes, comtudo, em pleno meio d’esta insatisfação socegada, me não soube pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vacuo e do tedio de pensar assim! Quantas vezes não sinto, como quem ouve fallar atravez de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial d’esta vida extranha à vida humana – vida em que nada se passa salvo na consciencia d’ella! Quantas vezes, dispertando de mim, não entrevejo, do exílio que sou, quanto fôra melhor ser o ninguem de todos, o feliz que tem ao menos a amargura real, o contente que tem cansaço em

213 “Tudo o que é profundo ama a máscara […]. Todo o espírito profundo necessita de uma

máscara: mais ainda, em redor de todo o espírito profundo cresce incessantemente uma máscara, graças à interpretação sempre falsa, quer dizer, superficial, de cada palavra, de casa passo, de cada sinal de vida que ele dá.”, Friedrich Nietzsche, Para além de Bem e Mal, op. cit., pp. 64-65, fr. 40.

214 Fernando Pessoa, Prosa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 242.

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vez de tedio, que soffre em vez de supor que soffre, que se mata, sim, em vez de se morrer!215

A perda momentânea da ficção constituinte da própria identidade, leva a um

sentimento de inquietação, no qual o sujeito, reduzido à experiência da escrita, olha

para si próprio como paradoxo irresolúvel. Nele, a perda de qualquer ordem de sentido

concedida ao pensamento, revela a aniquilação do próprio pensamento que no seu

murmúrio delirante se impõe nos interstícios da nossa alegada existência. Nesta

perspectiva abre-se aquela a que nós chamamos uma “ética da ficção”, para simbolizar

uma prática na qual o aspecto irreal do fingimento, como única realidade objectiva

possível, se realiza como desempenho da escrita, como curto-circuito lógico,

permitindo ao Eu desatar-se do que lhe está mais próximo, mais falazmente íntimo. De

transcender a perspectiva da consciência comum, de se tornar espírito livre: projecção

ortogonal onde diferentes posições filosóficas, longe de serem agrupadas como pontos

fixos de perspectivas fechadas, geram ocasiões de encontros e confrontos

transformadores em que o exercício de uma filosofia como comparação desvia – e foi

esse o caso de Pessoa – na direcção de uma filosofia intercultural.

215 BN/E3, 2-42; cf. Idem, Livro do Desasocego, op. cit, p. 314.

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CAPÍTULO IV Abismo e Nada absoluto: confluências budistas no pensamento de Fernando Pessoa e Nishida Kitarō

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4.1. O(s) Oriente(s) de Pessoa

“Rien n’importe: grande découverte s’il en fut, et dont personne n’a su tirer profit. À cette découverte, réputée déprimante, le vide seul, dont elle est la devise, peut donner un tour exaltant, lui seul, s’emploie à convertir le négatif en positif, l’irréparable en possible. Qu’il n’y ait pas de soi, nous le savons mais c’est un savoir grevé d’arrière-pensées. Le vide est heureusement là, et quand le soi s’efface, il en tient lieu, il tient lieu de tout, il comble nos attentes, il nous apporte le certitude de notre non-réalité. Le vide, c’est l’abîme sans vertige.”

E. M. Cioran

Existem lugares do mundo, enclaves de histórias e tradições milenares, que uma

convenção meramente eurocêntrica situa a leste do continente que Gregos e Romanos

foram os primeiros a civilizar. São promontórios, montanhas, planícies, ilhas e

penínsulas que unem os antigos e modernos territórios árabe, persa, palestiniano e

indiano aos remotos solos chinês e nipónico, e de onde, desde a mais antiga noite dos

tempos, irradiaram os ensinamentos de Buda, Confúcio e Maomé. Atravessar tais

territórios significa transitar por rotas especulativas, cortar por atalhos divergentes dos

monismos científico e religioso de raiz ocidental, cada vez mais insustentáveis numa

época de efervescente globalização à escala planetária. Colher a vastidão desse

património civilizacional equivale a incorporar novos paradigmas culturais, espirituais

e estéticos; assimilar outras formas de perceber e experimentar o Real: entregarmo-nos

às diferenças e às alteridades, anulando a fronteira que separa a familiaridade do eu

particular dos múltiplos graus de inteligibilidade do desconhecido.

Embora Fernando Pessoa nunca tenha visitado o Oriente, revisitou-o em

inúmeras ocasiões. Dos vestígios dessas viagens surgiu o nosso intuito de traçar alguns

dos caminhos percorridos pelo autor, horizontes de uma cartografia constituída pelas

mais diversas vozes de filósofos e poetas (ver anexo I). Desde as já conhecidas

traduções de quartetos de Omar Khayyâm − manuscritas no exemplar ainda hoje

presente na sua biblioteca particular (cf. Rubaiyat, 2008) − à tradução de alguns versos

do Fruit-Gathering [Colher de Frutos] de Rabindranath Tagore e de Nezāmi (estes

últimos acompanhados de escansão), passando por extensas listas de literatura clássica

hindu onde curiosamente encontramos a Mrichchhkati (The Toy Cart) – peça

construída em torno da troca de identidade entre personagens – temos provas

suficientes para asserir que Pessoa manteve uma relação duradoira com o Oriente

através dos livros.

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Notas, esboços, apontamentos e até alguns projectos de índole comercial não

haveriam de escapar a esse Oriente pessoano. Assim o demonstram o plano para uma

Anthologia Geral de literaturas que incluiria, entre outras, as hindu, chinesa, persa,

japonesa e hebraica, ou as listas datáveis de 1915 onde figuram obras da “Theosophical

Publishing Society”, algumas das quais Pessoa chegaria de facto a traduzir para a

colecção “Theosofica e Esoterica”.

Haverá quem diga que o Oriente de Pessoa é longínquo, vago, mental. Mas

outros, reparando por exemplo nos fragmentos sobre Ghandi, talvez se recordem de

que em Janeiro de 1897, data do desembarque do Mahatma em Durban, o jovem poeta

português já se encontrava nessa cidade sul-africana havia um ano. E talvez também se

recordem que em Agosto de 1901, quando Pessoa regressou a Lisboa, o vapor que o

transportou e à família atravessou o Oceano Índico e o canal de Suez, e que essa

viagem se repercute num eco autobiográfico na visita à Índia constante duma frase

retirada de um texto de Vicente Guedes216. Então que razões haverá para restringir o

Oriente de Pessoa a este plano ou aquele, quando há vestígios claríssimos semeados no

espólio e na biblioteca do autor que nos colocam precisamente nos antípodas de uma

projecção unívoca?

Estaremos longe desta redução se à tal experiência oriental juntarmos outra não

menos determinante: a da mediação a partir do Ocidente, de “Passage to India”217

cantada por uma das figuras da literatura que Pessoa tanto admirou, ou seja, Walt

Whitman.

Na mesma senda, a partir deste encontro de poetas, como negar que 1892 – data

escolhida para a viagem à Índia no texto de Guedes – não seja um clin d’œil ao ano da

morte do autor de Leaves of Grass ou que as últimas “folhas” que Álvaro de Campos

atira ao Oriente no poema Dois Excertos de Odes, não sejam outra saudação, outra

maneira de incansavelmente o explorar? A resposta não pode senão ser afirmativa.

Assim, se não constitui uma novidade o nome de Fernando Pessoa ser

encostado com legitimidade ao dionisismo, ao gnosticismo e ao neo-platonismo, ao

216 “Cheguei á India em Janeiro de mil oitocentos e noventa e dois.”, BNP/E3, 2720-S3-6v. O

título A Tortura pela escuridão é acompanhado da seguinte atribuição “V[icente] Guedes”, cf. BNP/E3, 2720-S3-5 a 8.

217 Cf. Walt Whitman, «Passage to India», in Idem, Leaves of Grass, London & New York, Toronto & Melbourne, Cassell & Company, 1909, pp. 380-388; cf. também CFP, 8-580. Na folha da guarda deste livro figuram as seguintes assinatura e data : “Fernando Pessôa | 16.5.1916”.

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paganismo grego e latino, à Patrística e à teologia apofática dos místicos cristãos

medievais, ao empirismo e ao idealismo alemão, ao sensismo e ao positivismo, bem

como ao hermetismo e ao esoterismo de variante teosófica, é legítimo esperarmos por

novas e, até há pouco tempo imprevisíveis, vagas comparatistas de ressalto filosófico-

religioso.

Walt Whitman, Passage to India, Washington, 1870, Houghton Library [manuscrito autógrafo]

BNP/E3, 70-3v

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Uma folha de mim lança para o Norte, Onde estão as cidades de Hoje cujo ruido amei como a um corpo. Outra folha de mim lança para o Sul Onde estão os mares e as aventuras que se sonham. Outra folha minha atira ao Occidente, Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o futuro, E ha ruidos de grandes machinas e grandes desertos rochosos Onde as almas se tornam selvagens e a moral não chega. E a outra, as outras, todas as outras folhas – Ó occulto tocar-a-rebate dentro em minha alma! – Atira ao Oriente, Ao Oriente, d’onde vem tudo, o dia e a fé, Ao Oriente pomposo e fanatico e quente, Ao Oriente excessivo que eu nunca verei, O/A\o Oriente buddhista, brahmanista, shintoista, Ao Oriente que é tudo o que nós não temos, Que é tudo o que nós não somos, Ao Oriente onde – quem sabe? – Christo talvez ainda hoje viva, Onde Deus talvez exista com corpo e mandando tudo...218

Na verdade já não escasseiam os esforços bem-sucedidos219 de quem sublinhou

as conexões, interpolações e as permeabilidades com formas de pensamento

habitualmente designados por orientais como o budismo, “frequentadas” e estudadas

em diferentes momentos da vida e de modo não superficial, em plena coerência com a

vertente sincrética da sua curiosidade intelectual.

Para além do drama intitulado Sakyamuni, em que Pessoa parece tentar uma

exposição apologética do ensinamento de Buda e outros fragmentos soltos de prosa

poética, repletos, vice-versa, de apreciações críticas denotativas de uma interpretação

mais carregada de niilismo e pessimismo, testemunham uma certa divulgação da

doutrina budista, pelo menos 4 livros actualmente conservados na sua biblioteca

pessoal: Edward Denison Ross, Eastern Art & Literature: with special reference to

China, India, Arabia, and Persia. London, Ernest Benn Limited, 1928, 80 p.; Herbert

Allen Giles, The Civilization of China. London, Williams & Norgate; New York:

218 BNP/E3, 70-3v; cf. Poemas de Álvaro de Campos, op. cit., p. 43-44. 219 Cf. Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa – Aquém do eu, além do outro, Martins Fontes,

São Paulo, 1982, pp. 113-159; José Eduardo Reis, «Porque veio o Alberto Caeiro do Ocidente»; Julieta Marques de Almeida, «Meus Deus! Que budismo me esfria no sangue! Visões e apreensões da vacuidade no grupo (de) Pessoa»; Paulo Borges, «Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma cousa, não poderia imaginar - Vacuidade e auto-criação do sujeito em Fernando Pessoa», in AA. VV., O Buda e o budismo – No ocidente e na Cultura portuguesa, Paulo Borges & Duarte Braga organizadores, Ésquilo, Lisboa, 2007, pp. 319-342; 343-357; 359-374. Idem, «Fernando Pessoa no Tibete ou de como pelo Bar-do se compreende D. Sebastião como o “King of Gaps” e o Quinto Império como seu ”stranho Reino”» in Cultura Entre Cultura, Lisboa, Âncora, Número 2, Outono-Inverno, 2010, p. 41-48.

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Henry Holt & Co.; Toronto: WM. Briggs; India, R. & T. Washbourne, Ltd., 1911, 256,

[8] p.; George Robert Stow Mead, Quests Old and New. London, G. Bell & Sons, Ltd.,

1913, 338 p.; Anesaki Masaharu, Religious History of Japan: an outline with two

appendices on the textual history of the Buddhist scriptures. Tokyo, [s.n.], 1907, 74,

[2] p.

O último dos quatro, ainda que não contenha vestígios de marginalia

eloquentes ou verbais nem de marginalia “silenciosas” ou não-verbais (sublinhados,

traços verticais, pontos de exclamação ou interrogação, etc.) destaca-se pela curiosa

nota biográfica relativa ao seu autor que o referencia, em 1891, como colega de cursos

universitários de Nishida Kitarō220.

Incontornável pensador do mundo extremo-oriental contemporâneo, pioneiro

por excelência, a nível global, do diálogo inter-religioso e intercultural, Nishida

representa o âmago da sucinta amostra que procurarei realizar sobre as possíveis

afinidades que se ocasionam de modo marcante, aproximando as suas formulações

filosóficas, lamentavelmente ainda pouco divulgadas em Portugal, à literatura

excedente de Fernando Pessoa.

Cumprir uma tarefa tão desafiante exige, previamente, uma indispensável e

prolongada detenção sobre algumas das múltiplas tessituras histórico-culturais que

concorreram para traçar a linha evolutiva do irrepetível sistema nishidiano.

4.2. A originalidade filosófica de Nishida: Experiência Pura e Lógica

Ontológica do Basho

Nishida Kitarō (1870-1945) é normalmente considerado o mais influente

filósofo japonês.

Ensinou filosofia na universidade Imperial de Kyōto de 1912 a 1928, depois de

ter conseguido, em 1894, a licenciatura na universidade de Tōkyō (a mesma academia

na qual cursou Suzuki Daisetsu Teitaro, enorme divulgador da filosofia zen fora dos

confins das áreas orientais), mas continuou a sua actividade até à morte, produzindo

220 Os nomes próprios japoneses serão doravante indicados respeitando o costume nipónico: os

apelidos (por exemplo “Nishida”) precedem sempre o primeiro nome (ex. “Kitarō”).

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uma considerável quantidade de escritos, reunidos nos dezanove volumes da sua Opera

omnia221. À sua volta, depressa se formou um grupo de estudiosos e investigadores,

nomeados posteriormente por seguidores da Escola de Kyōto (Kyōto gakuna), que

ainda hoje constitui uma das mais activas e importantes escolas filosóficas japonesas,

tendo chegado à sua quarta geração222. Os filósofos da Kyōto gakuna acolheram e

desenvolveram ingentes temáticas detectáveis nas argumentações do mestre fundador,

interessando-se principalmente pelos problemas ligados à filosofia da religião e em

larga medida com as derivações existencialistas de Heidegger223.

Os escritos de Nishida moldaram a escola em dois sentidos: primeiro

pretendiam oferecer uma contribuição exclusivamente oriental à tradição especulativa

ocidental apoiando-se em conceitos-chave budistas no desenvolvimento de questões

filosóficas perenes; em segundo lugar pretendiam enriquecer o substrato teorético de

inspiração budista submetendo-o ao rigor da filosofia europeia. Nishida coloca-se,

assim, um objectivo quase desmedido nunca tentado antes por outros pensadores

japoneses: clarificar e aprofundar alguns conceitos fundamentais como os de

“experiência”, “consciência”, “dialéctica”, “contradição”, “experiência estética”,

“criação artística”, “intuição”, “absoluto”, “identidade”, fazendo-os atravessar pela

própria formação filosófica e religiosa budista224.

221 Nishida Kitarō Zenshū [Obras completas de Kitarō Nihida], Tōkyō, Iwamani shoten, 1965,

19 vols. Doravante abreviado por NKZ. Onde não explicitamente indicado, as traduções da língua japonesa são de Marcello Ghilardi e Enrico Fongaro e pertencem a um volume que reúne trechos de obras de Nishida sobre os quais Ghilardi desenvolve um trabalho hermenêutico. Cf. a esse respeito Marcello Ghilardi, Una logica del vedere – Estetica ed etica nel pensiero di Nishida Kitarō, Milano, Mimesis Edizioni, 2009.

222 Sobre a Escola de Kyōto cf. Giancarlo Vianello, «La scuola di Kyōto attraverso il novecento», in AA. VV., La scuola di Kyōto, a cura di Grazia Marchianò, Rubbettino, Soveria Mannelli, 1996, pp. 27-65; James W. Heisig, Filosofi del Nulla, L’Epos, Palermo, 2007; AA. VV., A escola de Kyoto e o perigo da técnica, Z. Loparic organizador, DWW Editorial, São Paulo, 2009.

223 O primeiro grupo de pensadores japoneses que instaurou um diálogo evidente e sólido com a filosofia europeia do século XX, em geral, e com o autor de Sein und Zeit em particular, tem em Nishitani Keiji, expoente da primeira geração de alunos de Nishida, o seu maior intérprete. Com efeito, Nishitani frequentou em Freiburg os seminários de Heidegger sobre Nietzsche e o niilismo europeu. Como prenda de aniversário enviou ao filósofo alemão alguns trabalhos de D. T. Suzuki. Posteriormente foi convidado para os debater e foi testemunha dum aceso interesse pelo Budismo zen por parte do seu interlocutor que chegou a efectuar pesquisas sobre o assunto na biblioteca universitária.

224 De 1897 até 1907 a biografia de Nishida está marcada por uma intensa dedicação à prática monástica da meditação zen em templos localizados em Kanazawa e Kyōto. Acerca desta fase da sua vida cf. Renato Andolfato, «Introduzione al pensiero di Nishida Kitarō», in K. Nishida, L’io e il tu, a cura di R. Andolfato, Unipress, Padova, 1996, pp. 24-29 e Matteo Cestari, «Nota bio-bibliografica su Nishida Kitarō», in AA. VV., La Scuola di Kyōto, a cura di Grazia Marchianò, Soveria Mannelli, Rubbettino, 1996, pp. 69-73. O propósito de Nishida não é decerto aquele de desvendar as ascendências religiosas de uma tradição específica, mas sim de entrar no modo mais radical possível nos problemas

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Elaborar um universo conceitual original e coerente, integrando a experiência e

a lógica do budismo com as categorias da história da civilização europeia, não foi

perseguido por Nishida para satisfazer uma simples curiosidade cultural nem com a

finalidade de divulgar na Pátria deduções exóticas. Foi actuado com a intenção de pôr à

prova, de “examinar” o potencial de verdade daqueles enunciados expondo-os ao “fogo

cruzado” de raciocínios claramente alheios por motivos logísticos, históricos,

antropológicos, e, antes de tudo, linguísticos”, dando resposta às exigências culturais

resultantes do maciço processo de reformas e modernização do Japão durante a

restauração da Era Meiji225 (1868-1912). A necessidade de confrontar e integrar

instâncias próprias do mundo extremo oriental com categorias e intuições pertencentes

às grandes correntes filosóficas europeias, percorrem cada página de Nishida e

fecundam os seus conceitos. Se, por um lado, as influências são reconduzíveis às

matrizes espirituais do zen (sobre as quais delongar-nos-emos nas páginas seguintes) de

escola rinzai e kegon226, além da jōdo shinshū, por outro, o léxico é nitidamente

postos pelas filosofias ocidentais, ou seja, utilizando as linguagens e as lógicas próprias destas filosofias, para concluir que a sua solução não surgirá nem com respostas orientais nem com respostas ocidentais, mas com uma resposta dialéctica universal que descobre nas diferenças as razões da unidade.

225 “Dopo alcuni secoli di chiusura al mondo esterno [...] per il giappone era appena iniziato un periodo di sconvolgenti mutamenti politici, economici, sociali. Con l’arrivo delle navi militari e americane del commodoro Perry che avevano di fatto imposto la riapertura dei porti sul finire del periodo Edo (1603-1868), era cominciata una stagione di riforme radicali [...] tramite le quali il governo giapponese cercava di fronteggiare l’impellenza di arginare l’aggressivo espansionismo delle nazioni occidentali organizzando una rapidissima modernizzazione del paese.”, Enrico Fongaro, «Uno studio sul bene all’origine di una filosofia giapponese», in Kitaro Nishida, Uno studio sul bene, trad. italiana di Enrico Fongaro, Torino, Bollati Boringhieri, 2007, p. 188.

