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IntroduçãoA FELICIDADE PELO CIÚME

Budapeste é uma cidade magnífica: reunindo Óbuda, Buda e Peste (1873), dedica o final de Oitocentos às celebrações do milénio da pátria (1896), que, no caso do urbanismo e arqui-tectura, transitam, ainda, para a década inicial de Novecentos. Temos, assim, desde esta data, a primeira linha de metropoli-tano no Continente (sucedendo a Londres), que acompanha uma das mais belas avenidas europeias, Andrássy út — home-nagem ao primeiro-ministro que a pensou em 1870, sendo, desde 2002, Património Mundial da Unesco —, que um inter-valo ideológico designou como Avenida da República Popular da Hungria, cujos dois quilómetros e meio desembocam na Praça dos Heróis; ou, ex libris sobre o Danúbio, o edifício do Parlamento, segundo maior da Europa, concluído em 1904.

A mistura de estilos trazia surpresas diárias, enquanto a sociedade vienense, cortejando a imperatriz Isabel da Áustria (1837-1898), desde 1867 rainha da Hungria, mais conhecida por Sissi, gostava de flanar pelos largos bulevares e na Ilha Margarida, ou discutir política e literatura sob os lustres do Café New York (1894). Tanto fausto distraía-se de uma indig-nação calada de povos quase a precipitar a I Guerra Mundial.

A grande Hungria subia da Transilvânia, antigo foco de lutas independentistas contra o Turco e Habsburgos, donde provi-nha o poeta nacional Petöfi Sándor (1824-1849), admirado por Antero de Quental, à Eslováquia, onde nascia Márai Sándor (1900-1989). A todo esse fulgor de nação ainda não retalhada pelo Tratado de Trianon (1920) assiste o jovem Füst Milán (1888-1967), acompanhando o renascimento literário desde

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MILÁN FÜST

1906 liderado por Ady Endre (1877-1819), com Új Versek (Poemas Novos).

É a melhor geração de poetas: nascidos entre 1883 — Juhász Gyula (1937), Babits Mihály (1941) —, 1885 (Kosztolányi Dezsö, 1936), 1886 (Tóth Árpád, 1928), 1887 (Kassák Lajos, 1967) e 1888 (Füst Milán), eles confirmam a europeização das letras húngaras empreendida por Ady, de vivência parisiense, onde assimila o simbolismo e decadentismo finisseculares, antes de produzir, também, a decisiva revista Nyugat (Ocidente, 1908-1941), que agrupou as correntes literárias e artísticas favorecidas pelas vanguardas do tempo.

Se os nomes de pintores, historiadores, linguistas, matemá-ticos e físicos pouco dirão aos nossos especialistas e leitores, tal-vez conheçam o psicanalista Ferenczi Sándor, os cineastas Korda Sándor e Kertész Mihály, seguramente os compositores Kodály Zoltán e Bartók Béla (cuja ópera O Castelo de Barba-Azul [1911] tem libreto do esteta do cinema Balázs Béla), o crítico marxista e professor de Estética Lukács György… Que revista portuguesa seria capaz de conjugar tal variedade, e qualidade? Mas não havia só Nyugat, tantas as revistas que a acompanhavam; e um Lukács não perdia os cursos de Georg Simmel em Berlim, nem deixará de dialogar com Karl Jaspers, Max Weber e Ernst Bloch. Tal vita-lidade, ignorada entre nós, só dispersamente vai sendo perce-bida, desde artigos meus pós-1982 e uma vintena de traduções que fiz, em que não estou sozinho; mas, dos citados, mal se ouviu Pacsirta (Cotovia; 2006), romance de Kosztolányi, ou ecoou um Kassák também vertido (1991), comparável a Almada Negreiros, e a minha Antologia da Poesia Húngara (2002) é uma simples gota num oceano por desbravar.

Já, então, escrevi que Füst, dramaturgo e poeta de anseios clássicos, com largos haustos de memória bíblica, deveria ficar, pelo menos, como autor de A feleségem története (A História da Minha Mulher; 1957), em que um marinheiro, num monólogo libérrimo subsumindo vozes e línguas, narra as vicissitudes da vida com esposa frívola e infiel. A abertura é poderosa: «Que a minha mulher me engana já eu suspeitava há muito. Mas com este...» É, com laivos de A Sonata a Kreutzer (1889), do seu

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A HISTÓRIA DA MINHA MULHER

admirado Tolstói, o grande romance do ciúme na literatura ocidental. Editado aos quase 70 anos, Füst morre uma década depois, em Julho, meses antes da atribuição do Prémio Nobel, para que estava falado; o futuro Nobel Kertész Ime (2002) inauguraria os seus galardões com o prémio Füst Milán (desde 1975), ex aequo com Esterházy Péter, em 1983...

Na selecção húngara de que me incumbiu o velho Amigo Manuel Hermínio Monteiro para a sua Rosa do Mundo — 2001 / Poemas para o Futuro (Assírio & Alvim, 2001), incluí «A aparição», cujos versos finais de interpelação a Lenine nos transportam para a atmosfera do enorme romance aqui apresentado: «Oh, Vladimir Ilitch, pode-se ajudar o ser humano? Em vão eu te convoco — / É com a Primavera mais profunda a sombra e mais profunda a noite / e não há resposta nos vales deste mundo. / Em vão aqui me sento e espero há muito aparição, aqui, onde nada mexe, / só tua imagem me acena de quando em vez e teus olhos tristes piscam, / e tua gigantesca obra.»

A íntima interrogação, permanente, nos ‘apontamentos do comandante Störr’ é a de um sujeito antigo, em seus valores clássicos regulares e nórdicos (é holandês), qual neo-renas-cença da arquitectura mais visível na Budapeste natal, face à movência de jovem esposa francesa, irregular como os novos tempos, eclécticos e arte nova, já espiralados em vertigem «Fugidia, inapreensível», modelando a vida humana: «Pode alguém ter espírito ou humor e em tudo buscar o dever e a lógica, numa palavra, querer perceber o mundo, esta textura incompreensível e vertiginosa, por meio da razão?»

São incompreensões aos pares que entrechocam em alma--barco à deriva: «esse incompreensível e estranho mundo de onde provenho», diz o narrador, cujo pai «não gostava muito de devaneios», torna esta escrita ‘devaneante’. Esse adornar da vida — enfeitá-la, como se executa a mulher, e perigosamente inclinar-se, como navio — cumpre-se num discurso de extre-mos e contrastes: «E que, uns dias antes, eu ainda fosse tão feliz com ela... Esse facto quedava submerso por um nevoeiro incompreensível — sonho indistinto em que já nem se acredita.

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Aliás, para quê a felicidade? Talvez seja essa, em nós, a maior obsessão.» Pela consecução de um destino romanesco, e já sem falar na realização autoral, não concluiremos que, pela via do ciúme, se atingiu a felicidade? Balanço, aos 53 anos: «Mas fir-memente acredito — e ninguém tente convencer-me do con-trário — que, num belo dia de sol, ela vai reaparecer algures, numa rua deserta, numa esquina, e que, não sendo já nova, há-de correr nos seus passos miúdos e queridos, no seu passo familiar. E que o sol atravessará, brilhando, a sua capa preta.»

Antes, porém, no meio de um denso nevoeiro de ciúme, sem solução, com empregos de recurso, o já ex-comandante opta pelo abandono; preso, todavia, a fiapos de realidade que o texto dissemina, vem desaguar num sonho-aparição da mulher, cuja morte confirmada o liberta. No poema «Halottak éneke» «Canto dos mortos», pedia que uma «grande aparição» dele se apoderasse, desejoso de saber o seu fim — de vida ou de artista.

Se uma lírica de opostos (velhice-juventude, etc.) corro-bora esta empresa, não menos interessante é o seu verso livre, branco, longo, de ligações à distância, numa poesia nacional de tradição rimada e bem medida. Distância, também, em relação a temas pátrios, seja no teatro (estreou-se em 1915, um ano após o primeiro volume de versos), no romance de estreia Ádvent (Advento; 1920), encenando um tribunal inglês, ou em contos e novelas. Os principais cenários, agora, são Paris e Londres, e só por milagre deparamos com parcas leituras abandonadas ao ar do tempo (caso do Ulisses joyceano, «uma confusão das grandes») ou uma referência à francesa C. G. T. — Confédération Générale du Travail, que nos remetem para um quadro de entre-guerras mundiais.

Avanços e recuos na linha da história, lembretes de vida e avisos narrativos conformam prosa algo caprichosa de quem (a exemplo do autor) vive retirado, imune a juízos alheios, até impune de um homicídio. Essa irrealidade, não raro impres-sionista em descrições atmosféricas, assenta na acumulação de pormenores e repetição de momentos. O à-vontade, senão desalinho, das notas dá à crónica vestes arcaicas (a exemplo dos valores antigos), como quem se esforça por, na interposta

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A HISTÓRIA DA MINHA MULHER

e limiar conjunção copulativa e, dar um sentido, e ligar-se, à vida. Neste ponto, e noutros lugares-comuns de uma redacção solta, a tradução segue a letra e o espírito do original, segundo a edição de Budapeste, Szépirodalmi Könyvkiadó, 1970.

O lançamento internacional de Füst dá-se com a tradução francesa deste romance (Paris, Gallimard, 1958). Após o pre-fácio de Albert Gyergyai, «Mon Autobiographie / par Milán Füst» (retomada na edição de Budapeste, 1970) reduz-se a uma página e meia — na verdade, a quatro linhas de professor e escritor, «após mil e uma tribulações», sendo os últimos dez anos de docente universitário. Laborioso, com a vida repetida-mente em perigo, o autor sente-se cansado.

Prefácio mais consistente, «A Novel of Jealousy», é o de George Konrád na tardia edição americana (New York, PAJ Publications, 1987), quando Konrád György era o dissidente político mais em vista no Ocidente. Diz este que Füst, pobre criança judia a viver com a mãe, começou a escrever na mesa da cozinha, antes de ace-der aos cafés literários, estudar Direito, dar aulas no secundário e publicar a expensas suas. O casamento com uma aluna e admira-dora salvou-o, e trouxe-lhe antiguidades, pinturas nas paredes de casa, donde quase não saía, flaubertianamente votado a escrever, entre 1935 e 1942, este romance. Não é só a obsessão da felicidade; é, também, a de uma escrita interminável, repleta de subtilezas, sob um disfarce nonchalant. Insólito é que uma obra destas venha à luz nos meses mais dolorosos do pós-1956 revolucionário.

