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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis 1617 INVENTÁRIOS URBANOS: A SITUAÇÃO DO OLHAR COMO POTÊNCIA Beatriz Basile da Silva Rauscher Universidade Federal de Uberlândia FAPEMIG RESUMO: Este trabalho apresenta alguns aspectos dos resultados parciais da pesquisa em curso intitulada “Situações do olhar: impressões e projeções de imagens da cidade”. Trata-se de uma investigação que também abriga as pesquisas de três jovens pesquisadores. Como grupo, temos nos dedicado, nos últimos dois anos, ao desenvolvimento de uma produção em Poéticas Visuais, comprometida com a reflexão e com a sistematização de nossas ações. A investigação de que este artigo trata tem como objeto a imagem da cidade; o conceito que se trabalha é o de situação do olhar, conceito este gerador da poética de cada artista com suas singularidades próprias que, neste texto, foram articuladas em torno da idéia de um inventário urbano. Palavras-chave: fotografia; cidade; poéticas visuais ABSTRACT: This paper presents some aspects of the partial results of an ongoing research project entitled “Situations of a look: impressions and projections of images of the city”, which encompasses the studies carried out by three other researchers. As a group, we have dedicated ourselves, for the past two years, to the development of a work called “Visual Poetics”, which is committed to the consideration, the pondering and the systematization of our actions. Thus, the present article focuses on the images of the city under examination; the concept underlying our work is that of the situation of the look, which generates the poetics of each artist, with its own singularities, which, in this text, have been articulated around the idea of a urban inventory. Keywords: photograph; city; visual poetics

INVENTÁRIOS URBANOS: A SITUAÇÃO DO OLHAR · através do encontro entre o artista e o contexto urbano. Trata-se da operação que produziu a foto; o próprio olhar do fotógrafo

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INVENTÁRIOS URBANOS: A SITUAÇÃO DO OLHAR

COMO POTÊNCIA

Beatriz Basile da Silva Rauscher

Universidade Federal de Uberlândia FAPEMIG

RESUMO: Este trabalho apresenta alguns aspectos dos resultados parciais da

pesquisa em curso intitulada “Situações do olhar: impressões e projeções de

imagens da cidade”. Trata-se de uma investigação que também abriga as

pesquisas de três jovens pesquisadores. Como grupo, temos nos dedicado, nos

últimos dois anos, ao desenvolvimento de uma produção em Poéticas Visuais,

comprometida com a reflexão e com a sistematização de nossas ações. A

investigação de que este artigo trata tem como objeto a imagem da cidade; o

conceito que se trabalha é o de situação do olhar, conceito este gerador da poética

de cada artista com suas singularidades próprias que, neste texto, foram

articuladas em torno da idéia de um inventário urbano.

Palavras-chave: fotografia; cidade; poéticas visuais

ABSTRACT: This paper presents some aspects of the partial results of an

ongoing research project entitled “Situations of a look: impressions and projections

of images of the city”, which encompasses the studies carried out by three other

researchers. As a group, we have dedicated ourselves, for the past two years, to

the development of a work called “Visual Poetics”, which is committed to the

consideration, the pondering and the systematization of our actions. Thus, the

present article focuses on the images of the city under examination; the concept

underlying our work is that of the situation of the look, which generates the poetics

of each artist, with its own singularities, which, in this text, have been articulated

around the idea of a urban inventory.

Keywords: photograph; city; visual poetics

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CIDADE DE AFETOS E DE DESAFETOS

As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside

em também parecerem, num mundo atulhado de relíquias fotográficas, ter o

status de objetos encontrados – lascas fortuitas do mundo.1

SUSAN SONTAG

A investigação2 de que este artigo trata abriga o trabalho de

quatro jovens artistas e coloca como questão principal a situação do olhar,

ou seja, o fato prático de tomar a cidade em imagens. No período em que

temos nos dedicado à pesquisa, cada artista produziu um conjunto de

trabalhos, revelando, a seu modo, uma aproximação sensível do espaço

urbano, problematizando-o através da arte.

Tomamos emprestado de Georges Didi-Huberman a idéia de

situação do olhar (2002, p.82) entendida como constituinte dos processos

fotográficos, a partir dos quais se busca operar pontos de vistas inabituais

obtidos por tomadas de vista de viés, do alto para baixo, de baixo para o

alto, etc. Trata-se, segundo o pesquisador francês, “não somente do

deslocamento do ponto de vista, mas da negação de um olhar regulado

pelo horizonte” (DIDI-HUBERMAN, 2002, p.75).