226 Cf. Ryōsuke Ōhashi, «Zen e Filosofia», in Simplegadi – Rivista di filosofia interculturale, Padova, S.A.R.G.O.N. editrice, Anno 10, numero 26, novembre 2005, pp. 111-117. A escola Rinzai, de derivação chinesa, foi fundada pelo mestre Lin-chi (data da morte: 867 d.C.) e foi veiculada no Giappone por Eisai no fim de 1100. A escola Sōtō tem em Dōgen o seu fundador. Ele trouxe da China os ensinamentos de T’sao-tung (ou Cáodòng). A diferença mais evidente entre as duas escolas reside no facto que a Rinzai, além de praticar a meditação sentada (zazen), utiliza também o exercício dos Kōan (palavra ou frase desprovida de sentido lógico proposta pelo mestre ao aluno para quebrar os limites do pensamento discursivo) e dos mondō, (conversa paradoxal entre mestre e aluno que apresenta muitas similitudes com os Kōan), contrariamente da Escola Sōtō que foca a sua doutrina quase exclusivamente na meditação sentada (shikantaza). Ainda a propósito dos efeitos desorientantes dos koan e dos mondō e da sua complementaridade com a condição de satori, José Eduardo Reis acrescenta: “O mondo, tal como o koan consiste no exercício de colocar o discípulo num dilema sem solução lógica, de conduzir a um impasse intelectual cuja superação implica a própria transcendência do uso das faculdades ou condições do conhecimento habituais, de lhe provocar, enfim, uma espécie de catástrofe no modo auto-centrado de se percepcionar a si e ao mundo ou – num registo mais ameno de se abrir a uma espécie de inspiração supra-pessoal e participante de uma ordem mental superior. […] O mondo caracteriza-se, portanto, por ser um diálogo em que o teor das respostas do mestre às perguntas racionalmente formuladas pelo discípulo indagador é invariavelmente desconcertante e, não raro, acompanhado de súbitos e inesperados gestos físicos, que podem mesmo ser agressivos, com a finalidade de provocarem a suspensão do fluxo do pensamento intelectivo do inquiridor e nele desencadearem o satori. A relação de inteira e reconhecida confiança entre discípulo e mestre, que decorrem de um longo e árduo aprendizado e de um

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marcado à lição que de Platão passa através de Eckhart, Nicolau de Cusa, Kant, Fichte,

Hegel e Schopenhauer até Fiedler, William James, Bergson, e em parte Husserl, dos

quais Nishida foi um dos primeiros apreciadores fora da Europa.

A sua excepcional capacidade de fazer dialogar obras e autores distantes no

espaço e no tempo, com uma constante tentativa em delinear uma conceptualidade

original, demonstra-se como um dos motivos da dificuldade em acostar-se ao seu

pensamento. O outro obstáculo, sobretudo para os seus leitores compatriotas, é passível

de ser encontrado na reiterada criação de neologismos filosóficos227, transformando o

sentido habitual em que eram assimilados alguns termos na língua japonesa ou

intensificando o valor onto-gnoseológico de algumas das suas interpretações

semânticas, embocando, logo aos inícios da docência, atalhos para uniformizar as

próprias perspectivas àquelas formativas e transformativas do olhar estético.

A elaboração estética nishidiana vive numa constante tensão entre uma visão

imanentista da criação e uma visão metafísica e transcendente do belo que recorda

Platão, Plotino e em geral todo o neo-platonismo. A arte, a intuição artística e a criação

– como expressão peculiar de uma vontade não subjectiva – são colhidas e investigadas

na sua processualidade; a Nishida interessa sobretudo mostrar o valor dinâmico da arte,

a sua capacidade de vivificar a experiência e de permitir o relevamento da união íntima

genuíno e incondicional convívio espiritual, é, por conseguinte, uma condição determinante para a possibilidade da ocorrência do satori como efeito do mondo.” José Eduardo Reis, Porque veio Alberto Caeiro do ocidente, pp. 323-324. Sobre a escola-seita Kegon herdeira, no Japão, da tradição doutrinária da chinesa Hua-yen ver R. H. Robinson, W. L. Johnson, La religione buddhista – un’introduzione storica, Astrolabio-Ubaldini, Roma, 1998, pp. 232-239 e pp. 295-297; Fazang, Il trattato sul leone d’oro, a cura di S. Zacchetti, Esedra, Padova, 2001; Yōko Arisaka, «Beyond East and West: Nishida’s Universalism and Postocolonial Critique», in AA. VV., Border Crossings: Toward a Comparative Political Theory, Fred Dallmayr (ed.), Lexington Books, Lanham, 1999, pp. 236-252.

227 Cf. Matteo Cestari, «Introduzione al pensiero di Nishida Kitarō», in in AA. VV., La Scuola di Kyōto, op. cit., pp. 92-95. No Japão do século XIX, a introdução dos conceitos e da terminologia da filosofia, e em especial modo da estética, determinam, já anteriormente ao advento de Nishida, uma necessária reorganização epistemológica da parte dos estudiosos da matéria. Além de clarificar as noções vindas do pensamento europeu, torna-se necessário cunhar ex novo uma série impressionante de termos técnicos (“filosofia”, “estética”, “sujeito”, “objecto”, “imaginação”, “sensibilidade”, etc.) que até então não eram usados, ou não cobriam perfeitamente o âmbito semântico dos termos europeus. Disso tudo foi pioneiro e invulgar campeão Nishi Aname (1829-1897), capaz de criar 787 termos originais, que não se encontravam nos dicionários japoneses antes de 1874. Para Nishi, a estética devia colocar-se entre a ética e a lei, no interior de um sistema de saberes capaz de orientar da melhor maneira a vida do homem na sociedade. Rejeitando a exigência kantiana de uma independência das artes, Nishi tornou-se promotor de uma estética capaz de promover a arte como claro objectivo das manobras políticas dirigidas a fins sociais que influenciou abertamente Nishida.

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entre sujeito e objecto, que se interpretam um no outro num movimento quiasmático de

relação recíproca.

A experiência da produção artística e da contemplação de obras de arte é depois

indicativa e exemplar para apreender alguns caracteres fundadores da experiência

humana em geral; não porque na arte se encontre um significado mais completo

daquele que a vida, na sua quotidianidade, sabe oferecer, mas porque nessa se exibem

concentrados e evidentes, de uma maneira especialmente feliz, os elementos que

compõem a vida individual no seu dar-se e no seu fazer-se. Mais do que uma

compreensão filosófica da “estética” e das suas questões, em Nishida é especialmente

relevante a problemática da arte enquanto criação, com um cuidado especial à

presença e ao papel da corporeidade no processo criativo e contemplativo das obras.

Colher nos seus complexos pormenores a importância dessa premissa comporta, antes

de mais, enquadrar alguns dos princípios basilares que regulam o universo da sua

sensibilidade nipónica.

De alguma maneira a summa da tensão estética japonesa é a experiência do

mono no aware. Esta perífrase, que recorre nos tratados sobre a arte e a poesia, é a

elaboração de um termo que nas origens indicava uma simples exclamação de estupor:

aware! que corresponde aproximadamente a lacrimae rerum, o pathos das coisas. Se se

percebe a relação entre beleza e tristeza, então mais argutamente se acolhe o sentido ou

sentimento que é movido pelas coisas. A comparticipação estética e emotiva com a

natureza e tudo aquilo que rodeia ou atravessa o ser humano é compreendido como um

nobre ideal, sinal distintivo do espírito instruído, e como a essência da arte da vida. A

carga emocional que derrama da dimensão do mono no aware traduz-se naquele que o

poeta do século X, Ki no Tsurayuki228, chama yojō, “excesso emocional”, uma

plenitude de sentimento que transborda da interioridade do poeta.

Yojō liga-se depois a Yūgen, um conjunto de experiências sensórias e emotivas,

um meio de relacionar-se com a existência e de ter consciência; de seguida determina-

se como factor estético integrando a consciência da insubstancialidade e da

impermanência dos fenómenos nas esferas poética, artística e estética.

A relação íntima e indissolúvel entre arte e vida, entre experiência artística e

experiência vivencial quotidiana, está no centro da vicissitude também do zen, talvez

228 Cf. Shūichi Katō, Storia della letteratura giapponese, 3 vols., vol. I, Venezia, Marsilio, 1987, pp. 116-126.

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uma das escolas de cunho budista229 mais popular no Ocidente, que se difundiu no

Japão a partir do séc. VI d.C. e se secularizou completamente a partir do séc. XIV. O

zen estruturou-se nas duas direcções da estética e da ética e fê-las depois convergir,

integrando-as reciprocamente enquanto as artes são julgadas criações de beleza e

também meios através dos quais os mestres zen propagam intuições diversamente

inexprimíveis.

É o caso de um peculiar sentimento de auto-realização e plenitude designado

por “acordar” ou “iluminação” (satori) ou também por kenshō (“ver a própria natureza

de Buda”, e “actuar a própria natureza iluminada”), que é a compreensão da unidade de

mente e matéria, de realidade e ilusão, de espírito interior e mundo externo230. Esta

experiência não é identificável simplesmente como “intuição”. Ao contrário, é uma

experiência súbita e profunda que favorece a “visão do coração das coisas”, que acaba

por ser idêntica à “natureza de Buda” (busshō), à natureza de toda a realidade, do

cosmos e do Si. Conjuntas com uma tal doutrina, é possível distinguir numerosas

práticas pertencentes a campos heterogéneos, todas inspiradas e fecundadas pelo zen: a

poesia (haiku), o teatro (Nō), a arte de arranjos florais (ikebana), a cerimónia do chá

(cha no yu o chadō), a arte da caligrafia (shodō), a arte da pintura (zen-ga), a arte

culinária (zen-ryōri, shojin ryōri, fucha ryōri), as artes marciais (por exemplo, o aikido,

karate, Jūdō, etc.), o tiro com arco (kyudo) e da arte da espada (kendo)231.

Outra marca específica do zen estrutura-se como o evento que acontece

gratuitamente, uma vez liberta a mente de qualquer resíduo intencional e subjectivista.

229 A denominação zen é equivalente, em língua japonesa, da palavra chinesa “chan” que, por sua vez, equivale à expressão sânscrita “dhyana” e ao correspondente pāli “jhana”, literalmente quer dizer “meditação”. Obviamente o budismo zen que influenciou intensa e extensamente as artes, também como os costumes sociais do Japão, não se limita a sustentar que a mera prática meditativa seja suficiente para perceber e resolver qualquer problema, mas assume-a como seu pilar, pois que preserva a difusão do equilíbrio psicofísico necessário à compreensão e solução das grande questões da humanidade.

230 Cf. nota de rodapé nº 226. Ainda sobre o satori considerem-se as seguintes luminosas reflexões de Suzuki numa sua obra imprescindível: “Il satori puo essere definito come una penetrazione intuitiva della natura delle cose, in opposto alla comprensione analitica o logica di esse. Praticamente, esso comporta il dispiegarcisi davanti a noi di un mondo nuovo, prima non percepito a causa della confusione della nostra mente dualisticamente orientata. Si può anche dire che col satori tutto quanto è d’intorno co appare secondo una prospettiva insospettata. Comunque, per coloro che hanno avuto il satori il mondo non è più quello di prima: nella correntia di tutti i suoi fiumi e nel bagliore dei suoi incendi per essi non tornerà più a essere lo stesso. Logicamente parlando, ora tutte le antitesi e tutte le sue contraddizioni risultano conciliate ed armonizzate in un tutto organico e coerente. È un mistero e un miracolo, che però – dicono i maestri dello Zen – si verifica ogni giorno.”, Daisetsu Teitarō Suzuki, Saggi sul buddhismo zen, 3 vols., vol. I, Roma, Edizioni Mediteranee, 2003, p. 216.

231 Em relação ao papel do zen na cultura e na arte japonesa, cf. Idem, Il risveglio dello zen, Roma, Astrolabio-Ubaldini Editore, 1982, pp. 48-66.

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O zen favorece a actuação, o pôr em prática do vazio. Vazio de ego, vazio de

objectivo, vazio de intenção: muga, “não eu” (ou ausência de si) é a característica

necessária para realizar uma obra perfeita, completa, sem imperfeições causadas por

uma intromissão subjectiva. O conceito de “não eu” ou de “ausência de si” funde-se

directamente com aquele de mushin, ou seja, de “não-mente”232.

A experiência estética de yūgen, o sentimento de aware e a dimensão mais

profunda da sensibilidade são consentidos por mushin, condição a priori para poder

mergulhar autenticamente na contemplação de uma paisagem ou de uma obra de arte,

regozijando-se da maneira mais pura.

Com a execução da obra, o indivíduo distingue a raiz do próprio ser, um ser que

não tem nada da identidade psicológica, mas que relaciona a própria condição ôntica à

origem sem forma de cada forma – corporal, mental, espiritual, natural, artística. É por

este motivo que nenhuma obra pode ser considerada como um objecto colocado de

frente para o sujeito, preceito de onde a arte tradicional japonesa infere que o que

exprime e o que é expresso são a mesma coisa.

O desapego artístico não aceita nem rejeita os desejos, pelo contrário objectiva-

os e observa-os. A contemplação desinteressada da beleza não quer dizer que se é “não

interessado” pelo objecto. Significa simplesmente que se desfruta da beleza em si

mesma independentemente do próprio interesse pessoal233.

Vem daí que a arte nas culturas do extremo oriente pode e deve ser

compreendida, segundo a interpretação de Hisamatsu, insigne estudioso da estética

japonesa e discípulo de Nishida, como uma espontânea expressão criativa – mesmo que

isto não signifique que não tenha regras – que se desata de um sujeito de-subjectivado,

que em última instância coincida com o Fundo-sem-fundo definido como uma

232 Cf. Toshihiko Izutsu, La filosofia del Buddhismo zen, Roma, Ubaldini, 1984, p. 59;

Giangiorgio Pasqualotto, Estetica del vuoto – Arte e meditazione nelle culture d’oriente, Venezia, Marsilio, 2006, pp. 62-63. “O Inconsciente, cujo reconhecimento constitui mushin, configura as experiências que temos através dos sentidos e dos pensamentos. [Em mushin] quando ocorre uma experiência, por exemplo, de vermos uma árvore, tudo o que sucede nesse momento é a percepção de algo. Não sabemos se essa percepção nos pertence, nem reconhecemos o objecto como estando fora de nós. [...] O estado de não-mente refere-se ao tempo anterior à separação entre o mundo e a mente, quando não há ainda mente operando face a um mundo exterior e acolhendo as suas impressões através dos vários canais sensitivos.”, José Eduardo Reis, «Porque veio o Alberto Caeiro do Ocidente», op.cit., p. 337.

233 Enquanto “não interessado” significa aborrecido, “desinteressado” quer dizer imparcial. Cf. Steve Odin, Artistic Detachment in Japan and in the West, University of Hawaii Press, 2001, p. 5.

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vacuidade dinâmica, criativa, condição de possibilidade para a produção de qualquer

espontaneidade e “processualidade” que se manifesta em cada elemento real:

Mentre la cultura Orientale può essere descritta come una cultura del Nulla, questo “Nulla” (mu [...])non significa una mera non esistenza o negazione, ma si riferisce invece al Soggetto che è Assolutamente e Attivamente Nulla [...]. È nell’espressione artistica di questo Soggetto, che è Assolutamente Nulla, che si há la creazione di un’arte tipicamente Orientale.

234

Este é o terreno filosófico e cultural no qual Nishida libertará a sua doutrina,

evidentemente fertilizado pela sensibilidade zen-budista, embora nunca tenha gostado

de ser etiquetado ou enquadrado numa específica área do saber, como revela a sequente

confissão enviada a Nishitani Keiji, o discípulo mais respeitado:

Io non sono uno che conosce profondamente lo zen, ma dato che alcuni lo fraintendono del tutto, allora la mia opinione è che la vita dello zen consista proprio nel coglimento del reale. Forse è impossibile, ma io in qualche modo vorrei combinare ciò con la filosofia, questo è stato il mio desiderio fin da quando avevo trent’anni. Ora, se sei tu va bene, ma se i soliti ignoranti dicono che io sono lo zen ecc., io mi oppongo con tutte le forze. Chi dice così non conosce lo zen e non capisce la mia filosofia, dice semplicemente x = y e fraintende così sia la mia filosofia che lo zen.235

A consideração retrospectiva de Nishida desvenda a orientação global da sua

pesquisa no esforço de agarrar conceptualmente a origem “da qual tudo emerge e à

qual tudo regressa”, o local indiferenciado que acolhe cada fenómeno do real e permite

superar as dicotomias entre o eu e o mundo, entre o sujeito e o objecto, entre o ser e o

vir a ser, características das definições metafísicas de proveniência ocidental.

O entrelaçamento de logos e zen produz uma forma filosófica na qual a

linguagem é empregue para denunciar os seus próprios limites, e que se encontra numa

relação de “continuidade de descontinuidade” (consoante a acepção de Ōhashi) entre o

pensamento e o seu outro, entre a filosofia na sua instalação mais sistemática e aquilo

que não pode ser restringido ao conceito: em Nishida serão mesmo estes temas que a

começar do trabalho de estreia filosófica Estudo sobre o bem (Zen no kenkyū) de 1911,

se concentrarão gradualmente na experiência, na auto-consciência, na vontade, na arte

e, por último, na intuição religiosa.

234 Cf. Hōseki Shin’ichi Hisamatsu, Zen and the Fine Arts, Kodansha, Tōkyō, 1971, p. 53. 235 NKZ, XIX, p. 225 apud Marcello Ghilardi, Una logica del vedere, op. cit., p. 49.

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Estudo sobre o bem, a primeira obra completa e coerente nishidiana, está divida

em quatro partes (A experiência pura, A realidade, O bem, A religião), escritas

separadamente e em seguida unidas com o intento de fornecer um sistema filosófico

uniforme. O elo de conjunção foi individuado no enunciado de “experiência pura” que

Nishida retoma de William James para transformá-lo em algo de novo e original: o

termo numa óptica nishidiana deve ser lido como “experiência pura e simples”,

imediata; conota a anterioridade no que diz respeito à reflexão, à linguagem do juízo e

reenvia a uma experiência directa do fluir da consciência antes da introdução de um

explícito dualismo “sujeito-objecto”.

Fare esperienza significa conoscere il reale concreto così com’è. È conscere in conformità al reale concreto, tralasciando completamente ogni intromissione da parte nostra. Puro è in senso proprio lo stato dell’esperienza così com’è, senza nessuna aggiunta del discernimento riflessivo, dato che di solito a ciò che si dice esperienza si mescola in realtà un qualche pensiero. Per esempio, nell’attimo in cui si vedono colori o si sentono suoni, “puro” indica non solo l’assenza del pensiero che questi suoni e colori siano dovuti all’azione degli oggetti esterni o che sia l’io a percepirli, ma “puro” connota un’anteriorità persino rispetto all’aggiunta del giudizio su cosa siano questi colori e questi suoni. Per questo l’esperienza pura è identica all’esperienza immediata. Quando si fa esperienza direttamente del proprio stato di coscienza non ci sono ancora né soggetto né oggetto, la conoscenza e il suo oggetto sono completamente unificati. Questo è il modo più puro dell’esperienza.236

O pensamento comum ensina-nos que sujeito e objecto são realidades

independentes, mas isto não é decerto a única vertente correcta de pensar. Ao contrário,

para Nishida é uma disposição errada: A reflexão emerge a posteriori em relação à

experiência, e trazendo de novo a consciência sobre si mesma e tornando-a traduzível

em palavras e comunicável, intromete entre sujeito e objecto uma separação, uma

cisão. Antes da reflexão não existem sequer um sujeito e um objecto.

