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24 Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017 Análise da ilustração do experimentum crucis de Newton Anabel Cardoso Raicik Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil E-mail: [email protected] Luiz O.Q. Peduzzi Departamento de Física, Programa de Pós Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil E-mail: [email protected] José André Peres Angotti Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil E-mail: [email protected] Introdução A concepção e o reconhecimento de ‘experimentos cruciais’ na ciência são matérias controversas. Há posturas antagônicas tanto entre filósofos da ciência – que admitem desde a existên- cia desses experimentos somente em retrospectiva àquelas que não aceitam que eles possam existir – quanto entre cien- tistas, que, em seus relatos científicos, uti- lizam a expressão com divergentes signi- ficados [1]. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, período mais fortemente influenciado pelas novas concepções experimentais que surgiram na ciência, sobretudo com o método indutivo de Francis Bacon (1561– 1626), identificam-se, entre outros, Rob- ert Boyle (1627–1691), Robert Hooke (1635–1703), Isaac Newton (1643– 1727), Luigi Galvani (1737–1798) e Alessandro Volta (1745–1827) empregan- do o termo ‘crucial’ para designar alguns de seus experimentos. Boyle parece ter sido o primeiro a fazer isso, utilizando a expressão experimentum crucis com apelo demonstrativo. Na perspectiva baconiana, a instantia crucis pode se literalmente traduzida como ‘instância de encruzi- lhada’, uma vez que Bacon tomou o termo por referência/analo- gia às cruzes que se colocam nas estradas para indicar bifurca- ções. Boyle acreditava que, quando de um impasse teórico, ape- nas um experimento que mostrasse um efeito explicado por apenas uma teoria deveria ser buscado. Reside aqui “um exemplo quase perfeito de uma instância crucial de Bacon” [2, p. 55]. No curso da nova filosofia natural experimental, os relatórios empíricos começaram a se fazer presentes na comu- nidade científica. Isto fez emergir a neces- sidade de ‘disciplinar’ a apresentação dos resultados contidos nessas narrativas. Bacon argumenta a favor de métodos de comunicação. Segundo ele, pode-se des- crever o que foi feito experimentalmente de forma ‘magistral’ à luz do pressuposto que “requer que se deve acreditar no que é dito” e com métodos ‘iniciativos’ que, por sua vez, mostram os processos pelos quais se chega a determinadas conclusões [3, p. 515-516]. Para se obter credibilidade, era imprescindível que a experiência fosse efetivamente comunicada ao público [4]. Nessa perspectiva, embora de modo não descomedido, o zelo de Bacon levou Boyle a desenvolver formas literárias de comunicação de experimentos [3]. Ele buscou designar convencionalidades espe- cíficas à maneira de falar sobre a natureza e o conhecimento natural. Direta ou indi- retamente, esse status ‘normativo’ influ- enciou a forma como as narrativas expe- rimentais eram apresentadas entre os estudiosos e, posteriormente, às recém- criadas sociedades científicas. Boyle preocupou-se com a reprodu- tibilidade dos experimentos. Isso o fez considerar como um dos quesitos mais relevantes dos relatos a elaboração e a vei- culação de imagens 1 experimentais, sobre- tudo aquelas natura- lísticas – que possuem detalhes circunstan- ciais que não são visí- veis, por exemplo, em representações mais esquemáticas. Em seus próprios estudos ele registra detalha- damente e sob diferentes circunstâncias os experimentos que realizava. O papel da imagem, associada à sua descrição, estava fortemente relacionado, então, com a O artigo analisa a contextualização dos estudos de Newton sobre a teoria da luz e cores, parti- cularmente a ilustração do experimentum crucis, em livros de divulgação científica. Para subsi- diar a compreensão da importância dada às ilustrações e aos recursos literários dos experi- mentos em meados do século XVII, resgata as narrativas experimentais apresentadas por Boyle. Aponta, ainda, possíveis implicações para o ensino de ciências. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, período mais fortemente influenciado pelas novas concepções experimentais que surgiram na ciência, muitos estudiosos importantes empregaram o termo ‘crucial’ para designar alguns de seus experimentos

Introdução Anabel Cardoso Raicik A -  · Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017 Análise da ilustração do experimentum crucis de Newton 25 reprodução dos experimentos pelos pares,

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Page 1: Introdução Anabel Cardoso Raicik A -  · Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017 Análise da ilustração do experimentum crucis de Newton 25 reprodução dos experimentos pelos pares,

24 Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017Análise da ilustração do experimentum crucis de Newton

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Anabel Cardoso RaicikPrograma de Pós-Graduação emEducação Científica e Tecnológica,Universidade Federal de SantaCatarina, Florianópolis, SC, BrasilE-mail: [email protected]

Luiz O.Q. PeduzziDepartamento de Física, Programa dePós Graduação em Educação Científicae Tecnológica, Universidade Federal deSanta Catarina,Florianópolis, SC, BrasilE-mail: [email protected]

José André Peres AngottiPrograma de Pós-Graduação emEducação Científica e Tecnológica,Universidade Federal de SantaCatarina, Florianópolis, SC, BrasilE-mail: [email protected]

Introdução

Aconcepção e o reconhecimento de‘experimentos cruciais’ na ciênciasão matérias controversas. Há

posturas antagônicas tanto entre filósofosda ciência – que admitem desde a existên-cia desses experimentos somente emretrospectiva àquelas que não aceitam queeles possam existir – quanto entre cien-tistas, que, em seus relatos científicos, uti-lizam a expressão com divergentes signi-ficados [1].

