16
Interfaces ISSN 2179-0027 15 Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012) Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original 1 Luciano Marcos Dias Cavalcanti 1 Resumo Este texto pretende examinar como Jorge de Lima em Invenção de Orfeu, numa investida mitopoética, através do verbo, busca recompor o mundo inicial em seu poema. Para isso, investigaremos os recursos utilizados pelo poeta para alcançar este objetivo: a desarticulação da linguagem que procura imitar o real, à volta para o mágico e o onírico, o diálogo com a memória ancestral e a figura mitológica de Orfeu. Palavras-chave: Invenção de Orfeu. Mito. Memória. Onírico. Órfico. Invenção de Orfeu, Jorge de Lima in serarch of the original verb Abstract This paper seeks to examine how Jorge de Lima in Invenção de Orfeu, a mythopoetic invested by the verb, the world seeks to recover its initial poem. For this, we will investigate the resources used by the poet to achieve this particular purpose: the dismantling of language that seeks to imitate reality, back to the magi- cal and dream-dialogue with ancient memories and the mythological figure of Orpheus. Key-words: Invenção de Orfeu. Myth. Memory. Dream. Orphic. 1 Doutor em Teoria e História Literária pela Uinversidade Estadual de Campinas UNICAMP. E-mail: [email protected] Introdução Uma importante característica presente em Invenção de Orfeu é a estreita relação da poesia com o mito. Em uma investida mitopoética, através do verbo, o poeta busca recompor o mundo inicial por meio da desarticulação da linguagem que procura imitar o real, volta-se para o mágico, para memória ancestral e para o órfico em que a metáfora, o mistério e o sagrado são privilegiados. Os mitos nos atingem principalmente através da memória coletiva, veiculado seja por meio da tradição clássica e/ou arcaica dos povos primitivos ou por sua transposição para uma forma literária, o que possibilita a sua permanência, seu desenvolvimento e sua atualização. Através da literatura é possível constatar a permanência do mito, seja em suas categorias ou nas suas identidades de categorização. No entanto, como afirma Jabouille (1993), a versão literária de um mito não é o mito – o mito é a estrutura profunda e universal que sustenta a narrativa -, a análise das materiali- zações é importante não só para conhecer os hipotéticos “universais” psicológicos como para compreender, de uma forma integra- dora, os elementos caracterizantes de cada momento e de cada lugar da história, que se reflete, naturalmente, nas obras literárias contemporâneas (JABOUILLE, 1993, p.21). Dessa maneira, há no mito um caráter especificadamente estético, no sentido de que a mitologia pode ser vista como a matéria que p. 15 - 30

Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 15Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original1

Luciano Marcos Dias Cavalcanti1

Resumo

Este texto pretende examinar como Jorge de Lima em Invenção de Orfeu, numa investida mitopoética, através do verbo, busca recompor o mundo inicial em seu poema. Para isso, investigaremos os recursos utilizados pelo poeta para alcançar este objetivo: a desarticulação da linguagem que procura imitar o real, à volta para o mágico e o onírico, o diálogo com a memória ancestral e a figura mitológica de Orfeu.

Palavras-chave: Invenção de Orfeu. Mito. Memória. Onírico. Órfico.

Invenção de Orfeu, Jorge de Lima in serarch of the original verb

Abstract

This paper seeks to examine how Jorge de Lima in Invenção de Orfeu, a mythopoetic invested by the verb, the world seeks to recover its initial poem. For this, we will investigate the resources used by the poet to achieve this particular purpose: the dismantling of language that seeks to imitate reality, back to the magi-cal and dream-dialogue with ancient memories and the mythological figure of Orpheus.

Key-words: Invenção de Orfeu. Myth. Memory. Dream. Orphic.

1 Doutor em Teoria e História Literária pela Uinversidade Estadual de Campinas UNICAMP. E-mail: [email protected]

Introdução

Uma importante característica presente em

Invenção de Orfeu é a estreita relação da poesia com

o mito. Em uma investida mitopoética, através

do verbo, o poeta busca recompor o mundo

inicial por meio da desarticulação da linguagem

que procura imitar o real, volta-se para o mágico,

para memória ancestral e para o órfico em que a

metáfora, o mistério e o sagrado são privilegiados.

Os mitos nos atingem principalmente

através da memória coletiva, veiculado seja por

meio da tradição clássica e/ou arcaica dos povos

primitivos ou por sua transposição para uma forma

literária, o que possibilita a sua permanência,

seu desenvolvimento e sua atualização. Através

da literatura é possível constatar a permanência

do mito, seja em suas categorias ou nas suas

identidades de categorização. No entanto, como

afirma Jabouille (1993),

a versão literária de um mito não é o mito – o mito é a estrutura profunda e universal que sustenta a narrativa -, a análise das materiali-zações é importante não só para conhecer os hipotéticos “universais” psicológicos como para compreender, de uma forma integra-dora, os elementos caracterizantes de cada momento e de cada lugar da história, que se reflete, naturalmente, nas obras literárias contemporâneas (JABOUILLE, 1993, p.21).

Dessa maneira, há no mito um caráter

especificadamente estético, no sentido de que

a mitologia pode ser vista como a matéria que

p. 15 - 30

Page 2: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 16Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

se originou tudo, o elemento primário, terreno

e modelo para a poesia. A volta da mitologia

na literatura moderna aponta para captação do

essencial do drama humano através do mitológico,

seja ele utilizado como tema, motivo de

enriquecimento estético, meio de materialização

referencial, elemento criativo e divulgador, como

também por sua universalidade, atemporalidade,

etc. Além desses pressupostos, podemos dizer

que quando um poeta recorre ao mito em seus

textos, na verdade, está em busca de um elemento

intemporal e exemplar para o drama do homem

no seu tempo.

Mircea Eliade (1998) chama a atenção para

o fato de que o termo mito recebeu historicamente

variadas interpretações. Os eruditos do século

XIX o consideravam ‘fábula’, ‘invenção’ e ‘ficção’;

os modernos, como era compreendido pelas

sociedades arcaicas, contrariamente, o considera

uma ‘história verdadeira’, que carrega consigo um

caráter sagrado e exemplar. O mito carrega uma

multiplicidade de significados, situação que se

torna uma tarefa difícil encontrar uma definição

única que abarque sua complexidade significativa.

Mircea Eliade (1998) apresenta uma definição que,

para ele, parece menos imperfeita e mais ampla.

O mito conta uma história sagrada; ele re-lata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros tempos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma re-alidade a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento hu-mano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os persona-gens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade cria-dora e desvendam a sacralidade (ou simples-mente a “sobrenaturalidade”) de suas obras (ELIADE, 1998, p.11- grifos do autor).

Pelo caráter simbólico que carrega, o mito

pode ser considerado manifestação artística e

geradora de arte. Em todas as civilizações os mitos

são fontes de inspiração para os mais diversos tipos

de expressões artísticas, assim como as fantasias

e criações imaginárias dos sonhos são também

estímulos à atividade artística. Ao se relacionar

com o mito a literatura tende a explicar, a clarificar

e desenvolver o mito de que havia nascido de

forma fragmentária e, por vezes, pouco coerente.

Desse modo, o mito se dilui de suas características

originais para transformar-se em vários gêneros

literários, torna-se lenda, saga, fábula, conto, etc.

“O sermos mythicus, enquanto linguagem simbólica,

permite [...] dizer mais facilmente as coisas que

são difíceis de exprimir. Ou dizê-las de outra

maneira” (JABOUILLE, 1993, p.44). Assim, a

literatura está estreitamente associada à dimensão

mítica, no sentido de que uma das fortes marcas

da natureza literária, como a do mito, é promover

o encontro do indivíduo com a memória profunda

(anamnese) da cultura. Situação que permite ao

homem pensar sua vivência individual e coletiva

e questionar tanto o seu próprio destino, como o

da humanidade.

