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INUNDAÇÕES EM BACIAS URBANAS EM GOIÂNIA (GO): intervenção humana e a intensificação de fenômenos naturais Kesia Rodrigues dos Santos 1 - UFG - [email protected] Patrícia de Araújo Romão 2 - UFG - [email protected] Resumo Edificada em sua maior parte na bacia do ribeirão Anicuns e densamente urbanizada, Goiânia pode ser caracterizada por ter apresentado um processo de urbanização acelerado. Nesse processo foram ocupadas áreas de preservação permanente (APP) próximas aos cursos d’água. Esse fato modificou as condições naturais e gerou impactos que são sentidos pela população. Moradores dessas áreas, bem como os de toda planície fluvial, convivem hoje com inundações e alagamentos. A porção sul de Goiânia apresenta grande quantidade de ocorrências de inundações. Destacam-se nessa porção, bacias que apresentam altos níveis de ocupação e ocorrência de eventos de inundação associados principalmente aos córregos Macambira, Cascavel e Botafogo, em diversos bairros. Assim, o objetivo central deste trabalho foi verificar as características do avanço urbano sobre as APP, inclusive em forma de obras de engenharia e sua relação com as inundações, a partir da identificação e análise de uma bacia representativa. Para realização do mesmo foram utilizados recursos de geoprocessamento na delimitação das APP, definidas de acordo com o Código Florestal. Após a delimitação e a identificação das áreas mais afetadas pela inundação, foi escolhida como bacia representativa a do córrego Cascavel, afluente do ribeirão Anicuns, que apresenta grande impacto decorrente da urbanização e das modificações empreendidas no sistema de drenagem urbana, bem como intervenções no leito do rio. Logo, a ocorrência de inundações tem provocado transtornos à população, em consequência da ocupação e das intervenções no meio físico, somadas às características naturais. Palavras-chave: inundações – bacias hidrográficas – ação antrópica; Abstract Built in the basin of the stream Anicuns, densely urbanized, Goiânia showed an accelerated process of urbanization, in that case, were occupied areas of permanent preservation (APP) close to water courses. This modified the natural conditions and generated impacts that are felt by the population. The residents of these areas, and the whole plain of river, now live with floods and flooding. The southern portion of Goiânia has a great number of occurrences of inundations. It is in this area the basins that have high levels of occupancy and occurrence of events of flooding associated with streams Macambira, Cascavel and Botafogo in several districts. So, the central objective of this study was to determine the characteristics of urban progress on APP, including in the form of engineering works and its relation to the floods, whith identification and analysis of representative stream basin. To achieve the same resources were used in the GIS division of APP, defined according to the Forest Code. After the delineation and identification of areas most affected by flooding, was chosen as the representative of the stream basin Cascavel, Anicuns tributary of the creek, which has great impact of urbanization and the changes undertaken in the urban drainage system, as well as interventions in the bed of the river. Therefore, the occurrence of flooding has caused inconvenience to the population as a result of the occupation and intervention in the physical environment, added to natural features. Keywords: inundations – hydrographic basin - human intervention Introdução Goiânia localiza-se na mesorregião Centro Goiano. O crescimento populacional e consequentemente urbano da capital goiana foi acelerado nas últimas décadas, superando e muito a previsão inicial da população que era de 50 mil habitantes, chegando a mais de 1,2 milhões de habitantes nos dias atuais (IBGE, 2007). Esse crescimento proporcionou oportunidades em diversos setores, porém a cidade tem enfrentado problemas relacionados à ocupação indevida e ao crescimento desordenado. Esse não é um problema exclusivo de Goiânia, mas comum às grandes cidades. Como 1 Mestranda do programa de pós-graduação em geografia do Instituto de Estudos sócio-Ambientais da UFG. 2 Professora doutora do programa de pós-graduação em geografia do Instituto de Estudos sócio-Ambientais da UFG.

