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308 <sumário Expressões do gótico no sertão brasileiro: morbidez e necrofilia no conto “A dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães Fabianna Simão Bellizzi Carneiro 1 Introdução Raymond Williams abre sua obra O campo e a cidade (2011) com a seguinte colocação: “‘Campo’ e ‘cidade’ são palavras muito poderosas, e isso não é de estranhar, se aquilatarmos o quanto elas representam na vivência das comunidades humanas.” (WILLIAMS, 2011, p. 11, grifos do autor). Posteriormente, o autor pontua que atudes emocionais cristalizam-se em torno das comunidades existentes: O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtude. À cidade associou-se a ideia de centro das realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negavas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. (WILLIAMS, 2011, p. 11) São essas associações negavas que nos insgam a pensar no espaço do campo como lócus do diferente aos olhos daqueles que se colocam em posição superior por terem vivenciando as agruras, dificuldades e o espírito ambicioso das cidades, ou daqueles que acreditam terem alcançado posições culturais superiores em relação às pessoas do campo. Por que a simplicidade de um local pode determinar a limitação intelectual de uma pessoa? Que olhar é esse que o homem citadino lança ao homem do interior, associando-o ao exóco, pitoresco, ao diferente, ao atraso? O conto “A dança dos ossos” fomenta importantes elementos que nos levam a quesonar esse papel atribuído ao homem do campo: ignorante, superscioso e atrasado. Como se dá a construção dessa imagem? Que sociedade era essa? Políca e economicamente o que vivenciávamos no Brasil? Mais ainda: como a Literatura Fantásca, e no caso específico deste trabalho a vertente góca, captura acontecimentos tão emblemácos e marcantes e os transforma em expressões arscas que traduzem as vivências do homem do sertão finissecular? 1 Autora deste artigo. Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás. Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Introdução - · PDF fileRaymond Williams abre sua obra O campo e a cidade ... não é de estranhar, ... O resultado dessa dicotomia foi um abismo social entre a ‘alta’ cultura,

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expressões do gótico no sertão brasileiro: morbidez e necrofilia no conto “a dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães

Fabianna Simão Bellizzi Carneiro1

IntroduçãoRaymond Williams abre sua obra O campo e a cidade (2011) com a

seguinte colocação: “‘Campo’ e ‘cidade’ são palavras muito poderosas, e isso não é de estranhar, se aquilatarmos o quanto elas representam na vivência das comunidades humanas.” (WILLIAMS, 2011, p. 11, grifos do autor). Posteriormente, o autor pontua que atitudes emocionais cristalizam-se em torno das comunidades existentes:

O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtude. À cidade associou-se a ideia de centro das realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. (WILLIAMS, 2011, p. 11)

São essas associações negativas que nos instigam a pensar no espaço do campo como lócus do diferente aos olhos daqueles que se colocam em posição superior por terem vivenciando as agruras, dificuldades e o espírito ambicioso das cidades, ou daqueles que acreditam terem alcançado posições culturais superiores em relação às pessoas do campo.

Por que a simplicidade de um local pode determinar a limitação intelectual de uma pessoa? Que olhar é esse que o homem citadino lança ao homem do interior, associando-o ao exótico, pitoresco, ao diferente, ao atraso?

O conto “A dança dos ossos” fomenta importantes elementos que nos levam a questionar esse papel atribuído ao homem do campo: ignorante, supersticioso e atrasado. Como se dá a construção dessa imagem? Que sociedade era essa? Política e economicamente o que vivenciávamos no Brasil? Mais ainda: como a Literatura Fantástica, e no caso específico deste trabalho a vertente gótica, captura acontecimentos tão emblemáticos e marcantes e os transforma em expressões artísticas que traduzem as vivências do homem do sertão finissecular?

1 Autora deste artigo. Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás. Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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A partir destas inquietações teceremos o texto deste trabalho, sem deixar de mencionar os pontos de contato entre o Romantismo no Brasil e o Romantismo na Europa, uma vez que o conto que corporifica este artigo traz elementos muito marcantes da manifestação do gótico na Europa.

Este trabalho possibilitará analisar não só a presença do ambiente gótico no Brasil regional, como também a importância de um autor goiano e sua contribuição para a literatura brasileira.

