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1 Introdução 1. Contextualização e apresentação do tema A cidadania está “na moda” e raro é o dia em que não se ouve falar dela. O Estado Português interessa-se pelos direitos e deveres do seu povo 1 , a União Europeia zela pelo cidadão europeu 2 , sendo de salientar a preocupação em preparar o cidadão para a “aldeia global” 3 . Até há quem fale “de cidadania no masculino e no feminino, porque é aí que tudo se gera” (Prazeres, 2008, Agosto, p. 34). Hoje em dia, quem ignore esta temática corre o risco de viver à margem da sociedade. Ora, a escola insere-se na sociedade, à qual pertence e da qual depende (Proença, 1990; Perrenoud, 2005), portanto “comporta no seu seio os mesmos conflitos, as mesmas diferenças e os mesmos desafios que existem na sociedade em geral” (Perrenoud, 2002, p. 89), “reproduzindo, assim, aí, o caldo de cultura que está na base da chamada complexidade social” (Lúcio, 2008, p. 18). Para além disso, a sociedade está em permanente mudança e a escola, “por natureza uma instituição com funções de passagem cultural e socialização” (Roldão, 1999a, p. 16), tem um ritmo de mudança mais lento, que dificilmente responde com adequação às necessidades do momento, o que justifica as queixas que habitualmente se ouvem acerca da ineficácia da escola (Roldão, 1999a). Assim, o empenho em tornar acessível o conhecimento a um público muito diversificado e em tempo útil, tem exigido um grande esforço de adaptação, tanto da escola, como dos professores (Proença, 1990; Roldão, 2005). Foi lançado à escola o repto de definir como objectivo seu a educação para a cidadania de sucesso, podendo ser essa a resposta aos complexos e diversos problemas 1 Na Constituição da República Portuguesa, a palavra “cidadania” vem mencionada 6 vezes e “cidadão/cidadãos” 177 vezes (Lei Constitucional nº 1/2005, de 12 de Agosto). 2 A cidadania europeia foi estabelecida pelo Tratado de Maastricht, assinado a 07/02/1992 (Parte II, Artigos 17º a 22º) (http://ec.europa.eu/youreurope/nav/es/citizens/citizenship/citizenship/index_pt.html consultado em 08/08/2008). 3 A título de exemplo, o projecto Educating the global citizen - globalization, educational reform and politics of equity and inclusion in 12 countries. The Portuguese case, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e que tem como investigador responsável António Teodoro, procura saber em que medida a globalização está a afectar as reformas educacionais (http://www.eduglobalcitizen.net/index.php consultado em 08/08/2008).

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Introdução

1. Contextualização e apresentação do tema

A cidadania está “na moda” e raro é o dia em que não se ouve falar dela. O

Estado Português interessa-se pelos direitos e deveres do seu povo1, a União Europeia

zela pelo cidadão europeu2, sendo de salientar a preocupação em preparar o cidadão

para a “aldeia global”3. Até há quem fale “de cidadania no masculino e no feminino,

porque é aí que tudo se gera” (Prazeres, 2008, Agosto, p. 34). Hoje em dia, quem ignore

esta temática corre o risco de viver à margem da sociedade.

Ora, a escola insere-se na sociedade, à qual pertence e da qual depende (Proença,

1990; Perrenoud, 2005), portanto “comporta no seu seio os mesmos conflitos, as

mesmas diferenças e os mesmos desafios que existem na sociedade em geral”

(Perrenoud, 2002, p. 89), “reproduzindo, assim, aí, o caldo de cultura que está na base

da chamada complexidade social” (Lúcio, 2008, p. 18). Para além disso, a sociedade

está em permanente mudança e a escola, “por natureza uma instituição com funções de

passagem cultural e socialização” (Roldão, 1999a, p. 16), tem um ritmo de mudança

mais lento, que dificilmente responde com adequação às necessidades do momento, o

que justifica as queixas que habitualmente se ouvem acerca da ineficácia da escola

(Roldão, 1999a). Assim, o empenho em tornar acessível o conhecimento a um público

muito diversificado e em tempo útil, tem exigido um grande esforço de adaptação, tanto

da escola, como dos professores (Proença, 1990; Roldão, 2005).

Foi lançado à escola o repto de definir como objectivo seu a educação para a

cidadania de sucesso, podendo ser essa a resposta aos complexos e diversos problemas 1 Na Constituição da República Portuguesa, a palavra “cidadania” vem mencionada 6 vezes e “cidadão/cidadãos” 177 vezes (Lei Constitucional nº 1/2005, de 12 de Agosto). 2 A cidadania europeia foi estabelecida pelo Tratado de Maastricht, assinado a 07/02/1992 (Parte II, Artigos 17º a 22º) (http://ec.europa.eu/youreurope/nav/es/citizens/citizenship/citizenship/index_pt.html consultado em 08/08/2008). 3 A título de exemplo, o projecto Educating the global citizen - globalization, educational reform and politics of equity and inclusion in 12 countries. The Portuguese case, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e que tem como investigador responsável António Teodoro, procura saber em que medida a globalização está a afectar as reformas educacionais (http://www.eduglobalcitizen.net/index.php consultado em 08/08/2008).

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sociais da actualidade, inerentes à democratização e massificação do ensino (Lúcio,

2008). No entanto, o panorama não é risonho, pois as democracias do mundo ocidental

apresentam sinais de crise. A sua sobrevivência depende da capacidade crítica que cada

indivíduo revela em relação às ideias que vão sendo transmitidas, bem como da sua

capacidade em ultrapassar os interesses pessoais e considerar o outro. Têm sido

trilhados caminhos importantes nesse âmbito, mas há fracassos a registar. E, embora

essa assumpção das falhas seja fundamental para se prosseguir, não é suficiente. Há que

reflectir sobre o que foi feito, com que objectivos, reformular o que for necessário,

traçar novas metas, definir estratégias e avançar (Fonseca, 2001).

Esperava-se que a escola fosse uma espécie de antídoto para muitos dos

problemas diagnosticados na sociedade, como são exemplo o enfraquecimento dos laços

sociais e a violência urbana. No entanto, a escola foi, também ela, afectada pela

desordem e pela violência, sendo esta resultado dos estigmas que a sociedade inflige

nos alunos (Perrenoud, 2002).

Portugal partilha com outros países a preocupação com estas questões. E,

consciente das potencialidades da escola, atribuiu à educação para a cidadania um

carácter transversal a todas as áreas do saber, sendo transdisciplinar no ensino básico

(Decreto-lei nº6/2001, de 18 de Janeiro). Mas, a aprendizagem da cidadania nem

sempre tem sido bem sucedida, como o comprova a violência quotidiana, de que é

exemplo o episódio recente (dia 12 de Março passado), amplamente divulgado pelos

meios de comunicação social, que ocorreu na Escola Secundária/3 Carolina Michaelis

(Porto). Tratou-se de uma cena de violência numa sala de aula, filmada por um aluno no

seu próprio telemóvel e, posteriormente, partilhada no site YouTube4. Concretamente,

uma adolescente tentava recuperar o seu telemóvel das mãos da professora, que lho

havia tirado, por aquela o estar a utilizar durante o tempo lectivo. A disputa verbal e

física entre ambas foi presenciada pelos restantes elementos da turma que, no início,

foram espectadores, limitando-se a emitir risos e comentários. Num segundo momento,

alguns tentaram intervir para acalmar a situação, mas os restantes mantiveram-se

passivos e as filmagens continuaram (Leiria, 2008, Março).

4 Disponibilizado no dia 20 de Março de 2008, sob o título de 9ºC em grande, no site http://www.youtube.com/watch?v=5jubEHdCzYI.

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Este episódio, que chocou o país, inspirou reflexões preocupadas. Os aspectos

negativos são notórios, embora tivesse igualmente o mérito de agitar a geralmente

acomodada opinião pública com questões relacionadas com os problemas da educação

em Portugal, trazendo-os para a ordem do dia. Provocou um debate que extravasou os

meios restritos das elites intelectuais e/ou políticas, alargando-se ao cidadão anónimo,

ouvindo-se comentários a esse respeito nos meios de comunicação social, nos

transportes públicos, nas mesas dos cafés… Afinal, todos têm filhos, netos, sobrinhos,

amigos… na escola, que poderiam ter estado expostos a situações semelhantes.

Numa tentativa para perceber as causas do insucesso da educação para a

cidadania no nosso país, talvez se deva recuar uns anos, ainda que com brevidade.

Durante quase meio século, Portugal esteve mergulhado numa ditadura que deixou

marcas no ensino. Os valores nacionalistas eram inculcados de modo submisso e

perpetuados geração após geração, uma vez que a nação lusa, “orgulhosamente só”, se

fechou às influências estrangeiras, isolando-se num “paraíso triste”, como lhe chamou

Saint-Exupéry. A guerra colonial ajuda a abrir as portas à Revolução do 25 de Abril,

que devolve a democracia ao país (Beltrão & Nascimento, 2000). Os primeiros passos

hesitantes mas ousados, embora por vezes excessivos, do recém-nascido regime,

integraram mudanças no ensino, no sentido de aliar a criatividade à descoberta de novos

caminhos (Sampaio, 1999). Sob o signo da utopia, apanágio dos períodos

revolucionários, ambicionava-se “construir uma sociedade nova, uma escola nova e um

homem novo” (Pintassilgo, 2007, p. 61). Este é um dos períodos em que a cidadania

surge aliada à alfabetização, pois acreditava-se que a “liberdade estava intimamente

ligada ao conhecimento” [Vasco Gonçalves] (A.M., 1975, Maio5) e que “o

analfabetismo é uma marcha mítica e fatalista na sociedade portuguesa, é um nevoeiro

sebastianista em que se resguarda o real” (Moura, 1997, Novembro6). Assim, era

necessário alfabetizar, não só para a aquisição das competências de leitura e escrita,

como também para empreender uma mudança de mentalidades, que valorizasse a

capacidade de uma participação activa e consciente (Mogarro & Pintassilgo, 2006). De

facto, a educação para a cidadania foi alvo da preocupação dos governos no período

pós-revolução, embora fosse, posteriormente, desvalorizada (Sampaio, 1999).

5 A.M. (1975, Maio). Revolução cultural. Do exercício da alienação para o exercício da liberdade. O Professor, 8, 20-21. Citado por Pintassilgo, 2007, p. 62. 6 Moura, H.C. (1977, Novembro). Alfabetização. Participação das populações. O Professor, 2 (Nova série), 30. Citado por Pintassilgo, 2007, p. 63.

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Em Portugal, acresce que a sociedade mudou radicalmente, embora a escola não

se tenha alterado significativamente, nem na sua estrutura, nem nos padrões de

funcionamento, agravando o desfasamento existente, o que pode “transformar a escola

num enorme agente bloqueador, em vez de promotor da real educação dos cidadãos”

(Roldão, 1999a, p. 16).

Com a promulgação da Lei de Bases do Sistema Educativo7 em 1986 e a

reforma curricular em 1989, inicia-se um período de maior estabilidade no ensino,

embora não se concretizassem de forma significativa as soluções apontadas para a

educação para a cidadania. Por outras palavras, a disciplina de Desenvolvimento

Pessoal e Social, a Educação Cívica e a Área-Escola funcionaram esporadicamente

(Sampaio, 1999). Uns anos mais tarde, o Decreto-lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro, lança a

Gestão Flexível do Currículo, ainda hoje em vigor, no qual a cidadania aparece como

objectivo transversal no currículo e como objecto da área curricular não disciplinar de

Formação Cívica, como já referido anteriormente. “Por tudo isto, a educação para a

cidadania é hoje, mais do que uma necessidade, uma exigência dos agentes educativos”

(Henriques et al., 2006, p. 7).

E são preocupantes os sintomas de demissão do «bem comum» diagnosticados

no povo português, nomeadamente os baixos níveis de participação na vida política e o

elevado abstencionismo nas eleições (Soares, 2003; Henriques et al., 2006); o défice

cívico das crianças e dos jovens portugueses, que demonstraram não estar interessados

em se assumir como cidadãos activos, participativos, apoiando o regime democrático,

embora desconfiados do seu funcionamento, preferindo afastar-se dos centros de

decisão políticas8 (Fonseca, 2001). O actual Presidente da República Portuguesa, Aníbal

Cavaco Silva, constatou isso mesmo no seu habitual discurso proferido no Parlamento,

aquando das comemorações do 25 de Abril deste ano. O Chefe de Estado fez referência

a um estudo científico, encomendado à Universidade Católica, As atitudes e

comportamentos políticos dos jovens em Portugal. Mais precisamente, foram colocadas

7 Lei nº 46/1986, de 14 de Outubro, que salienta a importância e a necessidade da educação para a cidadania, definindo o perfil do cidadão ideal: livre, responsável, autónomo, solidário, valorizando a dimensão humana do trabalho (Capítulo I, Artigo 2º, Alíneas 4), possuidor de um espírito democrático, pluralista, respeitador dos outros e suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, possuidores de espírito crítico e criativo em relação ao meio social que integram e em relação ao qual devem empenhar-se na sua transformação progressiva (Capítulo I, Artigo 2º, Alíneas 5). 8 Dados mencionados por Fonseca (2001), referentes a um estudo elaborado por Menezes, I (1995). Educação Cívica em Portugal: Estudo preliminar, Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.

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três perguntas, a saber: qual era o número de Estados da União Europeia; quem foi o

primeiro Presidente da República eleito depois do 25 de Abril; se o PS dispunha ou não

da maioria absoluta no Parlamento. “«Pois, senhores deputados, metade dos jovens

entre os 15 e os 19 anos e um terço entre os 18 e os 29 anos não foi sequer capaz de

responder correctamente a uma única das três perguntas», disse e repetiu” (Botelho,

2008, Abril, p. 2). De seguida, renovou um apelo feito noutra ocasião “para que os

cidadãos tomem o futuro nas suas mãos e participem nas soluções.” (Botelho, 2008,

Abril, p. 2).

O eclipse da família pode ser apontado como uma das explicações para tal

atitude por parte dos jovens. A melhoria do nível de vida dos portugueses, devido ao

crescimento económico e ao aumento do poder de compra, gerou um consumismo

exagerado, sendo comum ouvir referências ao sobre-endividamento das famílias. Para

além disso, passou-se a enaltecer um estilo de vida baseado nas aparências e no

egocentrismo. Não alheios a estes fenómenos estão os meios de comunicação, cujo

alcance se torna maior devido à incapacidade das famílias e/ou das escolas em

contraporem como referência um código de valores (Soares, 2003).

Segundo Fernando Savater (2006), antes de chegarem à escola as crianças já

passaram pela experiência educativa do ambiente familiar, ou seja, pela socialização

primária. A escola será o local para a socialização secundária, onde se adquirem

conhecimentos e competências de alcance mais especializado. Mas, a primeira

compromete a segunda e, como agravante, “enquanto a função educativa da autoridade

paterna se eclipsa, a educação televisiva conhece uma intensidade cada vez maior,

oferecendo sem esforço nem pudores que descriminem o produto exemplarizante

outrora manufacturado pela actividade artesanal familiar hierarquizada.” (Savater, 2006,

p. 77). Se as crianças aprendem as virtudes por imitação, então a longa exposição diária

ao lixo televisivo, da internet e dos jogos de computador com violência e crueldade,

propicia o desenvolvimento de efeitos nefastos no carácter (Marques, 2008).

O facto de a família não estar a cumprir as tarefas que lhe foram destinadas, tem

como consequência o aumento do campo de actuação e da responsabilidade da escola.

Assim, o professor tem a responsabilidade acrescida de ajudar as crianças a organizar a

informação a que têm acesso mais ou menos indiscriminado, fornecendo-lhes

instrumentos cognitivos para que a possam combater, torná-la benéfica ou menos

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prejudicial. Por outras palavras, a transmissão de valores e de referências outrora

iniciadas no seio familiar, quando não estão entregues ao imprevisto, foram, em muitos

casos, transferidas para a escola. Esta situação acarreta outros problemas, como “a

sobrecarga de funções tem retirado aos professores energias e tempo para o desempenho

da função fundamental: o ensino” (Marques, 1998, p. 14).

É igualmente de considerar o facto de, nas sociedades desenvolvidas actuais, a

opinião pública e a classe política pretenderem uma escola eficaz, capaz de preparar

para a vida, sem implicações pesadas no erário público. Fruto da democratização do

ensino, regista-se uma procura crescente pela escola, embora os resultados não sejam os

desejados, uma vez que a um nível superior de escolaridade os jovens não têm

correspondido com comportamentos mais tolerantes e mais responsáveis. Para além

disso, os diplomas perderam o prestígio de outrora e já não são garantia de emprego

que, por sua vez, tem diminuído. Assim, as famílias debatem-se com um problema sem

fácil resolução. Por um lado, os pais pressionam os filhos no sentido de obterem sucesso

escolar, por outro os jovens não acreditam que seja esse o caminho para vencerem as

dificuldades com que se vão deparar. Então, reserva-se para a escola uma missão quase

impossível, ou seja, formar uma juventude que não acredita que a escolaridade lhe

assegure o futuro (Perrenoud, 1999).

Realmente a escola reconhece a importância de educar para a cidadania,

nomeadamente na luta contra a desagregação social, mas muitas vezes limita os seus

esforços à via cognitiva, através da transmissão de conhecimentos úteis, como regras de

conduta social, informações sobre o sistema político ou história das instituições ou

quem se destacou... esquecendo que “não é por reflexo condicionado que se aprende a

ser cidadão, mas também não é através de “aulas” cheias de referências distantes dos

problemas que afectam as vidas dos seres humanos que, no concreto, nos rodeiam”

(Fonseca, 2001, pp. 7-8).

Sendo professora de História do Ensino Básico e Secundário, estes episódios,

nomeadamente o sucedido na Carolina Michaelis e o discurso do Presidente da

República, relembraram-me algumas das preocupações que tenho relativamente ao

ensino, ou seja, a educação para a cidadania numa escola em mudança, de modo a poder

dar resposta aos novos desafios lançados pela sociedade actual, também ela em

mutação. Que a legislação reserva às escolas um espaço para educar no âmbito da

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cidadania, é um facto. O que se passa na prática, essa é outra questão, para cuja resposta

pretendo dar um contributo com esta dissertação, Aprender cidadania no Ensino Básico

com a disciplina de História: três percursos no concelho de Odemira.

2. Relevância, pertinência e motivação

A investigação começa com a identificação de um problema que inquieta e que é

traduzido em questões (uma ou várias), para as quais se pretende dar resposta

(Tuckman, 2002; Pacheco, 2006). A origem desta dissertação de mestrado esteve numa

curiosidade antiga. Desde os tempos em que era apenas aluna, que me cativavam os

fenómenos que tinham lugar na sala de aula e que iam além da mera aprendizagem dos

conhecimentos científicos. Lembro-me como atraía a minha atenção o modo como o/a

professor/a entrava, a sua disposição, o que trazia vestido, como saudava os alunos,

indicadores de como a aula ia prosseguir. Podia ser interessante, envolvente e com

oportunidade para “umas piadas”. Outras vezes era melhor permanecer atento e ficar

quieto, pois o terreno era movediço. Reparava nas questões relacionadas com o

comportamento e as atitudes dos colegas e do professor, a reacção de todos às

provocações que, aqui e ali, iam surgindo, a consideração mútua que se ia

estabelecendo, o respeito pelas tais fronteiras, não visíveis mas reais, que separavam

alunos de alunos e estes do professor. Mais tarde, vim a perceber que o que polarizava o

meu interesse eram questões relacionadas com a educação para a cidadania. Se a

escolha da licenciatura em História não foi estranha a estas razões, quanto à do

mestrado não tenho dúvidas.

Reflectir sobre a prática profissional, pensar sobre o que se fez, o que se faz e o

que poderá ser feito, tem sido uma preocupação constante ao longo da minha carreira. O

mestrado surgiu como um momento privilegiado para o poder fazer de um modo mais

sistemático, fundamentado e acompanhado. As leituras indispensáveis, a actualização

implícita, a troca de ideias com professores e colegas, o acesso a contextos educativos

diferenciados, constituiram um fermento que catalisou essa análise individual,

permitindo “desconstruir e explicar para compreender” (Roldão, 2004, p. 5). Contribuir

para que os alunos sejam cidadãos conscientes, críticos e activos, melhorando,

simultanemamnte a prática lectiva, beneficia os alunos e constitui um desafio aliciante.

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Odemira não foi uma escolha aleatória. Foi o concelho que acolheu a maioria

dos anos da minha prática lectiva e ao qual estou ligada através de laços familiares.

Estudar uma região conhecida, permite contextualizar melhor os dados recolhidos,

havendo como que um descodificador natural facilitador da compreensão das

mensagens, permitindo de uma forma mais clara aferir o meio. Os perigos da demasiada

proximidade estão acautelados, pois numa das escolas nunca trabalhei e a outra deixei-a

há sete anos atrás, com uma realidade diversa da actual. Na época participei na

preparação da implementação da Gestão Flexível do Currículo, apenas efectivada no

ano seguinte à minha saída. Para além disso, a opção por uma região geográfica

conhecida permitiu resolver as questões relacionadas com os limites de tempo impostos

pelo mestrado.

Quanto à opção pela disciplina de História do 3º Ciclo do Ensino Básico, deve-

se ao facto de ter sido o denomidador comum dos anos que leccionei. Mesmo sem

querer, a rotina vai-se instalando, com as vantagens e inconvenientes implícitos. Se por

um lado facilita a planificação de actividades, simplificando a inter e

transdisciplinaridade, por outro permite (des)cansar, podendo pôr em causa a

criatividade e abrindo as portas à monotonia, pois “infelizmente, de rotinas não

interrogadas é feito muito do quotidiano dos professores e das escolas” (Roldão, 2004,

p. 5). Assim, aprofundar as potencialidades do currículo de História do 3º Ciclo do

Ensino Básico, com a tónica na cidadania, enriquecido com as experiências de outros

colegas, pode ser o gatilho que despolete a criatividade, promotora de inovação.

A presente dissertação teve ainda como motivação mostrar a importância e

polivalência que a História tem no currículo. Deste modo, penso contribuir para que o

ensino desta disciplina ultrapasse a situação de risco em que se encontra, por ser uma

disciplina pouco escolhida pelos alunos e encarregados de educação, que consideram ser

uma área que não lhes garante o futuro (Veríssimo, 2008, Março). Ora, a História, não

se esgota no conhecimento e compreensão crítica do passado e do presente, facilitadores

das projecções para o futuro. É uma área com “particular sensibilidade para a mudança,

importante para a realização plena dos indivíduos, o exercício da cidadania, a aceitação

da multiculturalidade e o desenvolvimento sustentado da sociedade” (ISCTE, 2007).

Esta disciplina “dá aos jovens a possibilidade de analisar fontes com perspectivas

diversas, interpretar visões, compreender intenções, debater opiniões, ou seja, construir

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uma prática de cidadania” (Veríssimo, 2008, Maio). Todas as disciplinas contribuem

para o ambiente onde se aprende a ser cidadão, mas a História fornece o contexto e

estrutura.

3. Organização do estudo

Esta dissertação, Aprender cidadania no Ensino Básico com a disciplina de

História: três percursos no concelho de Odemira, inicia-se com a introdução, onde se

apresenta e contextualiza o tema, fala-se da relevância, pertinência e motivação e expõe-

se a organização do estudo, em quatro capítulos.

No capítulo 1 – A Educação para a cidadania e a disciplina de História -, faz-se

a revisão da literatura de acordo com os objectivos a atingir. Assim, clarificam-se e

discutem-se conceitos como cidadania, currículo, valores e competências. Aborda-se a

educação para a cidadania na Gestão Flexível do Currículo, concretizando a escola

enquanto espaço de cidadania e o papel dos professores na cidadania. Por fim,

apresentam-se as razões para ensinar/aprender História e o modo de o fazer,

particularizando como aprender cidadania com a disciplina de História.

No capítulo 2 – O Estudo - formulam-se o problema, os objectivos e as questões

de investigação, descrevem-se e justificam-se as opções metodológicas.

No capítulo 3 – Análise e discussão dos dados – é feita a caracterização dos

participantes, das escolas e do meio envolvente, analisados e discutidos os dados

obtidos nas entrevistas.

No capítulo 4 – Reflexões finais - apresentam-se as conclusões e reflexões que

foram surgindo ao longo do estudo, respondem-se às perguntas que nortearam esta

dissertação, referem-se as limitações do estudo, fazem-se sugestões para futuras

investigações e termina com uma reflexão pessoal.

Por último, acrescentam-se os apêndices e as referências bibliográficas.

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Capítulo 1. A Educação para a cidadania e a disciplina de História 1.1. Cidadania

Cidadania. Questionei-me demoradamente acerca do seu significado. Não que

fosse novidade, nem como vocábulo, nem nas práticas que lhe estão associadas, mas a

noção adquirida até à data, conscientemente insuficiente, incomodava ao ponto de

suscitar um conhecimento mais profundo dessa “palavra, que estava quase fora de uso e

está de novo na moda” (Perrenoud, 2002, p. 26).

O tema da cidadania deixou-me por muito tempo não indiferente, mas ambivalente. . . . Só podia conhecer a sua importância como pano de fundo, . . . mas causavam-me, e ainda me causam, exasperação os efeitos do modismo e o aspecto encantatório dos apelos a uma «educação para a cidadania»” (Perrenoud, 2005, p. v).

No final da década de 90 do século XX, a cidadania parece ter entrado de

rompante e, de forma abrupta, invade o vocabulário educacional, correndo o risco de se

banalizar (Figueiredo, 2002; Menezes, 2005). Renovado o convite para reflectir acerca

desta temática nesta dissertação, experimentei, mais uma vez, a sensação de estar

perante um conceito polissémico “ao mesmo tempo simples e complexo, acessível e

impalpável” (Letria, 2000, p. 10).

Depois de várias leituras realizadas, de palavras trocadas com professores,

colegas e amigos, enquanto reflectia acerca deste conceito, ocorreu-me uma

comparação. Quando se contempla uma praia, difícil é ignorar as rochas que se abeiram

do mar ou o que restou delas, a areia. E quem não a conhece? Está ao alcance de todos,

disponível para quem a quiser, podendo ser contemplada de longe, mas convidativa a

uma aproximação. Tal como a cidadania, quando se vive em sociedade.

Perguntei, informalmente9, o que se entendia por areia e por cidadania,

separadamente. Todos conheciam as palavras, no entanto, quando confrontados acerca

do seu significado, a reacção foi contornar a resposta, aludindo ao facto de não haver

necessidade de especificar o que é de conhecimento geral, remetendo-se para

9 Fiz esta experiência várias vezes, apenas em conversas informais entre amigos e colegas.

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relacionamentos evasivos, como a praia, a proximidade do mar, as construções e

brincadeiras… no caso da areia. Com a cidadania aconteceu algo de semelhante, sendo

referidas palavras como direito, dever, respeito, participação, democracia,

responsabilidade, educação, disciplina, solidariedade10, integração e acção na sociedade,

etc.

De longe, o areal parece uma imensidão branca, mas apreciado de perto,

distinguem-se os pequeníssimos grãos das cores das variadas rochas que lhe deram

origem. Também a cidadania, pode ser tida como um todo composto por várias partes,

tendo em conta a diversidade de pessoas existentes numa sociedade, ou, considerando

por outro prisma, a cidadania civil, política, social, ambiental...

No início do dia, o areal levemente ondulado parece novo a estrear, pois o vento

e a água trataram de o alisar, renovando a oportunidade de se sentir a impressão de ser o

primeiro a experimentá-lo. No final do dia, o tapete serpenteado deu lugar a uma

amálgama de pegadas anónimas, marcas de todos quantos por ali passaram. E raro será

aquele que não leva consigo um pouco de areia agarrada a si. Se estivermos atentos,

todos os dias nos surgem situações, aparentemente novas, relacionadas com a cidadania,

transmitindo, por vezes, a sensação de se ser pioneiro nessas experiências, que se

enriquecem com o contributo de cada um e que ficarão registadas na memória de todos.

Quem se aproximar da beira-mar, pisa o areal, macio e informe, que oferece

alguma resistência ao andar, se comparado com a dura calçada ou o escuro alcatrão.

Quando se vive em sociedade, atento aos aspectos relacionados com cidadania, sente-se

alguma reacção por parte daqueles que apenas se concentram em resolver os seus

próprios assuntos, esquecendo olhar em seu redor.

E qual a sensação que se experimenta ao agarrar a areia? Parece fácil, ali mesmo

ao pé, à discrição. Conseguimos tê-la na mão, mas se não se tiver cuidado, escorrega

por entre os dedos. Também a cidadania se esvai, se não estivermos atentos.

Actualmente, cidadania é uma expressão de uso corrente, apesar de ser um

conceito complexo, problemático e ambíguo (Nogueira & Silva, 2001). A

10 Estas nove palavras foram as referidas pelos três participantes do estudo, aquando da entrevista, embora algumas delas fossem igualmente mencionadas nas referidas conversas.

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multiplicidade das interpretações e a pluralidade dos sentidos11, favorece o uso abusivo,

que pode comprometer a “bondade intrínseca” com que aparece no discurso educativo,

que provém da possibilidade de “salvar” as relações entre o Estado e o indivíduo

(Menezes, 2005). Em permanente evolução, tem raízes num passado longínquo e uma

história para contar. Este conceito que “nasce com a transformação de súbdito em

cidadão” (Henriques et al., 2006, p. 15) evoluiu conforme o papel que os indivíduos

foram assumindo na sociedade.

Assim, remontando à Antiguidade Clássica, o conceito de cidadania surge no

seio do regime democrático, ligado à comunidade de cidadãos, responsáveis pelo

governo da cidade-estado e pelas leis que os regiam. Por outras palavras, abrangia

apenas cerca de 10% da população, uma vez que os metecos, as mulheres e os escravos

estavam excluídos. (Paixão, 2000). Na Roma Antiga, durante a República, a cidadania

era considerada uma honra, um estatuto que conferia regalias e distinguia quem o

possuía (Beltrão & Nascimento, 2000). Para além disso, desempenhou uma função

integradora nos territórios conquistados e não abrangia o poder político entregue à

aristocracia. Assim, eram cidadãos os indivíduos do sexo masculino, homens livres e

chefes de família, que usufruíam em pleno dos seus bens, o que para a maioria

significava observância às leis (Henriques et al., 2006).

Durante a Idade Média, dominou o teocentrismo e as relações feudo-vassálicas,

época em que os soberanos mantinham com os seus súbditos, vínculos perpétuos de

dependência, empurrando a cidadania para um período de hibernação. A animação do

comércio e progressiva afirmação da burguesia acordou a cidadania latente, que foi

despertando nas comunas, corporações e universidades (Paixão, 2000; Henriques et al.,

2006).