É também significativo o modo semelhante

em que tanto o mito quanto a literatura vão

conceber o tempo e o espaço. O tempo mítico

consiste na competência de resgatar o passado,

revocá-lo. O mito através das formas culturais,

especialmente artístico-literária, expressa o desejo

humano de suplantar o tempo e o espaço, que

no mito se revela tanto nas formas culturais

“primitivas” como nas modernas e atuais. No

espaço mítico, a literatura pode chegar a lugares

impossíveis, podendo se configurar por um

modelo simbólico nos remetendo a um lugar

ancestral da cultura.

Outra importante característica do mito que

podemos relacionar com a literatura refere-se à

transformação do caos em cosmos, que pode ser

considerada a própria essência do mito. De acordo

com Mielietinsky (1987), a principal destinação da

Page 3: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 17Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

mitologia é explicar o lugar do homem no mundo

de modo que procure encontrar o equilíbrio na

desordem vivenciada por ele.

A mitologia transmite constantemente o menos inteligível através do mais inteligível, o não apreensível à mente através do apreen-sível à mente, e, sobretudo o mais dificilmente resolvível através do menos dificilmente re-solvível (donde as mediações). A mitologia não só não se reduz à satisfação da curiosi-dade do homem primitivo, como a sua ênfase cognitiva está subordinada a uma orientação harmonizadora e ordenadora definida, vol-tada para um enfoque integral do mundo no qual não se admitem os mínimos elementos do caótico, da desordem. A transformação do caos em cosmos constitui o sentido fun-damental da mitologia, e o caos compreende desde o início um aspecto axiológico ético (MIELIETINSKY, 1987, p.196).

Para Mielietinsky, no século XX, ocorre o

fenômeno da ‘mitologização’ da literatura, quer

como fenômeno artístico, quer como visão de

mundo diretamente relacionado ao seu tempo,

que presenciou revoluções, guerras e massacres

que mudaram substancialmente a História da

humanidade abalando toda sua estrutura social.

É por isso, nesse caos, que a literatura busca o

cosmos revitalizador da ordem. Para isso, a

literatura necessitou superar os limites histórico-

sociais e espaços-temporais o que acarretou

a ela um redimensionamento do tempo e do

espaço, anteriormente presos à verossimilhança

da representação do real. Nesse momento, a

literatura, através do mito, utilizou-se da fantasia e

do simbólico para ajustar sua linguagem ao tempo

presente.

Ernest Cassirer (1985) aponta para o

alto poder da palavra no universo mítico das

cosmogonias, chegando mesmo a ser comparada

ao poder dos deuses, ou mesmo, maior que eles.

Ao analisar a relação entre linguagem e mito, o

teórico assinala a possível origem comum da

consciência mítica à consciência linguística no

sentido de que ambas as linguagens assentam-

se na mesma concepção mental: o pensamento

metafórico.

A linguagem e o mito se acham original-mente em correlação indissolúvel, da qual só aos poucos cada um se vai despendendo como membro independente. Ambos são ra-mos diversos da mesma enformação simbóli-ca, que brota de um mesmo ato fundamental, e da elaboração espiritual, da concentração e elevação da simples percepção sensorial. Nos fonemas da linguagem, assim como nas primitivas configurações míticas, consuma-se o mesmo processo interior; ambos constitu-em a resolução de uma tensão interna, a rep-resentação de moções e comoções anímicas em determinadas formações e conformações objetivas (CASSIRER, 1985, p.106).

Desse modo, como as metáforas, o mito

exerce a função de fazer falar os níveis mais

profundos do ser humano. Por meio da expressão

simbólica o homem pode vislumbrar seus

questionamentos mais íntimos, que também são

universais.

Este mecanismo de fazer falar o

incognoscível, desejo do homem de todos os

tempos, se realiza plenamente na criação artística.

Mas, o mais importante para expressão literária

não é a ideia de que os mitos são metáforas do

comportamento humano, mas o modo que a

linguagem será trabalhada pelo escritor, por

meio da elaboração de metáforas e imagens que

busquem o conhecimento original, na tentativa de

expressar em verbo um tipo de conhecimento que

é oculto aos homens. É também por causa desse

desejo, intrínseco ao homem, que uma grande

parte da literatura moderna procurou recuperar

a visão mítica na criação artística, utilizando-a

como uma espécie de suporte para adentrar nas

zonas mais conflitantes e obscuras do homem

desse tempo. Em um mundo caracteristicamente

fragmentado e complexo os artistas aspiram, por

meio da visão mítica, a reconquista da unidade

perdida.

Um recurso utilizado para a recuperação

desta unidade perdida pode ser notado na

tentativa da reconquista da linguagem original, do

início dos tempos. Para estes termos é essencial

observarmos as considerações de Giambattista

Page 4: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 18Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

Vico em seus Princípios de (uma) Ciência Nova (1979), em que o filósofo italiano expõe a ideia

de que a linguagem poética seria primitiva e que

os homens passaram dela para a racional, sendo

ambas intimamente ligadas. Mais do que isso, ele

concebe a linguagem poética como fato natural e,

por conseguinte, entende as imagens não como

desvios da linguagem, como consideravam os

retóricos, ampliando o pensamento de sua época.

Para Vico, “[...] os homens do mundo nascente

(fanciullo) foram, por sua própria natureza,

sublimes poetas” (VICO, 1979, p.42). Desse

modo, enquanto o discurso poético moderno se

realiza de maneira “artificial” ou diferentemente

da linguagem corrente, observa Vico, na idade

primitiva do homem a linguagem era exercida de

forma distinta. Enquanto a linguagem poética

moderna se esforça para exprimir-se de maneira

imaginativa, a linguagem primitiva a exprimia

naturalmente. Esse procedimento nos é explicado

por Antônio Lázaro na introdução aos Princípios de (uma) Ciência Nova:

Quando, por exemplo, se pensa nos even-tos descritivos pela mitologia como apenas ficções extravagantes, ou quando se inclina a tratar trabalhos de poesia ou pintura como objetos de prazer ou de entretenimento, deve-se tomar cuidado em não projetar essas atitudes nos povos antigos. Houve períodos em que, longe de ser encarada como uma es-pécie de embelezamento dispensável da ex-istência civilizada, a poesia era, ao contrário, do modo natural da expressão humana. (LAZÁRO apud VICO, 1979, p.XXI).

Portanto, podemos dizer que o estilo

imaginativo da lírica moderna apresenta um

caráter inegavelmente relacionado (ou uma

espécie de retorno) à linguagem primitivo-infantil

dos primórdios do homem. Nessa perspectiva,

tanto a poesia quanto a imaginação apresentam

vigorosas fantasias.

Os primeiros homens das nações gentílicas, quais infantes (fanciulli) do nascente gênero humano, como os caracterizamos nas Digni-dades, criavam, a partir de sua ideia, as coi-sas, mas num modo infinitamente diverso daquele Deus. Pois Deus, em seu puríssimo entendimento, conhece, e, conhecendo-as, cria as coisas. Já as crianças, em sua robusta ignorância, o fazem por decorrência de uma corpulentíssima fantasia. E o fazem com uma maravilhosa sublimidade, tamanha e tão considerável que perturbava, em excesso, a esses mesmos que, fingindo, as forjavam para si pelo que foram chamados ‘poetas’, que, no grego, é o mesmo que ‘criadores’ (VICO, 1979, p.76).

