25
INTRODUÇÃO SEMIÓTICA À SIMBOLOGIA CRISTÃ DA ARTE Professor José Luís Landeira 1 “O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa, E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange, E toda a gente que passa, E todo o passado da gente que passa, E todo o futuro da gente que passa, E toda a gente que passará E toda a gente que já passou (...) Eu próprio sou sujeito e objeto” (Álvaro de Campos) 1. A leitura dos símbolos cristãos Na origem deste artigo está o desejo de construir uma ponte. Ponte de diálogos entre diferentes modos de ver uma realidade que é, ela mesma, plural. E o desejo construiria um dialogar em que os participantes retornariam para suas margens com a visão dos espaços e dos tempos e de si próprios mais ampla, mais profunda, mais intensa. 1 Formado em Letras pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Letras (Filologia e Língua Portuguesa Leitura Literária) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, doutor em Linguagem e Educação (Leitura de Poesia) pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

INTRODUÇÃO SEMIÓTICA À SIMBOLOGIA CRISTÃ DA ARTE

Embed Size (px)

Citation preview

INTRODUÇÃO SEMIÓTICA À SIMBOLOGIA CRISTÃ DA ARTE

Professor José Luís Landeira1

“O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,

E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,

E toda a gente que passa,

E todo o passado da gente que passa,

E todo o futuro da gente que passa,

E toda a gente que passará

E toda a gente que já passou

(...)

Eu próprio sou sujeito e objeto”

(Álvaro de Campos)

1. A leitura dos símbolos cristãos

Na origem deste artigo está o desejo de construir uma ponte. Ponte de

diálogos entre diferentes modos de ver uma realidade que é, ela mesma, plural. E

o desejo construiria um dialogar em que os participantes retornariam para suas

margens com a visão dos espaços e dos tempos e de si próprios mais ampla, mais

profunda, mais intensa.

1 Formado em Letras pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Letras (Filologia e Língua

Portuguesa – Leitura Literária) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo, doutor em Linguagem e Educação (Leitura de Poesia) pela Faculdade de Educação da

Universidade de São Paulo.

Nossa proposta é estudar a simbologia cristã tomando as ações simbólicas

e os ritos como textos que são lidos e atualizados no momento de sua

enunciação, com variadas repercussões nesse processo. Assim, acreditamos que

as teorias que se dedicaram à compreensão dos processos de produção de

sentido podem auxiliar a compreender o próprio processo simbólico cristão em um

quadro que tanto nos remeta para o valor cultural como religioso dos símbolos.

Há também nesse diálogo muitas possibilidades a adotar: podemos, por

exemplo, posicionarmo-nos em um quadro das teorias da leitura visando a que

a aplicação de tais conhecimentos no campo da fé e das celebrações litúrgicas

nos ajude a compreender melhor o fenômeno da leitura em si mesmo; podemos

também situamo-nos em um campo de colaboração mútua, visando a que os

estudos desenvolvidos permitam que a própria liturgia, compreendida como

“espaço e tempo simbolizados, linguagem e ação do mistério do Cristo

celebrado” (BUYST, 2011: 15) encontre nas teorias da leitura uma parceira de

trabalho, para melhor atingir seus objetivos.

Mas qual o interesse de se estudar a leitura em um quadro dos estudos da

simbologia cristã? Além de ampliar, claro, os processos de compreensão da

leitura de textos que tenham essa simbologia como objeto. É que somos

autorizados a considerar as manifestações da linguagem religiosa como textos e

aplicando os conhecimentos das teorias da leitura, pretendemos ampliar o modo

de ver e vivenciar essa linguagem ao passo que pretendemos nos aproximar

semioticamente da dimensão da fé.

Na pluralidade de escolhas, optamos por uma atitude colaborativa, em

que a simbologia cristã seja respeitada na sua função psicossocial como

construtora da espiritualidade e da transcendência. Além disso, abrimo-nos para

o complexo e muitas vezes tenso diálogo entre a Teologia, a Cultura e as Artes,

mediado pela Leitura. Tendo um horizonte de tanta envergadura, não é sem

razão que nos propomos a trazer neste artigo uma pequena contribuição que

poderá ser semente de futuras atividades.

Pensar no processo de leitura do ‘símbolo cristão’ remete-nos a dois

problemas anteriores: o que é símbolo? Qual a importância do adjetivo ‘cristão’

para caracterizar tais símbolos? As respostas são tão variadas quantas são as

possibilidades de significar. Iniciemos pensando no problema de conceituar e

definir o símbolo.

2. O símbolo cristão: um problema conceitual

O termo símbolo é extremamente polissêmico e é impossível na

constituição deste texto abordar todos os matizes de significado. Tratemos

daqueles que, acreditamos, podem ser importantes para tecer o diálogo

proposto.

Uma das mais correntes mais comuns na semiótica tem a sua origem nos

estudos de Peirce. Nesta óptica, o símbolo

“não possui outra motivação que não seja histórica ou convencional: em suma,

é opaco ou arbitrário. A maior parte dos signos definidos pelos códigos das

estradas, dos usados na navegação, dos graus militares e da matemática é

arbitrária” (VOLLI, 2012: 44).

A compreensão que Peirce tem do símbolo se torna mais compreensível

quando comparado ao ícone:

“Se o signo caracterizar o objecto denotado por mostrar nele mesmo as

propriedades que um objecto tem, como acontece com as fotografias, os mapas

ou os diagramas químicos, então o signo é um ícone; se não for esse o caso,

então trata-se de um símbolo.” (FIDALGO e GRADIM, 2005/2005: 92, 93).

O símbolo é visto como um tipo particular de signo caracterizado pela

relação arbitrária entre ele mesmo e aquilo que significa. Este distinção torna

polêmica a construção do diálogo entre o campo dos estudos semióticos e os

teológicos (e da religião, como um todo). Como admite o próprio semioticista

italiano Ugo Volli:

“trata-se, porém, de uma terminologia um tanto infeliz, porque na tradição

literária e religiosa entende-se por símbolo algo bem diferente, isto é, um signo

fortemente motivado e rico em implicações emotivas e narrativas” (VOLLI,

2012: 44).

De fato, a liturgista Ione Buyst explica que o símbolo

“tem sua raiz no inconsciente e expressa uma experiência vivida a um nível

anterior à conceituação (...) no símbolo existe como que uma relação interna

que revela a unidade entre sinal sensível e realidade significada” (BUYST, 2007:

32).

Essa linha de raciocínio coaduna-se com a do argentino José Severino

Croatto que define símbolo como

“um elemento desse mundo fenomênico (desde uma coisa até uma pessoa ou

um acontecimento) que foi ‘transiginficado’, enquanto significa algo além de seu

próprio sentido primário. A abóbada celeste é símbolo de transcendência e

soberania. Tal sentido está por trás do que o céu é para o olhar humano.