Apontamentos históricosH.P. Lovecraft, em O horror sobrenatural em Literatura (2008), defende

que é na Europa Medieval que personagens de lendas e mitos sombrios ganham força e persistem na literatura fantástica até hoje, muito embora “O impulso e a atmosfera são tão antigos quanto a humanidade, mas a história fantástica típica da literatura padrão é filha do século XVIII.” (LOVECRAFT, 2008, p. 24)

Embora o medo, durante a Idade Média, tenha carregado consigo uma abordagem religiosa, por volta do início do século dezenove os efeitos da Revolução Industrial trouxeram à tona um novo elemento a ser temido: a ciência. A literatura Gótica da época não passou incólume por este ambiente e incorporou essa atmosfera em suas narrativas.

Os triunfos do progresso durante a Revolução Industrial mudaram a face da sociedade europeia. A ciência foi elevada a condição de instrumento utópico que levaria a humanidade a uma nova Era de Ouro. Refletindo essa situação, políticas de classe e o crescente desenvolvimento da classe burguesa criaram novas sociedades e organizações científicas tanto na Europa quanto na América. Esses espaços elitistas de debate estabeleceram uma representação institucional para a ciência com sentido, função e, principalmente, interesses específicos. Como Stepan e Gilman atestam:

A ciência como forma de conhecimento se destacou dentre os outros sistemas de saber, no processo, as dicotomias entre o puro e o impuro, o racional e o irracional, o objetivo e o subjetivo, o duro e o suave, o macho e a fêmea, foram imbuídas de naturalidade (STEPAN e GILMAN, 1991, p. 89, tradução nossa).

Se a ciência era então o produto de mentes (brancas) masculinas que alegavam imparcialidade crítica e objetividade, o impuro, o irracional e o subjetivo tornaram-se automaticamente relacionados às mulheres, grupos

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minoritários e classes sociais que diferiam do grupo caucasiano elitista. O resultado dessa dicotomia foi um abismo social entre a ‘alta’ cultura, incorporada pelos homens de conhecimento, e a cultura popular representada pelas minorias que não faziam parte desse sistema dominante.

E no Brasil? Como os artistas e intelectuais da época capturaram importantes ocorrências das sociedades não só em nível cultural e social, bem como nas esferas política e econômica e transpuseram estas ocorrências e mudanças para as artes? Mais ainda: como podemos entender a manifestação da vertente gótica na literatura brasileira dos oitocentos?

À época das transformações sociais e transições político-econômicas que ocorriam na Europa, o Brasil vivia sob o comando da nação portuguesa. Escritores brasileiros do momento ainda estavam fortemente influenciados pela atmosfera artística europeia, portanto tendências literárias do continente europeu acabavam resvalando para as Américas. Lembrando que ainda vivíamos sob os auspícios da Igreja Católica, o que resultava em produções literárias de cunho ideológico e panfletário: “[...] as manifestações literárias, ou de tipo literário, se realizaram no Brasil até a segunda metade do século XVIII, sob o signo da religião e da transfiguração.” (CANDIDO, 2000, p. 85).

Ainda na primeira metade do século XVIII, podemos notar que se inicia um processo rumo a uma produção de cunho nacional, que começa a se desprender das amarras europeias - lembrando que em 1822 o Brasil se torna independente da Metrópole Portuguesa. Candido (2000, p. 88), inclusive, menciona que no Brasil teria ocorrido uma pequena Época das Luzes, abrindo caminhos para a independência política e intelectual. As artes não passariam neutras por essa atmosfera, introduzindo esses temas em suas produções, conforme podemos atestar na literatura brasileira das primeiras décadas do século XIX:

A criação das Academias de Direito de Olinda e São Paulo veio dar um golpe rude nos laços intelectuais que ainda nos prendiam a Portugal. A influência francesa, que se exercia, clandestinamente, por intermédio dos enciclopedistas, passa agora a manifestar-se largamente em nossa vida cultural. Olinda (depois Recife) e São Paulo libertam-nos da tutela de Coimbra. Por outro lado, os jovens ricos, não se contentando em estudar em Recife e São Paulo, vão para Paris, trazendo no regresso a influência francesa em nossos usos. (BROCA, 1979, p. 44)

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Paradoxalmente, os artistas ressaltavam não o que Paris oferecia de melhor, mas sim elementos que reforçassem o sentimento de autonomia e independência. A primeira fase do Romantismo, no Brasil, ressalta as cores da terra, o patriotismo do homem ligado ao campo e o heroísmo do nativo: “O heroísmo do homem ligado à terra, a graça da mulher brasileira, a pureza dos costumes familiares, [...] são as “teses” que o romance romântico procura defender junto ao seu público.” (VOLOBUEF, 1999, p. 337, grifos da autora).