Ao longo dos séculos XVII e XVIII,período mais fortemente influenciadopelas novas concepções experimentais quesurgiram na ciência, sobretudo com ométodo indutivo de Francis Bacon (1561–1626), identificam-se, entre outros, Rob-ert Boyle (1627–1691), Robert Hooke(1635–1703), Isaac Newton (1643–1727), Luigi Galvani (1737–1798) eAlessandro Volta (1745–1827) empregan-do o termo ‘crucial’ para designar algunsde seus experimentos. Boyle parece ter sidoo primeiro a fazer isso, utilizando aexpressão experimentum crucis com apelodemonstrativo.

Na perspectiva baconiana, a instantiacrucis pode se literalmente traduzida como‘instância de encruzi-lhada’, uma vez queBacon tomou o termopor referência/analo-gia às cruzes que secolocam nas estradaspara indicar bifurca-ções. Boyle acreditavaque, quando de umimpasse teórico, ape-nas um experimentoque mostrasse um efeito explicado porapenas uma teoria deveria ser buscado.Reside aqui “um exemplo quase perfeitode uma instância crucial de Bacon” [2,p. 55].

No curso da nova filosofia natural

experimental, os relatórios empíricoscomeçaram a se fazer presentes na comu-nidade científica. Isto fez emergir a neces-sidade de ‘disciplinar’ a apresentação dosresultados contidos nessas narrativas.Bacon argumenta a favor de métodos decomunicação. Segundo ele, pode-se des-crever o que foi feito experimentalmentede forma ‘magistral’ à luz do pressupostoque “requer que se deve acreditar no queé dito” e com métodos ‘iniciativos’ que,por sua vez, mostram os processos pelosquais se chega a determinadas conclusões[3, p. 515-516]. Para se obter credibilidade,era imprescindível que a experiência fosseefetivamente comunicada ao público [4].

Nessa perspectiva, embora de modonão descomedido, o zelo de Bacon levouBoyle a desenvolver formas literárias decomunicação de experimentos [3]. Elebuscou designar convencionalidades espe-cíficas à maneira de falar sobre a naturezae o conhecimento natural. Direta ou indi-retamente, esse status ‘normativo’ influ-enciou a forma como as narrativas expe-rimentais eram apresentadas entre osestudiosos e, posteriormente, às recém-criadas sociedades científicas.

Boyle preocupou-se com a reprodu-tibilidade dos experimentos. Isso o fez

considerar como umdos quesitos maisrelevantes dos relatosa elaboração e a vei-culação de imagens1

experimentais, sobre-tudo aquelas natura-lísticas – que possuemdetalhes circunstan-ciais que não são visí-veis, por exemplo, em

representações mais esquemáticas. Emseus próprios estudos ele registra detalha-damente e sob diferentes circunstâncias osexperimentos que realizava. O papel daimagem, associada à sua descrição, estavafortemente relacionado, então, com a

O artigo analisa a contextualização dos estudosde Newton sobre a teoria da luz e cores, parti-cularmente a ilustração do experimentum crucis,em livros de divulgação científica. Para subsi-diar a compreensão da importância dada àsilustrações e aos recursos literários dos experi-mentos em meados do século XVII, resgata asnarrativas experimentais apresentadas porBoyle. Aponta, ainda, possíveis implicaçõespara o ensino de ciências.

Ao longo dos séculos XVII eXVIII, período mais fortemente

influenciado pelas novasconcepções experimentais que

surgiram na ciência, muitosestudiosos importantes

empregaram o termo ‘crucial’para designar alguns de seus

experimentos

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25Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017 Análise da ilustração do experimentum crucis de Newton

reprodução dos experimentos pelos pares,seja de forma física ou mental.

Em meio a essa intensa valorizaçãoexperimental, Newton remete em 1672um artigo, redigido em forma de carta,ao secretário da Royal Society relatandosua nova teoria sobre luz e cores [5]. Oartigo, juntamente com outros escritos,serviu de base para a publicação da Óptica[6], em 1704, quase duas décadas depois[7]. No decorrer da apresentação desse seuestudo, pelo qual explica o fenômeno daformação das cores devido à refração, eleapodera-se com apelo retórico tanto dotermo experimentum crucis para designarum de seus experimentos quanto de ima-gens que o ilustram, apresentadas emoutro artigo em 1672 [8] e na Óptica. Aanálise histórica desse episódio mostra,nitidamente, a incongruência de se admitirque um experimento é capaz de apresentarresultados que, de forma decisiva einstantânea, alcançam o consenso cientí-fico [9-12].

No ensino de ciências é corrente a ideiade que experimentoscruciais podem esta-belecer a ‘verdade’científica. Isto é, que oexperimento, por sisó, é capaz de gerarresultados definidorese incontestáveis. Essaimagem está implícitaou explicitamente presente, além de emlivros didáticos, em diferentes meios dedivulgação da ciência, como em filmes,séries, documentários e textos de divul-gação científica. Ao seu modo, essesmateriais – que cada vez mais fazem partede atividades didáticas nas salas de aula –transmitem concepções e imagens sobrea ciência.

Por certo, a divulgação científica visaatingir um amplo público, não necessa-riamente alfabetizado cientificamente.Assim sendo, seus materiais utilizam re-cursos como ilustrações, infográficos,metáforas que, se nãodevidamente contex-tualizados, podempenalizar a precisão deinformações [13].Como ressalta Forato[14], muitos delescontemplam perspec-tivas anacrônicas e descontextualizadas daconstrução da ciência, especialmente sobreo período tido como o ‘nascimento daciência moderna’. Dessa forma, especial-mente quando usados em sala de aula,requerem cuidados historiográficos, umavez que podem reforçar concepções ina-dequadas ou limitadas sobre a ciência,

como a que se refere ao mito do experi-mento crucial.