Por isso, podemos descrever o símbolo como ‘remissivo’; envia para outra

realidade que é a que importa existencialmente. (...) Na experiência do homo

religiosus, o transcendente que o símbolo convoca não é objetivável nem

definível em palavras. Percebe-se como mistério, como claro-escuro, por isso é

preciso a mediação das coisas de nossa experiência comum” (CROATTO, 2010:

87).

Do que se percebe de comum nos dois teólogos é o excesso de significado

presente no símbolo ou seja, ele é “fortemente motivado”, em oposição à ideia de

arbitrariedade defendida por Pierce para o mesmo termo.

No quadro dos estudos semióticos, contudo, encontramos outras

alicerçadas definições para o termo símbolo. Para Ferdinand Saussure,

considerado o fundador da Linguística e, de certa forma, precursor dos estudos

semióticos europeus, os símbolos se opõem aos signos. Para esse professor suíço,

a principal característica do signo é a arbitrariedade, ou seja, ele nunca mantém

uma relação lógica, motivada, com aquilo que ele significa. Não há nada no

significado que motive a escolha do significante. Isto é, não há nada na palavra

árvore que lembre, na própria constituição da palavra a uma árvore. Tanto que a

mesma palavra portuguesa ‘árvore’ corresponde à palavra inglesa tree. Isso, de

algum modo, aproxima o aquilo que Saussure denomina como signo do que

Pierce chama de símbolo.

Para Saussure, a falta de motivação entre signo e o seu respectivo

significado possibilita o princípio da convencionalidade do signo. A relação entre o

conteúdo e a forma do signo é sempre convencional, isto é, gerada no percurso

histórico de uma coletividade.

Na direção oposta, Saussure situa o símbolo, considerando que ele

“tem como característica não ser jamais arbitrário; ele não está vazio, existe um

rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado. O símbolo da

justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um

carro, por exemplo.” (SAUSSURE, 2004: 126)

Esse conceito aproxima-nos da definição defendida contemporaneamente

pelos teólogos e pelos estudiosos da arte.

O problema que as definições de símbolo tanto de Pierce como de

Saussure trazem tem a ver com os limites. Para ambos podemos perguntar o que

vem a ser, exatamente, o arbitrário? Ao pronunciarmos as palavras “vinte” ou

“dois” temos consciência de que há uma completa arbitrariedade na escolha do

significante para designar uma quantia específica, mas e quando falamos “vinte e

dois”? Há uma completa arbitrariedade nesse caso? Seria o caso de que “vinte”

fosse um símbolo (para Pierce) ou um signo (para Saussure) e “vinte e dois” não?

O próprio Saussure fala de uma arbitrariedade absoluta e outra relativa:

“O princípio fundamental da arbitrariedade do signo não impede distinguir, em

cada língua, o que é radicalmente arbitrário, vale dizer, imotivado, daquilo que

o é relativamente. Apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária; em

outras, intervém um fenômeno que permite reconhecer graus no arbitrário sem

suprimi-lo: o signo pode ser relativamente motivado” (idem, 152)

Uma arbitrariedade relativa, contudo, não imbrica também, de certa

forma, em uma relação relativa, mínima que seja, com a realidade? Seriam os

signos com arbitrariedade relativa símbolos? Essa diferenciação saussureana

entre signos e símbolos talvez seja apenas pouco mais do que retórica vazia nos

debruçarmos sobre certos signos, como os matemáticos (usualmente chamados

de símbolos), mas tem importância relevante nos campos a que aqui nos

referimos.

Acreditamos, portanto, que haja bons motivos para os estudos semióticos

se deterem no conceito do símbolo como um signo fortemente motivado, fugindo

das fluídas zonas limítrofes, assim como os estudos teológicos e os artísticos o

fazem. De fato, o próprio exemplo da balança, na explanação de Saussure, já nos

remete a um signo que ganha não apenas uma forte motivação com a realidade,

principalmente, ao pensarmos nas diferentes ideologias associadas à justiça. Por

exemplo, é ela cega? o que, efetivamente significa a equidade? e muitas outras

considerações que relacionam diferentes elementos psicossociais no momento em

que o símbolo balança circula em sociedade.

Mais ainda, acreditamos que, sem renunciar às unidades individuais

analíticas de significação, os signos, seja mais conveniente pensarmos, ao estudar

os diferentes fenômenos semióticos simbólicos, em textos. Isso porque os

símbolos – e particularmente os símbolos cristãos – são enunciados, usualmente,

em complexas redes sintáticas, com diferentes signos hierárquica e

simbolicamente diferentes, colaborando de modo solidário na produção do

sentido.

Tal pensamento está de acordo com o semioticista Umberto Eco quando

afirma

“Não deve o exposto induzir-nos a renunciar à individuação de funções signícas

elementares (os chamados ‘signos’) ali onde são encontrados, mas serve para

lembrar que os processos semióticos quase sempre lidam com textos HIPO ou

HIPERCODIFICADOS. Quando unidades analíticas não são identificáveis, não é o

caso de negar a correlação semiótica: a presença da convenção cultural não é

testemunhada apenas pela emergência dos chamados ‘signos’ elementares. É,

antes de tudo, testemunhada pela existência identificável de modos de produção

sígnicia” (ECO, 2012: 222).

Atualmente, em um quadro dos estudos da linguagem e da semiótica,

consideramos texto como toda unidade de significado, ou seja, um todo

organizado de sentido e não apenas às manifestações verbais, isto é, por meio

das palavras de uma língua natural, como o português. Um texto pode

manifestar-se por meio das linguagens visual, gestual, musical etc. Assim um

quadro, um filme, uma tira quadrinhos, um balé, uma missa e uma parte

específica de uma missa, como a Eucaristia, são textos. Há textos dentro de um

texto, conforme os diferentes contextos de leitura.

Um texto é delimitado por dois brancos, isto é, dois espaços de não

sentido. A moldura de um quadro delimita o espaço de sentido e o de não

sentido. A acolhida e a despedida, o “Missa finita est”, separam o espaço do texto

missa do espaço do não sentido. A missa é, portanto, um texto.

Desta perspectiva, a compreensão de um texto não é uma atividade com

regras formais e lógicas que resultam em respostas automáticas. A

compreensão de um texto, contudo, envolve processos estratégicos práticos nos

quais se escolhem, com maior ou menor grau de consciência, as alternativas

consideradas mais produtivas. O leitor procura aproveitar ao máximo os

recursos de que dispõe procurando não a lógica do texto, mas a própria vivência

(cognitiva, afetiva e espiritual) do mesmo.