Salienta-se que não há um consenso quanto à fase romântica na qual Guimarães esteja inserido. Afrânio Coutinho o insere, cronologicamente, no primeiro grupo do Romantismo Brasileiro; enquanto Otto Maria Carpeaux utiliza o critério estilístico e ideológico, enquadrando Guimarães no que ele chamaria de romantismo nacional e popular (VOLOBUEF, 1999, p. 160). Curioso é que podemos notar nuances da valorização do homem e das coisas da terra no conto “A dança dos ossos”, ao passo que, concomitantemente, o autor se utiliza de elementos do gótico para dar vazão às falas das personagens.

Nascido em Minas Gerais e tendo vivido por um tempo, por volta de 1876, no interior dos Estados de Minas Gerais e Goiás (na cidade de Catalão), Bernardo Guimarães (1825-1884) chancelou obras marcadas pelo sertanismo - não exclusivamente o da primeira fase romântica, que apenas valorizava a terra e as belezas naturais, mas um sertanismo que começava a introduzir em suas narrativas temas mais complexos e mais abrangentes. Sobre a obra de Guimarães, Wilson Lousada afirma que

reflete de algum modo o estilo de vida sertaneja, apoiada principalmente no descritivo paisagístico, mas sem fugir às tradições e lendas das terras do planalto central, povoadas de vaqueiros, tropeiros e rudes senhores de fazenda. (LOUSADA Apud TELLES, 2007, p. 37)

Segundo Gilberto Mendonça Teles, em O conto brasileiro em Goiás (2007), devem-se aos escritores Bernardo Guimarães e Afonso Arinos os créditos por terem iniciado a ficção em Goiás. Embora tenha morado em uma capital (o escritor foi colega de Álvares de Azevedo na faculdade de Direito de São Paulo), Guimarães marcou sua escrita com os tons da cultura local, com falares e costumes muito próprios do sertão goiano, conforme será atestado nas próximas seções.

Romantismo e Sertanismo: algumas considerações“À noite, límpida e calma, tinha sucedido a uma tarde de pavorosa

tormenta, nas profundas e vastas florestas que bordam as margens do

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Parnaíba, nos limites entre as províncias de Minas e de Goiás.” (GUIMARÃES, 2011, p. 82).

Essas são as primeiras linhas do conto “A dança dos ossos”, que faz parte da coletânea O fantástico brasileiro, organizado por Maria Cristina Batalha. No conto verificamos a trajetória de um comerciante que parte da pequena cidade de Catalão, Goiás, rumo ao sertão mineiro, acompanhado por homens do local. A narrativa começa com uma descrição nada econômica da geografia e da natureza locais. Nota-se uma caracterização dos sertões de Minas Gerais e Goiás, que mais parece um convite para que o leitor sinta-se parte do ambiente. Sobre isso, Volobuef destaca que a obra de Guimarães transcende os limites da descrição geográfica, apelando para a pujança, imensidão e opulência: “O escritor parece convidar o leitor a encarar sua terra natal com outros olhos: de quem conhece, aprecia e, mais do que isso, admira. O espaço físico, pois, torna-se fonte de orgulho nacional [...]” (1999, 228-229), conforme podemos atestar no excerto abaixo:

A alguns passos de nós se desdobrava o largo veio do rio, refletindo em uma chispa retorcida, como uma serpente de fogo, o clarão avermelhado da fogueira. Por trás de nós estavam os cercados e as casinhas dos poucos habitantes deste lugar, e, por trás destas casinhas, estendiam-se as florestas sem fim. (GUIMARÃES, 2011, p. 82)

Todo o conto é permeado por essa descrição meticulosa e com riqueza de detalhes geográficos, o que não é por acaso. Conforme visto anteriormente, à época do Romantismo exercia-se um forte apego ao conceito de nação, pois o Brasil se descobria enquanto país. Nesse contexto, o romance sertanista atende com maestria aos apelos de uma nação que queria mostrar sua gente, sua terra, sua cultura e tradições. Portanto, nada mais natural que se apresentasse a terra brasileira, e mais especificamente o sertão, sob todos os seus aspectos - não apenas o geográfico, bem como o social e cultural: “[...] nossa cultura (hábitos e costumes; linguagem; crenças), nossa maneira de desbravar o sertão e povoá-lo (estabelecimento de fazendas; lavoura e criação de gado), transporte de animais realizado por muladeiros e outros comerciantes.” (VOLOBUEF, 1999, p. 190)

Notamos, nos primeiros parágrafos do conto, a preocupação em apresentar com fidedignidade a terra e as pessoas do local. Mais ainda: o narrador preocupa-se em contrapor os valores da cidade aos valores do sertão, valorizando o espaço sertanejo:

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No sertão, ao cair da noite, todos tratam de dormir, como os passarinhos. As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é o silêncio da alma.

