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10 18 de abril a 9 de maio de 2007 Marcus V. F. Lacerda Na madrugada do dia 28 de março, entre 3h e 4h, três aparta- mentos do Bloco B da Casa do Es- tudante Universitário da UnB (CEU) têm suas portas incendia- das. Os autores encharcaram toa- lhas com combustível rodeadas de tijolos para que o fogo não se alas- trasse. Os apartamentos são todos ocupados por estudantes naturais da Guiné-Bissau, país de língua portuguesa localizado na costa oeste da África. As vítimas extinguem o fogo com o único extintor que não ha- via sido esvaziado. Entre 8h e 9h, a Universidade aciona a Polícia Fe- deral. Ao meio-dia, os agentes e peritos chegam ao local em que recolhem evidências, ouvem víti- mas e intimam as primeiras pes- soas envolvidas no inquérito. O incêndio na CEU, conjunto de dois prédios de quatro andares próximo ao Centro Olímpico da UnB, mobiliza toda a universida- de. Às 8h, alunos africanos e parte da administração reúnem-se na sala do Decanato de Assuntos Co- munitários (DAC). O clima é tenso, os alunos acusam o DAC e a Diretoria de Desenvolvimento Social de negligência e exigem a presença do reitor. Timothy Mulholand está no Auditório Dois Can- dangos abrindo um evento, já ci- ente do ocorrido. Mais tarde, uma nova reunião na Vice-Reitoria com a presença dos mesmos integrantes da pri- meira. Participam ainda a Decana de Extensão Leila Chalub, repre- sentantes da Secretária de Promo- ção da Igualdade Racial (Seppir) e da Secretária de Direitos Huma- nos da Presidência da República, o vice-reitor Edgar Mamiya, alguns professores e um grupo maior de estudantes. O gabinete da vice-rei- toria chama uma psicóloga do Ser- viço de Orientação ao Estudante para auxiliar um aluno que neces- sitava de ajuda. Os primeiros relatos chegam ao Minhocão, prédio principal da UnB, que concentra o maior nú- mero de cursos. No centro acadê- mico de Sociologia (Caso), alunos organizam uma manifestação em apoio às vítimas. Por volta de meio-dia, estudantes de diversos cursos reúnem-se na entrada infe- rior do Restaurante Universitário. Confeccionando cartazes, cha- mam os outros para o ato que se i- niciaria às 14h na frente do Caso. No interior do prédio, uma coinci- dente apresentação de Zouk (rit- mo africano dançante) ajuda a chamar a atenção. No Salão de Atos, o reitor se reú- ne com os mesmos integrantes da reunião da vice-reitoria e mais es- tudantes ainda. O reitor comunica aos presentes as primeiras medi- das tomadas. Logo depois, enquanto almoça, encontra- se a portas fecha- das com toda a administração pa- ra tratar sobre o incidente na Casa do Estudante. Inicia-se a concentração em frente ao Caso. Universitários acu- sam a reitoria de descaso e o Dire- tório Central dos Estudantes de o- missão. "Tivemos uma reunião ao meio-dia. Já sabíamos do incên- dio, mas o assunto não estava em pauta", justifica Cláudia Maya, membro do DCE. Depois de muita discussão e al- guns pronunciamentos de estu- dantes africanos, o grupo de cerca de 300 pessoas dirige-se ao Audi- tório Dois Candangos, onde su- punham encontrar com Timothy Mulholand. Enquanto isso, o rei- tor está na reitoria participando de uma reunião da Associação Nacional dos Dirigentes das Ins- tituições Federais de Ensino Superior Brasileiras. Ao ver o contingente da mani- festação, um funcionário do ceri- monial ordena que se recolham as xícaras e o café. Não dá tempo. Os estudantes preen- chem o hall com tambores e carta- zes chamando pelo reitor. Dentro do auditório, reitores, pró-reitores e representantes de diversas uni- versidades federais assistiam ao seminário curiosos quanto ao ba- rulho de fora. Quando os estudantes invadem o auditório, os presentes ficam confusos. A mesa é tomada pelos manifestantes e o microfone é da- do aos alunos africanos. Os estu- dantes acusam o reitor fugir do e- vento. Na Faculdade de Tecno- logia, Mulholand dava uma coleti- va à imprensa. Sem tê-lo encon- trado, a manifestação se dirige pa- ra o Minhocão, onde ganha mais corpo. Os manifestantes saem deixando as xícaras intactas na mesa. Segundo o Gabinete do Rei- tor não foi relatado nenhum ato de vandalismo. Terminada a coletiva, o reitor sai em um carro da segurança do campus. No caminho, o motorista pergunta pela sua segurança. "Eu não quero segurança! Se alguém vier brigar comigo eu só espero que paguem pelos meus dentes", diz o Reitor no humor de quem, em queda livre, passa pelo segun- do andar e pensa que até ali tudo corre bem. Timothy Mulholand recebe um pequeno grupo de jornalistas em uma sala da Assessoria de Comu- nicação Social para uma rápida entrevista antes do seu encontro com os estudantes. A manifesta- ção começava a aparecer no gra- mado entre o Mi- nhocão e o prédio da reitoria. À medi- da que os estudan- tes aproximam-se, os vidros da sala vibram e o reitor tamborila na mesa na mesma ca- dência que a dos manifestantes enquanto é entrevistado. O reitor entra no auditório da reitoria, os estudantes se agitam. "Racista! Racista!", repetem os manifestantes. Timothy Mulho- land permanece em pé junto a to- dos os membros da administra- ção. Inicialmente, a voz é dada aos estudantes. Os manifestantes, mais uma vez, acusam a adminis- tração da UnB de negligência, a reitoria de racismo e pressiona o reitor para que peça desculpas aos estudantes africanos. O reitor se nega a pedir descul- pas. "A UnB é racista porque o Brasil é racista!", afirma Timothy. A multidão esbraveja. O reitor marca a memória notória do dia instituindo 28 de março como o Dia de Luta contra o Racismo na Universidade de Brasília. V ocê acorda com o nariz ardendo. Cheiro de madeira queimada. O melhor a fazer é molhar o lençol e cobrir o rosto. Mas a pia mais próxima fica no andar de baixo, de onde vem a fumaça. Confusão. Neste momento, perguntas sobre procedimentos em incêndios reverberam em sua cabeça. Duas perguntas-chaves só serão feitas quando você já estiver a salvo: quem e por quê? “A UnB é racista porque o Brasil é racista!” Timothy Mulholand Já sabíamos do incêndio, mas o assunto não estava em pautaCláudia Maya (DCE) Porta de um dos apartamentos Campus