A edição portuguesa começou a ser preparada em 1989 para Livros Cotovia, que a deixaram no limbo; no entre-tempo, generosa oferta de André Jorge, fui corrigindo oza-lides, revendo o documento que passara da dactilografia ao digital. Subitamente, um inesperado salto da Cavalo de Ferro acordou-me para nova revisão, 60 anos após a prínceps hún-gara: alterei ritmos, deliciei-me com a franqueza auto-irónica do meu comandante, já solidário com os seus descaminhos e precipícios de alma. É viagem longa, salpicada de prazer.

Ernesto Rodrigues

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Te vocamus, quod sic plasmavisti bominemet bominem itidem vocamus, qui tamen debet praestare seipsum… percipe banc

altercationem in corde nostro diabolicam, Domine! Et oculos sanctos Tuos in inopiam nostram conjicere non gravator, sed conspice

portentum clam nobis abditum, in extis… accedit, quod allectationes nutriunt ipsum velut alece. Et ne nos inducas in tentationem,

supplicamus ad vesperum, peccatum tamen ostium pulsat intratque domum et intrat prorsus ad mensam. Amove ergo sartaginem

igneam, qua caro siccatur, nam animal in medebile crebro.

Nós Te invocamos, porque assim criaste o homem, e o homem também invocamos, que todavia deve ser responsável por si mesmo…

Compreende, pois, Senhor, esta altercação diabólica no nosso coração. E Teus sagrados olhos não desvies da nossa miséria, mas olha

para o monstro escondido no mais fundo de nós, que as tentações, ainda, alimentam, como se molho de peixe fosse. E não nos deixes

cair em tentação, Te rogamos ao fim da tarde; porém, o pecado bate à porta e entra em casa e para a mesa direito avança.

Afasta, logo, a sertã ardente que nos seca a carne, pois o animal não raro em mim é vulnerável.

(De uma oração medieval)

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PRIMEIRA PARTE

Que a minha mulher me engana já eu suspeitava há muito. Mas com este... Sou homem de seis pés e uma polegada, e peso duzentas e dez libras, um verdadeiro gigante, pois; como se costuma dizer, cuspo sobre um sujeito e ele cai redondo.

Assim pensava fazer com o senhor Dedin. Mas não devo começar por aqui. Porque, enfim, ainda hoje sou pura emo-ção, quando penso nisso.

Na verdade, fiz mal em casar, eu sei. Porque, até aí, pouco me interessavam as mulheres, era frio por natureza. Se regresso aos primeiros anos da minha juventude, história de amor digna de menção quase não tenho, ou só esta: devia andar pelos treze anos, encontrava-me num parque da cidade holandesa de Sneek, perto de Friesland, onde então vivíamos. Estava uma preceptora sentada no parque com uma criança a quem gritava:

— Veux-tu obéir? Veux-tu obéir?Gostei muito. Ela disse-lhe ainda:— Vite, vite, dépêche-toi donc.Também adorei. É bem provável que tenha então decidido

casar com uma francesa. Numa palavra, ouvia com imenso prazer essa doce melodia; depois, como por inspiração divina, fui até à orla do parque, tirei uma folha do meu bloco e escrevi em holandês (porque escrever em francês ainda não sabia, nem falar bem, apenas percebia o que diziam):

— Greppel, greppel — eis as duas palavras que escrevi. Queria dizer-lhe para irmos um bocado até à vala. Porque não longe dali havia uma grande vala relvada. E com esta folha de papel

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MILÁN FÜST

dirigi-me à preceptora; e como na minha infância, quando me mandavam ir comprar alguma coisa à mercearia, doce-mente parei à sua frente, olhando-a com meiguice. Mostrei-lhe o papel.

A preceptora pensou que eu endoidecera.Percebia a palavra, mas não a ideia. É verdade, eu era um

adolescente enorme, podiam até pensar que tinha dezoito anos, mas as calças e meias eram curtas, além de que vestia uma linda camisa azul de marujo cujo nó a minha mãe fizera pela manhã: ainda por cima, tinha a cara vermelha. E, é ver-dade, as orelhas também eram vermelhas e bem grandes, mas brancos os dentes, os olhos corajosos. Era um rapaz de olhar sincero. E não era depravado, nada disso. Como arranjei cora-gem para escrever aquilo nem hoje sei.

A preceptora, claro, admirava-me, quase me comia com os olhos.

— Qu’est-ce que tu veux? — pergunta-me.E eu não me sentia envergonhado. Estava ali, meigo; depois,

fui-me embora a correr. E assim fiz no dia seguinte e ainda no terceiro.

A preceptora, só de ver-me ao longe, quase se partia a rir. Deitava as mãos aos quadris, em alto riso. A criança que estava com ela também ria. Mas eu ali estava, olhos fixos, e não a largava.

— Mon pauvre garçon — lamentava ela, rindo sempre, quente e vermelha. — Eh bien, tu ne sais pas ce qu’il te faut — dizia, com pena. Enfim, devia ser mulher com muita experiên-cia. — Pobre rapaz — repetia —, não sabes o que tens? — E mergulhava, espantada, nos meus olhos, como o sol ardente; e beliscava-me a cara. Eu fugia mais uma vez.

Mostrou-se, enfim, com juízo.— Porque não? — perguntou-se, provavelmente. Daqui, ao

menos, não vinha mexeriquice, nem qualquer mal. Planeou, portanto, o seguinte:

A ideia da vala agradava-lhe. Mas havia uma pequena ponte, com arbustos, umas coisas, e soube que o guarda só ia lá duas vezes ao dia — às cinco da manhã e depois das sete da

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A HISTÓRIA DA MINHA MULHER

tarde —, aliás, no maior calor, parte da zona estava deserta, vinha ter comigo às proximidades da ponte, manhã cedo, com algum cesto ou recipiente de leite, tão desgrenhada e enso-nada que quase me enlouquecia. Note-se que eu era jovem, e nela rescendia ainda o calor dos lençóis.

Em casa, para me levantar cedo, dava uma qualquer des-culpa — de resto, evitava a minha mãe e deambulava todo o dia ao sol, como num sonho. Isto durou todo o Verão. Fiquei farto de mulheres.

Aconteceu que, um ano depois, o meu único tio, o meu caríssimo e depravado tio, que visitei, mandou fazer umas escadas com ganchos para eu poder subir do meu quarto à casa vizinha, um andar acima, onde todas as noites tomava banho formosa senhora. Era também Verão, e as janelas da casa, devido ao grande calor, ficavam abertas. E eu, um dia, flutuando entre céu e terra, subi ao parapeito e, não fosse assustar-se, assim sussurrei:

— Está aqui um menino.Qual assustar-se; fez um ar sério, mais nada, no banho. Já

me conhecia de vista. Silenciosa, juntou um sinal, saí do para-peito e ela abraçou-me, olhos enevoados.

Foram as duas únicas aventuras com mulheres — bastante desajeitadas, reconheço — que posso referir na juventude. De outras nem vale a pena falar. Ligava-lhes pouco. Ria-me de quantos ofegavam atrás delas... E delas pensava imensas coisas feias, como, por exemplo, a altivez com que se sentavam nos restaurantes, cabeça levantada, quando eu lhes conhecia histó-rias... E por aí fora. Uma relação imaginava-a bastante simples. (E, como eu, muitos outros jovens.) Com elas, a coisa é simples — pensava comigo.

Em contrapartida, comecei a interessar-me cada vez mais pela comida — sobretudo quando, no decurso das minhas via-gens, se abriam novos mundos à minha frente. Um conhecido meu, o coronel Piet Mengs, arriscou dizer certa vez na minha presença que não há maior porco do que o homem, porque prova de tudo... Bem, tenho exactamente a opinião contrária.

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Porque foi desta maneira que descobri todos os sabores e dádi-vas da terra; por outro lado, quem quer conhecer a alma dos povos tem, antes de mais, que comer dos seus pratos — disso estou convencido.

E assim fiz. Não há carneiro assado seco, por mais tem-perado e picante, qual areia do Sara, que eu não coma. Sem me esquecer de quando a gente dava a volta aos bazares, com os fornos das cozinhas populares abertos, onde crepitavam assados de todo o tipo, ou na Pérsia, entre pastéis inflando nos pasteleiros — os pastéis dos maometanos são uma ver-dadeira delícia. Preparam-nos com rara perfeição, um gosto, uma limpeza cintilante, pondo avental, imaculado, sobre pla-cas de bronze ardentes — e uma pessoa impregna-se de tal forma daquele cheiro que durante largos meses não é capaz de esquecê-lo. Eu, claro, podia estar lá o dia inteiro, se não tinha mais nada que fazer. Era o meu repouso. Porque estava longe de imaginar coisa mais bonita do que este formigar, estas cores estranhas e o movimento, e a língua e o sorriso deles, que não compreendia. E se, ainda, tudo me confundia, mandava trazer alguns dos seus pratos e continuava a sonhar.

Os meus camaradas chamavam-me monstro, por isso mesmo, porque eu comia de tudo; mas também por outras razões. Porque não havia trabalho de que eu não me encarre-gasse. Aceitava tudo.

Porque para mim não era nada trabalhar como um escravo três ou quatro meses de enfiada. Isso, os senhores proprietá-rios dos navios sabiam-no bem.

— Búfalo! — dizia-me um camarada, um rapaz chamado Ebertsma-Leiningen; ria-me bastante de sua excelência, sendo que eu tinha emprego e ele nunca.

— Seja búfalo — pensava eu —, é uma espécie muito útil.E, em compensação, eu sabia algo que o búfalo ignora:

estar sem comer e sem dormir, se for preciso. Em suma, para mim nada era excessivo — no tocante ao trabalho ou às priva-ções; por outro lado, nada era suficiente quando se tratava de, finalmente, também eu me sentir bem. E se limites havia que pudesse ultrapassar neste domínio, também os vencia, fosse

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no deboche ou no esforço insano. Mas onde já vai essa época heróica! Como se nem fora eu, assim ouço esta história. Com alguma tristeza, não nego.

Acerca da minha alma pensava:— Um doloroso suplemento. — E era tudo.Com o que tornei-me comandante de navio muito cedo.