Só o homem nas grandes cidades, o tigre nas florestas e o mocho nas ruínas, as estrelas no céu e o gênio na solidão do gabinete, costumam velar nessas horas que a natureza consagra ao repouso.

Entretanto, eu e meus companheiros, sem pertencermos a nenhuma dessas classes, por uma exceção de regra estávamos acordados a essas horas.

Meus companheiros eram bons e robustos caboclos, dessa raça semiselvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o africano, que vagueia pelas infindas florestas que correm ao longo do Parnaíba, e cujos nomes, decerto, não se acham inscritos nos assentos das freguesias e nem figuram nas estatísticas que dão ao império não sei quantos milhões de habitantes. (GUIMARÃES, 2011, p. 82-83)

Mais uma vez se verifica a valorização dos costumes do povo e das pessoas da terra, bem ao gosto dos românticos. Reforça-se que as narrativas sertanistas da época tendiam a assinalar a oposição campo e cidade com o objetivo único de apresentar uma escrita genuinamente brasileira, uma vez que o homem do campo representava o pólo oposto do homem das cidades brasileiras, e este já estava impregnado pelos costumes e modos de vida europeizados (VOLOBUEF, 1999, p. 303).

Outro ponto assinalado é a maneira como Guimarães descreve o homem do campo: “raça semisselvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o africano.” Em 1871 ainda vivíamos um regime de vida no campo massacrante e excludente. A Abolição da Escravatura aconteceria mais de uma década depois, portanto temas como preconceito racial, exclusão social, estratificação econômica, não eram incomuns nos romances. O próprio Bernardo Guimarães publicou, em 1875, a obra que viria a ser o baluarte do preconceito contra os escravos, A Escrava Isaura. Se o momento era de autoafirmação e valorização da alma brasileira, até mesmo a autocrítica deveria ser elevada a categorias superiores:

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A despeito de tudo isso, seria errôneo considerar o romantismo brasileiro um movimento cultural que se teria subtraído a qualquer crítica social de seu tempo. Justamente por ser um movimento cultural – encabeçado pela nata da elite da época – que aspirava elevar o país a patamares superiores, ele pôde constatar quanto certas chagas sociais agiam a fim de emperrar e obstar essa ascensão pretendida. Assim sendo, o romântico dedicou-se a levantar diversos problemas e insuficiências que corroíam (e, em muitos casos, corroem até hoje) o estabelecimento e desenvolvimento da nação. (VOLOBUEF, 1999, p. 284)

Uma vez mais ressalta-se a escrita pungente de Guimarães, que soube explorar com precisão conflitos como a escravidão, as condições de vida miseráveis do campo, o índio nada heroico ou “bom selvagem” retirado da realidade na novela Jupira (1872), e temas ainda mais complexos como a tortura, necrofilia e morte. Por conta desta visão crítica, Gilberto Mendonça Teles insere Bernardo Guimarães e outros autores regionalistas em patamares universais, incorporando “[...] à literatura brasileira um patrimônio rico de informações humanas.” (TELES, 2007, p. 26). Ainda mais interessante torna-se a narrativa ambientada no sertão quando o autor introduz fortes elementos do sobrenatural e do macabro.

Morbidez e necrofilia em “A dança dos ossos”Cirino, personagem que acompanha o narrador mata adentro, sublinha

com bastante veemência o homem do sertão brasileiro do século XIX: afeito às tradições, fiel à terra e cultura locais, rude, massacrado por um sistema econômico escravocrata, esquecido pelos governos e tiranizado pelos senhores de engenho que ainda exerciam poder no Brasil.