A concepção de fundo de Nishida, agora, é que a experiência “em si” antecipe, e até

fundamente as determinações únicas, enquanto evento original, experiência pré-

reflexiva:

Non è che essendoci il singolo individuo c’è l’esperienza, ma essendoci l’esperienza c’è il singolo individuo e l’esperienza è più fondamentale delle distinzioni individuali.237

236 Nishida Kitaro, Uno studio sul bene, op. cit., p. 11. 237 Ibidem.

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Para Nishida a realidade é uma, ou seja, existe um princípio que a unifica. O

único elemento capaz de corresponder à realidade na sua totalidade, o elemento que

pode exprimir dialecticamente os fenómenos do mundo é a consciência. Todavia, não

se trata de uma consciência intencional, que aponta o seu objecto e o define,

compreende-o. Na concepção de Nishida a consciência tem que ser entendida como um

lugar de acolhimento, uma cavidade que deixa que os fenómenos aconteçam e se

disponham livremente. A ideia principal é que o momento fundador do “fazer

experiência” não precise de um sujeito – que manifestando-se inscreveria uma cisão,

uma distância daquilo que viria como consequência a constituir-se como um objecto –

mas se dê pelo contrário como um “puro ver” a realidade assim como é, fora da

distinção canónica entre sujeito e objecto.

Mesmo apropriando-se dos movimentos da instalação do idealismo kantiano e

hegeliano e da psicologia de W. James, Nishida distingue-se porque não pretende

descrever a realidade nem como objectiva, nem como subjectiva, nem mesmo como

empiricamente objectiva. “O agir da experiência pura é a mesma e idêntica coisa do

que o que é agido”; nenhum elemento pode dominar nem resumir a si o outro (o

pensamento ou a realidade, o sujeito ou o objecto, a intuição sensível ou a

conceitualização), dado que a unidade posta em campo pela experiência é infinitamente

dinâmica e abrangente.

A estratégia adoptada por Nishida em todo o desenvolvimento da sua pesquisa

é, nas convicções de Marcello Ghilardi, “registar cada dualismo no interior de uma

unidade mais ampla, original, que não elimina ou resolve definitivamente as tensões, as

diferenças, as contradições, mas mantêm-nas activas e em acção.”238 Este ponto focal,

que comprova a originalidade da filosofia de Nishida e o une ao seu específico

contexto nipónico, destaca também os seus limites intrínsecos, porque faz emergir a

aporecidade de uma argumentação que solicita uma experiência como condição para a

compreensão daquela mesma argumentação. É também por isto que o primeiro livro de

Nishida não se mostrou muito sólido assim que foi publicado.

O frémito convence-o ainda mais a prosseguir no caminho filosófico virando-

se, especificamente, para o estudo e para o confronto com os textos da tradição neo-

kantiana e, em menor medida, fenomenológica. Os seus pressupostos teóricos assumem

238 Cf. Marcello Ghilardi, Una logica del vedere, op. cit., p. 59.

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uma curvatura que cedo o levarão a abandonar o conceito de experiência pura, para

abraçar outros que parecem de maior conveniência tendo em conta as problemáticas

específicas a averiguar.

Procurando elaborar as ideias tracejadas de uma forma ainda não totalmente

convincente no seu primeiro livro, Nishida compõe uma série de ensaios que recolhe

em 1917 com o título definitivo Intuição e reflexão no autoconhecimento. Uma

segunda série de ensaios comporá o terceiro livro que sairá em 1920 com o título O

problema da consciência. Deste conjunto de estudos denota-se a dificuldade e ao

mesmo tempo o grande interesse por parte de Nishida em relacionar os dois conceitos

que combinam o título, intuição e reflexão, em relação àquele que constitui o novo

modo fundamental para descrever a natureza original do agir e compreender humano,

uma vez que se revelou infrutuosa a adopção de conceito de experiência pura: (jikaku)

auto-consciência.

Com o termo de auto-consciência Nishida tenta juntar a auto-consciência da

experiência pura e o aspecto da reflexão sobre a reflexão. Esta torna-se, por outras

palavras, a cifra da passagem do dualismo de um modo mais articulado e profundo do

que a semântica de experiência pura não fosse capaz de explicar: é a actividade pela

qual o sujeito se torna uno com o objecto, e o objecto se torna uno com o sujeito,

constituindo-se como elemento unificador de todas as oposições, matéria e espírito, ser

e outro, igual e diferente, uno e muitos, conhecer e querer, singular e sociedade.

A auto-consciência não é uma simples cogitação do ser sobre o ser, mas é um

agir dentro de si, uma mudança interior das qualidades das próprias (auto) percepções;

é uma transformação de todo o ser, do eu e do mundo junto, enquanto não mais

separados, mas agora ligados de todo, entrelaçados, embebidos um no outro, que

ostenta uma inegável concomitância com o zen e com o princípio da génese ou co-

produção condicionada (pratītyasamutpāda)239 extensível a toda a realidade, defendido

nas Majjhima-nikāya e Saṃyutta-nikāya240do cânon budista.

239 Resumível no lema “Enquanto há isto, há aquilo; enquanto aparece isto, aparece aquilo;

quando não há isto, não há aquilo; quando desaparece isto, desaparece aquilo.”, a pratītyasamutpāda é assim exemplificada por Pasqualotto: “Ogni forma materiale, così come ogni sensazione, ogni percezione ed ogni altro contenuto della coscienza, non ha natura propria: non si determina e non si definisce in modo autonomo come se posseddesse un’identità absoluta, sciolta dal rapporto con ogni altro-da-sé. In altri termini: nessun elemento, sia fisico che psichico, sussiste in sé. Questa idea della non-separatezza delle cose e dei fenomeni, così come dei contenuti della coscienza, è nei testi canonici buddhisti ribadita innumerevoli volte, ma trova la sua sistemazione compiuta nella teoria della

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L’intuizione è l’unità di conoscente e conosciuto prima della divisione in soggetto e oggetto. Intuizione è la coscienza che è la realtà così com’è e che si trova in costante movimento. La riflessione è la coscienza che, stando al di fuori di questo movimento, lo guarda volgendosi indietro. Detto con le parole di Bergson, riflessione significa considerare la durata pura come contemporaneità, il tempo in quanto spazio. Ora, per noi che pensiamo che non ci si possa in nessun modo separare dalla realtà dell’intuizione, come è possibile per noi una simile riflessione? Come viene riunita la riflessione con l’intuizione? Che senso ha l’una nei confronti dell’altra?241

Di solito noi pensiamo come autoconsapevolezza il fatto che il sé riflette su di sé, che sé riflettente e sé riflesso sono uno, ma il nostro sé non è meramente una tale unificazione intellettuale (chiteki […]); che il sé rifletta sé significa che il sé agisce entro sé, che avanza di un passo, che questa cosa stessa (sono jijishin […]) costituisce la storia indelebile del sé. In altri termini, significa diventare un dato di fatto concreto, oggetivo [...].242

A auto-consciência inclui e põe em relação intuição e reflexão, a partir do

momento que se trata do ser que se vê a si próprio no acto de ver, ou seja, um ser que

se conhece em si mesmo no seu ser actividade.

O dilema de Nishida era o de descobrir um modo adequado para falar da

consciência reflexiva em relação à intuição imediata da realidade, sem retomar a

hipóstase do “eu” – tão usufruído e gasto pelo pensamento ocidental – que acabava por

conduzir a problemas insolúveis.

Ser verdadeiramente consciente de si passa pela perda do ser (limitado,

psicológico), e segue na direcção – mas trata-se de uma direcção não intencional –

duma consciência mais ilimitada, na qual de facto o ser se encontra uno com os

próprios fenómenos.

O conceito de intencionalidade não parece, então, suficientemente sólido para

justificar a necessidade de um fundamento pré-subjectivo e não dualístico apto a coproduzione condizionata o della «origine dipendente».”, Giangiorgio Pasqualotto, Estetica del vuoto, op. cit., p. 39.

240 Os textos sagrados do Budismo (tradicionalmente indicados por Tripitaka) estão actualmente reunidos em três cânones: O Cânon Pāli (o Pāli Tipitaka), o Cânon Chinês (Dàzàng jīng) e o Cânon Tibetano, assim chamados em conformidade das línguas dos escritos. O Cânon Pāli pertence ao budismo Theravāda, e compõe-se de três pitaka, ou cestos: o Vinaya pitaka, o cesto da disciplina com as regras monástica; o Sutta Pitaka, o cesto da doutrina, com os ensinamentos divulgados pelo Buda; para concluir, o Abhidhamma Pitaka, o cesto dos compêndios cosmológicos, psicológicos e metafísicos à doutrina exposta no Sutta Pitaka. A editora inglesa Pali Text Society publicou o cânon completo Pāli em 57 volumes entre 1877 e 1927. A Majjhima-nikāya e a Samyutta-nikāya são, respectivamente, a segunda e a terceira divisão do Sutta Pitaka. Enquanto a Majjhima-nikāya contem 152 sermões ou discursos breves (sutta in pāli, sūtra in sânscrito) atribuídos ao Buda e aos seus sequazes, o Samyutta-nikāya acolhe uma colectânea de 2,889 sutta.

241 NKZ, II, p. 15 apud Marcello Ghilardi, Una logica del vedere, op. cit., p. 62. 242 NKZ, III, p. 467-468 apud Ibidem, p. 102 (itálico do tradutor).

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recolher as inter-relações entre conhecido e sabido que constituem a actividade do

compreender e do exprimir.

L’essenza della coscienza non sta nella cosiddetta intenzionalità, quanto piuttosto nella volontà. L’intenzionalità non è altro che volontà ( ishi […]) debole.243

A partir de agora será a noção de vontade a prevalecer sobre as restantes; a ser

reputada fundamento do ser auto-consciente. Entendida como impulso próprio da vida

e não como prática de livre escolha – transcende o tempo ficando, contudo, fortemente

ligada à realidade dos fenómenos.

A vontade assume ao longo dos ensaios reunidos em Intuição e reflexão no

autoconhecimento o papel de substituto, quase sinonímico, das anteriores formulações

de experiência pura e de auto-consciência, como se Nishida andasse à procura de uma

constante redefinição do próprio léxico com a finalidade de discernir a melhor

formulação das próprias ideias.

Apesar de Nishida não citar Schopenhauer na sua obra, pode-se perceber da sua

biografia e dos conteúdos de algumas cartas e anotações quanto realmente teria ficado

impressionado pelos preceitos do filósofo alemão.

O luminar americano James W. Heisig, especialista em história comparada das

religiões, para explicitar o imprescindível papel da vontade em Nishida, nesta época

particular, escolhe uma metáfora poética onde o binómio dos substantivos intuição e

reflexão - a base sobre a qual medir a possibilidade de uma experiência imediata e de

uma sua consciência reflexiva - representam a “a terra” e “o mar” enquanto a vontade

se apropria do carácter e das dimensões do céu que os domina: “È come se una notte,

disteso sulla sua zattera a guardare il cielo, Nishida avesse visto un’altra dimensione al

di là di terra e mare, nel buio e profondo abisso sopra di lui.”244

Como já aludido várias vezes, o propósito precípuo de Nishida não é tanto o de

relatar ligações, mas o de introduzir um novo modo de ver as coisas, eliminando a falsa

dicotomia entre sujeito e objecto sem que, por isso, caia na indistinção da união

mística, já não filosoficamente analisável. Ultrapassar o dualismo não tem a ver com

confundir o sujeito com o objecto, como se se tratasse da mesma coisa; tem a ver com

243 NKZ, V, p. 129 apud Ibidem, p. 64. 244 James W. Heisig, Filosofi del nulla, op. cit., p.17.

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o considerar o si como um não-objecto, e o mundo como não-sujeito. Segundo a

terminologia nishidiana, é preciso desenvolver a sabedoria de um “ver sem vidente, de

um agir sem agente”. Um outro modo para dizer a mesma coisa, utilizado já desde Um

estudo sobre o bem e retomado em inúmeros trechos de obras sucessivas, é “conhecer

tornando-se”.

Nishida, em 1923, recolhe os seus trabalhos dedicados a questões estéticas e

morais num texto cujo título é Arte e Moral. Neste livro, o razoamento de base que

deveria fundamentar a argumentação da íntima conexão entre âmbito artístico e moral

é, mais uma vez, a vontade. A diferença em relação aos escritos anteriores é que na

época da elaboração dos ensaios de Arte e Moral, o objectivo é mostrar como a

vontade é também o pressuposto unificador da consciência e da realidade.

O cerne da preocupação de Nishida nesta fase especulativa é que no momento

da intuição artística e sucessivamente naquele da criação, já não há um sujeito que,

intencionalmente, tente expressar verdades metafísicas, mas é a dimensão intuitiva e

criadora que flui daquilo que já não se pode caracterizar e classificar como ente auto-

referencial, em contraposição a um mundo objectivo e exterior. Seguindo este rumo,

compreende-se ainda que, quando fala de “expressão” ou “autoexpressão”, Nishida não

quer denominar a exteriorização por parte do artista e da sua individualidade, por meio

de um trabalho artístico ou da obra, mas uma expressão que transcende o mesmo

indivíduo, extraindo a sua linfa de uma vontade que não tem nada de pessoal: é um

estado de lucidez em que o sujeito se afunda, dissolve e perde a sua identidade

granítica e determinada por meio do fazer artístico; despe-se da própria subjectividade,

não reconhece mais a objectividade externa como tal.

Il bello deve essere l’espressione (hyōgen [...]) del contenuto della vita profonda che va al di là della conoscenza. Nella prospettiva dell’agire, per noi immediato, tutto è pieno di vita personale. Ciò che esprime direttamente questo contenuto è l’attività creativa dell’artista. È per questo che si può anche pensare che l’attività creativa dell’artista sia movimento espressivo. [...]. Un sistema autoconsapevole [...] significa che conoscente e conosciuto sono uno, che l’attività genera direttamente l’attività, che conoscere è agire e agire è conoscere. 245

A citação seleccionada autoriza a dedução que o fundamento da intuição

artística é o mesmo fundamento da moral enquanto autoexpressão da vontade absoluta

245 NKZ, III, p. 390 apud Marcello Ghilardi, Una logica del vedere, op. cit., pp. 68-69.

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– neste ponto a entender não como cego desejo que consome e devora qualquer coisa –

mas horizonte processual, dinâmico, que continuamente orienta e organiza os

fenómenos físicos, racionais e espirituais.

A constante reformulação normativa do conceito de vontade, repetidamente

retomada e questionada nas páginas dos ensaios reunidos até 1923, apresenta-se, afinal,

como uma etapa ulterior do caminho de desenvolvimento terminológico e conceitual,

que parte da ideia de experiência pura, como já vimos, para depois atracar naquelas de

nada absoluto e lugar, na fase mais matura da investigação nishidiana.

Nishida apercebe-se que as dificuldades intrínsecas do pensamento ocidental e a

problematicidade de uma síntese fecunda com as tradições orientais estavam mesmo na

inadequação das ferramentas lógico-linguísticas porque, se na verdade a lógica

ocidental possui uma excepcional capacidade de plasmar abstrações conceptuais e de

racionalizar a natureza e a potência do homem, continua, porém, a ser só uma tipologia

específica da vida histórica. Estas conclusões, já esboçadas em 1924, chegam a uma

reelaboração da sua lógica em Do agir ao ver, de 1927. O ensaio instaura uma adesão

cada vez mais pujante à lógica paradoxal do Prajñāpāramitā sūtra246 que se opõe ao

princípio de não-contradição, sublinhando a intensa ambivalência da realidade em

pleno acordo com a célebre e paradigmática asserção: a forma é o vazio e o vazio é a

forma.247 Esta nova perspectiva lógica, desde 1930, abre a uma ulterior questão crucial

que Nishida enfrenta no Sistema da autoconsciência do universal, a noção de “lugar do

nada” (Mu no basho).

O conceito de basho (“lugar”) é considerado o mais original e importante de

todo o aparato especulativo de Nishida; aparece pela primeira vez no homónimo ensaio

publicado em 1927. Inspirando-se na asserção platónica de chora e naquela de topos

que Aristóteles introduz no De Anima, bem como naquela budista de akasa, isto é,

forma sem uma forma, Nishida desenvolve uma “lógica do lugar” (basho no ronri)

246 O Prajñāpāramitā sūtra, Discurso sobre a perfeição da sabedoria ou Discurso sobre o conhecimento transcendente é o nome dado a um conjunto de trinta e oito sutra budistas. Os mais antigos remontam ao I século a.C. enquanto os mais tardios são do século VII d.C. Estes testemunhos, tal como o Sutra do Lótus, são os pilares do Buddhismo Mahāyāna ao qual o zen está associado.

247 “La forma è vacuità e la vacuità è forma; la vacuità non differisce dalla forma, la forma non differisce dalla vacuità; qualsivoglia cosa sia forma, quella è vacuità; qualsivoglia cosa sia vacuità, quella è forma, stessa cosa riguarda le sensazioni, le percezioni, le pulsioni e la coscienza.”, I libri buddhisti della sapienza, a cura di Edward Conze, Ubaldini, Roma, 1976, p. 73. Asserir “a vacuidade é o que as formas são” equivale a sufragar que a vacuidade tem a mesma característica de qualquer específica forma material: também a vacuidade pode reclamar algum estatuto de realidade autónoma, de auto-consistência.

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para ressaltar a ontologia consolidada em torno da experiência imediata da não-

dualidade que, como vimos, representa desde Um estudo sobre o bem o fundamento

pré-filosófico do seu sistema. No ensaio Basho Nishida argumenta que sujeito e

objecto não poderiam entrar em relação – neutralizando, previsivelmente, a existência

do conhecimento – se não estivessem num lugar que os compreende e os deixa estar

em relação, em interdependências mútuas.

Na síntese de Jacynthe Tremblay escolhendo o termo basho, Nishida acentua os

aspectos lógico e ontológico deste mesmo basho, assim como destaca o que se situa

nele. Porém usa a palavra “universal” quando a intenção é aquela de evidenciar o cariz

epistemológico do basho. Dar ao basho o estatuto de um universal significa atribuir-lhe

um sentido noemático e objectivo sem, todavia, excluir por completo a característica

noética248.

De grande relevância é a posição que a arte – nomeadamente a intuição artística

– assume dentro da arquitectura especulativa por meio da qual Nishida pretende

garantir uma estrutura logicamente coerente ao real.

Para este fim, o filósofo japonês adopta um esquema tripartido, onde cada nível

superior abrange o inferior que do anterior representa a “autoexpressão” (assim como,

por exemplo, o indivíduo é a autoexpressão da espécie e a espécie é-la do género) e

contemporaneamente, todos os níveis estão numa ligação de determinação dialéctica,

embora nunca conciliada.

1. Lugar do ser (yu no basho)

● universal do juízo (handanteki ippansha) ● mundo da natureza (shizenkai) ● o individual, o que age (hataraku mono) 2. Lugar do nada relativo (tairitsuteki um no basho)

● universal do autoconhecimento (jikakuteki ippansha) ● mundo da consciência (ishikikai) ● acto de consciência, o si autoconsciente (jikaku)

248 Cf. Jacynthe Tremblay, Nishida Kitarō: le jeu de l’individuel et de l’universel, CNRS Ed.,

Paris, 2000, p. 35.

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3. Lugar do nada absoluto (zettai mu no basho) ● universal do inteligível (eichiteki ippansha) ● mundo inteligível (eichiteki sekai) ● Si inteligível, vontade livre (eichiteki jiko, ishi)

O esquema de Nishida relembra, em alguma medida, o processo pelo qual o

Espírito, em Hegel, chega à plena consciência de si. O lugar do ser (yu no basho) é o

primeiro universal, o que o raciocínio alcança no mundo da consciência corrente,

marcando uma clara distinção entre sujeito e objecto, e isolando o mundo da natureza,

externo, do mundo interior da consciência reflexa. O mundo da natureza constitui a

dimensão noemática enquanto o universal do juízo é aquela noética. Pode-se sustentar

que no “lugar do ser” caiba o mundo submetido aos juízos cognitivos, o kantiano

mundo da natureza e a modalidade de vida e de pensamento úteis ao agir quotidiano.