Este artigo busca investigar comouma amostra de livros de divulgação cien-tífica, de autores com distintas formações,contextualiza os estudos de Newton sobrea teoria da luz e cores na perspectiva dasilustrações dos experimentos por eledesenvolvidos, particularmente do experi-mentum crucis. Para tanto, discute breve-mente as narrativas experimentais apre-sentadas por Boyle e a importância con-cedida por ele, em meados do século XVII,às ilustrações e aos recursos literários dosexperimentos quando de suas publicações.Em conclusão, apresenta implicações daanálise desenvolvida para o ensino de ciên-cias.

Relatos experimentais no séculoXVII: a relevância das ilustrações

Robert Boyle, com seu olhar perspi-caz, persuadiu consideravelmente a iden-tidade do novo praticante científico no fi-nal do século XVII [15], tornando-se uma

das figuras mais in-fluentes da Royal So-ciety. Defendendo queos relatos experimen-tais deveriam ser es-critos em uma lin-guagem acessível aosseus contemporâ-neos, influenciado por

Bacon, ele percebe que até então asnarrativas continuavam a ser redigidas deforma indisciplinada e a sua confiabilidadeera matéria de preocupação.

Em vista disso, Boyle argumenta queao manipular a natureza era preciso nãoapenas buscar informações dos processosnaturais, mas também melhorar o níveldessas informações. “A qualidade que ti-nham os experimentos de resultar em ma-térias de fato dependia não somente de suareal execução, mas também (...) da certi-ficação por parte da comunidade relevantede que eles haviam sido assim executados”

[16, p. 95]. O próprioBoyle “ao reportarexperimentos queeram particularmentecruciais ou problemá-ticos” escolhia suastestemunhas e julga-va suas qualificações,

para que suas demonstrações atestassemlegitimidade.

O desenvolvimento de relatos experi-mentais que facilitassem a reprodução deexperimentos pelos leitores era outra ma-neira de garantir o depoimento coletivo.Para isso, alguns desafios à época tinhamde ser contornados, como aquele que se

refere à dificuldade de acesso a determi-nados aparatos experimentais, pelo seucusto e locomoção, e à falta de habilidadede alguns dos estudiosos.

Não obstante, a forma mais rele-vante de se conseguir a multiplicação detestemunhas, que, vale frisar, era umcritério de cientificidade experimental,era por meio de ‘testemunhos virtuais’[16]. Essa estratégia empregava osmesmos recursos linguísticos de incen-tivo para a reprodução física do expe-rimento ou para produzir na mente doleitor uma imagem naturalística da cenado experimento. As narrativas experi-mentais deveriam ser escritas de maneiraque estudiosos não presentes comotestemunhas ‘reais’, pudessem replicarefetivamente os efeitos relevantes doexperimento. É importante ressaltar quepara Boyle, portanto, o testemunho erauma questão de evidência e não de auto-ridade [17].

As imagens naturalísticas priorizadaspor Boyle tinham por função complemen-tar o testemunho por meio da imaginação.Elas não eram meros desenhos, mas figu-ras que apresentavam detalhes circuns-tanciais que, como ele alegava, não seriamvisíveis em representações mais esquemá-ticas. “Produzir imagens desse tipo consis-tia em uma atividade onerosa em meadosdo século dezessete e os filósofos naturaisas utilizavam com parcimônia” [16,p. 99]. Boyle também valorizava e faziauso de imagens esquemáticas, desde queas mesmas apresentassem comentários edescrições.

Por certo, Boyle buscou organizar tex-tos que, “com detalhes circunstanciaisinseridos nos limites de uma estruturagramatical”, poderiam imitar a simulta-neidade da experiência por meio dasrepresentações pictóricas [3, p. 493]. Elefoi, sem dúvida, um personagem marcan-te na ciência, que ilustra a posição empí-rica afirmada claramente por Bacon [18].Newton foi seu contemporâneo, e, em-bora se possa destacar em seus estudosdiversos recursos linguísticos ressaltadospor Boyle, ele não teve, a contento, as mes-mas preocupações.

Enquanto um andou humildementee falou e escreveu em uma língua na qualas pessoas sem instrução poderiam ler eentender – e isso explica em grande medidaa influência que exerceu –, o outro redigiuem latim o Principia [19] e viveu em umaesfera em que poucos poderiam penetrar[15]. Já na Óptica essa diferença é mini-mizada. Ela foi escrita originalmente eminglês, possivelmente para torná-lo maispopular em termos de conteúdo e de al-cance [20].

Ao utilizar o termoexperimentum crucis Newton

emprega um poder delegitimação, confiabilidade epersuasão em sua narrativa

experimental

A análise histórica dos estudosnewtonianos sobre a teoria da

luz e cores mostra, nitidamente,a incongruência de se admitir

que um experimento, por si só,é capaz de gerar resultadosdefinidores e incontestáveis

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As ilustrações de Newton doexperimentum crucis

No artigo “Nova Teoria sobre Luz eCores”2 [5], Newton relata os resultadosde vários anos de estudos e explica ofenômeno da formação das cores devidoà refração [7, 9, 10, 21]. Desenvolvendoinúmeros experimentos com prismas, eleconclui que a luz branca é uma misturaheterogênea de raios com diferentes grausde refrangibilidade. Nesse artigo, ele nãoexplorou abundantemente o artifíciopictórico, mas utiliza o termo experimen-tum crucis para um de seus experimentosque, pode-se dizer, emprega um poder delegitimação, confiabilidade e persuasão emsua narrativa experimental.