Inferno em Domicílio

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O atentado a estudantes africanos na Universidade de Brasília que ocorreu em 2007. A porta do quarto onde eles ficavam foi incendiada. Ninguém foi responsabilizado até hoje.

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10 18 de abril a 9 de maio de 2007

Marcus V. F. Lacerda

Na madrugada do dia 28 demarço, entre 3h e 4h, três aparta-mentos do Bloco B da Casa do Es-tudante Universitário da UnB(CEU) têm suas portas incendia-das. Os autores encharcaram toa-lhas com combustível rodeadas detijolos para que o fogo não se alas-trasse. Os apartamentos são todosocupados por estudantes naturaisda Guiné-Bissau, país de línguaportuguesa localizado na costaoeste da África.

As vítimas extinguem o fogocom o único extintor que não ha-

via sido esvaziado. Entre 8h e 9h, aUniversidade aciona a Polícia Fe-deral. Ao meio-dia, os agentes eperitos chegam ao local em querecolhem evidências, ouvem víti-mas e intimam as primeiras pes-soas envolvidas no inquérito.

O incêndio na CEU, conjunto dedois prédios de quatro andarespróximo ao Centro Olímpico daUnB, mobiliza toda a universida-de. Às 8h, alunos africanos e parteda administração reúnem-se nasala do Decanato de Assuntos Co-munitários (DAC). O clima é tenso,os alunos acusam oDAC e a Diretoria deDesenvolvimentoSocial de negligênciae exigem a presençado reitor. TimothyMulholand está noAuditório Dois Can-dangos abrindo um evento, já ci-ente do ocorrido.

Mais tarde, uma nova reuniãona Vice-Reitoria com a presençados mesmos integrantes da pri-meira. Participam ainda a Decanade Extensão Leila Chalub, repre-sentantes da Secretária de Promo-ção da Igualdade Racial (Seppir) eda Secretária de Direitos Huma-nos da Presidência da República, ovice-reitor Edgar Mamiya, algunsprofessores e um grupo maior de

estudantes. O gabinete da vice-rei-toria chama uma psicóloga do Ser-viço de Orientação ao Estudantepara auxiliar um aluno que neces-sitava de ajuda.

