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1 Invasão de domicílio Revista Exame - Marketing Edição 746 - 8/8/2001 Invasão de domicílio Sua empresa está cansada de esbarrar nos equívocos das pesquisas de mercado? Chame os antropólogos Por Fábio Peixoto Tempos atrás, o pessoal de marketing da subsidiária brasileira da Unilever interessou-se em entender melhor como os consumidores manuseiam seus produtos de higiene. Confiou, então, a uma pesquisadora a missão de visitar uma residência de classe média na cidade de São Paulo. A idéia era observar cada gesto da dona da casa. Durante o banho, a pesquisadora flagrou um problema. A mulher segurava numa mão a embalagem do xampu e, na outra, a tampa. "E agora? Como é que eu vou fazer para passar xampu na cabeça?", perguntou ela. Foi essa singela observação que levou a Unilever a adotar no Brasil as embalagens flip-top (aquelas em que a tampa fica embutida) para seus xampus. Foi-se o tempo em que os marqueteiros se satisfaziam em buscar respostas dos consumidores por meio de entrevistas ou questionários. A ciência da pesquisa já mostrou quão dúbias podem ser as declarações verbais e quão erráticas as interpretações que delas decorrem. Por isso, cada vez mais empresas recorrem a uma técnica surgida a partir dos estudos do comportamento de tribos e comunidades primitivas: a etnografia, o ramo da antropologia que se dedica à pesquisa de campo. Ainda pouco utilizado no Brasil, o marketing etnográfico vem seduzindo um número crescente de empresas nos Estados Unidos e na Europa. Veja alguns exemplos: • No segundo semestre deste ano, a Procter & Gamble, maior fabricante americana de produtos de higiene, planeja colocar pesquisadores para acompanhar a rotina diária em 80 lares ao redor do mundo. Filmando e gravando cenas familiares, a empresa espera reunir informações suficientes para criar produtos que resolvam problemas que nem mesmo o consumidor imagina ter. • Antes de colocar no mercado o organizador pessoal Audrey (um aparelho com agenda eletrônica e acesso à Internet, lançado nos Estados Unidos em outubro de 2000), os executivos da 3Com quiseram detectar as necessidades dos consumidores. Para tanto, monitoraram diariamente, durante meses, o modo como os moradores de 64 residências americanas utilizavam seus computadores, Palms e agendas de papel. • No ano passado, a rede americana de hotéis Best Western pagou a 25 casais, com mais de 55 anos, para que gravassem suas viagens de veraneio. As fitas revelaram que os consumidores mais maduros insistiam em pagar menos pelos quartos. Mas só faziam isso pelo prazer da pechincha -

Invasão de Domicílio - Revista Exame

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antropologia do consumo

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  • 1 Invaso de domiclio

    Revista Exame - Marketing Edio 746 - 8/8/2001

    Invaso de domiclio

    Sua empresa est cansada de esbarrar nos equvocos das pesquisas de mercado? Chame os

    antroplogos

    Por Fbio Peixoto

    Tempos atrs, o pessoal de marketing da subsidiria brasileira da Unilever interessou-se em

    entender melhor como os consumidores manuseiam seus produtos de higiene. Confiou, ento, a

    uma pesquisadora a misso de visitar uma residncia de classe mdia na cidade de So Paulo. A

    idia era observar cada gesto da dona da casa. Durante o banho, a pesquisadora flagrou um

    problema. A mulher segurava numa mo a embalagem do xampu e, na outra, a tampa. "E agora?

    Como que eu vou fazer para passar xampu na cabea?", perguntou ela. Foi essa singela

    observao que levou a Unilever a adotar no Brasil as embalagens flip-top (aquelas em que a

    tampa fica embutida) para seus xampus.

