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INVESTIGAÇÃO CRIMINAL 1 . Ensaios e Estudos Segurança, Políticas e Polícias . Direcção do Inquérito e Relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária . Técnicas Especiais de Investigação Criminal . O Fenómeno que veio do Leste . Investigação Criminal face ao Tráfico de Seres Humanos . Análise de Resíduos de Disparos de Armas de Fogo . Análise das Marcas de Impactos e Perfurações de Vidro

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INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

1 . Ensaios e Estudos

Segurança, Políticas e Polícias . Direcção do Inquérito e Relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária . Técnicas Especiais de Investigação Criminal . O Fenómeno que veio do Leste . Investigação Criminal face ao Tráfico de Seres Humanos . Análise de Resíduos de Disparos de Armas de Fogo . Análise das Marcas de Impactos e Perfurações de Vidro

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· Arbitragem e Mediação· Direito Administrativo

· Direito Civil· Direito Comercial e Societário· Direito da Comunicação Social

· Direito Desportivo· Direito Disciplinar· Direito do Trabalho

· Direito Falimentar e Reestruturação deEmpresas

· Direito Fiscal e Contencioso Tributário· Direito Penal e Contraordenacional

· Recuperação de Crédito· Responsabilidade Civil Extracontratual e

Administrativa do Estado

Rigor, inovação, qualidade e prontidãoServiço rigoroso e de qualidade, prontidão às solicitações dos

nossos clientes com soluções inovadoras, reflexo do brio

profissional da sua equipa.

Acompanhamento personalizado, confiança e fidelizaçãoA avaliação e resolução célere e rigorosa dos interesses dos nossos

clientes, aliada a uma partilha integrada de esforços, honestidade

e respeito mútuo, dão-nos o privilégio e prazer de estabelecermos

relações sérias, duradouras e não raras vezes de honesta amizade.

Ética profissionalToda a sua actividade é baseada no cumprimento escrupuloso

dos princípios de ética profissional e deontológicos.

IndependênciaAssumimo-nos como verdadeiramente independentes, nunca se

melindrando com pressões externas ou temores reverenciais, seja

qual for a natureza do assunto ou processo que nos seja confiado.

Equipa sólida e coesaExigente sentido de responsabilidade institucional, respeitadora

da individualidade de cada um, numa prática interna de natureza

solidária: todos partilham o sucesso ou insucesso da sociedade.

Equipa que combina experiência e juventude, tendo como

características mais vincadas a irreverência e perseverança,

sustentadas na competência e elevado conhecimento técnico,

Equipa multifacetada, mas com um crescente grau de

especialização; orientado e fiel aos princípios que nortearam a

constituição da sociedade.

Servir com superior qualidade e prontidão os seus clientes, o

que só é passível de ser atingido com elevado grau organizacional

da sua própria estrutura, seja ao nível de gestão de recursos

humanos, procedimentos internos, processos e informação.

Áreas de actuação preferenciais:

António Pragal Colaço & Associados

Sociedade de AdvogadosAno da constituição: 1997

Contactos: R. Rodrigues Sampaio, 96-R/C Esq. | 1150-281 Lisboa | Telf. 213 553 940 | Fax: 213 553 949

[email protected] | www.apcolaco.com

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1. Ensaios e Estudos

Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária

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2 Investigação Criminal. Nº 1

Propriedade e edição: ASFICPJ – Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Crimi-nal da Polícia Judiciária - Rua Gomes Freire, nº 174, 1119-007, LisboaDirector Executivo: Mário CoimbraDirecção Editorial: Nuno Almeida (Coordenação), Carlos Ademar, João Paulo Ventura, José LealConselho Consultivo: Professor Doutor Cândido da Agra, Professor Catedrático, Director da Fa-culdade de Direito da Universidade do Porto, Director da Escola de Criminologia | Professora Dou-tora Eugénia Cunha, Professora Catedrática FCTUC, Consultora Nacional para a AntropologiaForense do INML | Professora Doutora Constança Urbano de Sousa, Doutorada em direito comu-nitário, docente universitária e Coordenadora das matérias Justiça e Assuntos Internos (JAI), na Re-presentação Permanente de Portugal junto do Conselho da União Europeia em Bruxelas | ProfessorDoutor Rui Abrunhosa Gonçalves, Doutorado em psicologia, Professor Associado do Departamentode Psicologia da Universidade do Minho | Dr. Agostinho Soares Torres, Juiz Desembargador | Dr.Vítor Magalhães, Procurador da República no Departamento Central de Investigação e Acção Penal(DCIAP) | Dr. António Santos Carvalho, Juiz Conselheiro no Tribunal de Contas | Dr. AdrianoCunha, Procurador-Geral Adjunto, Auditor Jurídico junto da Assembleia da República | ProfessoraDoutora Fátima Pinheiro, Directora do Departamento de Genética e Biologia do INML, Delegaçãodo Porto | Professora Doutora Mafalda Faria, Palinologista, Instituto Superior de Ciências da SaúdeEgas Moniz | Professor Doutor Duarte Nuno Vieira, Presidente do Conselho Administrativo doINML | Dr. Carlos Farinha, Director do Laboratório de Polícia Científica | Dr. Magalhães e Silva,Advogado, membro do Conselho Superior da Ordem dos Advogados no triénio 96-98, membro da Co-missão Revisora do Código de Processo Penal 98 e autor de artigos e palestras várias sobre Direito Penale Processo Penal.Revisão: Carlos Ademar, João Paulo Ventura, José Leal, Nuno AlmeidaSecretariado/publicidade/Assinaturas: Helena Santos – Telefone: 915799104e-mail: [email protected] e Paginação: Atelier João BorgesImpressão: TecniformaTiragem: 2000 ExemplaresISSN: 1647-9300Depósito Legal: 322803/11Fevereiro / 2011Preço: Público em geral - 7 € | Entidades com quem a ASFIC/PJ tem parceria* – 5 € | Associa-dos da ASFIC/PJ - 3,50 €

* Membros da ASJP, SMMP, SFJ, OA, ASPP/PSP, professores e alunos das universidades e institutos com quem aASFIC/PJ tem protocolos de colaboração.

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3Índice

p. 6 Apresentação – Carlos Garcia, Mário Coimbra

p. 10 Segurança, políticas e polícias – Orlando Jorge Mascarenhas

p. 42 Direcção do inquérito e relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia

Judiciária – João de Almeida

p. 66 Técnicas especiais de investigação criminal – António Sintra

p. 86 O fenómeno que veio do Leste – João Miguel Ramos Mateus

p. 108 Investigação criminal face ao tráfico de seres humanos – Anabela Filipe

p. 134 Análise de resíduos de disparos de armas de fogo – João Freire Fonseca

p. 182 Análise das marcas de impactos e perfurações de vidro – Vitor Teixeira

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A revista “Investigação Criminal” visa a divulgação do conhecimento técnico-científico noâmbito das ciências forenses, bem como a promoção do debate sustentado entre perspectivasprofissionais relacionadas com a investigação criminal, integrada no sistema de justiça, e as dis-ciplinas que contribuem para a produção de saber relativo à realidade criminal na sociedadeportuguesa.A orientação editorial pauta-se, predominantemente, por princípios de qualidade científica,bem como pela selecção criteriosa de textos de base empírica, com especial relevância técnico-profissional.A filosofia de edição assenta na conjugação de artigos da autoria de funcionários da Polícia Ju-diciária com a de outros agentes do sistema judicial e fora dele, designadamente oriundos domeio académico e das profissões que interagem com a investigação criminal.Os trabalhos propostos para publicação devem ser enviados em formato digital para ([email protected]), ou em formato papel para os editores da revista Investigação Criminal,Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal.Os artigos deverão ser originais e a publicação depende da avaliação positiva da direcção edi-torial e do conselho consultivo. Os autores comprometem-se a não submeter os artigos parapublicação noutros periódicos nacionais.Os critérios de avaliação dos artigos assentam na qualidade e rigor dos argumentos apresen-tados, na validade dos dados expressos, na actualidade e adequação das referências contidas no trabalho e na oportunidade e relevância do artigo no âmbito da produção de saber.Os textos deverão ser impressos em formato A4, fonte Times New Roman, corpo 12, recuo deinício de parágrafo, justificado, espaço 1.5, numa única face, com um limite máximo de70.000 caracteres (cerca de 20 páginas), incluindo notas, bibliografia, quadros e figuras.Cada artigo deve ser acompanhado de um resumo com um máximo de 650 caracteres, retro-vertido em inglês.