Este “lugar”, todavia, estabelece uma relação dialéctica e, ao mesmo tempo, uma

ligação de inclusão com o lugar do nada relativo ou opositivo: relativo porque

dependente do lugar do ser ao qual se contrapõe. Este segundo universal, mais

englobante, é o da consciência, que contém os mundos da natureza e da acção: trata-se

do universal do autoconhecimento. Em termos fichtianos, poderia ser definido como o

Eu que se tornou consciente de si após o encontro conflituoso com o Não-eu. O

percurso traçado por Nishida alcança o seu cais terminal num terceiro lugar capaz de

incluir os outros dois, “deslocado” para além do Ser e da consciência pensante: o Nada.

Um nada que, recusada qualquer possibilidade de definição e não estando sujeito a

nenhuma determinação alheia ou conotação niilista – não é um não-ser que se opõe a

um ser ou um infinito que existe apenas para se contrapor a um finito – é absoluto.

O lugar do nada absoluto (zettai mu no basho) é portanto o horizonte extremo,

um espaço derradeiro, situado além de todas as manifestações físicas ou produzidas

pela consciência; o último universal atingido por uma consciência que tenha

1. intuição intelectual (si inteligível intelectual)

2. Intuição artística (si inteligível afectivo)

3. Intuição moral e religiosa (si inteligível voluntário)

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ultrapassado os limites dos anteriores universais dentro dos quais a realidade se

detectava.

O lugar do nada absoluto é a imagem mais fiel que a mente analítica pode

adoptar para expressar o âmbito mais amplo e abrangente da vida: o totalmente

incondicionado. O eu psicológico abdica em favor do verdadeiro Si despojado da sua

subjectividade que já não se encontra em oposição ao não-Si; não há mais um eu que

possa testemunhar a profunda unidade que o ligava ao “não-eu”, porque esse estádio é

o fundo de onde todas as coisas emergem e no qual todas as coisas voltam a mergulhar.

As formas nas quais se ramifica a estrutura noética do si inteligível são a intuição

intelectual, a um nível mais baixo, a intuição artística, a um nível médio e a intuição

moral a nível superior. Esta última desagua, por fim, na intuição religiosa, coincidindo

com ela: é nessa dimensão que todas as outras se reúnem unificadas e se tornam

verdadeiras.249

4.3 Sensação e Intelectualização

Vamos dar agora um passo atrás e concentrarmo-nos em torno do papel

desenvolvido neste complexo esquema ontognoseológico pela “intuição artística”. As

articulações do Si, que enformam o Nada absoluto, reenviam directamente para a

última repartição do espírito absoluto hegeliano onde, contudo, a arte é colocada em

cima do primeiro degrau, a religião revelada no segundo, e a filosofia no terceiro e

definitivo. Neste ponto não só a intuição moral e religiosa é a mais profunda e

aglutinante, mas também a intuição artística é considerada superior – no sentido que

colhe mais em profundidade a essência do real – à intelectual, da qual tem origem o

pensamento reflexivo.

De novo em Arte e Moral Nishida é extremamente explícito quando antes

anuncia “la creazione artistica è [...] l’unificazione agente dei due mondi, interno ed

esterno, [e] su questo punto possiede caratteristiche fondamentalmente diverse

dall’agire utilitaristico.”250

249 Cf. Marcello Ghilardi, Una logica del vedere, op. cit., pp. 77-78. 250 NKZ, III, p. 303 apud Ibidem, p. 81.

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O poiein do domínio artístico conecta a dimensão interior do ser humano – os

seus entendimentos, as suas emoções, todo o visível – com o que é exterior, com os

objectos que estão sob o domínio dos sentidos. Por tal prerrogativa, não se afasta muito

de uma vasta tradição, transversal a culturas ocidentais e orientais, que viu a arte como

o médium da ligação de dois mundos aparentemente inconciliáveis da natureza e da

alma humana.

A dimensão intuitiva típica do fazer artístico, de onde o fazer artístico subtrai

força e origem, não é minimamente antitética àquela conceitual. Nishida quer mostrar

como a intuição artística é algo de diferente dos actos do instinto, posicionados num

plano realmente separado e contraposto ao plano do racional: essa aglomera também a

actividade racional, absorve-a e torna-a mais activa e produtiva. Criar arte não designa

o renunciar às exigências da razão para se abismar no oceano dos sentimentos ou de

um hipotético misticismo a-racional ou ante-racional, pelo contrário, implica solicitar

todas as faculdades sensoriais, do intelecto e das emoções.

Chegamos finalmente a uma primeira concreta junção entre Nishida e Pessoa.

Consente-o o atravessamento das matrizes da sua estética sensacionista: arte-todas-as-

artes, arte da quarta dimensão251 soma-síntese, como lhe chamou, um todo no qual as

partes, mesmo as mais díspares, se harmonizavam252 e reivindicavam a primordialidade

251 “O sensacionismo é a arte das quatro dimensões. As coisas teem aparentemente — mesmo,

na sua aparência visualizada, as coisas do sonho — 3 dimensões; essas dimensões são conhecidas quando se trata de matéria espacial. Só podemos conceber coisas com trez ou menos dimensões. Mas se as cousas existem como existem apenas porque nós assim as sentimos, segue que a «sensibilidade» (o poder de serem sentidas) é uma quarta dimensão d'ellas.”, BNP/E3, 88-4ar; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., p. 149. Este poder de serem sentidas, que “as coisas” possuem, identificado por Pessoa como a quarta dimensão, torna-se o foco de visão do mundo do poeta português e da subsequente criação artística. A arte da quarta dimensão será, então, a que busca a objectividade, ou melhor, a máxima objectividade possível. É contemplar tudo de todas as formas. O único modo de observar tudo por todos os meios é assistir através dos olhos de um outro.

252 “Os movimentos literarios, até agora, teem sido unilateraes. O sensacionismo é polylateral. Os movimentos literarios até agora teem sido feitos segundo uma determinada idéa, que os separa de todos os outros. O Sensacionismo é synthetico, procura reunir todos os movimentos de todos os tempos, incluir e utilizar o classicismo, o romantismo, o symbolismo, o vitalismo, o energismo. Procura synthetisar os varios typos de mentalidade, de inteligencia, de inspiração de todos os tempos. Todos os movimentos literarios nascem d’uma relação contra movimentos anteriores. O sensacionismo reage contra todos os movimentos literarios, em não reagir contra nenhum; em os aceitar atodos e não excluil-os. Porque os aceita todos, a todos transcende, a cada um exclue, porque cada um quer excluir os outros. [...] O sensacionismo é pagão porque aceita todas as crenças.”, BNP/E3, 144X-76; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., pp. 325-326. “O Sensacionismo difere de todas as atitudes literárias em ser aberto, e não restrito. Ao passo que todas as escolas literárias partem de um certo número de princípios, assentam sobre determinadas bases, o Sensacionismo não assenta sobre base nenhuma. Qualquer escola literária ou artística acha que a arte deve ser determinada coisa; o sensacionismo acha que a arte não deve ser determinada coisa. Assim, ao

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da sensação como única realidade. Apesar da curta duração do seu intento

programático (1914-1916), coincidente com a telúrica e igualmente efémera

experiência modernista de Orpheu, o Sensacionismo foi extremamente prolífico, graças

a uma encubação quase certamente pré-heteronímica. Atestá-lo-ia uma emblemática

passagem (sublinhada a tinta preta por Pessoa) do livro de Alfred Fouillée, La

philosophie de Platon: théorie des idées et de l'amour, cuja leitura remonta a 1906.

Alfred, Fouillée La philosophie de Platon: théorie des idées et de l’amour (CFP, 1-49, p. 44) [detalhe]

passo que qualquer corrente literária tem, em geral!, por típico excluir as outras, o Sensacionismo tem por típico admitir as outras todas. Assim, é inimigo de todas, por isso que todas são limitadas. O Sensacionismo a todas aceita, com a condição de não aceitar nenhuma separadamente.” p. 790. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit., 158

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140

Ao proclamar, com toda a probabilidade, em 1916, em carta destinada a um

editor inglês que “Art, fully defined, is the harmonic expression of our consociusness

of sensations”253, Fernando Pessoa já está a subentender, como em várias dezenas de

trechos escritos, com timbre idêntico, no mesmo período, que a finalidade da arte é a

de exprimir essas sensações de modo que “they create an object which will be a

sensation to others”254 depois de uma passagem de 3 fases: 1) a consciência da

sensação, 2) a consciência dessa consciência da sensação, 3) a expressão harmónica.

O momento inicial refere-se à recepção na consciência do conteúdo da

sensação, isto é, ao seu enraizar-se na consciência como sensação tout court,

independentemente da sua origem e da sua pertença a um objecto externo ou interno ao

sujeito.

Antes de passar à fase seguinte, Pessoa explica-nos que “toda a sensação é

composta de mais do que o elemento simples de que parece consistir.”255 A mais

simples das sensações é constituída pela agregação da totalidade destes elementos: “(a)

a sensação do objecto sentido; a recordação de objectos analogos e outros que

inevitavel expontaneamente se juntam a essa sensação; (c) a vaga sensação do estado

de alma em que tal sensação se sente; (d) a sensação primitiva da personalidade da

pessoa que sente.”256 Ora, o “facto de haver consciencia de uma sensação, transforma-a

já numa sensação de ordem diferente.”257 Por outras palavras, a sensação “passa a ser

como intellectualisada, o que dá o poder de ela ser expressa.”258

A evidente obscuridade da afirmação será mais adiante elucidada pelo mesmo

autor num parágrafo que conclui o circuito da segunda fase:

O que é uma sensação intelectualisada? Uma de trez cousas: (a) uma sensação decomposta pela analyse instinctiva ou dirigida nos seus elementos componentes; (b) uma sensação a que se accrescenta coscientemente qualquer outro elemento que nella, mesmo indistinctamente, não existe; (c) uma sensação que de proposito se falseia para d’ella tirar um effeito definido, que nella não existe primitivamente.259

253 Fernando Pessoa, Correspondência. 1905-1922, op. cit., p. 234. 254 Ibidem. 255 BNP / E3, 20-107r; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., p. 174. 256 Ibidem. 257 Ibidem. 258 Ibidem. 259 Ibidem, p. 175.

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Decomposta e recomposta a sensação por meio do intelecto e da imaginação,

não resta ao artista que expressá-la de maneira orgânica e proporcionada para que

produza nos outros – no seu público – as mesmas faculdades intelectivas e

imaginativas específicas do decompor e criar internamente o maior número de

sensações possíveis. Sugere Piero Ceccucci:

nella poética delle sensazioni inscenata, ciascun frammento, “alias” l’ortonimo e ciascun eteronimo, nella propria precipua funzione e performance discorsiva, trova nella captazione delle sensazioni stesse e nella loro intellettualizzazione un ruolo specifico di costruzione del senso, che acquisisce intelliggibilità, incastonandosi e inglobandosi con gli altri sensi elaborati dalle altre individualità poetiche per loro conto.260

Analisar, decompor, alargar o campo da sensação atraindo outras sensações, além de

constituir a área onde a consciência explora os recursos do próprio intelecto261, é

igualmente aquilo que define o espaço poético por excelência262; porque escrever

versos, para o poeta português, significa examinar sensações e porque são estas últimas

a forjar, nos poemas em que foram encaixadas, cada diferente heterónimo: cada um

caracterizado por uma sua exclusiva capacidade perceptiva em sentir, e cada um por

sua vez autor de uma literatura pessoal, divulgadora de posteriores labirintos de estados

conscienciais dos quais podem originar sucessivos heterónimos263.

É aquilo a que, em princípio, se faz referência quando chegamos a conceber um

heterónimo como resultado de um tornar-se outro também na posse da propriedade de

se transformar em alteridade, para adquirir como destino final a maior quantidade

possível de maneiras diferentes de sentir264.

260 Piero Ceccucci, «Occhi per sentire…ragione per vedere – La conciliazione negata di sogno e

raziocinio nella poesia ortonima di Fernando Pessoa», in Fernando Pessoa, Il mondo che non vedo, a cura di Piero Ceccucci, Bur, Milano, 2009, p. XV.

261 “A inteligência como tem por fondamento a cosciência, tem por fim o conhecimento ou compreensão, que é o com que a cosciência se define.”, BNP/E3, 18-74r; cf. Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária, op. cit., p. 101.

262 Cf. José Gil, Fernando Pessoa ou a metafisica das Sensações, Relógio d’Água, Lisboa, 1986, p. 219. “La «poesia» – nel senso più lato: poesia vera e propria e arti figurative – in quanto espressione e rappresentazione di modi di concepire e di stati d’animo, in produzioni – poièo – che si realizzano in parole o in segni figurativi, viene a indicare, attraverso le sue produzioni, quali sono stati e quali sono i modi di concepire le passioni degli uomini.”, Francesco Adorno, Introduzione a Platone, Laterza, Bari 1996, p. 122.

263 Cf. José Gil, Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, op. cit., p. 221. 264 “Deixo ao cego e ao surdo/ A alma com fronteiras, / Que eu quero sentir tudo/ De todas as

maneiras.”, BNP/E3, 120-38r; cf. Fernando Pessoa, Poemas de Fernando Pessoa 1921-1930, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. I, Tomo III. Edição de Ivo Castro, Lisboa, Imprensa

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É desnecessário dizer que a obtenção de tal objectivo não pode ser de fácil

conquista.

A sua realização só pode ser esperada no fim de um percurso de alquimia

poética – princípio que prevê a dissolução da unidade psicológica do autor, portanto a

do estilo – dividido em cinco etapas, como são os graus da poesia lírica avaliados por

Pessoa, dentro de alguns textos de literatura ensaísta.

Num destes, provavelmente de 1930, começa a discursar reconhecendo que “O

primeiro grau da poesia lyrica é aquelle em que o poeta, de temperamento intenso e

emotivo, exprime espontanea ou reflectidamente esse temperamento e essas

emoções.”265

Depois concentra-se sobre o segundo, onde o poeta já tem um maior calibre

intelectual; amplifica portanto a sua capacidade de imaginação, apenas o suficiente

para permitir às suas poesias o abraçar de vários temas – menos simples e

monocórdicos do artista de primeiro nível – no entanto unificados em temperamento e

estilo.

Porém, é apenas conseguindo a terceira fase da poesia lírica que o criador de

versos “ainda mais intellectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque

sente, mas porque pensa que sente; a sentir estados de alma, que realmente não tem,

simplesmente porque os comprehende. Estamos na antecamara da poesia dramatica, na

sua essencia intima. O temperamento do poeta, seja qual fôr, está dissolvido pela

intelligencia. A sua obra será unificada só pelo estylo, ultimo reducto da sua unidade

espiritual da sua coexistencia comsigo mesmo.”266

A situação desenvolve-se na quarta e quinta passagens, descritas como as mais

invulgares de alcançar: de facto, enquanto no quarto estado o poeta entra em plena

Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 199; “1. A sensação como realidade essencial. 2. A arte é personalização da sensação, isto é, a substracção da sensação é ser em comum com as outras. 3. 1ª regra: sentir tudo de todas as maneiras. Abolir o dogma da personalidade: cada um de nós deve ser muitos. A arte é aspiração do indivíduo a ser o universo. O universo é uma coisa imaginada: a obra de arte é um produto de imaginação. A obra de arte accrescenta ao universo a quarta dimensão de supérfluo. (?????) 4. 2ª regra: abolir o dogma da objectividade. A obra de arte é uma tentativa de provar que o universo não é real. 5. 3ª regra: abolir o dogma da dynamicidade. A obra de arte visa a fixar o que só apparentemente é passageiro. 6. São estes os trez princípios do Sensacionismo considerado apenas como arte. 7. Considerado como metaphysica, o Sensacionismo visa a não comprehender o universo. A realidade é a incomprehensibilidade das cousas. Compreendel-as é não compreendel-as.”, BNP/E3, 88-12; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., p. 180.

265 BNP/E3, 18-50 e 51; cf. Idem, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária, op. cit., p. 67.

266 Ibidem, p. 68.

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despersonalização267 porque “[n]ão só sente, mas vive, os estados de alma qua não tem

directamente”268 – arriscando-se provavelmente a cair “na poesia dramatica,

propriamente dita, como fez Shakespeare, poeta substancialmente lyrico erguido a

dramatico pelo espantoso grau de despersonalização que attingiu”269 – no quinto, para

aquele seu avanço de um passo na complexa escala da despersonalização – evitando

sempre a transgressão na poesia dramática – notará que certos “estados de alma,

pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e porisso vividos, tenderão a

definir para elle uma pessoa ficticia que os sentisse sinceramente.”270

Semelhante ao trecho acima mencionado é o argumento exposto num outro

documento, sobretudo por aquilo que diz respeito aos termos utilizados na descrição

dos três primeiros graus. Todavia as diferenças surgem quando Pessoa se serve da

noção de personagem, identificando-a com a de “humor” ou “sentimentos”. A este

respeito, por exemplo, no primeiro nível da poesia lírica, ele considera poeta “uma

criatura de sentimentos variáveis e vários”271, susceptível em exprimi-los como “uma

multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento e o estylo”272,

depois com o transitar do quarto para o quinto movimento, acontece que o artista, nas

alterações das suas emoções, a determinada altura, se separa nitidamente da activação

de um processo de alteridade, o qual leva ao nascimento ou de vários poetas ou de um

único poeta lírico-dramático com várias personagens autónomas à sua volta, isto é, de

“um poeta dramatico escrevendo em poesia lyrica”.273

A última nota é até mais surpreendente: os dois sectores poéticos – o lírico e o

dramático – de serem simplesmente contíguos no texto de abertura, aqui parecem

marcados por uma relação de continuidade274 que acompanha todo o processo de

despersonalização.

267 Cf. Ibidem. 268 Ibidem. 269 Ibidem. 270 BNP/E3, 18-51v; cf. Ibidem, p. 69. 271 PESSOA, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit, 106. 272 Ibidem, pp. 106-107 273 Ibidem, p. 107. 274 Apenas algumas linhas acima, Pessoa tinha vivamente defendido a correlação entre poesia

lírica e dramática em antítese a uma demarcação de origem aristotélica: “Dividiu Aristoteles a poesia em lyrica, elegiaca, epica e dramatica. Como todas as classificações bem pensadas, é esta util e clara; como todas as classificações, é falsa. Os generos não se separam com tanta facilidade intima, e, se analysarmos bem aquillo de que se compõem, verificaremos que da poesia lyrica à dramatica ha uma gradação continua” BNP/E3, 16-61r; cf. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit, p. 106

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Numa carta dirigida a João Gaspar Simões encontramos um patente exemplo de

como Pessoa, a um certo momento da sua maturação intelectual, se apercebeu da

maciça influência que a literatura dramática tinha nas suas produções líricas: “O ponto

central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho,

continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a

despersonalização do dramaturgo. […] Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta

dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo

automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na

emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em

derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir.”275

Embora seja relevante, o testemunho examinado é apenas o preâmbulo de uma

série de variações sobre o tema, elaboradas por Pessoa na fase derradeira da sua

existência, que provavelmente atingem o seu clímax numa carta enviada a Casais

Monteiro, 10 meses antes de morrer. Aí, decreta: “O que sou essencialmente — por

trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja — é

dramaturgo. […] Sendo assim, não evoluo, VIAJO. […] Vou mudando de

personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade

de criar personalidade novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou,

antes, de fingir que se pode compreendê-lo.”276 Até este momento, pelo menos, duas

questões se colocam: o que levará Fernando Pessoa a atribuir a faculdade de produzir

diferentes entidades individuais, próprias da figura do dramaturgo? E qual o motivo

que o persuade a ver-se “reflectido” nesse tipo de letrado?