INUNDAÇÕES EM BACIAS URBANAS EM GOIÂNIA (GO): … · A porção sul de Goiânia apresenta grande quantidade de ocorrências de inundações. Destacam-se nessa porção, bacias

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INUNDAÇÕES EM BACIAS URBANAS EM GOIÂNIA (GO): intervenção humana e a intensificação de fenômenos naturais

Kesia Rodrigues dos Santos1 - UFG - [email protected] Patrícia de Araújo Romão2 - UFG - [email protected]

Resumo

Edificada em sua maior parte na bacia do ribeirão Anicuns e densamente urbanizada, Goiânia pode ser caracterizada por ter apresentado um processo de urbanização acelerado. Nesse processo foram ocupadas áreas de preservação permanente (APP) próximas aos cursos d’água. Esse fato modificou as condições naturais e gerou impactos que são sentidos pela população. Moradores dessas áreas, bem como os de toda planície fluvial, convivem hoje com inundações e alagamentos. A porção sul de Goiânia apresenta grande quantidade de ocorrências de inundações. Destacam-se nessa porção, bacias que apresentam altos níveis de ocupação e ocorrência de eventos de inundação associados principalmente aos córregos Macambira, Cascavel e Botafogo, em diversos bairros. Assim, o objetivo central deste trabalho foi verificar as características do avanço urbano sobre as APP, inclusive em forma de obras de engenharia e sua relação com as inundações, a partir da identificação e análise de uma bacia representativa. Para realização do mesmo foram utilizados recursos de geoprocessamento na delimitação das APP, definidas de acordo com o Código Florestal. Após a delimitação e a identificação das áreas mais afetadas pela inundação, foi escolhida como bacia representativa a do córrego Cascavel, afluente do ribeirão Anicuns, que apresenta grande impacto decorrente da urbanização e das modificações empreendidas no sistema de drenagem urbana, bem como intervenções no leito do rio. Logo, a ocorrência de inundações tem provocado transtornos à população, em consequência da ocupação e das intervenções no meio físico, somadas às características naturais. Palavras-chave: inundações – bacias hidrográficas – ação antrópica;

Abstract

Built in the basin of the stream Anicuns, densely urbanized, Goiânia showed an accelerated process of urbanization, in that case, were occupied areas of permanent preservation (APP) close to water courses. This modified the natural conditions and generated impacts that are felt by the population. The residents of these areas, and the whole plain of river, now live with floods and flooding. The southern portion of Goiânia has a great number of occurrences of inundations. It is in this area the basins that have high levels of occupancy and occurrence of events of flooding associated with streams Macambira, Cascavel and Botafogo in several districts. So, the central objective of this study was to determine the characteristics of urban progress on APP, including in the form of engineering works and its relation to the floods, whith identification and analysis of representative stream basin. To achieve the same resources were used in the GIS division of APP, defined according to the Forest Code. After the delineation and identification of areas most affected by flooding, was chosen as the representative of the stream basin Cascavel, Anicuns tributary of the creek, which has great impact of urbanization and the changes undertaken in the urban drainage system, as well as interventions in the bed of the river. Therefore, the occurrence of flooding has caused inconvenience to the population as a result of the occupation and intervention in the physical environment, added to natural features. Keywords: inundations – hydrographic basin - human intervention

Introdução

Goiânia localiza-se na mesorregião Centro Goiano. O crescimento populacional e

consequentemente urbano da capital goiana foi acelerado nas últimas décadas, superando e muito a

previsão inicial da população que era de 50 mil habitantes, chegando a mais de 1,2 milhões de

habitantes nos dias atuais (IBGE, 2007). Esse crescimento proporcionou oportunidades em diversos

setores, porém a cidade tem enfrentado problemas relacionados à ocupação indevida e ao crescimento

desordenado. Esse não é um problema exclusivo de Goiânia, mas comum às grandes cidades. Como

1 Mestranda do programa de pós-graduação em geografia do Instituto de Estudos sócio-Ambientais da UFG. 2 Professora doutora do programa de pós-graduação em geografia do Instituto de Estudos sócio-Ambientais da UFG.

discute Santos (1996), “a cidade ao se tornar um pólo de atração populacional, se torna uma

centralidade quanto à oferta de serviços, empregos e também quanto à concentração de problemas

sociais, a segregação sócio-espacial é fato, nesse contexto. As áreas periféricas das cidades são

ocupadas por uma população desfavorecida”. Essa segregação em Goiânia levou à ocupação de áreas

impróprias à fixação de moradias, inclusive de áreas de preservação permanente, que devido a vários

fatores se tornaram áreas de riscos ambientais. Essas famílias em geral ficam à margem da organização

sócio-espacial da metrópole. Goiânia, no entanto, apresenta várias áreas com riscos geomorfológicos

relacionados à inundação (dados da defesa civil) também em bairros nobres como é o caso de setores

que se instalaram na bacia do córrego Cascavel, área de estudos do presente trabalho (figuras 1 e 2).