Partindo dessa lógica, Vico considera que

os primeiros poetas é que devem ter nomeado as

coisas, “[...] a partir das ideias mais particulares e

sensíveis. Eis as duas fontes, esta da metonímia

e aquela da sinédoque” (VICO, 1979, p.90). O

filósofo reafirma que, no nascimento da poesia,

o poeta e a criança assemelham-se. Assim como

a criança, o poeta escreve como se tivesse visto

o objeto de sua reflexão pela primeira vez. Para

Vico, “[...] as crianças com as ideias e nomes de

homens, mulheres e coisas, que pela primeira vez

viram, aprendem e chamam, a seguir, todos os

homens, mulheres e coisas, que tenham com os

primeiros alguma semelhança ou relação” (VICO,

1979, p.92), sendo esta a grande fonte natural dos

caracteres poéticos, com os quais naturalmente

pensaram os povos primitivos. Para concluir,

Vico apresenta a ideia de que a idade de ouro da

humanidade é o tempo em que, como explica

Antônio Lázaro (em nota da introdução à obra do

filósofo italiano), “[...] se degradaram as grandes

metáforas dos poetas teólogos e/ou fundadores e

inventores” (LÁZARO apud VICO, 1979, p.149).

O pensamento de Vico (1979) não exerceu

considerável influência no campo dos estudos

literários em seu tempo. O motivo da falta de

prestígio do filósofo se deu principalmente pelo

avanço de suas ideias, das quais se ressaltam suas

teorias sobre os limites da razão, atribuindo, assim,

à imaginação um papel nunca antes concebido.

Essas questões postas por Vico contradizem e

Page 5: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 19Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

criticam as afirmações de Descartes sobre as

ideias claras e sobre o bom senso.

Vico (1979) divide a humanidade em três

estágios (o divino, o heroico e o humano), os quais

representam, cada um à sua maneira, sua língua e

visão do mundo. O estágio inicial (nos deteremos

neste, pois é o que nos interessa aqui) corresponde

a uma visão criadora ou poética, sustentado pela

metáfora. Antonio Candido (2004) explica bem

este estágio da humanidade concebido por Vico.

Antes de conhecer as causas racionais dos fa-tos, o homem as imagina, as cria pela força da imaginação e as considera em seguida como realidades exteriores a ele. Poesia, neste sen-tido, é a criação a partir da fantasia, que é potente no primitivo como na criança, e que vai diminuindo à medida que se desenvolve a razão. Trata-se, portanto, de uma forma de ajustamento ao mundo, um modo especial de ver as coisas e o homem. A linguagem poé-tica, eminentemente criadora, nasce da ne-cessidade de exprimir, mas não sucede a uma linguagem não-poética; pelo contrário, pre-cede-a, tanto assim que o verso sempre surge antes da prosa. Com o correr de tempo e o aparecimento da linguagem racional, da ex-plicação racional, etc., a forma anterior perde a sua exclusividade, mas permanece ao lado da outra. O poético se prolonga pelo racion-al, ou metafísico, adentro (CANDIDO, 2004, p.146-147).

De acordo com Alfredo Bosi (1997), “[...]

toda (a Scienza Nueva) [está] voltada para entender

a natureza do trabalho poético, o ser da Poesia,

em termos de linguagem, cuja ordem imanente

se colhe na unidade de sentidos, memória e

fantasia” (BOSI, 1977, p.10). Desse modo, a

poesia imaginativa e o mundo dos primórdios

estão intrinsecamente ligados, e a modernidade

poética vai refletir, principalmente, através da

imaginação, do uso da metáfora e da evasão da

vida cotidiana, esse modo de criação. O que está

de pleno acordo com a poética de Jorge de Lima,

realizada em Invenção de Orfeu. Assim, a situação da

poesia, em tempos de aguda autoconsciência, se

realiza com uma

[...] lucidez nova que adelgaça a sua carne e deixa transparecer uma armação óssea. Ela se dispõe, então, ao lado de um pensamento que analisa enquanto imagina, abstrai enquanto forma, depura enquanto cria. Sua matéria passa da aristotélica “imitação das ações humanas” ao “impossível crível”, fórmula viquiana e barroca do verossímil: produto da imaginação que, nem por isso, deverá ser exorcizado com o selo do absurdo (BOSI, 1977, p.211).

Mesmo nesses tempos, ingratos para a sen-sibilidade heroica, o poeta procura recon-quistar, “com arte e indústria” o poder in-ventivo da linguagem, que lhe é conatural, e tenta evitar a redução do seu discurso a um universo de juízos convencionais (BOSI, 1977, p.211).

Esta concepção da poesia como obra do

instinto e da imaginação se afirma novamente na

segunda metade do século XVIII, como reação

ao predomínio do classicismo francês na Europa.

Neste momento, o pensamento pré-romântico

e romântico o divulga por toda Europa. Tendo

como principal representante o Sturm und Drang (1770) de Herder, Goethe e Schlegel entre outros

românticos alemães que “[...] acreditavam que

a poesia é obra do instinto e da imaginação

livres, que ela é mais espontânea e genuína nos

períodos iniciais da civilização, na juventude da

humanidade, quando o instinto, a imaginação e a

tradição oral eram mais fortes do que a razão e a

reflexão, quando a ‘poesia era a linguagem natural

dos homens’[...]” (AUERBACH, 2007, p.343). É

desse pensamento que provém a ideia de que a

poesia do tempo moderno deve retornar à sua

fonte primordial, a do “espírito do povo”, para se

tornar verdadeira. E soma-se a isso, como salienta

Auerbach, o fato de que o objetivo da imaginação

primitiva é estabelecer “[...] limites fixos como

proteção material e psicológica contra o caos do

mundo circundante” (idem, p.352). Pensamento

que concorda plenamente com o ideal primordial

do mito, como já dissemos, de transformar o caos

em cosmos.

Dessa forma, a linguagem poética não se

Page 6: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 20Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

limitará apenas a um papel comunicativo. Ela

supera esse caráter pragmático, utilitário que

deseja contar algo. Ela quer reviver a experiência

primeira da nomeação das coisas do mundo,

como nos primórdios. Esta experiência é

essencialmente poética, inaugural e anuncia um

novo mundo, ilumina o mundo sombrio em que

vivemos e anuncia um mundo extraordinário e

que contém uma plenitude inacessível. Este narrar

inaugural é poiesis, fundação de um novo mundo.

“A palavra originário significa fazer eclodir algo,

trazer algo ao ser num salto fundador, a partir da

proveniência da essência” (HEIDEGGER, 2010,

p.199). Desse modo, para Heidegger (2010), em

um sentido essencial, a própria linguagem é poiesis.

Mas porque a linguagem é aquele aconteci-mento no qual, a cada vez, o sendo como sendo se abre pela primeira vez para o ser humano, por isso é a poesia, a poiesis em sen-tido mais restrito, a mais originária poiesis em sentido essencial. A linguagem não é por isso poiesis, ou seja, porque é a poesia primor-dial, mas a poesia apropria-se na linguagem, porque esta conserva a essência originária da poiesis (HEIDEGGER, 2010, p.189).

Para Heidegger (2010), inversamente do que

se poderia pensar, a linguagem possui o homem e

não o contrário. E este só se realiza enquanto tal

pela linguagem, pois “[...] a linguagem é a morada

do ser [...]”. No entanto, o homem, no cotidiano,

inverte essa relação. De modo que ele passa a usar

a linguagem em vez de deixar-se manifestar por

ela. Desse modo, o sentido original da palavra é

ocultado e sua poesia desaparece. Para o filósofo,

só a linguagem poética é capaz de desautomatizar

a palavra de seu uso banal e fazer reaparecer sua

originalidade. Nesse sentido, podemos dizer que a

linguagem poética e/ou original, como concebida

por Heidegger, se assemelha ao mito, concebido

como origem, pois o mito também funda/cria um

mundo como qualquer obra de arte.