Para o descobrir, é indispensável voltar a reflectir sobre a sua definição de

drama enquanto composição constituída “orgánicamente de tres partes – das pessoas ou

caracteres; da entreacção dessas pessoas ; e da acção ou fábula per meio e através da

qual essa entreacção se realiza, essas pessoas se manifestam”277, não só porque

aparecem nessa os elementos peculiares do fazer poético, mas também porque nos

275 Idem, Correspondência. 1923-1935, op. cit., p. 255. 276 Ibidem, p. 350. Por conseguinte, também é possível considerar que para Pessoa, de um certo

modo, tal corresponde ao que profere Colli, numa das suas grandes obras: “Un pensatore moderno condannato all’elucubrazione interiore, deve tuttavia, se davvero vuole essere razionale, sforzarsi di imitare, un modo di procedere dialettico, e poiché gli mancano gli interlocutori, deve costruirseli. Gli è indispensabile quindi avere altresì un talento artistico, essere un creatore drammatico, tale da inventare i personaggi, che gli possano ribattere e un attore autentico tale da immededesimarsi nelle voci che lo contrastano.”, Giorgio Colli, Dopo Nietzsche, Milano, Adelphi, 1996, p. 84.

277 Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e crítica literária, p. 96.

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consente de recorrer a essas páginas centradas no estudo da personalidade e do teatro

de William Shakespeare – onde estão as respostas às nossas perguntas – já equipados

com uma importante chave de leitura.

No que respeita ao grande dramaturgo inglês, deve-se assinalar imediatamente

o quanto foi para Pessoa simultaneamente uma espécie de “deus louvado”, um irmão

com o qual se identificava pelas fragilidades da personalidade e de espelho por meio do

qual conseguiu olhar dentro de si mesmo278, de modo que durante toda a sua vida lhe

dedicou um devoção artística digna de um verdadeiro adepto. E como qualquer

estimador que se respeite, nutria um intenso desejo de emulação.

A este respeito, foi abundantemente relatado pela crítica que, quando ele fala

sobre Shakespeare, na verdade é sobre ele mesmo que fala e sobre a “companheira” da

sua vocação literária: a histeria; do esforço feito pelo intelecto para expulsar a angústia

do seu próprio espírito e de como se despersonalizando, o autor é projectado no drama

que ele próprio tece.

Justamente à combinação de histeria e génio lírico, mais uma vez apresentada

por sectores, consagra um fragmento em inglês de particular interesse, especialmente

por alguns esclarecimentos sobre as competências de autores de peças dramáticas,

inevitavelmente destinada a chamar em causa, como seu ideal antecessor, o autor de

Hamlet.

A meditação abre-se elencando os dois primeiros níveis da escala de

genialidade poética e as modalidades de comportamento histérico que a esses

correspondem. A análise ganha consistência quando desemboca no terceiro nível, o

definitivo, “the lyrical genius of the highest grade — that which ranges over all types

of emotion”279 onde o tipo de histeria associada assume formas mentais diferentes em

consonância com a constituição psicofísica geral da pessoa que se tem em conta. No

caso específico de um homem de constituição “neutra”, isto é, nem “fraco” nem

“forte”, típico do estado de uma criatura frágil, mas não destituída de saúde, a histeria

concretiza-se em algo vagamente físico e vagamente mental.

No poeta lírico, traduz-se na capacidade “to live in imagination the mental

states of hysteria, the power therefore to project them outwards into separate persons,

in other and more precise words, the psychological ability which goes to make, but

278 Cf. Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, op. cit., p. 164. 279 Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e crítica literária, op. cit., p. 299.

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does not essentially make, the dramatist.”280 Que seja precisamente o caso de

Shakespeare, bem como de Pessoa, revelam-no as linhas finais do texto. Ao concluir

“[…] Shakespeare was then 1) by nature, and in youth and early manhood, a hysteric;

2) later and in full manhood a hystero-neurasthenic; 3) at the end of his life a hystero

neurasthenic in a lesser degree […]”281 leva-nos, de facto, com a memória, até à já

referida carta sobre a génese dos seus “múltiplos” na qual ele admite: “A origem dos

meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou

simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo

para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria,

propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas.”282

Agora que – vendo o quanto Pessoa se aproxima a Shakespeare –

compreendemos quais foram os itinerários dialécticos que o levaram a formular a tese

do dramaturgo como autor de um mundo de heterónimos, no entanto, é essencial não

cair na inexactidão de avaliar os duplos pessoanos, totalmente equivalentes aos heróis

dramáticos do autor nativo de Stratford-on-Avon.

O teatro de Shakespeare, de facto, é construído ao redor daquelas que são

apenas representações de peças simples, ao contrário da heteronímia, drama em gente

subdividido em actores-autores, cujas acções e cujos registos de encenação decorrem

dentro de uma personagem que não age283, em perfeita sintonia com o ditame da

Abolição do dogma da individualidade artística284 – proferido por Álvaro de Campos

no seu Ultimatum – prelúdio ao seguinte desfecho hermenêutico:

O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com

mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma

personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada

280 Ibidem, p. 300. 281 Ibidem. 282 Fernando Pessoa, Correspondência. 1923-1935, op. cit., p. 340. 283 “O objectivo de Pessoa não era converter as várias personagens em representantes de uma

ideia, arquétipo, modelo ou universal, subsumindo um conhecimento da realidade. Visava, sim, agrupar um coro dramático que fizesse a apresentação, muito viva, cheia de força e tremendamente parcial, de verdades disjuntas, em contraste com o protagonista apagado e moroso, incapaz de alcançar com autenticidade o conjunto de verdades que entrevia.”, Mendo de Castro Henriques, As coerências de Fernando Pessoa, Lisboa, Editorial Verbo, 1989, p. 257. 284 “Dissolvida a Personalidade, a sensibilidade impessoal, vivendo a propia vida dynamica das cousas, poderá sempre acompanhal-as. Abdicando do dogma da Individualidade, a sensibilidade coexistirá com a de todos os homens.”, BNP/E3, 88-6v; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., p. 237.

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de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e

indivisível.

Se nas produções de Shakespeare, portanto, o drama é consequência dos

eventos e dos acontecimentos que se desencadeiam com a intervenção das “máscaras”

criadas pela imaginação do autor, nos avatares de Pessoa a intensidade dramática da

sua literatura é um acontecimento de sensações: o material com o qual o oníricotenta

substituir-se à vida. Às vezes “contando-a” melhor do que a mesma consiga, às vezes

“consumindo-a”, catapultando o poeta sonhador a uma condição de inércia e de

desespero silencioso, exclusivo de quem, do sonhar e do representar, abusou

inexoravelmente.

O “laboratório poético” pessoano funcionaria, em conclusão, a partir de um

centro, ocupado pelo irromper da Sensação e das suas intelectualizações, a entender

não como abstracções operadas pela mente, mas na qualidade de fluxos de percepção e

consciência; não realidades estáticas, mas planos de coexistências nos quais tudo o que

aí comparece é a ostentação de um novo modo de sentir tanto para quem o gera, quanto

para quem é seu fruitivo.

A aderência aos enunciados nishidianos alcança, nesse ponto, a sua tangência

máxima:

Nell’attività istintiva bisogna riconoscere una differenza di prospettiva fondamentale rispetto all’attività artistica nel fatto che l’Io è del tutto libero dagli oggetti. In arte il nostro Io diventa spirito libero. Che il nostro Io diventa spirito libero significa che ha trasceso la prospettiva della coscienza in generale il mondo oggettivo diventa costruzione dell’Io, mentre trascendendo questa prospettiva l’Io diventa del tutto leberamente creativo.285

A individualidade expressa é simultaneamente a de quem cria e a do objecto

criado, é a individualidade do pintor e do objecto pintado, do escultor e do objecto

esculpido, mas também aquela do espectador que observa e contempla, e aquela da

obra contemplada. O Eu de que fala Nishida é o Si no sentido mais compósito e

elevado – isto é, não pessoal e subjectivo –, por outras palavras, a vontade transpessoal

que se exprime e assume a sua forma nas manifestações da arte:

285 NKZ, III, p. 343 apud Marcello Ghilardi, p. 85.

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Nella volontà reale soggetto e oggetto sono uniti e l’io si trova nella prospettiva dell’agire. Ciò che io chiamo “prospettiva della volontà assoluta” non è nient’altro che questo. L’entrare nella vera realtà, che è l’oggetto di una tale volontà reale, è l’attività artistica [...]. La direzione dell’unificazione nella realtà concreta diviene intuizione artistica.286 Proprio come lo scienziato conosce una nuova verità grazie al pensiero, così il pittore con il pennello e so scultore con lo scalpello conoscono una nuova realtà. [...] Intuire veramente deve essere diventare l’atto stesso, intuizione significa l’atto puro dell’unione di soggetto e oggetto. 287

4.4. A Ciência de Ver: Alberto Caeiro e Nishida

Quando o pintor pinta, quando o escultor esculpe, entra em contacto com os

objectos que contempla e que reproduz, numa maneira íntima que é quase uma fusão:

ele torna-se o acto (do pintar e do esculpir), torna-se a coisa-em-si que contribui para

formar. A intuição, afinal, será mesmo este “tornar-se” no objecto. Como salienta

Nishida num outro contexto, o objectivo final é “conhecer tornando-se” na coisa,

abolindo, por consequência, aquela cisão entre eu e mundo que impede um vínculo

imediato, puro e ante-predicativo em plena concordância com a Weltanschauung

promulgada por Alberto Caeiro.

Efectivamente, o reconhecido mestre da galáxia heteronímica pessoana, tendo

Álvaro de Campos, Ricardo Reis, António Mora, Fernando Pessoa ortónimo e a

personagem menor de Thomas Crosse em qualidade de discípulos, comentadores,

tradutores e editores, e sendo também ele próprio discípulo, por afinidade, de figuras

históricas da tradição poética bucólica-pastoril, transversal a épocas e culturas

(Virgílio, Cesário Verde e Francisco de Assis), por oposição, de “místicos da

Natureza” (Teixeira de Pascoaes288) e por incorporação reprimida da exuberância

286 Ibidem, pp. 390-391 apud Marcello Ghilardi, p. 87. 287 Ibidem, pp. 456-457apud Marcello Ghilardi, p. 92 288 Tanto Caeiro como Pascoaes encaram a Natureza de um modo directamente metafísico e

místico, ambos encaram a Natureza como o que há de importante, excluindo, ou quase excluindo, o Homem e a Civilização, e ambos, finalmente, integram tudo o que cantam nesse seu sentimento naturalista. Esta base abstracta tem de comum: mas no resto são, não diferentes, mas absolutamente opostos. Talvez Caeiro proceda de Pascoaes; mas procede por oposição, por reacção. Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto — Alberto Caeiro.”, Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit., pp. 344-345.

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naturalista de poetas campestres (Walt Whitman289), distingue-se pela atitude

comportamental e existencial de colocar-se à frente das coisas de modo a não outorgar

antítese nenhuma entre elas e o seu olhar límpido, desprendido.

Caeiro, o autoproclamado “Argonauta das sensações verdadeiras”290, defende o

primado epistemológico das percepções sensíveis; é o partidário da supremacia da vista

sobre os outros quatro sentidos que pertencem aos homens. O privilégio da visão sobre

os outros sentidos advém do facto de só ela permitir o acesso à espantosa diversidade

dos seres e à objectividade pura das coisas. Para Caeiro, o mundo visível não é a

imagem do mundo inteligível das essências: ele mesmo é o único verdadeiro para a

prerrogativa de nos levar a conhecer a realidade como tal291 e, porque, de acordo com

Aristóteles, “nos faz conhecer no mais alto dos graus”.292

Perseguindo a “aprendizagem” interminável da pavorosa ciência de ver, as

coisas entregam-se como existentes pelo facto de elas existirem e porque os meus

sentidos mo exibem impondo-se sobre o meu raciocinar.

Caeiro é “a frescura matinal da origem, a saúde fontal bebida numa natureza – partes

sem um todo – ainda não corrompida pela cultura”293; é uma espécie de asceta

dedicado à contemplação do exterior 98, inteligência que discorre e poetiza por uma

atitude involuntária, espontânea sem se achar, contudo, infalível. O que é inconfundível

289 “Crosse apresenta o poeta a um público estrangeiro, que nada sabe de Portugal, e, quando

muito, conhecerá a fama de Camões, considerado poeta único de uma língua obscura. Em Caeiro reconhece, porém, o prefaciador – futuro-tradutor, a revolucionária qualidade do poeta, cuja obra merece acolhimento universal, porquanto constitui a superação de todos os discursos poéticos anteriores.”, Luís de Sousa Rebelo, Alberto Caeiro e o Paganismo, in Fernnado Pessoa, Poemas completos de Alberto Caeiro, recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha, Editorial Presença, Lisboa, 1994, p. 335.

290 “Sou o Descobridor da Natureza. / Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. / Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-proprio.”, Fernando Pessoa, Poemas completos de Alberto Caeiro, op. cit., p. 97.

291 Cf. Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, op. cit., p. 26; cf. José Gil, Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa, Relógio d’Água, Lisboa, 1999, p. 39; cf. José Augusto Seabra, «Poética e filosofia em Fernando Pessoa», in AA. VV., Actas do IV Congresso internacional de estudos pessoanos, vol. I, Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1990, p. 405.

292 Cf. Aristotle, Metaphysics, Indiana University Press, Bloomington, 1966, 980 a, p. 12. 293 Leonel Ribeiro Dos Santos, «Fernando Pessoa, Poeta e filosofo da Natureza», in Idem,

Melancolia e apocalipse. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 312.

98 Cf. Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, op. cit., p. 26. “Ao ver as coisas, Caeiro não as compara, não as mede pelo parâmetro de uma unidade-padrão. Mas, desdobrando toda a potência do seu olhar, abre-as à nitidez e à claridade da luz, ou seja, da superfície: as coisas tornam-se plenamente exteriores, sem mundos abissais ou significações ocultas; elas tornam-se objectivas, não porque seriam determinadas por predicações objectais, mas porque o seu ser próprio, a sua individualidade, oferecem-se doravante ao olhar. É esse o sentido do «objectivismo absoluto» de Caeiro: é na relação directa do olhar ao olhado, sem a mediação de pensamentos e palavras, que o ser singular da coisa se dá.”, José Gil, Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa, op. cit., p. 39.

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em Caeiro é o reconhecimento da auto-suficiência das coisas por si mesma na sua

imediatez perceptiva: não reenviam a nada, não carecem de nada, são algo

independente e único por si mesmas, não havendo nada por trás da realidade.

A extracção iletrada de Caeiro explica o seu estilo discursivo e coloquial,

predisposto à interacção lexical294, pobre no vocabulário e nas imagens evocadas,

muito próximo a descrições pictóricas de timbre impressionista295. Depreende-se,

contemporaneamente, o grande afecto, por ele nutrido, nos confrontos das paisagens

rurais, das quais extraiu inspiração para a maioria das suas líricas; tal como de todo o

seu intenso envolvimento no desejar, dignamente, “cantar” uma Natureza parcelar,

entendida pagãmente296, como a Grande Mãe dos homens, pelo espectáculo da

inexaurível variedade de formas de vida com as quais adorna a terra.

Construtor, ou melhor fundador do paganismo, é-lhe consubstancial. A ciência

de ver, que não é ciência nenhuma, é a viabilização verbal de energia do mundo que

incita Pessoa a procurar uma linguagem apta a reproduzir a natureza sem o intermédio

do pensamento. A proferir as palavras que vêm antes dos discursos, ou as palavras que

brotam previamente à retórica. Junto do uso especulativo e transcendental da

linguagem, Caeiro denega a consciência reflexiva e interrogante, o pensamento

universalizante e igualitário e até sentimentos como a nostalgia, o anseio, o receio, pois

são exteriorizações subjectivas que perturbam a nitidez da visão de que depende a

clareza de espírito e desvirtuam a realidade.

Contesta todas aquelas propriedades, atributos e categorias através dos quais as

divisas transcendentais da Razão e de uma Metafísica decadente acabam por nos

velar297:

294 Cf. José Augusto Seabra, «Alberto Caeiro ou le degré zéro de la poésie», in Sillages,

Universitè de Poitiers, N°1, 1972, pp. 48-49. 295 Cf. Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Pessoa, op. cit., p. 26. 296 “Tão profondo é o seu pressentimento da alma pagã, que os seus poemas, embora a sua

rítmica irregular, são perfeitamente estatuais. Pareceria, a priori, que poemas sem ritmo nem rima deviam não poder [dar] uma impressão de conjuntos perfeitos. Não é isto que acontece com os poemas de Caeiro. Parecem traduções para linguagem humana de poemas escritos no idioma dos Deuses, que na versão conservam o divino equilíbrio, a divina calma, a unidade super-humana de obras de mãos imortais.”, Fernando Pessoa, Prosa de Ricardo Reis, op. cit., p. 379.

297 “Vi que não ha Natureza, / Que Natureza não existe / Que ha montes, valles, planicies, / Que ha arvores, flores, ervas, / Que ha rios e pedras, / Mas que não ha um todo a que isso pertença, / Que um conjuncto real e verdadeiro / É uma doença das nossas idéas / A Natureza é partes sem um todo.”, Fernando Pessoa, Poemas completos de Alberto Caeiro, op. cit., p. 98. “Para Caeiro todas «as interpretações» e todas as «filosofias» são «conjecturas» de teor abstracto. A sua alternativa é constituição de uma hermenêutica do singular que recuse qualquer inteligibilidade de estatuto superior à

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O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê, Nem ver quando se pensa. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desapprender298.

Todas as opiniões que ha sobre a Natureza Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flôr. Toda a sabedoria a respeito das cousas Nunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas, Se a sciencia quer ser verdadeira, Que sciencia mais verdadeira que a das cousas sem ciência? Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem. Não preciso de raciocinio onde tenho espaduas.

BNP/E3, 16A-8r

apreensão sensível. Essa teorese permitirá «saber ver sem estar a pensar», «não ver senão o visível», não impor «nome nem personalidade» às coisas, e afirmar que «creio no mundo porque o vejo» suspendendo o real de modo a não desvirtuar as potencialidades explicativas.”, Mendo de Castro Henriques, As coerências de Fernando Pessoa, op. cit., p.64).

298 Fernando Pessoa, Poemas completos de Alberto Caeiro, op. cit., p. 74. “Procuro despir-me do que apprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minha emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a Natureza produziu.”, Fernando Pessoa, Poemas completos de Alberto Caeiro, op. cit., p. 97.

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Eu quero só a realidade, as cousas sem presente. Não quero incluir o tempo no meu haver299. Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas. Não quero separal-as de ellas300 proprias, tratando-as por presentes. Eu nem por reaes as devia tratar. Eu não as devia tratar por nada. Eu devia vel-as, apenas vel-as; Vel as até não poder pensar nellas, Vel-as sem tempo, nem espaço.301 Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta a sciencia302 de ver, que não é nenhuma.

BNP/E3, 67-61r

As teorias e os sistemas que tentam encerrar a natureza numa rede de ideias, ou que se

propõem desvendar o seu mistério íntimo, são sintoma duma doença humana antiga e

curam-se precisamente por um banho de natureza.

A de Caeiro é, num sentido mais autêntico, uma filosofia a entender-se como

não-filosofia, na qual o negativo emerge com toda a sua potência de desconstrução das

posições universalmente aceites. No plano metodológico, o momento negativo

qualifica-se como a única possibilidade de reconstruir as certezas pelo meio da

299 Variante: /schema/ 300 Variante: si 301 Variante: logar, 302 Variante: É a sciencia

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destruturação daquelas dogmáticas e acríticas, que Pessoa acolhe como herança dos

pensadores que o precederam.

Na verdade, a rejeição investe apenas determinadas correntes filosóficas

ressentindo, claramente, da doutrinação dos epicuristas os quais, inimigos de certos

abusos racionalistas, tinham a sensação perspícua como critério único de exactidão

gnosiológica e partilhavam com os estóicos o fazerem proceder psicogeneticamente o

conteúdo das ideias de impressões sensoriais. Simpatiza com a Escola Jónica de Mileto

por inserirem um hilozoismo – uma teoria pela qual admitem a multiplicidade ou

pluralidade dos elementos e dos seres – na Natureza. Dos cínicos adopta quer a

posição, segundo a qual objectos e conceitos são substancialmente autónomos e

contrários à coacção de qualquer relação extrínseca, quer a deliberada invalidação de

comparações analógicas. Do empirismo de Locke e do sensualismo de Condillac

perfila o radicalismo que vê nas sensações a paternidade exclusiva do conhecimento.