Figura 1 – Localização de Goiânia Figura 2 – Localização da bacia do córrego Cascavel

No contexto do meio físico, o município pode ser a princípio dividido em dois compartimentos,

quanto à geologia, um ao norte do ribeirão Anicuns e outro ao sul. Essa divisão é marcada por uma

falha (cisalhamento de direção geral E-W) na qual se instalou o curso da drenagem. Segundo Moreton

(1994), Goiânia encontra-se inserida em duas distintas unidades litoestruturais: o Complexo

Granulítico Anápolis-Itauçu (do Proterozóico inferior), correspondente a sua porção setentrional, e o

grupo Araxá - Sul de Goiás (do Mesoproterozóico), concernente ao setor meridional. O Complexo

Anápolis-Itauçu corresponde a rochas granulíticas individualizadas principalmente em ortogranulíticas

e paragranulíticas, enquanto o Grupo Araxá constitui xistos e, subordinadamente, quartzitos

(CAMPOS et al, 2003).

As unidades geomorfológicas do município de Goiânia foram compartimentadas por Casseti

(1992), que com base em aspectos morfométricos e de gênese individualizou cinco unidades: Planalto

Dissecado de Goiânia, Chapadões de Goiânia, Planalto Embutido de Goiânia, Terraços e Planícies

Fluviais da bacia do rio Meia Ponte e Fundos de Vale. A área de estudo está em sua maioria

representada pelo Planalto Embutido de Goiânia e subordinadamente pelo compartimento de Fundos

de Vale.

Em relação ao clima da região, as chuvas em Goiânia, como no cerrado, concentram-se de

outubro a março, apresentando principalmente nos meses de dezembro e janeiro chuvas de grande

intensidade (NASCIMENTO, 2002). Essa intensidade na precipitação aumenta o escoamento

superficial, pois dificulta a infiltração. Dentro do período chuvoso a precipitação pode ser ainda

irregular, havendo dias ou horas de chuva intensa, intercalados de períodos curtos de estiagem. Nas

chuvas intensas a infiltração é reduzida o que faz com que a água da chuva chegue aos canais fluviais

mais rapidamente e em maior quantidade, ocasionando assim uma vazão de cheia significativa. Desta

forma, o clima da região pode ser apontado como um dos fatores que favorece a ocorrência de

inundações.

Material e Método

Dentre as perspectivas teóricas, tem se destacado na Geografia, com mais ênfase na Geografia

Física, a abordagem sistêmica, incorporada na segunda metade do século passado, a qual trabalha com

a idéia de sistemas complexos, a partir das trocas de energia e matéria, abandona a visão fragmentada,

centrada no “elemento” e absorve a idéia de interatividade e conjunção (NUNES et al, 2006). Como

uma das abordagens do método sistêmico, utiliza-se neste trabalho o Método de Análise Integrada do

Meio Físico, que utiliza a cartografia ambiental e a análise dos processos, objetivando um

planejamento do uso e ocupação. Esse método por sua estreita relação com a cartografia e

consequentemente com o geoprocessamento possibilita uma análise integradora e de fácil manuseio

dos dados. Segundo Cunha e Mendes (2005), a proposta de integração dos dados físicos norteia-se

pelos pressupostos da Teoria Geral dos Sistemas. A visão sistêmica possibilita estabelecer e analisar as

inter-relações entre os elementos do meio físico e da atividade antrópica, assim como compreender os

vínculos de dependência entre os diversos fatores.