No final da Idade Moderna, como reacção contra as restrições impostas pelo

absolutismo régio e a sociedade de ordens, ressurgiu com força a ideia de cidadania. São

disso sinal evidente as revoluções dos séculos XVII e XVIII (Revolução Inglesa, 1688;

Revolução Americana, 1774-76; Revolução Francesa, 1789), bem como a Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Os princípios aí enunciados inspiraram a

actual concepção de cidadania, baseada na “soberania da Nação e da Lei, na igualdade

11 O texto “Educar para a cidadania pode ser…” de Maria Odete Valente (2001) é esclarecedor desta multiplicidade.

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de todos os cidadãos” (Paixão, 2000, p. 5), ideias mais tarde retomadas pela ONU, em

1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É de salientar que o vínculo de

cidadania passou a ser entre o indivíduo e a comunidade, participando aquele nos

destinos desta, substituindo a outrora existente relação de subordinação e dominação, do

soberano para com o súbdito (Henriques et al., 2006). Cidadania não é mais um

privilégio ou uma opção, pois é outorgada automaticamente na maioridade cívica

(Perrenoud, 2002).

Ao longo do século XX, as Guerras Mundiais, a Guerra Fria, o fim desta

conduzem à afirmação das democracias por oposição aos totalitarismos. A solidariedade

humana institucionaliza-se através das lutas das minorias. O mundo avança rapidamente

impulsionado pelo progresso da ciência e da técnica. É o século da massificação, do

diálogo Norte-Sul, das contestações da juventude (movimento hippy e Maio de 68) que

apelam à justiça, liberdade, igualdade, felicidade para todos contra as políticas

belicistas. Espera-se das escolas uma mudança de atitude, no sentido da autenticidade e

tolerância, por oposição ao autoritarismo e rigidez do período anterior (Beltrão &

Nascimento, 2000).

Tradicionalmente, na herança da Revolução Francesa, ser cidadão está

relacionado com a defesa de uma identidade nacional, por outras palavras, ter uma

língua, território, história, religião, tradições, leis, sentimentos e crenças em comum,

simbolizados por uma bandeira e um hino. Durante o século XX, esta ideia do Estado-

Nação foi renovada e deu origem aos Estados plurais, isto é espaços transnacionais,

multiculturais, multilingues, cuja influência política, em alguns casos, ultrapassa a

Nação (Paixão, 2000; Cibele, 2002). Assim, “é necessário que se incentive o gosto

pela(s) comunidade(s) (locais, nacionais, transnacionais) de forma a que se seja capaz

de accionar o sentido crítico, sem com isso quebrar o elo de pertença” (Cibele, 2002, p.

42).

O aparecimento de espaços supra-estaduais, como a União Europeia,

contribuiram para a erosão da soberania do Estado. Assim, o conceito de cidadania

passou a contemplar a defesa de um destino comum, incluindo progressivamente outros

direitos para além dos humanos, como os individuais, cívicos, políticos, sociais,

económicos, culturais, e os denominados direitos das novas gerações, ou seja, os

ambientais, aqueles que conduzam à paz e ao desenvolvimento sustentável (Paixão,

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2000; Henriques et al., 2006). No entanto, no que diz respeito aos direitos humanos e

fundamentais, de modo a promoverem a inclusão no Estado democrático, têm-se vindo

a impôr de fora para dentro, de cima para baixo, o que dificulta a interiorização

individual (Soares, 2003).

Assim, actualmente, o forte apelo da globalização conduz à padronização, por

um lado; mas, por outro lado, confunde, na medida em que priva o indivíduo dos

elementos estáveis na percepção da diversidade e da fragilidade das suas crenças

(Soares, 2003). Vive-se numa época de crise generalizada de valores, com um ritmo de

mudança civilizacional acelerado, em que os regimes democráticos defendem a abertura

da escola a todos, combatendo o analfabetismo, pois a informação permite uma opção

esclarecida e consciente (Beltrão & Nascimento, 2000).

O poder de escolha faz tomar dolorosamente consciência de que poder escolher não implica saber escolher. E, no entanto, é necessário aprender a fazê-lo porque cada vez mais as escolhas influenciam, não apenas os destinos individuais, mas também os destinos colectivos (Beltrão & Nascimento, 2000, p. 23).

A multifacetada sociedade actual é exigente para com o cidadão, pedindo-lhe

uma atitude crítica, ou mesmo interventiva, pois a sua participação pode reflectir-se a

nível das instituições em que colabora, mas também pode ter repercussões a nível

nacional (Soares, 2003).

Nunca o cidadão foi tão vigiado, controlado e socialmente comprometido como hoje, o que o obriga a uma preparação específica em termos pessoais e sociais para conciliar o seu projecto de vida e a sua liberdade com as exigências da sua comunidade, seja ela a sua cidade, o seu país ou o mundo (Soares, 2003, p. 9).

Num esforço de definir o conceito, cidadania é uma criação humana (Henriques

et al., 2006), é uma qualidade (Figueiredo, 2001; Espinha, 2007), um atributo

(Henriques et al., 2006), um estatuto de pertença (Perrenoud, 2003; Audigier, 2006:

Henriques e tal., 2006; Mogarro & Martins, 2007) dos indivíduos inseridos num espaço

político (Fonseca, 2001; Audigier, 2006) e que participam em instituições sociais

(Fonseca, 2001). É um vínculo jurídico-político entre o indivíduo e um Estado, que se

traduz num conjunto de direitos e obrigações (Figueiredo, 2001; Henriques et al., 2006;

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Mogarro & Martins, 2007), “nomeadamente o direito de participar na formação da

vontade soberana e as obrigações cívicas, fiscais e de defesa” (Henriques et al., 2006, p.

399). “É uma caminhada contínua pela conquista de direitos para todos” (Afonso,

2005).

Decorrente do carácter polissémico de cidadania, há uma multiplicidade de

temáticas que lhe são afins, tais como concepções e atitudes sobre o Estado e a

nacionalidade, relativas à religião, às diferenças de raças, etnias e culturas, relacionadas

com a estrutura e o papel da família e questões de género, com a saúde, com os valores

como a civilidade, convivência social e regulação de relações interpessoais, relações do

ser humano com a natureza e organização sócio-económica (Mogarro & Martins, 2007).

Para Maria do Céu Roldão (1999), o conceito de cidadania que vigora nas

sociedades ocidentais desde o pós-guerra, renasce em Portugal com o 25 de Abril e

pode ser entendido como “um modo de inteligir o todo social, relacionar-se com os

outros e assumir competências participativas e interactivas numa dada sociedade” (p. 9).

Carla Cibele Figueiredo (2002), compara cidadania a uma balança, em que num

dos pratos estão os direitos do Estado para com o cidadão e, no outro, os deveres destes

para com o Estado. E, se se considerar uma vivência activa e crítica, então cidadania só

é possível em democracia, onde liberdade e igualdade de oportunidades sejam valores

fundamentais dos cidadãos.

Para Isabel Menezes (2005), cidadania “implica um reconhecimento de

personalidade num limite geográfico, . . . inclui tantos direitos de participação na vida

política (cidadania activa) como direitos de existência (cidadania passiva), . . . remete

para direitos universalistas e formalmente atribuídos pela lei, . . . garante, dentro de

certos limites, uma igualdade processual . . . e também substantiva” (p. 15).

Cidadão é o indivíduo que pertence a um Estado livre (Figueiredo, 2001;

Espinha, 2007), a uma democracia (Audigier, 2006), a uma comunidade politicamente

articulada (Henriques et al., 2006), que lhe garante direitos políticos, civis (Figueiredo,

2002; Audigier, 2006; Espinha, 2007), jurídicos e sociais (Afonso, 2005) e confere

obrigações inerentes a essa condição (Figueiredo, 2001; Audigier, 2006; Henriques et

al., 2006). Entre os seus direitos estão o de participar no poder, directamente ou como

representante (Audigier, 2006), partilhando “valores e regras comuns a diferentes níveis

de intervenção” (Afonso, 2005, p. 10). É, ainda, aquele que desenvolve um sentimento

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de pertença, uma dimensão afectiva relacionada com a continuidade de gerações e com

a solidariedade com os seus contemporâneos (Audigier, 2006).

E, apesar de estarmos em plena era da globalização, considerando inclusive a

consequente descaracterização dos modelos nacionais, o sentimento de pertença dos

cidadãos ainda mantém como referência a comunidade nacional (Beltrão & Nascimento,

2000). Desta forma, o estatuto de cidadania está presente nas leis fundamentais de

vários países, o que também se verifica em Portugal.

Assim, na Constituição Portuguesa, no preâmbulo menciona-se que “a

Assembleia Constitutinte afirma a decisão do povo português . . . de garantir os direitos

fundamentais dos cidadãos” (Lei Constitucional nº 1/2005, de 12 de Agosto,

Preâmbulo), como a universalidade (Artigo 12º) e a igualdade (Artigo 13º). O Artigo 4º

refere-se especificamente à Cidadania Portuguesa afirmando que “são cidadãos

portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção

internacional”. No Artigo 9º, assume-se que “defender a democracia política, assegurar

e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução de problemas

nacionais” (Alínea c) é uma das tarefas fundamentais do Estado. Mais, um dos direitos

pessoais que a Lei Fundamental do Estado Português garante é a cidadania (Artigo 26º,

nº 1) e a sua privação só se pode efectuar nos casos previstos por este diploma (Artigo

26º, nº 4), sendo da “exclusiva competência da Assembleia da República legislar [sobre

a] aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa” (Artigo 164º, Alínea f).

Afirma-se ainda que “todos têm direito à educação e à cultura” (Artigo 73º, nº 1), “com

a garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar” (Artigo

74º, nº 1).

A Constituição de 1976, bem como as sete revisões que se seguiram,

contribuíram para a alteração da sociedade portuguesa. Será de destacar a de 199212,

que reforçou a ideia de cidadania europeia que, embora “salvaguardando para si um

lugar secundário . . . articula o local com o global em três níveis – o europeu, o nacional

e o regional” (Soares, 2003, p. 19). Na base estão um conjunto de valores comuns:

12 A Lei nº 23/92, de 16 de Setembro, “a terceira revisão constitucional, de 1992, constituiu uma revisão extraordinária exigida pela necessidade da sua adequação ao Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia. Respeitando as regras sobre a titularidade da soberania, a revisão constitucional autorizou o exercício em comum de poderes (legislativos/executivos, antes exercidos a nível central, regional ou local) quando e se tal se revelar necessário para a construção europeia, com respeito pelo princípio da subsidiariedade.” (http://www.cne.pt/index.cfm?sec=1001000000&step=2&letra=C&PalavraID=158).

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democracia, os direitos do Homem, o respeito pela pessoa humana e a solidariedade.

Estes direitos cívicos, políticos, económicos e sociais são confirmados na Carta dos

Direitos Fundamentais da União Europeia13, a saber: dignidade, liberdade, igualdade,

solidariedade, cidadania e justiça (Soares, 2003).

O Conselho da Europa esclareceu que, cidadão e cidadania, são conceitos em

permanente actualização, devendo ser encarados num sentido mais lato, uma vez que o

Estado-Nação deixou de ser a única fonte de autoridade. Define cidadão como “a pessoa

que coexiste numa sociedade”, sendo ambos os termos considerados como um estatuto

com implicações práticas. Assim, cidadania e cidadão são conceitos que envolvem

questões relacionadas com direitos e deveres, igualdade, diversidade e justiça social,

questões essas que decorrem num espaço público, em que os indivíduos agem em

conjunto, provocando impacto na vida da comunidade (O’Shea, 2003, p. 7).

Outros autores optam por definir cidadania através dos valores e das

competências14 que lhe estão associados.

Deste modo, Jorge Sampaio, Presidente da República Portuguesa entre 1996 e

2006, afirma que

a cidadania é responsabilidade perante nós e perante os outros, consciência de deveres e direitos, impulso para a solidariedade e para a participação, é sentido de comunidade e de partilha, é insatisfação perante o que é injusto ou o que está mal, é vontade de aperfeiçoar, de servir, é espírito de inovação, de audácia, de risco, é pensamento que age e acção que se pensa. (Paixão, 2000, p. 3)

Segundo António Fonseca (2001),

na perspectiva do Estado, a cidadania significa lealdade, participação e serviço em benefício da colectividade. Na perspectiva do indivíduo, a cidadania traduz-se por liberdade, autonomia e controlo político dos poderes públicos. (p. 43)

É difícil chegar-se a um só conceito de cidadania, mas será que é necessário?

Voltando à comparação com a areia, pode-se não saber exactamente o que é, mas todos

lhe chegam e podem desfrutar dela. Talvez seja mais importante ter-se apenas uma

13 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia está disponível no site http://www.europarl. europa.eu/charter/default_pt.htm. 14 Os conceitos de “competências” e “valores” são abordados nas p. 27 e seguintes.

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noção aproximada de cidadania, que possibilite a sua prática no quotidiano, em vez de

conhecer o conceito científico, mas reservá-lo para doutos debates ou artigos. Afinal, “a

melhor definição é aquela com a qual nos identificamos ou a que construímos individual

ou colectivamente” (Figueiredo, 2002, p. 53).

1.2. Educar para a cidadania

Educação para a Cidadania Democrática, segundo o Conselho da Europa, é “um

conjunto de práticas e actividades desenvolvidas como abordagem ascendente, que

procura ajudar os alunos, os jovens e os adultos a participar de forma activa e

responsável nos processos de tomada de decisões das respectivas comunidades”

(O’Shea, 2003, p.11). Promove uma cultura de democracia e de direitos humanos,

fortalecendo a coesão social, a compreensão mútua e a solidariedade. É um processo de

aprendizagem ao longo da vida, dirige-se a todos os indivíduos e empenha-se em

proporcionar “oportunidades de aquisição, aplicação e divulgação de conhecimentos,

competências e valores ligados aos princípios democráticos” (O’Shea, 2003, p.12).

Deste modo, preocupa-se a participação, parceria, coesão social, acesso, solidariedade,

equidade e fiabilidade.

Nas palavras de François Audigier (2006), a educação para a cidadania, é um

espaço onde se constrói uma determinada concepção de viver em sociedade. Tem

causado ambiguidades e tensões que, no caso da escola, se têm traduzido em hesitações

com a escolha entre aprendizagens normativas e aprendizagens abertas ao debate, à

pluralidade e à iniciativa que fomente a autonomia. Além disso, por um lado pretende-

se que contribua para garantir a ordem na escola, mas, por outro há que assegurar aos

alunos uma aprendizagem de direitos e liberdades. O estudo de temas contemporâneos é

essencial, mas estes envolvem temáticas de conflito e violência, que exigem preparação

e precaução para uma abordagem na diversidade de opiniões. E, em prol da pluralidade

e mobilidade de quem a vai construindo, arrisca-se a erosão da herança de um passado.

Maria João Mogarro e Maria José Martins (2007) sistematizam três grandes

metodologias para o ensino de cidadania: (1) a educação para o carácter, que enfatiza a

doutrinação, a passagem de valores de uma geração mais velha para os mais novos; (2)

o relativismo cultural, que protege a neutralidade do professor promovendo a utilização

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de estratégias de clarificação e aceitação de valores; (3) promoção do desenvolvimento

global dos indivíduos, através de estratégias que abarquem componentes cognitiva,

afectiva e comportamental, conciliando o respeito pela diferença com a admissão do

universal.

1.2.1. Cidadania e a Gestão Flexível do Currículo

A presente dissertação enquadra-se no âmbito da Reorganização Curricular

consagrada pelo Decreto-lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro. Para melhor contextualizá-la e,

uma vez que currículo é “considerado um dos principais alicerces de qualquer sistema

educativo” (Gaspar & Roldão, 2007, p. 17), inicio por clarificar o conceito de currículo,

ainda que com brevidade.

Palavra de étimo latino, que pode significar “corrida”, “acto de correr” e “pista

de corrida”, a ideia de currículo vai-se mudando ao longo do tempo, de forma a adequar

a oferta às necessidades, ou seja, dar resposta às variações económico-sociais, aos

valores e às ideologias sócio-educativas que se confrontam numa dada época. Mesmo

circunscrito ao âmbito da educação, este conceito é passível de múltiplas interpretações

conforme o nível em que for colocado (Roldão, 1999; Abrantes, 2001; Gaspar &

Roldão, 2007).

Tradicionalmente, o currículo foi entendido como informação que era

transmitida de geração em geração. Quando essa função foi assumida socialmente,

institucionalizou-se, organizando-se a relação entre o ensinar e o aprender, dando

origem ao sistema educativo (Roldão, 1999; Gaspar & Roldão, 2007). Ora, se educação

é “um processo contextualizado de desenvolvimento interacional e contínuo do

indivíduo” (Gaspar & Roldão, 2007, pp. 18), então, para se compreender um

determinado currículo, deve-se ter em consideração a sociedade e a época que o

enquadram. Neste sentido,

o currículo é a arena política e social onde se joga a inclusão e a exclusão real dos indivíduos, qualquer que seja o poder ou poderes que subjazem à definição e legitimação histórica e social de um dado currículo e da respectiva institucionalização em estruturas organizativas” (Roldão, 200315, p. 18 citado por Gaspar & Roldão, 2007, pp. 21).

15 Roldão, M. C. (2003). Gerir o currículo e avaliar competências – as questões dos professores. Lisboa: Presença.

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Currículo escolar, num sentido mais lato, é “o conjunto de aprendizagens que,

por se considerarem socialmente necessárias num dado tempo e contexto, cabe à escola

garantir e organizar” (Roldão, 1999, p. 24), tendo em conta o modo como é feito, “o

lugar que ocupam e o papel que desempenham no percurso escolar ao longo do ensino

básico” (Abrantes, 2001, p. 41). Ao nível das autoridades educativas, currículo refere-se

a um conjunto de orientações sobre as aprendizagens consideradas fundamentais para

cada ciclo do ensino básico, explicitadas em competências essenciais (as transversais e

as específicas das disciplinas), mas também as experiências de aprendizagens que os

alunos devem viver no seu percurso escolar. Ao nível da escola, currículo está ligado ao

modo como os professores operacionalizam essas orientações com os seus alunos

(Abrantes, 2001), ou seja, é “um plano, completado ou reorientado por projectos, que

resulta de um modelo explicativo para o que deve ser ensinado e aprendido; compõe-se

então de: o que, a quem, porquê e quando vai ser oferecido, como e com que é

oferecido” (Gaspar & Roldão, 2007, p. 29). Assim, o currículo deve definir objectivos a

atingir, determinar os conteúdos a abordar, contemplar as capacidades / aptidões e as

competências a desenvolver.

Durante bastantes anos em Portugal, a única face visível do currículo era o

programa. Mas, se currículo “é o conjunto das aprendizagens pretendidas”, o programa

é “um percurso organizativo que pretende organizar as aprendizagens”, por outras

palavras, “é um plano de acção, um meio de alcançar fins pretendidos seguindo uma

linha e sequência, [ou seja,] é um meio, não o fim” (Roldão, 2004a, p. 28).

Hoje em dia, época em que a diversidade caracteriza as escolas, o currículo pode

ainda ser encarado como “um meio de reorganizar a prática educativa no sentido de

promover a inclusividade”, na medida em que serve de mediador entre professores,

alunos e pais, promovendo a comunicação com vista a alcançar o sucesso (Oliveira &

César, 2007, p. 236).

“Paradoxos e contradições caracterizam necessariamente a substância do

currículo escolar – já que nele se conjugam os vectores da preservação e da resposta a

necessidades novas” (Roldão, 1999, p. 27). Assim, o caminho orienta-se no sentido de

abandonar a lógica pendular de escolher entre cultura ou competências de vida, saberes

ou processos de trabalho, uniformidade ou escolha totalmente livre, formar as

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dimensões pessoais e sociais dos alunos ou apetrechá-los com um bom nível de

conhecimentos (Roldão, 1993 e 1999). Tal dialéctica conduz regularmente à luta de

abolir a tendência anterior, em vez de tentar encontrar sínteses integradoras equilibradas

capazes de promover mudanças, conjugando os propósitos da escola na actualidade e os

dos cidadãos a que se destina (Roldão, 1993 e 1999). A inadequação curricular que tem

existido a este nível, traduz o desfasamento entre as expectativas face à escola e a baixa

eficácia social (Roldão, 1999), que, por sua vez, serve de suporte às críticas que têm por

alvo a escola.

Gestão curricular sempre se fez, pois “gerir, isto é, decidir o que ensinar e

porquê, como e quando, com que prioridades, com que meios, com que organização,

com que resultados…” (Roldão, 1999, p. 25). A expressão teve a aparência de novidade

talvez pelo uso linguístico abusivo que dela se fez quando se lançou a Reforma

Educativa de 2001. A denominada Gestão Flexível do Currículo também reflecte uma

aproximação das decisões, outrora centralizadas no poder central, à escola e aos

professores, ou seja, aumenta a responsabilidade dos gestores locais.

Todavia, qualquer que seja o nível em que é tomado, o currículo deve ser “um

ponto de partida de uma reflexão colectiva para a acção educativa” (Beltrão &

Nascimento, 2000, p. 46) e não um conjunto de orientações rígidas. Em 1998, Ramiro

Marques disse que

todas as componentes do currículo se conjugam para promover o fracasso escolar e o insucesso educativo. . . . Continua a defender-se que os currículos devem ser rigorosamente iguais para todos os alunos [e] notam-se pressões cada vez maiores para o cumprimento dos programas a todo o custo. . . Numa tal escola, aparentemente igual para todos mas na verdade extremamente desigual nos resultados, só podem nascer o fracasso, a frustração e a indisciplina (p. 7).

Ora, a Gestão Flexível do Currículo foi “uma procura de respostas adequadas às

diversas necessidades e características de cada aluno, grupo de alunos, escola ou região”

(Abrantes, 2001, p. 42) e uma contribuição “para a construção de uma escola para todos,

mais humana, criativa e inteligente (Benavente, Novembro, 2000, p. 2). Assim, as

palavras de ordem são: diferenciação, adequação e flexibilização (Benavente, 2000;

Abrantes, 2001).

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Concentrando a atenção em Portugal e na educação para a cidadania, a

legislação actualmente em vigor expressa a sua preocupação em formar bons cidadãos.

Um dos princípios orientadores da organização e gestão do currículo no Decreto-lei nº

6/2001, é a “integração, com carácter transversal, da educação para a cidadania em

todas as áreas do saber” (alínea d, artigo 3º), acrescentando que “constitui formação

transdisciplinar no âmbito do ensino básico” (ponto 1, artigo 6º). O mesmo diploma

determina que a Formação Cívica, área curricular não disciplinar, é um “espaço

privilegiado para o desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento

fundamental no processo de formação de cidadãos responsáveis, críticos, activos e

intervenientes” (alínea c, ponto 3, artigo 5º).

Deste modo, a Formação Cívica16 surgiu como uma oportunidade para o diálogo

e para a reflexão sobre preocupações dos alunos, sobre a sua participação individual e

colectiva na turma, na escola e na comunidade (Benavente, 2000; Abrantes, 2001).

Neste âmbito, educação para a cidadania tem como objectivo central “contribuir para a

construção da identidade e do desenvolvimento da consciência cívica dos alunos”,

concretizando-se “através de um plano que abrange o trabalho a realizar nas diversas

disciplinas e áreas do currículo” (Abrantes, 2001, p. 54), sendo sugeridos temas como a

educação para a saúde, a educação sexual, a educação rodoviária ou a educação

ambiental. Enquanto área curricular não disciplinar17, pretendeu-se que fosse

transversal, integradora dos diversos saberes, devendo ser desenvolvidas em articulação

com as outras disciplinas e com as outras áreas curriculares não disciplinares,

contrariando a “lógica aditiva” (ser mais uma área entre as demais). Este foi o espaço

concebido para

16 “Formação Cívica” e “Educação para a Cidadania” tem sido utilizadas, muitas vezes, como sinónimos, embora a primeira tenha um carácter mais formal, relacionada com o conhecimento das capacidades e valores que governam uma sociedade democrática. A Educação para a cidadania está mais ligada a experiências e vivências (Soares, 2003). 17 Aquando da Reorganização Curricular do Ensino Básico, estabelecida pelo Decreto-Lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro, Paulo Abrantes (2002), referiu que uma das intenções era dar resposta “a uma das deficiências crónicas do nosso sistema: planos de estudos baseados quase exclusivamente em sequências de aulas” (pp. 9-10), problema agudizado a partir do 2º ciclo, à medida que o número de disciplinas e professores aumentam. Neste contexto, são criadas a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica, as três áreas curriculares não disciplinares. Esta expressão foi escolhida por integrarem o currículo obrigatório, embora não como “disciplinas”, ou seja, sem obedecerem a um programa, temas, conhecimentos ou métodos específicos.

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criar melhores condições para o desenvolvimento de competências relacionadas como estudo pessoal, o envolvimento em estudo interdisciplinares ou a reflexão e o debate sobre questões fundamentais, de uma maneira sistemática, organizada e apoiada, mas em que os alunos vão assumindo uma crescente autonomia e responsabilidade (Abrantes, 2002, p.12).

O que, por outras palavras, significa privilegiar a educação para a cidadania,

como um objectivo da escola básica, de modo a assegurar a formação integral dos

alunos (Abrantes, 2001). E, apesar das três áreas mencionadas se enquadrarem nesse

âmbito, a Formação Cívica dedica-lhe uma atenção particular, conforme referido

anteriormente.

Assim, um dos aspectos inovadores da Gestão Flexível do Currículo foi,

precisamente, a presença da educação para a cidadania que, por um lado, assumiu um

carácter transversal a todos os níveis de ensino básico, por outro, lhe reservou um

espaço privilegiado para ser desenvolvida na área curricular não disciplinar de

Formação Cívica. Desta maneira, consegue conciliar dois aspectos de uma questão que

continua em aberto: se a educação para a cidadania deve constituir uma disciplina

autónoma ou se é o ambiente cívico e democrático da escola que propicia essa

aprendizagem.

Para Ramiro Marques (1998), não é suficiente uma abordagem de vários

conteúdos de educação cívica nos programas das várias disciplinas, nem mesmo a

existência de uma área curricular, disciplinar ou não, que assegure o desenvolvimento

pessoal e social nos alunos. A eficácia passará por uma mudança na estrutura e

organização dos estabelecimentos de ensino, como escolas com o máximo de mil

alunos, uma gestão escolar participada por alunos, professores e pais, estabilidade e

formação do corpo docente, menos turmas por professor e maior acompanhamento deste

aos alunos. E acrescenta

se quisermos que a escola promova o desenvolvimento integral dos alunos, teremos de a tornar , não apenas um bom local de trabalho, mas também um local onde dê gosto viver. . . . Nesta época, caracterizada pela incerteza, pela rapidez e pela duplicidade das informações e da mobilidade tecnológica, torna-se imperioso que a escola volte a assumir as preocupações humanísticas, éticas e estéticas que fizeram dela, num passado distante, um centro de formação insubstituível (Marques, 1998, p. 8).

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O Relatório da Comissão Europeia sobre educação e formação de 1997 (citado

por Roldão, 1999) refere que o ensino de valores para a cidadania não deve cingir-se a

um aumento do número de horas de educação cívica, substituindo disciplinas ou

sobrecarregando horários, nem através de professores especializados, devendo ser uma

tarefa de todos os professores.

António Fonseca (2001) considera que a educação para a cidadania deve deixar

de ser um objectivo educacional e assumir-se como um processo pedagógico em si

mesmo. Não concorda que haja uma disciplina específica, sendo de opinião que os

conteúdos que lhe são afectos sejam disseminados no currículo regular, pelas diferentes

disciplinas. Assim, cada professor será co-responsável pela educação para a cidadania,

cujos conteúdos devem ser transdisciplinares com uma abordagem interdisciplinar. Para

evitar a ambiguidade e distorção, há que criar condições que assegurem um quadro de

referência no domínio da cidadania, sendo essencial respeitar o contexto, as tradições

nacionais e internacionais. De igual forma, há que ter em conta a formação de

professores, a elaboração de programas de acção para as escolas básicas e secundárias e

produção de produtos curriculares de apoio.

Ainda segundo o mesmo autor, a educação para a cidadania deve contemplar as

seguintes dimensões: (1) aquisição de conhecimentos através do conhecimento do

funcionamento da democracia e das instituições democráticas (políticas, jurídicas e

financeiras), os direitos, liberdades e responsabilidades dos cidadãos e o contexto social

onde se vive; (2) adesão aos valores de democracia, tendo em conta os valores

relacionados com os Direitos do Homem, como a dignidade do ser humano, o respeito,

a liberdade, a solidariedade, a tolerância, a compreensão ou a “coragem cívica”; (3)

formação de competências operatórias, tais como a capacidade de resolução de conflitos

sem recurso à violência, argumentação e defesa do ponto de vista pessoal, integração de

argumentos alheios, reconhecimento e aceitação das diferenças, fazer escolhas,

assumpção de responsabilidades, estabelecimento com os outros de relações

construtivas, desenvolvimento do espírito crítico, capacidade de relativizar verdades

tidas como absolutas (Fonseca, 2001).

Na mesma linha de ideias, Carla Cibele Figueiredo (2002, 2005), defende que a

educação para a cidadania vai-se “concretizando ao longo do percurso educativo

porque, fundamentalmente, é um processo de desenvolvimento de competências

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cognitivas, sociais e afectivas desenvolvidas em «situação» e em estreita ligação com

um conjunto de valores que caracterizam as sociedades democráticas” (2002, p. 55).

Assim, a educação desempenha um papel importante no âmbito da cidadania, uma vez

que esta é um processo em construção permanente. E, como vertente socializadora, é

importante que haja consonância entre o que é dito e o que é feito, sendo fundamental

criar situações para que as crianças e jovens aprendam a pensar criticamente, em

contextos de participação, onde tenham que assumir responsabilidades, apercebendo-se

que a sua voz é ouvida e pode fazer a diferença. Deste modo, “o contexto institucional

da escola é fundamental para a aprendizagem da Cidadania, . . . [Assim,] faz mais

sentido afirmar que se aprende «na Cidadania» . . . do que supor que se «educa para a

Cidadania»” (Figueiredo, 2005, p. 23).