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As referências bibliográficas das obras citadas devem obedecer às seguintes orientações:• Livro: Apelido, Nome Próprio, Título do Livro em itálico, Local de edição, Editor;• Artigo em publicação periódica: Apelido, Nome próprio, Título do artigo entre aspas,Nome da revista em itálico, Volume, páginas;• Textos em colectâneas: Apelido, Nome próprio, Título do texto entre aspas, Nome pró-prio e Apelido do organizador, Titulo da colectânea em itálico, Local da edição, Editor,páginas.

Fundada em 2010 no seio da ASFIC/PJ, a “Investigação Criminal” projecta-se como um veí-culo independente de posições sindicais e pretende ocupar posição na dialéctica inerente aesta área do conhecimento.A direcção da revista é assegurada por um director executivo, uma direcção editorial e umconselho consultivo. São publicados dois números por ano.

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Apresentação

Produzir e partilhar conhecimento

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Carlos GarciaPresidente Nacional da ASFIC/PJ

Mário CoimbraSecretário Nacional Adjunto da ASFIC/PJ

É com imenso prazer que redigimos esta nota introdutória no primeiro número da «INVES-

TIGAÇÃO CRIMINAL» - Revista Semestral de Investigação Criminal, Ciências Criminais

e Forenses que vai ser, seguramente, um referencial editorial incontornável na divulgação desta

nobre «arte de cunhar a verdade» que é a investigação criminal e de todas as áreas do saber téc-

nico e científico que com ela interagem, numa conjunção em permanente progresso, que tem

por única finalidade a reconstituição dos crimes e a descoberta da verdade material.

Nobre «arte», porque ao investigador criminal não apenas se exige uma vocação profissional

enriquecida de conhecimentos científicos e tecnológicos, de experiência e prática, mas também

a capacidade para impregnar todo o seu labor de variadas virtudes pessoais, entre as quais, a

intuição, a perspicácia, a criatividade, a persistência, a meticulosidade, para além de um fer-

vor quase religioso na entrega à profissão e de uma coragem que implica o desprendimento da

própria vida.

Não temos dúvidas de que a revista «INVESTIGAÇÃO CRIMINAL» vai ser uma poderosa

e apetecida ferramenta de informação e formação dos profissionais de investigação criminal da

Polícia Judiciária e também dos restantes operadores judiciários.

Com este novo projecto editorial, a ASFIC/PJ satisfaz mais um anseio dos seus associados, no

sentido de se criar no âmbito da Polícia Judiciária, uma publicação periódica de carácter téc-

nico – científico, que transforme em conhecimento partilhado os saberes adquiridos no terreno;

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que impulsione uma reflexão ancorada na acção; que ajude a articular a ACÇÃO e o PEN-

SAMENTO, para reforçar a aprendizagem colectiva e suscitar a criação de modelos de inter-

venção para utilização de todos os profissionais de investigação criminal.

À semelhança dos outros operadores da Justiça e da Segurança Interna, também a Polícia Ju-

diciária precisa de ter um espaço próprio para partilhar os conhecimentos e as boas práticas

com os demais actores da justiça, da segurança e das comunidades académicas, não só por

aquela necessidade intrínseca, mas também para compensar emocionalmente uma realidade

que tem vindo a tornar-se algo insuportável para os investigadores da PJ, que é a de assistirem

estupefactos a uma profusa produção escrita por parte de elementos «estranhos» à investiga-

ção criminal, sobre temas de investigação criminal, em que os actores principais ou quase úni-

cos são, na maioria dos casos, os investigadores criminais da Polícia Judiciária. Um surrealismo

que também acompanha uma abundância algo estranha de conferências sobre temas de inves-

tigação criminal onde os organizadores / oradores dissertam muito pouco ou nada sobre as suas

próprias atribuições e muito sobre atribuições praticamente exclusivas da Polícia Judiciária.

Desviando-nos destas considerações menos isentas, o que verdadeiramente queremos salien-

tar nesta nota é a natureza deste novo projecto editorial da ASFIC/PJ: um projecto pensado,

exclusivamente, como repositório de conhecimento técnico – científico com interesse intru-

mental para o exercício da investigação criminal.

De facto, o cunho sindical que ditou a nascença deste projecto editorial ficou, desde logo, res-

tringido ao impulso inicial e ao suporte logístico e financeiro. Este compromisso solene e for-

mal entre a Direcção da ASFIC/PJ e a Direcção Editorial da «INVESTIGAÇÃO CRIMINAL»

de desligar o projecto, desde a sua incubação, de qualquer condicionalismo de política sindi-

cal está bem patente na constituição desta Direcção Editorial, com investigadores criminais,

sem qualquer função no sindicato, reconhecidos pela seu currículo profissional e pela sua ape-

tência pela produção intelectual e pela qualidade dos trabalhos que já publicaram.

Nessa selecção procurámos, igualmente, que os responsáveis editoriais da revista fossem oriun-

dos de áreas cruciais de actuação da PJ, como seja, a do contra-terrorismo, do combate à cor-

rupção, ao tráfico de estupefacientes, passando pela formação da EPJ / metodologias de

investigação criminal / homicídios.

Esta Direcção Editorial tem pois poder e liberdade total para definir o estatuto e o rumo edi-

torial da revista «INVESTIGAÇÃO CRIMINAL», de forma independente, isenta, estrita-

mente submetida a critérios técnico-profissionais. Será sua incumbência exclusiva, igualmente,

seleccionar os colaboradores e os temas, bem como constituir e alargar o Conselho Consultivo,

Apresentação

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através da admissão de personalidades de grande relevo do mundo académico e da Justiça,

como é manifestamente o caso.

Duas notas finais de agradecimento: uma para a Direcção Editorial da «INVESTIGAÇÃO

CRIMINAL», ao Carlos Ademar, João Paulo Ventura, José Leal e Nuno Almeida, pela ener-

gia e dedicação que deram à produção deste número (a n.º 2 já está na forja, segundo sabe-

mos), pela dinâmica e esclarecida direcção de todo o processo editorial, pela excelência e a

oportunidade dos textos seleccionados e pelo magnifico Conselho Consultivo que já conse-

guiram congregar em torno deste projecto editorial.

A outra nota de agradecimento é para os autores dos artigos, Orlando Mascarenhas, João de

Almeida, António Sintra, João Mateus, Anabela Filipe, João Fonseca e Vítor Teixeira. Com a

vossa dádiva generosa do que produziram para este primeiro número da INVESTIGAÇÃO

CRIMINAL, transformaram-se num exemplo que queremos multiplicar exponencialmente e

deram a todos os envolvidos neste projecto um vigoroso incentivo à sua prossecução.

Carlos Garcia . Mário Coimbra

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Segurança, Políticas e Polícias

Segurança, Políticas e Polícias

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Orlando Jorge Mascarenhas

É inspector da PJ desde 1995. Licenciado em Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto,

tem vários trabalhos académicos publicados.

Desde há cerca de duas décadas, fruto de uma combinação de mudanças políticas e eventosocorridos à escala mundial, catapultou-se a “segurança” para o topo do discurso mediático, par-tidário e político.A segurança tornou-se um tema central das políticas públicas e foco de elevados ganhos fi-nanceiros de empresas privadas. Tal como a segurança governa a vida dos cidadãos, governara segurança tornou-se uma prioridade.Constatando a existência de uma certa ruptura entre o conhecimento científico e os discursospolíticos, são estes últimos muitas vezes toldados por uma visão ilusória dos acontecimentos.Podemos assim dizer que as políticas, como actividade ao serviço do homem em sociedade, uti-lizam a lei como instrumento de implementação das mesmas, podendo então projectar ne-cessidades que não se encontram totalmente verificadas.As políticas de segurança não escapam a esta realidade.No caso português, verificamos que em tempo recente, o Estado estabeleceu uma “nova” con-cepção do sistema de segurança interna. Justificou-o no facto de que a segurança tem de cor-responder ao quadro de riscos típicos do actual ciclo histórico, nomeadamente, no atender aosfenómenos da criminalidade grave e violenta, altamente organizada e transnacional.No imediato colocou-se-nos um conjunto de dúvidas. Será que a segurança interna, a segu-rança dos cidadãos, aquela que estabelece mecanismos de bem-estar no tecido social, é conse-guida, ou melhor, apenas deve assentar em algumas variáveis que interagem para esse fim,neste caso a criminalidade? E nessa mesma criminalidade, será que é a organizada, violenta etransnacional aquela que maior sentimento de insegurança proporciona aos cidadãos?