Para alcançar o objetivo deste trabalho, foram utilizados recursos de geoprocessamento

inicialmente na delimitação das áreas de preservação permanente, de acordo com o Código Florestal

(Lei nº 4.771/1965). Após a delimitação e a identificação das áreas mais afetadas pela inundação, foi

escolhida como bacia representativa aquela que apresentou impacto significativo decorrente da

urbanização e das modificações empreendidas no sistema de drenagem urbana. Ao mesmo tempo, a

área escolhida também se destacou pela disponibilidade de imagens de satélite e/ou fotografias aéreas

de alta resolução espacial, do período anterior e posterior às modificações mais enfáticas, o que

possibilitou uma análise das modificações empreendidas na bacia e de suas conseqüências.

Também com recursos de geoprocessamento foram elaborados mapas que tiveram como base

cartográfica, dados planimétricos e altimétricos do Mapa Urbano Básico Digital de Goiânia – MUBDG

versão 20 – disponibilizado pela Companhia de Processamento de Dados de Goiânia - COMDATA.

As imagens utilizadas também disponibilizadas pela COMDATA consistiram em ortofotos digitais

datadas de 1988 e de 2006. Para complementar essas imagens foram também utilizadas imagens atuas

disponíveis no Google Earth, além de imagem de satélite Quickbird de Goiânia de 2002. Os

procedimentos e etapas seguidas foram: pesquisa bibliográfica; interpretação de imagem de satélite;

delimitação das APP; produção de mapas temáticos e análise dos resultados.

Cabe ainda ressaltar que as imagens (fotografias aéreas) utilizadas neste trabalho são de alta

resolução espacial (0.6m em média) e como afirma Antunes e Centeno (2007) todo aumento de

resolução implica em aumento da quantidade de informações que podem ser obtidas das imagens. No

caso da resolução espacial, a quantidade de detalhes possibilita análise mais precisa dos níveis de

ocupação de bacias urbanas. Além das imagens, foram utilizadas outras fontes de informações como

dados da defesa civil e de notícias veiculadas em jornais locais, onde são relatadas conseqüências

como danos materiais, sociais, revolta e medo da população atingida.

Assim, para o desenvolvimento do presente trabalho, os conceitos adotados para os termos

vazão, inundação, tipos de inundação e bacia hidrográfica partiram principalmente de Jorge e Uehara

(1998), Oliveira (2008), Tucci (1999) e Netto (2007) e são descritos de forma resumida a seguir:

Considera-se que vazão é o volume de água escoado na unidade de tempo, em uma

determinada seção do curso d’água. Devido ao comportamento sazonal das chuvas, a vazão de um rio

é muito variável ao longo do ano, mas também varia de ano para ano. As vazões podem ser

classificadas em vazões normais e vazões de cheia. As vazões normais são as que escoam comumente

no curso de água, enquanto as vazões de cheia são as que, ultrapassando um valor limite, excedem a

capacidade normal das seções de escoamento dos cursos d’água, configurando as cheias, podendo

provocar as inundações (JORGE e UEHARA, 1998).

A inundação pode ser entendida como um fenômeno que faz parte da dinâmica fluvial, e que

corresponde ao extravasamento das águas de um curso de água para as áreas marginais, quando a

vazão é superior à capacidade de descarga da calha. Nesses acontecimentos as águas dos cursos d’água

atingem as várzeas, também denominadas planícies de inundação (OLIVEIRA, 2008).

As inundações podem ser classificadas em três tipos, de acordo com Tucci (1999): O primeiro

tipo, que se refere às inundações devido à urbanização, ocorre devido à impermeabilização de

pequenas e médias bacias hidrográficas urbanas. O efeito da urbanização no ciclo das águas se dá pela

remoção da cobertura vegetal original e sua substituição por estruturas impermeáveis, resultando na

redução da infiltração de água no solo (impermeabilização) e diminuição da evapotranspiração. Isso

provoca aumento do escoamento superficial, que se traduz em condições de vazões de cheia dos cursos

d’água urbanos. O segundo, diz respeito às inundações em áreas ribeirinhas, que segundo a

classificação de Tucci (1999) são aquelas que fazem parte da dinâmica natural de uma drenagem.