Enquanto António de Pina Coelho já em 1968 nos dilucidou que “como

F[rancis] Bacon Caeiro aspira a uma libertação interior de todos os preconceitos, de

tudo o que impeça uma visão nítida e gratuita das coisas”303, Patricio Ferrari, num

artigo muito mais recente304, vinca os estreitos nexos entre os dois, chamando a atenção

no detalhe da contracapa do livro The Baconian Heresy de John Mackinnon Robertson,

usado como suporte de escrita plural: no rosto e na parte superior do verso aparece

Thomas Crosse para esclarecer sinteticamente, em inglês, o que traz de novo e de

inaudito Caeiro; na parte inferior do verso, reconhecemos o XV poema do Guardador

de Rebanhos305, escolhido por Julieta Marquês de Almeida como excelente exemplo de

convergência entre Caeiro e Buda no discernimento do binómio doença-ignorância.

303 António Pina Coelho, Os fundamentos filosóficos da Obra de Fernando Pessoa, op. cit., p.

294. 304 Cf. Patricio Ferrari, «On the Margins of Fernando Pessoa’s Private Library: A Reassessment

of the Role of Marginalia in the Creation and Development of the Pre-heteronyms and in Caeiro’s Literary Production», in Luso-Brazilian Review, 48.2, Fall issue, University of Wisconsin-Madison, 2011, p. 23-71.

305 “«O Guardador de Rebanhos» e a vida mental de Caeiro ate a diligêencia levantar no cimo da estrada. Os «Poemas Inconjunctos» sao já a descida. Distingo assim, para mim proprio: ha poemas dos «P[oemas] I[nconjunctos]» que eu imagino que talvez pudesse ter escripto. Nao ha giro da minha imaginacao que me faca passar pelo sonho de poder ter escripto qualquer poema de «O G[uardador] de Rebanhos». Nos poemas inconjunctos ha cansaco, e portanto differenca. Caeiro e Caeiro, mas Caeiro doente. Nem sempre doente, mas as vezes doente. Identico mas um pouco alheado. Isto applica‑s sobretudo aos poemas medios d’essa terceira parte da sua obra.”, BNP/E3, 71A-16; cf. Fernando Pessoa, Prosa de Álvaro de Campos, op. cit., p. 109.

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[BNP/E3, 15Br]

[BNP/E3, 15Br]

Caeiro has created (1) a new sentiment of Nature (2) a new mysticism (3) a new simplicity, which is neither a simplicity of faith, nor a simplicity of sadness (as in Verlaine’s case) nor a simplicity of abdication from thought and □. Much as he likes to prove his irrationalism, he is a thinker and a very great thinker. Nothing is so ennobling as this faith that declares the senses superior to the intellect, that speaks of intellect as of a Disease. He has contradictions very slight, but he is conscious of all of them and has forewarned his critics. His c[ontradicti]ons are of 3 kinds: (1) in his thought, (2) in his feeling, (3) in his poetical manner.

There in thought are almost none, but such as they are, he explains this way: Estas 4 canções, escrevi-as estando doente. | Agora ficaram escriptas e não *fallo mais n’ellas | Gozemos, se pudermos, a n[ossa] doença, | Mas nunca lhe chamemos saúde, | Como os homens fazem.| O defeito dos homens não é serem doentes: | É chamarem saúde á sua doença, | E por isso não buscarem a cura | Nem realizarem o que é saúde e doença.

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Ainda a investigadora salienta que as familiaridades entre o mestre e o venerável

estender-se-iam à pavorosa ciência de ver, a saber, o conhecimento-saúde, na senda de

Leyla Perrone Moisés, que a ambos possibilita “ver a vacuidade em vez da existência

inerente no mesmo acto de percepção em que vê os objectos e o mundo […] e,

compreendendo a vacuidade, vê a Realidade tal como é.”306 Depois de ter rapidamente

apurado a perfeita coincidência entre esta realidade e aquela desvendada na experiência

do satori descrita por Suzuki307, compreendemos também que nem sequer estamos

longe de como a patenteia Nishida em Arte e Moral:

Quando noi, sfondando la rete dei concetti, stiamo nella prospettiva dell’attività di pura sensazione visiva, viene a manifestarsi il mondo d’oggetti dell’arte pura plastica. Qui le cose vengono a vivere, lo spazio è pieno di vita. La vita è l’aspetto dell’unione di soggetto e oggetto, quando l’io diventa le cose e le cose diventano l’io viene a manifestarsi la vita.308

A inspiração artística, a diferença dos processos dicotómicos do pensar, age

num plano onde não reina necessariamente a distinção entre diferenciação e unificação,

mas entende-as como momentos não separados de uma única actividade. Mais:

consegue aperceber-se das infinitas ligações de tudo com tudo, ou melhor – para

usarmos uma terminologia budista mais precisa – da “não obstrução entre fenómeno e

fenómeno”.

Nell’intuizione artistica noi trascendiamo la prospettiva dell’autoconsapevolezza

concettuale, possiamo includerla al nostro interno, possiamo davvero raggiungere

l’autoconsapevolezza dell’io libero.309

Na dinâmica da estética nishidiana a frase que transcrevemos revela que o lugar

da consciência, ou melhor ainda, a consciência como lugar – sendo infinita actividade

de acolhimento e unificação de percepções e sensações – faculta a interacção e a

repartição de um espaço perceptivo, emotivo e reflexivo ordinário. É por isso que o

artista pode envolver o espectador da sua obra num processo de encontro e de reenvio,

306 Julieta Marques de Almeida, «O revelador da realidade – Mestre Caeiro e a filosofia budista, in AA.VV., in in Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Lisboa, Ano VI, nº11, 2007, pp. 167-173.

307 Onésimo Teotónio Almeida, «Sobre a mundividência Zen de Pessoa-Caeiro (O interesse de Thomas Merton e D. T. Suzuki)», in Nova Renascença, Nº 22, Volume 6, Abril/Junho, 1986, pp. 146-152.

308 NKZ, III, p. 513 apud Marcello Ghilardi, p. 105. 309 NKZ, III, p. 404 apud Marcello Ghilardi, p. 91.

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de partilha e entendimento. A experiência estética que agrega artista e espectador pela

intervenção da obra de arte dispõe-se por sua vez a assumir-se como lugar de uma

ligação intrínseca; espaço activo de entendimento e crescimento recíproco, que aglutina

as subjectividades distintas e particulares numa única realidade mais ampla e

abrangente, além das diferenças das específicas singularidades.

4.5. Abismo e Nada Absoluto

Regressamos assim à tónica do Nada absoluto, o lugar “vazio” e ilimitado

dentro do qual há o “mundo”, a dimensão espácio-temporal em que todos os entes

subjectivos e objectivos se encontram e se reflectem e onde a sua distinção aparece já

sem sentido. Deve ser assumido como último predicado, um universal concreto, porque

envolve tudo o que é e que existe em algum lado, sem se substancializar ou transformar

em princípio ou verdade derradeira310. O Nada nishidiano situa-se na base de qualquer

definição e determinação embora se aliene ao conjunto completo das categorizações

ostensíveis. Todos os entes são unificados por e no Nada absoluto, não obstante

estejam em perene contradição cada um consigo próprio, porque as individualidades

são simultaneamente transitórias e permanentes em si e contrapostas umas com as

outra apesar de estarem entreligadas311, na esteira de um dos vectores axiais do

budismo primitivo: o reconhecimento ou experiência da natureza insubstancial (anattā)

e impermanente (anicca) de toda a realidade312.

310 Pasqualotto, no seu prefácio à edição italiana de Um estudo sobre o bem, esclarece

brilhantemente que: “il vero vuoto è quello che non si rende sostanza, quello che non si trasforma mai in principio. Anche in questo Nishida si mostra in linea con la profonda e fondamentale intuizione del buddhismo Mahāyāna che considera il vero vertice della realizzazione non il vuoto relativo, il vuoto di qualcosa (Śūnya), ma la vacuità del vuoto (Śūnya Śūnyatā), ossia lo svuotamento anche della tendenza del vuoto a farsi principio o di quella del nulla a porsi come verità.”, Giangiorgio Pasqualotto, «Introduzione al pensiero di Nishida Kitarō», in Kitarō Nishida, Uno studio sul bene, op. cit., pp. LI-LII.

311 “Si può dire che l’individuo determina se stesso sono in relazione ad altri individui. Non ha senso dire che un individuo singolo determina se stesso. Affinché un individuo determini se stesso, deve esserci il senso ciò che chiamo determinazione di luogo (bashoteki gentei), ossia dell’unificazione di cose che stanno assolutamente in contrasto.”, NKZ, VII apud Giangiorgio Pasqualotto, «Introduzione al pensiero di Nishida Kitarō», in Kitarō Nishida, Uno studio sul bene, op. cit., LVI.

312 A noção de anattā juntamente com a de anicca, representam no âmbito do ensinamento budista talvez o que mais se assemelha ao conceito de askesis filosófica formulada no Ocidente por uma certa tradição de pensamento tendo como raízes Heraclito, Platão, Hegel e Nietzsche. Construída no pressuposto que o que chamamos dedutivamente “Si”, “Sujeito”, “Individuo”, seja, na verdade, uma formação complexa, uma estrutura articulada e polivalente composta por 5 agregados – khandha –

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O seu corolário mais significativo será que o Mundo real se exprime a si

próprio como totalidade ou unidade de diferentes partes que, por sua vez, enquanto

multiplicidades, implicam uma unidade concomitante. Nishida chamará a este

fenómeno, de união e cativação de “o uno e os muitos”, uma absoluta “autoidentidade

de contradições”, indubitavelmente um ponto de chegada da sua filosofia313. Para nós,

afigura-se inversamente como o ponto de partida que consente apurar uma terceira e

mais surpreendente analogia com o legado artístico de Fernando Pessoa que, já em

1912, no seu ensaio de estreia literária, publicado nas colunas da revista A Águia com o

título a A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico decretava: “A suprema

verdade que se pode dizer de uma coisa é que ela é e não é ao mesmo tempo. Por isso,

pois, que a essência do universo é a contradição — a irrealização do Real, que é a

mesma coisa que a realização do Irreal —, uma afirmação é tanto mais verdadeira

quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito espiritual

não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E

assim, complexa e indefinidamente.”314

Contextualizando as manifestações das inerências entre os pressupostos

teoréticos de Nishida acima delineados e certas ponderações pessoanas mais

estritamente filosóficas, será pertinente considerar alguns segmentos de um trecho

bastante extenso, presumivelmente de 1924, cuja sequencialidade e densidade

dialéctica partilha, com a literatura budista do dall’Avatamsaka Sūtra315 e até com no

(agregado das formas materiais, agregados das sensações, agregado das percepções, agregado dos condicionamentos, agregado da consciência), a teoria da anattā declara a impossibilidade da pretensão, por qualquer realidade, de se afirmar como entidade autónoma, isolada e independente, como puro “Si”. Cf. Antonio Cardiello, «Anattā e Anicca nella poetica interstiziale di Fernando Pessoa», in Revista Lusófona de Ciência das Religiões, op. cit., pp. 167-173.

313 Cf. Marcello Ghilardi, «Eterotopie culturali in Nishida Kitarō e Mou Zogsan», in Simplegadi – Rivista di filosofia interculturale, op. cit., pp. 131-145.

314 Fernando Pessoa, Crítica / Ensaios, artigos, entrevistas, op. cit., p. 60-61. 315 “[...] se ogni realtà non è dotata di sostanzialità, indipendenza, autonomia, autocoscienza,

essa non può mai essere considerata isolata e, di conseguenza, non può affermare la propria esistenza solo in quanto è relazione, o, meglio, solo in quanto risulta da una rete infinita di relazioni. Un’immagine esemplare dell’universo che viene a prodursi in base a questa teoria dell’ anattā è fornita dall’Avatamsaka Sūtra che descrive la realtà come una rete infinita di gioielli, dipende da quello di tutti gli altri. [...] L’individuo in sé non esiste, ma esiste solo in quanto è prodotto da relazioni multiple che includono rapporti parentali e sociali, condizionamenti genetici e ambientali, influssi storici e culturali e etc. In tal senso si potrebbe dire che per le civiltà orientali nessuno è qualcuno se non nelle relazioni con qualcun altro e con qualcosa d’altro.”, Giangiorgio Pasqualotto, East & West – Identità e dialogo interculturale, Venezia, Marsilio, 2003, pp. 70-71.

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Livro de Zhuang-zi316 (um dos grandes clássicos do taoismo), a mesma lógica

paradoxal da auto-contradição identitária consubstancial a todos os seres:

[…] para se sentir puramente Si‑próprio cada ente tem que estar em relação com todos, absolutamente todos, os outros entes; e com cada um deles na mais profunda das relações possíveis. Ora a mais profunda das relações possíveis é a relação de identidade. Por isso, para se sentir puramente si‑próprio, cada ente tem que sentir‑se todos os outros, e absolutamente consubstanciado com todos os outros. Ora isto não pode implicar fusão (de qualquer espécie) com os outros, pois assim o ente não se sentiria a si‑próprio: sentir‑se‑á não‑si‑próprio, e não si‑próprio‑outros. Para não deixar de ser si‑próprio, tem que continuar a ser distinto dos outros. Como, porém, nessa altura do relacionar‑se, os outros são outros‑ele, para ser distinto dos outros, ele tem que ser distinto dos outros‑ele. Ser distinto dos outros‑ele só pode dar‑se sendo ele distinto de si‑mesmo. […] Como, porém, o que há de comum entre ele e os outros é a Relação — porque pela Relação é que eles podem fundir‑se ou entreser‑se, e pela relação é que eles se distinguem — segue que é pela Relação que ele se distingue de si‑mesmo. Este si‑mesmo, porém, está, nesta altura metafísica, já indistinto de outros, essa Relação, pela qual ele se distingue de si‑mesmo, é a relação consigo‑mesmo. A esta relação chama‑se Identidade. […] Ora relação implica distinção. Temos, pois que a Relação pura puramente distinta de si‑mesma será uma pura distinção puramente distinta de si‑mesma. A distinção pura, porém, é já, por o que é, puramente distinta, visto que é a distinção pura. Por isso a Relação Pura, só por ser a Relação Pura, é pura distinção. Mas se é por isso que é pura distinção, segue que é pura distinção por ser pura identidade, pois que é pura distinção por ser puramente aquilo que é (que é Relação Pura). De aqui se conclui que pura identidade e pura distinção são a mesma coisa; isto é, que a Identidade é a mesma coisa que a Distinção. Um ente qualquer é, pois, essencialmente identidade que é distinção.317

Um relevo mais considerável merece, enfim, uma abordagem conduzida à volta

daquilo que nos atrevemos a definir como a “estética da desaparição” subjacente à

arquitectura heteronímica pessoana.

A heteronímia em Pessoa, de facto, não se atesta apenas como estratégia

estilística – baseada na blague da despersonalização literária – que permite tornar numa

praxis o propósito teórico de considerar a própria vida uma obra de arte: junto de ser

“instrumento de multiplicidade”, um dispositivo de sensações ficcionais, seria

principalmente e precisamente, uma prática de fragmentação sistemática que atinge por

completo a subjectividade em busca do equilíbrio entre os vários planos do Si, dentro

da qual o poeta se vê continuamente outro relativamente à representação que fizera de

316 “Invero ogni essere è altro da sé, e ogni essere è se stesso. Questa verità non la si vede a

partire dall’altro, ma si comprende partendo da se stessi. Così è stato detto: l’altro proviene dal se stesso, ma se stesso dipende anche dall’altro.”, Zhuang-zi [Chuang-tzu], trad. italiana a cura di Liou Kia-hway, Adelphi, Milano, 2001, p. 23.

317 Fernando Pessoa, Textos Filosóficos, op. cit., pp. 36-39.

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si próprio, despoletando com a deflagração e dispersão do eu a sua irrecuperabilidade e

irredutibilidade ad unum.

Pessoa, vimo-lo ao longo desse nosso estudo, multiplicando-se em várias

personalidades, dá voz e crédito a uma série de considerações, todas confluentes que,

apesar de manterem uma certa conformidade de conteúdos, divergem entre elas

impondo uma pluralidade de perspectivas sempre em devir; um interseccionismo em

que o sujeito está implicado e com o qual deve dialogar todas as vezes que procura

uma colocação. É esta uma das facetas da contradição heteronímica: simultâneo

aparecimento de posições discordantes, absolutas e relativas, todas participantes quer

como unidades conceptuais garantes da manutenção de uma própria caracterização,

quer como pluralidades não encerráveis numa enunciação conclusiva. Por essa razão, o

equilíbrio é sempre precário e evoca uma imagem por sua vez contraditória que recorre

constantemente e que podemos considerar paradigmática da inteira obra pessoana: o

abismo.

Existem, nomeadamente, duas tipologias de báratro em Pessoa, ou melhor,

duas formas opostas que o escritor tem de contemplar a sua interioridade: por um lado

há o buraco negro que se origina de um espaço interior “dessubstancializado”318 por

causa da constatação que, “vida”, “alma”, “mundo” e até “deus e os deuses”, é “oco”

frente ao mistério insondável do existir e da pletora de significações que admite;

perante o império do tédio, do “mal-estar” do “cansaço” da alma pressentida como uma

dimensão vácua de luz, conforme as palavras angustiadas de Bernardo Soares319, nas

quais se espelha também Fernando Pessoa ortónimo320. Por outro lado, temos a

impressão que a imagética do precipício não incarna ou simboliza somente uma

entidade substancial separadora, um espanto vertiginoso e assustador desencadeado

pela constatação do risco implícito ao atravessamento de confins julgados insuperáveis,

318 “E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não ha nisto senão por uma geometria do

abysmo; sou o nada em torno do qual este movimento gyra, só para que gyre, sem que esse centro exista senão porque todo o circulo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.”, BNP / E3, 4-2r; cf. Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit., p. 347.

319 “Sinto-me apenas um vácuo, uma ilusão de uma alma, um logar de um ser, uma escuridão de consciência, onde extranho insecto □ procurasse em vão ao menos um logar onde se sentisse a calida aurora de uma luz.”, BNP /E3, 28-9 e 10, cf. ibidem, p. 499.

320 “Tudo o que sou não é mais do que abysmo / Em que uma vaga luz/ Com que sei que sou eu, e nisto scismo, / Obscura me conduz. / Um intervallo entre não-ser e ser / Feito de eu ter logar / Como o pó, que se vê o vento erguer, / Vive de elle o mostrar.”, BNP /E3, 62-26r; cf. Idem, Poemas de Fernando Pessoa –1934-1935, op. cit., p. 61.

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mas também o lugar onde o poeta pode descobrir uma via de acesso para uma abertura

infinita sobre uma consciência em fuga da ilusória tirania de uma concepção dualística

da realidade (o conflito aporético entre ser e não-ser): a mesma a ser utilizada pelo

homem pós-socrático para moldar e medir o seu mundo e para o fechar entre os limites

intransponíveis da razão comum. Para Pessoa, porém, o homem não é um ser finito,

simplesmente no sentido que é determinado no interior dos limites. O seu ser finito

determina-se na sua capacidade em pôr-se no limite, de permanecer nele e de assumi-

lo, assim, como constituinte da própria essência.

Entender a finitude, experiência peculiar do homem, como experiência do

limite, significa diferenciar este modo de ser finito de outras finitudes às quais não

pode ser reduzido. O limite, de facto, na medida em que é o que determina o finito e,

de algum modo, também a negação desse mesmo finito, carrega consigo a marca

daquilo que o transcende. Não no sentido de que seja um ponto mais além do finito,

mas no sentido de que não é ainda completamente reconduzível a ele. O limite é,

portanto, o lugar onde o finito, através de experimentação dos próprios limites, vai

além de si, sem deste modo se tornar qualquer coisa de outro e de marginalizado de si.