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Segurança, Políticas e Polícias

12 Afastando a nuvem negra da percepção de insegurança, apenas deve assentar nos fenómenoscriminais e em particular naqueles descritos como violentos, graves e transnacionais?Tais dúvidas potenciaram o desejo de explorar a segurança interna portuguesa, no sentido deverificar qual a proposta portuguesa, se virada para o cidadão e os seus bens, ou se concentradana securitização oriunda de discursos de insegurança, em que o Estado procura, através daPolícia, uma forma de controlar a criminalidade violenta, o terrorismo e os tráficos de drogase pessoas?Estas questões conduzem a uma necessidade: procurar o caminho. Explorar a segurança internaportuguesa, no sentido de tentar encontrar a resposta quanto à oferta que a mesma tem paraos cidadãos. Diversos autores fazem referência à necessidade de uma abordagem das questõesde segurança num âmbito interdisciplinar e interorganizacional, sendo o interveniente activodesignado por “Polícia”, apenas um dos necessários a tal fim. Nesse contexto, reformas emmodelos policiais têm vindo a ser desenvolvidas, designadamente o policiamento comunitá-rio, onde a ênfase é dada cada vez mais às decisões e intervenções de âmbito local; em que ocaminho a seguir deve centrar-se no cidadão e nos seus diversos bens e não naquilo a queGarland chama a criminalidade “dos outros”, isto é, a criminalidade transnacional, global,violenta.O caminho que traçamos para perceber essa tal proposta, traduz-se por uma revisão biblio-gráfica assente no conceito de segurança, onde através da mesma possamos enquadrar-nos deforma adequada e possamos identificar que, e qual, segurança é aquela que nos é oferecidapelo Estado.Sendo o discurso legislativo que traduz as políticas em execução num determinado período his-tórico, é através da análise do conteúdo intrínseco ao texto da lei, na sua componente quali-tativa, que podemos mergulhar nos fundamentos dessas mesmas políticas, servindo assim comessa análise, que os propósitos sejam atingidos.

I SEGURANÇA, MODERNIDADE, ESTADO SOCIAL

Com a entrada da modernidade, o estatuto do indivíduo muda radicalmente, sendo então re-conhecido por ele próprio, independentemente da sua inscrição no colectivo. Contudo, ele nãoé capaz de assegurar a sua independência, antes pelo contrário. Neste contexto, uma socie-dade de indivíduos não será propriamente uma sociedade, mas sim um estado de natureza, ouseja, um estado sem lei, sem direito, sem constituição política e sem instituições sociais, levandoa uma frenética concorrência dos indivíduos entre si, que conduz à guerra de todos contratodos. Teremos assim uma sociedade de insegurança total. Afastados de toda a regulação co-lectiva, os indivíduos vivem sob o signo da ameaça permanente, pois não detêm o poder de

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Orlando Jorge Mascarenhas

13proteger e de se protegerem. Castel (2003), refere que, conceber as leis que permitirão prote-ger, coloca-se como um imperativo categórico, que fará assumir, não importa a que preço, apossibilidade de vivência em sociedade. Esta sociedade será fundamentalmente uma sociedadede segurança, pois esta é a condição primeira e absolutamente necessária para que os indiví-duos separados dos contratos de protecção tradicionais, possam “fazer sociedade”.Campenhoudt (2003), diz que os Estados constroem-se pouco a pouco e assentam sobre umduplo monopólio, o militar e policial, já anteriormente chamado por Max Weber como o mo-nopólio da violência legítima, isto é, a exclusividade do direito de manter um exército e for-ças de polícia necessárias à pacificação e ao controlo do território e o monopólio fiscal que éindissociável do da violência legítima. O Estado deve apoiar-se numa administração, cujosmembros se caracterizam pela especialização e em consequência desta, cada vez mais interde-pendentes.A interdependência, é a característica de um sistema social cujas componentes dependem umada outra, permanecendo em estado de tensão. Uma situação espácio-temporal concreta de in-terdependência, tal como a existente entre o Governo, o Parlamento, a Lei, as Organizações eos cidadãos, designada por configuração1, em que se deve pensar não em termos de indivíduos,de grupos ou de instituições consideradas em si, mas sim em termos de relações e de posiçõesdefinidas num dado sistema social, com relações na sua dinâmica própria, é aquilo que con-substancia a transformação social. É este processo de interdependência, que origina uma so-cialização do monopólio, onde o poder permanece centralizado, mas está cada vez maisdespersonalizado, exercido colectivamente por um conjunto de instituições, sendo que esta so-cialização conduzirá à consolidação dos Estados modernos e a uma modificação da naturezados conflitos (Campenhoudt, 2003).Para Campenhoudt (2003), pôr em evidência as leis estruturais de uma determinada naçãoconduz à questão da liberdade dos indivíduos. Segundo Hayeck (2009), não existe qualquerincompatibilidade de princípio entre ser o Estado a proporcionar mais segurança e a manu-tenção da liberdade individual. A questão coloca-se é num contexto de garantia de segurançaa determinados grupos, fazendo com que se intensifique a insegurança para os que são ex-cluídos deste processo, conduzindo tal atitude a que o privilégio da segurança tenha cada vezmais importância. Hayeck (2009), refere que a exigência de segurança torna-se assim maispremente, até que por fim ela é desejada a todo o custo, mesmo da liberdade.Numa sociedade habituada à liberdade, é improvável que muitas pessoas estejam dispostas apagar este preço pela segurança. Contudo, as políticas que por todo o lado estão a ser imple-mentadas, e que confiam o privilégio de segurança a este ou aquele grupo de indivíduos, estão

1. A noção de configuração aqui tomada insere-se na apresentada por Elias, N. (1975). La Dynamique de L’Óccident.Paris: Calmann-Lévy., em que a situação espácio-temporal concreta de interdependência associa estruturas sociais epsíquicas.

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a criar condições para que a aspiração à segurança seja maior que o amor à liberdade, uma vezque ao assegurar a completa segurança de um grupo, aumenta necessariamente a insegurançados outros. Assim, quanto mais se tenta garantir a segurança plena, maior se torna a insegu-rança, ou pior ainda, maior se torna o contraste entre a segurança daqueles a quem é dadacomo privilégio e a crescente insegurança dos não privilegiados. Com o aumento dos que sãoprivilegiados, e intensificação da diferença entre a sua segurança e a insegurança dos outros,emerge gradualmente um novo conjunto de valores sociais (Hayeck, 2009). Nesse sentido, jánão é a independência, mas a segurança, que confere posição e estatuto. A tendência geralpara se garantir segurança através de medidas cada vez mais restritivas e coercivas, toleradas eapoiadas pelo Estado, com o tempo produziram uma transformação progressiva da sociedade.A questão que se coloca é a de saber se, alterando as instituições para satisfazer essas exigên-cias, não estarão os governos, inadvertidamente a destruir valores que ainda são mais preza-dos. Para Hayeck (2009), um dos objectivos da política terá de ser a segurança adequada aproporcionar o bem-estar social, eliminando as causas e prevenindo os efeitos. Contudo, talsó deve ser conseguido salvaguardando a liberdade, pois quem estiver disposto a abdicar da li-berdade essencial contra uma segurança temporária não merece nem a liberdade nem a segu-rança.A edificação do Estado Social, na primeira metade do séc. XX, destacou a actuação da segu-rança social e dos serviços públicos na protecção dos cidadãos. Terminada a reconstrução sub-sequente à II Guerra Mundial, esta tendência mudou, verificando-se que a exclusão duradourado mercado de trabalho ou a precariedade dos salários, conduziram a uma importante ondade falta de protecção – cada vez mais pessoas abandonadas à sua própria sorte rompiam asmalhas da rede de protecção social e dos serviços públicos (Robert, 2007).Para Robert (2007), o enfraquecimento da autoridade pública e da sua legitimidade, autori-zaram uma certa brutalização das relações sociais, tendo as zonas de exclusão social passado atestemunhar manifestações de violência, em especial por parte dos jovens, contra tudo aquiloque representava a sociedade organizada. É certo que se trata de migalhas de violência de baixaintensidade, contudo, suscitam reacções muito fortes de insegurança.