Newton inicia seu relato descrevendouma experiência que permitia a passagemde luz branca do Sol por um prisma devidro:

(...) tendo escurecido meu quarto e feitoum pequeno orifício na veneziana deminha janela, para admitir a entradade uma quantidade conveniente de luzsolar, coloquei meu prisma à entradadele, para que a luz fosse refratada paraa parede oposta. A princípio, foi umadiversão muito agradável observar ascores vívidas e intensas assim produ-zidas, mas, depois de algum tempoempenhando-me em examiná-las commaior circunspecção, surpreendeu-mevê-las em uma forma oblonga, por-quanto, segundo as leis aceitas darefração, eu esperava que ela fosse cir-cular [5, p. 3076].

De acordo com Granés [9, p. 29] oparágrafo acima é “magistral, por suaprecisão e poder de síntese”. Podem-seperceber aspectos circunstanciais, relevan-tes para Boyle, explanados por Newtonao descrever esse experimento. O quartoescurecido, o orifício na veneziana da ja-nela, a função desse orifício, a colocaçãodo prisma, o seu encantamento, a sur-presa ao constatar algo imprevisto pelateoria vigente, são detalhes com os quaisse pode evidenciar que, de fato, a “atençãopara com a escrita de relatórios sobre ex-perimentos tinha uma importância prá-tica que era pelo menos igual à própriarealização dos experimentos” [3, p. 492].

Por certo, o caminho trilhado porNewton o conduzia a encontrar uma teo-ria para o fenômeno da formação das co-res que permita explicar a forma oblongado espectro sem abandonar a lei da refra-ção de René Descartes (1596–1650) – queadmitia que o raio incidente e o raio refra-tado que saem de um prisma se compor-tam de maneira simétrica na posição dedesvio mínimo do prisma. A pergunta que

ele se faz é: “a inesperada forma alongadado espectro sobre a parede não poderia,talvez, ser causada por elementos quedependem inteiramente das circunstânciasespecíficas que enquadram a realizaçãoparticular do experimento?” [9, p. 32].

Newton verifica a hipótese de seremos componentes de seu experimento oscausadores dessa forma alongada. Cons-tatando sua improcedência, ele segue for-mulando novas conjecturas e fazendo (ecriando) novas experimentações. Supõeque o alongamento era devido a uma irre-gularidade no prisma de vidro ou ainda auma falta de paralelismo do feixe de luzproveniente do Sol que penetra o orifícioda persiana, devido ao tamanho do astroe sua distância finita da Terra.

A eliminação dessas suspeitas levouNewton ao seu experimentum crucis, queconsistia de uma lente à frente de umprisma, pela qual passava a luz brancado Sol. A lente possibilitava produzir umespectro fino e com cores bem definidasem um anteparo. Um furo no anteparopermitia que uma pequena faixa do espec-tro passasse por um segundo prisma, quenão decompunha a luz em novas cores,apenas produzia uma mancha da cor sele-cionada.

Curiosamente, a primeira imagem(Fig. 1) do experimento crucial irá aparecerapenas em um artigo publicado quatromeses depois, em junho de 1672 [8], noPhilosophical Transactions.

De acordo com Newton, essa figura(Fig. 1) foi desenvolvida por causa dasdúvidas e debates que surgiram após apublicação do artigo sobre a luz e as cores.

Finalmente, como a melhor confirma-ção, acrescento o Experimento a queeu já dei o nome de Crucial em várioslugares: já que as condições [sob osquais o experimento havia sido reali-zado] apresentaram dúvidas, eu decididesenvolver esta figura [8, p. 5016, tra-dução dos autores].

Conforme Boyle, as ilustrações nosrelatos experimentais eram fundamentaispara aqueles que requeriam auxílio visual,por não possuírem facilidade de imagina-

ção [3]. A função da imagem newtonianado experimento crucial pode ter sido a deilustrar, ainda que superficialmente, comose dispôs o experimento, e evidenciar,sobretudo para os testemunhos, que elede fato havia sido realizado, conferindomaior confiabilidade ao seu resultado.

Isso se justifica principalmente por-que, após a publicação do seu primeiroartigo sobre o assunto, Newton recebeumuitas críticas. Diversos filósofos natu-rais escreveram à Royal Society indicandoque os experimentos newtonianos não da-vam os resultados indicados por ele oupropondo outros que contrariavam a suateoria [21]. “Para resolver a questão ex-perimental, Robert Hooke foi encarregadode repetir diante da Royal Society os expe-rimentos de Newton, e conseguiu repro-duzi-los sem problemas” [21, p. 325].Cabe ressaltar que, na época, Hooke eracurador oficial da Royal Society, isto é,responsável por reproduzir os experimen-tos descritos nos artigos submetidos e/ou publicados pela academia. Apesar deaceitar como corretos os experimentosnewtonianos, ele continuou a negar suateoria.

Por certo, o objetivo principal do expe-rimentum crucis foi descobrir se as corespoderiam ser transformadas e criadas, ounão. Todavia, segundo Silva e Martins[21], o discurso por trás do seu experi-mento crucial muda durante as árduasdiscussões com seus críticos. Na Óptica[6], 32 anos depois, Newton também des-creve e ilustra (Fig. 2) o que seria o experi-mentum crucis, porém nessa obra ele nãoexplicita essa terminologia. Em seu livro,fica mais evidente a dependência desseexperimento com outros para que se pu-desse mostrar, conclusivamente, que ascores não eram uma mistura de luz esombras, como pensavam alguns desdeAristóteles, nem produzida no ato darefração [11, 22].

A ilustração é acompanhada de umlongo comentário, em que Newton buscaexplicar os aspectos circunstanciais pelosquais o experimento foi realizado. Toda-via, é um texto despersonalizado e umtanto argumentativo, escrito com umafrieza objetiva e uma concisão que deixade lado aspectos secundários [10] priori-zados por Boyle.

Figura 1: O experimentum crucis de New-ton, publicado em 1672 [8].

Figura 2: Ilustração do experimentum crucisapresentado na Óptica em 1704.