Emblemático, a esse propósito, é um curto poema novamente de cunho

ortónimo, datado de 1929: “O abismo é o muro que tenho/ Ser eu não tem um tamanho

[…]”321 que solicita, em Paulo Borges, a seguinte sugestiva dupla interpretação, graças

à qual se tornam possíveis a reabilitação da semântica do vazio à luz da

desterritorialização da noção de identidade e o apagamento de todas as marcas de

fronteira, de todas as cesuras: “ou na ausência de limite determinador o «eu»

efectivamente não existe como tal, numa não-dimensão que o identifica ao próprio

«abismo» que não é nada, alheio a qualquer determinação onto-lógica, ou, pelo

contrário, na ausência do mesmo limite determinador, o eu existe sem dimensão, sendo

uma unidade total e infinita.”322

321 Idem, Fausto - Tragédia Subjectiva, op. cit., p. 70. 322 Cf. Paulo Borges, «Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma cousa,

não poderia imaginar - Vacuidade e auto-criação do sujeito em Fernando Pessoa», op. cit., p. 367.

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Em Mim Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo Com seu Tempo e seu Espaço é um astro e nesse Abismo há outros universos, outras Formas de Ser com outros Tempos, Espaços E outras vidas diversas desta vida... O espírito é antes estrela... O Deus pensado É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos Doutras maneiras de Realidade... E eu precipito-me no abismo, e fico Em mim... E nunca desço... E fecho os olhos E sonho — e acordo para a Natureza... Assim eu volto a Mim e à Vida...323

O que possibilita ao autor reproduzir contínuas divisões ao seu interno,

engendrando uma sobrevivência transposta ou metonímica da sua identidade

evanescente, seria então esse vazio insondável saldado no sujeito já não propagador de

medo porque já não instigador de vertigens. À volta dele, a realidade configurar-se-ia

como um espaço ulterior entre a presença e a ausência, entre a representação

conceptual e o silêncio, entre a clausura e a máxima abertura; entre a mesma ideia de

oposição e a de unidade, resultando, consequente e inexoravelmente, toda intersticial.

Movimento sem deslocamento que nos guia até ao nosso centro, representado,

em sintonia com a filosofia mais tardia de Nishida Kitarō, por um lugar ausente no qual

sempre estamos e sempre faltamos. Transfigurado, neste fragmento de rara beleza, na

própria essência abismal, porque redentora, do Buda:

Tornado a Negação Absoluta, extinguir-te-has de todo, ó Boddhisattva. O único Nada serás tu. O resto será o grande e puro, limpo e uno Universo. A tua Morte será a vida de tudo. Tornado a Diversidade Absoluta, o Abysmo Puro, morrerás de Ti proprio. E tudo será o Nirvana attingido, e o Fim dourado da Estrada. O resto é o nada onde tu és a morte sem nada seres. O teu sacrifício não tem Deus. A tua Renuncia é um universo — o universo-abysmo, o abysmo do abysmo, o Nada não em si mas em Nada324.

323 Fernando Pessoa, Fausto – Tragédia subjectiva, op. cit., p. 70. 324 BNP/E3,112-17r; cf. Fernando Pessoa, Ficção e Teatro – O Banqueiro Anarquista, Novelas

Policiárias, O Marinheiro e outros, introduções, organização e notas de António Quadros, Mem Martins, Europa-América, p. 233.

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CONCLUSÃO

A obra que Fernando Pessoa compulsivamente foi imbricando, no intercalar de

dois séculos com o seu polifacetado e visionário talento criador, parece-se com uma

espécie de enorme delta literária onde se sedimentaram os mais diversos materiais

procedentes de diferentes tradições, doutrinas e disciplinas do saber universal e, para

cuja estratificação residual, não terá deixado de contribuir o seu fervoroso “vício” pela

leitura.

No seu ensaio Books, Ralph Waldo Emerson descreve uma biblioteca como um

lugar onde o leitor se encontra rodeado de centenas de queridos amigos encarcerados,

que só encontrarão a liberdade quando com eles se iniciar uma conversa325. Fernando

Pessoa, que teve uma profunda e prolongada relação com os livros da sua biblioteca,

como em parte tentámos realçar com a nossa investigação, terá libertado muitos desses

amigos. O volume do ensaísta pensador e poeta norte-americano, tal como outros livros

sublinhados e anotados da biblioteca pessoana, testemunham precisamente o constante

e fecundo diálogo que foi decisivo na frutificação da sua escrita.

Substancialmente e surpreendentemente plural também em termos linguísticos,

por albergar volumes, revistas, jornais, recortes de imprensa e folhetos abrangentes 8

idiomas (Inglês – o mais predominante –, Espanhol, Francês, Galego, Grego, Italiano,

Latim e Português), a biblioteca de Pessoa é decerto única em Portugal, não só por ter

pertencido ao seu maior poeta, mas porque nela figuram títulos que nenhuma outra

biblioteca pública do país tem e alguns que, dentro de um contexto mundial, também

são raros.

Desde 1953 tem sido continuamente alvo de reconstrução através do trabalho

de diversos investigadores que, ou listaram os títulos localizados ou publicaram as

listas de livros comprados, vendidos, encomendados por Pessoa e, em alguns casos,

325 “In a library we are surrounded by many hundreds of dear friends, but they are imprisoned by an enchanter in these paper and leathern boxes; and, though they know us, and have been waiting two, ten, or twenty centuries for us, – some of them, – and are eager to give us a sign, and unbosom themselves, it is the law of their limbo that they must not speak until spoken to; […].”, Ralph Waldo Emerson, Works of Ralph Waldo Emerson : essays, first and second series representative men. Socity and solitud English traits. The conduct of life letters and social aims poems. Miscellanies embracing nature addresse and lectures / Ralph Waldo Emerson. - 1st ed. – London, George Routledge & Co., 1902, p. 250. O livro encontra-se na Casa Fernando Pessoa. Veja-se o número de inventário CFP, 8-172.

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listas dos que foram lamentavelmente extraviados326, traçando assim um mapa bastante

completo daquilo que teria sido a sua “biblioteca ideal”, isto é, o universo de leituras

que ele terá percorrido e que terá influenciado a sua produção textual

Para o progressivo crescimento dessa biblioteca foram muito importantes os

prémios escolares, as compras (directas e por correspondência), as aquisições em

segunda mão, as permutas, as heranças e as ofertas de volumes. A aquisição dos

diversos volumes teria sido realizada com desígnios precisos, pois o poeta estava a par

das edições publicadas (nacionais e estrangeiras) em voga nos seus tempos,

especialmente dos temas que lhe eram mais caros (ensaios sobre a poesia e a literatura,

textos de filosofia, astrologia e esoterismo) chegando mesmo ele próprio a fazer

listagens dos livros já na sua posse ou a adquirir e mantendo contacto com algumas

editoras às quais solicitava o envio de obras específicas. Numa destas listas redigidas

de seu punho e datável de 1913, figura o desígnio “Fazer catalogo da bibliotheca

(minha).”327 O apontamento induz a conjecturar que, já nesta fase da sua vida, Pessoa

possuísse um acervo bibliográfico relativamente extenso e diversificado. Mas que

livros formavam parte da sua biblioteca e, mais pontualmente, em que lugares

procurava os livros que comprava ou encomendava?

Para responder a esta pergunta contamos com uma fonte de informação

imprescindível, tão decisiva como o relato de Henriqueta Madalena Rosa Dias acerca

dos gastos ingentes do seu meio-irmão na Livraria Bertrand na Rua Garrett, na English

Library, e no alfarrabista Pires na Rua da Prata328. Referimo-nos a fonte constituída

pelas marcas de livreiros coladas num restrito leque de livros, marcas que ainda exibem

as identificações das lojas em que foram comercializados.

Entre as lojas portuguesas onde Pessoa costumava adquirir livros, destacam-se

a Livraria Ingleza, ou English Library, de A. Lewtas & Taboada, fundada em 1855 e

localizada na Rua do Arsenal, a Livraria Ferreira, na Rua Áurea, a Livraria Nacional e

Estrangeira, também na Rua Áurea, a Livraria Ferin, na Rua Nova do Almada, e a

Livraria Moraes, na Rua de Assunção.

326 Cf. Patricio Ferrari, «A Biblioteca de Fernando Pessoa na génese dos heterónimos: (Dispersão e catalogação 1935-2008); A arte da leitura (1898-1907)», in AA. VV., O Guardador de Papéis, Jerónimo Pizarro (Org.). 2a. ed. Lisboa, Texto Editores, 2009, pp. 155-218. 327 Cf. BNP/E3, 28-95. 328 Cf. Isabel Murteira França, Fernando Pessoa na Intimidade, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 252.

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Sabemos que Pessoa frequentava a Livraria Ingleza também porque esse local é

referido num diário de Novembro-Dezembro de 1915329 e numa lista de encomendas

de livros com data de 7 de Abril de 1916, na qual figuram dois textos que ainda hoje

constam da biblioteca particular: The Magnet e The Magic Seven, ambos de Lida Abbie

Churchill330. Estes dois volumes ostentam as marcas de livreiro da Livraria Ingleza.

Para Pessoa a Livraria Ingleza devia representar um recanto de deleite e conforto; devia

parecer-lhe como um espaço de paz no meio do movimento da Rua do Arsenal, teatro

de algumas das evoluções criativas que “se agitavam na sua cabeça”331 e de muitas

deambulações metafísicas protagonizadas por Bernardo Soares.

Não sabemos se foi mesmo nesta livraria ou na Nova Livraria Internacional

Borges de Carvalho - durante anos também instalada na rua do Arsenal - o local onde

Pessoa terá adquirido uma edição em francês de pensamentos soltos de Novalis, talvez

o exemplo mais cintilante da fronteira entre poesia e filosofia, tantas vezes exploradas

por Pessoa mediante a sua biblioteca.

O que sabemos é que Pessoa terá apreciado particularmente o seguinte aforismo

impresso na pág. 185, pois evidencia-o com um sublinhado a tinta preta e com uma

inscrição “N.B.” na margem direita da folha: “La poésie est le réel absolu. Ceci est le

noyau de ma philosophie. Plus une chose est poétique, plus elle est réelle”.

Novalis, Les disciples à Sais et Les fragments (CFP, 8-388, p.185) [detalhe]

329 Veja-se, por exemplo, a entrada do dia 9 de Novembro: “Some English books arrived at Livraria Ingleza.”, BNP/E3, 144X-140v; cf. Fernando Pessoa, Sensacionismo e outros ismos, op. cit., p. 328. 330 Cf. BpFP 1-23 e BpFP 1-24. 331 Cf. carta a Mário Beirão de 1-02-1913 in Fernando Pessoa, Correspondência. 1905-1922, pp. 79-80.

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Em 1942, com Pessoa já falecido, Luis de Montalvor, responsável editorial da

sua obra por conta da Ática, torna-o na epígrafe das contracapas das primeiras

colectâneas poéticas que contribuíram para espalhar a mitogenia pessoana.

Ainda a Novalis devemos uma formidável definição da palavra filosofia que

bem se aplica à maneira como, temo-lo visto ao logo do nosso estudo, Fernando Pessoa

entendia a prática de chegar a si próprio, de sondar a sua essência de “poço fitando o

céu”.

Ao escrever “a filosofia é uma arte de compor e recompor a si mesmo, uma arte

de especificar e gerar a si mesmo”332, Novalis sugere que o filosofar é uma

fragmentação e uma reconstrução de si; de um si que não pode, jamais, considerar-se

estruturado e definido uma vez por todos, um si que, consequentemente, não pode

arrogar-se quer de uma particular autonomia quer de uma absoluta independência que o

circunda e, portanto, o define.

Através do exercício filosófico, isto é, segundo o poeta romântico, nós

especificamo-nos, revelamo-nos, geramo-nos completamente. Por outras palavras: a

filosofia seria uma espécie de iniciação a si, uma arte de iniciar-se a si próprio, um

percurso introspectivo e não, apenas, uma mera técnica ou disciplina científica, e

enquanto tal não pode ser mais que a iniciação a si trâmite o outro; sempre iniciação a

si e ao outro. Mas a dimensão do outro implica a presença da diferença; de uma

diferença não extrínseca, bem pelo contrário, incita ao si, presente na identidade de si

com si: a iniciação a si próprio verifica-se, por isso, com a travessia da diferença

presente no seio da identidade e implica aquilo que podemos definir como sendo uma

violação do princípio de não contradição no âmbito experiencial.

A epifania do si e do outro de si, reside na relação e, devido a tal, não pode

exigir dobrar-se sobre si mesma, transformando-se em algo estático: pelo contrário,

essa deve saber colher a íntima proximidade ao idêntico e ao diverso, na sua recíproca

liberdade, nas suas trocas sempre variadas e mutáveis. Noutros termos: para reaver o

verdadeiro si – não aquele egoístico e psicológico, cuja maior tentação é hipostatizar si

próprio ou a relação na qual, de vez em quando, volta a encontrar-se – o sujeito deve

reconhecer e acolher o próprio descentramento daquela posição privilegiada e

incorruptível que julgava poder atribuir-se. Assim fazendo, ou seja, aceitando e

332 Cf. Novalis Frammenti, trad. italiana Ervino Pocar, Milano, Rizzoli, 1991, p. 42, fr. 28.

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amando a própria desaparição, o ser singular pode, finalmente, reconhecer-se na

totalidade. Descobrir-se totalmente ele mesmo e, para usar uma imagem pessoana,

assumir-se como “mais diverso do que o universo espontâneo”333.

Eis que regressamos de novo a Fernando Pessoa, cujas reflexões acerca da

totalidade, como ausência de “auto-identidade” e acerca da relação, adquirem uma

cifra determinante.

A contradição implícita na heteronímia, enquanto pensamento simultâneo de

posições discordantes, na qual não é possível absolutizar uma em detrimento das

outras, mas na qual todas participam, eventualmente, como unidades conceituais

capazes de manter uma sua caracterização e como pluralidade sobre as quais não seja

encontrada uma reflexão que as compreenda, admite, ao nosso ver, três linhas

temáticas fundamentais.

Essas são o interstício, a abdicação e o fingimento, as quais, por se disporem

transversalmente ou subjacentes em relação às poéticas dos vários heterónimos,

parecem representar uma derivação, sob a qual o pensamento pessoano retorna

constantemente, de forma a constituir uma referência forçada no momento no qual se

deseja tentar a reconstrução de um pensamento constituído em grande parte por

fragmentos.

Em algumas linhas de marginalia recentemente resgatada da página de guarda

do livro Modern Humanist de John M. Robertson (edição de 1908) lemos:

Somos um intervallo entre dois intervalos – a vida (espaço entre a nascença e a morte) e o tempo (espaço entre a eternidade e o efémero). Nós somos uma faùlha que se apaga num vento que passa / sem que possamos dizer que o sentimos passar/.334

O interstício assume aqui, como em inúmeros sectores da obra pessoana, as

prerrogativas de um espaço não situado, dentro do qual, qualquer posição do

pensamento vem a ser absorvida e reportada a uma ontologia da diferença, pela qual a

realidade é, continuamente, resolvida no evento que a constitui, abrindo-se para uma

reflexão “teorética” que fornece uma representação do real. O tema da abdicação

posiciona-se sob uma tangente que podemos definir de teor ético, se o entendêssemos

333 Fernando Pessoa, Álvaro de Campos – Livros de Versos, Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes, Lisboa , Editorial Estampa Lda, 1997, p. 210. 334 AA. VV., Inéditos de Pessoa, in JL, 19 Novembro – 2 Dezembro 2008, Ano XXVIII / N. 995, P. 16.

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como preceito do comportamento através do qual, a obrigação em abandonar uma

imagem identitária, fornecida através de uma representação conceitual de nós próprios,

respondesse, a seu tempo, a uma necessidade que previa a observação do preceito de

não renunciar ao próprio processo da verdade, ou seja, à própria e verdadeira

identidade, no momento em que esta não possa ser compreendida como uma

representação conceitual, mas sim, enquanto prática do “si”, como experiência do

pensamento.

A necessidade de abdicar de cada representação conceitual que se configure

como resolutiva de um aspecto do real, e que, assim, circunscreva numa perspectiva

“territorializante” a possibilidade do pensamento, é assumida por Pessoa como uma

tarefa à qual não se pode retrair. A alternativa é tropeçar numa verdade que, coerente

internamente, difere sempre do movimento mais amplo que é o acto de descrição de si,

cujos efeitos são substancialmente indescritíveis.

Se, neste caso, a abdicação conduz ao acolhimento de uma posição pela qual

qualquer dimensão do pensamento e a maior razão de qualquer ideologia representa,

somente, o lugar do nosso verdadeiro acontecer e a condição do nosso “já ter sido” no

sentido de uma repetição ou mímesis da existência passada, co-presente mas

transcendente, então as relações conceituais que instituímos em nós próprios perdem o

seu valor de verdade absoluta e instituem um âmbito no qual a noção de fingimento se

liga, incindivelmente, àquela de verdade. Todavia, não num sentido dialéctico, pelo

qual o aparecimento de uma implica, necessariamente, o interagir com a outra, mas

enquanto síntese entre dois opostos por meio da qual o fingimento possa permitir a

saída de uma condição de proeminência do conceito da própria unidade.

Pessoa, portanto, entende o fingimento como a possibilidade de aceder ao

conhecimento de si e, neste sentido, à compreensão da prática da heteronímia, sempre

que esta não se reduza a um âmbito restrito e acabado da experiência literária que,

apesar de omnipresente na vida do autor, não é nunca separada da “realidade” mas a

contempla continuamente, excluindo, consequentemente, uma dimensão de fingimento

literário em prol da inclusão da realidade como possibilidade de um espaço de verdade

no próprio fingimento.

Fingir, entre outros termos, para o nosso autor, não significa apartar-se dum

espaço de verdade, logo, da hipotética identidade da própria existência, mas penetrar

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até ao de uma realidade, cuja verdade é constituída pela prática de um âmbito

conceitual, onde exprimir poeticamente significa fingir e onde, como tal, a sinceridade

é sempre o lugar no qual não estamos presentes, sintetizado, simbolicamente, através

do nome deste ou daquele heterónimo que surge representado como outro em relação

ao autor que escreve concretamente os versos, aderindo ao tal preceito ético que previa

a abdicação de “si” para minar a própria auto-identidade.

Os limites da obra de Pessoa são os próprios limites do moderno, embora seja

mesmo nesses limites que se cumpre a sua grandeza. Devido a esta sua radicalidade,

Pessoa foi um poeta-pensador que não teve discípulos mas epígonos; não

prosseguidores mas imitadores. O seu único e verdadeiro herdeiro foi, nada mais, nada

menos, que ele próprio: até às suas últimas obras tentou retomar a jogada de que,

anteriormente, havia abdicado, bem como recuperar o discurso para além do ponto

onde propositadamente tinha parado. Desconhece-se, portanto, se terá sido a morte a

impedi-lo de continuar a escrever, ou a escrita a impedi-lo de continuar a viver.

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Anthologia Geral. Poesia hindú. e prosa (?) chineza persa. japoneza. (ou “anthologia

hebraica. antiga” só –?)

grega. romana. arabe. assyria (?). Abrange desde o Rig-Vêda ao Symbolismo moderno. Or in the original languages, w[ith] trans-

lations, all? – Or several anthologies of the languages

(modern) – lang. = dead languages being translated in all the others.