3. Do símbolo cristão ao discurso cristão: um percurso

Desde Aristóteles, a metáfora pode ser considerada como transferência de

sentidos (ARISTÓTELES, 1997: 42). Transferir é um ir além, um mover-se, que

amplia horizontes. A metáfora possibilita a autonomia do símbolo em relação à

realidade, coerente com a estrutura profunda dos conceitos fundamentais da

cultura que originam essa metáfora, mas instiga os participantes a moverem-se

para outros espaços fora de sua estabilidade imediata. Por isso, a metáfora

preconiza a aprendizagem.

Lakoff e Johnson (2002: 46) defendem que toda a nossa experiência

apenas ocorre dentro de proposições culturais. As metáforas permitem que nos

desloquemos a um domínio da experiência para entender outro. Tais

deslocamentos metafóricos se estruturam em solidariedades sistêmicas, ou seja,

não ocorrem apenas na dimensão subjetiva de quem enuncia. Para os estudiosos,

entender algo é realizar um ajuste a um sistema conceitual coerente relativo ao

que se procura entender. Esse conceito possibilita a existência de realidades que

estão além de nós mesmos, no domínio do Sagrado, mas com as quais

interagimos, sem contudo, defender a ausência de significados objetivos que

dependem do processo de enunciação, ou seja, da vivência da produção e

recepção do texto.

O estudioso francês Roland Barthes constrói um conceito de signo

metafórico que se aproxima muito do que consideramos ‘símbolo’. Ele explica que

todo signo relaciona uma determinada forma a certo conteúdo. Ele considera que

a metáfora ocorre quando encontramos um signo cuja forma seja formado por

outro signo:

2 FORMA CONTEÚDO

1 FORMA CONTEÚDO

É o que ocorre com grande parte dos símbolos cristãos, por exemplo. Se

considerarmos a água associada ao significado da purificação, então podemos

entender o batismo como símbolo da remissão dos pecados. No seguinte

esquema:

2 BATISMO REMISSÃO DOS PECADOS

1 água purificação

Em outras palavras,

“No símbolo existe como que uma relação interna que revela a unidade entre

sinal sensível e realidade significada. Por exemplo, a água como símbolo de

purificação, de vida. A água em si já contém como que o sentido de purificação,

de vida. Não é algo que é imposto de fora, racionalmente”. (BUYST, 2007: 32)

Naturalmente o nível 2, ou seja, o nível metafórico (ou conotado) não se

apropria completamente do sentido da denotação. A associação entre o

significante água e o significado purificação poderia encaminhar-nos para muitas

possibilidades, entre as quais, apenas uma delas é o da remissão dos pecados.

Essa ideia se dá dentro de um quadro histórico e social específicos que, inclusive,

não tem uma associação imediata com a origem do batismo.

Podemos dizer que a metáfora, na visão de Barthes, recorta um sistema de

valores, um modo de ver o mundo:

“seja qual for o modo pelo qual a conotação ‘vista’ a mensagem denotada, ela

não a esgota: sempre sobra “denotado” (sem o quê o discurso não seria

possível) e os conotadores afinal são sempre signos descontínuos, “erráticos”,

naturalizados pela mensagem denotada que os veicula. Quanto ao significado de

conotação tem um caráter ao mesmo tempo geral, global e difuso: é, se se

quiser, um fragmento de ideologia” (BARTHES, 1972: 97)

Podemos considerar o símbolo como um signo metafórico. Mas a

compreensão da ação simbólica do batismo exige que a pensemos como texto

metafórico, realizado em determinados tempo e lugar históricos e sociais

específicos e numa abertura dialógica (e sujeita a coerções e tensionalidades)

com a tradição que o constitui.

O valor metafórico do símbolo converte-o em um modo particular de

conhecer a realidade, propício para o exercício do encantamento e da

transcendência. E, de fato, é nesse domínio de afetividades que ele circula com

maior eficiência. Isso, contudo, não significa que a compreensão do símbolo não

possa ser aprendida por meio de estratégias cognitivas (ou avaliada por padrões

de eficácia cognitiva) desde que tais não desconsiderem a natureza em que o

símbolo surge e circula.

No batismo, por exemplo, há mais do que água. Há uma complexa sintaxe

composta de diferentes signos (alguns simbólicos, outros não) que somam à água

outros objetos, como a fonte ou pia batismal; palavras, como a bênção da água

para o batismo e gestos, como o de ablução ou imersão e humanos, como a

presença do padre etc. Esses signos não aparecem todos juntos e não têm a

mesma importância na ação simbólica. Por exemplo, ou o batismo se realiza por

imersão ou por ablução, mas não dos dois modos, ao mesmo tempo. Alguns

símbolos, como flores e perfume que se colocam na água, são opcionais. Além

disso, há a presença de familiares e outros convidados no evento e a figura,

carregada de valor simbólico, do(s) padrinho(s). Essas pessoas, ao mesmo tempo

em que são ‘leitores do texto batismo’ são também parte integrante do mesmo.

Tais elementos formam uma composição simbólica complexa que produz uma

unidade de sentido e cujo estudo ganha profundidade quando o pensamos como

realidade textual ocorrendo em um determinado tempo e lugar, com

determinadas pessoas.

Isto é, os símbolos são colocados em funcionamento em um determinado

contexto sócio-histórico, conformado por valores ideológicos e culturais, em certo

tempo e espaço, envolvendo participantes ativos no próprio processo enunciativo,

ou seja, de produção da ação simbólica. A enunciação se dá em um nunca

repetível aqui e agora e acentua a relação discursiva entre enunciadores quer

sejam reais, imaginados, individuais ou coletivos na sua relação com o universo

da referência.

As instâncias da enunciação podem ser concebidas em termos de uma

topografia social dos falantes. Os que participam na enunciação podem ser

considerados, nesta perspectiva, não tanto como presenças físicas, mas lugares

psicossociais, feixes de traços mais ou menos objetivos. Na constituição do

discurso, esses lugares estabelecem uma topografia ao passo que os

enunciadores instauram as posições que o destinador e o destinatário, ou seja, o

leitor do texto simbólico, atribuem a si mesmos e ao outro, bem como a imagem

que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.

O efeito de sentido, elaborado no processo de enunciação, que reproduz

um acontecimento primeiro, expresso em um texto, bem como a experiência que

desse acontecimento se originou, bem como a própria experiência produzida se

sintetiza em um conjunto a que damos o nome de discurso. O texto simbólico se

realiza discursivamente. E é como discurso simbólico que a realização da leitura

do texto se dá.