Neste caso a ocupação não é a causa da inundação e o acidente ocorre porque áreas naturalmente

inundáveis foram ocupadas. Já o terceiro tipo relaciona-se às inundações localizadas, que podem ser

provocadas por: estrangulamento da seção do rio, remanso, erros de execução e projeto de drenagem

de rodovias e avenidas, entre outros. Dentre esses fatores pode-se destacar o estrangulamento da seção

por pontes e bueiros, a construção de aterros no leito do rio, assoreamento da drenagem por sedimentos

e/ou lixo.

Quanto ao conceito de bacia hidrográfica, é possível afirmar que pode ser considerada como

“um sistema hidrogeomorfológico, e pode ser definida como uma área da superfície terrestre que drena

água, sedimentos e materiais dissolvidos para uma saída comum, num determinado ponto do canal

fluvial [..] O limite de uma bacia é conhecido como divisor de águas” (NETTO, 2007, P.97).

Acrescenta-se a esse conceito a consideração de que a bacia hidrográfica deve ser compreendida como

um sistema tridimensional. Portanto, a partir dos conceitos adotados, considera-se que a bacia

hidrográfica transforma-se em unidade ambiental, pois nela podem-se estabelecer as melhores relações

entre causa e efeito, principalmente quando estas relações estão relacionadas aos recursos hídricos

(LANNA, 1995 apud LAMONICA, 2004).

Resultados e Discussões

A bacia do córrego Cascavel abrange 32,9 km2 em área e tem como característica ser uma bacia

urbana densamente ocupada. O padrão climático da região é fortemente sazonal, isto é, apesar da

elevada taxa de precipitação pluvial média anual (cerca de 1.500 mm), como já descrito há forte

concentração das chuvas nos período de novembro a março e no período de recessão das chuvas há

forte déficit. Esse quadro condiciona a recarga natural média apenas no período entre meados de

dezembro e março (CAMPOS et al, 2003).

Essa bacia apresenta altitudes que variam de 690 a 890 m, como pode ser observado no mapa

hipsométrico (figura 3). Comparada às variações altimétricas do norte de Goiânia, essa amplitude é

pequena, aproximadamente 200 m de desnível, levando-se ainda em consideração o comprimento da

vertente, que chega até a ordem de 2000 m, configurando extensas rampas. Além disso, a declividade

baixa é predominante, como discutido a seguir. Esses fatores em condições naturais, anteriores à

urbanização na bacia, favorecem a infiltração em detrimento do escoamento.

As declividades encontradas na área (figura 4) têm a seguinte distribuição: em quase toda a

bacia predominam declividades que variam entre 0 a 3% e 3 a 8%, com destaque para o relevo tabular

próximo à jusante, onde dominam declividades entre 0 e 3%. Nas proximidades dos canais de

drenagem ocorrem declividades mais acentuadas em vertentes convexas que bordejam quase todo o

curso d’água. Nesses locais as declividades variam de 8 a 12%, 12 a 20% 20 a 30% e de 30 a 45%,

sendo as duas últimas predominantes, próximo ao curso d’água. Além dessa faixa de alta declividade

que acompanha o curso do córrego Cascavel e de seus afluentes, há ainda outro ponto de exceção na

área, localizado na porção sudeste da mesma: um dos divisores de água, o morro da Serrinha. Esse

apresenta declividades superiores a 12%, atingindo 30 a 45% em alguns pontos. As baixas

declividades em quase toda a bacia por si só não apresentam contribuição significativa para que o

escoamento seja intensificado em relação ao aumento da velocidade em direção ao canal de drenagem.

Figura 3 – Hipsometria da bacia do córrego Cascavel, com variações de 690 a 890 m de altitude. Fonte (Base de dados): COMDATA (2007).

Figura 4 – Carta Clinográfica da bacia do córrego Cascavel. Fonte (Base de dados): COMDATA (2007).