    Foi-se o tempo em que os marqueteiros se satisfaziam em buscar respostas dos consumidores por

    meio de entrevistas ou questionrios. A cincia da pesquisa j mostrou quo dbias podem ser as

    declaraes verbais e quo errticas as interpretaes que delas decorrem. Por isso, cada vez

    mais empresas recorrem a uma tcnica surgida a partir dos estudos do comportamento de tribos e

    comunidades primitivas: a etnografia, o ramo da antropologia que se dedica pesquisa de

    campo. Ainda pouco utilizado no Brasil, o marketing etnogrfico vem seduzindo um nmero

    crescente de empresas nos Estados Unidos e na Europa. Veja alguns exemplos:

    No segundo semestre deste ano, a Procter & Gamble, maior fabricante americana de produtos de higiene, planeja colocar pesquisadores para acompanhar a rotina diria em 80 lares ao redor

    do mundo. Filmando e gravando cenas familiares, a empresa espera reunir informaes

    suficientes para criar produtos que resolvam problemas que nem mesmo o consumidor imagina

    ter.

    Antes de colocar no mercado o organizador pessoal Audrey (um aparelho com agenda eletrnica e acesso Internet, lanado nos Estados Unidos em outubro de 2000), os executivos

    da 3Com quiseram detectar as necessidades dos consumidores. Para tanto, monitoraram

    diariamente, durante meses, o modo como os moradores de 64 residncias americanas utilizavam

    seus computadores, Palms e agendas de papel.

    No ano passado, a rede americana de hotis Best Western pagou a 25 casais, com mais de 55 anos, para que gravassem suas viagens de veraneio. As fitas revelaram que os consumidores mais

    maduros insistiam em pagar menos pelos quartos. Mas s faziam isso pelo prazer da pechincha -

  • 2 o preo no era importante na hora de decidir onde se hospedar. Resultado: a Best Western, que

    cogitava aumentar o seu desconto para clientes dessa faixa etria, resolveu mant-lo na faixa de

    10%.

    O manual do marketing etnogrfico posto em prtica pelas corporaes baseia-se no pressuposto

    de que, para conhecer de verdade um consumidor, preciso conviver com ele e prestar ateno

    em sua rotina - onde mora, como se alimenta, que roupas usa, como se comporta no trabalho.

    "Temos oportunidade de pescar coisas que jamais seriam notadas em pesquisas convencionais",

    afirma Dulce Perdigo, diretora de pesquisas da Unilever para a Amrica Latina. A empresa

    segue seus consumidores a locais como praias e discotecas e, atualmente, tem cerca de 500

    pesquisas sendo desenvolvidas para 12 categorias de produtos. Tal estratgia tem um s objetivo:

    detectar tendncias de mercado antes da concorrncia e lanar produtos certeiros com maior

    rapidez. Num recente artigo, a revista americana Business Week destacou o crescente uso da

    etnografia no marketing. De acordo com o artigo, medida que os produtos amadurecem e as

    diferenas de qualidade diminuem, os profissionais de vendas ficam ansiosos para explorar

    dimenses emocionais que lhes possam dar alguma vantagem.

    A matriz londrina da Unilever pratica o marketing etnogrfico desde os anos 80. Suas foras-

    tarefa de antroplogos j chegaram a acompanhar 200 famlias por um perodo de dois anos. As

    vantagens desse tipo de estudo so incontveis. A convivncia com os consumidores em seu

    hbitat os torna mais predispostos a falar e a agir naturalmente. Tambm evita os conhecidos

    desvios dos levantamentos de mercado, como as respostas mentirosas aos questionrios e as

    inibies e distores dos grupos de discusso, nos quais as opinies do lder costumam exercer

    influncia decisiva sobre os demais. Alm disso, o convvio intenso possibilita que se descubram

    certos hbitos dos quais, muitas vezes, nem os prprios consumidores tm conscincia - e que

    por isso mesmo no so facilmente detectados numa entrevista. "Tanto quanto conversar com o

    consumidor, fundamental observ-lo", diz a antroploga carioca Lvia Barbosa, professora de

    cultura e consumo da Universidade Federal Fluminense. Para entender os princpios lgicos que

    orientam o consumo, diz Lvia, necessrio decifrar o que significam suas palavras e gestos.

    Foi usando seu olhar treinado que Lvia chegou a uma explicao convincente para o baixo

    consumo de sorvete no Brasil - cerca de meio litro por ano por habitante. Esse nmero se torna

    mais estranho se considerarmos que, num pas frio como a Finlndia, o consumo chega perto de

    9 litros anuais per capita. Segundo Lvia, essa disparidade uma questo de cultura: "No Brasil,

    servir alimentos industrializados na sobremesa indica falta de ateno da dona de casa", diz.