Ao se tratar da linguagem primordial não

podemos deixar de mencionar o Gênesis bíblico,

não como verdade revelada, mas como um campo

simbólico da civilização ocidental e na sua relação

com a linguagem criadora. Nesse sentido, o texto

bíblico nos apresenta a linguagem como veículo

místico que propicia a criação por meio do

verbo. Nela está registrado o primeiro momento

da criação, momento que está diretamente

relacionado com a linguagem e o aparecimento do

homem no mundo. Dessa forma, como observa

Frye (2004), a ‘palavra’ bíblica,

inclusive o logos do Evangelho de João, estão solidamente enraizados na fase metafórica da linguagem, quando a palavra era um elemen-to do poder criativo. Segundo o Gênesis, 1:4, ‘Deus disse, faça-se a luz; e a luz se fez’. Ou seja, a palavra foi agente da criação que levou a coisa a ser (FRYE, 2004, p.42).

Nesse sentido, é sugestiva a semelhança

da palavra bíblica com a linguagem mitológica

dos primórdios. Do mesmo modo, a poesia que

deseja resgatar este mundo original se utilizará da

metáfora como meio de criação do poético. De

modo que, nesse sentido, poderíamos dizer que

a literatura é descendente direta da mitologia.

A poesia, como o mito, “[...] recria algo que, na

sociedade, é primitivo e arcaico [...]” (idem, p.64).

Dessa maneira, como aponta Benjamin (2011),

o ritmo da criação da natureza (conforme o Gênesis, 1) é: Haja..._ Ele fez (criou) _ Ele chamou”, no início e no fim dos atos, aparece, a cada vez, a profunda e clara relação do ato criador com a linguagem. Este começa com a onipotência criadora da linguagem, por assim dizer, incorpora a si o criado, ela o nomeia. Ela é aquilo que cria, e perfaz, ela é palavra e nome. Em Deus o nome é criador por ser palavra, e palavra de Deus é saber por ser nome. “E Deus viu que isso era bom”, isto é: ele o conheceu pelo nome. A relação absoluta do nome com o conhecimento só existe em Deus, só nele o nome, porque é intimamente idêntico à palavra criadora, é o puro meio do conhecimento. Isso quer dizer: Deus tornou as coisas cognoscíveis ao lhes dar nomes. Mas o homem só nomeia as coi-sas na medida em que as conhece.(BENJA-MIN, 2011, p.61)

Segundo Benjamin, Deus não criou o

homem pela palavra, não o nomeou e nem

Page 7: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 21Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

o submeteu a ela. Mas o ofereceu a mesma

linguagem que utilizou para criar o mundo. Assim,

o homem é aquele que conhece na mes-ma língua em que Deus cria. Deus criou o homem à sua imagem, criou aquele que con-hece à imagem daquele que cria. É por isso que, quando se diz que a essência espiritual do homem é a linguagem, essa frase precisa de uma explicação. Sua essência espiritual é a linguagem, em que ocorreu a criação. A criação começou na palavra, e a essência lin-guística de Deus é a palavra. Toda linguagem humana é tão só reflexo da palavra no nome. (BENJAMIN, 2011, p.62)

Dessa maneira, podemos notar que a

linguagem comum do homem não é a mesma

palavra criadora divina. É nesse sentido, que

o homem desejoso de retomar essa linguagem

criadora do início dos tempos redimensionará

a linguagem comum transfigurando-a em

linguagem poética. O homem se transformará em

poeta, semi-deus e demiurgo. Nesse sentido, não é

gratuita a escolha de Orfeu, o primeiro poeta, por

Jorge de Lima como figura central de seu poema.

De acordo com Dante Tringali (1990,

p.10), Orfeu sempre esteve associado ao mundo

da música e da poesia, pois era filho de Calíope,

a mais importante das nove Musas, e de Oeagro.

Destacava-se como cantor e tocador de lira. Sua

voz e o som de seu instrumento eram dotados

de poder mágico que abrandava o coração dos

homens e das feras, fascinando a todos os reinos da

natureza. Nada se furtava à virtude humanizadora

de sua lira e de seu canto. Cumpre notar que,

além da harmonia divina de sua música e de seu

canto, revelava aos homens os mistérios de uma

nova religião. O mito de Orfeu e as manifestações

do espiritismo órfico subsistem através de seus

motivos, temas e arquétipos nas mais diversas

áreas artísticas, com singular predileção na

literatura e na música. Em um sentido amplo, a

arte órfica é concebida como criação livre e não

como imitação.

O grande estudioso da escrita de

Orfeu, Marcel Detienne, classificou-a como

caracteristicamente inventiva e polifônica.

Orfeu é o cantor do começo dos tempos, do

tempo primordial2. Além disso, os órficos eram

“renunciantes” e buscavam a idade de ouro, no

pensamento órfico a grande divindade oracular

é a noite recebedora do saber mântico mais

alto. Diferentemente do mito de Prometeu,

considerado o herói cultural que representa o

esforço laborioso, a produtividade, o progresso

ligado ao ‘princípio da realidade’, Orfeu representa

o polo oposto.

O mito de Orfeu foi revisitado por Jorge

de Lima em Invenção de Orfeu numa tentativa

de recuperá-lo em seus múltiplos significados

na modernidade. O poeta procura explorar e

transcender algumas possíveis significações,

recriando-o ou simplesmente concordando com

sua origem antiga. Em uma nova escritura, Jorge de

Lima traz para a modernidade suas reflexões sobre

o sentido do mito e a respeito do próprio Orfeu,

numa espécie de revalorização de concepções

necessárias ao mundo moderno, que no momento

da criação do poema apresenta uma série de

conflitos provenientes dessa “modernização”: o

apagamento do eu, o rompimento com a estética

2. O Orfeu do séc. IV a.C. era uma voz que não se assemelhava a qualquer outra. Enquanto os aedos e os citaredos celebravam altos feitos dos homens e dos deuses mas sempre em intenção de um grupo humano, a voz de Orfeu começou além do canto que recita e canta. Trata-se de uma voz anterior à palavra articulada, e cujo estatuto de exceção é marcado por dois traços: um designa Orfeu para o mundo da música antes do verso, a música sem palavra, um domínio onde ele não imitava ninguém, onde ele era o começo e a origem. Quanto a outra singularidade, ela é apontada nos Persas de Timóteo pela relação de engendramento: a lira de Orfeu não é um objeto técnico, construído, fabricado como o de Hermes que é orientado para o espaço socializado da música (festas e banquetes) ou para a atividade de arquitetônica como o instrumento dado pelo deus de Anfión, a lira-arquiteto que põe as pedras no lugar na construção da muralha. Muito ao contrário, foi Orfeu quem engendrou e procriou a lira ou a cítara. Sua atividade era a do teknoún e não do tektáinestha. O canto de Orfeu jorra como uma encantação original. Ela se canta mais em seus efeitos que em seu conteúdo. (...) Desde que a voz de Orfeu penetrou no mundo dos homens, para além do primeiro círculo dos guerreiros trácios, ela se escreveu, fez-se livro e foi escrita múltipla (DETIENNE, 1991, p.88).

Page 8: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 22Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

tradicional, a guerra, etc. Desse modo, a figura

de Orfeu está presente de forma constante no

poema de Jorge de Lima, seja de forma explícita

(pelo próprio mito) ou de maneira metafórico–

simbólica (pelo significado do mito em sua

representação figurada).

A presença de Orfeu pode ser vista de

maneira exemplar na estância VI, do Canto

Décimo, de Invenção de Orfeu. Neste momento,

Orfeu representa a pureza, e seu canto percorrerá

as superfícies perdidas, as palavras vivas. Orfeu é

o pacificador do mundo e o libertador com seu

jorro de palavras e escrita fluente. A presença de

Orfeu, através de sua força mítica possibilita ao

poeta romper com o tempo cronológico e com o

mundo presente, considerado por ele como ruim,

de forma a transfigurá-lo em sua poesia em um

desejo de reencontrar um mundo diferente do de

então, o mundo primeiro, isto é, perdido.