O mapa hipsométrico analisado juntamente com a carta clinográfica da bacia do córrego

Cascavel demonstram ainda que a área, em geral, possui relevo suave, com vertentes longas de baixa

declividade. A explicação para este relevo suave apóia-se na geologia, já que, como foi citada

anteriormente, a porção sul de Goiânia tem terrenos formados por xistos e esse tipo de rocha oferece

pouca resistência ao intemperismo químico. A geologia também explica a exceção que é o morro da

Serrinha (citado anteriormente). Ele apresenta características peculiares, como por exemplo, ter rochas

diferenciadas do restante da bacia. Enquanto quase toda a porção sul da cidade é formada por xistos, o

morro em questão é formado por quartzito. O fato dessa litologia ser resistente ao intemperismo

químico faz com que esse ponto tenha destaque altimétrico na bacia. O solo também se diferencia da

grande maioria da bacia, que tem predominância de Latossolo, solos bastante permeáveis, enquanto

nessa área o solo foi classificado como Neossolo Litólico (CAMPOS et al, 2003).

Por meio da análise das características do meio físico da bacia, pode-se observar que não está

na explicação morfopedológica a ocorrência de inundações nessa bacia. A baixa declividade, a

amplitude maior que em outras áreas de grande ocorrência de inundação em Goiânia, a grande

permeabilidade do solo (quando não impermeabilizado) e as vertentes em geral longas (com baixa

amplitude) contribuem para que a infiltração seja preponderante, dificultando assim o escoamento de

grande volume de água para o canal de drenagem. Porém a questão climática contribui para que

ocorram vazões de pico devido à concentração pluviométrica. Sabendo disso passa-se para a

urbanização o viés de análise das inundações nessa bacia.

Tendo em vista a não disponibilidade de dados socioeconômicos locais, o crescimento

populacional é aqui discutido no âmbito do município de Goiânia (tabela 1). A partir da década de

1970 o crescimento populacional no município é bastante acentuado. Percebe-se que já nessa década a

população já tinha ultrapassado 700% da previsão inicial de 50 mil habitantes. Porém nas décadas

seguintes esse crescimento foi ainda mais vertiginoso, ultrapassando um milhão de habitantes no ano

de 2000.

Tabela 1- Crescimento Populacional de Goiânia 1970-2007

Ano Município

1970 1980 1991 2000 2007*

Goiânia - GO 380.773 717.519 922.222 1.093.007 1.244.645 * estimativa

FONTE: IBGE (2009).

Esse crescimento populacional pode ser melhor visualizado no gráfico a seguir (gráfico 1), que

apresenta, além do número de habitantes a partir da década de 1970 (IBGE), a previsão inicial de

população feita na ocasião do planejamento e fundação da nova capital goiana. Vê-se que Goiânia não

foi diferente de outras cidades planejadas, que de igual forma costumam superar as expectativas

iniciais. Com o crescimento populacional, aumenta também a área urbana do município e

consequentemente o aumento dos equipamentos urbanos, bem como dos níveis de impermeabilização

do terreno. Dentro desse processo de urbanização foram ocupadas planícies de inundação, inclusive na

forma de habitações subnormais. Dessa forma, muitas dessas famílias acabam morando em áreas que

apresentam riscos relacionados à dinâmica fluvial.

Gráfico 1 – Crescimento Populacional de Goiânia 1970 - 2007

0

200.000

400.000

600.000

800.000

1.000.000

1.200.000

1.400.000

previsão

inicial

1970 1980 1991 2000 2007

População

Fonte: Elaborado a partir de dados disponibilizados pelo IBGE

Para relacionar esses dados à ocupação dessa bacia, é preciso entender quais são as

características de ocupação da bacia do córrego Cascavel. Para tanto serão identificadas a seguir

algumas características dessa bacia, bem como destacados os principais bairros nela instalados.

A bacia do córrego Cascavel desde as nascentes até a confluência com o ribeirão Anicuns

encontra-se, como já destacado, em área densamente ocupada. Soma-se a isso o fato da cabeceira da

bacia ficar no limite municipal com Aparecida de Goiânia, limite esse caracterizado como área de

conurbação entre os dois municípios. Bairros antigos e também outros ocupados por uma população de

maior poder aquisitivo estão localizados nessa bacia, dentre eles Campinas, a partir do qual foi

construída a capital goiana.