Ele é responsável por acompanhar o narrador, durante sua passagem pela mata, que saíra da Província de Goiás com destino à Província de Minas Gerais. O narrador e seus ajudantes passam uma noite na pequena casa de Cirino e sua família. Cirino pede desculpas por não ter ido à cidade comprar apetrechos para pesca, pois sua filha havia mentido, dizendo que era sexta-feira e não sábado. Cirino explica que às sextas-feiras os moradores do povoado não costumam ir à cidade, pois nesse dia os ossos de Joaquim Paulista, ex-morador do vilarejo, saem da cova à “procura” da cabeça e dos ossos que faltam para completar todo o esqueleto. Os visitantes se espantam e então Cirino, bem

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à moda dos narradores de causos e histórias, começa a explicar o que havia ocorrido:

Um dia, há de haver coisa de dez anos, eu tinha ido ao campo, à casa de meu compadre que mora daqui a três léguas.

Era uma sexta-feira, ainda me lembro, como se fosse hoje.

Quando montei no meu burro para vir-me embora, já o sol estava baixinho; quando cheguei na mata, já estava escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava mais a vista da gente.

Já eu ia entrando na mata, quando me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para adiante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu, que desde criança estou acostumado a varar por esses matos a toda hora do dia ou da noite, hei de agora ter medo? De quê?

Encomendei-me de todo coração a Nossa Senhora da Abadia, tomei um bom trago na guampa que trazia sortida na garupa, joguei uma masca de fumo na boca, e toquei o burro para adiante. Fui andando, mas sempre cismado; todas as histórias que eu tinha ouvido contar da cova de Joaquim Paulista estavam-me representando na ideia; e ainda, por meus pecados, o diabo do burro não sei o que tinha nas tripas que estava a refugar e a passarinhar numa toada. (GUIMARÃES, 2011, p. 85-86)

Percebe-se, em várias marcações da fala de Cirino acima transcrita, o fio que conduz a narrativa e envolve os ouvintes. Luis da Camara Cascudo (1978, p. 27) observa que a literatura oral reúne manifestações populares “mantidas pela tradição”. Do latim, traditio, entregar, passar adiante, comprova que Cirino mantinha viva uma lenda de ossos que dançam e que ele sempre ouvira em sua região. Ainda citando Cascudo, o historiador lembra que as lendas, viajando no tempo, explicam um hábito e ressuscitam o passado (CASCUDO, 1978, p.

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51). Por serem histórias longas, que envolvem a imaginação das pessoas, e permeadas por detalhes de uma região, não podem ser contadas de forma apressada. As lendas requerem envolvimento. Cirino envolve seus ouvintes, exceto a personagem principal, que possui uma postura deliberadamente cética em relação à história dos ossos que dançam.

Muito embora o Romantismo buscasse a valorização dos elementos locais e patrióticos, as elites mantinham distanciamento do povo. De fato, a elite urbana brasileira com frequência enxergava o campo como uma área de riquezas potenciais, porém atrasada intelectualmente, devido à presença de culturas inferiores e à mentalidade conservadora da elite rural (NEEDELL, 1993, p. 23).

O narrador de “A dança dos ossos” mantém distanciamento da história contada em riquezas de detalhes, muito embora não deixe de dar ouvidos e atenção a Cirino, tanto que, após ouvir como o esqueleto dançava às sextas-feiras, ele narra:

O velho barqueiro contava esta tremenda história de modo mais tosco, porém muito mais vivo do que eu acabo de escrevê-lo, e acompanhava a narração de uma gesticulação selvática e expressiva e de sons imitativos que não podem ser representados por sinais escritos. A hora avançada, o silêncio e a solidão daqueles sítios, teatro desses assombrosos acontecimentos, contribuíram também grandemente para torná-los quase visíveis e palpáveis. Os caboclos, de boca aberta, o escutavam com olhos e ouvidos transidos de pavor, e de vez em quando, estremecendo, olhavam em volta pela mata, como que receando ver surgir o temível esqueleto a empolgar e levar pelos ares alguns deles. (GUIMARÃES, 2011, p. 89)

A partir daí percebe-se um belo embate entre o narrador, que tenta dar explicações racionais às possíveis manifestações dos ossos dançantes, e Cirino, que intervém com suas verdades e convicções: “O velho barqueiro ria com a melhor vontade, zombando de minhas explicações.” (GUIMARÃES, 2011, p. 91). O narrador opõe-se dizendo inclusive que ele tivera uma visão, há algum tempo, de dois negros carregando um defunto dentro de uma rede branca. Ao olhar com mais cuidado, ele percebeu que se tratava de uma vaca malhada, com a cabeça e traseiro negros e corpo branco, fazendo-o ter uma ilusão de ótica. Neste momento Cirino vacila entre continuar ou não contando a história, ao passo que o narrador mostra-se curioso, mudando sua postura de cético para interessado.