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Para Newton, as premissas de suateoria emanam diretamente, de maneiranatural e quase evidente, do experimentoque denominou crucial. Para Boyle, háuma retórica de convencimento inerenteaos textos científicos. Encontram-se nostextos boyleanos uma preocupação emfornecer ao leitor uma imagem muitovívida da realização de cada um dosexperimentos. Muitos dos leitores newto-nianos, todavia, teriam dificuldades emreplicar alguns de seus experimentos, poisteriam de ‘inventar’ detalhes técnicos dasua realização. Isso pode ser explicado pelofato de que Newton, diferindo de Boyle,escreveu para um público mais especiali-zado.

O certo é que “a famosa frase, experi-mentum crucis, tornou-se quase sinônimode teoria newtoniana” [23, p. 354]. Asimagens, apresentadas em diferentestextos, propiciaram ainda mais a dissemi-nação do experimento e sua popularidadepara diferentes públicos, gostando New-ton ou não.

A ilustração em si revela ainda maisa sua importância na publicação dasegunda edição da Óptica em Paris, no anode 1722. Varigon, responsável por essaedição, solicitou a Newton uma imagemque representasse seu trabalho sobreóptica [11]. Dentre inumeras opções,Newton escolheu o experimentum crucis(Fig. 3). Além disso, havia no desenho aseguinte frase: Nec variat lux colorem, quequer dizer “a luz não muda de cor quandoé refratada” [11].

O discurso da divulgação cientí-fica: as ilustrações dos experimen-tos sobre luz e cores de Newton

Quando Boyle buscou estabeler textoscientíficos com determinados recursoslinguísticos, ele visava, sobretudo, a popu-larização da ciência [16]. Ele defendia oque frequentemente é utilizado na litera-

tura como ‘divulgação científica’: o usode recursos técnicos para a comunicaçãocientífica ao público em geral [24]. New-ton, no entanto, admitia que o conheci-mento deveria ser restrito aos iniciados,ou seja, a escrita deveria ser feita de formaespecífica para pessoas minimamente ins-truídas. Ele priorizava o que se podechamar de ‘comunicação científica’, ou se-ja, um texto transcrito em códigos espe-cializados, para um público seleto for-mado de especialistas [13]. Cabe ressaltarque nem Boyle, nem tampouco Newton,utilizaram as expressões ‘comunicação’ou ‘divulgação científica’.

Independentemente de como os rela-tos são escritos, tanto para os pares comopara o público em geral, o certo é que opapel da divulgação científica vem evo-luindo ao longo do tempo [24]. O reconhe-cimento de que o processo de divulgar aciência implica em uma transformação dalinguagem científica com vistas a suacompreensão pelo público é um dos aspec-tos mais relevantes às problematizaçõesrelacionadas ao ‘por que’ e ao ‘como’divulgar [25].

Como salienta Fahnestock [26], hámudança de informação de um discursopara outro. A liguagem deve ser adaptadade acordo com o público ao qual sedestina. Nos discursos ditos primários, ouseja, nas ‘comunicações científicas’, háenfaticamente o recurso de persuasão doleitor à relevância e legitimação dos novosconhecimentos apresentados [27]. Ostextos de ‘divulgação científica’, por suavez, são prioritariamente epidíticos, istoé, possuem a finalidade de celebrar, e nãode validar as informações [26].

De acordo com Massarine e Moreira[27, p. 1], de modo geral pode-se distin-guir três discursos: “os discursos científi-cos primários (escritos por pesquisadorespara pesquisadores), os discursos didáticos(como os manuais científicos para ensino)e os da divulgação científica”. A despeitodessa distinção, a comunicação científica,entendida como o discurso primário,quando devidamente retrabalhada, podecontribuir no processo de divulgação cien-tífica. Inclusive, “em muitos casos, cita-ções literais de material ou reprodução defalas identificadas com a comunicaçãocientífica são repassadas ao público leigo”[13, p. 6]. Podem ser discernidas váriasestratégias de alteração na linguagem uti-lizada no processo de mudança de umdiscurso para outro, dentre elas a utiliza-ção de ilustrações.

As ilustrações, no âmbito dos dife-rentes discursos, têm sido utilizadas emnúmero significativamente maior ao lon-go do tempo [27]. Elas são importantes

recursos para a comunicação científica,como defendia Boyle, e para a divulgaçãocientífica, podendo apresentar distintasfunções nos textos e servindo indiscuti-velmente como um recurso de visualiza-ção. Também desempenham um papelfundamental na constituição das idéiascientíficas e na sua conceitualização [28].Há, ainda, um consenso entre vários auto-res sobre o fato de as imagens desempe-nharem importante papel pedagógico noprocesso de ensino-aprendizagem [29].Nesse sentido, apresenta-se a seguir umaanálise das ilustrações exibidas em mate-riais de divulgação científica sobre a teoriada luz e cores de Newton.

A amostra de livros para a apreciaçãolevou em conta distintas formações dosautores. Dessa forma, foram analisadosos seguintes livros: Newton: a Órbita daTerra em um Copo d’Água [30], de EduardoCampos Valadares; Isaac Newton o ÚltimoFeiticeiro: uma Biografia [31], de MichaelWhite, e Os Grandes Experimentos Cientí-ficos [32], de Michel Rival. Valadares, autorde um dos livros, é doutor em ciências.Rival é especialista em questões científicase técnicas e White é jornalista de divulga-ção científica.