Anexo I

[48-55r]

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[55I-13r] References to †

† p. 2 = a

________________________________

(a) Early Christian Civilization (b) Arab civilization dates from about 620-650 & last 5 cen turies (/about 650-1150/) (C) Catholic civilization (middle ages proper; (d) (Transition period of the Renas sance – 1300-1500) Note! Middle Ages 350-

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[93-69ar] Notes Ency[clopædia] Brit[annica] – Art[icle] Poetry (Theodore Watts). Vol. XIX – pp. 256 to 273 257.– Def[inition] “Absolute poetry is the concrete and artistic expression of the human mind in emotional and rhythmical language.” 257. – Exceedingly false example of “not poetry” quoted from George Eliot’s “The Spanish Gipsy.”335 257 “while prose requires intellectual life and emotional life, poetry seems to require not only intellectual life and emotional life but rhythmic life, this last being the most important of all according to many critics, though Aristotle is not among these.” Omar Khayyam: text (critical edition) with translation – E. H. Whinfield, 1883. Chodzko – Théâtre336 persan. nouv[elle] éd. Paris, 1878 Gobineau – Religions337 et philosophies de l’Asie Centrale. Paris, 1866. Sádi: Háfiz: S[amuel] Robinson: Persian Poetry for English Readers. 1883. Bústán: tr[anslated] into E[nglish] by W[ilberforce] Clarke, London, 1879 into F[rench] by Barbier de Meynard, Paris, 1880. Gulistán: tr[anslated] E[nglish] Eastwick (1852), and Platts (1873) tr[anslated] Fr[ench] Defrémery (1858) Kulliyyát (Complete Works)

335 «Speech is but broken light upon the depth | Of the unspoken; even your loved words | Float in the larger meaning of your voice | As something dimmer.» 336 «Théatre» no original. 337 «Réligions» no original.

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173

[93-69r]

Háfiz: Verse rendering of the principal poems: By H. Bicknell – pub[lished] by Trübner & Co., London, 1875. 100 selected odes (prose version) (anonymous) – W[illia]ms & Norgate. L[ondo]n 1875 Several translations in Oriental Miscellany. Tr[anslated] by Palmer, 1881 ( ?)

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174

[144-27v]

Some work on the Byzantine Empire. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Some work explaining sociologically (for one) the Persian poets Hafiz, Omar etc. Has it not some connection with the Renascence? ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Letourneau338 omits (?) all mention of Persia – remember this and get more work on Persian civilization – Is there any connection between these and the Persian poets of the 13th or 14th century Omar, Hafiz, etc. mentioned above)? 338 Na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa encontra-se o seguinte exemplar: Charles Letourneau, La Psychologie ethnique: mentalité des races et des peuples, Paris, Schleicher Frères[1901], «Bibliothèque des sciences contemporaines» (CFP, 3-39).

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175

[122-42r]

Um pesador de palavras veio, a balança na mão Continuou partindo a moeda 4 7 9 12 15 …/ ../ ./. ./ ../ …/ ./. ./. Nizami – p[age] 153.

Abū Muhammad Bin Yusuf Bin Mu, Ayyid-I-Nizāmu-’d-Dīn. The Sikandar Nāma, E Bará; or Book of Alexander the Great. Translated for the first time out of the Persian into prose, with

critical and explanatory remarks, with an introductory preface, and with a life of the author, collected from various Persian sources by Captain H. Wilberforce Clarke. London: W. H.

Allen & co, 1881. (CFP, 9-1).

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176

[108-92r] H[istory] of a D[ictatorship] Jews & Orientals (H[erbert] G[eorge] Wells – 12 st[ories] & a dr[eam], p. 135) live quicker than we.a

______________

a «It seemed to me that so far Gibberne was only going to do for any one who took his drug exactly what Nature has done for the Jews and Orientals, who are men in their teens and aged by fifty, and quicker in thought and act than we are all the time».

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177

John Mackinnon Robertson. A Short History of Christianity. London: Watts & Co, 1902 (CFP, 2-55).

Consider this: Sects have founders, but not religions: Religions only when Sects – as Mahometanism, a [↑ one] people’s reli- gion, imposed afterwards on other peoples; not, as Christism, a re- ligion summoning many aspira- tions and peoples – And even Maho- met was representative, not founda- tional [examine this]

Note this

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178

[5-30r]339

Quanto mais contemplo o spectaculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das

cousas, mais profundamente me compenetro da ficção ingenita de tudo, do prestigio falso /da pompa/ de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todos, que reflectem, uma ou outra vez terá succedido, a marcha multicolor das civli dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos imperios e das culturas – tudo isso me aparece como um mytho e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos [↑ desmoronamentos]. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propositos mortos, até quando conseguidos, deva estar na abdicação extatica do Buddha, que, ao comprehender a vacuidade das cousas, se ergueu do seu extase dizendo “Já sei tudo”, ou na indifferença demasiado experiente do imperador Severo: “omnia fui, nihil expedit – fui tudo, nada val a pena”.340

339 Para a edição crítica deste documento ver Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, op. cit.,

pp. 143 e 721. 340 Ver um texto intitulado «Omar Khayyam», em que Pessoa diz que o tédio do poeta e filósofo

persa é o tédio de “quem mediu todas as religiões e todas as philosophias e depois disse, como […] Septimio Severo: «Omnia fui, nihil …” “Fui tudo; nada vale a pena».”, 1-5r; cf. Idem, Rubaiyat, op. cit., p. 78.

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179

Edward Denison Ross. Eastern Art & Literature: with special reference to China, India, Arabia, and Persia. London: Ernest Benn Limited, 1928. (CFP, 8-482)

(CFP, 8-482, p. 26)

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180

From “Occult Series No. 10” Catalogue: 65. “Ideal Suggestion through Mental Photography” by Henry Wood. 8vo. cloth. 5/–. 91. “Magic, White and Black” by Dr. Franz Hart- mann. cr. 8vo. cloth. 6/-. 101. “Mind Power, or the Secret of Mental Magic”. 8vo. 441 pp. cloth. 5/-. 131 and 132. “Our Invisible Supply: How to Obtain”. Parts I & II. 8vo. cloth. 2 vols. 7/-. 162. “The Science of Breath and the Philosophy of the Tattvas”. By Rama Prasad. 8vo. cl. 3/6. 233. “The Hindu-Yogi Science of Breath”. By Yogi Ramacharaka. 8vo. cloth. 3/-.

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Entregue em 11-4-1916

[54B-15r]

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181

Rabindranath Tagore (1922). Gitanjali Song-offerings and Fruit-gathering. Introduction by W. B. Yeats. Leipzig: Bernhard Tauchnitz, 1922. (BpFP, 8-

536).

O desejo do botão é a noite e o orvalho Mas a flor cheia para a luz livre Rompe a bainha em coração, e emerge!

Cantos Dados [↑ Votos]

Colher de Frutos

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És a imagem vermelha viva da liberdade temivel

Sê contente de que ha dias a

vir.

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183

[93A-20r] Rabindranath Tagore: “L’Offrande Lyrique” Trad. André Gide. Nouv[elle] Revue Franç[aise]a 3.50. Pearson’s Weekly – Middles – 110. Air smashes = high position lat tired feeling = derivation probably “tyre” Inq[uerito] Republica Trad[ucção] “Ribeirinho” Lebre e Lima

a Rabindranath Tagore, L’offrande lyrique [Gitanjali], traduction d’André Gide, Paris, Nouvelle revue française, 1913.

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184

Kálidása: “Sákuntalá” “Vikrama and Urvasé” (The Hero and the Nymph). Mrichchhkati (The Toy Cart) (attr[ibuted] to Śúdraka) Babhavúti (called Çrikántha)

Mahávára-Charita Uttara-Ráma-Charita heroic dramas

Málatí and Mádhava. – Love drama. Veńi-Saníhara

[144-5v]

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185

[55H-64r]

Mahatma Ghandi. Mettam-me no lixo que são esses † esses † e Esses meros santos. __________________ Elle nunca pode ser ridiculo porque não pode ser medido pelas normas dos que o pretendem ridicularizar. Asceta, que paria moral dos politicos tem com que medil-o? O seu alto exemplo, inaprovei- tavel pela nossa fraqueza, enxo- valha a nossa ambiguidade. Humilde e austero, despreza-nos do alto da sua vida. Heroe sem armas, dá ferrugem aos nossos numerosos gladios, espingardões e peças. Vontade una e firme, paira acima das nossas intrigas politicas em meio do perigo, da nossa firmeza vinda ao accaso, da nossa bebedeira de conseguimentos.

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186

[55H-65r]341

341 Os dois documentos sobre Ghandi, aqui transcritos, foram inicialmente publicados, com

algumas diferenças, por Richard Zenith (cf. Richard Zenith, Fernando Pessoa. Fotobiografias Século XX, direcção de Joaquim Vieira, Lisboa, Círculo de Leitores, 2010, pp. 50-51.

Ghandi.

O Mahatma Ghandi é a unica figura verdadeiramente grande que ha hoje no mundo. E é isso por que, em certo modo, não pertence ao mundo e o nega.

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187

Victor Henry. Les Littératures de l’Inde: sanscrit, pâli, prâcrit. Paris: Librairie Hachette & Cie, 1904. (CFP, 8-250).

(CFP, 8-250, p. 88)

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188

(CFP, 8-250, p. 76).

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189

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190

[48B-56]342 The Theosophical Publishing Society: (161, New Bond Street. London. W). Brother Atisha: An Exposition of the Doctrine of Karma. net. 1/- Annie Besant : The Ancient Wisdom. net 5/- " : The Pedigree of Man. net 2/- " : A Study in Karma. net 2/- " : An Introduction to Yoga. net 2/-. " : Esoteric Christianity. net 5/-. " : The Wisdom of the Upanishads. net 2/-. " : The Bhagavad Gitâ. 4th. ed[ition] net. 6d. (wrappers). " : Theosophy and Theosophical Society. net 2/- " and C[harles] W. Leadbeater: Man: Whence, How and Whither. net 12/- H[elena] P[etrovna] Blavatsky: The Secret Doctrine. 3 vols. 50/- net. " : Isis Unveiled, 2 vols. net 21/-. Claude Bragdon: A Primer of High[er] Space (The Fourth Dimension). Bhagavan Das : The Science of the Emotions. 2nd ed. net 4/6. " : Pranava vada. 3 vols. 18/-. Extracts from the “Vahan”. (800 p.) net 7/6 W [illiam] King[s]land : A Child’s [Story]343 of Atlantis. net 1/- " : The Esoteric Basis of Christianity. net 3/6. " : Physics of the Secret Doctrine. net 3/6. C[harles] W. Leadbeater: Man Visible and Invisible. net 10/6 " : The Hidden Side of Things. 2 vols. 16/- net. " : The Other Side of Death. net 8/. " : Clairvoyance. net 2/- " : Dreams. net 1/6. " : A Text-Book of Theosophy. – 1/6 net

342 Testemunho datável de 1914. 343 «History» no original.

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192

[56v] C[harles] W[ebster] Leadbeater: Invisible Helpers. net 1/6. : The Astral Plane net 1/- : The Devachanic Plane net 1/- Dr. A. Marques: Scientific Corroborations of Theosophy. net 2/6. G[eorge] R[obert] S[tow] Mead : Thrice-Greatest Hermes. 3 vols. net 30/- : Fragments of a Faith Forgotten. net 20/6 : Did Jesus Live 100 B.C? – net 9/- : Quests Old and New. net 7/6 : Some Mystical Adventures. net 6/- : The Gospels and the Gospel. net. 4/6. : Plotinus, Introduction to the Works of. net 1/- Mrs. Cooper Oakley: Traces of a Hidden Tradition… net 3/6 " : Mystical Traditions. net 4/- Rama Prasad: Nature’s Finer Forces. Net 3/6. G[eorge] H[erbert] Whyte: Is Theosopy Anti-Cristian. Net 6d. W[illiam] Scott-Elliot: The Lost Lemuria. net 2/6 in 1 vol. 5/6 net. " : The Story of Atlantis [and] net 2/6 A[lfred] P[ercy] Sinnett : Esoteric Buddhism. net 2/6. : The Growth of Soul. net 5/- : The Occult World. net 1/6. : Occult Essays. net 2/6 : In the Next World. net 1/6. : Apollonius of Tyana. net 1/- Johan Van Manen: Some Occult Experiences. net 1/6. E[dward] D[wight] Walker: Reincarnation. net 3/6 an anthology of A Study of Forgotten Truth. A[rthur] H. Ward: The Seven Rays of Development. 1/- " : Masonic Symbolism net 2/6

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194

[48B-56ar] L[eonard] A. Bosman: The Mysteries of the Qabalah. net 1/- " and Elias Gewurz: The Cosmic Wisdom. net 1/-344 Clement of Alexandria: Extracts from the Writings of. – net 1/- Ms. Dale: Indian Palmistry. net 1/- Dream of Ravan. 2/6 net. Prof. M[anilal] N[abhubhai] Dvivedi : The Mândûkyopanishad etc.345 net 4/- " : Yoga-Sutra. net 3/- W[illiam] G. Hooper : The Universe of Ether and Spirit. net 4/6 " : Aether and Gravitation. 6/- net (pub. 12/6 net) Three Years in Tibet. net 7/6 Lopukhin: Some Characteristics of the Interior Church. net 3/6. Jamblichus on the Egyptian Mysteries. net 10/6. Rev. F[rederick] Montagu Powell: Studies in the Lesser Mysteries. net 1/6. Golden Verses and other Pythagorean Fragments. net 1/6 Commentaries of Hierocles on the Golden Verses of Pythagoras. net 2/6. The Pythagorean Sodality of Crotona. net 6/-. L. Schram: Theosophical Analogies in the “Divina Commedia”. net 1/- Shuking. net 3/6. Baijnath Singh. Letters from a Sûfî Teacher. net 1/6 (*Philosophy of Islam)

344 Cf. The Theosophist. April 1914 – June 1914: 156. Nesta revista e nesta data, a autora, Annie

Besant, anuncia a publicação do livro The Cosmic Wisdom de Bosman e Gewurz. 345 The Mândûkyopanishad: with Gaudapâda’s Kârikâs and the Bhâshya of S’ankara.

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196

[48B-60r] Books: Yone Noguchi: “The Spirit of Japanese Poetry”

(J. Murray, 2s. net) Prof. Inayat Khan: “Sufi Message of Spiritual

Liberty” (Theosophical Publishing, Co. 2/6 net).

Frank G. Layton: “Philip’s Wife” (A. C. Fifield, 1s. net) (a play)

Adelaide Procter: “Legends and Lyrics” (Mil- ford, 1/6 net).

Charles McEvoy: (plays) “David Ballard” – 3 acts – (Bullen, 1/net) “When the Devil was Ill” (Bullen, 1/net) “All that Matters” (Haymarket Theatre,

1/) “Gentlemen of the Road” (Bullen, 6d). “Lucifer” (Bullen, 6d).

Serge Persky: “Russian Novelists” (Frank Palmer, 3/6 net)

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198

[48B-75r] Studies in Mysticism and Certain Aspects of the

Secret Tradition – by Arthur Edward Waite. 1906. 348 pp. (Sawyer. 10/6 for 4/3).

Mysteries of Freemasonry, by J. Fellows. 374 pp. (Sawyer. 2/6).

Religious Systems of the World. 824 pp. Sonnenschein (Sawyer. 10/6 for 4/6).

The Economic Transition in India. By Sir Theodore Morison. J. Murray. 5/- net.

Japanese Poetry. By Basil Hall Chamberlain. J. Murray. 4/6 net.

Revolutions of Civilisation. By W[illiam] Flinders Petrie. Harper. Cloth. 2/6 net.

Francis Bacon. By G[eorge] Walter Steeves. (Times B. C. 6/- for 3/6).

British Imperialism in the Eighteenth Century. By G. B. Hertz. (Times B. C. 6/- for 4/-).

The Laws of Heredity. By G. Archdale Reid. (T. B. C. 21/- for 12/6).

Practical Astrology. By Alan Leo (T. B. C. 6/- for 3/-).

The Science of Life. By J. Arthur Thomson (T. B. C. 5/- for 2/6).

The Foundations of the Nineteenth Century. By H. S. Chamberlain. J. Lane. 2 v. 32/- net.

The Problem of Existence. By Manmath C. Mallick. 1904. (Heffer. 10/6 for 3/6).

Portuguese Nyasaland. By W. B. Worsfold. 1899 (Heffer 7/6 for 3/6).

The Unwritten Sayings of Christ. By C. G. Griffinhoofe. (Heffer 3/- net).

The Story of Crime. By H. L. Adam. (Sawyer 10/6 n. for 4/6).

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200

[75v] Modern England. By A. W. Benn. (Watts & Co) 2 v. 7/- net. Concise History of Religion. By F. J. Gould.

3 v. (Watts & Co). 11/- A Short History of Freethought.

By J. M. Robertson. 2 vols. 21/- net. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) The Transformation of Christianity.

By C. T. Gorham. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation].) 1 d. Early Shelley Pamphlets.

By Percy Vaughan. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) 6 d. The Religion that Fulfils.

By F. J. Gould. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) 4 d. The Origins of Christianity.

By Thomas Whittaker. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) 3/6 net. Philosophy and Christianity.

By David Irvine. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) 1/6 net. A Nirvana Trilogy on J[ames] Thomson

By William Maccall. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) 6 d. A Critical Essay on the Philosophy of History.

By Thomas Whittaker. (R[ationalist] P[ress] A[ssociation]) 6 d. The New Philosophy of History. (preface to “Isis and Osiris”).

By J. S. Stuart-Glennie. 1873. (ask about “The Modern Revolution”).

Plays of J[ohn] M[illington] Synge. Pocket Edition. 4 vols. (French) – 10/- net.

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201

Anexo II

Livros da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa com referência a autores ou tradições de matriz oriental

Classe 0 (Generalidades)

(The) Aryan Path, vol. 2, n.º 2, Bombay, February, 1931. (CFP, 0-27 LMR).

Classe 1 (Filosofia. Psicologia)

FLETCHER, Ella Adelia (1913). The Law of the Rhythmic Breath: teaching the

generation, conservation, and control of vital force. London: William Ryder & Son, Limited. 372, [16] p. (CFP, 1-44).

GAULTIER, Jules de (1910). De Kant à Nietzsche. 4ème ed. Paris: Mercure de France.

356, [8] p. (CFP, 1-52). LEADBEATER, Charles Webster (1911). Clairvoyance. 3rd ed. London: The

Theosophical Publishing Society. 181 p. (CFP, 1-85). MEAD, George Robert Stow (1913). Quests Old and New. London: G. Bell & Sons,

Ltd. 338 p. (CFP, 1-105). VATSYAYANA, Mallanaga [1891]. Le Kama Soutra: régles de l’amour de Vatsyayana

(morale des brahmanes). Traduit par Pierre Eugène Lamairesse. Paris: [s.n.]. 297 p. «Théologie hindoue». (CFP, 1-155).

(The) Voice of the Silence: and other chosen fragments from the Book of the Golden

Precepts (1913). Trad. H[elena] P[etrovna] B[lavatsky]. Eight reprint. London: Theosophical Publishing Society. 100 p. (CFP, 1-172 MN).

Classe 2 (Religião. Teologia)

ANESAKI, Masaharu (1907). Religious History of Japan: an outline with two

appendices on the textual history of the Buddhist scriptures. Tokyo: [s.n.]. 74, [2] p. «Revised for private circulation from the article written for the Encyclopedia Americana». (CFP, 2-2).

JEREMIAS, Alfred (1902). The Babylonian Conception of Heaven and Hell. Translated

by J. Hutchison. London: David Nutt. 52 p. «The Ancient East, n.º 4». (CFP, 2-26).

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202

MALVERT [pseud.] (1903). Resumo da História das Religiões. Versão de Heliodoro

Salgado. Lisboa: Minerva do Commercio. 36 p. «Associação do Registo Civil». (CFP, 2-36).

ROBERTSON, John Mackinnon (1902). A Short History of Christianity. London:

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Page 190: INTRODUÇÃO - repositorio.ul.ptrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/7397/2/ulsd064160_td_tese.pdf · reconhece a unidade como multiplicidade, o todo como fragmentos, o monólogo como

203

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Classe 9 (Geografia. História. Biografia)

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