II SEGURANÇA E/OU INSEGURANÇA

Tradicionalmente, o conceito de segurança está ligado a um acto ofensivo ou acontecimento,que afecte significativamente os objectivos políticos do Estado, em termos que colocam emcausa a sua sobrevivência como unidade política. Em particular, desde a Revolução Francesa,a imagem da segurança como objectivo do Estado, traduzido na prática, como bem colectivo,associou a segurança do indivíduo à própria segurança do Estado. A edificação do Estado

Segurança, Políticas e Polícias

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soberano, concebido como o detentor legítimo do monopólio dos instrumentos de violênciaorganizada, foi sempre legitimada pela necessidade de segurança das pessoas (Sarmento, 2007).Neste contexto, verificamos a emergência daquilo a que podemos chamar de Polícia, consti-tuída como aparelho do Estado desde a altura da Declaração dos Direitos do Homem e do Ci-dadão, promulgada em França em plena revolução de 1789. Esta é uma força pública paga portodos e com a missão fundamental de garantir os direitos dos cidadãos e cujo benefício devareverter a favor da colectividade. Nasce assim o aparelho policial, ao mesmo tempo que a pri-são como instituição do aparelho judicial. A polícia é assim uma realidade do Estado con-temporâneo, inserida na vertente dos aparelhos de controlo, onde se destaca o controlo penale a aplicação selectiva dos seus recursos (Recasens, 2003). A proeminência da segurança na sociedade contemporânea, encontra-se relacionada com asameaças que recentemente justificaram as leis de segurança, as políticas, medidas, serviços eprodutos. Os acontecimentos ocorridos em 11 de Setembro de 2001 nos E.U.A., os subse-quentes actos de atrocidade terrorista, as ameaças das armas, drogas e criminalidade grave, or-ganizada e transnacional, licenciaram medidas extraordinárias e excepcionais. Em nome dasegurança, coisas que eram politicamente incapazes, passaram a ser pensadas a fim de seremaplicadas (Zedner, 2009). O antónimo da segurança, “insegurança”, conduz o controlo do crime, o policiamento, polí-ticas anti-terroristas e é a grande responsável para o crescimento de programas de segurançacomunitária, bem como para a proliferação de materiais de segurança, serviços e tecnologia.O próprio termo, derivado de “securitização”, denota consequências éticas e analíticas de es-truturação dos diversos assuntos políticos em termos de segurança, reconhecendo-se comonão sendo apenas uma categoria analítica, mas também uma categoria de práticas ou “discur-sos”, ou uma forma de catalogar e responder a problemas sociais (Zedner, 2009).A aplicação do termo segurança na esfera política, exprime o objectivo de estar a salvo deameaças, sendo esta uma condição subjectiva de sentimento seguro e o assegurar de garantias.A segurança, carrega assim um significado normativo de um bem público que deve ser de-fendido pelo Estado. Na linha do pensamento weberiano, o Estado deve possuir o monopó-lio do exercício da violência (Castel, 2003).Há que considerar, contudo, que os elementos referentes ao conceito de (in)segurança, inse-ridos em determinado ambiente social, económico, histórico e político em concreto, nãopodem ser tidos como portadores de uma validade universal, pois os mesmos existem e mo-dificam-se em função de momentos e situações concretas, devendo ser tratados como concei-tos complexos, dinâmicos e condicionados pelo seu ambiente (Recasens, 2007) . É frequente encontrar indistintamente empregues na linguagem do quotidiano os termos e osconceitos de segurança e insegurança, adjectivados como sendo (in)segurança pública e/oudos cidadãos e como se tratasse da mesma coisa, como uma espécie de verso-reverso de umadeterminada situação.

Orlando Jorge Mascarenhas

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Acompanhando o entendimento de senso comum, (in)segurança pode ser definida como umsentimento ou estado de bem-estar, daí resultando que a insegurança é um sentimento ou es-tado de precariedade e medo. Se entendermos a segurança como a garantia e a confiança noatingir de metas específicas, então a insegurança é a falta de esperança, um sentimento deauto-constrangimento e uma crença na futilidade do progresso. Quando a segurança é perce-bida como uma condição de estabilidade ou permanência, em que o indivíduo pode manterexpectativas de manutenção do seu ambiente ou relações, então a insegurança é a incerteza dofuturo, das actividades e intenções das outras pessoas, isto é, o receio do desconhecido.Segundo Vail (1999), são as mudanças sociais, económicas e políticas, ocorrendo por vezes emritmos alucinantes nas sociedades modernas, que promovem a insegurança. Para compreen-der a intensificação da (in)segurança nas décadas mais recentes, torna-se indispensável referiras actuações e as políticas dos Estados, sendo notórias as influências sobre esta temática das op-ções políticas no que respeita ao mercado de trabalho, à habitação, ao ambiente, ao bem-estarsocial e à família. Neste contexto, assim se verifica que a (in)segurança não se desenvolve deigual modo no espaço, nem no tempo, nem pelo mesmo tipo de razões. Ainda de acordo comVail (1999), na sociedade contemporânea coexistem três áreas fundamentais onde se desen-rolam as actividades que afectam a segurança. São elas a economia, o bem-estar da sociedadecivil, e a política nacional ou internacional. Para além do Estado, são também actores nestasáreas, promovendo medidas de segurança ou gerando formas de insegurança, as famílias, as or-ganizações e ainda os órgãos de comunicação social. Em cada uma destas áreas, o Estado de-fine objectivos estratégicos, medidas e metas que acabam por institucionalizar um “regime desegurança”. Para Vail (1999), os fundamentos políticos da (in)segurança, provenientes dessemesmo Estado, caracterizam-se por vários factores a ter em conta: a extensa actividade estatalpara implementar segurança nas áreas referidas, podendo, contudo, gerar-se insegurança, frutoda não antecipação das consequências das opções políticas; de erros críticos cometidos pelos de-cisores políticos; de uma deficiente definição de prioridades de interesse social e, por último,quando o próprio Estado se esquiva a fornecer essa segurança e a transfere para outras forças so-ciais, tais como o mercado privado, as famílias, as igrejas ou as organizações voluntárias.Na maioria dos países da União Europeia, como a França, Itália, Reino Unido, o conceito desegurança pública (public safety, sécurité publique, pubblica sicurezza) parece traduzir, geral-mente em termos jurídicos, a ideia de existência de uma competência das instâncias públicasem matéria de segurança. Pelo contrário, a ideia de uma expectativa dos cidadãos desfrutaremdos seus direitos e liberdades numa situação de convivência social vinculada a determinadosparâmetros de segurança, assim como a exigência da sua garantia aos poderes públicos, faz-semediante a utilização de expressões como “sicurezza urbana o citadina, sécurité citoyenne, co-munity safety…” vinculadas, essencialmente, ao âmbito municipal/local (Recasens, 2007).Para que segurança e insegurança pudessem ser termos opostos, seria necessário que tivessema mesma natureza, a mesma essência.

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Partindo de uma definição estabelecida de segurança pública, podemos distinguir duas acep-ções: a ideia de um estado de convivência e a de que é uma competência das instâncias públi-cas. Adoptando um enfoque na competência, não se pode falar de insegurança como o opostode segurança, a não ser que se falasse num abandono de competências e aí haveria que deter-minar para onde vão tais competências abandonadas pelos poderes públicos. Trata-se de umdebate político e de quotas de poder a respeito da distribuição dos espaços de segurança entreo público e o privado, ou como diz Recasens (2007), o “macro e o micro”. O abandono doexercício de competências pelo poder público pode produzir um vazio e provocar uma ocu-pação desse espaço por outros agentes, os privados. Segundo Robert (2007), o Estado, frutoda globalização, em particular da esfera económica, que escapa cada vez mais à sua regulação,tem centrado a sua atenção na tentativa de controlo dos grandes fluxos transnacionais de po-pulação - imigração ilegal e tráfico de pessoas; de dinheiros -branqueamento de capitais; demercados proibidos - tráfico estupefacientes - e do fenómeno do terrorismo. Contudo, estesmétodos não lhe têm permitido responder às necessidades de segurança das pessoas e dos seusbens, estando a segurança destes abandonada à esfera da segurança privada.Se considerarmos a segurança como um estado de convivência, a insegurança consistiria naquebra de expectativas razoáveis das condições de cada Estado. Num plano tão amplo comoo da segurança pública, tal significaria a existência de um nível de desconfiança nas institui-ções, que levaria à crise da própria sociedade (Recasens, 2007).De todas as formas, o que se coloca em evidência com a quebra da ilusão de um Estado tutore de bem-estar, é a incapacidade do mesmo para promover as necessidades integrais de segu-rança, rompendo-se assim o conceito de monopólio estatal da violência vítima. Cai igual-mente o papel central do aparelho “polícia” em matéria de segurança, contribuindo destaforma para a abertura de novos espaços de segurança que alteram os limites dos Estado-Nação.O surgimento de espaços macro-securitários do tipo supra-estatal, tal como o espaço policialeuropeu, fizeram com que as seguranças internas se tenham convertido numa questão multi-lateral. Ao mesmo tempo, a necessidade de uma maior atenção na segurança dos cidadãos edas suas exigências básicas, desenvolveram um interesse crescente pelos aspectos micro-secu-ritários, que são plasmados nas implantações de polícia comunitária, de proximidade ou dasteses de tolerância zero (Recasens, 2003). O policiamento comunitário foi uma das primeiras inovações surgidas neste último período,no contexto das metodologias de actuação policial.Um dos elementos do movimento de policiamento comunitário, caracteriza-se pelo envolvi-mento que a comunidade deve ter, sendo mesmo de papel fundamental, na definição dos pro-blemas relacionados com a sua segurança, a que a polícia deve atender, sendo estes problemasextensíveis muito para além daquilo que é convencional nas actuações das forças de segurança(Skogan, 2004).