As ilustrações foram classificadas àluz de quatro categorias – contextualiza-ção histórica, iconicidade, relação com otexto principal, função da imagem –desenvolvidas com base em Perales eJiménez [33]: 1) por meio da contextuali-zação histórica, procurou-se analisar sehouve contextualização da ilustração, ouapenas do assunto; 2) a iconicidade, quese refere à complexidade da ilustração, foianalisada sob quatro vieses: imagemnaturalística (possuem detalhes circuns-tanciais que não são visíveis, por exemplo,em representações mais esquemáticas),esquemática (apresenta uma representa-ção, mas dispensa detalhes) ou figurativa(é simplesmente simbólica); 3) na relaçãocom o texto principal, buscou-se verificarse existe um vínculo explícito entre a ilus-tração e o texto ou se cabe ao leitor fazera ligação entre eles; 4) a função da imagem,na sequência do discurso apresentado, foiclassificada como decorativa (motivacio-nal), representativa (ilustrativa), organi-zacional (descritiva, apresenta aspectoscircunstanciais) ou explicativa. Além dis-so, analisou-se a complexidade da lingua-gem utilizada nessa relação.

O livro Os Grandes Experimentos Cien-tíficos [32] apresenta, cronologicamente,alguns experimentos desenvolvidos nafísica, desde o século III a. C., com Arqui-medes, por exemplo, até a década de 1958,com as ondas gravitacionais. No períodoque correspondente ao ano de 1672, o

Figura 3: Ilustração selecionada por New-ton para representar seus estudos ópticos.A escolhida para a tradução francesa,publicada em 1722, foi uma versãoaprimorada. Imagem extraida deAssis [11].

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livro discute brevemente o experimentocrucial de Newton.

O título da seção é “Experimentumcrucis” e o autor apresenta uma traduçãoliteral para o termo: ‘experimento deci-sivo’. O livro inclui quatro páginas sobreo assunto e, embora sucinto, exibe peque-nos trechos originais. Ademais, veicula aodiscurso duas imagens. A primeira delas,refere-se ao primeiro experimento descritopor Newton no artigo de 1672 [5] (ou oterceiro na Óptica), em que constata a for-ma oblonga do espectro. A segunda ilus-tração é a do experimento crucial, a mes-ma apresentada por Newton na Óptica ejá exibida na seção anterior deste artigo[Fig. 2], ou seja, é uma ilustração primá-ria, mas o livro não salienta isso, nãocontextualiza historicamente a imagem,descrevendo apenas que: “Essa foi a ‘expe-riência decisiva’, o experimentum crucis”[32, p. 27].

A ilustração, assim como está presen-te na obra original de Newton, é esque-mática e sua função na sequência do livrode Rival pode ser classificada tanto comorepresentativa (ilustrativa), quanto orga-nizacional, já que o livro apresenta umaexplicação do esquema experimental. Des-ta forma, há uma relação explícita entrea imagem e o texto principal que a des-creve.

Como antes, Newton dispôs um pris-ma ABC atrás de um diafragma F, iso-lando um feixe de luz solar, e produziuassim um espectro na tela DE. Essa telatinha um orifício G e era seguida deoutra tela também com um orifício.Esses dois diafragmas isolavam umfeixe luminoso pertencente a uma parteestreita do espectro que vinha iluminarum segundo prisma abc. Fazendo giraro prisma ABC, o segundo prisma abcrecebia sucessivamente e sob umaincidência crescente os raios pertencen-tes às diferentes partes do espectro, eprojetava sobre uma tela MN situadaatrás dele as “imagens” de diferentescores, ordenadas entre M e N como noespectro inicial [32, p. 27].

Neste trecho, pode-se perceber algu-mas mudanças em alguns termos utili-zados na descrição, em relação a maneiracom que o prórpio Newton apresenta. As“imagens” de diferentes cores, na realida-de, refere-se à luz refratada. Ademais, essadescrição está muito mais sucinta em rela-ção a apresentada na Óptica, emboradescreva muito bem o experimento.

Ao final da seção, Rival salienta quecom as duas experiências, aquela em queNewton constata a forma oblonga do es-pectro e a do experimento crucial, pode-

se concluir que elas apresentam: “por simesmas: ‘os raios de luz que diferem emcor também diferem em grau de refrangi-bilidade’; e ‘a luz do Sol é composta deraios diferentemente refrangíveis’”[32,p. 28].

Todavia, essas duas proposições sãodemonstradas por Newton com umaséries de experimentos, inclusive variantesfundamentais do experimentum crucis.Nenhum experimento per se apresentauma conclusão sem que haja reflexãosobre ele. As observações não são neutras,o modo de interpretar um mesmo resul-tado experimental pode diferir de acordocom os pressupostos teóricos de cada estu-dioso. Isso, de fato, ocorreu com o experi-mentum crucis, por exemplo, com as obje-ções de Hooke e de alguns jesuítas, comoPardies, Linus e Lucas [10]. Por fim, o livroevidencia que o experimento crucial serviupara demonstrar a dispersão da luz branca,e que os dois experimentos descritos per-mitiram evidenciar duas proposições deNewton, que estão descritas no trechoacima.

O livro Isaac Newton o Último Feiti-ceiro: Uma Biografia [31] apresenta longaspáginas biográficas sobre Newton e dis-corre sobre diferentes aspectos de sua vidae seus trabalhos. No capítulo 8, intitulado“Contendas”, o autor aborda o experimen-tum crucis.

Em 24 páginas de contextualizaçãohistórica acerca do assunto, o autorapresenta vários trechos de fonte primáriae três ilustrações. A primeira delas é umdiagrama, ou esquema, do experimentocrucial (Fig. 4). A imagem é apenas ilus-trativa e não apresenta uma relação explí-cita com o texto principal; fica a cargo doleitor relacionar a imagem com o texto.A segunda imagem mostra a luz de umprisma através de uma lente, ilustrativasomente, e a última exibe a produção decores isoladas com a utilização de umdisco dentado.