Nesse sentido, o Tempo, no poema, se

relacionará de maneira estreita ao mito. O tempo

mítico consiste, justamente, na competência

poética de resgatar do passado, de revocá-lo,

abolindo a distância. O mito através das formas

culturais, especialmente artístico-literária,

expressa o desejo humano de suplantar o tempo e

o espaço, que no mito se revela tanto nas formas

culturais primitivas como nas modernas e atuais.

Desse modo, como aponta Eliade, sentimos na

literatura, de maneira mais intensa que em outras

expressões artísticas, o anseio de atingir um tempo

diferenciado daquele que somos ‘obrigados a viver

e trabalhar’ revelando que o homem moderno

preserva, ainda que pouco, um comportamento

mitológico. Os traços de tal comportamento “[...]

revelam-se igualmente no desejo de reencontrar a

intensidade com que se viveu, ou conheceu, uma

coisa pela primeira vez; de recuperar o passado

longínquo, a época beatífica do ‘princípio.’”

(ELIADE, 1998, p.164-165).

Outro elemento, característico da expressão

do mito é o espaço mítico. Pela poesia pode-

se gerar um lugar excepcional, pois nesse

ambiente diferenciado do real não contam mais

as impossibilidades físicas. O espaço pode se

realizar, nesse momento, por meio de um modelo

simbólico que nos remeta a variados topos da

nossa cultura ancestral. Essas condições também

nos revelam o caráter utópico empreendido

pelo poeta, já que a apresentação do espaço de

maneira diferenciada da concepção tradicional

alcança um redimensionamento, onde se pode

esperar por relações imprevistas e encontros

paradoxais. É o que ocorre também em relação ao

redimensionamento do tempo, que é “reescrito”,

não por meio da convenção cronológica e linear,

mas através da memória, da fantasia e do sonho.

Acrescenta-se a este redimensionamento do

tempo-espaço, a preocupação metalinguística

limiana do desejo de reencontrar os cantos

primeiros (de Orfeu: o primeiro poeta), como diz

o poeta de “palavras vivas”.

Estava decorrido. E o remo leva-me.Nem sei como se deu. Mas arrastadode mim. Palavras. Índole. Deixai-me,indo sem mim. Depois nem mais consciência.Nem mais a minha mão nem um rumo igual.A consciência de fora me solvendo.Enfim, tudo vazio, enorme ser,contendo-se divino no seu ritmo,voraz ritmo implacável, inconsciente,no gesto em que fiquei tocando as coisas,e as coisas desfazendo-se em mim próprio:o trânsito de Orfeu para a pureza,o trânsito de Orfeu para a inconsciência,superfícies perdidas, cantos virgens,fogos dourados de palavras vivas,sangue das luzes inundando o tempo.Havia essa presença que não há (LIMA, 1958, p.878)

O que vemos aqui é a estreita relação do texto

literário associado à dimensão mítica, no sentido

de que, numa de suas fortes marcas, o poema busca

uma espécie de “memória profunda” da cultura,

trazendo para o presente um passado mítico

perfeito. De acordo com essa perspectiva, é pela

poesia que o poeta deseja vivenciar os momentos

Page 9: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 23Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

de um mundo inicial. Esse aspecto é notado

não só por seu desejo de voltar ao passado, mas

também pelo próprio ritmo do poema entregue à

inspiração divina, livre de quaisquer amarras e por

suas imagens. O poeta busca atingir as camadas

mais profundas do ser através da correspondência

entre o mundo edênico do passado mítico e seu

poema.

Invenção de Orfeu conserva uma estreita

relação com a lenda de Orfeu. Jorge de Lima

ao elaborá-lo se apropria do mito de Orfeu,

o primeiro poeta e o pacificador da natureza,

que mediante seu canto possibilita a criação de

um novo mundo por meio da crença no poder

restaurador da palavra. Assim, o poeta tenta

recompor o mundo original através da volta a

um tempo mítico, em que a palavra recebe um

caráter mágico e transformador, características

estas também próprias da poesia moderna. Nesse

sentido, o poema de Jorge de Lima relacionará o

mito à poesia de maneira intrínseca.

Uma figura literária que ajudará Jorge de

Lima em sua procura pelo verbo original é a Musa.

O poeta, auxiliado pelas musas e pela graça, busca

atingir as camadas mais profundas do ser através

da correspondência entre o mundo edênico do

passado mítico e seu texto.

Na Grécia antiga, a memória foi encarnada

pela deusa Mnemosyne, mãe das nove musas. O

poeta, inspirado pelas Musas, tinha a função de

glorificar os fatos passados e futuros, situação que

o assemelha ao profeta. É a testemunha inspirada

dos ‘tempos antigos’ e da ‘idade das origens’.

Segundo Vernant, a memória (Mnemosyne)

caracterizava-se, no pensamento mítico e arcaico

grego, por ter o conhecimento do Tempo: o

passado, o presente e o futuro. Mnemosyne

tinha, igualmente, o conhecimento do Espaço:

do mundo do visível e invisível, do espaço dos

vivos e dos mortos. Mnemosyne não era, como

a memória, conhecimento de um tempo passado,

mas, ao contrário, memória de um tempo que

continua no presente e no futuro, pois é memória

de um tempo arcaico (arché), primordial, original

da formação e organização do mundo. A memória

mítica e arcaica, portanto, tem, segundo Vernant

(1990), a onisciência: ela vê tudo em todos os

momentos. Ela está além do começo e do fim. Ela

tem sabedoria suprema ao conhecer o passado, o

presente e o ausente, o todo do tempo e do espaço

e, como que por adição, aquilo que excede esse

todo (VERNANT, 1990, p.105-131).

No âmbito literário moderno, é interessante

a perspectiva desenvolvida por Vico em seu

De antiquíssimo Italorum sapientia (1710), no qual

percebemos a ligação entre memória e imaginação,

memória e poesia.

Entre os Latinos chama-se “memória” a fac-uldade que guarda as percepções recolhidas pelos sentidos, e “reminiscência” a que as dá à luz. Mas memória significa também a facul-dade pela qual nós conformamos as imagens, e que as dá, e que os Gregos chamaram “fan-tasia”, e nós comumente dizemos “imaginar” dizem os Latinos memorare (VICO apud BOSI, 1977, p.200).

Desse modo, de acordo com o pensamento

de Vico, podemos dizer que a criação poética é

fruto da memória, no sentido em que ela “[...]

aparece como faculdade de base” (BOSI, 1977,

p.204). E o meio pelo qual se modela a imagem

é a fantasia. Desta se produzem tanto os mitos

quanto a prática poética em si, o texto. Aliado a

isso, podemos pensar que a memória no texto

literário tem o papel de reelaborar o que foi vivido

(ou imaginado) pelo poeta de modo que ela possa

se realizar no poema. Sem essa reelaboração a

memória simplesmente representaria o passado

comum a qualquer pessoa.

A memória e sua representação na figura da

musa será um elemento importante e frequente na

poética de Jorge de Lima, se fazendo presente em

toda sua poética e significativamente em Invenção de Orfeu, auxiliando o poeta em sua criação. Em

Page 10: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 24Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

todo Invenção de Orfeu, o poeta é amparado por uma

quantidade enorme de musas que estão presentes

em todos os Cantos, retiradas da tradição literária

ou mesmo criadas por ele. No primeiro caso,

são representadas por Inês de Castro, Lenora,

Eurídice, Beatriz, Ofélia, Penélope, Eumetis,

entre outras; no segundo, está figurada em Mira-

Celi e também provenientes de sua infância como

Francisca, Lis, Celidônia, etc. Portanto, o poeta

cria auxiliado por inúmeras divindades.