Segundo Philippe Perrenoud (2005), uma disciplina específica de educação para

a cidadania (a que chama “catecismo cidadão”), perdida na enorme carga horária, não

resolve o problema. O autor aponta três níveis acção: (1) construir conhecimentos e

competências através da argumentação; (2) utilizar os saberes para desenvolver o

respeito e a compreensão do outro, envolvendo todas as disciplinas; (3) trabalhar os

valores, as representações e os conhecimentos sobre a democracia.

Isabel Menezes (2005) considera importante saber quais as concepções de

cidadania subjacentes, mas nunca explicitadas, nos documentos orientadores da política

educativa. Só assim se poderá esclarecer se educação para a cidadania é apenas um

meio de difusão, socialização e reconhecimento de direitos; ou se

cidadania seria concebida como um produto-em-progresso de um contínuo processo de deliberação e construção social e política, competindo à escola promover capacidades pessoais e sociais para que os jovens possam dar um contributo para a própria definição e expansão do que a cidadania é. (Menezes, 2005, p.18)

Acrescenta que a cidadania constrói-se na multiplicidade de experiências

quotidianas em contextos diversos, sendo uma ilusão pensar que a sua aprendizagem se

pode restringir ao contexto escolar. Isto não invalida que a escola deva assumir a sua co-

responsabilidade. “A educação para a cidadania comes with the territory” (Menezes,

2005, p. 19).

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François Audigier (2006) defende que a educação para a cidadania nas escolas

deve ser desenvolvida em três vertentes, que se complementam. Assim, por um lado,

haver uma disciplina autónoma, uma vez que existem conteúdos científicos específicos

dessa temática, relacionados com o direito e a política, não contemplados nas outras

disciplinas. Por outro lado, desenvolver competências que permitam estudar e

compreender problemas da actualidade, sugerindo trabalhos multi-, trans- ou pluri-

disciplinares que desenvolvam nos alunos referências para viverem em sociedade. Por

último, se a escola se propõe a transmitir princípios e valores, então deve funcionar

segundo esses mesmos princípios e valores.

De qualquer maneira, as questões de cidadania têm sido sempre curriculares,

uma vez que seguem as orientações ideológicas do poder vigente. Transmite-se o que se

considera importante saber/conhecer numa determinada época e sociedade, o que

explica a diversidade de dimensões curriculares, cujas denominações “vão desde

educação cívica a formação pessoal e social, educação para os valores e outras”

(Roldão, 1999, p. 9). “A escola é um dos principais «aparelhos ideológicos do Estado»,

possivelmente aquele que desempenha um papel mais determinante. . . . Qualquer

professor tem clara consciência de que a sua acção . . . está largamente determinada por

condicionantes de política geral e de política educativa em particular” (Pombo, 2002, p.

58). “C’est une question de choix, à niveau politique. L’école n’appartient pas aux

enseignants” (Audigier, 2006, p. 12).

Apesar de a educação para a cidadania estar consagrada na legislação portuguesa

(decreto-lei nº6/2001), como área transversal no currículo, é de salientar a “ausência de

indicações precisas sobre as matérias de estudo. . . [e a] falta de critérios para avaliar um

programa de ensino” (Henriques et al., 2006, p. 9). Estes constrangimentos não são

fáceis de ultrapassar, pois “a comunidade escolar precisa de uma orientação que reforce

a autonomia e convivência dos seus membros, a formação do carácter e os valores da

democracia” (Henriques et al., 2006, p. 9). Assim, o desafio da cidadania surge como

uma meta longínqua, mas que, paradoxalmente, os educadores devem assumir como fio

condutor das suas práticas. “Será que, mais uma vez, nos é pedida a construção de um

edifício do qual desconhecemos as plantas, os materiais necessários, e cujas técnicas de

construção nos são completamente estranhas?” (Beltrão & Nascimento, 2000, p. 17).

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Segundo Ramiro Marques (2008) “as escolas públicas portuguesas estão a falhar

em muitas áreas . . . [e] onde os resultados ficam mais longe do desejado é a educação

do carácter das crianças e jovens” (p. 7). A origem deste fracasso aponta para a

abordagem cognitivo-desenvolvimentista, influenciada por Kohlberg, que privilegia a

aquisição de competências cognitivas, em detrimento da acção moral, dos hábitos e

virtudes do carácter. Sugere como alternativa uma proposta pedagógica nascida nos

Estados Unidos da América na década de 90 do século XX. A Nova Educação do

Carácter, defende que as crianças precisam de ir desenvolvendo qualidades de carácter

(disposições e hábitos) à medida que crescem, como a responsabilidade, coragem,

temperança, sentido de justiça, autodomínio e prudência. Estas virtudes podem ser

adquiridas de três formas: pelo exemplo, pela prática directa e através de narrativas.

1.2.2. Valores e competências para a Cidadania

Valores são “aquilo que confere normas à conduta” (Espinha, 2007, p. 1581) e,

quando relacionados com a cidadania, ajudam a esclarecer o seu significado. São

“princípios, padrões” (Houaiss, 2007, p. 622), referenciais que “guiam nas decisões, nas

escolhas, na construção de uma sólida identidade psicossocial” (Beltrão e Nascimento,

2000, p. 54). São “um ideal orientador da decisão e acção pessoais.” (Henriques et al.,

2006, p. 413) e “que, normalmente, se adaptam da sociedade e época” (Espinha, 2007,

p. 1581).

Ramiro Marques (2003) define valores como “qualidades que as coisas possuem,

mas que não estão nelas de modo sensível” (p. 16). São apreendidos e inferidos pela

inteligência, mas sobretudo pelas emoções e sentimentos. Produzem reacções nas

pessoas e, na medida em que provocam reacções, motivam atitudes e comportamentos.

“Os valores não são transmitidos ou construídos mas sim descobertos através da

identificação, do testemunho, do exemplo e da vivência” (p. 16).

A educação para a cidadania implica uma educação para os valores, embora não

se esgote nela (Beltrão & Nascimento, 2000.). Por outras palavras, os valores estão

constantemente presentes na educação para a cidadania, mas é importante que não

fiquem reduzidos a um conjunto de normas e princípios (Audigier, 2006). O professor

não deve limitar a sua função à promoção de novos conhecimentos, devendo estar

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consciente que as opções que faz e o clima que promove na sala de aula influenciam os

alunos (Baião, 2005).

São vários os autores que enumeram os valores para a cidadania:

Para António Fonseca (2001) os valores da cidadania estão relacionados com

democracia e são a liberdade, a participação responsável, a solidariedade social, a

defesa e o respeito pela vida e pela natureza, mas também a competitividade e a

inclusão. Os princípios a ter em conta são os relacionados com os Direitos Humanos,

conforme mencionados pelo Conselho da Europa18, alicerce da cidadania democrática.

Maria Rosa Afonso (2005), como pano de fundo para definir os valores em

cidadania, considera os valores pessoais, juntamente com os colectivos, pois o cidadão

é, simultaneamente, um indivíduo e um membro da sociedade. Assim, “são valores

éticos individuais a liberdade, autonomia, respeito e justiça. Valores que estão, sempre,

onde estiver a pessoa, seja qual for o lugar, a circunstância, o estatuto e o papel social

que cada um desempenhe” (p. 10).

Segundo Mendo Henriques, João Reis e Luís Loia (2006), os valores cívicos são

“o conjunto de disposições de origem moral cuja manifestação constitui a condição para

o exercício de uma cidadania responsável.” (p. 413). E são a responsabilidade moral, a

autodisciplina, o respeito pelo valor individual, próprio e alheio, a dignidade humana, o

respeito pela supremacia do Direito, a capacidade crítica e vontade de negociar e

alcançar compromissos. (p. 63).

Os valores cívicos mencionados no National Standards for Civic and

Government Center for Civic Education, (1994) são a coragem, tolerância, patriotismo,

espírito de compromisso, respeito pela lei, solidariedade, participação, abertura,

transparência, respeito pelos outros, civilidade (citado por Henriques et al., 2006, p. 64).

Tolerância, respeito pela diferença e formação para uma cidadania aberta e universal

são os valores recomendados nos relatórios internacionais (UNESCO, 1996; Comissão

Europeia, 1995 e 1997; OECD, 1994 e 1998 citado por Roldão, 1999, p. 14).

No entanto, não basta o ensino directo dos valores, para se aprender democracia

há que experimentá-la, processo que exige tempo e vivência (Marques, 1998).

18 Starley, H. & Tibbits, F. (1996). Human rights education in schools. Strasbourg: Council of Europe.

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A questão em torno das competências é antiga, mas teve mais visibilidade na

escola nos Anos 90 do século XX via mercado de trabalho, cada vez mais exigente e

onde se sentiu primeiro o reflexo da inadequação e/ou insucesso escolar. Longe de se

esgotar no campo profissional, a própria sociedade formula a questão se a formação

escolar se traduz em competências individuais e sociais. Pois, as consequências da

ineficácia constituem um problema político e social, na medida em que “os não

competentes” serão potenciais excluídos, marginalizados, desempregados… (Roldão,

2004a).

No âmbito da Gestão Flexível do Currículo, Noémia Félix (1998) definiu

competência como “um saber que se utiliza radicado numa capacidade, cujo domínio

envolve treino e ensino formal, como um conjunto de recursos para fazer face a novas

situações” (p. 77). Para Paulo Abrantes (2001) competência é um saber em acção que

integra conhecimentos, capacidades e atitudes, “a aquisição progressiva de

conhecimentos deve ser enquadrada pelo desenvolvimento de capacidades de

pensamento e de atitudes favoráveis à aprendizagem” (p. 44). Deste modo, as

competências essenciais a salientar são “os saberes que se consideram fundamentais

para que os alunos desenvolvam uma compreensão da natureza e dos processos de cada

uma das disciplinas, assim como uma atitude positiva face à actividade intelectual e ao

trabalho prático que lhe são inerentes” (p. 44).

Segundo Philippe Perrenoud (1999 e 2002), as competências são “uma

capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em

conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (Perrenoud, 1999, p. 7). “Manifestam-se na

capacidade de um indivíduo em utilizar os seus recursos cognitivos múltiplos para agir

da melhor maneira, face a situações complexas, imprevisíveis, evolutivas e sempre

singulares” (2002, p. 92). Os conhecimentos são “representações da realidade, que

construímos e armazenamos ao sabor da nossa experiência e da nossa formação”

(Perrenoud, 1999, p. 7). Para enfrentar uma determinada situação, em geral, temos que

mobilizar vários recursos cognitivos, entre os quais estão os conhecimentos. Umas

vezes são requeridos a um nível mais elementar e disperso, outras mais complexos e

organizados. A construção de competências “é inseparável da formação de esquemas de

mobilização dos conhecimentos com discernimento, em tempo real ao serviço de uma

acção eficaz” (Perrenoud, 1999, p. 10).

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Maria do Céu Roldão (2004a) define competência como “saber que se traduz na

capacidade efectiva de utilização e manejo - intelectual, verbal e prático” (p. 20).

Assim, é mais competente quem é capaz “de usar adequadamente os conhecimentos –

para aplicar, para analisar, para interpretar, para pensar, para agir – nesses diferentes

domínios do saber e, consequentemente, na vida social, pessoal e profissional” (p. 16).

Competência é uma meta, “é o objectivo último dos vários objectivos que para ela

contribuem” (p. 22) e “uma vez adquirida, não se esquece nem se perde” (p. 21), por

oposição aos conhecimentos inertes acumulados, que se perdem por falta de uso.

Um debate, tão antigo como a escola, “opõe os defensores de uma cultura

gratuita aos partidários do utilitarismo” (Perrenoud, 1999, p. 13). Este “dilema não pára

de ser redescoberto, de ser aparentemente decidido, antes de renascer alguns anos

depois, sob outros vocábulos” (Perrenoud, 1999, p. 11). Por outras palavras, coloca-se a

questão se se vai à escola para adquirir conhecimentos, ou para desenvolver

competências, ou seja, será melhor as cabeças “bem-feitas” ou “bem-cheias”, o que

corresponde a escolher entre duas visões do currículo, uma que privilegia a transmissão

de conhecimentos, deixando a sua mobilização (construção de competências) a cargo da

formação profissionalizante ou da vida em geral; a outra, limita a quantidade de

conhecimentos ensinados, preferindo exercitar a sua mobilização.

Assim, à pergunta “conhecimentos profundos ou perícia na implementação?”,

Perrenoud (1999) responde “ambos!” (p. 11). “Formar em competências não pode levar

a dar as costas à assimilação de conhecimentos, pois a apropriação de numerosos

conhecimentos não permite, ipso facto, a sua mobilização em situações de acção” (p. 8).

Coloca esta questão como uma escolha de prioridades, uma vez que é impossível fazer

tudo, devendo ser ponderado o que será mais útil. Nos primeiros anos de ensino, parece

haver maior consenso no sentido das competências, como ler, escrever, etc. À medida

que as disciplinas aumentam, o dilema afirma-se com mais força. Diz o mesmo autor

que o sistema educacional tem sido construído de cima para baixo, ou seja, o ensino

superior refere o que pretende ao ensino secundário e este ao básico. Ora, as

universidades privilegiam os conhecimentos, sendo elas a origem das maiores críticas

da reformulação da escola básica e secundária em competências. Os maiores defensores

das competências vêm do meio profissional, do mundo económico, que está orientado

no sentido da acção.

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Aceitar uma abordagem por competências é, portanto, uma questão ao mesmo tempo de continuidade – pois a escola jamais pretendeu querer outra coisa – e de mudança, de ruptura até – pois as rotinas pedagógicas e didácticas, as compartimentações disciplinares, a segmentação do currículo, o peso da avaliação e da selecção, as imposições da organização escolar, a necessidade de tornar rotineiros o ofício de professor e o ofício de aluno têm levado a pedagogias e didácticas que, às vezes, não contribuem muito para construir competências, mas apenas para obter aprovação em exames… (Perrenoud, 1999, p. 15)

Segundo Perrenoud (1999), a opção da escola pela via dos conhecimentos,

prende-se com facto de estar familiarizada com essa via, receando uma alteração para

uma orientação para as competências que exige uma planificação diferente da habitual.

Por outro lado, é mais fácil avaliar conhecimento que competências, na medida em que

estes exigem uma exposição a realidades com um grau de complexidade crescente, mais

exigente em termos de tempo. Como exige um esforço suplementar a todos os

envolvidos, abre as portas às críticas, por parte de professores, alunos e encarregados de

educação. Os alunos resistem, pois para desenvolverem competências, têm que correr

novos riscos inerentes à exposição com maior frequência a situações novas, tendo que

cooperar, projectar-se e questionar-se. Este esforço pode traduzir-se em mais trabalho,

que conduz a reclamações, podendo levar os encarregados de educação a reagir,

expressando o seu desagrado. Quanto aos professores, têm que recriar e utilizar novos

meios de ensino, olhando para os conhecimentos como ferramentas que vão sendo

mobilizadas consoante as situações-problema que têm que criar, o que implica um grau

de improviso maior. As planificações têm que ser mais flexíveis, a compartimentação

disciplinar deve ser menor, os contratos didácticos têm que ser repensados, bem como a

avaliação. A novidade, geralmente, assusta e exige, mais que não seja, um esforço de

adaptação.

Maria do Céu Roldão (2004) afirmou existir na actualidade um terrível equívoco

por parte da opinião pública, pouco informada acerca de questões relacionadas com a

educação. Concretamente, esse engano contempla duas partes: por um lado “associa-se

qualidade a um modelo antigo, que só foi supostamente de qualidade porque a maioria

dos alunos eram… «de qualidade», na medida em que largamente seleccionados e

bastante homogéneos” (p. 7), factores que favorecem, por si só, o sucesso escolar,

independentemente de como e por quem é ministrado; Por outro lado, “acreditar que

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flexibilizar, contextualizar, diferenciar o modo de organizar o trabalho de ensinar, ou

seja, de gerir o currículo, corresponde necessariamente a descer a qualidade do ensino”

(p. 7). Acrescenta que

a qualidade reside exactamente . . . em produzir bem, respondendo adequadamente à diversidade das situações e, por isso, promovendo, para todos, os mais altos níveis de qualidade possíveis. Qualidade a que não só os próprios cidadãos têm direito, como as sociedades desenvolvidas o exigirão cada vez mais” (Roldão, 2004, p. 7).

Quanto à questão que competências escolher para formar um cidadão, Carla

Cibele Figueiredo (2002) considera que, sendo educação para a cidadania um espaço

transversal, para ele convergem várias áreas do saber da vida em sociedade. Logo, é

natural que lhe estejam associadas competências transversais ou transdisciplinares e

sugere as seguintes: construção de identidade, desenvolvimento de relações

interpessoais, estabelecimento de regras para a vida numa sociedade democrática,

comunicação e expressão, da tomada de decisões, da formação de um pensamento

crítico e reflexivo, da resolução de problemas, da consecução de projectos. Para além

destas, salienta que a importância de serem articuladas com diversas áreas do saber, de

modo a preparar cidadãos intervenientes em questões cívicas. Acrescenta ser ainda

“necessário ampliar o conhecimento das crianças e dos jovens sobre si mesmos e suas

culturas, sobre os princípios e as instituições democráticas, sobre a justiça e a forma

como esta funciona, sobre os media e os seus interesses e conflitos” (p. 57).

Relativamente à metodologia, faz o apelo à participação com informação, lembrando

que “a acção sem reflexão de pouco vale e que a informação por si só não produz

cidadãos activos” (p. 58).

Um cidadão de plenos direitos deve ter competências que lhe permitam

participar de modo responsável na vida pública. Assim, Mendo Henriques, João Reis e

Luís Loia (2006) avançam com uma proposta de competências que são necessárias

desenvolver. São elas: “a capacidade de persuadir através do discurso e da cooperação;

a capacidade de saber articular interesses e objectivos; a capacidade de estabelecer

consensos que sirvam o bem comum; a capacidade de gerir conflitos até alcançar um

desenlace positivo.” (p. 9). Os autores salientaram que o desenvolvimento de

competências para a cidadania democrática deve ser acompanhado pelo envolvimento

directo dos alunos na comunidade escolar, de modo a que possam praticar as

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aprendizagens realizadas, sentindo e partilhando as dificuldades inerentes à prática.

Assim, podem “assumir responsabilidades na gestão dos assuntos da turma; participar

na vida das associações estudantis; apresentar petições à assembleia escolar e ao

conselho pedagógico; realizar serviços à comunidade; dirigir-se à comunicação social;

simular actividades de organismos governamentais, legislativos e judiciais; dialogar

com representantes dos poderes e dos interesses privados.” (p. 9-10).

No âmbito da Gestão Flexível do Currículo, nas áreas curriculares não

disciplinares, destinadas a todos os alunos, pretende-se desenvolver competências

transversais como “a capacidade de organização pessoal, curiosidade intelectual,

autonomia nas próprias aprendizagens, a predisposição para reflectir sobre o trabalho

realizado e sobre os problemas, a iniciativa pessoal, o sentido de responsabilidade.

Além disso, são de salientar ainda as capacidades ligadas a estratégias de resolução de

problemas, assim como à pesquisa e utilização de diversas fontes de informação”

(Abrantes, 2002, p. 16).

Ainda há muito para saber acerca de como se constroem competências para a

cidadania, mas que isso sirva de impulso para se progredir e não de desculpa para não se

fazer (Audigier, 2006).

1.2.3. Escola, espaço de Cidadania

Os homens não são imortais e a precariedade da vida veio impor a exigência da escola, a urgência do ensino. . . . A escola é essa instituição, esse lugar de transmissão do legado cultural entre gerações pela qual o homem conquista a eternidade, não dos indivíduos, mas da cultura (Pombo, 2002, p. 27).

A escola é ou pretende ser . . . mais do que o lugar por excelência da instrução ou, se se preferir, do ensino enquanto processo de transmissão do saber entre gerações, ela se pretende também como lugar de formação do Homem (Pombo, 2002, p. 57).

Quando foi inventada e, depois, divulgada, a fotografia, nos finais do século

XIX – inícios do século XX, as formas de arte ressentiram-se, em particular a pintura.

Para quê pintar retratos, se a fotografia reproduzia de modo mais real e fiel a pessoa que

a encomendava? Ou as paisagens? Ou… Esta aparente crise na pintura, empurrou-a na

procura de algo novo. Assim, surgem novos movimentos artísticos, como o

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Impressionismo, preocupado em captar as sensações produzidas pela Natureza19, o

Expressionismo, mais interessado na interiorização da produção artística do que na sua

exteriorização20, o Cubismo que trata a Natureza por meio de formas geométricas21,

entre outros. Hoje, pintura e fotografia coexistem. Situação idêntica está a passar a

escola face aos meios de comunicação social, com os quais se vê envolvida numa

espécie de competição, perdida no início, no que à quantidade e à velocidade de difusão

diz respeito. A escola está a reposicionar-se na sociedade.

O aumento e difusão acelerados da informação nos dias de hoje, a cargo dos

jornais, da internet, da televisão, entre outros meios de comunicação, bem como dos

transportes, que facilitam as relações à escala planetária, levaram a que a escola se

questionasse acerca do seu papel na sociedade, uma vez que deixa de ser a única

responsável por conservar os saberes e passá-los à geração seguinte (Proença, 1990;

Oliveira & César, 2007). Maria do Céu Melo (2003) afirma que a escola “tem vindo a

perder o seu prestígio e eficácia não apenas como instituição educativa privilegiada,

mas também como instrumento legitimador e reprodutor do conhecimento gerado nas

comunidades científicas” (p. 22), função que passou para os media, que se assumiram

como ‘sujeitos activos’ na sociedade.

Assim, a escola debate-se com o desafio de se focar no que acontece fora dela,

“sem contudo perder a sua ambição de analisar e reflectir sobre o conhecimento que é

partilhado” (Oliveira & César, 2007, p. 237). Uns consideram que a sua função se está a

diluir, arriscando-se a desaparecer, acusando de inutilidade os saberes que integram o

currículo. Outros, porém, encaram essa questão com ânimo e, embora reconheçam que

são necessárias mudanças, acham que a sua tarefa sai reforçada, uma vez que mais

nenhuma outra instituição desempenha algumas dimensões nucleares nas sociedades

ocidentais. Concretamente, a escola é responsável pela passagem estruturada do quadro

referencial da cultura dominante numa dada sociedade, pela socialização conjunta dos

indivíduos de todas as culturas presentes nessa mesma sociedade, pelo apetrechamento

com instrumentos cognitivos de análise, reflexão, pesquisa e produção do conhecimento

e pelo ensino explícito de estratégias organizativas do conhecimento e do discurso

(Roldão, 1999). “Eis porque as finalidades da educação têm sofrido uma constante

19 http://pt.wikipedia.org/wiki/Impressionismo consultado em 10/09/2008. 20 http://pt.wikipedia.org/wiki/Expressionismo consultado em 10/09/2008. 21 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cubismo consultado em 10/09/2008.

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evolução à medida que as transformações sociais criam novas necessidades e

expectativas no homem” (Proença, 1990, p. 38).

A crise da escola de que se houve falar, segundo Maria do Céu Roldão (1999,

2004a, 2005), corresponde a um desajuste entre um tipo de escola que se tenta manter

imutável, tanto a nível organizativo como curricular, perante um público, que aumentou

e se diversificou, e os saberes, consideravelmente mais complexos. Se a massificação

foi um desafio já foi superado na sua generalidade, agora há que “«massificar o

sucesso», ou seja, garantir a todos uma qualidade educativa satisfatória” (Roldão, 1999,

p. 33). Nas palavras de Daniel Sampaio (2008, Novembro),

o impasse da escola actual resulta de se encontrar esgotado o modelo tradicional de ensinar, organizado para instruir o aluno médio e com razoável motivação. Muitos dos estudantes nas nossas salas de aula estão lá por obrigação ou porque não encontram nada melhor para fazer” (p. 4).

Num primeiro impulso de reacção à mudança, geraram-se mecanismos de

acréscimo de exclusão, depois, de diminuição de exigência. No entanto, estas respostas

revelaram-se incompatíveis com a necessidade de subir o nível educacional das

populações, pois “já não é pensável a sobrevivência social e individual sem o acesso ao

conhecimento cada vez mais disponível e, por isso mesmo, cada vez mais definidor de

inclusão ou exclusão social” (Roldão, 2005, p. 12).

Neste contexto, a escola deixou de ser um mero veículo de acessibilidade ao

saber disponível, assumindo um papel central como “instituição responsável pela

educação estruturada e estruturante para todos os cidadãos” (Roldão, 2005, p. 12).

“Enfrentando cada vez mais desafios, procura resolver as questões do sucesso

educativo, da diversidade, da exclusão social e do direito a uma cidadania activa e

democrática” (Silva & César, 2007, p. 1). E, embora “longe de conseguir a meta ideal

de equipar os jovens com conhecimentos e competências que os coloquem em situação

de equidade social” (Oliveira & César, 2007, p. 236), o currículo escolar passou a ser

uma resposta eficaz no apetrechamento (empowerment) de competências que

correspondam às exigências da sociedade do conhecimento (Roldão, 2005). Pois, falar

de “todos” engloba uma diversidade, o que em termos curriculares, se traduz no

seguinte: em vez de se pensar numa turma homogénea, há que considerar o binómio

core curriculum (currículo nacional) / projecto curricular (currículo a nível da escola).

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Por outras palavras, as aprendizagens essenciais comuns e a sua concretização em

determinado contexto. A gestão curricular acontece na articulação destes dois elementos

e a flexibilização dos currículos é possível mantendo como referência as aprendizagens

a garantir no final, que devem ser alvo de avaliação interna e externa (Roldão, 1999).

“A escola já é um contexto de educação para a cidadania, independentemente

de esta ser uma função que lhe é, social ou legalmente, atribuída” (Menezes, 2005, p.

19) e não se ensina a ser cidadão, aprende-se e requer participação (Fonseca, 2001;

Perrenoud, 2002). É um caminho lento, complexo, trabalhoso, mas necessário. Esse

processo implica aquisições cognitivas, apropriação de valores, de códigos e de

competências para aprender a viver em democracia, base do exercício da cidadania.

Para além disso, requer o envolvimento dos indivíduos numa comunidade, pois os

contextos servem de factores facilitadores entre o juízo moral e o nível de acção, entre a

capacidade de julgar e a de agir - “uma educação para a cidadania mas também uma

educação na cidadania” (Fonseca, 2001, p. 37).

Quando confrontado numa entrevista acerca da sua formação como cidadão

Jorge Sampaio (1999) respondeu que foram importantes para o desenvolvimento do seu

espírito democrático os pais, o convívio com os amigos, as causas assumidas em

comum, o ambiente do liceu que frequentou (considerado aberto para a época), as

leituras (salientando aquelas sobre política), as viagens e as actividades das associações

académicas, essenciais para uma participação cívica e politização (Sampaio, 1999).

Salienta

que a participação em geral é sempre vantajosa como forma de exercício de cidadania, como modo de dar testemunho e de receber, de nos colocarmos perante as dificuldades e anseios e de os procurar resolver, sobretudo com os outros. E depois porque participar é o reverso de isolamento . . . da soberba, da auto-suficiência. Participar solidariza, comunitariza; em suma, é uma forma fundamental de democracia moderna (Sampaio, 1999).

Acredito que a autonomia das escolas só assume um sentido pleno se for construída com base em projectos em que os estudantes participem. . . . A participação é fundamental. Uma experiência associativa nas primeiras etapas da vida escolar pode desenvolver competências essenciais ao exercício de cidadania” (Sampaio, 1999).

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Uma escola organizada de forma democrática deve entregar aos alunos o poder

de decisão (na medida do possível), pois decidir implica escutar, considerar o outro,

analisar uma dada situação sob diversos pontos de vista, sentido de responsabilidade, ou

seja, operações cognitivas importantes que se devem começar a desenvolver e exercitar

na escola, para depois serem continuadas com a exposição a contextos múltiplos, único

modo de aprender e desenvolver atitudes e competências de cidadania. Os conteúdos

que devem ser abordados são ligados com os valores que estão na base da participação

democrática, por um lado; por outro, relacionados com os instrumentos e mecanismos

capazes de operacionalizar as regras da democracia.

Assim, os alunos devem abandonar a atitude passiva que lhes foi reservada no

passado, sendo de incentivar a participação, promovendo a reflexão sobre si próprios, o

contacto com o diferente, o desafio de dogmas estabelecidos, a construção de uma

moral autónoma. São de promover temas centrais da vida humana, dilemas da

actualidade social, experiências significativas, desafios pessoais e sociais dos alunos

(Fonseca, 2001). E, se os alunos estiverem envolvidos a trabalhar em algo que seja

significativo para eles, seja individualmente ou em grupo, tudo se torna mais fácil e

eficaz (Abrantes, 2002. P. 16).

Um autêntico programa de acção no âmbito da educação para a cidadania deve

ser amplo e abarcar os novos desafios do mundo actual, como: o multiculturalsmo; a

exclusão social; o “regresso” dos valores à educação; o ambiente na procura de um

desenvolvimento sustentável; a participação no funcionamento de instituições,

associações, etc.; a integração num espaço mais vasto, como a Europa e o mundo, mas

sem renunciar à identidade nacional; a defesa dos direitos das crianças; a participação

mais global da mulher no funcionamento da sociedade; distribuição de recursos mais

equitativa entre o meio rural e urbano; garantir um efectivo acesso à educação. Nesse

programa a motivação seria avaliar os cidadãos que temos e perspectivar os cidadãos

que queremos para o novo século. Como estratégia, a escola deveria funcionar como

mini sociedade, equilibrando a teoria e a prática. O objectivo seria levar as crianças e

jovens a realizar actividades de natureza cívica, a nível local, nacional e/ou global e

considerar as dicotomias: autonomia/coesão social, neutralidade/modelos de excelência,

eficácia/risco. A educação deve proporcionar ao aluno o contacto com realidades

diversas, incentivando-o a fazer escolhas, ou seja, o aluno deve ter possibilidade de

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progressivamente construir uma realidade cívica de si próprio, sem que lhe seja imposta

do exterior. Assim, o exercício de cidadania reconhece o “outro social” e contempla o

“eu cívico”, enraizado na tradição, mas aberto aos novos desafios que a humanidade vai

lançando (Fonseca, 2001).

Ora, a escola é uma comunidade capaz de reproduzir as condições da vida social.

Neste sentido, pode ser um local onde o aluno aprenda a viver em sociedade, onde

adquira conhecimentos e competências ligados às realidades cívicas (atrás enumeradas)

com que o mundo de hoje se vê confrontado. Por outras palavras, onde haja acesso à

teoria, mas também oportunidade para exercitá-la na prática, efectuando uma avaliação

dos resultados obtidos para si e para a comunidade. Assim, as crianças e os jovens não

seriam apenas meros espectadores, aguardando a sua vez de serem adultos e poderem

intervir, sendo desde pequenos cidadãos activos, participantes e responsáveis (Fonseca,

2001; Perrenoud, 2002; O’Shea, 2003; Henriques et al, 2006; Lúcio, 2008).