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Na era do policiamento comunitário, as funções da polícia incluem a manutenção da ordempública, a resolução de conflitos, o fornecimento de serviços através de mecanismos de reso-lução de problemas, bem como todo um conjunto de outras actividades.Uma importante contribuição do policiamento comunitário é o reconhecimento da existên-cia de muitos problemas críticos na comunidade, na estrutura social, a que a polícia se podedirigir na sua actuação e que não são referenciados como problemas criminais, ou seja, não sãocrimes (Skogan, 2004).O policiamento comunitário representa uma visão alternativa do papel da polícia na sociedade.Uma das suas características, referida como sendo eficaz é a descentralização geográfica, ca-racterizada por uma autoridade e responsabilização a níveis mais baixos na hierarquia organi-zacional das instituições policiais, a fim de promover e encorajar a tomada de decisões querespondam de uma forma rápida e eficaz às condições dos locais de actuação. Esta descentra-lização supõe facilitar o desenvolvimento de soluções localizadas nos problemas de segurançadas comunidades, tendo sido já encontrados dados empíricos que mostram que a adopção detácticas de policiamento comunitário reduzem a desordem e o crime violento (Skogan, 2004).Para Agra (2008), torna-se fundamental uma definição clara dos poderes em jogo na questãoda (in)segurança, sendo eles, o poder central, o poder local e o poder dos cidadãos. Do seu con-ceito e convergência deriva o sistema de forças que permite caminhar entre duas escolhas: aperversão dos valores, por um lado; a inacção ou o simples laissez-faire, por outro.Fazendo alusão a Philippe Robert, Agra (2008), caracteriza a posição do Estado perante o fe-nómeno da (in)segurança, como sendo promotor de um divórcio com os cidadãos. Estes úl-timos, tomados por um crescente sentimento de insegurança e medo do crime, voltam-se parao também crescente mercado da segurança, ou refugiam-se em “bolhas de segurança”, que sãoas grandes superfícies urbanas, as galerias comerciais, etc., tornando-se assim o espaço públicouma verdadeira selva. Questiona-se então qual a resposta que o Estado oferece a todos aque-les que não podem pagar o condomínio fechado ou valer-se do mercado de segurança; ouaqueles que recusam o refúgio nas “bolsas de segurança” inseridas na lógica do consumismo.O Estado cai na tentação de um securitarismo, inventor ele próprio dos chamados “modelospoliciais integradores”, assentes numa visão predominantemente securitária e concentracionáriade poderes, favorecendo o desequilíbrio do princípio da separação dos poderes do Estado.Constata-se então que a insegurança constitui uma situação, e não um estado, sobre a qual nãocabe estabelecer qualquer equilíbrio e que não pode ser geral nem duradoura, devendo-se falarde insegurança como uma situação, real ou percebida, limitada no tempo e/ou no espaço emdeterminada sociedade. Se a insegurança se mantém em parâmetros aceitáveis ou de tolerân-cia social, o conflito permanecerá latente, mas não irá produzir crises. No contrário, corre-seo risco de deteriorar o tecido social e deslizar para modelos não democráticos, pelo que, é deextrema importância a elaboração e aplicação das políticas públicas de segurança acertadas.

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Em relação à segurança dos cidadãos, a mesma existe quando uma pessoa, ou um grupo social,se sente seguro, porque existe um conjunto de requisitos concretos que lhes permite aferir umaexpectativa razoável de não se verem afectados na sua integridade nem na legítima posse e usu-fruto dos seus bens, podem exercer os seus direitos e liberdades numa situação de convivênciasocial, determinada, aceite, assumida e garantida pelos poderes públicos, constituindo umaparte da segurança pública. Hayeck (2009), refere a não existência de qualquer incompatibili-dade de princípio entre ser o Estado a proporcionar mais segurança e a manutenção da liber-dade individual. Torna-se impossível, num ambiente democrático real, entender a insegurançados cidadãos como um estado prolongado no tempo, em que uma pessoa ou um grupo socialse sente inseguro, porque não se dá esse conjunto de requisitos concretos que lhe permita aferiruma expectativa razoável de garantia da sua integridade e da preservação legítima dos seus bens,numa situação de exercício efectivo dos seus direitos e liberdades de convivência social, deter-minada, aceite, assumida e garantida pelos poderes públicos, tornando-se então necessário negarque a insegurança seja o contrário da segurança dos cidadãos.Recasens (2007) refere que a segurança dos cidadãos constitui um estado derivado de um outrosuperior, mas, ao mesmo tempo, é uma actividade de garantia, em que nesta última condição,deve assegurar a execução de políticas de segurança pública, que para estes efeitos constituem aspolíticas “macro”, sendo a segurança dos cidadãos um mecanismo que opera num plano abs-tracto, político e outro em que se reflictam a execução e visualização das políticas, portanto, ca-talisa não só as exigências de segurança, mas também os sentimentos e as consequências dainsegurança.Associado à ideia de (in)segurança encontra-se o conceito de risco, onde segundo Castel (2003),a proliferação contemporânea de uma aversão ao risco, faz com que o indivíduo no seio da so-ciedade, não possa jamais sentir-se totalmente em segurança. Esta tal proliferação de riscos apa-rece ligada à própria promoção da modernidade. A “sociedade do risco”, assim designada porUlrich Beck, é a própria sociedade moderna, onde aquilo que comanda o andamento da civili-zação não é o próprio social, mas sim um princípio geral de incerteza (Castel, 2003).Torna-se assim necessário distinguir o que se entende por risco. No sentido da própria palavra,risco é um acontecimento previsível, onde se pode estimar as possibilidades que o mesmo temde se produzir e o custo dos prejuízos que este trará (Castel, 2003). Para Anthony Giddens, a“cultura do risco” significa que os indivíduos são cada vez mais sensíveis às novas ameaças quese encontram no mundo actual e que se multiplicam, sendo estas produzidas pelo próprioHomem, através do uso incontrolado da ciência e da tecnologia, e de uma instrumentalizaçãodo desenvolvimento económico, tendente a fazer do mundo inteiro uma mercadoria. Assim queos riscos parecem erradicados, o cursor da sensibilidade aos riscos desloca-se e faz aflorar osnovos perigos (Castel, 2003). Contudo, actualmente este cursor encontra-se colocado numplano muito elevado, o que sustenta uma demanda completamente irrealista da segurança.

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III - POLÍTICAS

Para Sarmento (2007), a política, enquanto conjunto de comportamentos humanos que in-cluem a dominação do homem pelo homem, funda-se na obediência às prescrições legais ou aosintérpretes e executantes da própria legalidade, e não aos indivíduos. A dominação é racional eanónima e depende desta continuidade da dominação, a existência de uma acção burocrática quedá origem a um poder especializado na elaboração do formalismo legal e na conservação da leiescrita e dos seus regulamentos. Neste sentido, a diversidade e o pluralismo de interesses foramsobrevalorizados e a acção pública foi remetida para uma função residual que operaria essen-cialmente ao nível da concertação de interesses das forças em presença, numa modalidade rela-tivamente exemplar de agenciamento da sociedade democrática num Estado social (Sarmento,2007). Diferentes reformulações na exploração desse mesmo sentido das políticas públicas, acen-tuaram o peso dos grupos particulares nas tomadas de decisões, onde os grupos de interesse, osserviços burocráticos e administrativos e os grupos parlamentares, criaram relacionamentos só-lidos entre si, formulando vectores componentes de decisões, que resultam da participação nasdecisões e na disponibilização de recursos. Nestas perspectivas, a produção de políticas públicasde carácter corporativista aproximam-se do conceito de partidocracia, oriundo do anglo-saxão“party government”, que caracterizam um tipo de governo cuja essência está num modelo de de-cisão pública.Sarmento (2007), afirma que o estudo das políticas públicas começou por aceitar o Estado comoentidade autónoma, tendo a partir do neocorporativismo, avançado para a caracterização dosmodos de acção dos diferentes grupos e interesses em presença, para no final descodificar em quesentido e orientação eram implementadas as decisões. O caminho traçado permitiu caracterizaro poder do Estado, desvalorizando-o e atribuindo a mecanismos exteriores a produção de polí-ticas públicas, esvaziando-o do poder de execução.As políticas de segurança formam parte das políticas públicas, e estas, por sua vez, da política emgeral. Quer isto dizer que, ao inserir as políticas de segurança neste contexto, é falar da políticae da sua relação com o poder, mas sem que signifique confundir os diferentes níveis e discursossobre a política (Recasens, 2007).Numa concepção clássica, a actividade política encontra-se vinculada ao exercício de poder, po-dendo este dividir-se em três grandes classes: o poder económico, articulado na organização dasforças produtivas através dos meios de produção; o poder ideológico, que gira à volta da orga-nização do consenso, principalmente mediante os meios de comunicação de massa e o poder po-lítico, baseado na organização da coerção através do uso do monopólio da força (Recasens, 2007).Num modelo democrático, pode dizer-se que quem exerce o poder político tem a capacidade ea obrigação de tomar decisões legítimas, que devem orientar-se para a finalidade de um bem