É interessante notar a impressionante

quantidade de musas mortas presentes em Invenção de Orfeu. Em geral, são iniciáticas e ligadas ao reino

dos mortos: Eurídice, Lenora, Ofélia, Beatriz,

Inês, Mira-Celi e Celidônia. Esta característica

das musas limianas parece conter o pressuposto

básico da “falta” que nos remete ao caráter órfico

de Invenção de Orfeu – o poeta canta, como

Orfeu, a falta de sua musa, caso contrário a sua

“viagem” (o poema/o seu canto) se extinguiria3.

A presença da musa Inês de Castro

em Invenção de Orfeu mostra-se extremamente

relevante para pensarmos sobre a particularidade

do uso da memória na poesia de Jorge de Lima.

Pois, como relata o poeta, um de seus primeiros

momentos de alumbramento poético ocorreu em

sua infância, exatamente na leitura do episódio

de Inês de Castro, feita pelo seu pai – e depois

feita por ele mesmo –, experiência que funde a

realidade (a presença paterna) com a literatura (o

texto poético de Camões e sua leitura).

Na estância XIX, do Canto Segundo, o

poeta canta um lugar bucólico intrinsecamente

ligado à sua infância. A este ambiente se relaciona

à musa Inês de Castro, que também habita uma

ilha paradisíaca. Nesse momento, o poeta traz para

seu poema o elemento sensual e reconta a famosa

história de Inês de Castro, que representará uma

espécie de guia ou símbolo para um novo mundo

recomeçado: “[...] vai ser constelação de um

mundo novo, /Esperança maior de eterno povo”

(LIMA, 1958, p.705).

É o que também ocorre com, outra musa

importante da poesia limiana, Mira-Celi. Associada

ou integrada a Inês de Castro ela é ubíqua e sua

presença é sentida nos jardins intemporais, ou

seja, em um lugar, poderíamos dizer, utópico e/

ou originário. A musa criada pelo poeta o ajuda a

captar os momentos de eternidade contra o mal

representado pela passagem do tempo – o que

também pode significar os momentos poéticos.

E veio para Inês justalinear,a defunta princesa soterradaque ilumina as comunas recalcadas.Mira-Celi é sentida em ubiqualpresença nos jardins intemporaisdo vasto mar dormido, circundada.

Ela me faz captar esses instantesde eternidade contra o mal que é o tempo,ela me torna imenso ou pequenino,eu enguia de Deus, ou ossos e ossos.E vendo um campo de esqueletos nus,ela a magia fê-los encarnar-se.

E canso-me à procura das fugazespresenças, e momentos das terríveisou divinas arquiasas permanentes,para remanescer as durações,e para substituir, gravar um símbolona casa antiga da árvore perdida (LIMA, Canto VIII, 1958, p.844).

Em um momento excepcional (e mítico) da

criação de Invenção de Orfeu, a musa Mira-Celi desce

entre o ar e o mar e traz de volta a magia para que

o poeta possa se expressar. Talvez este seja um

dos momentos mais sublimes do “épico” limiano

em que as duas musas mais importantes para o

poeta se encontram: Inês de Castro (de Camões) e

Mira-Celi (criada por Jorge de Lima). É a musa que

3. A “falta” é um sentimento universal e inerente ao ser humano e especialmente ao artista, assim Valéry o descreve: “Viver é, a todo instante, sentir falta de alguma coisa – modificar-se para atingi-la – e, desse modo, tender a substituir-se no estado de sentir falta de alguma coisa. Vivemos do instável, pelo instável, no instável: essa é a função completa da Sensibilidade, que é a mola diabólica da vida dos seus organizadores. O que há de mais extraordinário para se tentar conceber, e o que pode haver de mais ‘poético’ para se fazer do que essa força irredutível que é tudo para cada um de nós, que coincide exatamente conosco, que nos movimenta, que nos fala e é falada em nós, que se transforma em prazer, dor, necessidade, desgosto, esperança, força ou fraqueza, dispõe valores, torna-nos anjos ou bestas conforme a hora do dia?” (VALÉRY, 1999, p.81)..

Page 11: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 25Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

capacita o poeta a captar instantes de eternidade

que representam a poesia em si, é aquilo que faz

o texto se tornar poético ou mesmo possibilita

apreender o instante poético; o sentimento

poético se contrapõe à passagem do tempo

inexorável e destruidor de tudo. Neste momento,

a poesia recupera o passado como se conseguisse

materializar e/ou armazenar o tempo perdido em

seus versos. Nesse sentido, a passagem do tempo

para o poeta é vista de maneira negativa, pois é

por causa desse movimento temporal que tudo

se destrói e se acaba. Assim, os bons momentos

do passado, principalmente os relacionados à

infância, tanto ao passado infantil do poeta quanto

ao referente à infância da humanidade – que de

acordo com a ideologia cristã representa o tempo

anterior à Queda – são buscados na tentativa de se

alcançar a eternidade, materializando-a por meio

de pequenos instantes poéticos.

Mira-Celi é proveniente de sua poesia

anterior, “Enunciação e Encontro de Mira-Celi”

(1943), é caracterizada por sua complexidade

interpretativa e está associada à infância do poeta.

Neste livro, a criação poética estará intrinsecamente

ligada à inspiração e à busca do sagrado. É o

momento no qual Jorge de Lima constituirá uma

relação profícua com a linguagem mística e com

a estética surrealista, estabelecendo afinidades

com o mundo noturno, o onírico e o fabuloso,

propiciando imaginação, magia e inspiração

em sua poesia. Ela será o motivo condutor de

sua poesia, como o próprio poeta enuncia nos

primeiros versos de seu poema número dois: “Tu

és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo/ que

aparece ao longo de meu poema” (LIMA, 1958,

p.507).

Possuído pelas musas o poeta é o intérprete

de Mnemosyne. Portanto, é pela memória que o

poeta consegue superar os limites determinados

pela espaço-temporalidade ordinária e material e

ir além do mundo sensível. É através da memória,

que a unidade é revelada. Nela, presente passado e

futuro se fundem. No momento em que o poeta é

possuído pelas Musas, ele absorve o conhecimento

de Mnemosyne, dessa maneira, ele obtém todo

conhecimento expresso pelas genealogias,

atingindo o ser em toda a sua profundidade.

É a descoberta da origem, do movimento

primordial: a gênese dos deuses, o nascimento da

humanidade, o surgimento do cosmos. Portanto,

é por meio da memória que o poeta tem acesso

ao indecifrável e consegue enxergar o invisível.

Esse poder ontofânico (clarividência recebida da

memória [Mnemosyne]) pode ser evidenciado

hoje na experiência poética, isto ocorre quando

a poesia consegue fundar uma realidade própria

a ela, quando funda seu próprio mundo. Desse

modo, ao trazer a figura das musas de volta, de

um passado mítico, ao nosso tempo, o poeta faz o

mundo e o tempo recuarem à sua matriz original

e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência

de vida com que vieram à luz pela primeira vez

e oferece ao leitor moderno um espaço para

reflexão a respeito do fazer poético e da própria

criação artística.

O desejo de volta ao tempo das origens

impulsionará o poeta ao redimensionamento da

linguagem vivenciada por ele no tempo presente.

Para isso o poeta estabelecerá um diálogo frutífero

com o sonho e a magia. O que naturalmente nos

leva a relacionar a poesia de Jorge de Lima ao

Surrealismo, não de maneira programática, mas

como um diálogo frutífero em que o poeta se

utiliza de elementos formais do surrealismo na

elaboração de sua poesia. Jorge de Lima trocará

formalmente o vocabulário usual pelo insólito, a

sintaxe desmembra-se ou reduz-se a expressões

nominais intencionalmente primitivas, a metáfora

e a comparação são aplicadas de uma maneira nova,

forçando a união do que parece ser inconciliável.