As ações que procuramos desenvolver visam produzir

imagens através dos recursos técnicos da fotografia, da numerização, do

tratamento da imagem no computador, de sua materialização em diferentes

suportes e de sua apresentação em relação ao espaço. Trata-se de ações

que se dão na esfera das operações da arte e, ao mesmo tempo, nos

ambientes urbano, social e cultural. Elas terão implicações na percepção

desse mesmo contexto.

O ato fotográfico é ação produtiva nas operações

instauradoras do trabalho. Ele capta, através do corte espaço-temporal

(DUBOIS, 1993, p.161), a imagem indicial de fragmentos escolhidos do

espaço urbano. A numerização caracteriza-se como uma ação radical que

se dá sobre as imagens captadas (ou no próprio ato de tomá-las)

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produzindo um estilhaçamento radical e irreversível que leva a fotografia da

ordem do indicial à ordem numérica, transformando-a em imagem virtual,

portanto, entendida como possibilidade. O modo de apresentação

determinará outras possibilidades de transfiguração dessas fotografias.

Aqui, olhar a cidade é pensá-la, e o que se pretende com a

reincidência de ações e operações sobre as imagens tomadas

fotograficamente é antes trabalhar, no interior das imagens, os sentidos e

os afetos que se percebe na cidade. Armando Silva diz que as “cidades

devem atender aos desejos e às representações dos cidadãos, a seus

afetos e lembranças” (SILVA, 2002, p.15). Desse modo, buscamos, através

do trabalho, intensificar a percepção do contexto urbano como um espaço

sensível, entendendo que o modo de percebê-lo se refletirá sobre a nossa

própria urbanidade.

A cidade que vivemos – Uberlândia, MG - desencadeia e

mobiliza o problema colocado por esta investigação. Ela reflete do mundo

contemporâneo globalizado que dá as costas ao seu ambiente natural e

cultural local. Mas, sabemos, é justamente nossa natureza cultural,

moldada nas suas formas de dominar os componentes do ambiente

natural, que organiza os espaços e seus lugares de vida.

Edificar muitas vezes sobrepõe o desejo de participar da

temporalidade da paisagem. Além disso, a cultura do automóvel influencia

drasticamente a paisagem urbana. Vivemos cada vez mais o paradigma da

cidade mediada, a cidade à distância, a cidade da internet, que tem como

contrapartida a ausência da percepção imediata da realidade, e “engendra

um desequilíbrio perigoso entre o sensível e o inteligível” (VIRILO,1993, p.

23).

Isso se observa na negação dessa jovem cidade de seu

passado recente. O declínio da percepção direta dos fenômenos reflete-se

no caráter irreconciliável da cidade com seu patrimônio cultural e natural.

Elegemos Uberlândia como território de nossa investigação.

Sabemos que a cidade é um imenso, persistente e inesgotável campo de

estudos para todas as áreas do conhecimento humano, pois ela define

nossa urbanidade, nossa civilidade e nossa condição de cidadã. A arte

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contemporânea não ignora estas questões, por isso, figurar, representar,

apresentar e metaforizar a cidade estão e sempre estiveram no foco das

artes plásticas.

ALGUNS PRESSUPOSTOS OPERACIONAIS

Cada um dos pesquisadores vinculados a este trabalho definiu

um recorte espacial específico no tecido da cidade para focar seu interesse

de produção de imagens. Do mesmo modo, questões específicas da

imagem e dos processos e técnicas da arte foram objetos de discussão do

grupo e da atenção de cada pesquisador, tendo ainda como questão

comum dos trabalhos a investigação sobre a imagem impressa e projetada.

Buscamos, no contexto urbano, objetos que revelassem

aspectos significativos sobre a cidade que os produziu, fossem eles triviais,

prosaicos, ordinários, ou não notados, misturados ao caos da cidade. Cada

pesquisador levantou um universo de objetos que problematizassem a

cidade e a condição urbana do homem contemporâneo e, deste modo,

construiu seu inventário.

A idéia de inventário3 em seu sentido comum, sabemos,

refere-se à lista ou relação de bens. Inventário nesta pesquisa faz alusão

antes a um relatório de perdas, mais do que a um legado. Tomada como

um conceito operatório4, a idéia de inventário mobilizará a busca e o

registro das imagens. Em alguns desses trabalhos, desdobrar-se-á a idéia

de documentário. Ruína, vestígio e apagamento são conceitos transversais

desencadeados no próprio ato de inventariar.