O experimento crucial é apresentadoe descrito de forma muito simplista,inicialmente:

Usando pouco mais que alguns peda-ços de cartão e dois prismas de vidro, aprimeira destas novas experiências,depois conhecida como experimentumcrucis, foi o primeiro e tardio sinal queo mundo científico teve de seu gêniocomo experimentador, porque era tãobela em sua simplicidade quanto eficazpara encapsular a teoria de Newton[31, p. 163].

Nesse trecho, vê-se claramente que oautor não menciona, assim como tambémnão o faz Rival, que o próprio Newton

denominou um de seus experimentos decrucial. Aliás, o experimento não revela agenialidade newtoniana por ser simples eencapsular a sua teoria, tanto que houveinúmeras discussões acerca dos resultadose explicações por ele apresentados, gerandoinclusive consideráveis controvérsias.Além disso, o autor apresenta o experi-mento como se Newton não tivesse pen-sado nos componentes de sua composição,como se o tivesse desenvolvido com merosmateriais encontrados aleatoriamente emseu ‘laboratório’.

White salienta, especificando melhorem que consistia o experimento crucialnewtoniano, que:

A primeira das novas experiências (oexperimentum crucis) fazia mais umavez a luz do sol passar por um prisma.Partes do espectro produzido passavamentão por um minúsculo orifício numcartão colocado a pouca distância.Assim Newton pôde fazer com queapenas uma das cores do espectro pas-sasse pelo orifício. Essa luz atravessavaentão o orifício de um outro cartão edepois um segundo prisma, para final-mente cair em um cartão branco. New-ton descobriu que se só deixasse a luzde uma das extremidades do espectro(a luz azul) passar pelo sistema, ela se-ria muito mais refratada do que seusasse a luz vermelha [31, p. 164].

Essa descrição está mais detalhada doque o trecho anterior. Há algumas pala-vras que foram introduzidas, possivel-mente a fim de deixar mais claros osmateriais utilizados na experiência origi-nal. Fazendo um contraste com a Óptica,Newton ressalta que usou anteparos;White, por sua vez, os chama de cartões.

O autor expõe alguns variantes desseexperimento, que foram importantíssi-mos para a consolidação de duas das pro-posições sobre luz e cores apresentadas naÓptica. Além disso, enfatiza que ademonstração de como a luz é refratadaia contra a visão dominante na época,como salienta também Rival. Não obstan-

Figura 4: Ilustração do experimentum crucise sua legenda, apresentada por White [31].

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29Física na Escola, v. 15, n. 2, 2017 Análise da ilustração do experimentum crucis de Newton

te, não era a demonstração em si, mas aexplicação de Newton que diferia de con-cepções teóricas daquele período históricoacerca do fenômeno.

O livro Newton: a Órbita da Terra emum Copo d’Água [30], assim como White,discorre sobre os mais diversos estudos etrabalhos de Newton, tanto na óptica, namecânica e na alquimia como seus estu-dos bíblicos, por exempo. No capítuloquatro, “Invenção do Cálculo, Gravitaçaoe Experiências com a Luz”, o autor apre-senta uma subseção denominada “Expe-riências com prismas”.

De modo muito sucinto, Valadaresdescreve a experiência em que Newtonconstata a forma alongada do espectro e,a seguir, diz que ele “concebeu um novoexperimento que demandava um segundoprisma (...) demonstrando assim que a luzbranca era, de fato, composta” [30, p. 64-65]. Esse trecho está se referindo ao experi-mentum crucis. Todavia, o autor emnenhum momento apresenta esse termo.Por vezes, utilizar o termo sem contex-tualizar seu significado pode ser um pro-blema maior, talvez, do que não explicitá-lo, pois nesse caso caberia ao leitor inter-pretá-lo. Prosseguindo, Valadares frisaque:

Com seus experimentos, Newton der-rubou o dogma da luz branca ‘pura’que persistia por mais de dois mil anos.Além disso, ele demonstrou que cadacomponente da luz branca, ao incidirem um prisma, é desviado de um ân-gulo diferente em relação a uma retaperpendicular à superfície do prisma noqual a luz incide (veja figura), fenô-meno conhecido como dispersão [30,p. 65-66].

A ilustração apresentada (Fig. 5) temuma relação explícita com o texto princi-pal, no entanto o autor não a descreve. Aimagem é meramente figurativa e somen-te assume significado com sua legenda.Ela não parece adquirir sentido na sequên-cia do texto, pois mostra diversos experi-mentos sem descrição e/ou explicação.

Com esse tipo de ilustração, fica a car-go do leitor decifrar que uma flecha, porexemplo, indica a incidência de um raiode luz e que o desenho de um triângulosimboliza um prisma. Ou seja, por nãohaver descrição da imagem ao longo dotexto principal, há uma linguagem emcódigos implícita na mesma, que dificultaa compreensão do leitor e relega a imagemà mera função de ilustrar experimentos.

Cabe apontar que Valadares, na capade seu livro, apresenta uma ilustraçãodecorativa (Fig. 6) da refração da luz porum prisma de vidro, notavelmente

fazendo alusão aos estudos newtonianos.De modo geral, nas três obras anali-

sadas verifica-se a tentativa dos autoresde contextualizar os estudos de Newtonsobre luz e cores. Notam-se elementos co-muns apresentados na abordagem histó-rica, que indicam que novas explicaçõessobre o fenômeno das cores estavam sur-gindo com os experimentos newtonianos.No entanto, nenhuma delas contextualizaa imagem em si, tanto do experimentocrucial, que é apresentada por Rival eWhite, quanto das demais ilustraçõespresentes em todas as obras.