Nesse sentido, a sua poesia não almejará a cópia

do real, mas sim a sua transformação. Para isso, o

Page 12: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 26Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

poeta utilizará do sonho e da fantasia, caminhos

mais favoráveis para elevar sua capacidade criativa.

A presença do surrealismo com seu pressuposto

básico da repulsa ao realismo positivista, que,

para Breton, significava um empecilho a qualquer

evolução intelectual e moral, prendendo o artista

ao conhecido e ao classificável, empobrecendo

o caráter imaginativo da arte que provém dos

sentimentos é perfeitamente visível tanto nas

fotomontagens quanto na lírica final de Jorge de

Lima. Para se afastar do reino da lógica, que nos

governa através do racionalismo fundamentado

pela utilidade imediata e voltado para o senso

comum, os surrealistas apontam as portas dos

sonhos. Para estes, o onirismo possibilitaria

uma ampliação do conhecimento por não estar

preso estritamente ao racional. Nesse sentido, a

imaginação ganha reconhecimento e garante o

aprofundamento da mente, antes aprisionada pela

racionalidade.

O surrealismo renovará a imagem poética

utilizando-se desses recursos, principalmente se

vinculando ao onirismo. Comumente, na poética

tradicional, a imagem tem como característico de

sua construção a similitude entre seus termos de

comparação. Na imagem surrealista, de forma

contrária, sua formação (criação) se dá através da

dessemelhança, ou seja, através da aproximação

de duas realidades distantes. Desse modo, ao

construir suas imagens os artistas surrealistas

transgridem a ordem natural das comparações,

provocando um choque intenso na sua linguagem

– o que nos leva a percorrer os caminhos do sonho

e da imaginação. É a partir dessa perspectiva que

a poesia moderna trabalhará a imagem em sua

criação poética.

Podemos ver este posicionamento do poeta

na estância IV, do Canto Sétimo. Neste momento,

o poeta se encontra em estado de sonho e não sabe

como resultará seu poema, ele flui livremente e

apenas depois de estancada a inspiração o trabalho

poético reorganizará o texto primeiro, apurando-o.

Também vemos explicitamente que o poeta está

em busca das palavras ancestrais, simbolizadas

pelas chaves que ele diz buscar no início do poema.

Isto pode significar que sua viagem escritural

procura encontrar o verbo primeiro, do tempo da

nomeação das coisas. Nesse sentido, vemos sua

tentativa de voltar ao tempo primordial, onde as

palavras foram pronunciadas pela primeira vez. É

o desejo da renovação do vocabulário comum e

gasto pelo uso repetitivo transfigurado na palavra

nova (que pode também ser relacionada à ‘boa

nova’ de Cristo), resgatada do tempo paradisíaco

da criação. Como um demiurgo, o poeta deseja

renovar a poesia e o mundo através do verbo

novo. É por isso que Jorge de Lima utiliza-se da

palavra simbólica mítica e da imagem inusitada

assemelhada à surrealista: é sua tentativa de

retrabalhar esta linguagem gasta, trazendo para

ela o sentido de renovação. Para isso, ele recebe a

ajuda do sopro divino (a graça) simbolizado pelo

vento que nos entreabre as asas.

Podemos ver, neste poema, o desejo de

renovação e a busca do tempo original pelo

poeta-profeta no verso “[...] ó páscoas que

previ, ó terras que aspirei [...]” (LIMA, 1958,

p.800), que se encerra na associação do poeta ao

vidente, misturando poder de vidência e desejo de

renovação do mundo e da poesia.

Palavras ancestrais, previmos que eram chaves,e fomos nada mais, que puros arrastados.O vento é sempre um ser que nos entreabre as asas.Ó vai-te em vento ser um doce verso alado.

A mágoa a nossos pés pendia-nos a fonte,a fronte era um convés de náufragos chorando.Ó páscoas que previ, ó terras que aspirei,o verso nasce aqui mas corre em outros vales.

Mas por encantação às vezes volto a mim,perdido da canção, regresso às ondas rarasque as cinzas guardarão, ó últimas grisalhas,que as mágoas comerão, ó cândidas voragens!

Page 13: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 27Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

A 1, A 2, A 3, vogais locomotivas.Que assonâncias sem leis, o duro céu queimado!Ferragens no sem-fim. Eterno desfio.Ah! sempre um serafim correndo paralelo.

Valente mente e ação, galope cordas bambas.E aquela vocação triângulos tocando;tocando sempre sou por esta tentação;não sei por onde vou: criatura e abstração.

Sonâmbulo salvei algumas andorinhas.Depois relerei. Que enquanto quero: andarolhando os girassóis que rondam meu olhar,queimar-me em outros sois, plantar-me em outras vinhas. (LIMA, 1958, p.800)

Invenção de Orfeu anuncia de forma simbólica

a conquista do mundo anterior à Queda, pelo

verbo. Nesse sentido, a criação desse mundo/

poesia almejada pelo poeta se dá não apenas pela

descrição do ambiente paradisíaco, mas através

do verbo, refletindo este ambiente na busca da

palavra desse tempo. Isto é, metaforicamente,

do momento da nomeação das coisas, da palavra

dita pela primeira vez, impressionante e poética

pela carga de novidade trazida, seja em sua

sonoridade, seja em seu significado metafórico.

O poeta buscará trazer de volta este sentido

primitivo da palavra por meio da renovação de sua

linguagem, através da renovação da metáfora ou

por meio da busca de uma linguagem mítica, pois

o conhecimento racional apresenta-se inadequado

e/ou insuficiente e não tem o alcance que o

pensamento subjetivo oferece, como comprovam

os símbolos do ‘pentagrama’ e do ‘prisma alado’.

É somente por esta perspectiva que o poeta pode

almejar a reconstrução da linguagem perdida do

início dos tempos. Desse modo, ele rompe com o

tempo e com o espaço, podendo reiniciar o mundo

por meio de um imaginário do passado original,

que é motivo de satisfação e alegria, pois o tempo

primordial é reconquistado e o novo ambiente

é profícuo para a criação. Nessa perspectiva, até

mesmo quem não tem voz pode se expressar.

Como dantes agora coexistiaem verbo o pentagrama e prisma alado,ó eterno itinerário, ó alegria,

ó divina aventura reiniciada.

E agora chega o poema preferidoe os dias mais sutis, e os frutos ázimose as promessas mais claras e felizese os nascimentos justos e as jornadas.

E agora conseguiram numerarAquele canto e aquele puro amor,E as futuras vivências e este marE essas ondas montanhas ontem e hoje.

Falara; e a sua fala palimpséstica proveio; era abundante, nasceu sábia.Que fazer desses passos, dessas vestes,das canções que possuíram outros lábios?

Os símbolos dilatam-se nas mãos;prosseguem logo as línguas ontem mudas,e são despertas searas, diapasões,e os dedos repousados sobre os tules.

As madeiras sonoras respondiamos apelos desertos e arenosos.A divina constância renasciade dentro das escalas silenciosas (LIMA, 1958, p.882)

Acrescenta-se a isso, estância IX do Canto

Segundo, uma espécie de chamamento pelo

tempo primordial redimensionado pela linguagem

insólita dos versos: “Denomino-vos, chamo-vos

de novo/águas descomunais, estrelas virgens,/

peixes vivendo em aves, anjos de antes,/sem cartas

de vigiar tão doces sumos/derramados nos ares

pressentidos” (LIMA, 1958, p.683). Desse modo,

impõe-se o desejo do poeta de renovar tudo

através da volta ao tempo original, demonstrando

que este desejo almejado por ele está estreitamente

relacionado ao passado mítico (são exemplares

os elementos básicos e por isso simbólicos, da

natureza: fogo, água e ar presentes no poema), e

o seu descontentamento com o tempo presente.