A educação para a cidadania democrática deve, então, ter como meta formar

pessoas livres. O sujeito deve cultivar a autonomia pessoal estando exposto à

diversidade e complexidade sociais, de modo a ser capaz de formar opiniões resistindo

às pressões do colectivo, aceitando o diálogo como meio de mediar conflitos, tendo

abertura para se colocar no lugar do outro para que haja uma maior compreensão,

aceitação e respeito, mesmo que não subscreva a ideia apresentada. Os valores

democráticos alicerçados nos direitos humanos devem ser o quadro referência. Um

sujeito formado neste contexto deverá ser mais sensível à exclusão social, sendo arauto

da escola inclusiva, onde a solidariedade ocupa um lugar central, “na procura do sentido

de cada um na sua relação com o outro, e na convicção de que só nesta relação se atinge

a expressão maior da dimensão pessoal e humana” (Lúcio, 2008, p. 33).

“O cidadão de hoje é um «mestiço» cultural, a escola é a instituição que melhor

pode torná-lo «fluente» no entendimento das várias culturas e componente na

articulação e uso das respectivas ferramentas” (Roldão, 1999, pp. 20-22). E, nesse

sentido, a escola é um espaço de cidadania, ou seja, um “projecto . . . que procura lançar

e concretizar os princípios da cidadania democrática” (O’Shea, 2003, p. 11).

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1.2.4. Professores e a Cidadania

Decidir na incerteza e agir na urgência: essa é uma maneira de caracterizar a especialização dos professores, que . . . fazem “impossíveis”, . . . porque o aprendiz resiste ao saber e à responsabilidade (Perrenoud, 2000, pp. 11-12).

“A ênfase da educação para a cidadania é a ênfase no que se teme (porque está

em falta) e se deseja controlar” (Menezes, 2005, p. 14). Assim, abordar a educação para

a cidadania provoca receio nos professores. Considerando todas as reticências que uma

generalização implica, esta é a reacção que tenho observado nos colegas e que eu

própria experimentei, facto, aliás, que me levou a querer aprofundar esta temática na

presente dissertação.

Ainda é comum nas escolas, actuar-se como se a educação tivesse como

finalidade apenas a transmissão de conhecimentos, relegando para segundo plano as

estratégias que visam a formação integral do indivíduo. Esquecem-se, esses educadores,

“que estas também desempenham um papel fundamental na concepção de tipo de

cidadão que se pretende formar através da acção educativa” (Proença, 1990, p. 39). E,

actualmente, os professores vêem-se confrontados com “turmas com estudantes de

nacionalidades diferentes que mal falam português, . . . perante os inúmeros problemas

sociais e familiares que muitos alunos trazem para a sala de aula” (Sampaio, 2008,

Novembro. p. 4).

O protagonismo que é pedido aos professores exige mudanças no âmbito da sua

identidade e do desenvolvimento profissional, passando, também, pela criação de

condições para que essas alterações ocorram (Abrantes, 2001). De jogadores de futebol,

passam a treinadores, o que exige um novo tipo de competências. São alterações que

assustam, sobretudo se se pensar que a maioria dos docentes receberam formação para

serem “jogadores” e não “treinadores”. As respostas aos problemas complexos com que

a escola tem que lidar, vão-se delineando e concretizando, mas não acontecem ao ritmo

rápido que talvez fosse desejável.

No âmbito da educação para a cidadania, François Audigier (2006) considera

que o principal papel do professor é conceber situações que propiciem aos alunos a

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construção de conceitos, ferramentas indispensáveis para decifrar, analisar e

compreender o real.

No quadro da Gestão Flexível do Currículo, a escola e os professores passam a

desempenhar funções essencialmente a nível da decisão e organização, deixando o

terreno da execução para os alunos. Assim, “os professores não são «correias de

transmissão» entre programas e manuais «prontos a usar» e os alunos”. Os professores

são profissionais que identificam e interpretam problemas educativos e procuram

soluções para esses problemas, no quadro de orientações curriculares nacionais”

(Abrantes, 2001, p. 43). No caso concreto das áreas curriculares não disciplinares

constituíram um desafio especialmente exigente para os docentes, por serem algo novo,

sendo, por isso mesmo, aconselhado que os professores envolvidos fossem escolhidos

pelo seu perfil, experiência, formação e motivação, dependendo daí o seu sucesso

(Abrantes, 2002). E, se se considera a educação para a cidadania importante, então deve

ser integrada na formação dos professores (Audigier, 2006).

Para Maria do Céu Roldão (1999), o professor tem tido sempre um estatuto

híbrido, pois reparte as suas funções entre ser profissional e funcionário, ou seja, de

semi-profissionalidade. No contexto de mudanças da escola, a tendência vai no sentido

das características de profissão ganharem terreno face às de funcionário, assumindo o

professor uma acção mais esclarecida e interveniente, cabendo-lhes uma

responsabilidade acrescida relativamente ao currículo, sua avaliação, ajustamento e na

selecção e/ou produção de materiais curriculares. Segundo Olga Pombo (2002), a

responsabilidade de um professor é com o saber e o seu ministério professo são os

alunos.

Que atitudes se podem encontrar entre os professores quando confrontados com

a função de educar para a cidadania?

Philippe Perrenoud (2005) faz um apelo para que não se sobrecarreguem os

programas das disciplinas, de modo a haver espaço e tempo para que professores e

alunos construam conjuntamente saberes e competências de cidadania, nomeadamente

através do contacto com realidades diferentes e do debate que conduz ao confronto de

opiniões.

Carla Cibele Figueiredo (2002) recomenda como percurso para a educação para

a cidadania por um lado, evitar erros como correr de conferência em conferência,

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livraria em livraria… à procura da última informação sobre cidadania; não saber por

onde começar; ou embrenhar-se em análises disciplinares sobre o tema; por outro lado,

considera seis atitudes possíveis: (1) Uns, imputam à escola a função de ensinar, ficando

para a família a de educar, sendo melhor manter essas tarefas separadas, como

prevenção de possíveis conflitos. Sendo a educação para a cidadania “um motor de

análise e da discussão de questões de identidade, de cultura, de valores e até de política,

não é considerada por estes professores uma função sua, mas da família” (p. 44). Mas,

não há neutralidade na função de professor, mesmo que haja um esforço nesse sentido,

ele trai-se na forma como trabalha, como lida com os alunos. “Cada professor ensina

sobretudo aquilo que é” (Pombo, 2002, p. 67).

O que passa fundamentalmente para os alunos é a figura humana, a presença concreta do professor, o modo como com eles se relaciona, como se interessa pelos seus interesses, o modo como vive e cultiva a sua profissão, o modo como se situa face ao saber que ministra, a paixão que o anima (Pombo, 2002, p. 67).

A educação para os valores tem o professor como interveniente principal, seja qual for a sua disciplina, porque o professor, ao interagir com as crianças e os adolescentes, assume-se como um adulto significativo que educa através do exemplo, da sua maneira de ser e de estar, da forma como comunica e como se relaciona, da forma como organiza a sala de aula e concretiza o processo de ensino/aprendizagem, Quanto mais consciente estiver dos seus papéis, mais fácil será a consecução dos objectivos sócio-morais prescritos (Marques, 1998, p. 32).

Assim, as fronteiras atrás referidas são artificiais. (2) Outros, atribuem grande

importância ao facto de concluírem o programa extenso, do qual não se podem desviar

em prol do seu cumprimento. Ora, não é necessário acrescentar nem desviar o programa

para se abordar a educação para a cidadania, pois “os objectivos do domínio da

formação pessoal e social cruzam o saber da disciplina” (p. 45) e a gestão curricular é

da responsabilidade do professor. (3) Há aqueles que reconhecem a importância de

educar para a cidadania, no entanto, outros colegas estarão, com certeza, mais

vocacionados. Se “educar é a palavra-chave que reúne todos” (p. 46), a todos diz

respeito. (4) Há também quem acolha bem as inovações, mas se sinta inseguro pelo

facto da sua formação inicial não ter incluído essa área. Aí a resposta está na formação.

Resgatar para o professor, o direito e o dever de ser exigente para consigo mesmo, para com a sua profissão, para com os seus alunos e para com o

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saber que, face a eles, representa e incarna e deve actualizar (Pombo, 2002, p. 67).

(5) Há quem pense “sozinho não sou capaz…”, pois inovar e mudar sozinho é difícil. O

apoio dos colegas e, sobretudo, de instituições abertas à novidade, pode ser o catalisador

necessário e suficiente. (6) E, existem outros que, com plena consciência disso ou nem

por isso, há muito que já educam para a cidadania. Pois, mesmo com diferentes

designações, houve experiências anteriores no sistema educativo português, como é o

caso do DPS ou da Área-escola, experiências essas que podem constituir uma mais-

valia.

“Enfin, la citoyenneté et l’education à la citoyenneté sont sous notre

responsabilité” (Audigier, 2006, p. 12) e “educar para a cidadania pode ser educar o

olhar sobre o outro e, de regresso, o olhar sobre o eu e ficar atento a olhar o agir de nós

com o outro, sem descanso e enquanto somos credores deste mundo” (Valente, 2001, p.

14).

1.3. A disciplina de História e a Cidadania

“Vivemos, hoje, uma cultura do instante, e o eterno ocupa cada vez menos

espaço no quotidiano do homem ocidental. Esta valorização do momento cultiva o

esquecimento e constrói-se sobre ele” (Felgueiras, 1994, p. 36). Perante isto, esperava-

se uma desvalorização da História, o que de facto se verifica na escola, por parte dos

alunos que não reconhecem nessa ciência a utilidade de outras. Mas, não deixa de ser

curioso que tenha aumentado o gosto pela História a nível da população em geral, o que

justifica a procura pelo cinema, séries televisivas, romances históricos, biografias, banda

desenhada, etc. no âmbito da História (Proença, 1990; Roldão, 1993; Felgueiras, 1994).

A explicação deste aparente paradoxo pode estar numa reacção instintiva do ser humano

à “cultura do instante”, procurando preservar o seu passado, conservar a sua identidade

e restaurar o seu património. Para além disso, os momentos de crise despertam a

reflexão e suscitam a busca da identidade pessoal e civilizacional, onde a História pode

ser o alicerce da cultura (Felgueiras, 1994). “O passado, como o pobre, está sempre

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connosco, não porque o decidimos tolerá-lo como fazemos com a pobreza, mas porque

não lhe conseguimos escapar” (Rogers22, 1984 citado por Felgueiras, 1994, p. 37).

É de considerar igualmente que a História divulgada pelos media é “viva”, fala

da vida quotidiana, dos “sem história”, tão distante da História do currículo português,

que espartilha pela linearidade cronológica desmotivadora. Para além disso, o acesso à

informação através das linguagens audiovisuais é mais apelativo e exige menor esforço

que a leitura e compreensão das tradicionais narrativas históricas (Melo, 2003).

O interesse pelo passado pode também ser visto como uma fuga à massificação

impessoal, imposta pelo mundo global em que vivemos, bem como uma procura de

referências num imaginário que permite escapar ao universo excessivamente racional

divulgado pelos media e que nos envolve no dia-a-dia. Do mesmo modo, banalizam-se

as festas e diluem-se as tristezas num quotidiano excessivamente ocupado, esvaziando-

se os espaços e os tempos comuns - “a memória colectiva” - que conferiam um

sentimento de pertença a uma determinada comunidade. Ao se interrogarem sobre si

próprias, as pessoas sentem necessidade de mergulharem nas suas raízes para

encontrarem respostas acerca da sua identidade. Neste contexto, a escola,

nomeadamente através da disciplina de História, pode assumir um papel importante nas

respostas a dar. “A nação carece de um cimento agregador que lhe dê realmente

consciência do que é, passando por uma memória do passado, um nexo de interesses e

valores do presente, um projecto sentido no colectivo para o futuro (Roldão, 1993, p.

30).

1.3.1. Porquê ensinar/aprender História

“A História é o estudo da vida”, no entanto tem sido uma disciplina esquecida no

currículo, não só a nível nacional, mas também a nível europeu. Há quem continue com

a opinião que a História se resume ao conhecimento do passado, que é transmitido aos

alunos pelo professor com ajuda do manual, mas existem novas propostas para o ensino

da História (Barca, 2003, Janeiro).

Se o Português é essencial aos alunos, desde tenra idade, porque se aprende a

comunicar; e se a Matemática é importante, pois ensina as noções do domínio

22 Rogers, P.J. (1984). The new history. Theory into pratice. Londres: The Historical Association.

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quantificável necessárias ao mundo do trabalho; com a História adquire-se a consciência

do tempo e da sociedade, a dimensão do mundo em que vivemos (Félix, 1998).

“Os três principais motivos tradicionais para o ensino da História [são:] a) iniciar

a criança numa herança específica e numa visão do mundo, instalando-lhe um conjunto

de crenças morais; b) respeito pelo passado do seu grupo; c) usar uma imagem comum

do passado para manter uma identidade do grupo humano a que pertence” (Partington23,

1980 citado por Felgueiras, 1994, p. 42).

Margarida Felgueiras (1994) apresenta algumas razões para se integrar História

no currículo: (1) o professor deve alargar os interesses dos alunos; (2) promove a

autonomia intelectual, na medida em que é abstracta, pois os dois conceitos que lhe

servem de base, o tempo e o espaço, também o são; (3) a sua metodologia pode

contribuir para aprendizagem de sucesso; (4) enquanto disciplina humanística, está

ligada às concepções e valores da sociedade em geral e das comunidades em particular,

sendo primordial na educação para a cidadania; (5) o desenvolvimento cognitivo deve

ser acompanhado do moral e socioafectivo, contribuindo a História para o

desenvolvimento do carácter da criança; (6) contribui para um sentido de pertença, dos

valores; (7) promove a compreensão da mudança na continuidade; (8) colabora na

alteração de padrões de comportamento na escola secundária, ajudando a banir o

vandalismo; (9) facilita uma maior compreensão do meio; (10) possibilita fazer juízos

fundamentados.

Segundo Noémia Félix (1998), hoje em dia pretende-se que a História contribua

para desenvolver as noções de tempo e de espaço, a compreensão da multiplicidade dos

factos e inter-relações, oriente na complexidade do mundo actual, de forma a ser

considerada a diversidade, que implica o desenvolvimento de atitudes de respeito e

solidariedade (Félix, 1998). Para esta autora as finalidades do ensino da História são: (1)

“a compreensão e explicação do mundo em que vivem através do passado” (p. 58); (2)

explicar o presente; (3) manter a memória colectiva, através do conhecimento das

origens e fundamentos da vida colectiva; (4) desenvolver a dimensão temporal do

Homem, através dos conceitos de mudança e permanência; (5) adquirir procedimentos

(como tratamento de informação, investigação, etc.), valores (tolerância, solidariedade,

etc.) e atitudes; (6) compreender o que se passa a nível internacional; (7) aprender a

23 Partington, G. (1980). The ideia of na historical educaion. Windsor: NFER Publising Company.

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eliminar estereótipos e pré-juízos; (8) fomentar a abertura a uma História multicultural;

(9) desenvolver atitudes positivas de âmbito ambiental. Assim, agrupou estas

finalidades em 3 grandes categorias: (1) saber ou objectivos cognitivos; (2) saber-fazer

ou métodos da História; (3) saber-ser ou atitudes. Considerando três dimensões: a

humana, a política e a económico-social.

Assim, a História deve ser uma das disciplinas que integram o currículo do

Ensino Básico, pela “promoção da compreensão histórica, pelo seu valor intrínseco para

o avanço do conhecimento sobre nós próprios, considerados individual e

colectivamente, e não por razões meramente extrínsecas e instrumentais” (Felgueiras,

1994, p. 38). Actualmente, o ensino da História permite “desenvolver no aluno

competências de «bom conhecimento» que lhe possibilitam compreender criticamente a

sua realidade e reconhecer-se como sujeito capaz de a transformar através de uma

participação consciente na vida da comunidade (local, nacional, mundial) (Félix, 1998,

p. 61). É, pois, o seu carácter formativo que justifica a sua presença na estrutura

curricular (Santos, 2000). Por outras palavras, a História desempenha um papel

importante na formação da identidade própria, preserva e continua a memória colectiva

e a consciência nacional, sendo importante na formação para a cidadania.

Maria do Céu Roldão (1993) lançou o desafio aos professores de História para

levarem os alunos a “sentirem o gosto e a utilidade da aprendizagem desta disciplina,

porque lhes interessa, porque se adequa às suas possibilidades e capacidades, porque

lhes permite descobrir e descobrir-se, numa sociedade que progressivamente vão

compreendendo melhor” (Roldão, 1993, p. 17). Para isso, sugere um repensar sobre o

universo de valores pedagógicos, sem preocupações com as conotações com atitudes

acusadas de passadismo e propõe: (1) uma atitude de pesquisa histórica a desenvolver

pelos alunos que utilize documentos de índole diversa e seja complementada com a

exposição do professor e/ou dramatizações, antecedidas por um tratamento rigoroso; (2)

relembra que os dados cronológicos são importantes, na medida em que constituem um

referente importante para a localização mental, pois está provado que a memorização,

após a compreensão e organização dos conteúdos, confere orientação e segurança aos

alunos, conduzindo-os para o sucesso; (3) um dos factores que aproxima os alunos à

História é a via da identificação (ou rejeição) com outros homens que viveram no

passado, ou seja, é “o papel dialéctico de certas figuras relativamente ao seu contexto

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histórico” que abre o caminho à compreensão histórica, sendo mais difícil a adesão às

interpretações estruturais. “Não são os métodos em si que são activos ou passivos, mas

o uso que o professor faz deles, consoante os diferentes objectivos que pretende atingir”

(Roldão, 1993, p. 19).

1.3.2. Como se ensinar / aprender História

Existe um paradoxo em torno da educação histórica em Portugal: temos uma História rica, quer como passado quer como produção de conhecimento; queixamo-nos de que os jovens não sabem nada desta disciplina; apesar disso, as universidades pouco investem na pesquisa no domínio do Ensino da História (Barca, 2000, p. 14).

A disciplina de História está sempre numa posição vulnerável na escola. Quando

faltam horas no desenho curricular, é candidata à redução dos tempos lectivos ou a ser

integrada numa área disciplinar, mas, paradoxalmente, se o currículo está em discussão,

História é um foco de controvérsia (Lee, 2000). Em Portugal tem havido nuances, mas a

actual situação no ensino básico é de currículo integrado no 1º Ciclo, como Estudo do

Meio, currículo interdisciplinar no 2º Ciclo, como História e Geografia de Portugal e

disciplina autónoma no 3º Ciclo, como História (Félix, 1998).

O ensino da História está condicionado pela idade e desenvolvimento intelectual

e psicológico dos alunos, bem como pelos conteúdos que ensina, entre outros factores

inerentes ao sistema educativo e à sociedade em geral (Proença, 1990). E, são múltiplas

as causas24 responsáveis pela contínua evolução das instituições escolares, sendo cada

vez mais importante que a escola prepare os alunos para a autonomia, devendo ser

abandonada a didáctica tradicional em prol da auto-instrução. E, com maior ou menor

eficácia, os currículos escolares têm tentado acompanhar este processo de

desenvolvimento. “Actualmente, já não faz sentido, que as mudanças curriculares se

24 Factores como “as transformações tecnológicas . . .; o crescente avanço do sector terciário; a acentuada concentração urbana a que corresponde o correlativo despovoamento dos campos; avanços consideráveis no domínio da saúde e da higiene; o progressivo desenvolvimento do trabalho social da mulher, com evidentes repercussões na estrutura e educação familiares; o desenvolvimento dos mass media, o cinema, rádio e televisão, que modificou por completo a natureza dos tempos livres e lazeres e tem contribuído para uma crescente massificação cultural; o alargamento da “sociedade de consumo” que, para além das necessidades primárias cria constantes necessidades artificiais pelo recurso às imposições publicitárias; o recente alertar das populações face aos problemas ecológicos resultantes das transformações industriais” (Proença, 1990, p. 63).

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façam por imposições de alterações políticas conjunturais, como era comum no século

passado, mas antes que qualquer inovação no currículo seja convenientemente

preparada” (Proença, 1990).

O conhecimento histórico constrói-se a partir do tempo, da causalidade e da

compreensão da mudança e tem as seguintes características: (1) pensamento

cronológico; (2) compreensão histórica; (3) análise e interpretação histórica; (4)

investigação histórica; (5) análise de temas históricos e a tomada de decisões. Embora

se inter-relacionem, estes factores podem ser agrupados em categorias como a

aprendizagem de conceitos, a explicação histórica e o problema do tempo. O professor

de História deve facilitar ao aluno a construção desse conhecimento através de apoios,

incentivando-o a expressar as “ideias históricas”. Segundo Topolsky25 (1982, citado por

Félix, 1998), há dois tipos de explicações em História: as intencionais, onde intervêm

personagens, que tentam explicar os factos pela motivação e, estando relacionadas com

a empatia, são as mais comuns nos alunos até os 15 anos; quanto às causais, são de

carácter mais abstracto e explicam através do relacionamento de factores económicos,

políticos e sociais. O professor deve utilizar, sempre que possível, os dois tipos,

podendo apoiar-se na narrativa histórica, que foi reabilitada, facilitando a acessibilidade

dos mais novos ao conhecimento histórico, na medida em que dá significado a

conteúdos que antes se pensava apenas serem adequados a adolescentes (Félix, 1998).

As dificuldades demonstradas pelos alunos na aquisição do conhecimento

histórico, não parecem não estar relacionadas com a natureza do conhecimento histórico

em si, mas sim com o domínio de técnicas de trabalho intelectual, como a capacidade de

observação, de leitura/escrita, de síntese, de compreensão de textos, etc). Facilita a

compreensão histórica fornecer aos alunos “saberes de referência”, que lhe permitem

relacionar acontecimentos, associar personagens e/ou conceitos, sendo estes marcos tão

mais importantes quanto mais novos são os alunos (Félix, 1998).

Caracterizando a França dos Anos 80, Suzanne Citron (1990) afirmou haver uma

sabotagem ao ensino da História, pois o modo de olhar o passado tinha mudado, embora

a historiografia escolar se mantivesse, o que justificava a ruptura cultural entre a

juventude e as gerações precedentes. Então, apelou a uma nova maneira de fazer

História, uma vez que “o olhar «científico» duma História Nova é humilde perante a

25 Topolsky, J. (1982). Metodologia de la historia. Madrid: Cátedra.

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complexidade e perante os limites do conhecer” (p. 101). Este quadro é idêntico em

Portugal, onde a informação também passou a ser transmitida através dos meios de

comunicação em “pedaços estilhaçados, abordagens em caleidoscópio . . .

representações em puzzle, patchwork de espaço-tempo” (pp. 100 - 101), utilizando as

novas linguagens electrónicas, do audiovisual ou da banda desenhada, onde a imagem

se impõe com força numa “nova ordem simbólica que já não é a da escrita linear e a do

pensamento por ela produzido e apela às representações e aos modos de pensar pré ou a-

escriturais” (p. 101). Para grande parte das crianças e jovens, a televisão é a companhia

eleita, distanciando-os da cultura tradicional clássica e introduzindo-os num novo

universo mental, onde a imaginação se liberta sem a subordinação à grafia da escrita.

Assim, “é irrisório e ilusório propor como «história» a crianças enformadas pela

televisão a diacronia linear duma narrativa pseudocontínua, sempre presente como

trama de fundo dos programas” (p. 101). Neste contexto, o ensino de História como foi

estruturado no século XIX é anacrónico na actualidade, “o olhar que os criadores da

historiografia escolar lançam sobre o passado já não é o nosso. Não se pode pedir aos

professores que o ressuscitem. . . . [O melhor] é formular . . . uma nova problemática:

substituir ao sistema das disciplinas compartimentadas a prioridade do Sujeito a formar”

(p. 23). Pois, “numa sociedade onde os media e outras fontes de informação e

comunicação se tornam crescentemente mais disponíveis, torna-se necessário que os

alunos adquiram competência de leitura e interpretação” (Melo, 2003, p. 23). Em vez de

se ignorar a cultura popular (televisão, cassetes, música, etc.), pode-se tentar

transformar essas fontes em recursos didácticos, usando-as para melhorar o

conhecimento histórico dos estudantes (Barbosa, 2005).

Os modelos didácticos para ensinar História foram evoluindo e, em Portugal,

estão integrados num contexto muito peculiar, pois a um longo período de estagnação e

endoutrinamento, seguiu-se uma ruptura e inovações múltiplas. Ora, as Ciências Sociais

e Humanas, como é o caso da História, vão reflectindo as mudanças ideológicas e

conjunturais (Roldão, 1993).

Assim, no período anterior a 1974, a matéria era “dada”, ou seja, era transmitida

“imposta sob um determinado «formato», incontestável, único, inatacável” (Roldão,

1993, p. 13). Seguia-se a lógica da disciplina (ensino tradicional), em que o professor

era o emissor e o aluno o receptor, que devia repetir para memorizar datas, nomes e

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factos (Proença, 1990; Félix, 1998). Era uma história factual, centrada na cronologia dos

acontecimentos políticos, enaltecendo as grandes figuras, como símbolos da ideologia

nacionalista. A interpretação histórica era pobre e manipuladora, escamoteando tudo

quanto fosse incómodo ao regime. Em coerência estavam as metodologias, que se

cingiam ao livro único (legalmente autorizado) e o ensino expositivo baseado nesse

manual, apelando à memorização-reprodução passivas por parte dos alunos, avaliados

nas “chamadas26” e “pontos27” (Roldão, 1993).

Depois, de 1974 à Reforma Educativa de 1986, foram introduzidas várias

alterações, que enriqueceram e complexificaram o ensino da História. Passou-se por um

período em que abriu as portas à informação vinda de outros países, responsável por

actualizações sucessivas, e por vezes contraditórias, de programas e metodologias,

consoante a conjuntura política ia sofrendo alterações. As mudanças mais marcantes

foram: programas organizados numa perspectiva estrutural; metodologias activas,

colocando o aluno na construção do saber histórico, aproximando-as do método

científico da História; abandono do livro único, substituído por vários compêndios e/ou

por materiais coligidos ou elaborados pelos professores e alunos (Roldão, 1993). Os

novos princípios psicopedagógicos privilegiam a lógica do aluno, permitindo-lhe

desenvolver as suas capacidades, ensinando-o a pensar. Assim, o ensino da História

deixa de ser meramente informativo, valorizando o carácter formativo (Proença, 1990).

Os currículos focaram-se no local/regional (aqui) e na contemporaneidade (agora),

perdendo a História a sua identidade como saber específico. O professor é o organizador

dos instrumentos que possibilitam a aprendizagem (Félix, 1998).

As adaptações necessárias exigidas pelas drásticas mudanças deste período

fizeram com que professores e alunos andassem um pouco perdidos, facto agravado

pela preocupação maior estar em tudo quanto contrastasse com o período anterior,

fazendo tábua rasa do que vinha de trás, em vez de se concentrarem esforços numa

busca criteriosa no que fosse cientifica e pedagogicamente mais adequado. Como

consequência cometeram-se exageros, tais como conotar-se o ensino activo com a

actividade do aluno e o ensino passivo com qualquer tipo de exposição ou transmissão

de conhecimento; privilegiou-se o trabalho na sala de aula, pela descoberta e

26 “Chamadas” aconteciam quando o aluno era chamado para responder às perguntas que o professor lhe fazia, com ou sem aviso prévio. 27 “Pontos” eram os testes de avaliação escritos.

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compreensão de conteúdos e conceitos, em detrimento do estudo extra aula e

memorização; valorizaram-se aspectos formativos (desenvolvimento de capacidades,

promoção de atitudes e domínio de técnicas de trabalho) (Roldão, 1993), minimizando a

importância dos conteúdos, que são um meio e não um fim, ou seja, no caso da História,

servem para explicar a realidade que nos rodeia (Proença, 1990; Roldão, 1993; Félix,

1998), provocando um desequilíbrio nos resultados, pois as capacidades, atitudes e

técnicas desenvolvem-se sobre conteúdos e não no vazio; nos manuais, em prol dos

documentos, gráficos, mapas, imagens, etc., o texto informativo contínuo de síntese e de

estudo quase desapareceu (Roldão, 1993).

A implementação da Reforma Educativa, com a Lei nº 46/86, de 14 de Outubro,

trouxe novos programas ao Ensino Básico, no sentido de superar as contradições

anteriores e adequar o ensino da História às características e modos de aprender dos

alunos. Deste modo, o saber histórico foi sendo integrado em vivências e situações

personalizadas do aluno, para que este lhes desse significado (Roldão, 1993). Assim,

tendeu-se para o equilíbrio, para uma aprendizagem significativa e construção do

conhecimento, em que se respeita a lógica da disciplina como um conhecimento em

construção. O papel do aluno e do professor complementam-se, pois este tem

conhecimento que aquele vai reelaborar mediante as propostas deste. Assim, o

professor, baseando-se em conteúdos, planifica actividades que facilitem ao aluno a

construção de significados. É um modelo integrador que segue uma perspectiva

construtivista, havendo uma preocupação em adequar as estratégias aos alunos a que se

dirigem, aos conteúdos e às finalidades. Isto não significa que se deva abandonar por

completo a memorização ou a transmissão de conteúdos programáticos, mas sim dar

importância aos métodos de trabalho, de desenvolvimento de atitudes e competências e

ao domínio de determinadas técnicas (Proença, 1990; Félix, 1998). Este modelo seguiu

uma lógica global, em que o ensino da História deve ser iniciado no 1º Ciclo, no qual os

alunos aprendem a pensar, em termos históricos, realidades simples numa perspectiva

multidisciplinar das Ciências Sociais (Estudo do Meio). No 2º Ciclo os alunos

contactam com ideias gerais que lhes permitem compreender a vida e a organização

social (História e Geografia de Portugal). Finalmente, no 3º Ciclo, estuda-se a evolução

dos homens através dos tempos, numa organização cronológico-temática (História)

(Félix, 1998).