Os primeiros relatos chegam aoMinhocão, prédio principal daUnB, que concentra o maior nú-mero de cursos. No centro acadê-mico de Sociologia (Caso), alunosorganizam uma manifestação emapoio às vítimas. Por volta demeio-dia, estudantes de diversoscursos reúnem-se na entrada infe-rior do Restaurante Universitário.Confeccionando cartazes, cha-mam os outros para o ato que se i-niciaria às 14h na frente do Caso.No interior do prédio, uma coinci-dente apresentação de Zouk (rit-mo africano dançante) ajuda achamar a atenção.

No Salão de Atos, o reitor se reú-ne com os mesmos integrantes dareunião da vice-reitoria e mais es-

tudantes ainda. Oreitor comunicaaos presentes asprimeiras medi-das tomadas. Logodepois, enquantoalmoça, encontra-se a portas fecha-

das com toda a administração pa-ra tratar sobre o incidente na Casado Estudante.

Inicia-se a concentração emfrente ao Caso. Universitários acu-sam a reitoria de descaso e o Dire-tório Central dos Estudantes de o-missão. "Tivemos uma reunião aomeio-dia. Já sabíamos do incên-dio, mas o assunto não estava empauta", justifica Cláudia Maya,membro do DCE.

Depois de muita discussão e al-

guns pronunciamentos de estu-dantes africanos, o grupo de cercade 300 pessoas dirige-se ao Audi-tório Dois Candangos, onde su-punham encontrar com TimothyMulholand. Enquanto isso, o rei-tor está na reitoria participandode uma reunião da AssociaçãoNacional dos Dirigentes das Ins-tituições Federais de EnsinoSuperior Brasileiras.

Ao ver o contingente da mani-festação, um funcionário do ceri-monial ordena que se recolham asxícaras e o café.Não dá tempo. Osestudantes preen-chem o hall comtambores e carta-zes chamando peloreitor. Dentro doauditório, reitores, pró-reitores erepresentantes de diversas uni-versidades federais assistiam aoseminário curiosos quanto ao ba-rulho de fora.

Quando os estudantes invademo auditório, os presentes ficamconfusos. A mesa é tomada pelosmanifestantes e o microfone é da-do aos alunos africanos. Os estu-dantes acusam o reitor fugir do e-vento. Na Faculdade de Tecno-logia, Mulholand dava uma coleti-va à imprensa. Sem tê-lo encon-trado, a manifestação se dirige pa-ra o Minhocão, onde ganha maiscorpo. Os manifestantes saemdeixando as xícaras intactas namesa. Segundo o Gabinete do Rei-tor não foi relatado nenhum atode vandalismo.

Terminada a coletiva, o reitorsai em um carro da segurança docampus. No caminho, o motoristapergunta pela sua segurança. "Eu

não quero segurança! Se alguémvier brigar comigo eu só esperoque paguem pelos meus dentes",diz o Reitor no humor de quem,em queda livre, passa pelo segun-do andar e pensa que até ali tudocorre bem.

Timothy Mulholand recebe umpequeno grupo de jornalistas emuma sala da Assessoria de Comu-nicação Social para uma rápidaentrevista antes do seu encontrocom os estudantes. A manifesta-ção começava a aparecer no gra-

mado entre o Mi-nhocão e o prédioda reitoria. À medi-da que os estudan-tes aproximam-se,os vidros da salavibram e o reitor

tamborila na mesa na mesma ca-dência que a dos manifestantesenquanto é entrevistado.

O reitor entra no auditório dareitoria, os estudantes se agitam."Racista! Racista!", repetem osmanifestantes. Timothy Mulho-land permanece em pé junto a to-dos os membros da administra-ção. Inicialmente, a voz é dada aosestudantes. Os manifestantes,mais uma vez, acusam a adminis-tração da UnB de negligência, areitoria de racismo e pressiona oreitor para que peça desculpas aosestudantes africanos.

O reitor se nega a pedir descul-pas. "A UnB é racista porque oBrasil é racista!", afirma Timothy.A multidão esbraveja. O reitormarca a memória notória do diainstituindo 28 de março como oDia de Luta contra o Racismo naUniversidade de Brasília.

Você acorda com o nariz ardendo. Cheiro de madeira

queimada. O melhor a fazer é molhar o lençol e cobrir o

rosto. Mas a pia mais próxima fica no andar de baixo,

de onde vem a fumaça. Confusão. Neste momento, perguntas

sobre procedimentos em incêndios reverberam em sua cabeça.

Duas perguntas-chaves só serão feitas quando você já estiver a

salvo: quem e por quê?

“A UnB é racistaporque o Brasil é

racista!”Timothy Mulholand

“Já sabíamos doincêndio, mas o

assunto não estavaem pauta”

Cláudia Maya (DCE)

Porta de um dos apartamentos

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