Denomino-vos, chamo-vos de novoáguas descomunais, estrelas virgens,peixes vivendo em aves, anjos de antes,sem cartas de vigiar, tão doces sumosderramados nos ares pressentidos.Desejo lavar tudo: o fogo, a água e o ar,_seres antigos que o homem corrompeu;desejo ver de novo, de andar de novo, (LIMA, 1958, p.683).

Na estância X, do Canto Décimo, o poeta

valoriza a palavra precisa, expressiva e verdadeira

que vem do início dos tempos e se direciona

Page 14: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 28Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

para a eternidade. Isso também nos remete à

preocupação formal do poeta somado a palavra

metafórica na construção do poema. Isto se

dá justamente por causa das singularidades da

inovação semântica representada pelas metáforas

inovadoras utilizadas em Invenção de Orfeu, o

que também pode representar um caminho em

direção à salvação. O poeta artesão busca a palavra

poética como meio de alcançar seus anseios e a

salvação. E esta palavra ideal é a que vem do início

dos tempos, sendo, por isso, eterna. O poeta

pretende resgatar esta palavra divina que nomeou

os elementos do mundo no seu início perfeito,

ainda do tempo paradisíaco.

Não a vaga palavra, corrutelavã, corrompida folha degradada,de raiz deformada, abaixo dela,e de vermes, além, sobre a ramada;

mas, a que é a própria flor arrebatadapela fúria dos ventos: mas aquelacujo pólen procura a chama iriada,_ flor de fogo a queimar-se como vela:

mas aquela dos sopros afligida,mas ardente, mas lava, mas inferno,mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,

esta é que é a flor das flores mais ardida,esta veio do início para o eterno,para a árvore da vida que há em mim (LIMA, 1958, p.885).

No novo mundo que está para surgir

o poeta é o novo Adão ou “Adão segundo”,

conforme enuncia a estância XIV, representando

a reconquista do paraíso pelo homem-poeta. A

nostalgia dos primórdios revela-se no desejo da

volta ao mundo puro tal qual foi criado por Deus,

isto é, o mundo da perfeição. A poesia então está

situada no (re)começo da humanidade. Nesse

sentido, a realização da criação poética se dá por

meio da inocência dos primórdios, tempo anterior

à Queda onde o homem não conhecia o pecado. E

a palavra poética estabelecerá uma relação estreita

com o Verbo divino, como no momento primeiro

da criação. Em síntese, o poeta busca, por meio da

redenção, reencontrar o paraíso perdido.

Pra conhecer a calma que há na vidaisolemos-nos dentro desses frutos.Que doçura perene nesses sumosde cavilosos ácidos despidos!

Os pomares repousam nesses úterosde rubis, ó maçã redescoberta;repouso no teu seio como um púreopois nesses fins de tempo sou um certo

cavaleiro chamado Adão segundoflagelado de quedas, e barãode azorragues de fogo assinalado;

que deseja na beira desses mundosdormir nas frondes que amanhã virão,dormir já morto nos futuros pomos (LIMA, 1958, p.888).

Como Orfeu despedaçado após o ataque

das Menades, Jorge de Lima constrói seu poema

através de fragmentos líricos, míticos, oníricos,

históricos, biográficos, metafísicos, religiosos. Em

busca de uma harmonia mítica, quer transformar

o caos presente em um cosmos futuro, perspectiva

esta que encerra todo o poema. Numa espécie de

eterno retorno, dado pela circularidade do poema

e pela imagem da espiral do tempo e do espaço, o

poeta tenta resgatar o início dos tempos a partir

de metáforas referentes ao paraíso perdido e ao

éden cristão, da memória, do poder encantatório

órfico e também do sonho, que se revelam por

meio da linguagem renovada e das metáforas

inusitadas, comparadas às do início da nomeação

das coisas. Desse modo, o poema se compõe pelo

cruzamento de temas e situações que reaparecem

de várias formas ao longo de cada trecho.

Invenção de Orfeu apresenta-se, muitas vezes,

de forma obscura justamente devido a essa

tentativa do poético reviver uma linguagem perdida

há muito tempo, uma linguagem mágica cantada

por um poeta ébrio, que se associa (de modo

direto) à poesia moderna no questionamento

que esta faz da linguagem usual. Dessa maneira,

a expressão poética do poeta se enuncia pela da

transcendência, está ligada ao mistério das coisas

e aos valores inerentes à vida. Como disse Bastide:

“[Jorge de Lima desejou] ‘criar uma língua sagrada’

através da transformação da experiência mística

Page 15: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 29Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

(‘os símbolos correntes’) do poeta convertida em

experiência poética, por meio da criação de seus

próprios símbolos” (BASTIDE, 1997, p. 129-30).

Na antiguidade, era dado à poesia o poder

de tornar presente os fatos passados e futuros,

de renovar e restaurar a vida. A palavra cantada

“[...] tinha o poder de fazer o mundo e o tempo

retornarem à sua matriz original e ressurgirem

com o vigor, perfeição e opulência de vida com

que vieram à luz pela primeira vez. A recitação

dos cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os

doentes que ouvissem em contato com as fontes

originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal

o poder e impacto que a força da palavra tinha

sobre o ouvinte” (TORRANO, 1995, p.20). É este

poder ontopoético que Jorge de Lima busca trazer

para Invenção de Orfeu, o poder de instaurar uma

realidade própria à poesia, de iluminar o mundo

que sem ela extinguiria.

Referências bibliográficas

AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. Davi Arrigucci Jr.; Samuel Titan Jr. Trad. Samuel Titan Jr.; José M. de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2007.

BASTIDE, Roger. Estudos sobre a poesia religiosa brasileira; A incorporação da poesia africana à poesia brasileira. In: Poetas do Brasil. São Paulo: EDUSP/Duas Cidades, 1997.

BENJAMIM, Walter. Escritos sobre Mito e Linguagem. Trad. Susana Kampff; Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo na Poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Trad. Sérgio Pachá. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.

CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2000.

DETIENNE, Marcel. A escrita de Orfeu. (Trad. Mário da Gama Kury). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: problemas atuais e suas fontes. SP: Duas Cidades, 1991.

FRYE, Northrop. Código dos códigos: A Bíblia e a literatura. (Trad. Flávio Aguiar) São Paulo: Boitempo, 2004.

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. (Trad. Idalina Azevedo e Manuel A. de Castro) São Paulo: Edições 70, 2010.

JABOULLE, Victor. Mito e literatura: algumas considerações acerca da mitologia clássica na literatura ocidental. In: Mito e literatura. Portugal, Mem Martins: Editora Inquérito, 1993.

LIMA, Jorge de. Obra Completa (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. Rio de Janeiro; Forense – Universitária, 1987.

TRINGALI, Dante. O Orfismo. In: CARVALHO, Sílvia M. (org.). Orfeu, Orfismo e Viagens a Mundos Paralelos. São Paulo: Edunesp. 1990

VALÉRY, Paul. Variedades. (Org. e Int.: João Alexandre Barbosa – Trad. Maiza Martins de Siqueira – Posfácio. Aguinaldo Gonçalves) São Paulo: Iluminuras, 1999.

VERNANT, J. P. Aspectos míticos da memória e do tempo. In: Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo; Abril Cultural, 1979.

Page 16: Invenção de Orfeu, Jorge de Lima em busca do verbo original

InterfacesISSN 2179-0027 30Guarapuava, Vol. 3 n. 2 (dez. 2012)

TORRANO, Jaa. Estudo. In: HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses. (Trad. Jaa Torrano) São Paulo: Iluminuras, 1995.

Artigo enviado em: 03/08/2012Aceite em: 21/12/2012