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comum, mas que não podem ser separadas dos objectivos espácio-temporais propostos poraqueles que foram eleitos e encarregues de governar. O uso da coacção legítima, quer no es-paço interior – manutenção do controlo - como no exterior – manutenção da integridade doterritório – tem a ver com a necessidade de preservação do espaço em que se exerce o poder,que nas nossas sociedades tem vindo a ser identificado como o Estado (Recasens, 2007).Uma política pública é o resultado da actividade política, tratando-se de decisões adoptadasformalmente no seio das instituições públicas, que lhes confere a capacidade de obrigar, tendosido precedidas de um processo de elaboração no qual participaram uma pluralidade de acto-res públicos e privados (Recasens, 2007). Uma política pública surge assim como resultado daactividade de uma autoridade investida de poder público e de legitimidade governativa, sendoque toda a política pública é algo mais que uma decisão, implicando normalmente uma sériede decisões – decidir que existe um problema; decidir que se deve tentar resolver; decidir a me-lhor maneira de proceder; decidir legislar sobre o tema.

No sentido atribuído por Sarmento (2007), a complexidade da sociedade contemporânea e oparadigma da sociedade de risco, têm transformado a segurança, na segurança humana, bemcomo, tem sido atribuído à globalização o aumento de níveis de insegurança. Tal visão toma porpressuposto, que antes do fenómeno da globalização, existiam ligações robustas entre espaço eidentidade nacional. A globalização, ao eliminar as identidades, destrói as estruturas identitá-rias, desloca as pessoas e homogeneíza a cultura para fins de mercado, eliminando as diferen-ças entre as culturas espacialmente definidas, que antes constituíam as denominadas “culturasnacionais”. No entanto, a maioria das políticas de segurança nacionais e internacionais aindase baseia no clássico centro estável, o Estado, recorrendo à fórmula do Estado Nação Moderno.A política é uma actividade ao serviço da colectividade, ao serviço do Homem: é a actividadesocial que se propõe assegurar pela força, geralmente baseada no Direito, a segurança, garan-tindo a ordem no meio das lutas que nascem da diversidade e divergência de opiniões e inte-resses.O âmbito do político circunscreve-se à situação de excepção, que autoriza quem possui poderde decidir a adopção de medidas necessárias para resolver a situação, conservando o existenteou criando uma nova situação de ordem (Schmitt, 2004).A decisão soberana tem o poder de estabelecer uma ordem concreta, nova, normalizada, atra-vés do Direito. Essa ordem concreta aglutina o pensamento de soberania e da ordem sociopo-lítica objectiva em termos de normalidade e normatividade, sendo esta a expressão da ordemreal que se reserva continuamente.

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O Direito encontra-se socialmente pré-ordenado, como integrante de uma comunidade hu-mana, articulada dentro de um espaço, de forma que a norma é a expressão formal dessa ordemcomunitária (Schmitt, 2004).Em toda a situação política, stricto sensu, encontra-se presente, de alguma forma, um conflitoentre grupos de “amigos” e “inimigos” à volta de uma determinada matéria objecto de contro-vérsia.O Estado, enquanto unidade essencialmente política, possui a possibilidade real de determinarquem é o inimigo e desta forma combatê-lo.Esta manifestação de poder, só pode ocorrer debaixo da condição de que esse mesmo poder, quese revele e reconheça no Direito e que não se possa impor de outra forma que não seja atravésda norma jurídica. Assim, o Estado dá-se a conhecer de forma exclusiva, através da legislação,isto é, das Leis.Sendo a lei, a norma jurídica, criada pelas autoridades competentes para o efeito através de pro-cessos próprios do acto normativo, a palavra Lei, pode ser empregue em três sentidos diferen-tes: um muito amplo, que traduz toda a regra jurídica, onde abrange os costumes e todas asnormas formalmente produzidas pelo Estado; num sentido amplo, em que lei é somente a regrajurídica escrita, excluindo-se assim o costume jurídico e num sentido técnico, designando umamodalidade de regra escrita, apresentando determinadas características (Schmitt, 2004).Encontrando-se a lei como a principal fonte do Direito nos sistemas jurídicos da maioria dosEstados europeus, a mesma é o mais comum processo da criação e elaboração do Direito nossistemas continentais europeus.O conceito de lei, quer no sentido formal como material, representa todo o acto normativo ema-nado de um órgão com competência legislativa, um órgão do Estado. Sendo o Estado umaforma política adoptada por um povo com vontade política que constitui uma nação, para quese submetam a um poder político soberano, emanado da sua própria vontade e que lhe vem darunidade política, vai assim utilizar a Lei como seu instrumento para exercer a sua política(Schmitt, 2004).

IV - METODOLOGIA

Qual o sentido de utilização no estudo da palavra “Lei”?Para Poiares (1996), “lei” será o conteúdo das normativas, procurando captar nelas a raciona-lidade subjacente, a filosofia exposta pelo legislador. Assim, as leis, cada uma sob apreciação,não podem ser desligadas de uma realidade mais vasta, político-económica e sociocultural, omacrocosmos social, que constitui a matriz sobre a qual se fundam as composições legislativas.

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Interessa-nos, portanto, o discurso do Poder, nas suas duas vertentes: a externa, ou seja, a con-figuração imediata, e o intradiscurso, entrecruzando-se estes elementos na leitura legislativa datemática da segurança interna, averiguando qual a proposta portuguesa para a assegurar, se vi-rada para o cidadão e seus bens, garantindo a integridade destes e a preservação legítima da-queles, ou se concentrada numa securitização estatal alicerçada nos discursos da insegurança,fruto da globalização, em que esse mesmo Estado procura, através do policiamento, um meiopara controlar os grandes fluxos transnacionais de população, de dinheiros, de mercadorias ilí-citas (drogas), de violência e do fenómeno do terrorismo. Destacou-se como personagem cen-tral da investigação o legislador, na sua acepção formal, ou seja, os órgãos de poder político quesão criadores das normativas – Parlamento e Governo – e que integram nas sociedades con-temporâneas o Poder Legislativo, que através dessa sua função soberana, determinam as li-nhas pelas quais a segurança interna deve ser executada e com que intervenientes.

Para tal e porque no trabalho que pretendemos desenvolver é sobre esse tal discurso legislativoque buscamos a essência do conteúdo normativo, serve-nos como fonte a legislação em vigorno nosso país. Contudo, nem toda a legislação é adequada e exequível no seu tratamento parao fim proposto, sendo que para o tema da segurança interna, optamos por limitar como amos-tra a legislação que directamente versa sobre a segurança interna nas suas dimensões de inves-tigação criminal, prevenção, repressão e ordem pública, tendo-nos servido para o efeito daproposta de Lei nº 184/X que surge na sequência da Resolução de Conselho de Ministros nº45/2007 de 19 de Março, que expõe os motivos para a alteração da Lei de Segurança Internaadaptada aos quadros de riscos típicos da actualidade histórica, relevando os fenómenos da cri-minalidade grave, violenta, organizada e transnacional.Neste âmbito, optou-se por utilizar como fontes a legislação referente quer à própria lei de se-gurança interna, como também à lei-quadro de política criminal e lei de política criminal parao triénio 2009/2011, bem como as leis orgânicas das forças e serviços de segurança: Polícia Ju-diciária, Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana e Serviço de Estrangei-ros e Fronteiras, por serem estas que exercem, em âmbito nacional e transnacional, asdimensões de investigação criminal, prevenção, repressão e ordem pública.O tempo histórico foi assim limitado ao actual, ou seja, à legislação que se encontra em vigor,pois pretendemos abordar a proposta portuguesa de segurança interna no momento em quea vivemos, não se enquadrando assim neste trabalho uma perspectiva histórica anterior nemcomparada.Limitamos o período histórico à actualidade, isto é, ao período de 2000 a 2010. Tal limitaçãofoi estabelecida tomando como referência as datas-limites da entrada em vigor das diversas

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24 fontes legislativas em análise. Sendo apontado no novo conceito estratégico de segurança in-terna, a criação de um sistema que corresponda ao quadro dos riscos típicos do actual ciclo his-tórico e fazendo parte do mesmo quer as orientações de políticas criminais, quer comointervenientes as diversas forças e serviços de segurança, com as respectivas actualizações le-gislativas, optou-se por temporalmente ficarmos situados neste período.Recorrendo a uma pesquisa legislativa na página oficial na internet do Diário da República,seleccionou-se e recolheu-se para suporte em papel e digital os textos legais que serviram comofonte.