Não me tinham nascido os caninos e já me confiavam carre-gamentos que valiam fortunas, variadíssimas coisas. No meio tempo, eu próprio traficava, e por aí fora. Também podemos. Comecei, pois, a acumular, e cada vez mais. Ainda não che-gara aos trinta e já tinha uma fortuna considerável.

Deu-se, então, um pequeno acidente, não, não foi pequeno, foi grande. Tocou-me o destino dos marinheiros: fiquei mal do estômago. Sentia como se tivesse uma armadura à volta da bar-riga, não podia comer. Aconteceu assim:

Estávamos ancorados em Nápoles e fazia montes de com-pras numa excelente loja de produtos de qualidade. Gosto muito de fazer compras em Itália, porque os comerciantes são gente bem-disposta e as lojas repletas. Também nesta havia toda a variedade de produtos: um presunto gostoso e mui-tas aves, abrindo pela cotovia, melro e codorniz, até aos patos enormes e, em especial, alguns assados, de um lindo aloirado, outros crus, de um amarelo ainda agradável: com a cabeça enfiada nas asas, era como se tivessem sido criados para dor-mir assim gordos em cima do mármore. Poderia apreciá-los durante horas, tal como às espécies de folares, miolo de noz, cachos de uvas, maçãs e castanhas amontoados em pirâmide, incluindo as garrafas de vinho doce, que, não se sabe porquê, nos lembram velhas senhoras gaiteiras.

Escolhi, por conseguinte, aqui e ali, tudo em grande, fiz estalar as notas e ouvi depois o roçagar dos pequenos embru-lhos. Gosto extraordinariamente disto. Quando já vou na rua e desatam conversas ao meu lado. Gosto disso. Mas então pen-sava noutra coisa. Porquê carregar eu os embrulhos? Podiam enviá-los para casa. Em todo o caso, tenho que fazer na cidade e, entretanto, posso convidar algumas pessoas para o meu navio. Assim aconteceu.

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— Ah, ah, Jacopo, carissimo amico mio! — e não só, que me gri-tavam os italianos, em grande alarido, quando enfiava o nariz nos seus escritórios, e abriam os braços... Os italianos gostam de muito barulho à sua volta — mas também sabiam que, se eu convido alguém para jantar, é que não é mau negócio.

Mas no caminho tive uma ideia.Oh, vou comer qualquer coisa antes de jantar — pensei

comigo —, e, já que estava na zona do Posilippo, caminhei um pouco à sorte. Logo à beira da água havia uma tasquinha agra-dável, no molhe, onde àquela hora não ia ninguém, silêncio em redor, e tudo isso era muito convidativo. E pois lá lanchei com uns jovens italianos. Comiam uma espécie de ostras bara-tas com pão branco e bebiam vinho: depressa me juntei a eles. E tivemos uma conversa muito agradável. As conchas faziam gluglu nos baldes cheios de água, quando as lavávamos, e tudo era muito limpo à nossa volta — o molhe, onde nos sentáva-mos, o mar e a vida —, e tão afáveis os corações. Em breve, frente ao Posilippo, o sol começou a ficar vermelho.

E foi bom, oh, que lindo — pensei comigo. Espreguicei-me por largo. Amigo, que sempre fui, de uma pequena dissimu-lação, pensei: Eu agora não sou mais eu, mas um lânguido viajante do mundo que vai dar tréguas ao coração, e coisas do género. Paguei as bebidas dos jovens, que se ergueram em minha honra. (Os italianos gostam destas palhaçadas.)

Ora, eu suspeito que foram estas ostras a causar a minha perdição. E ainda hoje considero este lanche como a pré-his-tória de todos os meus males. Porque naquela noite já nada me apeteceu e em vão ali ostentava um magnífico jantar. Das muitas porcarias do mar, havia alguma coisa de frio no meu estômago.

Já nem os preparativos me deram contentamento, que, no entanto, em outras ocasiões, eram o melhor da minha alegria. Primeiro, quis ver se tudo chegara em ordem: não teriam tro-cado nada? Eu costumava comprar azeite de superior quali-dade, semelhante à luz amarela da lâmpada. Este assim era — pu-lo contra a luz, límpido, perfeito, e só de o confirmar já regressava a alegria. Fiquei um pouco na cozinha para ver

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A HISTÓRIA DA MINHA MULHER

como se coziam os caracóis, porque é preciso tomar gosto à alegria — isso já eu aprendi. Vivia sensatamente. Observava o rapaz a limpar os pratos no corredor, como virava o pano da cozinha dentro dos copos e punha estes contra a luz da lâm-pada para confirmar se brilhavam a seu gosto. Às vezes, uma grande serenidade habita neste ritmo, e deste ritmo sereno, deste brilho sereno, eu gosto muito. E, pacificado, preparo-me para o jantar. Como agora, mas em vão. Não retirava nenhum prazer dele, estava estragado por dentro.

E debalde observei também os meus amigos. Barulhentos, consumiam tudo o que lhes ia à mão e eu quase nada tocava. Cantaram muito, comigo silencioso. Nesses tempos felizes ainda comprávamos aos meios quilos de pesado tabaco do Levante — em certos portos, os mercadores tagarelas inva-diam os navios —, e que lindo, tabaco de fio longo e tão dou-rado como os cabelos das virgens, tirei um grande molho e espalhei-o à frente deles. E embora eu próprio tenha provado cigarro atrás de cigarro, tudo inútil. Não me apetecia. Mesmo a vida me parecia inútil. Até ali nunca estivera doente, nunca tivera uma gastrite, mas agora sentia -me mal. Pressenti o meu fim. Estava desesperado.

O gramofone tocava.— Niente, niente — disse-lhes —, sono un poco ammalato cosí —

e fiz como se estivesse bêbedo daqueles vinhos cor de resina.Mas eles divertiam-se bem sem mim.— Vieni, vieni — gritavam ao rapaz —, come tu em vez do

patrão. — E enchiam-lhe a boca de iguarias, embora fosse proibido nos meus navios comer durante o serviço. Mas nem isso me interessava, doente que estava.

Na minha fúria, deitei ao mar os restos que deixaram.

E foi esta desgraça que levou ao meu casamento, estou con-vencido. Em parte, porque neste banquete fiquei a detestar um pouco mais as pessoas. Fartaram-se de comer e não me liga-ram nenhuma.

Acontece que a gente, apesar de toda a experiência, também se zanga, de repente, quando passam ao lado da

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desgraça como um carro destravado, sem olharem para trás. Dói. E alguns sentem-se mais com as ofensas que respeitam à mesa — e não só as crianças, nem pensar, é coisa séria, embora os presunçosos votem isso ao desprezo. Eu, por exemplo, tinha um óptimo colega, um comandante chamado Gerard Bist, que soçobrava autenticamente na melancolia se lhe estragavam o almoço.

— O homem vive então para quê? — explicava-me. — Estamos fechados meses e meses na porcaria de um navio, como na prisão, e nem temos o prazer de saborear um prato decente?

Ele tinha razão. E mais agora, que eu estava especialmente ofendido, pensem só. Porque se nem agora posso, como será no futuro? Eu, que sempre fui imoderado. E sou obrigado a ter mil cuidados, a fazer dieta, visitando hospitais e curandeiras... Até experimentei a acupunctura, no Japão, juro, e a cura pelos números. Resumindo, tentei tudo; em vão.

Foi quando encontrei um suposto psicanalista. E posso agora agradecer-lhe a minha maior desgraça.

— As mulheres — dizia esse psicanalista —, as mulheres. — E piscava os olhos, significativamente. Pois bem, as mulheres. Vejamos. Mas nem isso me apetecia; foi nessa altura que conheci a minha futura mulher.

Era uma jovem francesa, muito coquete, muito sensual, ria muito, sobretudo de mim, e, neste pormenor, era como se esti-vessem a fazer-lhe cócegas. Chamava-me tio Douc-Douc, Dódó, Cric-Croc e Croc-Croc, ora, devido ao meu riso, que, dizia ela, era uma verdadeira explosão, e tio urso, dizendo quão divertido era ver como as duas pontas do guardanapo se afastavam atrás das minhas orelhas durante o jantar. E, quais porquinhos, rebo-lava-se de alegria. Eu, é verdade, ato o guardanapo atrás, nem sei bem porquê. Velho hábito.

— Duas orelhas enormes — gritava — e ainda estas duas pontas; mas que lindo! — E batia as mãozinhas.

— Que desleixado, que desleixado! — gritava ainda, ver-tendo-se à janela, quando me via subir as escadas atrás da igreja (ela tinha a casa no monte atrás da igreja), com, em mim,

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a vaga sensação de que só Deus poderia dizer para quantos cavalheiros ela já se debruçara, pequena rosa francesa per- fumada.

Era pecadora, pecadora, como logo senti. Mas não fazia mal nenhum, que eu dava-me com ela excelentemente. Pedi-lhe para dizer esta frase:

— Veux-tu obéir? Veux-tu obéir?Que ela dizia com assiduidade. A partir daí, passou a rece-

ber-me com essa frase. Em suma: era inteligente, muito inte-ligente. Mas também habilidosa, porque aprendeu com uma rapidez surpreendente como tratar de mim. Não me contra-dizia, excelente, e eu podia fazer o que me desse na gana. E, repito, de tudo se podia concluir uma certa experiência nela; só que eu não estava para aí voltado. Recusava toda a argumentação.

— Se gosto dela, caso, para que hei-de pensar tanto? — pensava eu. Marinheiro não se preocupa, nem de longe nem de perto, como espécime da terra, essa é que é essa. Digo eu, porque vi bem quanto meditam longamente antes de se deci-direm. Mas nós?

Eu cá estou sempre em perigo de vida — sobretudo naquela altura, e não só nos mares, pois tinha negócios com cavalhei-ros do Levante bastante perigosos... Para quê preocupar-me com ninharias, como saber se a minha mulher vai continuar a amar-me, se guarda fidelidade quando não estou em casa? Aliás, as mulheres não são fiéis, e mais as dos comandantes, faz parte do jogo.