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Com a Gestão Flexível dos Currículos, recupera-se a lógica do professor, tendo

este que contextualizar as aprendizagens de forma a dar uma dimensão didáctica aos

conteúdos (Félix, 1998). O objectivo foi “proporcionar materiais que pudessem ajudar

os professores e as escolas a gerir, com flexibilidade e rigor, os currículos nos contextos

específicos em que trabalhavam” (Vasconcelos, 1998, pp. 5-6). Não foi sua primeira

finalidade alterar os programas em vigor, mas sim trabalhá-los de uma maneira

diferente (Félix, 1998; Vasconcelos, 1998). Respeitando as características próprias de

cada disciplina do currículo, pretendeu-se aumentar a eficácia e adequação das práticas

educativas de modo a se atingirem os objectivos da educação básica, a “base da

educação e de um desenvolvimento permanente” (Félix, 1998, p. 12). Assim, era

essencial que se equilibrasse o desenvolvimento de atitudes com a aquisição de saberes,

para se conseguir desenvolver o espírito crítico. Deste modo, solicitou-se aos

professores que gerissem o currículo, que tomassem decisões curriculares, para além de

organizarem as situações de aprendizagem, algo diferente do que estavam habituados a

fazer. Assim, tornou-se necessária uma reflexão teórica sobre as aprendizagens,

métodos e técnicas, mas igualmente sobre a própria disciplina, sobre o saber (Félix,

1998).

Nas últimas décadas têm-se desenvolvido linhas de investigação no sentido de

traçar os perfis dos alunos no final da escolaridade básica, baseados nas competências a

atingir. Segundo Noémia Félix (1998), as competências essenciais28, no âmbito da

disciplina de História, que o futuro cidadão deve desenvolver ao longo dos três ciclos do

Ensino Básico, ou seja, aquelas que contribuem para a formação de uma consciência

histórica (meta fundamental da aprendizagem histórica), são as seguintes: (1)

conhecimento da realidade em que vive; (2) conhecimento e compreensão da natureza

social e individual do ser humano; (3) tratamento de informação; (4) desenvolvimento

de atitudes tolerantes tanto intelectual como socialmente; (5) respeito e valorização do

património histórico. E, como finalidades essenciais: (1) desenvolver o interesse pelo

passado; (2) compreender os valores da nossa sociedade; (3) conhecer as situações e

acontecimentos mais importantes do seu próprio país e do mundo; (4) desenvolver

conhecimento sobre a cronologia; (5) compreender as diferenças entre o passado e o

futuro e que as pessoas de outras épocas viveram valores e atitudes diferentes dos

28 O conceito de competência foi abordado de modo alargado noutro ponto da dissertação - ver p. 29 e seguintes.

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nossos; (6) distinguir entre factos históricos e a sua interpretação; (7) procurar

explicações para a mudança; (8) compreender que os acontecimentos têm uma

multiplicidade de causas; (9) estimular a compreensão dos processos de mudança e

continuidade; (10) desenvolver a perspicácia, baseada na informação, para obter uma

valorização do passado.

É com base nestas finalidades e no programa existente que os conteúdos do

currículo podem ser flexibilizados. Mas, para atingir estas metas, há ainda que contar

com as capacidades que devem ser desenvolvidas ao longo do ensino básico e que,

juntamente com as cinco competências nucleares atrás referidas, devem constar no

perfil do aluno. Espera-se que, no final dos três ciclos da escolaridade básica, os alunos

possuam conhecimentos e capacidades que possam ser mobilizadas para resolver

situações da sua vida activa. Assim, e apenas reportando ao final do 3º Ciclo, os alunos

devem ser capazes de: (1) explicar situações históricas, mostrando consciência da ideia

de mudança; (2) demonstrar que têm consciência das diferenças entre descrições

históricas e as fontes empregadas para as elaborar; (3) reconhecer que o valor das fontes

é determinado pelas questões que se põem; (4) seleccionar a informação relevante a fim

de realizar uma exposição completa, precisa e equilibrada usando algumas das

“convenções” da comunicação histórica (Félix, 1998).

No ano 2000, Isabel Barca (2000 e 2001a) descrevia a situação do ensino da

História em Portugal da seguinte forma:

o discurso escolar sobre a cognição e aprendizagem continua a centrar-se em ideias estereotipadas e abstractas sobre o desenvolvimento cognitivo, catalogando o raciocínio das crianças em pensamento concreto e o dos adolescentes em pensamento abstracto, como se não ocorressem variâncias. E a riqueza de significados múltiplos que os aprendentes constroem sobre a realidade, mesmo antes de situações de ensino formal, é desprezada, desperdiçando-se assim um capital cultural precioso para a transformação do senso comum em pensamento científico (Barca, 2001a, p. 7).

Os pedagogos queixam-se de abordagens sobrecarregadas de conteúdos e baseadas na memorização. Seria também possível fazer uma crítica de uma perspectiva demasiado «cientista». . . . e uma abordagem desconstrucionista do ensino da História . . . que pode levar os alunos a atitudes acríticas” (Barca, 2000, p. 19).

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No entanto, existem novas perspectivas para o ensino da História,

nomeadamente no domínio da cognição histórica, que deu os primeiros passos em

Portugal, na Universidade do Minho, na transição do século XX para o XXI, com Isabel

Barca e Maria do Céu Melo. Concretamente, no âmbito do Construtivismo, procura-se

saber como é que os sujeitos constroem as suas ideias (Barca, 2001a). Neste contexto, a

aprendizagem é “um processo de construção interpretativa por parte dos alunos . . . [ou

seja,] aprender um determinado conteúdo supõe atribuir um sentido e construir os

significados implicados nesse conteúdo” (Barbosa, 2005, pp. 5 e 7).

No domínio da cognição reconhecem-se como características do conhecimento

histórico a multiplicidade e a provisoriedade, na medida em que as conclusões

correspondem a interpretações, apenas passíveis de serem confirmadas ou refutadas

pelos dados existentes (Barca, 2000; Lee, 2000). Para além disso, as explicações

históricas são diversas e parcelares, uma vez que estão imbuídas dos juízos de valor de

quem as formula, bem como do objecto que é alvo de análise. Estes traços são

enriquecedores, não constituindo um obstáculo na contínua descoberta do conhecimento

histórico. Os critérios intersubjectivos de validação das produções demarcam a fronteira

entre uma resposta histórica e uma ficcional, sendo o que reúne maior consenso a

consistência com a evidência29 (Barca, 2000). Assim, aprender História na escola é

saber sobre o passado, mas também sobre o conhecimento histórico (Lee, 2000).

Esta abordagem deve ser explorada gradualmente na aula de História e permite

compreender melhor o mundo que nos rodeia, de uma forma sincrónica e diacrónica,

uma vez que é feita através da aquisição de competências de análise, de crítica, de

argumentação, a par com a aquisição de informação (Barca, 2001 e 2003; Lee, 2000).

Deste modo, pretende-se trabalhar a componente académica de uma forma mais

sofisticada, multi-perspectivada, pois “os historiadores não trabalham apenas uma

perspectiva, de contrário estariam a ser parciais e subjectivos. O verdadeiro historiador

tem em conta fontes e pontos de vista diversos.” (Barca, 2003, Janeiro). Assim, os

alunos começam por aprender porque razão algumas explicações e interpretações são

mais seguras que outras (Lee, 2000).

29 Consistência com a evidência, “entendida como o conjunto de indícios fornecidos pelas fontes sobre o passado” (Barca, 2000, p. 30).

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Em Inglaterra houve uma experiência pioneira no que ao ensino da História diz

respeito. Procurou-se promover um ensino activo, desde as décadas de 60 e 70 do

século XX, tendo essas ideias que destacam a cognição sido incluídas no currículo no

início dos Anos 90. Concretamente, tentou-se descobrir qual a origem das ideias e

conceitos que os alunos têm quando iniciam a aprendizagem de História. Constatou-se

que os alunos trazem consigo um determinado conceito de sociedade actual, sendo esse

o ponto de partida para compreenderem as sociedades do passado. Assim, os conteúdos

passaram a ser utilizados como uma forma de compreensão das diferentes interpretações

do passado por um lado, por outro, do papel das diversas fontes. Por outras palavras, são

os próprios alunos que consultam as diversas fontes, as confrontam e tiram conclusões,

apercebendo-se que não existe uma imagem una do passado, mas sim várias. A Irlanda e

os países nórdicos já estavam a trabalhar nesse sentido, quando os países mediterrânicos

ainda estavam a dar os primeiros passos (Barca, 2003, Janeiro).

Então, se se pretende desenvolver um determinado tema, deverá começar-se

pelas ideias tácitas que os alunos já têm sobre esse mesmo assunto, ou seja, as

assumpções que os alunos têm através do senso comum e que podem entrar em conflito

com o conhecimento que lhes chega na escola (Lee, 2000; Melo, 2001), uma vez que

“funcionam como uma fonte de hipóteses explicativas na senda de conhecer o passado,

as instituições, as pessoas, os valores, as crenças e os comportamentos” (Melo, 2001, p.

45). Por outras palavras, o ponto de partida para o ensino da História deverá ser

o conhecimento tácito substantivo histórico, definido como um conjunto de proposições que versam aspectos da História, construídas a partir de uma pluralidade de experiências pessoais idiossincráticas e sociais, e ou mediatizadas pela fruição de artefactos expressivos e comunicativos. O adjectivante tácito deve-se ao facto de que os indivíduos não reconhecem esse conhecimento como independente ou concorrente do conhecimento científico ou curricular (Melo, 2003, p. 33).

Assim,

aprendizagem será a capacidade de ‘construir’ uma representação pessoal e nela agrupar uma pré-existente visão social da realidade . . . e aprender, nesse sentido, implica a ocorrência de modificações e o estabelecimento de relações entre o nosso conhecimento prévio e o novo que chega, numa dinâmica circular contínua (Melo, 2003, p. 31).

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E, as ideias tácitas não devem ser menosprezadas, uma vez que têm tendência a

perdurar, mesmo após o confronto com o ensino formal, sendo evidente que as suas

concepções são parciais, provisórias, etc. Face à evidência, frequentemente os alunos

mobilizam estratégias alternativas como a adição, correspondência, selecção de

evidências confirmatórias, excepção à regra, criação de novas variáveis, silêncio, entre

outras (Melo, 2001 e 2003).

Pelo menos em parte, a persistência dessas ideias explica-se pelas suas

características, tais como: (1) “baseadas em experiências e vivências pessoais dos

alunos; (2) são geradas por processos primários de abstracção e problematização; (3)

muitas das ideias pertencem ao domínio das crenças, enraizadas no universo cultural

dos indivíduos e como tal têm uma permanência de longa duração, oferecendo uma

resistência a mudanças abruptas; (4) a sua persistência deriva da dificuldade dos

indivíduos se distanciarem e de exercerem auto-crítica; (5) são fáceis de ser recordadas

porque pertencem muitas vezes a contextos vivenciais que foram ou são relevantes para

os alunos (sensibilidade, sentimentos, etc.); (6) os alunos encontram nelas semelhanças

com a situação ou fenómeno científico em estudo; (7) estas ideias persistem porque

contêm em si mecanismos circulares de auto-alimentação e legitimação/reprodução

pacíficas” (Melo, 2001, p. 45).

1.3.3. Aprender Cidadania com a disciplina de História

No âmbito da formação para a cidadania, o objectivo da acção educativa é

disponibilizar uma cultura que lhe permita a reflexão sobre os problemas actuais, de

modo a compreender o mundo em que vive. Assim, uma preparação, tanto a nível físico

como intelectual, deve proporcionar ao futuro cidadão, não só o desenvolvimento das

faculdades individuais, mas também daquelas necessárias para a vida em sociedade.

Tendo uma visão crítica da realidade, dotado de eficácia e eficiência na sociedade em

que vive, vai-a transformando. Vista deste modo, a educação é um processo dinâmico

que tem

em conta a interacção entre a pessoa humana, em todos os seus aspectos, e a sociedade parte da definição prévia do tipo de cidadão que se pretende obter como produto da acção educativa e do conhecimento da sociedade que vai acolher esse futuro cidadão (Proença, 1990, p. 37).

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Assim, o cidadão é alguém “que deve possuir competências básicas afectivas, de

comunicação, tecnológicas, ecológicas e sociohistóricas” (Félix, 1998, p. 62), que saiba

orientar-se no tempo e tenha consciência histórica, que articule o presente com o

passado e o futuro, distinguindo “o real do imaginário, a permanência da mudança e os

tempos das mudanças” (Félix, 1998, p. 62). E, neste âmbito, o contributo da disciplina

de História é importante, sendo de valorizar a sua vertente formativa, bem distinta do

carácter doutrinador ou manipulador que teve outrora. Deste modo, ao aprender História

com entusiasmo, a criança está a estruturar a sua identidade pessoal e sentimentos de

pertença, ou seja, a adquirir referências e valores para a sua formação pessoal e

socialização. Ao avançar no conhecimento do real, vai distinguindo contrastes,

expondo-se a situações diversas experimentadas por outrem no passado, com

dificuldades e esforços variáveis, com as quais se identifica ou rejeita. Paralelamente,

vai desenvolvendo competências técnicas como a pesquisa de informação, hábitos de

leitura e estudo, gosto pela descoberta e pelo saber. E, numa fase mais adiantada,

proporciona

uma atitude reflexiva e crítica, a aquisição de hábitos de rigor e análise, a interiorização de valores pessoais, o enriquecimento da compreensão dos fenómenos sociais e, paralelamente, o domínio de competências necessárias à tomada de decisões, à resolução de problemas e à prática mais consciente de cidadania (Roldão, 1993, p. 47).

Maria Cândida Proença (1990), considera que “numa disciplina como a História

é impossível não abordar o problema dos valores, porque o aluno é permanentemente

confrontado com uma variedade de valores que se relacionam com acções dos

indivíduos, grupos ou culturas” (p. 61). A política educativa baseia-se em valores, mas a

cada valor não está associado um bem intrínseco ou uma verdade absoluta. Este é um

problema delicado com que os professores têm de lidar, pois esta área disciplinar pode

ser um meio privilegiado para dar a noção da relatividade dos valores, embora deva

existir uma reflexão prévia e cuidada sobre se querem ou não fazê-lo. Em caso

afirmativo, então há que distinguir entre os valores que estão subjacentes a uma

determinada política educativa e aqueles que o próprio docente pretende transmitir aos

alunos. Por outro lado, há que dar a noção que se pode optar por determinados valores,

devendo assegurar-se a oportunidade de todos o fazerem, tendo em conta os seus

limites, a sua hierarquização e que cada escolha implica uma determinada actuação, que

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tem consequências. Isabel Barca (2001a) refere-se ao juízo de valor como característica

genuína da História-conhecimento, na medida em que as explicações históricas são

construídas por alguém a partir de algo, facto que não a enfraquece, enriquece-a. Deste

modo, compreende-se que o ensino da História pode contribuir para a formação integral

do aluno, preparando-o para actuar na vida cívica, como cidadão consciente face a uma

realidade diversa e dispersa.

Assim, o ensino da História pode ser encarado “como formação para a cidadania

e para a participação democrática, na certeza de que somos seres sociais, situados,

políticos, enraizados num tempo, num espaço e num contexto, mas projectados para o

Futuro” (Vasconcelos, 1998, p. 6). É ainda importante para o desenvolvimento da

cidadania nos alunos, na medida em que os põe em contacto com a herança histórica do

seu país, que lhes permite melhorar competências como o pensar por si próprios e

analisar criticamente, desenvolver atitudes como a honestidade intelectual, o rigor, a

curiosidade, a abertura e a tolerância30 (Félix, 1998). Nesta perspectiva, a educação deve

ser simultaneamente conservadora, na medida em que transmite a cultura tradicional e

integra o indivíduo na sociedade, e inovadora, por estar aberta a novos valores,

preparando para compreender e actuar criticamente, de modo a contribuir para a

transformação da sociedade em benefício dos seus membros (Proença, 1990).

A História, “mestra da vida”, garante a sobrevivência do passado, retirando

exemplos e experiência necessários às gerações presentes e futuras, legitimando e

fortalecendo nações. À medida que se foi afirmando como ciência, a História foi

perdendo a sua vertente moralizadora, mantendo o que lhe é intrínseco ao próprio

objecto e método: (1) contribuição para a estruturação da memória colectiva; (2)

carácter formativo por lidar com situações humanas que envolvem opções, valores,

decisões, formas de organização social e política, revoluções, crises; (3) domínio de

métodos de análise de situações sociais, sentido crítico, rigor do pensamento, promoção

de atitudes de tolerância. Ainda que partilhe estes factores com outras ciências sociais, a

História fá-lo de um modo menos impessoal e mais englobante por lidar com a

realidade social passada, considerando interacções dinâmicas, possibilitando o contacto

com a evolução das sociedades, incluindo a vivência de tensões, conflitos, sentimentos e

valores. Assim, “intimamente relacionada com o problema de identidade pessoal e

30 Estas são recomendações do Conselho da Europa.

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nacional, está a questão do papel da História na construção dos valores e na preparação

para o exercício consciente da cidadania” (Roldão, 1993, p. 32).

A preocupação com a cidadania e a sua inclusão na reorganização curricular, não

só em Portugal como noutros países ocidentais, está directamente ligada a três factores:

(1) Aparente alheamento da juventude com a intervenção política, “aparente” pois a

participação verifica-se quando a situação lhes interessa (caso do acesso ao ensino

superior, ao trabalho, etc.). (2) Ressurgimento de grupos ideológicos de cariz totalitário

ou mesmo neo-nazi (mais evidentes na Alemanha e Estados Unidos da América),

fenómeno que já se verificou emergir em períodos com crise de valores, como

actualmente. Durante a infância e a adolescência, os indivíduos necessitam de

referências consistentes para formar a sua personalidade e identidade, seja pela sua

aceitação ou rejeição. Geralmente são os adultos a origem desses valores e a sua

ausência gera angústia e ansiedade, que pode conduzir à adesão a algo que lhes dê a

segurança que necessitam, como é o caso de uma ideologia de cariz totalitário. (3) A

crença que a escola pode ser a responsável por implementar os valores considerados

necessários à formação do cidadão das sociedades democráticas. Se é um facto que a

escola, em tempos, veiculou os valores do poder vigente, também é verdade que as

funções da escola se alargaram, abarcando funções a nível da inovação, investigação,

dinamização da comunidade, inclusão social, etc. E as expectativas excessivas podem

conduzir à utopia e ao fracasso (Roldão, 1993).

A aprendizagem da História na perspectiva da cognição histórica, como atrás

mencionado, pode assumir um papel fundamental na construção da uma cidadania

activa e esclarecida, pois ao seleccionarem e organizarem informação, os alunos estão a

desenvolver competências que a sociedade pede a qualquer cidadão, tais como, saber

fazer escolhas para melhor decidir. O contributo é menor quando se trabalha a disciplina

de História numa perspectiva de reprodução de informação, ainda que considerando o

nível local, nacional e global. Mas, mesmo neste caso, pode dar uma noção dos

diferentes tipos de democracia ao longo dos tempos e compreender que existem

sociedades onde os valores democráticos não são respeitados. E, com essa perspectiva

de diferença, os alunos podem construir valores de tolerância e de participação,

aplicáveis na sociedade onde estão inseridos (Barca, 2003, Janeiro).

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Um professor de História, para ensinar, vê-se na posição de conciliar o seu papel

de historiador com o de pedagogo. Pode optar por uma “abordagem técnica, encarando

o processo ensino/aprendizagem como uma acção intencional e sistemática, organizado

da melhor maneira, tendo em conta os objectivos educacionais, conteúdos

programáticos, estratégias de ensino e sistema de avaliação; ou pode fazer uma

abordagem humanística, em que a didáctica se ocupa fundamentalmente da dimensão

humana no processo ensino/aprendizagem, preocupando-se em especial, com a

aquisição de determinadas atitudes pelos seus alunos.” (Proença, 1990, p. 20). O mais

sensato, integrado e global será uma posição concertada, que contemple ambas.

Para além disso, a tarefa do professor de História passa por ajudar os alunos a

perceber que a História não está contida nos manuais, nem é transmitida

misteriosamente por uma testemunha neutra. É um conhecimento que se vai construindo

provisoriamente, com base em critérios mais ou menos fiáveis. Assim, os alunos

deverão ser munidos de ferramentas que lhes permitam optar conscientemente por uma

ou outra história da História (Lee, 2000), facto que se reveste de particular importância

se se considerar a diversidade e quantidade de recursos informativos que existem à

disposição dos alunos. O processo de selecção, gestão e compreensão de fontes

históricas, geralmente resulta num conflito silencioso, privado e raramente audível.

Assim, os professores devem “adoptar uma atitude didáctica diferente, proporcionando

situações onde os alunos possam explicitar e ter consciência do conhecimento tácito

substantivo histórico que têm, e os modos como ele infere ou coexiste com o

conhecimento histórico que aprendem na escola” (Melo, 2003, p. 26).

Actualmente, os professores vêem-se confrontados com vários desafios, como o

de “conseguir criar nos alunos o gosto pela História e ser capaz de o fazer

adequadamente nos diferentes estádios do seu desenvolvimento” (Roldão, 1993, p. 45).

Espera-se que contribua para que os seus alunos modifiquem atitudes, de maneira a

serem cidadãos com uma intervenção crítica na sociedade. Outro desafio vem da

internacionalização do ensino da História, com múltiplas inovações que são trabalhadas

e divulgadas em encontros nacionais e internacionais, que preparam uma perspectiva

universal (Félix, 1998).

Se há novos desafios, surgem novos problemas, como o facto de, tanto os

programas como os manuais veicularem o programa oficial que, também ele tem uma

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historiografia implícita, raramente explicitada. No entanto, é ao professor que cabe a

decisão acerca de qual a imagem da História que veicula na sala de aula, pois é ele

quem transforma o “saber sábio” (científico) em “saber ensinado” (Félix, 1998).

A História pode proporcionar instrumentos intelectuais, capacidades de

encantamento e apetite pela cultura, aspectos importantes na formação e estabilidade de

um indivíduo. Se bem formado e melhor informado, sentindo-se bem consigo mesmo,

consciente do seu envolvimento com a sociedade e do carácter irrepetível do percurso

humano através dos tempos, então estão reunidos os requisitos para ter um olhar crítico,

mas humano sobre o que o rodeia, sendo “um Homem mais rico, uma pessoa mais feliz,

um cidadão mais interveniente” (Roldão, 1993, p. 48).

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Capítulo 2. O Estudo

2.1. Problema, objectivos e questões de investigação

Para a realização deste estudo, parti do pressuposto que a disciplina de História

desempenha um papel importante na abordagem da cidadania nas escolas e que os

professores desta área disciplinar se preocupam em desenvolver competências de

cidadania nos seus alunos. Para além disso, assumi que as competências para a

cidadania são sempre desenvolvidas na sala de aula pelo professor, seja de maneira

consciente, seja pela sua postura, atitudes, escolhas, etc. Logo, a formação e o percurso

individual de cada professor têm influência na sua prática lectiva, nomeadamente no

modo como trabalham o tema da cidadania.

Assim, a questão central formulada foi: Como são desenvolvidas as

competências de cidadania na disciplina de História por três professores do 3º

Ciclo do Ensino Básico do concelho de Odemira?

Os objectivos traçados para orientarem a investigação foram os seguintes:

- Conhecer as concepções pedagógicas de três professores de História sobre

o carácter formativo do currículo de História do 3º Ciclo do Ensino

Básico em relação à cidadania.

- Identificar as metodologias, as estratégias, as actividades e os recursos

utilizados pelos professores na promoção de competências para a

cidadania.

- Relacionar o percurso profissional e pessoal dos professores com o

desenvolvimento de competências de cidadania nos seus alunos.

Para atingir estes objectivos, formularam-se as seguintes questões de

investigação:

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Tendo em vista o desenvolvimento de competências de cidadania nos

alunos…

- … que papel reconhecem os professores à disciplina de História?

- … como interpretam os professores o programa da sua disciplina?

- … quais os temas do programa que são privilegiados do ponto de vista da

cidadania?

- … que metodologias, estratégias, actividades e recursos utilizam os

professores?

- … qual o contributo do percurso profissional e pessoal dos professores

participantes?

2.2. Metodologia

2.2.1. Natureza do estudo

O estudo que realizei inseriu-se no paradigma interpretativo, seguindo uma

abordagem qualitativa. Para além da própria temática – cidadania – o sugerir, os dados

analisados são de natureza qualitativa, ou seja, não são números nem directamente

mensuráveis (Bodgan & Biklen, 1994). Uma investigação interpretativa foca a sua

atenção na acção humana no contexto social, bem como no modo como o investigador a

explica, tendo em conta o actor, mas igualmente aqueles que com ele interagem

(Guimarães, 2003; Lessard-Hérbert, Goyette & Boutin, 2005). No âmbito da educação,

a investigação interpretativa centra-se nos significados que os alunos e professores

criam quando acontece a aprendizagem e no modo como esses sistemas se desenvolvem

e mantêm (Lessard-Hérbert e tal., 2005).

A minha intenção foi compreender como três professores de História do 3º Ciclo

do Ensino Básico trabalharam o currículo desta disciplina, tendo em vista o

desenvolvimento das competências de cidadania nos seus alunos. Para além disso,

identificar que metodologias, estratégias, actividades e recursos utilizaram, salientando

o papel do manual adoptado, uma vez que foi o recurso eleito por todos os participantes.

Tratou-se, então, de um estudo de situações que decorreram num ambiente natural, “rico

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em dados descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza uma realidade de forma

complexa e contextualizada” (Lüdke & André, 1986, p.18).

Como professora de História que, até à data, tem leccionado turmas dos 7º, 8º

e/ou 9ºanos, esta foi também uma oportunidade para reflectir sobre a minha prática

profissional. Assim, foi um estudo que se inseriu numa perspectiva humanista,

colocando questões relacionadas com a interioridade de professores, havendo

claramente uma aproximação da investigadora para com o fenómeno estudado, o que

não é possível num paradigma positivista (Bodgan & Biklen, 1994).

Como a investigação se realizou num contexto específico, o concelho de

Odemira, optei pela modalidade estudo de caso. Também me encorajou o facto de ser

uma modalidade recomendada não só para investigadores experientes, como também

para principiantes (Bodgan & Biklen, 1994). Para além disso, adequava-se às variáveis

com que tinha que lidar, concretamente a calendarização estava circunscrita a um ano

lectivo e o estudo era empreendido por uma investigadora isolada. Assim, a

investigação incidiu sobre um «sistema limitado» (Bounded system) (Guimarães, 2003),

uma vez que houve delimitações que impuseram contornos claramente definidos (Lüdke

& André, 1986), sob pena de não ser concluído dentro do prazo. Ora, estudar apenas um

caso, proporcionou a oportunidade de aprofundar um determinado aspecto em menos

tempo (Bodgan & Biklen, 1994; Bell, 2004), o que foi ao encontro das minhas

necessidades. No entanto, estou consciente que se trata apenas de uma parte e, ainda que

seja significativa (duas das quatro escolas básicas dos 2º e 3º ciclos do concelho de

Odemira), não se deve perder de vista o todo que as integra. Só assim serão possíveis

comparações com outros exemplos do mesmo tipo, que podem conduzir a

generalizações (Bell, 2004).

Lüdke & André (1986) listam características próprias do estudo de caso em

abordagens qualitativas, as quais estão presentes nesta dissertação, a saber: (1) visar a

descoberta, ou seja, partindo de um quadro teórico inicial, deve estar aberto aos novos

elementos que surgem, podendo ser acrescentados – o que foi feito após as entrevistas;

(2) enfatizar a interpretação em contexto – o contexto onde as escolas se situam era-me

familiar31; pretender retratar a realidade de forma completa e profunda, procurando o

investigador revelar a multiplicidade das dimensões presentes – analisei

31 Situação descrita na Introdução, ponto 2 – Relevância, pertinência e motivação (p. 7).

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sistematicamente os dados recolhidos; (3) usar uma variedade de fontes de informação –

ora as fontes foram tanto os inquéritos, como a análise documental; (4) revelar

experiência vicária e permitir generalizações naturalísticas sem, no entanto, deixar de

estar atenta ao perigo da distorção, pois a generalização pode colocar em causa a

validade do estudo (Bell, 2004); (5) procurar representar os diferentes pontos de vista,

por vezes contraditórios – o que surgiu ao confrontar as opiniões entre os entrevistados;

(6) utilizar de uma linguagem e uma forma acessível, podendo a apresentação conter

relatos com linguagem informal, dramatizações, desenhos, fotografias etc. – houve essa

abertura, que se manifestou num clima de à vontade com os participantes, durante as

entrevistas e não só.

2.2.2. Os participantes

Os participantes foram professores de História do 3º Ciclo do Ensino Básico,

seleccionados em função da área geográfica que escolhi trabalhar, o concelho de

Odemira. Foram três por serem os responsáveis por leccionar todas as turmas do 3º

Ciclo das duas escolas do concelho, que se disponibilizaram a colaborar.

Com todos eles, embora em alturas diferentes, estabeleci um contacto telefónico

prévio (Bell, 2004) no qual combinei um encontro pessoal. Nessa reunião preparatória,

apresentei o tema e os objectivos da investigação, esclarecendo que se destinava a uma

investigação no âmbito desta dissertação. O anonimato foi assegurado, tendo a primeira

entrevista a duração aproximada de uma hora e a segunda cerca de trinta minutos,

ambas audiogravadas.

Optei por uma investigação dissimulada (Bogdan & Biklen, 1994) relativamente

aos órgãos de gestão das escolas onde os professores participantes leccionavam, pois

poderia conduzir à exposição indesejada por parte destes, causando um efeito inibidor

aquando da realização das entrevistas.

Assim, do ponto de vista ético, foram respeitados os requisitos de um

consentimento informado por parte dos sujeitos (Bodgan & Biklen, 1994; Carmo &

Ferreira, 1998) e de não serem “expostos a riscos superiores aos ganhos que possam

advir” (Bodgan & Biklen, 1994, p. 75).

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Ainda houve outro participante, se assim se pode dizer, na medida em que há

sempre interferência do investigador, pois “não existe a investigação conceptual e

metodologicamente neutra (Pacheco, 2006, p. 22). “É mais fácil reconhecer que os

nossos pontos de vista podem imiscuir-se numa análise de dados do que evitar que tal

aconteça” (Bell, 2004, p. 142).

2.2.3. Recolha de dados

Sendo o objectivo principal deste estudo o modo como os professores de

História desenvolvem competências de cidadania nos seus alunos, privilegiei como

método de recolha de dados a entrevista. Foi a partir desses dados, que analisei os

recursos que os docentes mencionaram utilizar e aos quais tive acesso. Assim, o

programa de História e os manuais, apenas foram analisados nos temas por eles

referidos e na medida em que se relacionavam com a cidadania.