A análise da legislação reportável à segurança interna, implica a delimitação do objecto de in-vestigação. A abordagem do tema pode espraiar-se por múltiplas áreas do conhecimento, con-tudo, o corpus para análise, aquele que foi definido como objecto de pesquisa consiste nalegislação vigente à segurança interna. A Resolução do Conselho de Ministros nº 45/2007, de19 de Março, comprometeu-se a promover a alteração da Segurança Interna no nosso país, deforma a criar um sistema que se mostre eficaz no combate à criminalidade grave, de massa eviolenta, altamente organizada e transnacional, a económico-financeira e o terrorismo. É de-signado assim o conceito estratégico de segurança interna para o nosso país. Este conceito es-tratégico é alcançado não só com a Lei de Segurança Interna, como também com a Lei-Quadrode Política Criminal e Lei sobre Política Criminal e ainda com as leis orgânicas das forças e ser-viços de segurança. Neste âmbito optamos por delimitar o nosso corpus para análise, ou seja anossa amostra, aos textos legislativos referentes à Lei de Segurança Interna, Lei de Organiza-ção de Investigação Criminal, Lei-Quadro de Política Criminal, Objectivos de Política Cri-minal para o biénio 2009/2011, Lei Orgânica da Polícia Judiciária, Lei Orgânica da Polícia deSegurança Pública, Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, Lei Orgânica do Serviçode Estrangeiros e Fronteiras. Utilizamos assim como amostra os seguintes textos legislativos:

• Lei nº 53/2008, de 29 de Agosto (Lei de Segurança Interna)• Lei 49/2008, de 27 de Agosto (Lei de Organização da Investigação Criminal)• Lei 17/2006, de 23 de Maio (Lei-Quadro de Política Criminal)• Lei 38/2009, de 20 de Julho (Definição dos objectivos e orientações de política cri- minal para o biénio de 2009/2011)

• Lei 37/2008, de 06 de Agosto (Lei Orgânica da Polícia Judiciária)• Lei 53/2007, de 31 de Agosto (Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública)• Lei 63/2007, de 06 de Novembro (Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana)• Decreto-Lei nº 252/2000, de 16 de Outubro (Lei Orgânica do Serviço de Estran-

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Por detrás do discurso aparente, geralmente simbólico e polissémico, esconde-se um sentido queconvém desvendar. A actividade interpretativa na análise de conteúdos é sustentada por pro-cessos técnicos de validação (Bardin, 2007) .Neste contexto, como metodologia recorremos à análise de conteúdo, pois permite interpretaro conteúdo imanente ou implícito da mensagem escrita nos diplomas legais, como forma deidentificar objectivamente2 as políticas públicas de segurança que se encontram subjacentes.À subtileza dos métodos de análise de conteúdo correspondem os objectivos de, “a superaçãoda incerteza”, isto é, aquilo que se julga ver na mensagem, estará ou não lá contido e o “enri-quecimento da leitura”, traduzido pela descoberta de conteúdos e de estruturas que confirmamou infirmam o que se procura demonstrar ou pelo esclarecimento de elementos de significaçãosusceptíveis de conduzir a uma descrição de mecanismos de que à priori não detínhamos a com-preensão.A análise de conteúdo, possui assim duas funções, que podem ou não dissociar-se: a função heu-rística, onde a análise enriquece a tentativa exploratória, aumentando a propensão à descoberta,e a função de administração da prova em que as questões de investigação, sob a forma de ques-tões ou de afirmações provisórias, servindo de directrizes, apelarão para o método de análise sis-temática, para serem verificadas no sentido de uma confirmação ou infirmação (Bardin, 2007).A análise de conteúdo caracteriza-se por um conjunto de técnicas de análise de comunicações,sendo um instrumento marcado por uma disparidade de formas e adaptável a um campo deaplicação muito vasto, como as comunicações, por exemplo. Qualquer comunicação, ou seja,qualquer transporte de significações de um emissor para um receptor, pode ser escrito e deci-frado pelas técnicas de análise de conteúdo.O fundamento da especificidade da análise de conteúdo reside na articulação entre, a superfí-cie do texto, descrita e analisada e os factores que determinam estas características, deduzidoslogicamente. Aquilo que se procura estabelecer quando se realiza uma análise, é uma corres-pondência entre as estruturas semânticas ou linguísticas e as estruturas psicológicas ou socio-lógicas, tais como condutas, ideologias e atitudes dos enunciados. A leitura efectuada na análisede conteúdo das comunicações não é unicamente uma leitura “à letra”, mas antes o realçar deum sentido que se encontra em segundo plano. Trata-se de atingir, através de significantes oude significados – manipulados – outros significados de natureza psicológica, sociológica, polí-tica, histórica, etc.

2. O sentido objectivamente aqui referido, insere-se no conceito de objectivo referenciado por Karl Popper, o qualseguindo a linha de Kant, é usado para indicar que o conhecimento científico deve ser justificável, independentementedo capricho pessoal, sendo que uma justificação será objectiva se puder ser submetida a prova e compreendida portodos (Popper, (2007). P 46).

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No trabalho aqui desenvolvido optou-se por um instrumento de análise caracterizado por umagrelha construída ao longo da leitura das fontes. Não se partiu de uma prévia construção de co-dificação e categorização, sendo estas construídas de acordo com os sentidos recolhidos da lei-tura que se ia fazendo e do significado dos mesmos.Para que o tratamento dos dados a analisar fosse efectuado, utilizámos suportes informáticos,em concreto a aplicação de software NVivo v. 7.0, para a qual importámos as fontes e sobre oqual efectuámos a análise, que denominámos em ficheiro com a designação “Segurança Interna– A proposta portuguesa”.

V – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Da leitura das fontes utilizadas, fomos construindo uma grelha de codificação e categorização,de acordo com o sentido que foi encontrado no texto da lei. Ao longo dos diversos textos ve-rificamos que o sentido que emanava da letra da lei era bastante mais intenso do que a sua sim-ples exteriorização, querendo dizer e transmitir muito mais do que apenas o de imediatoapreendido com a sua leitura. Salientaram-se desde logo algumas fortes ideias-base e pratica-mente incorporadas em todas as fontes; os conceitos de centralização, controlo, coordenação,investigação criminal e prevenção.No final da leitura e da construção da grelha de análise, encontrámos um conjunto de codifi-cações que necessitavam, para uma análise adequada e completa, de serem agrupadas em ca-tegorias, sendo estas construídas de acordo com a essência do sentido daquilo que havia sidocodificado. As categorias seleccionadas, no sentido de agruparem as variáveis relacionadas com a investi-gação e referentes ao contexto onde se inserem, foram as seguintes:

Nação – Neste campo é referida a análise das referências associadas ao conceito de Estado-Nação, sendo codificados os direitos, liberdades e garantias, Estado de Direito, princípioda legalidade, princípio da adequação e da proporcionalidade e soberania de Estado.Dimensões Estratégicas – Aborda-se aqui as diferentes dimensões referentes à segurançainterna, vindo estas a ser alargadas pelas codificações de investigação criminal, ordem pú-blica, prevenção, repressão e protecção.Políticas de Segurança – Entende-se aqui os conceitos relacionados com as políticas,com aquilo que se encontra na essência e nas linhas orientadoras para os objectivos pro-postos visando atingir os fins previstos, também estes propostos e inseridos no conceitode segurança. Foram codificados o âmbito local, a centralização, a cooperação, a coorde-nação, a política de segurança interna e o controlo, sendo que este foi subdividido em de-pendência política, domínio, fiscalização e vigilância.

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Tipos de Criminalidade – Encontramos nesta categoria os diferentes tipos de crimina-lidade que estão subjacentes às políticas de segurança, tendo sido codificados por crimi-nalidade organizada, criminalidade transnacional, criminalidade violenta, espionagem,pequena criminalidade, sabotagem e terrorismo.Intervenientes Activos – Nesta categoria seleccionaram-se os principais actores na inter-venção das dimensões, estando os conceitos ligados à codificação de Forças e Serviços deSegurança, Guarda Nacional Republicana, Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pú-blica e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.Organização Funcional – É a categoria onde se agrupam, na sua forma de actuação, osintervenientes activos. Esta subdivide-se em Autonomia Operacional, resultante dos me-canismos técnicos e tácticos para atingirem os seus objectivos; em Competências Distri-buídas, referentes às diferentes competências que estão atribuídas para realização dosobjectivos, sendo estas específicas, genéricas e reservadas e em Organização, respeitante àprópria organização interna desses mesmo intervenientes.