Desse modo, embora nos detenhamos na realidade dos símbolos, nosso

objetivo maior deve ser o de compreender os textos simbólicos que se realizam

na discursividade cristã. Compreender a linguagem simbólica (no sentido que

estamos aqui atribuindo a símbolo) como discurso é entendê-la para além dos

símbolos individuais e, ao mesmo tempo, superar uma compreensão dos

símbolos como código fechado e superar a visão que se contenta em valorizar a

instrumentalização por meio do seu uso, descobrindo o símbolo como sociedade,

história e possibilidade para o desenvolvimento integral do ser humano,

realidade cognitiva, afetiva e espiritual.

4. A imagem religiosa cristã

Aqui cabe outro aparte, o da imagem religiosa cristã. Trata-se ela de um

símbolo ou de um texto simbólico? A escolha de uma ou outra definição nos leva

a diferentes abordagens de tratamento. O símbolo é um signo, parte de algo

maior, mas que não se realiza como discurso simbólico. A imagem religiosa é um

signo fortemente motivado ou uma rede de signos interagindo entre si e

compondo uma unidade de significação? Inclinamo-nos pela segunda opção. É

muito esclarecedor o raciocínio de Eco ao que aderimos. O trecho a seguir, ainda

que longo, justifica-se pela sua importância:

“com as imagens nós lidamos com blocos macroscópicos, TEXTOS, cujos

elementos articuladores são indiscerníveis. (...) Em outras palavras, estamos

diante do fenômeno de textos que todos, de alguma maneira, compreendem sem

conseguir explicar o porquê. Nas representações icônicas, as relações contextuais

são tão complexas que parece impossível separar as unidades pertinentes das

variantes livres. Podem-se também distinguir unidades pertinentes discretas,

mas, apenas individuadas, elas parecem dissolver-se sem poder funcionar num

novo contexto. Existem às vezes vastas configurações, outras vezes pequenos

segmentos de linha, pontos, áreas escuras, como no desenho esquemático de um

rosto onde dois pontos num círculo podem representar os olhos, enquanto um

pequeno semicírculo corresponde à boca; basta porém mudar o contexto ou

mesmo as simples relações de ordem entre esses elementos, para que o círculo

represente à perfeição um prato, o pequeno semicírculo uma banana e os dois

pontos duas pequenas avelãs. Assim, mesmo quando parecem existir, as figuras

icônicas (...) não têm nenhum valor oposicional fixo no interior do sistema. Seu

valor oposicional não depende do sistema, mas, no máximo, do contexto.

Neste ponto, definitivamente, somos obrigados a considerar os chamados ‘signos

icônicos’ [isto é, na perspectiva de Pierce – nota minha] como (a) TEXTOS

VISUAIS que (b) não são ULTERIORMENTE ANALISÁVEIS nem em signos nem em

figuras” (ECO: 2012, 188, 189)

As imagens, inclusive as religiosas, são textos icônicos, unidades de

significado complexas compostos de diferentes elementos, na sua maioria

(embora, não na sua totalidade), impossíveis de serem identificados e analisados.

A análise de uma imagem religiosa sempre deverá processar-se contextualmente,

assumindo que cada imagem estabelece, no seu contexto, ao realizar-se como

discurso, a construção de um código peculiar. Ou seja, é impossível

estabelecermos um código imagético religioso claro, como um dicionário de

símbolos comum a todas as imagens religiosas, e que faça a tradução de todos os

elementos que compõem a imagem que temos diante de nós, como quando

reconhecemos cognitivamente as palavras e as letras que compõem uma frase

como ‘vou tomar um café’.

Muitas vezes ocorre, inclusive, que uma determinada figura que compõe

uma imagem religiosa é, ela mesma, um símbolo que ganha o estatuto de texto

simbólico quando individualizado. É o caso da cruz nas mãos das imagens de São

Luis Gonzaga ou do lírio associado a São Jose.

Ainda que possamos estabelecer sistemas simbólicos religiosos, a

construção de sentido das imagens religiosas opera pelos processos complexos e

plurais, em que, quaisquer símbolos que componham a totalidade da imagem

religiosa, vista como texto icônico, apenas podem ser compreendidos no seu

contexto de produção e recepção. Tais contextos, contudo, de algum modo se

inscrevem na própria obra, orientando e validando as interpretações. Parece

importante destacar que quanto mais complexo for um texto, mais complexa será

também a relação que se estabelece entre a expressão e o conteúdo.

As imagens religiosas assim como as celebrações litúrgicas são textos

simbólicos (ou metafóricos) que apenas podem ser compreendidos

adequadamente quando levamos em conta o seu processo enunciativo. Isso traz

para a cena de nossas discussões não apenas a motivação que os originou, mas o

processo pelo qual são recebidos.

5. O texto simbólico cristão nas leituras religiosa e cultural

Imaginemos que um antropólogo ateu vá a um batismo católico para

conhecer o rito, como parte de sua formação cultural e científica. Ali se encontra

com o padre, os pais e os padrinhos da criança. Todos juntos participam na

celebração do batismo, mas a presença do antropólogo ao construir esse texto

simbólico não poderá ser a mesma daquele que ali se encontra movido pela fé. O

mesmo podemos afirmar da imagem religiosa.

Vista dentro de uma igreja, como objeto de devoção não produzirá os

mesmos sentidos que em um museu, como objeto de admiração ou de estudo.

Neste caso, o espaço em que se dá a enunciação orienta (mas não limita) o

processo de recepção textual. Naturalmente, uma pessoa não religiosa pode

visitar uma determinada imagem ou outro símbolo religioso em uma determinada

igreja apenas por diletantismo ou com qualquer outro interesse que não se

relaciona com a fé. É o que ocorre, com frequência, nas igrejas mineiras em

cidades como Ouro Preto e Mariana.

Desse modo, temos de considerar que o espaço em que se encontra a

imagem organiza a sua recepção, mas não a limita. Isso porque o espaço é

sempre tomado, numa perspectiva enunciativa, na sua relação geográfica e

social, como ação realizada por indivíduos. Em última análise, é o indivíduo que

construirá o espaço no qual se encontra e irá interagir com o discurso simbólico.

Mas esse indivíduo não pode usar o texto simbólico a seu bel prazer. Os

movimentos da enunciação considera que o artista que elaborou a imagem

religiosa fez seleções para compor o seu texto, rejeitando tudo o que poderia ter

feito e não fez. Esse processo de seleção foi orientado por um propósito inicial,

uma intenção discursiva, que não pode ser deixada de lado. O artista, ao compor

o seu texto simbólico tinha um interlocutor em mente que, de algum modo, está

inscrito na própria produção da obra. Essa inscrição se fez por escolhas

atravessadas por dimensões subjetivas e histórico-sociais.