Quanto à opção pela segunda entrevista, surgiu da necessidade de fazer o

balanço das actividades realizadas durante o ano lectivo. Foi efectuada na interrupção

lectiva da Páscoa (Abril de 2008), pois geralmente no terceiro período o volume de

trabalho aumenta, sendo de realçar o processo de avaliação dos alunos, nomeadamente

os exames dos 6º e 9º anos, que envolvem directa ou indirectamente a maioritariamente

os professores, sobretudo quando se trata de escolas pequenas, como é o caso.

Assim, os métodos de recolha de dados foram os inquéritos (questionários e

entrevistas) e a análise documental (Lessard-Hérbert e tal., 2005), ou seja, uma

estratégia composta, uma vez que é raro que um único método permita fornecer toda a

informação necessária (Ketele & Roegiers, 1999).

Foi considerada a hipótese de se realizar a observação de aulas, método

geralmente complementar das entrevistas (Bodgan & Biklen, 1994; Ketele & Roegiers,

1999; Bell, 2004; Lessard-Hérbert e tal., 2005). Tal opção foi abandonada após ter

auscultado os participantes. Embora nenhum se tivesse negado abertamente, todos se

mostraram pouco receptivos, atitude antagónica à disponibilidade demonstrada

relativamente aos outros pedidos. Tanto quanto me apercebi em conversas informais, a

justificação deve-se ao facto de ter sido o primeiro ano em que a avaliação de

professores do Ensino Básico e Secundário, nos novos moldes, foi para o terreno. E,

embora não se tenha concretizado na amplitude prevista inicialmente, como é sabido,

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essa avaliação tem agitado os ânimos dos docentes nas escolas e entre estes e o

Ministério da Educação32. Para além de implicar uma maior sobrecarga de trabalho para

os professores, sobretudo na fase de implementação, está prevista a observação de aulas.

Não sabendo exactamente o que esperar, nenhum dos participantes estava com vontade

que houvesse uma outra intervenção nesse sentido, desejo que foi compreendido e

respeitado.

Assim, este estudo centra-se no discurso dos sujeitos (objectivo das entrevistas)

e não nos comportamentos observáveis (objectivo da observação) (Ketele & Roegiers,

1999).

2.2.3.1. Os inquéritos

Era necessário transformar a informação comunicada em dados, uma vez que

“formam a boa base de análise . . . [e] incluem os elementos necessários para pensar de

forma adequada e profunda acerca dos aspectos da vida que pretendemos explorar”

(Bogdan & Biklen, 1994, p.149). Assim, recorri aos inquéritos para recolher informação

variada sobre os indivíduos, à qual não se poderia aceder através da observação e que

não se circunscrevia ao presente, reportando também ao passado (Ketele & Roegiers,

1999; Ghiglione & Matalon, 2005). Para além disso, as entrevistas e os questionários

permitem medir o que uma pessoa sabe (informação ou conhecimento), os seus gostos

(valores e preferências) e o que pensa (atitudes e crenças) (Tuckman, 2002; Lessard-

Herbert e tal, 2005).

Assim, os dados deste estudo foram maioritariamente recolhidos utilizando a

técnica do inquérito, usual na investigação qualitativa (Pacheco, 2006), em dois

momentos:

32 Exemplo disso foram as manifestações dos professores dos dias 8 de Março e 8 de Novembro de 2008, em Lisboa. Nesta última, “estiveram mais professores do que os cem mil que participaram na manifestação de 8 de Março” (Leiria, 2008, Novembro, p. 2), a “maior manifestação de sempre de professores . . . e na qual os sindicatos estimam que tenham estado 85% dos profissionais da classe, ou seja, cerca de 120 mil professores (em Março foram cem mil)” (Carvalho & Marques, Novembro, 2008). Talvez também seja um indicador a considerar o facto de “em 2008 já se reformaram quase quatro mil professores e educadores de infância. E, apesar de perderem regalias, cada vez mais optam pela reforma antecipada. . . . Das duas uma: os professores estão a ficar velhos ou cansados” (Alves, 2008, Outubro, p. 2).

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Quadro 1. Calendarização da recolha de dados

Momentos Objectivo Instrumento - Identificar os participantes Questionário

1º - Janeiro/Fevereiro.2008

- Saber como os participantes promoveram o desenvolvimento das competências de cidadania nos alunos

1ª entrevista semi-estruturada

2º - Abril.2008 - Fazer o balanço das actividades realizadas - Definir cidadania

2ª entrevista semi-estruturada

Foi realizado um questionário (Apêndice A), com a finalidade de recolher dados

para identificar os participantes. Foi pensado para ser respondido por escrito (Lessard-

Hérbert et al., 2005), embora passasse à forma oral, servindo de introdução à entrevista

propriamente dita. Essa decisão foi tomada perante o primeiro entrevistado, uma vez

que me pareceu despropositado passar-lhe as folhas do questionário para que

respondesse enquanto eu o observava, também não fazendo sentido entregar-lhas no

final. Essa alteração, que justifico com a minha inexperiência, explica também a

repetição de informações que surge no final da primeira entrevista, nomeadamente nas

perguntas (números 19 a 22) sobre a formação e áreas de interesse (Apêndice C), com

as quais se pretendia situar o entrevistado para as questões seguintes.

Quanto às entrevistas, foram realizadas duas a cada um dos três professores,

conforme referido anteriormente e indicado no Quadro 1.

A entrevista, como “um dos processos mais directos para encontrar informação

sobre um determinado fenómeno” (Tuckman, 2002, p. 517), consiste “numa conversa

intencional . . . dirigida por uma das pessoas, com o objectivo de obter informações

sobre a outra” (Bogdan & Biklen, 1994, p.134), “sobretudo interrogando-as e não

observando-as, ou recolhendo amostras do seu comportamento” (Tuckman, 2002, p.

308). Assim, “a entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do

próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre

a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (Bogdan & Biklen, 1994,

p.134). E, “dado que pessoas diferentes têm também diferentes perspectivas, pode

emergir assim um quadro razoavelmente representativo da ocorrência ou ausência do

fenómeno e, desse modo, propiciar-nos uma base para a sua interpretação” (Tuckman,

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2002, p. 517). Pode assemelhar-se a uma conversa entre amigos e foi o que aconteceu

de facto.

Tem a vantagem de ser flexível, o que permite que as respostas possam ser

desenvolvidas e clarificadas (Carmo & Ferreira, 1998; Bell, 2004) e possibilita maior

profundidade na abordagem (Carmo & Ferreira, 1998). No entanto, há que considerar o

tempo que esta técnica envolve (Carmo & Ferreira, 1998; Bell, 2004), bem como a

subjectividade, pois corre-se o risco da parcialidade. Os entrevistadores são seres

humanos e não máquinas, logo podem influenciar os entrevistados, “mas, se for apenas

um investigador. . . será parcial de forma consciente, passando assim despercebido.”

(Bell, 2004, p. 141-142). Para além disso, “a análise de repostas pode levantar

problemas e a formulação das questões é sempre tão exigente. . . . Mesmo assim

podemos obter material preciso a partir de uma entrevista” (Bell, 2004, p. 137). Assim,

na recolha de informação pela via da entrevista ou do questionário tem de se ter sempre em conta que, mesmo nas questões ditas mais objectivas, tudo o que se obtém é uma declaração do sujeito sobre a observação que ele faz do seu próprio pensamento, comportamento ou situação (Costa, 2001 citado por Pacheco, 2006, p. 22).

Consciente que “quanto mais padronizada for a entrevista, mais fácil será

agregar e quantificar os dados” (Bell, 2004, p. 139) e que “as entrevistas não

estruturadas centradas num só aspecto e conduzidas por um entrevistador habilidoso

podem fornecer dados valiosos ” (Bell, 2004, p. 140), a minha opção foi pela situação

de compromisso, ou seja, por entrevistas semi-estruturadas.

É importante dar liberdade ao entrevistado para falar sobre o que é de importância central para ele, em vez de falar sobre o que é importante para o entrevistador, mas o emprego de uma estrutura flexível, que garanta que todos os tópicos considerados cruciais são abordados, eliminará alguns problemas das entrevistas sem qualquer estrutura. . . . A vantagem consiste em estabelecer previamente uma estrutura, simplificando assim grandemente a análise subsequente (Bell, 2004, p. 141).

Assim, “fica-se com a certeza de se obter dados comparáveis entre os vários

sujeitos, embora se perca a oportunidade de compreender como é que os próprios

sujeitos estruturam o tópico em questão” (Bogdan & Biklen, 1994, p.135). A estrutura

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com alguma flexibilidade não pôs em causa dados essenciais, num estudo com respostas

delicadas na medida em que se relacionavam com a prática lectiva dos docentes.

Antes da realização das entrevistas propriamente ditas, houve o cuidado de

planear, tendo em conta os vários procedimentos a seguir (Carmo & Ferreira, 1998).

Para além disso, “para maximizar a neutralidade do processo e a consciência das

conclusões, é útil construir um esquema para a entrevista” (Tuckman, 2002, p. 517).

Assim, foi elaborado um guião para cada entrevista, que garantiu que os principais

temas foram abordados e, simultaneamente, constituiu uma estratégia “para obter uma

variedade de perspectivas sobre as mesmas questões” (Tuckman, 2002, p. 517). Não

houve, no entanto, uma preocupação excessiva em segui-lo (Oliveira, 2004). “O guião,

longe de incomodar, foi oportuno para sistematizar ideias e organizar a conversa”

(2008, Fevereiro, Notas de Campo da 1ª Entrevista com a Ana).

Longe de ser inibidor, como receei, o guião foi útil para nos disciplinar, pois “as conversas são como as cerejas” e facilmente resvalam para temas afins, interessantes sem dúvida, mas fora do âmbito pretendido no estudo. A consciência da existência do guião foi positiva, pois serviu como avisador para que as questões pensadas não fossem esquecidas, embora não sentisse em momento algum que fosse inibidor, outro receio que tinha. Aliás, como certamente se poderá ler na transcrição, houve perguntas que introduziram mais temas que os pensados por mim com aquela questão e, como sabia que queria aqueles dados mais adiante, deixei que a conversa fluísse (2008, Janeiro, Notas de Campo da 1ª Entrevista com o Januário).

[O Fernão] foi respondendo às questões do guião, que quase passou despercebido. Reflectindo à medida que falava, a entrevista mais pareceu uma conversa, apenas denunciada pela sequência de perguntas introduzidas pelo guião e pela ausência de opiniões da minha parte (2008, Fevereiro, Notas de Campo da 1ª Entrevista com o Fernão).

Foi elaborado um guião para cada uma das duas entrevistas (Apêndices B e D),

composto pelos seguintes blocos33:

- Blocos A1 e A2: Legitimação e motivação para a entrevista.

- Bloco B1: Promoção das competências para a cidadania.

33 Os blocos da 1ª entrevista têm o número “1” à frente da letra que o designa (ex. A1). Os da 2ª entrevista têm o número “2” (ex. B2).

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- Bloco B2: Balanço das actividades no âmbito da cidadania.

- Bloco C1: O programa de História para o 3º Ciclo do Ensino Básico e as

competências para a cidadania.

- Bloco D1: Formação e áreas de interesse dos professores.

- Bloco E1: Percursos profissional e pessoal dos professores.

- Bloco F2: Cidadania e competências para a cidadania.

- Bloco G2: Colaboração no estudo.

Quadro 2. Concepção dos guiões das entrevistas

Objectivos do estudo Questões de investigação Blocos do guião Tendo em vista o desenvolvimento de competências de cidadania nos alunos… … que papel reconhecem os professores à disciplina de História?

… como interpretam os professores o programa da sua disciplina?

Conhecer as concepções pedagógicas de três professores de História sobre o carácter formativo do currículo de História do 3º Ciclo do Ensino Básico em relação à cidadania.

… quais os temas do programa que são privilegiados do ponto de vista da cidadania?

- Bloco C1: O programa de História para o 3º Ciclo do Ensino Básico e as competências para a cidadania. - Bloco F2: Cidadania e competências para a cidadania. - Bloco G2: Coloração no estudo.

Identificar as metodologias, as estratégias, as actividades e os recursos utilizados pelos professores na promoção de competências para a cidadania.

… que metodologias, estratégias, actividades e recursos utilizam os professores?

- Bloco B1: Promoção das competências para a cidadania. - Bloco B2: Balanço das actividades no âmbito da cidadania.

Relacionar o percurso profissional e pessoal dos professores com o desenvolvimento de competências de cidadania nos seus alunos.

… qual o contributo do percurso profissional e pessoal dos professores participantes?

- Bloco D1: Formação e áreas de interesse dos professores. - Bloco E1: Percursos profissional e pessoal dos professores.

Os blocos B1 e B2, C1, D1 e E1 estão directamente relacionados com os

objectivos e questões de investigação do estudo, conforme explicitado no Quadro 2. Os

blocos A1 e A2 destinaram-se a legitimar a entrevista, motivar e agradecer a

colaboração dos participantes. Quanto outros blocos que integraram a segunda

entrevista, surgiram depois de uma análise prévia dos resultados obtidos da primeira

entrevista e alguma revisão da literatura. Considerei pertinente e necessário esclarecer

qual o conceito que cada um dos participantes tinha de cidadania (Bloco F2), uma vez

que o conceito em si é vago e amplo. Para além disso, achei interessante conhecer o

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impacto do estudo na promoção de competências de cidadania (Bloco G2), uma vez que

nas conversas informais que fui mantendo com os professores me parecia existir. Por

último, pareceu-me oportuno sondar a disponibilidade para uma colaboração futura

(Bloco G2).

Antes de me lançar no terreno, consciente da minha falta de experiência e

alertada para a importância da entrevista-piloto (Tuckman, 2002; Bell, 2004), realizei

uma a uma amiga, também ela professora de História. Foi um meio de praticar e de gerir

melhor o tempo, de modo a garantir a clareza, para pôr “à vontade o entrevistado e lhe

permite registar as respostas de forma a saber quando a entrevista chegou ao fim” (Bell,

2004, p. 138). Para além disso, foi útil por permitir que reformulasse algumas

perguntas, que se revelaram menos claras.

Parti para o trabalho de campo munida de uma série de informações que me

pareceram de bom senso (Bell, 2004), sugeridas nas aulas do primeiro ano do mestrado

e pela literatura especializada. Consciente de entrar “no mundo do sujeito. . . como

quem vai fazer uma visita; . . . como alguém quer aprender; . . . como alguém que

procura saber o que é ser como ele” (Bogdan & Biklen, 1994, p.113).

Com autorização expressa dos entrevistados34, as entrevistas foram

audiogravadas, recomendado quando as entrevistas são longas, portanto difíceis de

memorizar (Bogdan & Biklen, 1994). Revelou-se “útil para verificar as palavras de uma

afirmação que pretenda citar e para verificar a exactidão das suas notas. . . para

empreender uma análise de conteúdo e tiver de ouvir as entrevistas várias vezes para

identificar categorias” (Bell, 2004, p. 143). As transcrições, que foram os principais

dados deste estudo, foram feitas pouco depois do seu registo, para que a memória

ajudasse a compreensão (Bogdan & Biklen, 1994). Todos os protocolos foram

verificados e validados pelos entrevistados (Bogdan & Biklen, 1994; Bell, 2004).

Foram tiradas notas de campo, “o relato escrito daquilo que o investigador ouve,

vê, experiencia e pensa no decurso da recolha e reflectindo sobre os dados de um estudo

qualitativo” (Bogdan & Biklen, 1994, p.150). Neste estudo, foram maioritariamente

redigidas em casa, para evitar constrangimentos por parte dos entrevistados. Serviram

34 Ver Blocos 1 nos guiões de ambas as entrevistas nos Apêndices B e D.

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como suplemento, para completar os elementos que escaparam ao registo áudio, bem

como para fazer “comentários que o investigador deseje fazer” (Bogdan & Biklen,

1994).

Houve uma preocupação com o ambiente em que decorreram as entrevistas, “um

local e uma hora em que saiba que não será perturbado.” (Bell, 2004, p. 144). Assim,

por sugestão e opção dos participantes, decorreram em casa dos próprios. Em todos os

casos houve o silêncio necessário, bem como a empatia desejada e necessária a uma boa

comunicação.

A entrevista decorreu na sala de jantar, onde os dois dialogámos durante cerca de uma hora e meia, sobre assuntos que não estranhos às nossas conversas habituais sobre o ensino da História (2008, Janeiro, Notas de Campo da 1ª Entrevista com o Januário).

A entrevista decorreu no escritório, já meu conhecido de encontros prévios, sentados lado a lado numa grande secretária de trabalho, rodeados de livros, num inspirador ambiente calmo e silencioso (como convinha), apesar da sua família estar a gozar os prazeres do pós-almoço, numa tarde da quadra carnavalesca (segundo informações do próprio) (2008, Fevereiro, Notas de Campo da 1ª Entrevista com o Fernão).

Como a Ana estava cansada da gripe e de estar em casa aguardando a quarentena que o bom senso recomenda e que a interrupção lectiva do Carnaval permitiu, não iniciámos de imediato a entrevista, mas sim uma conversa, cujos contornos foram preparando o ambiente e temática anunciada (2008, Fevereiro, Notas de Campo da 1ª Entrevista com a Ana).

O balanço da realização das entrevistas foi positivo e o nervosismo inicial,

potenciado pela minha inexperiência, não constituiu qualquer entrave.

Alguns investigadores qualitativos experientes aconselham os principiantes a não efectuar revisões substanciais de literatura antes da recolha dos dados, mesmo que estejam certos da relevância da literatura. A revisão de literatura pode influenciar, demasiadamente, a escolha de temas e, assim, limitar a análise indutiva – uma vantagem importante da abordagem qualitativa (Bogdan & Biklen, 1994, p.105).

Este conselho foi seguido, tendo a revisão da literatura sido feita

maioritariamente após as entrevistas. De acordo com os objectivos definidos, privilegiei

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as temáticas da cidadania, a educação para a cidadania, o ensino da História e como

aprender cidadania com a disciplina de História.

2.2.3.2. Outros documentos

Nas investigações qualitativas, para além dos inquéritos, utilizam-se outros

documentos interessantes e pertinentes que, para além de fonte de informação, também

permitem triangular os dados (Lessard-Hérbert, M., Goyette, G. & Boutin, G., 2005).

Nesta medida, análise dos dados ou o estudo de documentos (Ketele & Roegers, 1999),

é um método que complementa os inquéritos e, no presente estudo, foi

fundamentalmente uma análise de conteúdo.

Aquando da confirmação da primeira entrevista, pedi aos participantes que me

disponibilizassem o material que utilizavam com os alunos, relacionado com o

desenvolvimento de competências de cidadania. Os próprios perguntaram se quereria as

planificações, os Projectos Educativo e Curricular de Agrupamento, e o Plano Anual de

Actividades, sugestão que foi aceite. O material disponibilizado foi o seguinte:

- EB 2,3 do Mira:

- Material entregue pelo Januário:

- Planificações dos 7º e 8º anos;

- Projecto Curricular de Agrupamento;

- Projecto Educativo.

- Material entregue pela Ana:

- Planificações do 9º ano;

- Ficha informativa da 1ª República;

- Acetatos sobre os regimes fascista e nazi;

- Apresentação em Power Point sobre a C.E.E. e a U.E.;

- Apresentação em Power Point sobre os regimes totalitários;

- Projecto do Clube Europeu.

- EB 2,3 do Monte:

- Material entregue pelo Fernão:

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- Planificações dos 7º, 8º e 9º anos;

- Regulamento e relatórios sobre o Clube da Rádio;

- Projecto Educativo;

- Plano Anual de Actividades.

As fichas informativas, apresentações em power point e regulamento, projecto,e

relatórios dos clubes não foram tidos em linha de conta por não se relacionarem

explicitamente com o âmbito deste trabalho. Aliás, isto mesmo foi referido pela Ana e

pelo Fernão quando os entregaram.

As informações obtidas da análise das planificações, dos Projectos Educativos e

Curricular de Agrupamento, e do Plano Anual de Actividades, foram utilizados para

triangular os dados, fazendo o cruzamento com as entrevistas.

Os manuais adoptados foram os seguintes:

- EB 2,3 do Mira:

- 7º ano – Maia, C., Brandão, I. & Carvalho, M. (2006). Viva a História!

História 7º ano. Porto: Porto Editora.

- 8º ano – Maia, C. & Brandão, I. (2007). Viva a História! História 8º

ano Porto: Porto Editora.

- 9º ano – Diniz, M. E., Tavares, A. & Caldeira, A. M. (2004). História

Nove – 9º ano, 3º ciclo do ensino básico. Lisboa: Lisboa Editora.

- EB 2,3 do Monte:

- 7º ano – Griné, C., Griné, E. & Rua, H. (2002). Oficina da História 7 –

história das origens do homem ao século XII. História 7º ano.

Lisboa: Texto Editora.

- 8º ano – Maia, C. & Brandão, I. (2007). Viva a História! História 8º

ano Porto: Porto Editora.

- 9º ano – Alves, E., Vieira, E., Ferrão, M. C. & Maia, R. (2004).

História 9 – 9º ano. Porto: Porto Editora.

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2.2.4. Tratamento de dados

Uma vez realizadas as primeiras entrevistas aos três participantes, procedeu-se à

redacção dos respectivos protocolos, com a passagem a escrito, na íntegra, dos registos

áudio obtidos. Deste modo, o tratamento dos dados iniciou-se enquanto a recolha ainda

estava a decorrer, o que é aconselhável para se reorientar a recolha, se se revelar

necessário (Bogdan & Biklen, 1994). Foi um processo interactivo e iterativo (Oliveira,

2004a), pois os instrumentos foram sendo adaptados, como referido anteriormente,

obtendo assim maior riqueza de dados. Exemplificando, a segunda entrevista correu

bastante melhor que a primeira, tanto a nível da concepção como da realização.

Num sentido mais amplo, [talvez] a análise comece mesmo antes da recolha de dados com a definição do enquadramento teórico e das principais questões de investigação, bem como a própria escolha dos participantes do estudo e dos instrumentos de recolha de dados. . . . Estes momentos na investigação contribuem a priori para a selecção dos dados e para os centrar de acordo com o objecto e o propósito do estudo e . . . têm um papel importante na recolha do material empírico e no desenvolvimento completo da análise. (Guimarães, 2003, p.8).

Neste estudo, “para fazerem «falar» o material” (Bardin, 2007, p.92), recorri à

técnica da análise de conteúdo

um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais subtis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a «discursos» (conteúdos e continentes) extremamente diversificados. . . . Oscila entre os dois pólos do rigor da objectividade e da fecundidade da subjectividade. . . . [É uma] tarefa paciente de «desocultação», responde a esta atitude de voyeur de que o analista não ousa confessar-se e justifica a sua preocupação, honesta, de rigor científico (Bardin, 2007, p. 7).

Na análise de conteúdo, optei por tratar as duas entrevistas de cada participante

em conjunto. Pensei que fazia mais sentido, uma vez que se complementavam. Na

segunda entrevista, acrescentei mais dois blocos: um que teve como objectivo averiguar

o impacto que o estudo teve na prática do docente (Bloco G2); outro, cuja finalidade foi

obter uma definição de cidadania por parte dos entrevistados, que é um conceito amplo

e difícil de concretizar (Bloco F2). Este bloco não foi inserido na primeira pelo receio

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de expor demasiado os professores. Esse é também o motivo que justifica que a

pergunta seja introduzida como “uma espécie de jogo”, no qual são pedidas três

palavras relacionadas com cidadania, escolha que foi justificada e relacionada com uma

actividade que pudesse promover essas competências (perguntas 5, 6 e 7 da 2ª

entrevista, Apêndice F).

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Capítulo 3. Análise e discussão dos dados

Este capítulo inicia-se com a caracterização das escolas e do meio envolvente,

seguida dos professores participantes, de modo a contextualizar os dados recolhidos

através das entrevistas. Depois, analisam-se e discutem-se os dados, apresentados

segundo as categorias e subcategorias estabelecidas. As conclusões estão sintetizadas no

final do capítulo.

3.1. As escolas e o meio envolvente

As duas escolas seleccionadas foram denominadas sob as designações fictícias

de Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos do Mira (EB 2,3 do Mira), onde no triénio de

2006/2009 trabalham o Januário e a Ana, e Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos do Monte

(EB 2,3 do Monte), onde lecciona o Fernão.

Situam-se ambas no concelho Odemira, o que significa que desenvolvem

algumas actividades em comum, nomeadamente no âmbito do desporto escolar e da

Rede de Biblioteca Escolares. De diferente têm a sua longevidade, pois enquanto a EB

2,3 do Mira conta cerca de 35 anos de existência, a outra apenas foi inaugurada no ano

lectivo de 1999/200035. Assim, a primeira tem um corpo docente mais estável36 que a

segunda, onde até aos últimos Concursos de Colocação de Professores para o triénio de

2006/2009, a mobilidade anual do corpo docente rondava os 85 %37.

35 Dados retirados do Projecto Educativo do Agrupamento, ao qual pertence a EB 2,3 do Monte (2002). 36 No triénio 2007/2010, no corpo docente da EB 2,3 do Mira, apenas 5% de professores contratados, pertencendo 56% aos quadros de escola e 39% aos quadro de zona pedagógica, sendo classificado como muito experiente (Projecto Educativo do Agrupamento ao qual pertence a EB 2,3 do Mira, 2008). 37 No ano lectivo de 2001/2002, dos dezoito professores do 3º Ciclo, nenhum pertencia ao quadro de escola, seis pertenciam ao quadro de zona pedagógica, sendo 12 contratados (Projecto Educativo do Agrupamento ao qual pertence a EB 2,3 do Mira, 2002). Geralmente, apenas os colegas de órgão de gestão se mantinham de um ano para o outro.

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Odemira38, situada no Baixo Alentejo Litoral, é o maior concelho do país com

1720,25 km2. O “clima ameno, a extensa orla marítima e uma paisagem de contrastes,

entre serras e planícies, tornaram este município de sobremaneira atractivo do ponto de

vista turístico” (Bastos & Freitas, 2004, p. 30). No distrito de Beja, é o concelho onde a

presença de imigrantes é maior39. Com uma baixa densidade populacional de residentes

(14,96 hab/km2 - quadro 3), no Verão multiplicam-se estes números, essencialmente no

litoral, pelos veraneantes que procuram as praias da Costa Vicentina, “pólos turísticos

por excelência de Odemira” (Bastos & Freitas, 2004, p. 30). Aliás, “o hábito da

frequência das praias para fins terapêuticos . . . começou a divulgar-se aqui na primeira

metade do século XIX” (Quaresma, 2006, p. 425).

Quadro 3. Indicadores do concelho de Odemira40

Indicadores Odemira Unidade Ano

Densidade populacional 14,96 Hab/km2 2004

População residente 26,106 Habitantes 2001

Taxa de natalidade 8,44 ‰ 2004

Taxa de mortalidade 13,44 ‰ 2004

Índice de envelhecimento 216,92 % 2004

Taxa de actividade 40,8 % 2001

Taxa de desemprego 8,4 % 2001

Taxa de analfabetismo 32,8 % 1991

Taxa de analfabetismo 25,7 % 2001

Médicos por habitante 0,58 ‰ 2003

Farmácia por habitante 0,51 ‰ 2003

Município carenciado e com uma população envelhecida (taxa de

envelhecimento de 216,92 %, com uma taxa de natalidade inferior à da mortalidade -

quadro 3), baixo nível médio de instrução41 e com uma elevada taxa de analfabetismo

de 25,7 % (quadro 3), apesar de ter vindo a diminuir (32,8% em 1991 – quadro 3). “A

38 Com excepção das citações identificadas, os restantes dados foram retirados do site oficial do Município de Odemira acessível em http://www.cm-odemira.pt/PT/Concelho/Geografia/Paginas/default.aspx, http://www.cm-odemira.pt/PT/Concelho/DadosEstatisticos/Paginas/default.aspx e http://www.cm-odemira.pt/PT/Viver /Economia/Paginas/default.aspx consultados em 06/11/2008. 39 A presença de alunos estrangeiros é referida nos Projectos Educativos de ambas as escolas. 40 Dados do Instituto Nacional de Estatística, consultados no site oficial do Município de Odemira, acessível em http://www.cm-odemira.pt/PT/Concelho/DadosEstatisticos/Paginas/default.aspx consultado em 06/11/2008. 41 Informação retirada do Projecto Educativo da EB 2,3 do Mira (2008).

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nível de saúde, os serviços de atendimento médico estão centrados em Odemira”42, onde

nem médicos (0,58‰ médicos por habitante em 2003 – quadro 3), nem farmácias

(0,51‰ médicos por habitante em 2003 – quadro 3) são suficientes para atender a

população concelhia.

Com uma taxa de actividade de 40,8% e de desemprego de 8,4 % (quadro 3), a

sua economia assenta no sector primário, nomeadamente na agricultura, pecuária,

silvicultura e exploração florestal. A indústria é praticamente inexistente, embora o

comércio a retalho e os serviços tenham alguma dimensão, bem como a pesca, no

litoral. O turismo tem vindo a desenvolver-se e a assumir uma importância crescente,

bem como a restauração e a hotelaria. Estas actividades marcam o quotidiano dos

alunos, uma vez que os do meio rural (os da EB 2,3 do Monte e alguns da EB 2,3 do

Mira), ao terminarem a escola, vão ajudar os pais na lida com os rebanhos de vacas,

cabras ou ovelhas, ou nalguma tarefa agrícola ditada pela época do ano. Quando o

Verão se aproxima, alguns começam a procurar emprego para as férias nas ofertas que

sazonalmente o turismo proporciona.

A nível de acessibilidade, a rede rodoviária é aquela que melhor serve a região,

apesar de uma linha de caminhos-de-ferro atravessar o concelho, na direcção Norte-Sul,

ou seja, de Lisboa-Algarve. O interior isolado e os povoados disperso pelos pitorescos

montes alentejanos são servidos por maus acessos, factor agravado pelos escassos

horários dos transportes rodoviários43, cuja frequência aumenta significativamente nos

períodos lectivos, devido ao transporte dos alunos para as aulas. Assim se percebe que,

embora a distância quilométrica das escolas mencionadas à costa atlântica não seja

grande (cerca de 17 km num caso, 30 km no outro), ainda é frequente encontrar alunos

que apenas vão à praia, quando a escola lhes proporciona essa oportunidade, quanto

mais a uma “cidade grande”.