Entendendo os aspectos operacionais como meio de criação

do objeto e, simultaneamente, como caminho para se atingir os objetivos

propostos pela pesquisa, foram três os principais aspectos processuais que

se objetivou desenvolver: O primeiro referiu-se às imagens realizadas

através do encontro entre o artista e o contexto urbano. Trata-se da

operação que produziu a foto; o próprio olhar do fotógrafo sobre a cidade:

“vista deslocada, olhares enviesados e a primazia do caminhar na caça das

imagens” ( DIDI-HUBERMAN, 2002, p.75).

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A inscrição do numérico na fotografia, sua decomposição em

números, confere a elas aquilo que Edmond Couchot chamou de controle

morfogenético (2003, p.161), assim a transformação da imagem captada

através de processos computacionais, visa arrancá-las da indiferença a qual

o hábito as lançou.

O terceiro aspecto processual, diz respeito ao modo de

oferecimento dessas imagens ao expectador. Trata-se da impressão e da

projeção como estratégias de envolvimento e apreensão da obra e do modo

de se regularem as relações que se estabelecem entre o observador e o

trabalho.

Entendemos que, quando a imagem é projetada, a fotografia

adere-se à forma das superfícies de projeção. Modifica-se de imediato a

relação espectador/obra, pois a mudança do substrato coloca, entre outras

questões, o problema da duração. “A imagem projetada é vivenciada, é

quase impossível pensar a luz sem pensá-la no tempo (AUMONT, 1993.

p.176). Assim a imagem projetada rege seu modo de oferecimento,

colocando em situação o olhar do próprio espectador, estabelecendo

percursos e determinando a duração de sua apreciação.

Fig.1 – Manuel Rocha Neto (dois projetores de slides, caixa de vidro com dispositivo de

ventilação interna e notas de dinheiro). Ensaio de projeção realizado pelo grupo na Sala de Pesquisas

Visuais do Museu Universitário de Arte / UFU em 2006.

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A adesão da imagem aos espaços arquitetônicos se dá de

formas diferentes, se diferentes forem as matérias da imagem. Enquanto

as imagens impressas são inseparáveis dos seus suportes, as imagens-luz

são livres. Assim, as imagens projetadas caracterizam-se por estarem

totalmente aderidas aos espaços e, ao mesmo tempo, jamais se integram à

superfície na qual são projetadas. Desse modo, pretende-se, nesta

pesquisa, pensar a apresentação das imagens também como projeção

(fig.1).

INVENTÁRIOS

A produção que desencadeia esta pesquisa recebe o título de

Diário das calçadas. Nela, reúno um conjunto de fotografias que se

caracteriza como um diário visual de meus trajetos pela cidade. São

fotografias de situações banais observadas nas calçadas dos bairros

residenciais da cidade de Uberlândia.

Nessas fotografias, a imagem da cidade é construída e

tornada visível através de um sutil deslocamento de um ponto de vista

habitual. É para o chão e para cima que o olhar se dirige. Essas fotografias

trazem a calçada como território desprestigiado da cidade contemporânea

revelando uma paisagem empobrecida. O inventário que se faz é o do

processo de apagamento de uma paisagem vegetal que não encontra mais

lugar no espaço urbano.

A taxonomia das ações de dissipação das velhas sibipirunas

das calçadas de Uberlândia só é possível pelo registro dos vestígios

encontrados: restos enraizados no chão; podas radicais (prenúncio da

derrubada); escleroses provocadas através de talhos nos caules;

fragmentos de troncos deixados nas portas das casas e, por fim, as placas

escritas a mão, com os dizeres: “corta-se árvores”.

Essas placas, curiosamente, encontram-se no alto dos postes,

colocam-se na calçada de onde as árvores foram arrancadas e dirigem para

o alto - e para o vazio - o nosso olhar. As fotografias – apresentadas em

espaços expositivos - recolocam esta situação espacial (fig.2).

É sobre outro apagamento que trata o trabalho de Eduardo

Prado. Ele procura revelar como seu olhar se relaciona com a cidade

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contemporânea, avaliando, questionando e refletindo sobre a cidade que o

cerca. Para Prado, esse processo só foi possível por intermediar arte,

cidade e tecnologia, esta última utilizada com o intuito de criar um tipo de

imagem que se coloca em algum lugar “entre” uma fotografia recente e

outra antiga.

Fig.2 – Beatriz Rauscher (25 fotografias de 80 x 35 cm cada, impressas em papel fotográfico, justapostas

e coladas na parede acima de 160 cm).