No que respeita à imagem religiosa, esse interlocutor inscrito na obra

trata-se, costumeiramente, de um homem de fé, de devoção, que, de algum

modo, participa do e no mistério do Sagrado. Embora, possamos também

encontrar imagens religiosas, como muitas obras feitas na renascença, que

visavam à ornamentação da casa ou a manifestação de um determinado discurso

ideológico.

O leitor,quer esteja no museu ou na igreja, deve adentrar nessa proposta

enunciativa, nessa intencionalidade discursiva e interagir com ela. No que respeita

à imagem religiosa, a interpretação deve, quase sempre, dar-se em interação

com a sua dimensão mística e religiosa. Trata-se de um leitor, adequando muito

livremente o pensamento de Eco (2003, 208) que pergunta diante do texto

simbólico que tipo de leitor aquela obra pede que ele seja e deseja ‘ouvir’ e ser

instruído pelo texto.

Embora todo texto artístico seja um texto simbólico, nem todo texto

simbólico será artístico. Isso nos faz pensar que nem todo texto simbólico cristão

será um texto artístico cristão. Ainda que ambos, texto simbólico e texto artístico

estejam dentro de uma formação discursiva própria dos textos culturais.

Consideramos aqui formação discursiva como tudo aquilo que pode e deve ser

expresso em certa conjuntura ordenada por determinados valores. Esses valores

conformam uma identidade psicossocial, ou seja, ao mesmo tempo subjetiva e

social.

Esquematizando, temos:

No item 11 trataremos do texto simbólico artístico cristão, uma espécie

particular de símbolo que suscita uma interação diferenciada.

DISCURSO SIMBÓLICO

TEXTO

SIMBÓLICO

CRISTÃO

TEXTO

SIMBÓLICO

ARTÍSTICO

DISCURSO CULTURAL

6. O processo de leitura dos símbolos cristãos

Compreender a simbologia cristã como linguagem, aproxima a liturgia, do

campo da ação semiótica. Os símbolos, as ações simbólicas e os ritos são vistos

não como objetos, mas como textos simbólicos no quadro de um processo

comunicativo no qual se produz os discursos religiosos católico.

No quadro da composição dos discursos religiosos católico, emerge o

discurso litúrgico. Por discurso litúrgico referimo-nos ao efeito de sentido

construído no processo comunicação promovido pelos mistérios sacramentais e

simbólicos a reprodução de um acontecimento primeiro, bem como a

experiência que dele se originou e a experiência produzida pela reprodução

desse acontecimento, na celebração.

O processo de leitura utiliza-se de duas fontes de informação da leitura: os

conteúdos que chegam à mente pelos diferentes signos empregados na

construção do texto e a informação (cognitiva, afetiva e espiritual) de que o

leitor dispõe e que faz interagir no processo enunciativo.

A partir da informação do texto e dos seus próprios conhecimentos, o leitor

construirá o significado, tomado sempre como vivência de construção do

sentido, em um processo que pode ser dividido em três partes:

A formulação de hipóteses

A verificação das hipóteses

A integração das informações e controle da compreensão

Considera-se que um texto é compreendido quando somos, como leitores,

capazes de explicá-lo com suas próprias formulações elaborar uma síntese ou

uma reflexão da vivência de leitura que seja aplicável à nossa própria

experiência.

A liturgia, no seio da comunidade cristã,

“expressa o que tem de mais sagrado, seu segredo mais profundo, seu

‘mistério’. (...) É um desafio redescobrirmos a força e o fascínio da liturgia como

ação ritual que expressão o mistério de nossa fé cristã e nos leva a uma

experiência espiritual e a um compromisso sempre mais profundo”. (BUYST

2011: 21)

Assim a compreensão leitora da liturgia envolve não apenas – sequer

principalmente – a compreensão racional dos acontecimentos, nos quais emerge

a condição de ‘mistério’, mas a compreensão espiritual que nos compromete

com a vida e com o transcendente.

Por tudo isso, seria um erro considerar a leitura da celebração litúrgica de uma

perspectiva passiva, como processo de recepção de informações preconstruídas.

Antes, o leitor é também co-autor do mistério de Cristo salvando.

“Todas as celebrações litúrgicas são consideradas memória de Jesus, o Cristo,

celebração do seu mistério pascal, cada celebração enfocando um aspecto

diferente. Podemos assim falar de um único mistério, como que desdobrado em

vários ‘mistérios’.” (BUYST, 2011: 29)

7. A formulação de hipóteses

Qualquer leitor, durante a leitura de um texto, relaciona uma série de elementos

textuais e contextuais, ativando esquemas de conhecimentos e antecipando

aspectos do conteúdo. O leitor formula hipóteses sobre o que encontrará a

seguir. Suas hipóteses o direcionam para frente, na compreensão do texto e na

construção de um sentido, uma direção que seja um agir com o texto, uma

vivência pessoal.

Assim, as hipóteses estabelecem expectativas em todos os níveis do texto

e podem ser formuladas como perguntas (conscientes ou não) para as quais o

leitor espera encontrar resposta na continuidade.

Essa atividade é comum em todas as circunstâncias comunicativas:

quando nos reunimos entre amigos, fazemos previsões de certos

comportamentos e construímos expectativas sobre o desenvolvimento futuro

dessa reunião. Quando vamos ao supermercado fazer comprar, antecipamos o

que iremos comprar, em que sessões encontraremos os produtos, o quanto

gastaremos etc. Construir hipóteses é parte integrante do processo de

construção do sentido em qualquer texto.

O que ocorre é que ativamos esquemas pertinentes que fazem parte de

nossos conhecimentos prévios como indivíduos no mundo e os atualizamos

àquela situação específica de leitura, utilizando das informações de que

dispomos. As previsões decorrentes devem, portanto, originar hipóteses

coerentes sobre o que é esperável a seguir a partir do que já sabemos. O que

lemos anteriormente orienta as hipóteses sobre o que têm mais possibilidade de

aparecer nesse contexto, assim como saber que amigos estarão em

determinado lugar que conhecemos orienta as conversas que provavelmente se

desenvolverão no encontro.

Além disso, o leitor deve construir previsões sobre as informações que

devem ser inferidas, que não estão apresentadas de modo explícito.

Para conseguir fazer uma leitura eficiente de um texto, precisamos deduzir

as relações entre as suas diferentes partes e completar as informações do texto

com outras que não são explícitas porque se supunha que fossem, de algum

modo, resgatáveis no processo de leitura. A leitura litúrgica envolve o processo

ritual, que se estende linearmente em um eixo temporal transformando um

determinado espaço.