Comprei-lhe, pois, uma dúzia de pulseiras e colares e casei-me com ela. Que nós, os marinheiros, também não gos-tamos de arrastar a asa por muito tempo. Tinha um colega que fazia assim a corte:

— Andiamo a letto — dizia, logo depois do primeiro passeio nocturno. E havia dama que, justamente, se impressionava com isso. Se não no imediato, quinze dias depois. Não vamos agora ficar escandalizados, a vida é assim. Claro, não é bonito da minha parte evocá-lo, e logo aqui, mas para quê andar com coisas? Eu, então, era assim. O casamento, para mim, não era

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maior sacramento que uma cenoura, digamos. Sacramentos larguei-os há muito — ou, pelo menos, pensava que sim. (E que não era exactamente como digo prova-se nesta minha biografia.)

Em resumo, casei. E creio que teve logo um caso breve, pouco depois do nosso casamento — ou isso concluí por cer-tos sinais. Não quero dizer que esta pressa dela me tenha agra-dado muito, mas conformei-me. E disse para com os meus botões:

— É pena ser tão mesquinho. Afinal, não estou habituado a mulheres só minhas... E vou começar agora a andar atrás dela, a vigiá-la, só para ter provas? Que diabo me picou? Se não é agora, é noutra altura. E como não? Estou fora durante meses, vá lá, seis meses — posso exigir o sobre-humano de um ser humano? Elanguescer anos sozinha? E se não faz mais nada senão elanguescer já não vai poder dizer-me de modo tão cati-vante: — Veux-tu obéir? — E perco todo o prazer.

E, repito, embora não tenha feito grande caso, não deixo de anotar o que sei sobre essa primeira aventura; não porque seja especialmente interessante, mas porque tudo o que acon-tece pela primeira vez tem mais importância, julgo eu.

Mas também o faço por outra razão. Para dar uma ideia das condições e circunstâncias em que a minha mulher vivia antes; para fazer perceber que eu teria sido um rematado louco se, depois disso, ainda me preocupasse com a fidelidade da minha mulher.

Gente sem conto de raças variegadas vivia então na ilha de Minorca: refugiados italianos, emigrantes eslavos e um grupo de suecos a quem a vida não correu bem na América do Sul e que, já condenados à morte duas vezes, fugiram e atravessa-ram o continente, do Atlântico ao Pacífico, em cima de búfa-los; e bolcheviques alemães, rebeldes polacos e gente suspeita de espionagem, sei bem em quem estou a pensar, estes eram gente bastante atrasada, mas safavam-se assim-assim, nin-guém sabe como. Um deles, por exemplo, sabia representar, entre grandes choraminguices... e assim por diante. A minha mulher vivia no meio destes. E eu nem levantava objecções.

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Pelo menos, há-de aprender o que é a vida, e não só à super-fície, no seu mais profundo, na sua globalidade. Poderia, ao menos, ter uma ideia de quanto eu via nos portos e demais sítios... Que um homem como eu, no fundo, é como se tivesse vivido, em síntese, a história da Humanidade.

E que história é essa? — reflectia uma vez, a propósito. — Se alguém, depois do arrefecimento da Terra, relesse aquela, iria pensar que aqui só viveram vigaristas, assassinos, sádicos e receptadores, ou seja, monstros; que aqui não havia outra forma de sobreviver senão pelo assassínio...

A nossa profissão é tal que, às vezes, não se lobriga um homem honesto se calhar durante anos. E, pois, aqui, a minha mulher também adquiriu alguma experiência. Eu não receava que um dia destes ela se tornasse afectada, a melindrar-se que ai meu Deus, assim e assado, não me exprimi com o devido requinte, ou coisas assim, o que sempre me faz subir aos arames.

Não. Neste aspecto, a minha mulher parecia formar um lindo par comigo.

Mas deixem-me continuar lá onde interrompi a descri-ção das relações entre esta aristocracia na ilha de Minorca. O meu senhorio, Don Juan, por exemplo, descreveu-me da seguinte maneira a composição de um pequeno grupo — logo, quem diria, aquele donde saiu a minha mulher. Vou ten-tar reproduzir.

— Tenho de começar pela primeira mulher, agora divor-ciada do escritor berlinense Koch. Esta mulher vivia muito bem com um italiano, Samuele Annibale Ridolfi, que tinha um automóvel. O senhor Ridolfi era, aliás, um homem afável, de bonitos dentes, que eu conhecia. Este é o primeiro casal: a senhora Koch e Ridolfi, e viviam à beira-mar.

— Na noite de São Silvestre, caiu-lhes em casa um casal escandinavo (norueguês? sueco?), que, embora conhecendo-se desde a infância, e tendo casado por amor, não se dava bem após um ano de relação. E esta mulher, de visita a casa da senhora Koch, teve na noite de São Silvestre uma apendicite e tiveram que a levar imediatamente ao hospital; e, depois

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que saiu, voltou para casa da sua amiga, a fim de descansar à beira-mar... — Casa de quem? Da senhora Koch número um, amante de Ridolfi, compreende, meu caro senhor? — interpe-lava-me o senhorio, velho indiscreto.

— Como diabo não havia de compreender? Mas porque chama número um à senhora Koch?

— Já vai ver, meu caro senhor. E mais: vamos pegar neste bocadinho de papel, agora desenho-lhe três pequenas perso-nagens ligadas pelo amor, não vamos enganar-nos na ordem. Olhe bem. Mais ainda, uma quarta, só agora me lembro, e nela até molho ao de leve o lápis, representa o pequeno Uriel, rapazinho muito hábil e esperto, gosto dele...

— Mas que Uriel? E porquê molhar o pobre?— Já vai ver, meu caro senhor — repetia com o seu infin-

dável sorriso. — Porque agora é que vem a intriga. Sendo esta Gerda do Pólo Norte uma criatura muito rosada, durante a convalescença pôs-se como tomate verde; muito natural, pois, que tenha conquistado o coração do Annibale de sor-riso afável — o feroz italiano apaixonou-se por ela. A primeira mulher, divorciada do escritor berlinense Koch, tinha, por-tanto, que deixar a casa — olhe bem, vou desenhar. E partiu de onde? Repito ainda, da beira do mar. E, mais, não foi sozi-nha — peço-lhe, não se impaciente —, porque alguém estava com ela... Ora, vejo que adivinhou, claro que era o pequeno Uriel, meu caro senhor...

— E agora molho de novo um tudo nada o meu lápis — continuou, malicioso. — Porque, finalmente, tenho que dizer quem é este Uriel, não é verdade? Pois este Koch de ramifi-cada genealogia casou segunda vez — que podemos nós fazer? E daqui descendia este rapaz desembaraçado. E que depois tam-bém se tenha divorciado desta mulher, o mundo não tem culpa, como se compreenderá. Era um homem assim. E quem era este homem? Koch. Por outro lado, o filho não vivia com a mãe, pelo que também não podemos pedir contas a ninguém; porque não, não, pronto. Vivia muito bem em casa da senhora Koch número um, logo, teve que ir-se também embora — e de onde, meu caro senhor? Sublinho uma vez mais, da beira do mar.

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— Estou a contar como deve ser — prosseguiu, satisfeito, puxando uma fumaça do cigarro —, como deve ser. Mostre-me alguém nesta maldita ilha — en esta maldita isla — capaz de contar tão bem. A mãe do pequeno Uriel é muito bonita, uma pequena judia elegante, além de que tem um pescoço como as éguas da Andaluzia, senhor! Chama-se Hannah e, parece, não queria muito esta criança, pois envolveu-se com alguém… Vivia na ilha de Foradade com o amante, um jovem aviador alemão. E, pelos vistos, também viviam bem. O homem tinha um hidroavião e levantava amiúde do mar. Mas como o senhor Koch tenha escrito a Ridolfi, queixando-se de que a vida lhe corria muito mal em Berlim, esta senhora Koch número um — e agora preste atenção ao desenho — escreveu à senhora Koch número dois — olhe para aqui, também a desenho —, isto é, à mãe da criança, isto é, à amante actual do aviador, à encantadora Hannah, para a ilha de Foradade, propondo-lhe comprarem ali, por todos, uma casa e mandarem vir também o senhor Koch, escritor, e viverem juntos... Então, não é sim-ples? — gargalhava, alegre. Mais: enfiou, mesmo, o pequeno barrete vermelho, em sinal de contentamento.

— Porque agora vem o balanço final, o desenlace; de súbito, envergonham-se e desvanecem-se as complicações. Pois que acha? Tudo se congraçou, como tenho dito. Sem tirar nem pôr, total harmonia, toda armonia, meu caro senhor. Quer dizer que vivem neste apartamento, agora, os cinco, a saber: as duas senhoras Koch, o amante da senhora Koch número dois, isto é, de Hannah, isto é, o jovem aviador, a criança e o senhor Koch, de Berlim. E vivem felizes, nesta salada.

Era a introdução. Porque só aqui é que entra a minha futura mulher.

Também se falava muito do caso. De acordo com o velhote, mas igualmente segundo outros nesta ilha tecida de mexeri-cos, ela, nessa altura, ainda não ligava ao afável senhor Ridolfi, já que, provavelmente, considerava uma única pessoa verdadei-ramente digna da sua simpatia e era o jovem aviador, Eugén Hornmann de sua graça. Eu, pelo menos, assim fui informado; que, mal o casal ali chegou, Hannah e esse Hornmann, a minha

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futura mulher perdeu completamente as estribeiras, tanto lhe agradava o aviador. Como não? Uma jovem professora de lín-guas, para mais, entre estranhos. É natural apreciar umas tro-cas de bom francês com alguém. Que este Eugén Hornmann discorria excelentemente em várias línguas. Claro, correu a notícia de que o seu conhecimento de línguas, designadamente o bom francês, com a arte da pilotagem, serviram fins delica-dos e duvidosos, quem sabe se a espionagem ou, no mínimo, a Alemanha; e tendo este boato, acaso, magoado a minha futura mulher, nem por isso excluía este homem dos seus favo-res, no que lhe dou inteira razão. Pois não! Nada de ser pre-sumido, ou não se vive nesta terra. E, mormente, sobrepondo razões secundárias às mais importantes. Eu, por exemplo, quando ainda tinha saúde, comia uma torrada com manteiga que caísse ao chão ali à frente dos meus olhos. Imaginemos só: está-se a bordo, o sol queima, traz o cozinheiro a surpresa de um bolo delicioso ao pequeno-almoço e já me cresce água na boca quando, pumba, cai à frente do meu nariz... Levantava-o, sem mais, do chão e papava-o. Porquê? Porque se mandasse tra-zer outro já não me apetecia. Porque eu queria era aquela tor-rada, que é, pois, insubstituível. Que assim é sei-o de múltiplas experiências, digam o que disserem as sumidades. A gente, no máximo, pode atirá-la ao mar com um pontapé.