Outro aspecto significativo dessas imagens refere-se ao fato

de elas se apresentarem como uma espécie de projeto urbanístico: seu

olhar multiplica os edifícios antigos (ainda preservados) e compõe com eles

praças e ruas de uma cidade inventada. Vemos, nessas imagens, o desejo

de fazer o presente reencontrar o passado. O inventário aqui opera como

uma coleção de vestígios. “O vestígio, escreve Walter Benjamin, é o

aparecimento de uma proximidade, por mais distante que esteja aquilo que

o deixou” (1989, p.226). Suas fotos são registros forjados a partir dos

vestígios de uma cidade que não existe mais ( fig.3).

Assim, Prado redesenha a cidade. Sua tentativa de

recuperação da história através de uma “cidade inventada” é menos um

conservadorismo ou nostalgia que uma utopia5. O território destas ações é

o Bairro Fundinho, núcleo original de Uberlândia, um bairro que conjuga de

modo paradoxal o ápice da especulação imobiliária na construção de

modernos edifícios de apartamentos e a tardia preservação do que ainda

resta da memória arquitetônica da cidade. Alegóricas no sentido dado por

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Walter Benjamim, as imagens resultantes da re-combinação dos edifícios

inventariados por Eduardo Prado podem ser vistas como “uma operação

crítica de apropriação deformadora” (NASCIMENTO, 2005, p. 56) em sua

ressignificação da cidade.

Fig. 3 – Eduardo Prado , fotografia com manipulação digital impressa em papel fotográfico , conjunto de

15 imagens diferentes de 30 x 10 cm cada, 2007.

Novo em ruínas é o título do conjunto de trabalhos de

Francesca Gargiulo. Ela inventaria os edifícios abandonados em obras. O

termo ruína - que se refere aos restos de construções desmoronadas -

também significa aniquilamento, destruição e decadência. A idéia de ruína

carrega uma sensação próxima da desaparição das coisas; o paradoxo

presente nessas imagens é que esses prédios jamais chegaram a existir, a

cumprir seu desígnio. Que tipo de ferida estes edifícios malogrados

representam no imaginário progressista da cidade?

Através da fotografia, Francesca toma o contexto urbano

como objeto, visando, deste modo, a mudança da percepção desse mesmo

contexto. Seu olhar é desencantado. As ruínas inventariadas por Francesca

não oferecem qualquer possibilidade de recriação do tempo passado; não

pertencem a tempo algum ( fig.4).

O olhar de Gargiulo se dirige para um objeto que pode ser

entendido como uma colagem de tempos. Representa o investimento (de

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força, de trabalho, de dinheiro) que se perdeu no passado; alude ao desejo,

representa, ele mesmo, uma busca e mostra-se contemporaneamente em

seu processo de degradação e morte. Aqui, a fotografia é – como para

Susan Sontag - o inventário da mortalidade (2004, p.85), e as ações

operadas pelo tratamento digital promovem a ênfase no caráter de

decrepitude desses prédios.

Fig.4 – Francesca Gargiulo, bedroom e playground; fotografias digitais impressas sobre vinil adesivo com

laminação fosca, 80 x 210 cm, 2006.

Outra questão que está em causa em nossas reflexões sobre

os “edifícios abandonados” em obras e sua caracterização como “ruína” é a

proposta de pensá-los como um espaço excepcional, de “uma

complexidade incomum”, aqui no sentido de ruína posto por Robert Morris:

“um tipo de estrutura que realinha a relação entre objetos e espaços, mas

que sempre é considerada por aquilo que foi em vez de por aquilo que é

(...)” (MORRIS apud FEREIRA e COTRIM, 2006, p.410).

Morris sugere que todas as grandes ruínas foram profanadas

pela “fotografia (...) reduzidas a imagens banais”. Revela, em sua análise, o

potencial que representa o fato de tais lugares ocuparem “uma zona que

não constitui estritamente nem uma coleção de objetos, nem um espaço

arquitetônico” (op. cit. p.411) considerando, assim, o foco no espaço

interno e externo de modo articulado. Em nosso projeto, o modo de

apresentação das imagens inventariadas é uma questão capital. Assim, as

mais recentes ações de Francesca trocam a câmera fotográfica pela de

vídeo. As imagens são registros de seu caminhar por esses grandes e

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vertiginosos espaços vazios. Esqueletos arquitetônicos - repletos de

escadas que nos levam sempre a lugares idênticos - estas imagens

mostram o que esses edifícios são em seu próprio esvaziamento.