Mas diante de uma imagem religiosa não há um para a frente claro sobre o

qual propor hipóteses. Há, contudo, algumas figuras que compõem uma sintaxe

visual e sobre a qual se movem os olhos do leitor. Diante de tais figuras surgem

hipóteses que nos remetem para possibilidades. Uma das principais figuras são

aquelas que correspondem posicionamento da imagem em relação ao leitor.

Georges Péninou (1974) valorizou o olhar para compreender a construção

de sentidos produzida pelo leitor. Porém o olhar não é o único responsável, nem

funciona sozinho. Somam-se a ele a orientação do corpo, do rosto, da

profundidade do campo, da distância em relação ao leitor, dos planos envolvidos

e do próprio tamanho da imagem. Tais são alguns dos elementos que trabalham

solidariamente entre si, promovendo hipóteses interpretativas pelo leitor.

Na imagem, a forma frontal com os olhos fixos no destinatário que os

encara, constituiria característica do eu, em um encontro direto com o outro

numa relação muitas vezes apelativa, como que ordenando algo.

O convite e o testemunho faz com que o olhar e a orientação do corpo não

sejam tão diretas, tão frontais. São típicas, portanto, dessa atitude, o baixar dos

olhos, a fixação em outro objeto ou detalhe a fuga dos olhos para longe ou para

o alto.

A personagem de perfil instaura a terceira pessoa e a narrativa. Sem

compromisso com o leitor que a observa, a imagem pode ser revestida de uma

camada ideológica ainda mais forte, dirigindo o leitor da imagem para outras

linguagens, doutrinas, instituições etc.

Mas é a imagem, no processo enunciativo, que irá fornecer os elementos

necesários para que o olhar do leitor construa hipóteses. O Monumento às

Bandeiras, em São Paulo e as estatuetas de barro da arte popular nordestina

trazem narrativas e sentidos bem diferentes. Enquanto um aponta para a

grandeza dos Bandeirantes desenhando os contornos do mapa brasileiro, o

outro fala do êxodo rural e da situação de não-lugar vivida pelos migrantes.

8. A verificação de hipóteses

Tomando que as celebrações litúrgicas se dão em um determinado tempo

e lugar, elas instauram uma linearidade em que os signos não aparecem todos

ao mesmo tempo ou com a mesma importância. Antigamente, era crença

comum que todo processo leitor ocorria recompondo cada signo que se lia em

uma sequência linear. Ou seja, enquanto eu não soubesse o significado de uma

palavra, não adiantava avançar na leitura do texto. Essa herança ainda é muito

forte nas metodologias de leitura adotadas. Mas tal ideia foi há muito superada.

Nosso olhar abarca uma série de signos ao mesmo tempo, mesmo aqueles

que não estão no foco de nossas atenções. Somos capazes de ler, mentalmente,

de modo compreensivo até 400 palavras por minuto. Além do mais, os olhos

não avançam em uma única direção, recuperando o processo linear. Os olhos

deslocam-se em saltos.

Mas ao pensarmos na leitura de um ato litúrgico, temos uma série de

códigos sendo utilizados que requerem a interação entre um conjunto plural de

sentidos. Musicas, palavras, gestos etc. consolidam-se em um único texto. Isso

leva a mente a retroceder, com certa frequência, para poder recuperar

informações perdidas ou avaliar a praticidade das inferências realizadas.

Em outras palavras, ler é sempre uma atividade dinâmica e de constante

avaliação e tomada de ação, que resulta na produção de novas hipóteses. Mais

ainda quando o texto é constituído por diferentes e complexos códigos que

apelam não tanto à compreensão cognitiva, mas a vivência espiritual, como é o

caso da liturgia.

Ou seja, podemos até, por questões metodológicas, como o fazemos aqui,

separar o que pertence ao levantar hipóteses do que se associa à sua

verificação, mas, na prática da leitura – tomada como ação junto – os dois

acontecimentos acontecem, quase sempre, ao mesmo tempo.

Além disso, nosso cérebro percebe conjuntos informativos. O leitor percebe

globalmente um conjunto de informações e as relaciona entre si. A diferença

entre leitores experientes e novatos reside no número de informações

percebidos em cada fixação e nas relações que se constroem. No que se refere a

textos escritos, bons leitores leem palavras ou conjuntos de palavras, enquanto

leitores inexperientes leem letras, sílabas ou palavras simples.

Leitores menos experientes apresentam um campo de visão mais reduzido,

ou seja, percebendo menos elementos em cada fixação, o que os obriga a um

trabalho de leitura mais dispendioso de energia, com um maior número de

fixações durante uma determinada leitura. Além disso, tal energia gasta em

prestar atenção aos muitos acontecimentos ocorrendo, torna mais difícil

elaborar sínteses e fazer reflexões. Isso faz com que ler um mesmo texto seja

mais cansativo para um leitor inexperiente do que para um leitor com

experiência leitora razoável. E, de algum modo, tal cansaço pode dificultar –

embora não impossibilitar – a abertura ao mistério.

Atualmente, acredita-se que o processo eficiente de leitura leva o leitor a

utilizar diferentes estratégias leitoras de acordo com a significação e a amplitude

das unidades captadas em um único olhar. Todas as expectativas gráficas,

léxicas, morfossintáticas, semânticas ou semióticas combinam-se e reforçam-se

umas às outras, de tal modo que o leitor utiliza a ajuda do contexto para

simultaneamente em todos os níveis do processamento para ajustar ao máximo

as suas hipóteses.

9. As hipóteses na celebração litúrgica

A compreensão racional do fenômeno simbólico é importante e pode ser

traduzida na “capacidade de relacionar coisas e gestos simples com a presença de

Jesus Cristo” (BUYST 2007: 46). Essa compreensão passa por um processo

catequético que não pode ser desconsiderado, nem minimizado e que deve ter

como objetivo ensinar “a vivenciar os símbolos, a ligar a fé com os sinais

sensíveis, partindo das escrituras sagradas” (id.).

Mas a compreensão racional não é tão importante, no momento da leitura

que é também – ou principalmente – celebração, como a sensibilidade simbólica

ao fenômeno espiritual que se desenvolve e que nos coloca dentro do próprio

texto e do mistério que discursivamente - como efeito de sentido - se realiza.

Assim, antes de tudo, devemos desenvolver uma sensibilidade simbólica

ao mistério. O que se espera do leitor de um texto litúrgico é que coparticipe do

mistério da salvação sendo realizado. Essa abertura ao mistério torna o levantar

hipóteses algo desafiador, pois o que se deve esperar se prende muito mais a um

abrir o coração à ação divina do que a uma síntese racional dos fenômenos.