Assim eu via as coisas, então. Só mais tarde mudei de opinião, como à frente se dirá. (Que disso trata, justamente, esta minha biografia.) Continuando. Ficámos em que a minha futura mulher não se incomodava muito e que, apesar dos rumores, amava esse Hornmann — fazia ela muito bem. Que esse homem amasse a pátria, a Alemanha, não podia chocar a minha futura mulher, porque também ela amava a sua pátria, a França. E que esse Hornmann, no fundo, pertencesse a outra pessoa, a outra mulher, santo Deus, nem com isso se preocupava. Segundo a narração do meu senhorio, o malicioso Don Juan, costumavam eles demandar, por causa dos ciúmes de Hannah, adros, cemitérios e muralhas, e logo no sol forte do início da tarde, quando a cidade dorme... A esse propósito, ainda ouvi contar uma história picante. Que a senhora Hannah, sob a canícula, deu em segui-los uma vez. E, bruscamente,

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numa pequena elevação do parque, eis que um chapéu de mulher vem rolando no vento. Levantara-se uma enorme borrasca. E ela, então, pega no chapéu, que logo reconheceu, e prega-lhe com a sombrinha, largando-o em seguida. Que voe, que o leve o vento! Limitou-se a gritar:

— Oh, pérfido hipócrita, pérfido hipócrita!Gritou em espanhol para que toda a gente ouvisse e foi-se

embora.Nem isso levei a peito, por mais sarcasmo que destilasse

este precioso Don Juan. E não por cinismo; é que gostava de avaliar com objectividade — então, eu ainda era assim. Nunca me passou pela cabeça, por exemplo, que o Universo existia por força da minha vontade, ou a partir do momento em que vim ao mundo. Nem que uma mulher não pudesse ter a sua vida antes de me conhecer. Discuti, pois, com ela o nosso casa-mento e, sem tardar, falei-lhe deste modo:

— Tem que escolher entre mim e a sua companhia ante-rior pelo menos durante algum tempo. Porque não me ape-tece ir viver para o apartamento do senhor escritor Koch como sexta e sétima pessoa. E não sou tão alegre, nem tenho moral tão faceta, como essa gente; nem se pode viver assim por largo tempo. Esta vida requer um mínimo de ordem, não é, coraçãozinho?

E a minha mulher deu-me plenamente razão. Disse que sim, senhor, exigia-se um pouco de ordem, era mesmo preciso, neste mundo. Foi ela a dizer.

E, o que mais é, pediu que saíssemos dali, deixássemos aquela ilha de doidos. Prestes, iria estalar uma pequena tem-pestade, que ameaçaria toda a sociedade género Koch. A pri-meira senhora Koch, a de óculos, como se só agora começasse a voltar a si, desatou num tal escarcéu que toda a ilha vibrava. Que ela havia de lhes mostrar, e assado, e cozido, com mil dia-bos! Ameaçava ir viver para Londres, abandonar estas relações patriarcais. O que era mau, pois ela sempre tinha dinheiro, umas economias, como resiste uma sociedade sem ele?

Mas deixemos, os pormenores não contam. Interessa é que a minha mulher desejava ir comigo para Paris — se bem que, até

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ali, não quisesse ouvir falar nisso. Nem por nada. Mostrava aversão pela sua terra natal, ou eu sentia isso. Num volte-face, já queria.

— Também julgo que podíamos ir para Paris — disse.— Óptimo — respondi. Meu dito, meu feito. Em menos de

uma semana, tratou dos assuntos, juntou os trapinhos e dizía-mos adeus à ilha. Estávamos com esta pressa toda porque, por vontade dela, só em Paris é que casávamos.

Como se vê, sempre havia um ténue acordo entre nós. E, quando não fosse válido para toda a vida, devia ser conside-rado na base de momentânea aceitação de intenções. Mas a minha mulher nem a isso se mostrou predisposta, ao diante; nem este pequeno acordo respeitaria.

Aconteceu que o afável Annibale Ridolfi (que afastou da beira do mar a senhora Koch número um), que este senhor, dizia, arrancou no seu automóvel para Paris, atrás de nós, ainda mal partíramos. E não era coincidência, vinha, de facto, atrás de nós, como soube, não só por eu próprio ter ouvido o seu nome ligado ao da minha mulher, numa esquadra de polícia, em Paris (o que já vou contar), mas também porque me chegou a informação, muito posterior, de que ele, ainda por cima, se teria queixado a alguém da forma como lhe esca-pou esta doce codorniz, seja, a minha mulher, no meio do centeio... (Na circunstância, o centeio, parece, seria eu.) Por outras palavras: lamentava não ter cevado também o prazer nesta francesa de coração ligeiro.

Mas, repito, deste queixume só fui informado anos volvi-dos e, por acaso, quando já não tinha interesse nenhum para mim. Em Paris, pelo contrário, tive certo dia, manhã cedo, esta surpresa:

Vivíamos aí há alguns meses quando, estava eu na entrada a abrir uns embrulhos chegados de fresco, tocam à porta. Era uma convocatória da polícia para a minha mulher.

Achei estranho. Pois que tem ela a ver com a polícia? Olhei para o papel — devia comparecer dali a uns dias.

— Olhe só o que veio para si — e entrego-lhe o papel.

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(Acrescento que não constava motivo algum, ou tão-só — pour affaire vous concernant). — Que vem a ser isto? — pergunto.

— Então, você já tem que saber tudo, Jacopo mio? — res-ponde, a rir. Não era vexatório, este riso, mas comportava algo de insolente. Por que raio não podia eu inquirir dos seus afa-zeres? Mas calei-me.

Saiba-se que, nesse tempo, nós ainda vivíamos no cen-tro da cidade, na place Saint-Sulpice, entre vendedores de artigos religiosos. E a minha mulher, em toda a sua facún-dia, afirmou que dias antes, à noite, quando voltava para casa, atravessando ao pé da igreja, um homem lhe arran-cou a carteira das mãos e que não tivera coragem de mo confessar.

— Portanto, estou sem carteira — disse, rindo, e escanca-rou o armário —, não tenho — disse —, voou — prosseguiu, doçura de criança. E já era de mais. Dizer-mo na cara. Decidi, pois, ir eu à polícia.

Fui, ainda, nessa manhã.Bem, é preciso conhecer os franceses. Não são só uma raça

forte, dentes duros, mas também não se deixam enganar. Por sorte, remeteram-me para um funcionário com muito de imbecil. Tinha escrito na porta: «Secção automóvel, transpor-tes grupo A». Que transportes? — pensei eu.

— Um guarda-lamas partido, dois feridos, duas acareações — lê-me o sujeito.

— Não me diga — respondo-lhe, baixo.— Pois claro, não estacionou onde devia, mas no lado

ímpar.— Eu?! — sorri-lhe na cara. O que já era um erro da minha

parte. Foi de suspeitar, o rapaz.— Quem é o senhor? — pergunta-me. — O senhor é talvez

advogado? — E segue os documentos, apontando com o dedo uma parte do texto... E lá consegui espreitar. E também apa-nhar três letras neste mar de caracteres. Estava ali: Rid.

— Quem é esse Rid?Nem um segundo. Não tinha mais que dar voltas à cabeça.— É talvez o senhor Ridolfi? — pergunta-me o animal.

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Não tenho palavras: quase desmaiava. Porque, não é?, não contava reencontrá-lo aqui, neste gabinete.

Já então se me desatava a língua. E senti surdir do coração estranha e melancólica melodia. Não sou nem advogado, nem o dito senhor Ridolfi, meu caro senhor... Sou um marinheiro simplesmente estúpido, um curioso...

Apenas me esqueci de lhe dizer que era, realmente, o marido da minha mulher.

— Então o senhor não é advogado?— Eu não sou advogado.— E nem procuração tem? Bom, não tenho nada a

dizer-lhe! — gritou-me. — Só posso dar informações às par-tes interessadas. Muito prazer. Adeus! — gritava. Mas porque estava tão aborrecido?

Talvez por ter percebido o disparate que foi pronunciar o nome?

Eu, bom, creio que também fui desajeitado, pronto, mas é igual. Posso ainda hoje contratar um advogado, se entender, mas de que me serve? Isto não diz bastante? Esposa de meses e vai andar de carro com um senhor estranho, e sofrem um acidente porque não param no sítio certo. Porque pararam, porque foram, que tinha ela a fazer ao certo com um senhor estranho? E por aí fora. Como se o mundo ruísse sobre mim.

E porque estava o funcionário tão assustado? Só por causa do guarda-lamas? É pouco provável. Mas, então... se houvesse naqueles documentos algo que valesse a pena arrancar-lhe?

Enfim: que queria provar uma recém-casada com a história de que a tinham atacado e assaltado na rua? Que relação tem a imaginação de uma mulher com os ladrões?

Se já então me saltava aos olhos, tempos depois tornava-se mais claro. Porque ela insistia na história; uns dias depois, inclusive, preparou papéis oficiais que falavam de uma carteira, o que, sabe-se, é fácil de forjar. Mas longe de mim pretender tal; só que, numa outra ocasião, lhe aconteceu sorte idêntica, ainda história de assaltantes, do que, aliás, tratarei no devido lugar.

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— Não será pântano sem recurso? — Já então interrompi a pergunta.

E apaguei em mim as suspeitas. Também aí.É isso que eu não compreendo bem, e que, mais tarde, nas

noites em claro, ressurge à minha frente: porque era eu assim? Caí num qualquer estado de torpor, ou que diabo? Os meus sentidos não funcionam? Porque é estranho deixar fugir o que já sinto entre as mãos. Deixar fugir assim o pássaro, como se indeciso ou sem carácter fosse o meu coração.

Mas eu sou um homem difícil por natureza, não esqueça-mos. E, conheço-me bem, se algo se incrusta, nem Deus me pode ajudar. Só agora começou a vida e já sobrevém o fim?