Fig. 5 - Manuel Rocha Neto, fotografia e manipulação digital, projeção aproximada de 100 x 220 cm, 2007.

Manuel Rocha volta-se para os excluídos. Seu olhar não é

complacente ou piedoso. Ao inventariar lugares de moradias dos sem teto,

descobre uma cidade paralela que se instala de noite e se desmonta ao

amanhecer. Seu trabalho se desenrola em um momento em que a cidade

discute a criminalização da mendicância. Na sua busca por imagens,

Manuel se flagra como documentarista de uma situação que, de corriqueira

e cotidiana, é repentinamente lançada nas sombras.

Na sua flanerie contemporânea, a motocicleta é grande aliada.

O morador de rua se instala nos lugares mais despovoados e distantes do

centro; está acuado e pode tomar o fotógrafo por um agressor. Sua caçada

fotográfica, no amanhecer da cidade, muitas vezes exige uma escapada

rápida. A cidade marginal está alerta e o fotógrafo, como observa Susan

Sontag6 é uma versão “armada” do célebre caminhante de Baudelaire.

O comentário visual elaborado por Rocha se constrói através

da fusão, das cédulas de dinheiro às imagens de pessoas que pedem

dinheiro nos sinais e dormem nas ruas (fig.5). Ampliadas e, ao mesmo

tempo, transparentes, as notas não conseguem esconder o que se coloca

por traz delas. Alegoricamente, essas imagens são projetadas em grandes

dimensões em espaços expositivos: estamos diante daquilo que a cidade se

recusa a ver.

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O aspecto fundamental desta pesquisa é o foco para as

operações artísticas com as quais se pretende concretizar o conjunto de

imagens que tenham a potência de se inscrever, de modo significativo, no

pensamento visual que abarca as relações entre arte e cidade, se não de

todas, ao menos, desta.

Entendemos que, a partir das reflexões postas neste artigo,

podemos produzir um pensamento significativo que permita à produção do

grupo operar deslocamentos neste campo de pesquisa. Uma das

particularidades da pesquisa em arte é que o artista coloca suas questões

através da obra. O que o projeto Invetários urbanos quer colocar é a

indagação sobre a cidade que temos e a cidade que queremos.

Problematiza-se, deste modo, a herança recebida das gerações anteriores

e se apresentam questões sobre o que se legará às futuras.

Acreditamos que nossa grande cidade se mostra - revelada

por esses olhares - empobrecida. O que ela poderá legar?

1 Objetos de melancolia. SONTAG, S. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia da Letras, 2004, p.84 2 “Outras Situações do Olhar: projeções e impressões de imagens da cidade” (2006-2008) é uma pesquisa na linha das poéticas visuais que abriga os planos de trabalho de iniciação científica de Francesca Gargiulo (PIAC-UFU) e Eduardo Prado (PIBIC-CNPq) e a pesquisa em andamento de Manuel Rocha Neto, recém-graduado em Artes Visuais pela UFU. 3 Em seu sentido comum, inventário é a relação dos bens deixados por alguém que morreu; o documento ou papel em que se acham relacionados tais bens. É também lista discriminada, registro, relação, rol de mercadorias, bens, etc. Traz o sentido de descrição minuciosa. Inventário pode ser o levantamento individuado e completo dos bens e valores ativos e passivos duma sociedade mercantil ou de qualquer entidade econômica, e ainda, um processo formado em juízo para legalizar a transferência do patrimônio do morto aos seus herdeiros e sucessores na proporção exata de seus direitos. 4 Conforme Sandra Rey, na pesquisa em arte, as operações não são apenas procedimentos técnicos; são operações do espírito, entendido aqui, num sentido amplo: viabilização de idéias, concretizações do pensamento. Cada procedimento instaurador da obra implica a operacionalização de um conceito. Por isso, os nomeamos “Conceitos operatórios”. (REY, S. , 2002, p.129-130). 5 Sobre os modos de recuperação da história, Plaza apóia-se em Benjamim para dizer “ ou o presente recupera o passado como fetiche, como novidade, como conservadorismo, como nostalgia, ou ele o recupera de forma crítica, tomando aqueles elementos da utopia e sensibilidade que estão inscritos no passado e que podem ser liberados como estilhaços ou fragmentos para fazer face a um projeto transformativo do presente, a iluminar o presente” (PLAZA, J., 1987, p.7). 6 “O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, suas populações abandonadas – uma realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”, como um detetive captura um criminoso” (SONTAG, 2006, p.70)