Assim, no âmago entre o conhecimento racional do processo e o descortinar

espiritual do mesmo, vislumbramos uma ponte: uma habilidade, que será

sempre semiótica, ou seja, de (res)significar, para unir a razão e a emoção, o

conhecimento cognitivo e o mistério.

Essa sensibilidade simbólica pode ser considerada, dentro de uma relação

afetiva com o que se lê. Em outras palavras, todo ato de leitura litúrgica é um ato

de desenvolvimento de uma relação afetiva com o texto ao mesmo tempo

considerando a dimensão espiritual. Como nos diz Buyst (2011: 92):

“Na liturgia, a sensibilidade, a afetividade... servem para expressar e

veicular simbolicamente o afeto, o bem querer, o amor de Deus para com o seu

povo e viceversa, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito

Santo. Servem para criar e reforçar a comunhão, a intimidade própria da aliança”.

10. A integração de informação

Para compreender o texto, o leitor precisa elaborar uma interpretação

global durante a sua leitura. Para processar o conjunto do texto, o leitor eficiente

elabora uma macroestrutura psiquíca. Esta corresponde à descrição abstrata do

seu conteúdo, uma espécie de resumo mental e afetivo do tema e das ideias

principais. Ocorre que, as ideias principais nem sempre coincidem nas dimensões

cognitiva e afetiva. Em outras palavras, aquilo que a mente julga essencial, nem

sempre é aquilo que o coração assim o considera. A leitura eficiente, contudo,

aspira a uma coincidência entre cognição e afetividade.

Isso significa que a primeira estratégia de processamento da leitura é de

síntese por meio de diferentes operações: supressões de partes do texto julgadas

pouco relevantes, apreciação cognitivo-afetiva do que foi suprimido e do que foi

considerado essencial, generalização do que se leu e construção e organização da

informações do texto em hierarquias cognitivas e/ou afetivas.

Durante o processo de leitura, o leitor contrasta as informações novas com

aquelas que detém. Se tal nova informação lhe parecer repetida ou de pouca

importância, o leitor experiente a descarta. Ao encontrar uma informação com um

conceito capaz de englobar várias informações, o leitor experiente a valoriza. Se

não encontra tal informação, o próprio leitor terá de construí-la e ativá-la de seu

repertório.

Essa atividade de síntese se produz de modo tão fluido que o leitor

experiente, na maior parte do tempo, não toma consciência do processo. Essa

consciência ocorre, em situações especiais, por exemplo, como quando as

hipóteses são confirmadas pela captação de indícios textuais, mas revelam um

desvio mais ou menos importante ao que parecia esperável. Por exemplo, ao

descobrir, na leitura de um conto, que “na mesa de jantar era servido um tigre

com batatas fritas”. Então ele terá de gerar hipóteses coerentes com tal dado

considerado, inicialmente, incoerente.

Ocorre que o leitor experiente da perspectiva semiótica não o será,

necessariamente, da perspectiva espiritual. Como nos diz Buyst (2011: 21):

“Quem olha de fora, ou quem está lá dentro sem ter sido iniciado, não

conseguirá captar esse ‘mistério’ e ser transformado por ele”. Quem olha de

fora, ou quem está lá dentro sem ter sido iniciado, não conseguirá captar esse

‘mistério’ e ser transformado por ele.

Então, integrar informações aqui obriga-nos ao desenvolvimento de três

competências:

(1) A competência espiritual, marcada pela sensibilidade simbólica, que se abre

ao mistério e que nos coloca dentro dele, como iniciados.

(2) A competência catequética, relacionada ao conhecimento dos símbolos, das

ações simbólicas, dos ritos e de suas relações com as Sagradas Escrituras.

(3) A competência semiótica, que está alerta para o processo de construção de

sentido do texto litúrgico e que sintetiza a competência espiritual e

catequética.

O mecanismo de compreensão leitora implica um estado constante de

alerta por parte do leitor para que possa detectar o erro no processo de construir

hipóteses e verificá-las, bem como de integrar essas informações em uma

compreensão global do que lê. Trata-se de uma atividade de constante

autoavaliação que lhe permite aceitar como válida a informação recebida e,

portanto, continuar a leitura ou adotar alguma estratégia que lhe permita refazer

o processo.

Nesse sentido, as principais ações tomadas pelo leitor são as seguintes:

1) Descartar a incoerência, ignorando o erro, por considerar que aquele

elemento não é importante para a construção da síntese cognitivo-afetiva do

que lê.

2) Suspender o juízo até que obtenha mais informações do texto que lhe

permita reorganizar a compreensão.

3) Buscar explicações alternativas, abandonando as hipóteses já construídas.

4) Retroceder no processo leitor e explorar partes do texto já lidas para situar

o(s) elemento(s) discordante(s).

5) Buscar uma solução exterior ao texto, como consultar um dicionário, uma

enciclopédia, outra pessoa, a internet etc.

11. O texto simbólico artístico cristão e a construção de sentidos

Há coincidências importantes entre o leitor que se aproxima da obra de

arte e aquele que se aproxima do símbolo cristão quando ambos buscam a

transcendência. Nos dois casos, a aproximação é antes de tudo impressiva. São

as emoções que fazem sentir a obra. Nesse sentir, algum elemento, nem sempre

claro, desperta a atenção. Sobre ele formulam-se então hipóteses que se

relacionam com o todo, que os olhos já abarcaram, mas ainda não analisaram.

Quando símbolo cristão e o artístico coincidem em um único objeto, as

possibilidades podem, curiosamente, se potencializar ou estreitar.

Com o filósofo francês Jacques Maritain (2008), podemos defender que a

arte cristã é aquela que possibilita a leitura da esperança e de inquietação

próprios do espírito evangélico. É uma arte que traz para si tanto o profano como

o sagrado. É uma arte feita não tanto para o espaço da Igreja, mas para o da

alma humana.

Por vezes, até, não é feita para tais ambientes religiosos e não provoca

diretamente a devoção do fiel, mas é, antes de tudo, uma arte que provoca... É

uma forma de arte que não reside apenas nas habilidades do artista, como

também nas habilidades do público leitor. A arte cristã não precisa falar do Cristo,

mas precisa provocar o cristão.

Por outro lado, podemos considerar a arte sacra como uma arte com

finalidades pedagógicas, que visa a ensinar ou a motivar uma determinada

atitude de devoção. É uma manifestação da arte que se enuncia para o ambiente

especificamente religioso: a imagem ou a música que promovem o adequado

espírito de devoção, por exemplo.