A comparação de imagens de satélite de duas datas, 1988 e 2006 (figuras 5 e 6), possibilita

demonstrar que a bacia do córrego Cascavel já estava ocupada na década de 80, porém a ocupação se

intensificou nas últimas décadas como mostra a imagem de 2006. As diferenças são visualizadas

principalmente na alta bacia, onde em 1988 há grande quantidade de lotes desocupados, com muitas

ruas sem pavimentação. Isso aparece com menor intensidade em 2006, demonstrando assim que os

níveis de impermeabilização da bacia cresceram significativamente em quase duas décadas. A

verticalização também é um fenômeno que pode ser percebido a partir da fotografia de 2006. Esse fato

também denota a valorização e o aumento da ocupação do solo urbano nessa bacia.

Figura 5 – Contorno da bacia do Córrego Cascavel com sobreposição da fotografia aérea de 1988 no mapa de sombras do relevo. Fonte (Base de dados): COMDATA (2007).

Figura 6 - Contorno da bacia do Córrego Cascavel com sobreposição da fotografia aérea de 2006 no mapa de sombras do relevo. Fonte (Base de dados): COMDATA (2007).

Para a construção de vias que desobstruíssem o trânsito da capital os córregos foram

canalizados e suas margens foram transformadas em marginais, como na foto detalhe da marginal

Cascavel (figuras 7 e 8) onde o córrego aparece canalizado. Segundo observação a partir do Google

Earth (2009), o córrego Cascavel possui hoje 2,54 km de leito canalizado. A partir de observação do

fotomosaico de fotografias aéreas, até 2006 eram 1,9 km, tomando-se essa medida a partir da

confluência com o córrego Vaca Brava. Destaca-se o fato de o último registro de inundação no córrego

Cascavel (dados de jornais locais) coincidir com o início da canalização. Como citado anteriormente, a

velocidade das águas dos rios também pode influenciar na ocorrência de inundações. Essa velocidade

depende basicamente da declividade, do volume das águas, da forma da seção e da rugosidade do

relevo (JORGE e UEHARA, 1998). Como o curso d’água em questão sofreu alterações, a sua

dinâmica também se alterou, como quando o canal do rio foi canalizado e retificado (figuras 9 e 10).

Isso contribuiu para o aumento da velocidade do escoamento e também de sua vazão de pico à jusante.

Figura 7 - Canal de drenagem com caracteristicas naturais em 1988. Fonte: Ortofoto digital (1988)

Figura 8 – Canalização do córrego Cascavel em imagem de 2006. Fonte: Ortofoto digital (2006)

Segundo dados do IBGE (2000), Goiânia no que diz respeito a serviço de drenagem urbana tem

um ponto de lançamento em curso d’água permanente e um ponto em curso d’água intermitente,

porém não há nenhum reservatório de acumulação ou detenção para essa água drenada de todo o

município. Toda a água de drenagem tem o mesmo destino, os cursos d’água, tanto a água de

escoamento superficial quanto a que é captada pela rede de drenagem urbana. Como já destacado, com

o aumento da urbanização, há também um aumento da impermeabilização e consequentemente do

escoamento superficial. Esse escoamento somado ao das redes de drenagem contribui para a

ocorrência de vazões de pico cada vez maiores e mais rápidas.

Logo, contribuíram para o aumento da vazão de pico no córrego Cascavel: a urbanização de

toda a bacia, a retirada e/ou substituição da cobertura vegetal, inclusive das áreas de APP (figura 11), o

lançamento da água captada pela rede de drenagem urbana diretamente no canal de drenagem e o

estrangulamento da drenagem por aterros e obras de engenharia.

Figura 9 - Canal de drenagem do córrego cascavel em 1988 apresenta sinuosidades naturais. Fonte: Ortofoto digital (1988), COMDATA (2000).

Figura 10 – Em 2006 o canal aparece retificado e canalizado. Fonte: Ortofoto digital (2006), COMDATA (2007).

A delimitação das áreas de preservação permanente as margens dos cursos d’água de acordo

com o Código Florestal, demonstrou que as principais modificações empreendidas nessas foram a

ocupação residencial (figura 13) e localmente industrial; a retirada da cobertura vegetal e a substituição

por estruturas impermeáveis com destaque para o asfalto (que acompanham o sentido da declividade

vindo dos bairros adjacentes); a construção de sistema viário acompanhando o curso d’água na forma

de marginal; e a construção de obras de engenharia que não só estrangularam a drenagem na forma de

canalização como também modificaram sua sinuosidade natural representada pelos meandros na fora

de retificação do canal (figuras 7, 8, 9 e 10). Além dessas modificações mais significativas, foram

realizadas ainda obras de menor porte, como a construção de pontes e bueiros para interligar bairros,

aterros pontuais para implantação de construções e canalizações de esgotos residenciais despejados in

natura no leito do córrego.