Na EB 2,3 do Mira, o Projecto Educativo, O caminho para o sucesso, tema

pertinente e importante num meio onde o insucesso e abandono escolar são uma

realidade. Para além das condições sócio-económicas adversas, o facto dos alunos

pertencerem maioritariamente a “famílias ausentes da escola” explica que os educandos

sejam pouco incentivados a investir na formação académica para o seu futuro 42 Citação retirada do Projecto Educativo do Agrupamento, ao qual pertence a EB 2,3 do Monte (2002). 43 “A rede de transportes que serve esta região é quase nula, dificultando a deslocação das pessoas entre as localidades” (Projecto Educativo do Agrupamento, ao qual pertence a EB 2,3 do Monte, 2002).

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profissional. Apenas é promovida por uma minoria dos pais e encarregados de

educação, cujos filhos são um estímulo positivo para os colegas. Alguns núcleos

populacionais integram cidadãos estrangeiros, que estão harmoniosamente integrados na

comunidade educativa, constituindo uma mais-valia para diversidade cultural, na

medida em que mantêm traços da sua cultura de origem, assimilando os da cultura

portuguesa. Quanto aos professores, o desempenho tem sido afectado pela mobilidade e

carência de formação contínua.

A nível geral, a massificação do ensino, a estrutura e organização das escolas, o

tipo de ensino e avaliação tem tido consequências nefastas no sucesso escolar. No caso

concreto deste agrupamento de escolas, do 1º para o 3º Ciclo, os níveis de sucesso

diminuíram e, nos dois últimos anos lectivos, a percentagem de níveis inferiores a três

foi superior a 20%, sendo o sucesso superior a 80% no caso da disciplina de História.

Assim, na via para o sucesso, o agrupamento tem um duplo objectivo: promover o

sucesso educativo e reduzir o abandono escolar 44.

O desenho curricular do 3º Ciclo do Ensino Básico atribui à disciplina de

História uma carga horária para de um bloco de noventa minutos para os 7º e 9º anos e

um bloco e meio para o 8º ano. Para a área curricular não disciplinar de Formação

Cívica está destinado meio bloco, onde se deve abordar o tema da educação para a

cidadania, apesar de estar explicitado que é uma temática transversal, sendo “mais uma

prática que um discurso, mais uma acção que um conteúdo”. Assim, devem ser

considerados os temas seguintes: os valores e atitudes, relações interpessoais, educação

familiar, educação para a saúde, educação ambiental, educação do consumidor,

prevenção de acidentes, direitos humanos, educação sexual e educação estética. Quanto

às actividades que devem ser desenvolvidas são: a construção da identidade do aluno,

desenvolvimento de relações interpessoais, estabelecimento de regras para a vida numa

sociedade democrática, tomada de decisões, formação de um pensamento crítico

reflexivo, resolução de problemas, consecução de projectos de modo a ampliar os

conhecimentos dos alunos sobre as suas culturas, princípios e instituições democráticas,

justiça, mass media, etc.45.

44 Dados retirados do Projecto Educativo do Agrupamento, ao qual pertence a EB 2,3 do Mira (2008). 45 Dados retirados do Projecto Curricular do Agrupamento ao qual pertence a EB 2,3 do Mira (2008).

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Na EB 2,3 do Monte, o Projecto Educativo46 visa evoluir no contexto

desfavorecido onde se insere a região, “neste tempo ver o tempo que há-de vir e

reorientar a prática, sempre corrigindo erros, para o horizonte que está para além do

horizonte”. Assim, os objectivos são promover aspectos que beneficiem a região, tais

como combater a “desertificação humana”, a falta de investimento, de ambição

profissional dos jovens e de soluções para inverter esta tendência. Apontam no sentido

de elevar a qualidade da aprendizagem e do ensino, promover as novas tecnologias,

implicar os pais no processo de ensino/aprendizagem de forma comprometedora e

constante, diversificar as ofertas de ensino considerando o contexto local, minorar ou

eliminar os constrangimentos a uma boa prática pedagógica e melhorar a qualidade dos

serviços prestados.

Como o Projecto Educativo do Agrupamento ao qual pertence a EB 2,3 do

Monte são relativos ao ano lectivo de 2001/2002, embora continue em vigor enquanto o

novo está em reformulação, não analisei os restantes dados por estarem desactualizados.

No Plano Anual de Actividades, para o ano lectivo de 2007/2008, da EB 2,3 do

Monte, vem referida uma actividade que visou “promover o espírito de cidadania

europeia”. A exposição de trabalho e bandeiras inseriu-se na comemoração do Dia da

Europa (9 de Maio) e foi desenvolvida no âmbito do Departamento de Ciências Sociais

e Humanas, ao qual pertence a História, embora o Fernão não a refira na entrevista.

3.2. Os participantes

O processo de selecção foi diferente nos três casos, embora todos se mostrassem

disponíveis desde o primeiro contacto até ao final. O modo entusiasta como

responderam às entrevistas, foi uma motivação acrescida na concretização deste

projecto. Os seus nomes aparecem sob forma de pseudónimo.

O primeiro participante do meu estudo, o Januário, é um colega de História com

quem tive o prazer de trabalhar quatro anos nesta mesma escola à qual continua a

pertencer. Tem gosto em ensinar e a preocupação em chegar efectivamente aos alunos.

Cumprir o programa não esgota a sua visão de ser professor, missão que sente como

mais exigente e abrangente, principalmente quando se lecciona num meio rural, onde

46 Dados retirados do Projecto Educativo do Agrupamento, ao qual pertence a EB 2,3 do Monte (2002). Embora elaborado para o triénio 2002/2005, continuava em vigor por se encontrar em fase de reformulação.

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não é raro que os pais tenham habilitações inferiores às dos filhos que chegam ao 3º

Ciclo do Ensino Básico, o que os leva a considerá-los “uns doutores”, não vendo qual a

utilidade de prosseguirem estudos. As dúvidas que assaltam esses adolescentes à

medida que vão desbravando horizontes, enfrentando os costumeiros medos e receios,

esbarram muitas vezes com a falta de acompanhamento por parte dos pais, porque têm

que trabalhar, mas também porque não sabem, não podem ou não conseguem

acompanhar os filhos nessa viagem por mares que eles, progenitores, não navegaram.

Se têm a sorte de terem irmãos mais velhos, que já estudaram e foram aplicados, até têm

algum acompanhamento. Mas, se são os pioneiros da família, só uma grande motivação

e vontade de vencer os leva mais além.

Esta escolha revestia-se de algum risco pelo perigo de enviesamento das

respostas, devido à relação de proximidade que mantenho com esse colega. Mas, o

conhecimento do seu trabalho era uma garantia quanto aos dados obtidos e o

relacionamento podia ser facilitador da comunicação, fazendo com que a entrevista se

aproximasse duma conversa entre conhecidos para aprofundar os conteúdos (Bodgan &

Biklen, 1994). Estive atenta para não deixar “povoar o espaço da vida do outro com as

minhas próprias personagens” (Bullough citado por Oliveira, 2004). Tudo correu bem.

Quanto ao segundo participante, o Fernão, o contacto resultou de uma sugestão

de conhecidos em comum. Facilitava a recolha de informação o facto de ser o único

professor dos três níveis de ensino do 3º Ciclo na escola, o que aliás não constitui caso

único entre as escolas desta região. Já o conhecia pessoalmente de algumas reuniões de

trabalho e, essencialmente, através de conversas com antigos alunos, que ao se cruzarem

comigo na rua, falavam no novo professor de História com entusiasmo 47. Telefonei-lhe

e de pronto acedeu em participar.

Com a terceira participante, a Ana, o primeiro contacto foi estabelecido através

do Januário, uma vez que era sua colega de escola, sendo ambos os únicos professores

responsáveis pela leccionação da disciplina. Também ela aderiu ao projecto desde a

primeira hora.

47 Naquela altura o Fernão leccionava na escola secundária do concelho, enquanto eu trabalhava numa das quatro escolas básicas 2,3 da região.

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Quadro 4. Caracterização dos Professores participantes no estudo48

Professor

Características Januário Ana Fernão

Data de nascimento 19/03/1961 14/02/1964 08/08/1965

Habilitação académica Licenciatura em História – variante Arqueologia Licenciatura em História Licenciatura em Ensino de

História

Habilitação profissional

Qualificação em Ciências da Educação –

Profissionalização em Serviço

Profissionalização em Serviço Estágio Integrado

Grupo de recrutamento 40049 400 400

Níveis que lecciona 7º e 8º anos 5º e 9º anos 7º, 8º e 9º anos

Tempo de serviço total 21 anos 16 anos 16 anos

Tempo de serviço na escola onde lecciona 11 anos 4 anos 2 anos

Cargos exercidos

Conselho Directivo: Presidente, vice-

presidente, secretário; Director de Turma; Delegado de grupo;

responsável por clubes (Arqueologia e Jardinagem).

Director de Turma; Coordenadora de Departamento;

responsável por clubes (Europeu e Geo-História).

Conselho Directivo; Director de Turma;

Coordenador de Departamento;

responsável por clubes (Rádio e Xadrês).

Acções de formação nas áreas de…

Língua Portuguesa; informática; História; Currículo; Cidadania e

Património.

História; Sexualidade no Ocidente

História; internet; património histórico.

Intervenção profissional e comunitária

Associação de Pais; Direcção de uma

Cooperativa de Habitação.

Membro da Associação dos Professores de

História (APH).

Membro do Círculo Cultural do Algarve e do

Centro Desportivo Universitário de Évora

(CDUE)

Interesses pessoais / passatempos

Arqueologia e Arqueologia da Paisagem; investigação em História; natação; leitura de jornais.

Ler no âmbito da História; Astronomia; enigmas

matemáticos e sudoku; praia; animais de

estimação.

Leitura; escrita (ficção); ouvir música.

Todos os professores pertencem ao quadro de nomeação definitiva, embora o

Januário e o Fernão sejam do Quadro de Escola e a Ana do Quadro de Zona

Pedagógica50. Como se pode verificar pela análise do quadro 4, têm idades próximas,

tendo nascido na década de 60. São licenciados em História, embora o Januário na

variante de Arqueologia, e profissionalizados, embora dois tenham feito a

profissionalização em serviço e um tenha o ramo educacional integrado. Todos ficaram 48 Dados retirados dos questionários e das perguntas 19 a 27 da 1ª entrevista (Apêndice C) e, quanto às acções de formação, uma listagem entregue posteriormente pelo Januário e pelo Fernão. 49 400 é o grupo de recrutamento que corresponde à disciplina de História do 3º ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário. 50 Dado retirados das listas dos Concursos para professores do Ensino Básico e Secundário.

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colocados no grupo 400, leccionando, no ano lectivo de 2007/2008, a disciplina de

História a todas as turmas do 3º ciclo das duas escolas. À Ana foram distribuídas turmas

do 2º ciclo para completar o horário.

Quanto aos anos de serviço, a diferença entre o Januário (vinte e um anos) e os

restantes (dezasseis anos), corresponde aproximadamente à diferença etária entre eles, o

que significa que começaram a leccionar sensivelmente com a mesma idade e que já

têm uma experiência considerável no ensino. Relativamente aos anos de serviço na

escola onde estão colocados actualmente, esse foi o factor que mais os diferenciou, pois

enquanto o Januário conta onze anos, a Ana quatro (sendo que houve uma interrupção

no meio, dois seguidos de cada vez) e o Fernão apenas dois anos. A familiaridade do

Januário com a escola é maior; no entanto é de referir que o Fernão leccionava noutra

escola do mesmo concelho e todos escolheram estar nessa zona51.

Os três participantes já desempenharam cargos, tendo em comum terem sido

directores de turma, delegado de disciplina/coordenadores de departamento curricular52

e responsáveis por clubes. Quanto às áreas de formação contínua, privilegiaram a

História e temáticas afins à cidadania, como património e sexualidade. Em comum têm

ainda a intervenção profissional e/ou comunitária, embora seja diversificada. Os

interesses pessoais/passatempos apenas têm em comum a leitura e o facto de também

gostarem de áreas alheias à formação de base.

A análise comparativa dos três participantes, indica que pertencem à mesma

geração, a formação inicial e profissional é semelhante, bem como a longevidade na

experiência profissional, o que confere homogeneidade relativamente ao universo

analisado.

3.3. As entrevistas

Os dados recolhidos através das entrevistas foram submetidos a uma análise de

conteúdo, segundo a técnica da análise categorial (Pacheco, 2006; Bardin, 2007). Deste

modo, foram-se organizando sistematicamente os dados em bruto, de uma forma lógica,

51 Este dado não foi perguntado no questionário, mas soube-o nas conversas informais que antecederam as entrevistas. Para além disso, todos possuem casa própria na região. 52 Com o Decreto-lei nº 115-A/98, de 3 de Maio, passam a existir coordenadores dos departamentos curriculares em vez dos delegados de disciplina (Capítulo IV, Secção I, artigo 34º, ponto 2, alínea c).

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coerente e sucinta, consoante as semelhanças e diferenças, modelos e questões de

importância significativa, agrupando-os em categorias (Bell, 2004; Pacheco, 2006),

“unidades que permitem uma descrição exacta das características pertinentes de

conteúdo” (Bardin, 2007, p. 117). Por outras palavras, procedeu-se à codificação.

Adoptando a metodologia descrita por Laurence Bardin (2007), iniciou-se com a

leitura flutuante dos protocolos, à qual se seguiu o primeiro tratamento, seleccionando

as ideias pertinentes e relevantes do discurso dos entrevistados, eliminando tudo quanto

estava fora do âmbito dos objectivos pretendidos, identificando as unidades de sentido

que, posteriormente, foram categorizadas.

O Quadro 5 sistematiza as categorias e subcategorias, definidas de acordo com

os objectivos e as questões de investigação do estudo.

Quadro 5. Grelha de categorização

Categorias Subcategorias 1.1. Metodologia / estratégias / actividades / recursos

1.2. Manual 1. Práticas pedagógicas

1.3. Actividades não curriculares

2.1. Interpretação do programa / currículo

2.2. Conteúdos 2. Concepções pedagógicas sobre o programa / currículo de História

2.3. Planificações

3.1. Definição de cidadania 3. Conceito de cidadania

3.2. Competências transversais / disciplina autónoma

4.1. Formação 4. Percurso profissional

4.2. Percurso profissional / influência na promoção de cidadania

5.1. Áreas de interesse 5. Percurso pessoal

5.2. Percurso pessoal / influência na promoção de cidadania

6. Impacto do estudo 6.1. Impacto da participação no estudo

Nota: Todas as categorias foram definidas tendo em conta a promoção de competências de cidadania, o que não é explicitado para simplificar a leitura.

Finalmente construíram-se as grelhas de categorização (Apêndices F, G e H),

que permitiram apresentar os dados de forma condensada e simplificada. Foram

seguidos os princípios de exclusão mútua, homogeneidade, pertinência, objectividade e

fidelidade, e produtividade (Bardin, 2007).

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No tratamento da informação achei interessante estabelecer uma co-relação entre

os dados obtidos a partir das três entrevistas, fundamentando a prática com a teoria, ou

seja, fazer uma contra-análise entre o que é dito que é feito e o que é pensado acerca da

cidadania. Assim, sendo o objectivo principal deste estudo saber como três professores

de História desenvolveram as competências de cidadania com os seus alunos, considerei

pertinente iniciar a análise pelo que os professores disseram que fizeram na prática com

os seus alunos (categoria 1), tanto nas actividades curriculares (subcategoria 1.1 e 1.2)

como nas não curriculares (subcategoria 1.3). Prossegui no sentido de conhecer as

concepções pedagógicas dos professores sobre o programa/currículo de História

relativamente à cidadania (categoria 2), nomeadamente quanto à interpretação que

fazem (subcategoria 2.1), os conteúdos que privilegiaram (subcategoria 2.2) e como

planificaram (subcategoria 2.3). Depois, pareceu-me importante saber qual o conceito

de cidadania para cada um dos docentes (categoria 3) e averiguar até que ponto a sua

prática lectiva estava de acordo com definição que deram (subcategoria 2.1), bem como

conhecer a sua opinião relativamente à educação para a cidadania, se se deve manter

como competências transversais e/ou constituir uma disciplina autónoma (subcategoria

3.2).

Para complementar a investigação, pareceu-me pertinente analisar se o percurso

profissional dos professores teve influência nas suas práticas (categoria 4), tanto a

formação (subcategoria 4.1) como o percurso propriamente dito (subcategoria 4.2), e o

mesmo a nível do percurso pessoal (categoria 5), considerando as áreas por que se

interessam (subcategoria 5.1) e o percurso em si (subcategoria 5.2). Finalmente,

preocupei-me em saber se a participação no estudo tinha tido impacto nas suas práticas

(subcategoria 6.1), uma vez que as conversas informais apontaram nesse sentido.

3.1.1. Práticas Pedagógicas

Conhecer como os professores participantes promoveram as competências de

cidadania com os seus alunos, pareceu-me ser um bom ponto de partida tanto para a

entrevista, como para a análise dos dados. É mais fácil começar por falar daquilo que

está mais próximo e que não exige grande erudição, uma vez que a temática cidadania

assim o sugeria. “É na interrogação e no questionamento das nossas próprias práticas

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como professores, como educadores e como investigadores em Educação que poderá

emergir alguma esperança no poder transformativo da educação” (Matos, 2005, p. 37).

3.3.1.1. Metodologia / estratégias / actividades / recursos

Agrupei numa mesma subcategoria a metodologia, as estratégias, as actividades

e os recursos, para facilitar o tratamento, uma vez que os participantes não as referiram

em separado.

O Quadro 6 compila os dados referidos pelos três professores, bem como os

temas por eles trabalhados, tendo em vista o desenvolvimento das competências de

cidadania.

Quadro 6 - Metodologia / estratégias / actividades / recursos utilizados pelos participantes

Metodologias /estratégias/actividades/re

cursos Temas Januário Ana Fernão

- Direitos do Homem / Direitos Humanos

X

- Defesa do Património X

- Religiões: cristãos e muçulmanos X

- Participação dos alunos na vida local X

- Assuntos relacionados com a escola, como o Regulamento Interno e o estatuto do aluno

X

- Escravatura X

- Contributo dos iluministas e a Revolução Francesa para a actualidade X

- “Assuntos que os alunos . . . trazem para a escola” X

- Totalitarismos X

- Grécia: condição das mulheres, racismo e democracia X

- Debate / discussão

- Descobrimentos X

- Pré-História e actualidade X

- Democracia grega e actual X

- Hebreus/muçulmanos e o conflito do Médio Oriente Israelo-palestianiano X

- “Fazer um paralelo” / “fazer a ponte” entre um determinado conteúdo e actualidade

- Democracia directa e representativa X

- Poder absoluto e democracia X

- Comunismo e a separação de poderes do Estado X

- “Fazer o contra-ponto” / comparar

- Direitos Humanos e violação dos X

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mesmos

- Religiões: Cristianismo, Judaísmo e islamismo X

- Assembleia da República e órgãos do governo X

- Idade Média – site da Comissão para a Igualdade de Direitos entre Homens e Mulheres

X

- Escravatura – site da ONU e Amnistia Internacional X

- Pesquisa preparatória das visitas de estudo; X

- Internet / TIC / Novas Tecnologias - pesquisa - envio de trabalhos por e-mail

--- X

- Encontro de culturas – alunos alemães, holandeses, brasileiros X - Proporcionar a partilha de

experiências aproveitando a presença de alunos de culturas diferentes - Regime Nazi – reacção de alunas alemãs X

- Roma (sobre Pompeia) X

- Descobrimentos (Colombo) X

- Totalitarismos (Lista de Schindler) X - Visionamento de filmes /documentários

- Documentários sobre totalitarismos X X

- Fichas de trabalho --- X

- Templo de Diana em Évora (7ºano) X

- Monserrate, Palácio da Vila e Museu do Brinquedo em Sintra (8ºano) X

- Museu Militar (9ºano) X

- Caravela Boa Esperança X

- Visitas de estudo

- Jerónimos e Torre de Belém X - Sobre o tema da escola “Escola Ecológica” X

- Auto-recriação X X - Trabalho de pesquisa

- Totalitarismmos X - Totalitarismos – excertos de Mein Kampt e Direitos do Homem X - Leituras extra-manual /

livros - Dossiers que complementam o manual X

- Grécia – funcionamento do regime democrático e organização do poder X

- “Apontamento no caderno” - Religiões – quadro comparativo entre

Cristianismo, Judaísmo e Islamismo X

- Cartazes sobre os Direitos Humanos e a Amnistia Internacional X

- Cartazes sobre o 25 de Abril X - Exposição

- Guerra Colonial – material recolhido pelos alunos X

- Colóquio - 25 de Abril X

Estes professores utilizam metodologias/estratégias/actividades/recursos

variados na promoção das competências de cidadania com os alunos. Das treze

referidas, cinco foram utilizados por todos, o debate (que se destaca por ser referido

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onze vezes), o “fazer o contra-ponto entre…”/comparar, visionamento de

filmes/documentários, visitas de estudo interdisciplinares e trabalhos de pesquisa (sendo

de destacar que em dois casos foram por iniciativa dos alunos). Apenas se registaram

três casos em que a utilização é exclusiva de um professor, as fichas de trabalho pelo

Januário, leituras pela Ana e o “apontamento no caderno” pelo Fernão. As restantes

foram mencionadas por dois dos docentes, pelo Januário e pelo Fernão o “fazer um

paralelo”/”fazer a ponte” entre um determinado tema e a actualidade, bem como a

partilha de experiências entre alunos de culturas diferentes; pelo Januário e pela Ana o

uso da internet e pela Ana e o Fernão as exposições (embora uma tivesse sido feita no

passado e outra não chegou a ser efectuada).

Tem havido mudanças significativas no âmbito dos recursos utilizados na aula

de História. A utilização do manual em exclusivo deu lugar a uma profusão de materiais

didácticos, que revolucionam como se aprende e o que se aprende. No caso concreto da

História, a imprensa, os audiovisuais e as novas tecnologias de informação e

comunicação são meios privilegiados para uma aprendizagem, tanto formal como

informal, todas mencionadas pelos participantes. No entanto, o carácter inovador reside

em quem utiliza os recursos e não nos materiais em si (Félix, 1998).

O sistema educativo pode servir de iniciação à participação democrática,

nomeadamente proporcionando desafios da participação, disponibilizando “momentos

para o debate, onde podem ser incutidos princípios básicos para a discussão

democrática: que cada um fale na sua vez; ouvir atentamente, falar claramente para que

todos percebam a nossa opinião; não dizer nada que fira pessoalmente o oponente”

(Soares, 2003, p. 11). O Januário atribuiu uma importância grande aos debates,

metodologia que refere acerca de oito temas diferentes (Quadro 6) e ao modo como é

implementado na sala de aula: “é organizado o debate normal na sala, em que eles

organizam-se na sala em U (…) e eles elegem um moderador e um secretário… Eu

observo apenas (…) a minha intervenção é mínima” (Apêndice F, pp. 122-123)

Outro recurso a valorizar no ensino da História é o Meio, nomeadamente no

âmbito local/regional que proporciona a investigação, fonte de exemplos, permitindo a

interacção com o património cultural. No entanto, há que não esquecer a

contextualização (Félix, 1998). O Januário refere-se variadas vezes à importância do

património, nas visitas de estudo, debates e pesquisas na internet (Apêndice F, p. 122-

123).

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As exposições e colóquios organizados na escola, como foi o caso da Ana e do

Fernão, são importantes na formação do aluno como cidadão, na medida em que

promovem a consciência cívica e a formação política (Santos, 2001).

3.3.1.2. Manual

No início deste projecto, com base em conversas informais que tive com alguns

colegas, uma das minhas expectativas ia no sentido do manual ser um recurso destacado

pelos professores no desenvolvimento de competências de cidadania. Essa convicção

levou-me a indagar no questionário as referências do manual adoptado (pergunta nº 4,

Apêndice A, 110. ), bem como dirigir uma pergunta em particular na primeira entrevista

(pergunta nº 7, Apêndice C, p. 115). Esta expectativa não se comprovou na realidade.

Assim sendo, considerei ser desnecessária a análise dos manuais que tinha em mente,

uma vez que não poderia triangular os dados.

Por muito que se inove, o manual escolar continua a aparecer como o recurso

essencial e, muitas vezes, único, embora isso não aconteça com estes três professores. A

maioria dos professores optam por manuais abertos que permitam uma abordagem

equilibrada entre conteúdos e actividades (Félix, 1998) e parece ter sido essa a opção

dos participantes neste estudo.

Todos referiram gostar bastante do manual adoptado e o Januário foi quem o

mencionou mais vezes como sendo “extremamente rico”, que “aponta muitas pistas ao

professor”, nomeadamente no âmbito da internet e do património, para além de fazer

“um paralelo entre a época histórica . . . e a actualidade” (Apêndice F, p. 124 ). Foi este

o único aspecto salientado pelo Fernão - “naquela ponte que faz entre o passado e o

presente” (Apêndice H, p. 134). A Ana considerou que os dossiers53 “estimulam outros

saberes, outras competências e, se calhar… que se ligam a essa tal cidadania” (Apêndice

G, p. 130). Desta frase depreendi que não explorou o manual (nem os tais dossiers) em

função da cidadania, apenas apontando como um potencial recurso.

53 Os dossiers são subcapítulos do manual em que os autores aprofundam determinados temas, através de textos, imagens ou sugestões de filmes, sites na Internet, etc. Curiosamente, no manual que a Ana estava a utilizar designavam-se por “Descobrir” e não “dossiers”, designação adoptada por outras editoras (Diniz, M.E., Tavares, A. & Caldeira, A (2004), História Nove, História 9º ano / 3º Ciclo. Lisboa: Lisboa Editora, pp. 60-61, 128-129 e 174-175, 204-205 e 226-227).

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3.3.1.3. Actividades não curriculares

Todos os professores referiram o envolvimento com clubes, sendo unânimes em

referi-los no âmbito da promoção de competências de cidadania, apesar de apenas o

Januário (Clube de Jardinagem no memento e Clube de Arqueologia no passado) e o

Fernão (Clube da Rádio no momento e Clube de Xadrez no passado) estarem a

desenvolver projectos nesse âmbito no momento das entrevistas.

O Parlamento do Jovens, actividade desenvolvida em parceria com a Câmara

Municipal, foi mencionado por todos. O Januário acrescentou um outro projecto similar,

A Assembleia e a Escola, promovido anualmente pela Assembleia da República. Ambos

são espaços que proporcionam a experiência de vivência num parlamento, sedes da

democracia, suscitando o esclarecimento de dúvidas quanto ao seu funcionamento e

momentos de debate e participação em processo eleitorais.

O Fernão acrescenta que iria, no ano seguinte, estar envolvido na Rede de

Bibliotecas Escolares, espaço privilegiado para propostas no âmbito da cidadania. Para

além dessas, quando foram pedidos exemplos de actividades sugeridas pelos próprios

docentes, em que os alunos pudessem desenvolver as competências de cidadania

(pergunta nº 7, Apêndice E, p. 121). O mesmo professor não hesita em afirmar que são

as “actividades extra-curriculares, claramente (…). Por mais que pense nisso, são

actividades muito complicadas para serem feitas no espaço da aula (…)” (Apêndice H,

p. 134).

O ensino da História não se esgota no espaço sala de aula, como confirmou Luís

Filipe Santos (2000 e 2001) no estudo que fez com cinco professores de História. À

semelhança do que se passou no presente estudo, esses docentes salientam a

importância das actividades complementares do processo de ensino-aprendizagem da

História, como no caso dos clubes escolares, que envolvem a história local, para além

da educação patrimonial. Estes objectivos são igualmente abordados nas visitas de

estudo, meio para “incentivar a criação de hábitos culturais através das visitas a museus,

monumentos, exposições e itinerários patrimoniais” (p. 99), para além de

proporcionarem a descentralização da prática pedagógica, promovendo a motivação e

consolidação das aprendizagens.

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Por todos é salientada a importância das actividades não curriculares pela

oportunidade do envolvimento da escola com a comunidade onde se insere, essencial no

âmbito da cidadania. E,

a tarefa de realizarmos um ensino activo da História será facilitada se partirmos do estudo do meio. . . . É importante acentuar ainda que o recurso ao meio e à História local, além de interessarem extraordinariamente os alunos, permitem desenvolver e estimular o respeito, e digamos mesmo o amor, pelo património histórico-cultural (Proença, 1990, p. 59).

3.3.2. Concepções pedagógicas sobre o programa / currículo de História

Compreender as concepções dos professores significa reconhecer que, como qualquer ser humano, os docentes constroem as realidades e objectos com os quais lidam no âmbito do desempenho do seu papel profissional. Ao captar essas concepções, obtemos também elementos que nos permitem analisar melhor o modo como eles estruturam a sua prática pedagógica e assim podemos compreendê-la melhor. (Cibele, 2005, p. 23)

Nesta categoria pretendi conhecer as concepções pedagógicas dos professores

sobre o carácter formativo do currículo de História, saber como interpretavam o

programa da disciplina e qual o papel que lhe reconheciam no desenvolvimento das

competências de cidadania.

3.3.2.1. Interpretação do programa / currículo

Agrupei na mesma subcategoria programa e currículo, pois nas respostas que

obtive não houve distinção entre ambos os conceitos.

Os três professores são unânimes ao evidenciar a História como “a disciplina por

excelência . . . para o desenvolvimento das competências de cidadania” (Apêndice F,

pp. 124-125). “É a barra, a trave mestra . . . da própria cidadania . . . não se

apercebendo, [os alunos] interiorizam valores de cidadania”, disse a Ana (Apêndice G,

p. 130). É uma disciplina fundamental para o “ensino de cidadania . . . pelos seus

conteúdos é sempre educação para a cidadania . . . a única disciplina que efectivamente

de forma concreta os consegue estar a educar para a cidadania” (Fernão, Apêndice H, p.

134-136). Apresentam vários argumentos que suportam a sua opinião (Quadro 7), sendo

de destacar que todos referiram o facto dos alunos conseguirem, através desta disciplina,

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desenvolver competências para serem cidadãos integrados numa sociedade, onde devem

intervir / participar.

Quadro 7 – Argumentos apresentados pelos professores participantes por considerarem a História fundamental na promoção da cidadania

Argumentos Januário Ana Fernão - Conhecimento e compreensão do mundo X X

- Localizar no tempo e no espaço X X

- Ser cidadão integrado numa sociedade X X X

- Transmite valores X X

- Respeitar os outros / não colidir com o espaço do outro X X

- Intervir / participar na sociedade X X X

- Sentido de pertença X

- Mostra os dois lados da questão X

- Mostrar o aspecto religioso e cultural X

- Património X X

- Conteúdos X X

- Disciplina transversal X

- Dá ferramentas úteis para a vida pessoal, profissional X

As alusões ao programa foram pacíficas e, no entender do Fernão, “está bom”

(Fernão, Apêndice H, p. 134-136). Surgiram queixas relacionadas com a falta de tempo

para o cumprir: “Só tenho pena que uma disciplina como a nossa esteja cada vez menos

valorizada em termos de horas” (Ana, Apêndice G, p. 130); “Com uma componente

lectiva tão pequenina . . . como é que consigo ter espaço para desenvolver estas

actividades e ao mesmo tempo cumprir o programa” (Fernão, Apêndice H, p. 134-136).