O perigo da obra de arte sacra é a sua preocupação ideológica de edificar

devocionalmente o outro. Torna-se, então, vítima fácil para visões infantilizadas

(no pior sentido do termo) da vida e para didatismos inapropriados. Desse modo,

perde-se a possibilidade para adentrar no mistério de vida.

O equilíbrio de promover a devoção e a transcendência pode surpreender o

artista em desafio maior do que ele consegue dar conta. A preocupação de

persuadir o outro é uma função que dificulta a construção da obra de arte e, com

isso, da arte genuinamente cristã e, ao mesmo tempo, sacra. O desafio é

construir o diálogo entre as muitas vozes presentes no processo enunciativo de

produção, particularmente, duas: a do artista e a do cristão, mas no constante

esforço de não confundir ou formatar essas fronteiras.

Essas fronteiras, segundo Maritain (2008), se estabelecem na liberdade do

artista enquanto artista. O mesmo poderíamos dizer do leitor, como artesão do

processo de leitura da obra de arte: ele precisa ser livre para ser leitor da obra e

encontrar nela traços de duas inspirações que a devem constituir como trabalho

cristão: a inspiração divina e a humana. Assim, mesmo que pensemos na

instância enunciativa receptora que se inscreve no símbolo cristão, a dimensão

artística promove a liberdade na direção do encontro a duas inspirações que

devem constituir a obra de arte como trabalho cristão: a inspiração divina e a

humana.

Liberdade é palavra chave no processo de interpretação do símbolo cristão,

mas não uma liberdade que permita o uso do símbolo nos propósitos exclusivos

do do artista ou do leitor, mas que respeite a realidade enunciativa: um texto

simbólico ocorrendo em um determinado tempo e lugar historicossocial e

envolvendo diversas pessoas, tanto sincrônica, como diacronicamente. Sendo

sensível para a dimensão metafórica do texto simbólico que é, essencialmente,

movimento. As metáforas possibilitam os deslocamentos para a abertura ao

entendimento do outro. Por isso, a linguagem simbólica, sendo essencialmente

metafórica, nos encaminha para o outro, seja aquele que está mais próximo a

nós, seja um artista no passado, seja o próprio Cristo.

A busca pela transcendência aproxima, nesse sentido, as linguagens

simbólicas da arte e do cristianismo. E essa busca orienta o olhar na construção

do sentido da obra de arte na procura antes de tudo impressiva, mas aberta ao

diálogo com os limites da enunciação.

O olhar busca o mistério e esse mistério é pergunta. Então se trata mais

de formular questões do que de encontrar respostas. Essa parte que se relaciona

com o todo, considera a realidade enunciativa da produção da obra, respeita-a,

particularmente, naquilo que a obra inscreve da enunciação em si. Isso significa

aproximar-se da obra de arte religiosa compreendida como texto simbólico

religioso, embora, nem sempre estejamos no domínio do devocional.

A simbologia cristã e artística expressam a necessidade humana de ir

além, de sentir-se incomodado com a realidade presente e desejar mais em um

movimento de penetrar em si mesmo que vai além de si mesmo. O texto

simbólico cristão constitui-se em caminho para essa passagem, trazendo em si

(como, de certa forma, também o faz o texto simbólico artístico) a possibilidade

do homem se irmanar a todos os homens, ao convidá-lo a assumir-se, no tempo

e no espaço, como um entre aqueles seres que assumem o diálogo que a

efemeridade estabelece com o infinito, que o mínimo estabelece com o absoluto,

como nos diz Manoel de Barros:

“É no ínfimo que eu vejo a exuberância”

(BARROS, 1996: 55)

Apenas nessa perspectiva não pedagogizante, de um didatismo

direcionado, que o textos simbólico artístico e o cristão podem se fundir e

colaborar solidariamente. Então abre-se a possibilidade de despertarmos a

atração a uma luz que não sabemos explicar, da qual divisamos uma parte, uma

centelha, naquela relação que estabelecemos emocional e mentalmente, entre a

parte e o todo da obra. No texto simbólico cristão, ainda mais se for também

artístico, juntam-se, então, a parte do eu cotidiana, resolução dialética entre

emoções e sentimentos, com a outra parte de si mesmo, o Eu que é Outro, por

ser manifestação transcendente do Sagrado. Nesse sentido, a experiência de

leitura do símbolo sagrado é profundamente mística.

Em linguagem poética, nos diz São João da Cruz:

“¡Oh noche que guiaste!

¡Oh noche amable más que el alborada!

¡Oh noche que juntaste

Amado con amada,

amada en el Amado transformada!2”

(CRUZ, 1984: 134)

Encontrar o mistério constitutivo de nossa própria identidade,

representação mental de quem somos, seres únicos em nossas experiências e

história próprias. Centelha do Sagrado que habita em nós. Mas encontrar o

mistério também como parte da nossa identidade social, como uma coleção de

pertenças a grupos, dos quais somos parte integrante: seja na identidade de

sentir-se mais brasileiro diante de uma obra sacra do Barroco em um museu ou

de sentir-se mais cristão diante do rito da Eucaristia. Centelha do Sagrado que

habita o Outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Poética. In: Poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1997.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. São Paulo, Record, 1996.

BUYST, Ione. O segredo dos ritos: ritualidade e sacramentalidade da

liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011.

__________ . Celebrar com símbolos. São Paulo: Paulinas, 2007.

__________ . Símbolos na liturgia. São Paulo: Paulinas, 1998.

COLOMER, Teresa e CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a

compreender. Porto Alegre: Artmed, 2002.

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma

introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2010.

CRUZ, Juan de la. Poesía. Madrid: Cátedra – Letras Hispánica, 1984.

ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva,

2012.

2 Em tradução livre: “Ó noite que guiaste!/ Ó noite mais amável que a alvorada!/ O noite que juntaste/

amado com amada,/ amado no amado transformada!”

ECO, Umberto. As formas do conteúdo. São Paulo: Perspectiva, 2001.

GOODMAN, Nelson. As linguagens da arte: uma abordagem a uma

teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006.

LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas:

Mercado das Letras; São Paulo: Educ, 2002.

LANDEIRA, José Luís. Movimentos enunciativos da poesia errante.

Tese de doutoramento. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.

MARITAIN, Jacques. La educación en la encrucijada. Madrid: Ediciones

Palabra, 2008

SÁNCHEZ MIGUEL, Emilio. Compreensão e redação de textos:

dificuldades e ajudas.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo:

Cultrix, 2004.

SOUZA, Lícia Soares de. Introdução às teorias semióticas. Petrópolis:

Vozes, 2006.

VOLLI, Ugo. Manual de semiótica. São Paulo: Loyola, 2012.