O assoreamento da drenagem também pode ser percebido na análise das imagens de satélite e

fotografias aéreas. Esse ocorre devido a vários fatores com destaque para as erosões fluviais que

aparecem nas margens não canalizadas da alta bacia. Também ocorre com freqüência nessa porção da

bacia o despejo de entulhos e restos de construções às margens do córrego (figura 12), além de todo o

lixo e detritos trazidos pelas águas do escoamento superficial.

Apenas alguns pontos das áreas de preservação permanente permanecem com modificações

antrópicas menos agressivas, sendo eles duas das nascentes do córrego Cascavel e alguns resquícios de

vegetação natural que aparecem também próximos a estas nascentes. As demais nascentes sofreram

modificações no que diz respeito a represamento e a retirada da cobertura vegetal natural.

Figura 11 – Carta-imagem da bacia do córrego Cascavel com a delimitação das APP. Fonte: Imagem Quick Bird (2002).

Figura 12 – despejo de entulhos na margem do córrego, em área em que a cobertura natural foi modificada. Fonte: Google Earth (2008).

Figura 13 – Ocupação das margens por usos residenciais. Fonte: Google Earth (2008).

Após a análise das caracteristicas naturais e da ocupação desta bacia, é possível afirmar que a

forte sazonalidade climática da região resulta na necessidade da gestão adequada do sistema hídrico.

Iniciativas como a recuperação das várzeas, desenvolvimento de projetos de recarga artificial,

tratamento e condução adequados das águas de chuva com instalação de rede de águas pluviais e

instalação de sistemas de dissipação de energia, podem auxiliar na mitigação de impactos no que se

refere às inundações. Nesse sentido, também é fundamental um programa eficiente de limpeza urbana

para que os sistemas de águas pluviais instalados possibilitem o escoamento do excedente hídrico

gerado pela impermeabilização da área urbana (CAMPOS et al, 2003). No caso da bacia do córrego

Cascavel destaca-se, dentre outros, os fatores com maior contribuição para a ocorrência de inundações,

como o excesso de impermeabilização da bacia, o desmatamento, a ocupação das áreas de preservação

permanente e a modificação das condições naturais da calha do curso d’água. Dos bairros que

margeiam o córrego Cascavel, o Jardim América e parte do setor Bueno são aqueles que apresentam

maiores problemas, no primeiro, famílias que moram nas margens do córrego estão em área de alto

risco (Defesa Civil), o segundo apresenta problemas relacionados à travessia de pontes e invasão das

ruas pelas águas.

Conclusões

A bacia do córrego Cascavel apresentou nos últimos anos um intenso processo de adensamento

da urbanização, esse processo levou a implantação de equipamentos urbanos característicos de áreas

fortemente urbanizadas, essa ocupação provocou conseqüências que são sentidas hoje pela população.

No que se refere ao meio físico essa bacia tem condições excelentes para a ocupação, já que

apresenta declividades e valores de amplitude do relevo baixos, o que propicia condições ideais para

instalação de cidades. Porém a ocupação intensa e sem respeito a leis de proteção ambiental causaram

a intensificação de fenômenos naturais como é o caso das inundações.

A comparação entre as condições físicas e de uso e ocupação entre 1989 e de 2006, juntamente

com análise da rede de drenagem natural e artificial desses períodos, demonstraram que os canais de

drenagem do córrego Cascavel foram amplamente modificados, por meio de retificação, canalização e

construção de marginais. Como conseqüência da ocupação e das intervenções no meio físico, somadas

às características naturais, as inundações provocaram e provocam transtornos à população de Goiânia.

O homem não respeitou os limites da natureza e a natureza não aceita os limites impostos pelo

homem, cabe então aos seres humanos reverem seus conceitos de dominação do meio físico e

passarem a compreender que limites devem ser respeitados.

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