Como já foi salientado, nos estudosópticos desenvolvidos no século XVII eXVIII a ilustração exerceu um papel rele-vante no âmbito da comunicação científica.Já nos livros de divulgação científica ana-lisados, o discurso em torno do recursopictórico é modificado. As ilustraçõesapreciadas, quando inseridas na sequênciade cada texto, embora algumas sejamretiradas da própria Óptica, perdem o rigorcientífico e apresentam, nitidamente, faltade aprofundamento de detalhes específicosquanto a sua descrição. Todavia, pode-seperceber nas três obras, muitas vezes, queessas perdas são compensadas pela abran-gência e pela visão global com que o temaé abordado.

Vê-se, como salienta Fahnestock [26],que os textos epidíticos, aqueles da divul-gação científica, priorizam os resultadoscientíficos e não o processo pelo qual oconhecimento foi desenvolvido. Já nosoriginais de Newton, percebe-se um esfor-ço maior em discorrer sobre o processoda construção do conhecimento. EmboraNewton priorize uma reconstrução dosseus estudos, ou seja, enfatize os seusresultados, é nítido o seu envolvimentocom diversos experimentos e hipótesesque o auxiliaram.

Newton e a divulgação científica:implicações para o ensino

Historicamente, a comunicação cientí-fica e a divulgação científica vêm crescente-mente dialogando de modo a consolidaruma intensa relação. Atualmente, acomunicação científica pode ser conside-rada fonte histórica de jornalistas e divul-gadores para o desenvolvimento dos dis-cursos da divulgação científica [13]. Nasobras analisadas, percebe-se claramente ouso de fonte primária.

Não obstante, apesar desse profícuodiálogo, não se pode obliterar que os dis-cursos são evidentemente distintos, deacordo com o objetivo, a audiência, asituação [26]. A divulgação científicabusca, prioritariamente, permitir que aspessoas leigas possam entender, ainda queparcialmente, o mundo em que vivem eas novas ‘descobertas’ científicas; emsíntese, proporcionam a exteriorização daciência [34].

Nesse sentido, o apelo visual é impor-tante. Todavia, a ilustração é um recursoque pode penalizar a precisão das infor-mações [13] ou, ainda, disseminar umaideia equivocada de ciência. Como salien-tado, no século XVII Boyle priorizava ouso de ilustrações desde que fossem se-guidas de descrições, de discursos queapresentassem aspectos circunstanciais. Afunção das imagens era de propiciar àstestemunhas virtuais a reprodução doexperimento; levar o leitor mentalmentepara a cena do ‘laboratório’ [16]. Nosestudos de Newton, veem-se inúmerasimagens, sempre com descrições e comen-tários específicos, como no caso do experi-mento crucial.

Nos livros analisados, a imagem tema função meramente ilustrativa, e mesmoque alguns autores busquem descrevê-las,muitas vezes passa-se a visão de que oexperimento, por si só, apresenta uma‘verdade’ científica. Além disso, nas entre-

Figura 5: Diversos experimentos desen-volvidos por Newton, apresentados porValadares [30].

Figura 6: Uma das ilustrações da capa dolivro Newton: a Órbita da Terra e um Copod’Água.

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Rerefências

[1] A.C. Raicik, Experimentos Exploratórios e Experimentos Cruciais no Âmbito de uma Controvérsia Científica: A Eletricidade Animal como Estudo de Caso.Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, em andamento.

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Notas1Neste artigo os termos ilustração, imagem, figura e desenho são utilizados como sinônimos.2Traduções comentadas do artigo de Newton foram realizadas por Silva e Martins [21] e por Granés [9].

linhas do discurso científico há implicita-mente a ideia da construção do conheci-mento por meio de um empirismo ingê-nuo. Assim, quando levado ao ensino deciências, por exemplo, eles podem contri-buir para a propagação de uma ciênciaunicamente empírica, com observaçõesneutras, e que um dado experimental repre-senta uma corroboração indiscutível. Porisso a necessidade de se tomar os devidoscuidados quando materiais de divulgaçãocientífica, ou uma ilustração não contex-tualizada, por exemplo, são trabalhados emsala de aula. Além disso, embora sereconheça que há distintos objetivos entreas obras originais e os livros de divulgaçãocientífica, o uso de imagens primárias emcontextos diferentes, que por vezes não ascontextualizam, distorcem o própriosentido da natureza da imagem. Na filo-

sofia de Boyle, por exemplo, elas trans-portariam o leitor ao momento de rea-lização do experimento, além de contribuirpara sua replicação. Este último, por certo,não foi o foco das obras analisadas.

Não obstante, essas colocações nãoinvalidam as obras que simplesmeste tra-duzem o senso comum das pessoas emgeral e visam disseminar a ciência paraum público mais leigo. Diversos autorestêm sugerido atividades didáticas quevalorizem o contato dos alunos com dife-rentes tipos de textos, inclusive os dedivulgação científica, que expressam umavariedade de formas de argumentação epontos de vista [35]. Muitos benefícios sãoapontados por esse contato ampliado,dentre eles o acesso a uma maior diversi-dade e divergência de informação, habili-dades de leitura e formas de argumentação

[36], além da refexão sobre a ciência, quepode e deve ser estimulada.

Afinal, Newton não pretendia apenascorroborar ou refutar a teoria vigente, massim buscar entender e explicar uma ano-malia: a forma oblonga da luz solar ao serrefratada por um prisma de vidro. Nessesentido, como há mudança de um discursopara outro, os materiais de divulgaçãocientífica, quando levados ao uso didático,reforçam a importância do papel do pro-fessor como agente contextualizador,reflexivo e crítico. O docente pode propiciaruma maior compreensão do complexoepisódio newtoniano com a luz e cores, afunção das ilustrações para a comunicaçãocientífica e, ainda, seu envolvimentofrutífero com a experimentação, aspectosesses não explorados, devidamente, emmuitos materiais de divulgação científica.