    O empresrio paulista Maurcio Catelli um dos consumidores que se submeteram observao

    dos etngrafos. No ano passado, Catelli concordou em participar de um estudo coordenado pelo

    consultor e socilogo Jaime Troiano. Uma pesquisadora foi vrias vezes sua casa, onde

    conversaram por horas a fio. "Na poca eu estava me separando e ela at serviu de psicloga",

    diz Catelli. O tema da pesquisa, TV por assinatura, s foi abordado depois que a entrevistadora

    teve uma boa noo sobre quem Catelli era.

    A casa de Catelli um dos 140 lares latino-americanos visitados regularmente desde 1997 e que

    servem como base para uma pesquisa encomendada pela DirecTV. O objetivo da empresa, com

  • 3 mais de 1 milho de assinantes na regio, saber quais os benefcios esperados pelos assinantes

    e como eles reagem a mudanas na programao. "A tendncia mundial personalizar o

    servio", diz Sandro Mesquita, diretor da DirecTV para a Amrica Latina. "Queremos nos

    comunicar com os clientes do jeito que eles esperam."

    H algumas semanas, EXAME acompanhou uma pesquisa etnogrfica, encomendada por uma

    grife de roupas femininas e realizada em uma residncia paulistana. Antes de abrir seu armrio e

    falar detalhadamente sobre vrias peas de roupa - por que as usava, o que gostava nelas -, a

    consumidora conversou longamente sobre questes familiares. " o caminho inverso da maioria

    das pesquisas", afirma Troiano. "Primeiro conhecemos a fundo uma pessoa, para depois saber

    quem ela como consumidora."

    Os estudos etnogrficos so mais demorados do que as formas tradicionais de pesquisa de

    mercado e, em geral, custam o dobro. Mesmo assim, esto fazendo a diferena para as anlises

    de mercado de algumas empresas, sobretudo para aquelas que investem caminhes de tempo e de

    dinheiro no desenvolvimento e lanamento de seus produtos. "Os conhecimentos acumulados da

    antropologia diminuem os riscos", diz a americana Susan Squires, diretora da GVO, consultoria

    de marketing sediada em Palo Alto, na Califrnia.

    Empresas com atuao global contam com o apoio da etnografia para saber como um

    determinado produto seria recebido em pases diferentes. A Intel, maior fabricante mundial de

    chips, designou uma equipe para estudar como as pessoas se relacionam com a tecnologia ao

    redor do mundo. Recentemente, um fabricante de detergentes encomendou consultoria

    Qualidata Research, de Nova York, uma pesquisa sobre os hbitos dos consumidores turcos. "Na

    cultura islmica, as roupas masculinas so lavadas separadamente das femininas", diz o

    americano Hy Mariampolski, presidente da Qualidata. " o tipo de informao que influi no

    posicionamento de mercado e nas campanhas publicitrias."

    Mariampolski comeou a usar o marketing etnogrfico em 1981, poca em que era muito difcil

    encontrar clientes dispostos a investir nessa tcnica. Hoje, metade das pesquisas da Qualidata

    segue o padro. Como normal na etnografia, as pesquisas so fotografadas e filmadas - mesmo

    aquelas que envolvem as situaes, digamos, mais constrangedoras. A pedido da Moen,

    fabricante americana de chuveiros e torneiras, a equipe de Mariampolski desenvolveu uma

    cmera especial, prova d'gua, capaz de ser acoplada a qualquer chuveiro. Entre uma conversa

    e outra, as pessoas eram filmadas durante o banho, enquanto manuseavam as torneiras.

    Mariampolski afirma que no se empolga com o lado voyeur do seu trabalho. "Assistir a essas

    fitas muito chato", diz. "Todo mundo pensa que estamos vendo as mulheres do S.O.S Malibu,

    mas o pessoal se parece mais com os apresentadores do noticirio."

    Mas por que consumidores se sujeitariam a aceitar tamanha invaso de privacidade?