— Não gostas, todavia, desta mulher? — perguntava-me.— E não é bom estar com ela?— E não melhorou a saúde?E pode ter sido o argumento decisivo. Porque não é de

somenos para quem adoeceu. Porque pensemos só: ando há anos debilitado, não gosto da vida, não me sabe a comida — já emagreci —, e, de súbito, sim (neste particular, tinha razão o psicanalista), recupero de tal forma o apetite que me dá von-tade de trautear uma canção.

Só que, por enquanto, refreava sua excelência. Mas, depois da cena da polícia, nada podia conter-me: entrei num hotel e ofereci-me um tão esplêndido festim que saí de lá corado. Não tanto por beber, mas comer — que havemos de fazer? A partir de uma certa idade já somos assim. E franqueei ainda outros poisos; em suma, descontraí um pouco. A título de compen-sação, parece. Não como nos velhos tempos, mas semelhante. À noite, fiz esta fala à minha mulher:

— Também estive na polícia, minha pérola. — A minha mulher sorria. E eu podia escrever toda uma epopeia sobre este sorriso. Tanto exprimia. Por exemplo: como lhe tre-miam as perninhas, quando me viu pegar na convocatória e ir-me embora. Porque até lhe tinha dito aonde ia. E como ali se sentava, abandonada, e sozinha, e encolhida, quem sabe se desprezando-se um poucochinho... Tudo isso aflo-rava no seu sorriso.

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— Então? — perguntou, desta vez, com suavidade. Olhei-a, e causou-me pena. Jovem casada, eis o que desejou toda a vida: ser finalmente uma jovem casada. E agora, que se tornou, faz coisas assim. Porque é uma garota irresponsável que corre atrás do prazer como criança atrás de borboleta. E tem a cara cheia de sombras, de sulcos de felicidade.

— Garota travessa. — Acariciei-a. Afastei-lhe o cabelo da testa... e observei atentamente o pequeno rosto. Era como um jovem bandido de nariz arrebitado e insolente, e, do mesmo pé, como se não soubera contar até dois, a minha santinha.

Já se habituara a jogar às escondidas. E, se fosse apanhada, encolhia-se qual criança.

— Não encontraram os documentos — respondi-lhe, baixo.E era muito para ver. Porque não deu imediatamente lar-

gas à fantasia, para não se trair. Retesava-a, como a potro selva-gem. Mas não era assaz inteligente. Se meia hora depois ainda apresentasse uma cara triste, nem então eu teria acreditado. Mas assim? Foi de cantar, qual meia hora?, e já dançava. Por cima, chamava-me tio Douc-Douc e Monsieur Houïné, mani-festação de egrégio favor. E eu, como não quisesse zangar-me com ela, dei então corda ao gramofone de prata e, sorrindo, convidei-a para uma dança.

E com muita cortesia e delicadeza nos tratámos, é verdade. Eu inclinava-me à sua frente, ela apertava-me a mão ao de leve, como se vivêssemos secreto noivado. E talvez que aí me tenha consagrado uma réstia de afecto.

— O afável Annibale também tem automóvel? — pergun-tei-lhe um dia, dir-se-ia por acaso e distracção, como se na vés-pera se tivesse falado a propósito. E como se eu não soubesse que tinha carro.

Porque a coisa intrigava-me.E, evidentemente, logo se pôs em estado de alerta, pronta a

saltar como fera. Sentia-se. Mas ainda se retinha.— Vi-o agora na zona da Étoile, conduzia um automóvel

muito bonito.

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— Que Annibale? — olhou em frente. — Ah, Annibale Ridolfi? — soltou grito repentino, mostrando vivo interesse, o que, sabe-se, é o mais eficaz nestes casos. — Você viu o Ridolfi?

— Sim.— Viu-o em Paris?— Digo que sim.Avancei, mesmo, que nos tínhamos cumprimentado. Claro,

era tudo história, a minha única base era saber que ele estava em Paris.

— Então, porque é que não o mandou parar? — pergunta a minha mulher. E larga, pois, a arder. Que indivíduo tão simpá-tico, e divertido, a sério, e que bom não seria estar um bocado com ele... Conclusão: começa a fazer-me o elogio do tipo. E eu, no entretempo, a observar-lhe o rosto, a coragem no sangue, a insolência nas veias. Ou seja, compreendesse que ela não se assustava, ainda que tivesse investigado o caso. Eu disse:

— Sim, vi o Ridolfi da cara torta.Devo ter pronunciado como uma fera. Ao que ela:— Não lhe apetece vê-lo?— Não, não tenho nenhuma vontade de o ver — respondi

com toda a energia de uma simples negação. E baixei os olhos.— Se tivesse um filho, talvez mudasse — pensava eu em

certas noites. Mas a minha mulher não queria ouvir falar de crianças. A mim, em contrapartida, a vida desviou-me dessa ideia, bem como de outros males da vida privada. Com efeito, tornou-se mais difícil, vieram a recessão e a crise económica, e isso afecta, sobretudo, a navegação. E eu ainda ia resistindo, era um autêntico milagre, verdade, à custa de grandes esfor-ços. Continuava a trabalhar no Levante, e durante meses não via a minha mulher. Lembro-me, por exemplo, de um caso: viajar sessenta horas, via Constantinopla, só para estar um dia com ela. E outro: em Port Said, decidi-me a tomar o avião (o que era então um grande risco), porque me dilaceravam maus pressentimentos. Não me sentia bem em parte alguma, vaci-lava no trabalho. (Também me dei mal no avião, não foi feito para nós.) Mas tinha saudades dela, que fazer? Não vale a pena negar, pois não?

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Estar em casa, por uns tempos, foi mesmo bom. Muito bom. Reinava um grande silêncio após carregamentos e tagarelices, as persianas fechadas, o mundo lá fora, como se a paz descesse ao coração. Ela preparou a casa de modo a tornar-me o lar agradável, temos de convir. Como não preitear-lhe gratidão, pelo menos nestas memórias, quando foi mesmo assim?

Foi um período lindo, escrevamo-lo aqui. Ela, carinhosa e belíssima, também. Voltar para casa era a maior exaltação que se possa imaginar. Era algum milagre se, nos navios, eu não pensava no senhor Ridolfi, mas nela, ou no duvidoso, mas nos seus olhos?

Que eram os principais pontos de referência, tranquili-zando as noites sem estrelas. Acrescento às lembranças, as mais antigas e recentes, os momentos vividos em casa. Por vezes, à noite, eu sorria. Quando me lembravam os seus pós e pomadas. E como é estranha a mulher que se prepara, veste um corpete cor-de-rosa, caída uma alça da camisa, e coisas assim. Que descuidada, nestas ocasiões, e que encantadora! Uma cena, em especial, não me saía da cabeça.

Uma noite, acordou-me. Que eu tinha pesadelos, pare-cia-lhe, porque gemia no meu sonho. Que diabo! E ei-la que aconselha a sairmos, divertirmo-nos, em qualquer lado. Porque também ela não se sente bem em casa, está tão abafado.

— Nem consigo respirar — diz, inclinando-se sobre mim. E que vai pôr-se muito elegante, já vou ver.

E saltava da cama. Espuma de rendas e seda.Que fôssemos cear a um lugar caro.Era madrugada.— Afinal, não gastas o teu dinheiro só com os outros...— Eu?!— Estou a brincar — respondeu, distraída. E os olhos ardiam.Transbordava.E eis que rebentavam dos guarda-vestidos coisas variadíssi-

mas; só agora via quanto ela tinha: peles e sedas leves, rendas e rosas de veludo, e tudo a querer esvoaçar. Noite estranha! Porque não esqueçamos: todos dormiam em redor e nós ali, levantados; fomos cear na madrugada. E ela ali estava,

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sentada, e pintava-se de maneira indecente. Tal e qual uma galdéria. Rimo-nos muito. Eu ficava bem-disposto, após o pesadelo. Segurou as pestanas, que puxou para baixo, e pin-tou as pálpebras, num quase preto. Cinzento. Lilás.

— Para ficar mais sensual — disse.E, ao lado do espelho, em cima da mesa, uns sapatinhos

pequenos para uma cabra-montês, um par de luvas minúscu-las e um lencinho, mais coisas, uma enorme desordem sem deixar de ser grande maravilha! Qual o segredo delas? Sim, das mulheres, qual o segredo?

E o mundo embebeu-se de perfumes conhecidos, que tanto nos tocam quando se está sozinho: perfume dos seus cabe-los, e essências... E também de pós de vário tipo: pó de arroz, e um que se costuma deitar nas luvas... E eu de plantão, fra-que, a apreciar a cena.

Tudo.E devia então fazer cálculos ao quanto me custava aquilo,

as pomadas e as loções? Ia privá-la destes pequeníssimos pra-zeres? Ah, não, Deus me livre. Dê por onde der.

Ainda é jovem, está no seu direito — e daí também eu tiro prazer. Também eu gozo, quando a gente se curva e parte a cabeça lá em baixo, só de ver em que se transforma isso aqui, santo Deus, em que rendas e tão variadas espumas.

Estava a coisa neste pé, ou seja, na altura, já eu tinha uma pequena fortuna, mas, ai de mim se lhe tocasse, era o fim. Porque ela escapa-se. Porque a comemos num abrir e fechar de olhos e, depois, como vai ser? À mercê de outrem, teria que aceitar qual-quer trabalho. Se é que ainda podia. Porque a situação ia de mal a pior e a dos marinheiros apresentava-se já catastrófica. Uma vez, por exemplo, deu-se comigo, em Southampton, o seguinte caso:

Num restaurante, noto que o empregado me olha com insis-tência. Era de segunda.

— Mas... tu, que fazes aqui?! — exclamo.— Que faço aqui? Caíste de cabeça, se calhar, não? Não

sabes como vai o mundo?Claro que sabia. Estava a par quanto baste. Bons coman-

dantes de navios empregavam-se como marujos nos portos

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ingleses e muitos maquinistas já ficavam contentes se os con-tratassem como fogueiros... Tudo isso eu ouvia. Mas acreditar? E ver, agora, um excelente oficial, boa instrução, a trabalhar como empregado de restaurante? Assustava-me.

E aí vou eu para baixo, de novo para o Levante, porque acontecer-me uma dessas — ai isso, não.

Debalde voltei para lá. As bolsas, exauridas; os corações fechavam-se. E de nada serviram as melhores ofertas (é assim que se trata com eles) — de objectos de vidro checo, têxteis, um não sei quê, artigos de Nuremberga... Que não lhes falas-sem em nada.