Segundo Maria Cândida Proença (1990), os programas de História podem ter na base

uma ordenação cronológica ou temática. Em Portugal tem-se seguido mais a primeira

opção, por possibilitar melhor a compreensão das transformações sociais. No entanto, a

sobrecarga de conteúdos nos programas tem sido a consequência que, por sua vez,

dificulta o cumprimento dos mesmos por parte dos professores (Proença, 1990).

Apesar da Gestão Flexível do Currículo apontar noutra direcção, nas entrevistas

foram várias as alusões feitas aos conteúdos que tradicionalmente estavam distribuídos

pelos diferentes níveis de escolaridade,: “Através da apresentação do património

histórico é constante ao longo dos programas do 7º e do 8º ano” (Januário, Apêndice F,

pp. 124-125); “No 9º ano é quando a coisa se proporciona mais” (Fernão, Apêndice H,

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pp. 134-136). Na opinião de Isabel Barca (2003, Janeiro), o programa de História data

de finais dos anos 80 e, na opinião de muitos professores, é demasiado extenso, mas não

têm existido propostas para o modificar. No entanto, aos olhos da Gestão Flexível do

Currículo, os programas devem ser encarados como instrumentos para o

desenvolvimento de competências aos alunos, competências que não se resumem à

compreensão do passado, como também à utilização de fontes diversas.

Aliás, as confusões existentes quanto à distinção entre competências e

objectivos. A título de exemplo cito o Januário: “A Gestão Curricular, sim. Aí entram

algumas indicações para… apareceu uma (…) das principais competências a

desenvolver na disciplina. Embora sejam objectivos, objectivos?!? Competências muito

ditas de uma forma, como é que eu hei-de dizer… Larga, não é?” (Apêndice F, pp. 124-

125).

3.3.2.2. Conteúdos

Os conteúdos do programa de História que servem de suporte aos professores

para desenvolverem as competências de cidadania estão listados no Quadro 8.

Quadro 8 – Conteúdos do Programa de História do 3º Ciclo referidos

pelos professores participantes na promoção da cidadania54 Conteúdos Januário Ana Fernão

1.1. As Sociedades Recolectoras X - Homem/Natureza – atitude do Homem comparada com a Actualidade

X

1.2. Contributos das Primeiras Civilizações X X - A religião hebraica – comparação com Cristianismo e conflito israelo-palestiniano

X X

2.1. Os Gregos no Século V a.C.: o exemplo de Atenas X X - Democracia X X

- Sociedade X X

2.2. O Mundo Romano no Apogeu do Império X X - Cidadania em Roma X X

2.3. O Cristianismo: origem e difusão X X . Cristianismo X X

3.2. O Mundo Muçulmano em expansão X

54 Os temas estão identificados a negrito estão conforme o Programa de História, Ensino Básico 3º Ciclo - plano de organização do ensino-aprendizagem. .Vol. II. (4ª Ed.). Lisboa: Imprensa-Nacional Casa da Moeda. As outras referências estão conforme os professores as referiram nas entrevistas (Apêndices F, G e H).

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- Islamismo X

4.1. Desenvolvimento económico, relações sociais e poder político nos séculos XII a XIV X

- Concelhos e cartas de foral – poder autárquico X

5.1. A abertura ao Mundo X X X - Expansão e Descobrimentos – encontro de culturas X X X

- Mulheres subalternizadas – comparação com actualidade X

- Escravatura X X

5.2. Os novos valores europeus X - Renascimento e Humanismo X

6.1. Absolutismo e mercantilismo numa sociedade de ordens X - Absolutismo - comparação com a democracia X

6.3. A cultura em Portugal face aos dinamismos da cultura europeia X X

- Iluminismo X X

7.1. A Revolução Agrícola e o arranque da Revolução Industrial X X

- Industrialização e o ambiente X

7.2. O triunfo das revoluções liberais X X X - Revolução Francesa e os Direitos do Homem e do Cidadão X X X

8.1. O Mundo Industrializado X X - Emigração X

- Marxismo – comparação com o liberalismo X

9.1. Hegemonia e declínio da influência europeia X - Emancipação feminina X

10.2. Entre a ditadura e a democracia X - Totalitarismos X

11.2. As transformações do mundo contemporâneo X - A União Europeia – o cidadão europeu X

- Assimetrias Norte / Sul – países mais e menos desenvolvidos X

Temas transversais: X X - Património X X

É de salientar que todos os temas principais do programa foram referidos, logo

as competências de cidadania são desenvolvidas por estes professores em todas as

temáticas.

Em comum mencionaram apenas o encontro de culturas, no tema Expansão e

dos Descobrimentos, os Direitos do Homem e do Cidadão, no tema da Revolução

Francesa. Talvez não seja de estranhar que as coincidências sejam poucas, uma vez que,

considerando uma abordagem tradicional ao programa, ambos os itens fazem parte do

8º ano, e a Ana apenas lecciona o 9º ano.

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3.3.2.3. Planificações

As planificações constituem uma subcategoria emergente, tendo sido criada

pelas várias referências que teve por parte de todos os participantes.

As planificações surgem como uma espécie de referencial que guia os

professores, dando-lhes a noção se estão a “cumprir” ou se estão “atrasados”,

permitindo-lhes ainda organizar as ideias quando falam dos conteúdos. A título de

exemplo, posso citar o Januário: “Agora estava a pensar na planificação e estava agora a

ver apenas os conteúdos” (Apêndice F, p. 126) e a Ana “Ponho-as nas planificações a

longo prazo” (Apêndice G, p. 131).

Quanto ao Fernão, penso que algumas vezes utilizou a palavra “programa”

querendo referir-se a “planificações”, como são exemplo as frases “estou muito atrasado

no programa” e “ quando preencho papelinhos a dizer que cumpri o programa” (Fernão,

Apêndice H, p. 136). O que os professores têm que justificar no final do ano lectivo,

caso não cumpram são as planificações, que não têm que coincidir com a organização

do programa, sobretudo após a entrada em vigor da Gestão Flexível do Currículo.

Quando confrontados com a questão se planificaram tendo em conta as

competências para a cidadania, o Januário menciona que estão no início da planificação

nas atitudes e valores, a Ana diz que estão nas de longo prazo e o Fernão “confessa que

não” (Fernão, Apêndice H, p. 136). Segundo as planificações que me foram entregues, o

Januário apenas o fez para o 7º ano e conforme estão no Programa de História55, a Ana

referiu-se às dez competências gerais do currículo Nacional e o Fernão, de facto, nada

menciona.

Assim sendo, penso que não será abusivo constatar que as competências para a

cidadania não são tidas em conta nas planificações de forma criteriosa.

55 O Programa de História, como referido anteriormente, é anterior à Gestão Flexível do Currículo, portanto não está organizado tendo em conta as competências.

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3.3.3. Conceito de Cidadania

O conceito de cidadania não é fácil de definir, como foi mencionado

anteriormente. No entanto, a maior parte das pessoas têm uma ideia quanto ao conceito,

ainda que de uma forma geral e, nesse grupo, incluí os professores entrevistados.

A primeira conclusão retirada foi precisamente a dificuldade de delimitar o

âmbito do conceito: “Não sei se está relacionado com cidadania, mas… (…) Não sei se

terá alguma coisa a ver… Porventura, é capaz de ter (…)” (Januário, Apêndice F, pp.

126-127); “Portanto não tem propriamente assim a ver com cidadania, propriamente,

mas enfim…” (Ana, Apêndice G, p. 131).

3.3.3.1. Definição de cidadania

Considerei importante saber qual a definição que cada um tinha de cidadania,

uma vez que estavam a desenvolver competências nesse âmbito com os seus alunos. Se

perguntasse directamente, corria o risco de melindrar os participantes, então resolvi

fazê-lo como uma espécie de jogo, em que tinham que referir as três palavras

relacionadas com cidadania. Foi curioso constatar que foram todas diferentes:

Educação, disciplina e solidariedade para o Januário (Apêndice F, pp. 126-127); Direito,

dever e respeito para a Ana (Apêndice G, p. 131); Participação, democracia e

responsabilidade para o Fernão (Fernão, Apêndice H, p. 136).

No entanto, verifiquei que os participantes se referiram mais vezes ao conceito,

nomeadamente quando referem as metodologias/estratégias/actividades/recursos,

quando justificaram a importância da disciplina de História na promoção de cidadania e

quando seleccionam conteúdos. Assim, cruzei os dados com o Quadro 6, Quadro 7 e

Quadro 8, de modo a completar as definições, conforme mostra o Quadro 9 (a negrito e

sombreado estão as palavras mencionadas no jogo).

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Quadro 9 – Definição de cidadania para os professores participantes Palavras relacionadas com cidadania Januário Ana Fernão

- Educação X

- Disciplina X

- Solidariedade X X X

- Direito X X X

- Dever X X X

- Respeito X X X

- Participação X X X - Democracia X X X - Responsabilidade X - Sociedade X X X

- Património X X

- Valores X X

- Conhecimento e compreensão do mundo / pertença X X X

Com o quadro mais completo, é possível verificar que os conceitos de cidadania

dos três professores se aproximam em vários aspectos. Assim, arriscando uma definição

comum, cidadania pressupõe a participação numa sociedade democrática, organizada

segundo direitos e deveres, onde haja respeito e solidariedade, sociedade essa que

pertence ao mundo.

Na tentativa de confirmar se havia coerência entre o que disseram e o que

faziam, ou seja, entre a teoria e a prática, fui verificar se as

metodologia/estratégias/actividades (Quadro 6) desenvolvidas iam ao encontro das

palavras proferidas, tendo concluído haver correspondência.

3.3.3.2. Competências transversais / disciplina autónoma

Que as competências para a cidadania devem ser assumidas como uma

responsabilidade da escola, parece ser um facto pacífico. O modo como deve ser feito,

essa é uma questão antiga, que divide opiniões e não está resolvida, conforme

mencionado no Capítulo 1.

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Confrontados com a pergunta se as competências de cidadania devem ser

competências transversais no currículo ou constituir uma disciplina autónoma, as

respostas dos professores participantes foram consensuais. Todos afirmaram que as

competências devem continuar transversais no currículo: “Eu acho, eu considero que

devem ser transversais no currículo” (Januário, Apêndice F, p. 127); “Vejo toda a

vantagem que seja transversal” (Ana, Apêndice G, pp. 131-132); “A cidadania é sempre

transversal e será sempre transversal. (…) Deve continuar transversal” (Fernão,

Apêndice H, pp. 137-138).

Quanto às razões apontadas, o Januário e a Ana consideram que deverá ser um

trabalho de grupo a desenvolvê-las, porque “é uma forma de fazer com que os

professores trabalhem em equipa que é muito importante. . . . Se um professor não se

isolar e trabalhar com outros colegas, de certeza que vai aprender muito . . . e os

projectos ficam muito mais ricos” (Januário, Apêndice F, p. 127), “porque obriga, se

calhar, também todos os professores a reflectir (…) num aspecto que é muito simples,

em que estamos a formar jovens e, portanto não tem que ser deixado ao professor de

História. (...) Tem que ser uma tarefa de todos nós” (Ana, Apêndice G, p. 131-132). O

Fernão encara a transversalidade como um factor intrínseco ao próprio “professor, (…)

mesmo que quisesse, dificilmente se demitia disso.” (Fernão, Apêndice H, p. 137-138).

Em comum, pode-se também salientar o facto de todos se referirem à Formação

Cívica, ainda que não houvesse nenhuma pergunta nesse sentido, não a encarando de

forma positiva. O Januário afirmou “eu vejo-a de uma forma muito negativa, (…)

porque ela é usada pelos directores de turma (…) para desenvolverem actividades

burocráticas” (Januário, Apêndice F, p. 126), opinião que a Ana secunda, “a Formação

Cívica, muitas vezes, é usada para aspectos puramente burocráticos” (Ana, Apêndice G,

pp. 131-132). Já o Fernão tem uma ideia diferente, quanto “à formação cívica, mas fico

com a sensação que até dá a formação para a cidadania. Será, mas acaba por ser mais o

ensinar pouco mais do que o deves comer com a mão direita, . . . resolver os problemas

disciplinares” (Fernão, Apêndice H, pp.137-138).

Talvez se possa concluir que, embora os professores reconheçam que a área

curricular não disciplinar de Formação Cívica não é sinónimo de educação para a

cidadania, identificaram-na como tal quando há uma referência a uma disciplina

autónoma no momento da entrevista (pergunta nº 8, Apêndice E, p. 121). Assim, o

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Januário e a Ana, que diagnosticaram mais aspectos negativos, foram mais peremptórios

ao optarem pelas competências transversais. Já o Fernão mantém uma atitude mais

aberta,

veria com bons olhos a integração de alguns conteúdos que tivessem directamente a ver, por exemplo, com o funcionamento do regime democrático. Acho isso, esses conteúdos deveriam ser dados obrigatoriamente. (…) Se não fosse em Formação Cívica, que fosse, tudo bem, em História . . . em alguma disciplina (…). Da mesma forma que há, por vezes a questão da sexualidade (…) (Fernão, Apêndice H, pp. 137-138).

Por outro lado, a Ana sente a falta de um referencial, quando afirma

eu penso que cada escola no seu meio, no seu contexto, tem que saber definir estas linhas gerais a serem tratadas pelos docentes que leccionam Formação Cívica (…). Eu penso que deve ser uma coisa a nível de contexto, a nível local, ao nível da escola (Ana, Apêndice G, pp. 131-132).

Assim, para estes docentes, parece não haver dúvidas quanto à manutenção das

competências para a cidadania transversais no currículo, mas o assunto não fica

esgotado.

3.3.4. Percurso profissional

Nesta categoria estabeleci como objectivo compreender em que medida o

percurso profissional dos professores influenciava o desenvolvimento de competências

de cidadania nos alunos. No entanto, os resultados obtidos foram vagos e dispersos, não

permitindo tirar conclusões concretas. Assim, apenas me debrucei nos dados que

permitiram completar a identificação dos participantes, e fiz referência aqueles que

serviram para validar outros .

3.3.4.1. Formação

Os dados analisados foram integrados na caracterização dos participantes.

3.3.4.2. Percurso profissional / influência na promoção de cidadania

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O Januário salienta a importância de seguir regras ao longo da sua vida,

afirmando “Eu nunca consegui atingir os meus objectivos (…) sem seguir regras. Tentei

sempre estudar, porque me disseram que estudar era bom (…) para mim. . . . Hoje tento

transmitir a mesma coisa aos meus alunos” (Januário, Apêndice F, p. 127). Esta é

provavelmente a razão que o levou a escolher Educação e disciplina para definir

cidadania (Quadro 9).

A Ana destaca o papel dos

professores, mas também o nosso papel enquanto formadores (… ) na transmissão de valores, quer seja numa visita de estudo (…) que não podem agredir os colegas, que têm que se respeitar uns aos outros, não podem deitar o lixo no chão, que têm que respeitar o sítio onde visitam, as pessoas com quem falam (…) mesmo dentro do espaço escolar, o facto de nós todos apelarmos a que eles sejam civicamente. . . competentes e que respeitem regras e que respeitem os outros (Ana, Apêndice G, p. 132).

Talvez esta importância atribuída às regras e ao respeito justifique a selecção dos

vocábulos direito, dever e respeito, como representativos de cidadania (Quadro 9).

O Fernão assumiu que o percurso profissional “sim, ajudou-me imenso. (…) Eu

dava Recorrente Nocturno (…). O facto de ter sido trabalhador-estudante ajudou-me

imenso a percebê-los”. Para além disso, acrescentou que vai “aprendendo a estar com os

alunos . . . e dessa forma posso (…) ensinar-lhes melhor” (Fernão, Apêndice H, pp. 138-

139). Esta atitude pode explicar a eleição da participação e responsabilidade na

tentativa de definir cidadania (Quadro 9).

Parece-me que, ainda que não seja de modo directo/explícito, o que cada um dos

professores destacou no seu percurso profissional se reflectiu no modo como definem

cidadania, logo há influências a esse nível.

3.3.5. Percurso pessoal

Nesta categoria estabeleci um objectivo semelhante à categoria anterior, embora

considerando os aspectos pessoais. Assim, pretendi compreender em que medida o

percurso pessoal dos professores contribuía para o desenvolvimento de competências de

cidadania nos alunos. Os resultados obtidos foram igualmente pouco conclusivos.

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Assim, apenas me debrucei nos dados que permitiram completar a identificação dos

participantes, e fiz referência ao que me pareceu claro e directo nas respostas.

3.3.5.1. Áreas de interesse

Os dados analisados foram integrados na caracterização dos participantes.

3.3.5.2. Percurso pessoal / influência na promoção de cidadania

O Januário não identifica nada na sua vida pessoal que tenha influência no modo

como desenvolve competências de cidadania nos seus alunos. “Eu acho que o facto de

ter uma vida familiar estável . . . a chamada família tradicional… não me dá mais

capacidades para eu poder transmitir aos meus alunos as competências de cidadania.

Acho que conseguiria fazer isso na mesma (…)”(Januário, Apêndice F, p.128).

A Ana, pelo contrário, considera que “tu transmites enquanto pessoa, . . . tu

transmites valores aos teus alunos. . . . Valores de cidadania, (…) muito do que nós

fazemos, muitas vezes até inconscientemente, apelam à nossa consciência (…)” (Ana,

Apêndice G, p. 132). Deixando bem clara a sua ideia, dizendo que

no fundo nós carregamos todas as nossas experiências e quando as carregamos também as transmitimos, (…) a nossa maneira de ser, a nossa maneira de estar . . . e acaba por se reflectir em tudo o que tu fazes, acho eu (…) (Ana, Apêndice G, p. 132).

O Fernão concorda com a Ana, sendo explícito quanto à questão de ter vida

familiar, “tira-me algum tempo, implica que eu não faça tantas visitas de estudo como

gostaria . . . são momentos importantes na relação com a turma. . . . Não tenho

disponibilidade para ser professor e ao mesmo tempo ir fora do concelho [fazer

formação]”. E acrescenta “ter uma filha . . . ajudou-me a perceber como é que é o ser

humano”. E, no que diz respeito à “disciplina de História, a nossa forma pessoal de ver

o mundo está sempre presente. . . . Se for um professor racista a falar do Hitler (…)

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tentará suavizar a coisa. . . Então em termos de História, (…) por mais que tentemos não

levar a água ao nosso moinho…” (Fernão, Apêndice H, p. 139).

É difícil chegar a uma conclusão neste aspecto, pois não há informações para

além das respostas dos professores. Seria necessário um estudo mais aprofundado para

se poder concluir se o percurso pessoal influencia o modo como se desenvolvem

competências de cidadania nos alunos.

3.3.6. Impacto do estudo

O objectivo desta categoria era saber se, o facto de terem participado no estudo,

tinha tido algum impacto na promoção de competências de cidadania e, em caso

afirmativo, em que medida. Foi uma categoria que emergiu ao longo do estudo, partindo

das conversas informais que tive com os professores participantes.

3.3.6.1. Impacto da participação no estudo

Os três professores reconheceram que a participação no estudo não os tinha

deixado indiferentes: “Fiquei mais desperto” (Januário, Apêndice F, p. 128); “Se calhar

tive mais atenta ao nível das atitudes dos alunos” (Ana, Apêndice G, p. 132); “Senti que

devia organizar mais qualquer actividade ligada à cidadania” (Fernão, Apêndice H, p.

140).

No entanto, na prática, parece que as alterações, se existiram, foram poucas:

“Relativamente às minhas planificações, não alterei” (Ana, Apêndice G, p. 132); “Não

te sei dizer se isso interferiu directamente com a minha maneira de dar aulas. Eu penso

que não, não alterei” (Fernão, Apêndice H, p. 140). Talvez o Januário tenha feito

alguma experiência que lhe permitiu constatar que “são assuntos, normalmente, que os

alunos também estão despertos para eles, não é? E são aulas em que eles participam

com muito mais (…) gosto, a discutir assuntos do dia-a-dia e dão a sua opinião”

(Januário, Apêndice F, p. 128).

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Portanto, houve algum impacto a nível de sensibilização dos participantes,

embora sem consequências na prática, pelo menos no período que mediou o convite

para o estudo e a última entrevista, ou seja, do final do Verão de 2007 até Abril de 2008.

Capítulo 4. Reflexões finais

4.1. Conclusões do estudo

A questão que esteve na origem desta dissertação foi saber como são

desenvolvidas as competências de cidadania na disciplina de História por três

professores do 3º Ciclo do Ensino Básico do concelho de Odemira. Assim, foram

traçados três objectivos, à luz dos quais sistematizei e resumi as conclusões deste

estudo.

Objectivo 1. Conhecer as concepções pedagógicas de três professores de História

sobre o carácter formativo do currículo de História do 3º Ciclo do Ensino Básico

em relação à cidadania.

Os três professores são unânimes quanto ao facto da disciplina de História ser a

mais importante do currículo para o desenvolvimento de competências de cidadania

com os alunos. As razões são várias, sendo comum as que apontam para o

programa/currículo de História como meio promotor da integração dos alunos na

sociedade, como cidadãos participantes e interventivos. Para além disso, todos os temas

principais do programa de História têm conteúdos através dos quais os professores

promovem a cidadania. A dúvida chega através das planificações, onde a ausência quase

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total de referências às competências de cidadania, não deixa confirmar o que se passa na

prática. Como o presente estudo teve algum impacto nos participantes, pode ser que, ao

planearem o ano lectivo que se seguiu ao estudo e ora decorre, essa lacuna tenha sido

preenchida.

Também se verifica unanimidade quanto à manutenção da transversalidade das

competências de cidadania no currículo, embora seja levantada a questão de ser

importante abordar algumas “linhas gerais” ou “conteúdos” com os alunos.

Relativamente ao conceito que estes docentes têm de cidadania, a partir das

palavras e expressões que os professores referiram em comum, arrisquei uma definição:

cidadania pressupõe a participação numa sociedade democrática, organizada na

observância de direitos e deveres, onde haja respeito e solidariedade, sociedade essa que

pertence ao mundo.

Objectivo 2. Identificar as metodologias, as estratégias, as actividades e os recursos

utilizados pelos professores na promoção de competências para a cidadania.

No desenvolvimento das competências de cidadania com os seus alunos, os três

professores que participaram neste estudo utilizam múltiplas metodologias, estratégias,

actividades e/ou recursos, que não denunciam a região carenciada e isolada em que as

escolas se localizam. Pressupõe-se que a dinamização das aulas é rica e variada. Longe

de se limitarem ao uso do manual, estabelecem paralelos entre as épocas históricas

estudadas e a actualidade, fazendo comparações, partilhando experiências entre os

alunos, tirando partido do multiculturalismo da região, promovendo trabalhos de

pesquisa, visionando filmes, recorrendo às novas tecnologias. Deste modo, transmitem a

ideia que estes professores estão preocupados com que as aprendizagens sejam

significativas para os alunos, distanciando-se do modelo tradicional, baseado na aula

expositiva. As visitas de estudo interdisciplinares, a realização de colóquios e

exposições podem confirmar essa ideia.

Entre os treze itens mencionados, saliento os debates, uma vez os três docentes

os promovem, sendo variadas (onze) as temáticas que lhes servem de suporte. Para além

disso, um dos participantes, o Januário, vai ao pormenor de referir o modo como se

realizam, deixando explícito que se mantém de parte, deixando à turma a

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responsabilidade da organização. Assim, o funcionamento estará próximo de um

parlamento, sede da democracia, logo permite vivências essenciais para um cidadão.

Estas experiências são igualmente desenvolvidas pelos projectos O Parlamento dos

Jovens e A Assembleia e a Escola, actividades não curriculares, nas quais há um

envolvimento com a comunidade.

Objectivo 3. Relacionar o percurso profissional e pessoal dos professores com o

desenvolvimento de competências de cidadania nos seus alunos.

Este objectivo foi o que obteve respostas mais vagas e dispersas. Os dados

recolhidos não permitem tirar conclusões, uma vez que se baseiam apenas nas palavras

dos entrevistados, as quais não concorrem num mesmo sentido. Assim, não é possível

saber se o percurso profissional e pessoal influencia o desenvolvimento de

competências de cidadania. Para obter resultados válidos neste âmbito, será necessário

conceber um outro estudo.

A concluir o estudo relembrei-me do que escrevi no Capítulo 1: “E qual a

sensação que se experimenta ao agarrar a areia? Parece fácil, ali mesmo ao pé, à

discrição. Conseguimos tê-la na mão, mas se não se tiver cuidado, escorrega por entre

os dedos. Também a cidadania se esvai, se não estivermos atentos” (p.11).

4.2. Limitações do estudo

O facto de não ser possível observar algumas aulas dos professores que

participaram neste estudo, nomeadamente naquelas onde as metodologias e estratégias

referidas fossem postas em prática, ou mesmo seguir o desenvolvimento de uma

actividade, desde da concepção até à realização foi uma das limitações que este estudo

teve. No entanto, as contingências da actual situação vivida no país, consequentes da

implementação do novo processo de avaliação dos professores, assim o determinaram.

Outra limitação foi a escolha dos participantes, que não obedeceu a nenhum

critério aleatório, sobretudo no caso do Januário, por se tratar de um antigo colega com

o qual leccionei vários anos na mesma escola onde ainda está. No entanto, considero

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que foi mantida a objectividade desejada, para além do facto da escola ser outra, uma

vez que os alunos são outros, a maioria dos professores mudaram, bem como o órgão de

gestão, factores que asseguram um ambiente diferente. Quanto aos outros colegas, não

se coloca o mesmo problema, uma vez que o conhecimento resumia-se a saber que

existiam.

O facto de optar por um estudo de caso, condiciona à partida as generalizações,

tendo que haver muito cuidado com as comparações, apenas sendo possível em

enquadramentos semelhantes.

4.3. Problemas em aberto e futuras investigações

A cidadania, conceito cujos contornos são difíceis de determinar, logo, por

definição, será sempre um problema em aberto, um convite a acrescentar algo mais,

melhor e/ou diferente. Mas, porque não tentar construir um instrumento que ajude a

medir a cidadania nas escolas? Uma espécie de barómetro, que auxilie as próprias

escolas a saber se estão a caminhar no sentido de promover competências de cidadania

nos alunos e demais comunidade escolar. E, para além disso, que também permita

comparar-nos com outros países europeus. Enfim, algo que ajude a situar para melhorar

a acção, no sentido de construir uma sociedade mais agradável para todos.

4.4. Uma reflexão pessoal

Realizar esta dissertação representou um desafio a vários níveis, nomeadamente

enfrentar uma série de conceitos que supostamente todos os professores dominam,

mas… como disse Maria do Céu Roldão (1999) acerca do currículo “até porque se

pressupõe que todos sabemos muito bem o que é” (p. 23). É doloroso analisar e reflectir

sobre a nossa própria prática lectiva, tomando consciência quão melhor se poderia ter

feito se se soubesse mais, se se conhecessem os verdadeiros propositos de , se… e estar

ainda mais consciente de que se vai partir para o terreno fazer novas asneiras, ainda que

fundamentadas… cheia de boas intenções, tentando sempre melhorar.

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Passar a ser um investigador qualitativo é como aprender a desempenhar qualquer outro papel na sociedade. . . . Não só é preciso aprender os aspectos técnicos da forma como deve proceder, como também é preciso sentir que esse papel é autêntico e se ajusta a si (Bogdan & Biklen, 1994, p. 122).

À medida que ia fazendo as leituras necessárias para fundamentar a temática da

dissertação, fui “redescobrindo a pólvora”. Curioso, afinal, grande parte dos meus

raciocínios já tinham passado pelos neurónios de alguém. Não nego um certo

sentimento de frustração, largamente suplantado pelo consolo de não estar só, não ser

“E.T.”. (Des)agradável foi também a sensação de ler que vários autores previam grande

parte dos “males” de que poderia padecer o sistema educativo português, após a entrada

em vigor da Gestão Flexível do Currículo. Se essa previsão estava feita, porque razão

não evitaram esses (chamemos-lhes) deslizes? Conversando com um amigo acerca disso

mesmo, ele respondeu-me que há males que estão no sistema e nada se pode fazer para

evitá-los. Pergunto-me se terá mesmo de ser assim, pois penso, talvez um pouco

ingenuamente, que se a comunicação melhorasse entre quem “inventa”/”imagina” as

reformas educativas e quem as implementa no terreno, muitos desses “erros”

possivelmente desapareceriam.

O Mestrado colocou-se numa posição nova. Por um lado tive acesso a quem

estuda e pensa as reformas educativas e/ou relê/revê legislação, portanto mais próximo

do centro de decisão; por outro lado, mantive-me com ligação directa aos intervenientes

no processo educativo, alunos, professores, órgãos de gestão, auxiliares da acção

educativa e encarregados de educação. Neste posicionamento privilegiado, mas

doloroso, atrevo-me a dizer que, com excepção dos pessimistas e descrentes, me parece

que há um empenho colectivo em melhorar a Educação em Portugal. Mas, muitas vezes

do terreno, não se vislumbra o porquê de determinada medida que vai alterar uma série

de procedimentos, já confortavelmente mecanizados. Mudar, até pode ser, mas sabendo

porquê, ajuda muito a justificar todo o trabalho acrescido.

Partilho o voto optimista de Maria do Céu Roldão (1999) quando diz

se um grupo de professores pensar em criar uma escola tal como julga que seria melhor, talvez descubra processos organizativos expeditos e eficientes que não são catastróficos, podem ser económicos e vantajosos, e contudo talvez rompam com a estrutura escolar a que nos habituámos (p. 28).

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Espero que este estudo seja mais um incentivo para que os professores se

interessem pela promoção de competências de cidadania nas escolas, fazendo um apelo

em particular aos professores de História.

Ser empreendedor é realizar os sonhos, mesmo que haja riscos. É enfrentar os problemas, mesmo não tendo forças. É caminha por lugares desconhecidos, mesmo sem bússola. É tomar atitudes que ninguém tomou. É ter a consciência de que quem vence sem obstáculos triunfa sem glória. É não esperar uma herança, mas construir uma história. (Cury, 2007, p. 106).