    Mariampolski diz que eles reconhecem a seriedade do trabalho e sentem que podem ajudar a

    criar produtos melhores. Bem, h tambm o fato de que a Qualidata paga "quantias razoveis"

    aos voluntrios. No Brasil, essa prtica no comum. "Dar dinheiro pode influenciar os

    resultados da pesquisa", afirma Muna Odeh, a sociloga que recentemente se envolveu com um

    estudo internacional da Unilever sobre o comportamento de jovens de mercados emergentes,

  • 4 como o Brasil. Os voluntrios ganharam cursos de computao e ingls - mas no tinham

    conhecimento dos prmios quando aceitaram participar do estudo.

    Muna acompanhou, durante um ano e meio, 18 jovens de baixa renda na cidade de So Carlos,

    em So Paulo. Ela percebeu que, para esses adolescentes, a vaidade um trao relevante. " uma

    espcie de sinal de que so aceitveis e no representam uma ameaa para a sociedade", diz

    Muna. No convvio com suas famlias, ela observou, por exemplo, que o sabo um produto

    fundamental para as mes. "Elas fazem questo de que as camisetas usadas por seus filhos para ir

    escola estejam sempre branqussimas, para que ningum os chame de 'favelados'."

    Outro ponto que chamou a ateno de Muna: as adaptaes caseiras de produtos de higiene e

    limpeza, tambm comuns nos lares americanos. Segundo Mariampolski, essas misturas devem

    ser encaradas como oportunidades de novos negcios. "Para limpar o cho, muita gente adiciona

    gua sanitria ao sabo", diz ele. "Isso indica a busca de benefcios que os produtos existentes

    no oferecem."

    A prtica etnogrfica exige mais do que pacincia para observar pessoas. necessrio que se

    tenha estudado mtodos e tcnicas da antropologia. "Uma pesquisa desse tipo feita por pessoas

    sem formao adequada acrescenta pouco mais do que uma pesquisa comum", diz a antroploga

    Lvia. Outro ponto decisivo antes de se encomendar um estudo etnogrfico avaliar se ele

    realmente necessrio. Para assuntos pontuais, como a reao do pblico a uma determinada

    campanha publicitria, mais compensador usar os mtodos tradicionais. Segundo os

    especialistas, o marketing etnogrfico indicado para planejamento estratgico. "Us-lo para

    tentar descobrir coisas muito especficas desperdcio de dinheiro", diz Lvia.

    Olho mgico

    O que antroplogos descobriram sobre o comportamento dos consumidores em relao a

    alguns produtos e servios

    SORVETES

    Apesar do clima quente, o consumo de sorvete no Brasil muito inferior ao dos pases europeus.

    Uma das razes disso que, entre as consumidoras brasileiras, ainda prevalece a mentalidade de

    que as sobremesas devem ser feitas sempre em casa.

    ALIMENTOS MATINAIS

    No Brasil, a venda de alimentos para o caf da manh vem aumentando muito nos ltimos anos.

    S que a maioria desses produtos matinal apenas na embalagem: em geral so consumidos em

    lanches ao longo do dia, e no apenas no caf

    CARROS

    O conceito de luxo dos japoneses est ligado simplicidade. J para os americanos tem tudo a

    ver com opulncia. No incio dos anos 90, a Nissan redesenhou o modelo Infiniti levando isso

    em considerao

  • 5 HOTIS

    No ano passado, a rede americana de hotis Best Western decidiu no aumentar o desconto de

    10% para pessoas com mais de 55 anos. Pesquisadores descobriram que esses hspedes no

    precisavam pagar menos -- gostavam mesmo era do ato de pechinchar

    INSETICIDAS

    As iscas mata-baratas, feitas para que os insetos saiam vivos e contaminem seus ninhos com

    substncias venenosas, acabam no funcionando por causa dos consumidores. Muitas pessoas

    no resistem e, ao ver as baratas sar da armadilha, as matam com spray

    XAMPU

    A subsidiria brasileira da Unilever resolveu adotar embalagens flip-top depois que uma

    consumidora revelou, durante o banho, que no conseguia passar xampu na cabea. Estava com

    as duas mos ocupadas: numa segurava a embalagem do produto. Na outra, a tampa.