— Cospe no dinheiro e mete-o ao bolso — aconselhava-me uma proprietária de navios de Sebenico, velha baixinha, mui-tíssimo inteligente.

Nunca outra me acontecera. Quanto a ela, nunca vi grani-zada que a amedrontasse. Era manhosa e perseverante, lenta e pérfida. Se não entrava pela porta, ia pela janela. Éramos traficantes; se não corria bem, dedicávamo-nos ao aluguer, ou comprava-se um barquito, fraco, por que se puxava, e ainda lucrávamos na revenda. Estávamos acordados toda a noite, ela fumava cachimbo, eu charuto, a cabeça às voltas até topar uma saída.

Mas agora não havia nada. Voltei para casa. E porque a minha mulher me vinha seringando para abandonar de vez estas caixas de alcatrão (como chamava aos navios do Levante) — porque não tentava um serviço melhor? (lá queria que o marido fosse um comandante mais elegante) —, escrevi, pois, a um velho amigo, um grego de Londres chamado Alexander Kodor, que, por ele, também soubera onde se cunhava moeda, embora eu já viesse a conhecê-lo no zénite. Enriquecera atroz-mente. Deparando-se-me segunda vez em Itália, abraçou-me em toda a sua gordura e falou-me assim:

— Sou o rei dos mares! — E lançava-me um olhar sig- nificativo.

Era exagero, não era nenhum rei dos mares, mas o princi-pal accionista de uma seguradora marítima, nada mais. O que já era bastante. Não deixava de ser um autêntico aventureiro,

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e um traficante: podia ajudar-me, se quisesse. E, sim senhor, temos de admitir, esforçou-se mesmo. Porque a breve trecho, ainda nesse Outono, tornei-me comandante de um pequeno e bonito navio. Era navio soberbo, delicioso e grácil como menina, bolo de aniversário, ou como dizer? Não tinha uma beliscadura, e navegava há oito anos; porte rondando as cinco toneladas, era extraordinariamente rápido e aparelhado para as rotas mediterrânicas. Chamava-se Daphné.

Mas também o exploravam em grande. Uma sociedade internacional do pós-guerra adquiriu-o, pouco capital, mas pessoas inteligentes. De serviço de transportes veio a navio de cruzeiro, quando isso era ainda novidade, e também uma necessidade, que nunca houve tanta vontade de ir à Terra Santa como então. E, depois da guerra, também as pessoas de rendimentos baixos ansiavam por fazer a sua viagenzita. Em síntese, calcularam bem.

Transformaram-no rapidamente, quando da Grande De- pressão (antes, transportava frutas tropicais e vinho), e anun-ciaram não se terem poupado a gastos. Aportou gente de todo o género: devotos, inclusive peregrinos da América, turistas — resumindo, era uma companhia bem variada, e interessante, não me causando problema algum nos produtos mais finos (porque também levava carga, não éramos só barco turístico) — e, quanto ao itinerário, para mim, navio é de olhos fecha-dos, tão bem conheço a rota, as condições costeiras, águas, bom, tudo em ordem, o salário também, nada, enfim, de que me queixar. Só que vivia infeliz.

Assim me sentia. Depois que abandonara os pesados carguei-ros, sentia-me infeliz. Nada, desde então, passou a correr-me bem. Logo durante a primeira viagem surgiram algumas difi-culdades, mas isso ainda foi o menos. A segunda viagem é que correu mal. A cem milhas apenas de Alexandria declarou-se um incêndio no navio. Sucedeu por volta da meia-noite.

E deixem-me, agora, tratar aqui em pormenor esse caso; em parte, para aliviar a alma. Porque, dentro de mim, ele ainda não está resolvido — nem vai estar, enquanto viver. E, por outro lado, considero que a minha sorte virou nesse dia. Mas, creio, este

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acidente também me fez perceber muita coisa. Foi como se me tivesse fugido o chão debaixo dos pés. Mas não nos precipitemos.

Devo começar por dizer que tenho por hábito dormir bem e profundamente. Quase sem sonhos. Ou muito raramente. (Por isso, não sabia o que contar ao tal psicanalista. Sonho? Não sonho.) Neste navio, pelo contrário, não dormia bem. Por andar inquieto, talvez, temia em demasia por aquele barco. E, simultaneamente, andava também distraído... Não inte-ressa. Verdade que nessa noite transpirava muito e sentia um peso sobre o coração. Dormia, sem me sentir bem. Até fiquei contente por me terem acordado. Era o meu turno — foi a sensação que tive —, gostava do serviço à noite, mais quando a escuridão cega, que é só trabalhar. Qual uma máquina, o que é bom. Não se pensa em nada.

Bate um oficial e diz lá de fora:— Estamos a arder, comandante!— Que diz?Ora, antes, nem era preciso dizer, num caso destes eu já

sabia. É assustador como entro logo na coisa. — Isolar! — grito-lhe, de pronto.Que sei por experiência que algodão, lã e outros mate-

riais assim, isolados hermeticamente, se tornam incandescen-tes como o carvão vegetal, ou seja, conservam durante muito tempo o próprio calor sem, todavia, se inflamarem. E pode-mos ganhar tempo. Percebi logo isso.

— Não acordar ninguém, enquanto não for preciso! — gri-tei atrás dele. E já vestia a capa, que a noite estava fria.

Mas embalde tento, não consigo descrever aquela noite. Diligente, a pequena máquina assobiava, como as serpentes, isto é, já trabalhavam as bombas. Aliás, no silêncio reinante, só algum trepidar no convés e uma grande claridade sobre o vazio, como se fantasmas se iluminassem lá fora.

E já, devagar, pacificamente, a proa ia de fumegar. O fumo tomava, suavemente, pelas fendas, enquanto, em cima, não era apanhado pela velocidade. Avançávamos a todo o vapor.

Já antes vivera grandes sarilhos, duas vezes, pelo menos. Uma, entre a China e o Japão, em que simplesmente encalhámos o três

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mastros holandês de nome Slamat. Estava cheio de arroz. E nós, durante dois dias e duas noites, lançando ao mar este arroz de superior qualidade, e sem nos libertarmos, que já quase nos voltá-vamos, agora, sem lastro, porque a areia prendia-nos a estibordo.

Também peguei fogo ao largo de Trieste. Mas, ainda aí, entrámos no porto, nos derradeiros minutos, quando, tudo tão quente, os miolos quase nos derretiam.

Por outras palavras, já muito transpirei eu na vida. Mas nunca como naquela noite.

Sentia-me impotente, era esse o meu mal. Sobretudo no iní-cio. Como embrutecido pela desgraça, o cérebro não funcio-nava. Andava à deriva. Subia à ponte, corria para o fogo, dava as ordens mais desencontradas, por exemplo, aumentar a velo-cidade, a todo o vapor, vá que não vá, mas porque, logo, não mandava mais vapor para o porão, a fim de extinguir o incên-dio?... Gritava, desvairado. Mas então: se o barco tem que avan-çar depressa, isso é a maior estupidez, nem vale a pena dizer porquê! A primeira condição é ter as caldeiras no máximo. E quase enlouquecia de raiva. Até quis agredir o maquinista. O primeiro oficial olhou para mim.

E também isso me enfureceu. O seu olhar. De resto, estava imensamente zangado com ele; culpava-o por tudo. Imbecilmente; e nisso me perdia.

Para felicidade nossa, não havia problemas com os pas-sageiros, ou seja, os das entrecobertas (porque também os tínhamos, ainda estávamos instalados desta maneira); subi um após outro com as suas trouxas em direcção à coberta supe-rior, pálidos como prisioneiros, em ordem e sem um pio. Eles, sim. Deixem-me aqui escrever que assim era e que a disciplina dos pobres é comovedora. Porque é sombria e imperturbável. Porque já nos habituaram à miséria das suas vidas, ao perigo e a tudo aquilo que os outros acolhem como injustiça da sorte e que não merecem. Gosto mais dos pobres, mas deixemos isso.

Em vão mandei abrir as bocas de ventilação aqui e ali para que algo se inflamasse, algures, e pudéssemos descobrir, ao menos, o foco de incêndio; mas era só fumaça e mais fumaça por tudo o que era sítio, desabava fumo à frente das pessoas

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como negro bicho e não se podia ver nada. As lâmpadas, em baixo, também se apagaram e as lanternas não valem de nada num caso destes; apesar disso, as pessoas suportavam a des-graça com dignidade. Até ao esgotamento. Tontas, arquejantes, precipitavam-se para as correntes de ar. Afogado em água, o navio ardia.

Optei por que isolassem o porão e mandei deitar ao mar o que atravancasse o caminho. Como tenho de cor a minha carga, a forma, volume, até a sua colocação — minha principal preocupação por amor do equilíbrio e do balanceamento das mercadorias, e daí que não deixe economizar nas cordas ou na embalagem —, fui, por conseguinte, de alguma utilidade. Começava, entretanto, a ver mais claro, mas para quê porme-norizar? Tínhamos, em breve, à frente, mais vapor que fumo, e já era alguma coisa.

Só depois se anunciaram os passageiros de condição.— Qual é o problema, comandante? E porque faz tanto

calor? — faziam-me perguntas deste quilate. Como se esti-vessem confusos. Ou não quisessem acreditar nos próprios olhos.

— Há fogo — gritou alguém lá mais à frente. Por cima, tocara a sineta.

— Porra! — Só então voltei completamente a mim.Reuni, pois, os senhores, e para dentro com eles, para os

dois salões, e ordenei ligassem o gramofone, que se divertis-sem. E à porta marujos, determinando que não saísse vivalma.

Tive, outrora, um colega de curso, um rapaz de Friesland chamado Ebertsma-Leiningen, que me convidou certa vez para passar com ele as férias de Natal. E, naturalmente, avisou os pais. Só que deviam ser umas pessoas esquisitas, porque, quando chegámos, ninguém estava em casa, além do jardi-neiro. Tinham ido passar as férias à Côte d’Azur.

Que furioso ficou este rapaz de Friesland!— Mas eu escrevi-lhes que trazia um convidado! —

Fixava-se no vazio. — Não perdem pela demora — e os olhos brilhavam.