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Cirino, então, prossegue explicando o motivo de os ossos saírem da cova. Joaquim Paulista enamorara-se por uma moça que era comprometida com um rapaz de nome Timóteo. Fingindo desinteresse e de forma a não suscitar desconfiança, Timóteo aguarda alguns meses até que coloque seu plano em ação. Ele contrata um homem que era uma espécie de encantador de cobras e que é descrito de forma satânica: “Dizem que ele tinha parte com o diabo, e todo mundo tinha medo dele como o próprio capeta.” (GUIMARÃES, 2011, p. 96). Os dois convidam Joaquim Paulista para pescaria. Longe do povoado, Timóteo e o ajudante amarram Joaquim em uma árvore e fazem com que as cobras o piquem, com requintes de crueldade, revelando um dos traços de morbidez presentes no conto:

Aqui o Joaquim põe-se a gritar com quanta força tinha, a ver se alguém, acaso, podia ouvi-lo e acudir-lhe. Mas, sem perder tempo, o Timóteo pega num lenço e atocha-lhe na boca; mais que depressa o outro atira-lhe por cima os dois bichos, que no mesmo instante o picaram por todo o corpo. Imediatamente mataram as duas cobras, antes que fugissem. Não levou muito tempo, o pobre rapaz estrebuchava, dando gemidos de cortar o coração, e deitava sangue pelo nariz, pelos ouvidos e por todo corpo. (GUIMARÃES, 2011, p. 97)

Um morador da mata e benzedeiro acha Joaquim e salva-lhe a vida. Alguns dias após, ainda fraco e cambaleante, tentando descobrir o caminho para casa, Joaquim Paulista é encontrado por Timóteo e seu ajudante, que sacam uma faca, matam Joaquim e enterram o corpo na mata. Animais mexem na cova e vários pedaços do corpo são espalhados pelo caminho: “Vieram depois os porcos, os tatus, e outros bichos, cavoucaram a cova, espatifaram o cadáver, e andaram espalhando os ossos do defunto aí por toda essa mata. Só a cabeça é que ficou na sepultura.” (GUIMARÃES, 2011, p. 100). E a história dos ossos que dançam, contada por Cirino, termina da seguinte forma:

Diz o povo que enquanto não se ajuntar na sepultura até o último ossinho do corpo de Joaquim Paulista, essa cova não se fecha. Se é assim, já se sabe que tem de ficar aberta para sempre. Quem é que há de achar esses ossos que, levados pelas enxurradas, já lá foram talvez rodando por esse Parnaíba abaixo?

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Outros dizem que, enquanto os matadores de Joaquim Paulista estivessem vivos neste mundo, a sua sepultura havia de andar sempre aberta, nunca os seus ossos teriam sossego, e haviam de andar sempre assombrando os viventes cá neste mundo. (GUIMARÃES, 2011, p. 100)

Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira (2009), ironicamente compara a poesia de Bernardo Guimarães a uma fruta saborosa que envolve uma semente amarga. O azedume, para o crítico, seria o viés satânico e perverso presente em algumas obras, “[...] mostrando a marca do meio paulistano, onde firmou a vocação e foi um dos mais desordenados e pitorescos boêmios da tradição acadêmica.” (CANDIDO, 2009, p. 484).

Segundo Candido, esse lado satânico acaba por colocá-lo em um patamar de autor sem requinte (2009, p. 484). Porém, se lançarmos um olhar com mais acuidade, veremos que para além de um autor “sem requinte”, Guimarães inova ao criar personagens aborígenes e com tendências sanguinolentas, que fugiam do estereótipo do nativo heroico e “bom selvagem”, em voga nos primeiros acordes do Romantismo no Brasil.

A marca do meio paulistano a qual Candido se refere, dá-se devido ao fato de que o meio intelectual carioca migra para São Paulo, tendo como base a Faculdade de Direito. Autores brasileiros da época, inspirados pelo byronismo, trazem uma escrita na qual figuram com bastante desenvoltura temas como necrofilia, melancolia, vícios e excessos, orgias, tédio em relação à vida, morte, “[...] numa franca oposição aos preceitos sociais e morais da burguesia. O ceticismo vinha substituir a religiosidade da geração anterior.” (VOLOBUEF, 1999, p. 163).

Aqui podemos assinalar a genialidade da escrita de Guimarães, que preza pelo desejo de nação, bem ao gosto dos românticos da primeira fase, porém trazendo personagens cunhadas da realidade brasileira e algumas desenhadas com tintas sanguinolentas, tendo em vista a influência exercida pelos autores paulistanos que viviam no Brasil, o famoso “Mal do Século”.

A necrofilia, um dos temas presentes na poesia ultrarromântica do “Mal do Século”, aparece no conto de Guimarães através da cena dos animais que reviram a cova de Joaquim Paulista à procura de carnes e restos. Erich Fromm conceitua a necrofilia tanto pelo viés sexual, ou seja, o desejo de manter relações sexuais com um cadáver, quanto pelo viés não sexual: “[...] o desejo de manipular, de se aproximar e de examinar pela visão dos cadáveres e, particularmente, o desejo de desmembrá-los.” (FROMM, 1987, p. 435).

Se durante o ultrarromantismo a necrofilia era retratada de forma idealizada ou sugestiva, em ambiente de penumbra que em muito metaforizava

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um amor sexual inatingível e inalcançável, no sertão ela é colocada de forma rude, cruel, revelando o lado azedo da fruta apetitosa, conforme metaforiza Candido sobre o lado satânico de Bernardo Guimarães.

Muito embora em “A dança dos ossos” o ato de desmembrar tenha sido cometido por animais, ou seja, instintivo, o ato em si nos remete ao escabroso – um retrato real daquele sertão brasileiro, composto por pessoas massacradas, marginalizadas e à mercê dos movimentos econômicos e políticos das cidades que colocavam a grande massa de trabalhadores do campo e do sertão em condições de vida subumanas. Não à toa que alguns críticos empregam termos como “realismo” ou “realista” ao romance romântico brasileiro. Candido, inclusive, aponta pontos de convergência entre o romantismo, realismo e naturalismo:

O eixo do romance oitocentista é pois o respeito inicial pela realidade, manifesto principalmente na verossimilhança que procura imprimir à narrativa. Há nele uma espécie de proporção áurea, um “número de ouro” obtido pelo ajustamento ideal entre a forma literária e o problema humano que ela exprime. No Romantismo, o afastamento dessa posição ideal se faz na direção e em favor da poesia; mais tarde, no Naturalismo, far-se-á na direção da ciência e do jornalismo. Tanto num quanto noutro porém, permanece o esteio da verossimilhança e, mais fundo, a disposição comum de sugerir certo determinismo nos atos e pensamentos do personagem. A insistência dos naturalistas no determinismo inspirado pelas ciências naturais não nos deve fazer esquecer o dos românticos, de inspiração histórica. Com matizes mais ou menos acentuados de fatalismo, uns e outros se aplicavam em mostrar os diferentes modos por que a ação e o sentimento dos homens eram causados pelo meio, pelos antecedentes, a paixão ou o organismo. Daí um realismo dos românticos, que apenas seria desnorteante se não lhe correspondesse um patente romantismo dos naturalistas, para fazer da ficção literária no século XIX, e da brasileira em particular, um conjunto mais coeso do que se poderia supor à primeira vista. (CANDIDO, 1981, p. 111, grifos do autor)

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Por fim o narrador acredita em Cirino, fechando o conto seguindo os preceitos do Romantismo, ou seja, apresentando o Brasil aos brasileiros:

À vista de tão valentes provas, dei pleno crédito a tudo quanto o barqueiro me contou, e espero que a meus leitores acreditarão comigo, piamente, que o velho barqueiro do Paranaíba, uma bela noite, andou pelos ares montado em um burro, com um esqueleto na garupa. (GUIMARÃES, 2011, p. 102)

A título de considerações finais, podemos considerar que o conto ressalta a fase romântica nacionalista, porém apresentando o sertão tal qual ele era à época. Também não se pode deixar de mencionar que o traço mórbido está presente em toda teia que conduz a narrativa de Cirino – narrativa esta que compõe o conto de Bernardo Guimarães: a metalinguagem nos aponta para aquilo que nós, moradores das cidades e metrópoles, não conseguimos acreditar: por trás dos ossos que dançam, da caveira que procura o esqueleto ou dos bichos que comem carne humana, há um Brasil escondido que tem muito a nos dizer.

Referências

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