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E, ao anoitecer, arrombou a despensa. Claro, eu ajudei. Ria e ajudava. E pusemos a mesa, primorosamente, acendemos o lume, e a toalha de damasco cintilava como campos de gelo. Executámos o assalto em grande estilo — e saíam presuntos, e chouriços —, quais mágicos fazíamos aparecer sobre a mesa ver-dadeiras naturezas mortas de carnes vermelhas e acastanhadas. Mas, depois, tudo se estragou. Em parte, porque forçámos, igualmente, o armário — o meu amigo queria dinheiro. O que já não é lembrança nada agradável. Mas há outra ainda pior. Fervemos aguardente no fogão, entrou uma rapariguinha na sala... e esta menina cedo desatou a chorar. E não se podia consolar, não parava de chorar.

Vai sem dizer como são impossíveis os adolescentes. Como em animal, não se desenvolveu neles o homem. Também não fizemos grande caso disso; mas, pela manhã, nem queríamos olhar-nos nos olhos. O amigo pôs um cartão na secretária da mãe, agradecendo a amável hospitalidade, e fomos à vida.

Este choro da rapariga não me saiu da cabeça toda a santa noite. Parecia-me ouvi-lo, doravante, sem conseguir afugentá-lo, como se, por isso, devesse concorrer numa qualquer expiação, ou coisa parecida. Sentia um bater estranho do coração.

Cá estava agora este barco.Sentia-me um homem inútil, que não presta, farrapo,

alguém que em si transporta a decadência e de quem se sabe que não vai muito longe.

Pois aonde é que cheguei eu com este barco? — esta recri-minação absurda atormentou-me toda a noite — por que raio me confiaram esta maravilha? Porque, repito, este barquinho era uma obra-prima, manutenção excelente que nos invejavam, e sempre no porto de registo vinha um funcionário superior a quem era mister declarar a mais insignificante escoriação.

— Nem o verniz pode sofrer defeito! — diziam-nos. E agora queimava-se o verniz, a pintura, o esplêndido cavername luzidio.

— Ora, Kodor, também tu te lixaste comigo — pensei eu. (Pensava no amigo que me recomendara — e porque me recomendou?)

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O barco começou a deitar o cheiro da louça de madeira pintada de fresco quando seca ao lume — ou outras coisas do género: brinquedos, caixinhas de Natal —, cheiros doces e enjoativos que quase me fizeram vomitar. Ainda hoje sinto vómitos só de ver uma destas caixinhas de madeira.

Pois, que fazer, somos educados assim, gostamos do nosso barco. E conservá-lo intacto é, para nós, o bem mais valioso; só quebrar uma chávena ou perder uma chave já significa uma enorme tristeza. Agora, então! É uma dor incrível, endoidecemos.

— Mas a vida dos passageiros não é nada? — perguntou-me alguém mais tarde. Claro que sim, a nossa também conta.

Às duas e meia da madrugada, dei o alarme. Mas era ainda um erro, confessemos. Porque vinha tarde, atrasara-me irre-mediavelmente, só Deus sabe porquê. Fiquei paralisado, ou que diabo? Devia ser uma e meia quando o oficial, em sentido, me perguntou:

— Não devíamos lançar um S.O.S., comandante?Olhei o barómetro e olhei o céu.— É aguardar, que vai chover — digo.— Mas podemos atrasar-nos; o fogo atravessará talvez o

convés...Não terminou a frase, nem seria aconselhável.— Não atravessa — disse eu. — Aliás, a responsabilidade do

navio cabe ao comandante e não aos senhores oficiais.Desandou.Para regressar meia hora depois.— Dá a ordem?— Não.E, claro, também agora devia explicar isso. Mas por onde

começar? Não esqueçamos como, na juventude, fomos educa-dos na ambição. De que emanou um sistema de responsabi-lidades e vaidades... É uma loucura, eu sei. Ele tinha razão. E, todavia. Conseguir pelo seu próprio esforço é o que está nos homens.

E já avançávamos para o foco de incêndio. Estive lá, vi com estes olhos. À frente, longe e dentro, podia-se entrever um

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bruxulear, mas calmo e silencioso, como de uma vela — então ele é só isso?

— Ora, graças a Deus — disse comigo, qual doido teimoso.Porque, fora isso, o céu estava coberto, o vento preguiçava,

o barómetro caiu... E que me matassem, se não ia chover. Já, já, esperássemos uns minutos, que iria chover, infalivelmente. E agarrei-me à ideia.

Neste aspecto, há em mim, sem dúvida, o que quer que seja. Eu nunca acreditei a sério no perigo, que vem aí o fim, que qualquer coisa nos vai matar...

E agora aí estava. Porque às duas e meia da madrugada o convés rompeu de vez, largámos a arder em chamas infernais. E, bom, imaginemos um barco pequeno que arde, e sempre avançando na noite escura, que ilumina.

E a máquina trabalhava, leal como o coração de um mori-bundo — cumpria até às últimas o seu dever, máquina exce-lente e primorosamente construída, barquinho esplêndido. E em mim a sensação de ter que chorar ou agarrar o fogo com ambas as mãos, delirante, até me perder nele.

— Agora, já pode assobiar — ouvi o primeiro oficial dizer para alguém, quando, finalmente, mandei transmitir os sinais e apitar a sirene.

Não é que fosse pessoa mal-educada, mas já quase não se tinha nas pernas, como bêbedo, coitado. Eu, pelo contrário, quase nem sentia o cansaço. Era uma coisa! Como se uma pes-soa estivesse três dias seguidos a delirar... Mas, repito, nada disso sentia naquele momento. Só me doíam os olhos e a gar-ganta encheu-se de fumo amargo. Bebi, pois, sumo de limão no escritório, onde me fechei para algumas contas inúteis, de que resultava que, se tinha mais quatro horas, quatro não, só três, isso era suficiente — podia, então, chegar sem problemas, como foi ao largo de Trieste com o Giuditta.

— Estamos a sessenta milhas de Alexandria — lamen-tava-me eu —, aqui devia haver navios.

Mas, valha-me Deus, não aparecia nenhum. Ao cair da tarde, ainda um navio checo avançava paralelo a nós, agora nem rasto dele. E logo ali, na frente destas margens desertas,

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que não havia nada, nem ilha, nem estação de salvamento, nada em que se pudesse esperar.

Jurei pela Virgem Maria que nunca mais me empregava em navios tão delicados — supondo, é claro, que sobrevivíamos. Porque não são para mim. Porque é assim, eu sei lá? Para mim, não. Volto ao serviço anterior, bom Deus, diga a minha mulher o que entender.

Também odiava a minha mulher.Às três da madrugada, Don Pope, um espanhol de ar doen-

tio, suicidou-se no seu camarote com um tiro nos miolos. Felizmente, além de mim, mais ninguém soube. O irmão mais novo, Don Julio, um parasita típico, veio pedir-me que decla-rasse o seu direito a, como parente, receber as malas do irmão. Declarei.

E chegaram as primeiras rabanadas perigosas de vento. E agora que faço, mando parar a máquina ou quê? Quando a nossa única salvação era a velocidade. Desci a um dos salões, a fim de preparar as pessoas para os salva-vidas. Mas impossí-vel. Quase me esfrangalhavam.

— Que barco é este? Que comandante é este? — gritavam daqui e dali. — Porque não lançou o S.O.S.? — saltou-me à frente um jovem enorme de olhar tresloucado. Apertava con-tra si, como um embrulho, debaixo do braço, mulher acrian-çada e pálida.

— Está-se nas tintas, se morrermos! — gritava, e os lábios tremiam-lhe.

Tive de sacar do revólver.O que, em situações destas, não é aconselhável. Calaram-se

logo, prontos a saltar como lobos. E aproveitei, justamente, este momento raro. Deitei fora o revólver. E fiz-lhes um pequeno discurso, como segue:

— Ouçam! Um alçapão feriu-me um braço, estou cheio de sangue. O casaco pegou fogo e a carne ardeu com ele. Já podem ver o que faço. Vocês também têm de fazer! — gri-tei-lhes. Houve um grande silêncio. — Se agora perdem a cabeça — continuei —, podem-me desanimar e isso já não é bom. Pensem um bocadinho, porque, sem mim, aqui não há

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salvação. Mas se, pelo contrário, aguentarem, então prometo, mesmo que rebente, salvá-los a todos...

— Olhem para mim! Não sou homem que falte à palavra... — E assim por diante. Envergonho-me de escrever, porque era só lábia e teve um efeito miraculoso. A situação tomou logo outro rumo. Começaram a implorar, a suplicar, alguém entre-gou-me o revólver atirado ao chão. Como se fosse o seu coração.

Não dava para aguentar por muito tempo.Alguns arménios, por exemplo, começaram a atormen-

tar-me com a sua afeição, acariciavam-me o casaco, tagare-lavam, humildes, mas não se percebiam. Porque não sabiam francês, cinco deles tentavam criar uma língua de trapos; hor-rível que era. Nesse entrementes, lá o padre deles ergueu em alta grita a cruz na minha direcção e improvisaram, afinal, uma missa num canto. Recomeçou uma confusão cada vez maior.

Estava decidido, já, a deixá-los, a não os aborrecer mais, coitados, quando uma rapariga se agarrou a mim, uma jovem Miss, e não me deixou chegar à porta.

— Adoro-o, ah, não vê como o adoro? — perguntou entre estranhos sorrisos, e sedutores, enquanto me abraçava, ten-tando chegar-me ao pescoço. Era lindíssima.

— Então não reparou que durante toda a viagem estive a olhar para si? — gritou. — Não se vá embora, não se vá! — Tentava prender-me com toda a energia.

— Agora já é indiferente, indiferente! — explicava para todos. Oh, meu doce ideal!

Enlouquecera, por certo. E os pais, dois velhotes, lá esta-vam, num sorriso imbecil de quem aprova a coisa. E havia uma súplica terrível nos seus olhos: fosse o que fosse, salvasse-lhes a filha.

Finalmente, consegui desenvencilhar-me, acariciei o seu cabelo... E, agora, tenho de confessar.

Há algo dentro do homem que ele nunca compreenderá. No meio desta confusão toda, o que me vinha à cabeça era como seria bom beijá-la. E logo a febre da luxúria me assaltou as veias. Donde concluo que dentro do homem reside a lou-cura. Em todos. A sua morada é no fundo da alma.

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