Procurando recuperar a globalidade do conteúdo inscrito nos diferentes tipos de mensagem, se-guiu-se o critério de manutenção dos termos aplicados, aproximando os conceitos semelhantesno seu significado. No referente ao tipo de criminalidade, seguiu-se a grelha de infracções iden-tificadas no Código Penal Português, bem como as definições do artº 1 do Código de ProcessoPenal Português.Qualitativamente, a análise permite-nos observar que a proposta portuguesa de segurança internapossui uma forte componente alicerçada nos princípios fundamentais do Estado-Nação, onde aideia de uma soberania de Estado prevalece como fundamental. Sendo um dos pontos negati-vos que por diversas vezes é referido no panorama actual da era da globalização, a perda de so-berania dos Estados, constatamos que no âmbito daquilo que é determinante para o conceito deNação e aquilo que está subjacente à mesma, tal como os seus princípios fundamentais dentrode um Estado democrático e de direito, como aquele que existe em Portugal, a questão da so-berania de Estado encontra-se fortemente embrenhada e serve como linha condutora de toda apolítica de segurança interna. Associada à soberania de estado e quase como sendo uma relaçãode causa e efeito, verificamos que se apresenta uma proposta de segurança interna onde os di-reitos fundamentais dos cidadãos se encontram devidamente salvaguardados.

Orlando Jorge Mascarenhas

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Categoria NAÇÃO. Distribuição de referências pelas fontes

Registos Fontes Referências

Direitos, Liberdades e Garantias 2 3Estado de Direito 2 4Princípio da legalidade 5 8Princípio da adequação e proporcionalidade 3 4Soberania de Estado 6 18

Origem: Trabalho de análise sob o título “Segurança Interna – A proposta portuguesa”, elaborado no software NVivo,

versão 7.0

Sendo no âmbito do conceito de Estado-Nação que a segurança interna é desenvolvida e apre-sentada perante todos, a mesma tem duas formas de se implementar e desenvolver. Através daspolíticas de segurança adoptadas pelo poder político e pelos diversos actores que aplicam aquiloque é determinado por esse mesmo poder. Constatamos isto mesmo nas categorias “Políticasde Segurança” e “Intervenientes Activos”. Possuímos uma orientação de segurança internacom um forte pendor centralizador, quer ao nível daquele que executa os diversos actos refe-rentes às dimensões estratégicas de investigação criminal, prevenção, repressão e ordem pública,como também aos próprios poderes de decisão e organizacionais. Associado a esta caracterís-tica centralizadora verificamos uma forte preocupação de que as “coisas” corram num âmbitode harmonia entre todos os intervenientes, sendo que para a mesma contribui a ideia de coor-denação.

Compete ao conselho coordenador dos órgãos de polícia criminal:a) Dar orientações genéricas para assegurar a articulação entre os órgãos de polícia criminal;Definir metodologias de trabalho e acções de gestão que favoreçam uma melhor coordenação emais eficaz acção dos órgãos de polícia criminal nos diversos níveis hierárquicos.

Sendo certo que em algum sentido esta coordenação se insere na própria nomenclatura de al-gumas hierarquias, a mesma surge em todas as fontes como sendo uma ideia de aglutinaçãode divergências, que não podendo existir, são estas superadas por uma total coordenação, le-vando mesmo à criação de uma entidade superior próxima do poder político, o Secretário-Geral de Segurança Interna, que possui como função primordial essa mesma coordenação. Contudo, ressalta das políticas de segurança o conceito de controlo. Sendo o controlo, tantoaplicado à situação específica de verificação de cumprimento daquilo que emana das diversasregras a seguir pelos intervenientes nas suas estruturas orgânicas e hierárquicas, o mesmo é

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muito verificado na fiscalização que é exercida pelo poder político.O Governo apresenta à Assembleia da República, até 15 de Outubro do ano em que cesse a vigên-cia de cada lei sobre política criminal, um relatório sobre a execução da mesma em matéria de pre-venção da criminalidade e de execução de penas e medidas de segurança.

Encontramos também no âmbito do controlo, o conceito de vigilância, sendo esta uma formade prevenção de actos contrários ao determinado na lei. De qualquer das formas, sobressaiuma segurança interna que assenta num domínio controlador por parte do poder político,percebendo-se claramente que não quer este perder qualquer oportunidade de estabeleceraquilo que entende como sendo o mais adequado à prossecução das suas orientações.

Categoria Políticas de segurança. Distribuição de referências pelas fontes

Registos Fontes Referências

Âmbito local 1 14Centralização 8 71Controlo 8 118Dependência política 6 30Domínio 7 30Fiscalização 7 32Vigilância 4 6Cooperação 7 45Coordenação 7 70Política Segurança interna 4 19

Origem: Trabalho de análise sob o título “Segurança Interna – A proposta portuguesa”, elaborado no software NVivo,

versão 7.0

Mas se por um lado verificamos que as políticas de segurança seguidas pelo poder político as-sentam num forte controlo, centralizadas e coordenadas, as mesmas pautam-se por uma quaseausência de segurança aplicada ao âmbito local, ou seja, ao micro-espaço, tomando neste pontocomo referência macro os espaços fronteiriços do Estado-Nação. Constata-se uma forte au-sência de sentido aplicado ao âmbito local nas políticas de segurança, sendo as mesmas direc-cionadas num conceito macro e transnacional. Estando a segurança interna centralizada no poder político e nas cadeias hierárquicas das di-versas forças e serviços de segurança, coordenada por um órgão criado para esse mesmo efeito,

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o Secretário-Geral de Segurança Interna, que responde directamente perante o poder políticona pessoa do Primeiro-Ministro, conjuga-se nesta categoria das políticas de segurança a es-sência de toda a estrutura da segurança interna emanada daqueles que possuem o poder de de-cisão e de implementação das políticas, ou seja o Governo. Trata-se de uma estruturacentralizada, com um forte pendor de controlo e com uma preocupação de coordenação.

A condução da política de segurança interna é, nos termos da Constituição, da competência doGoverno.O Primeiro -Ministro é politicamente responsável pela direcção da política de segurança interna.O Secretário -Geral do Sistema de Segurança Interna tem competências de coordenação, direcção,controlo e comando operacional.

Encontrando-se definida essa mesma estrutura, vemos que se destina a ser implementada nasdimensões estratégicas de segurança interna. Quais são estas dimensões?

Categoria Dimensões Estratégicas. Distribuição de referências pelas fontes

Registos Fontes Referências

Investigação criminal 7 53Ordem pública 2 19Prevenção 8 59Protecção 3 21Repressão 7 23

Origem: Trabalho de análise sob o título “Segurança Interna – A proposta portuguesa”, elaborado no software NVivo,

versão 7.0

Realça de imediato a investigação criminal. Encontramos uma proposta de segurança internaem que a investigação criminal, ou seja, a determinação de existência de um crime, a desco-berta dos seus autores e suas responsabilidades e o estabelecimento de nexo de causalidadeentre autor e acto, são aquilo que mais sobressai como fundamento da segurança interna. Epodemos verificar isto mesmo de duas formas. Uma primeira emana da própria relevância en-contrada ao conceito de investigação criminal nas diversas fontes em análise. A segunda con-juga-se com uma outra dimensão estratégica, isto é, a codificação de prevenção. Possuímosum forte conteúdo no âmbito da nossa segurança interna relacionado com a prevenção, sendoesta essencialmente caracterizada por uma prevenção da prática do acto ilícito, ou seja docrime, reforçando assim, tal como referido, o forte pendor de segurança dirigido para o crime,

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quer no âmbito da sua prevenção quer no da sua investigação.A condução da política criminal compreende, para efeitos da presente lei, a definição de objectivos,

prioridades e orientações em matéria de prevenção da criminalidade e de investigação criminal.

Os órgãos de polícia criminal, de acordo com as correspondentes leis orgânicas, assumem os ob-

jectivos e adoptam as prioridades e orientações constantes da lei sobre política criminal.

A presidência, quando o considerar conveniente, pode convidar a participar nas reuniões outras

entidades com especiais responsabilidades na prevenção e repressão da criminalidade ou na pes-

quisa e produção de informações relevantes para a segurança interna.

Mas a segurança interna não assenta apenas nestas duas dimensões, apesar de serem aquelasque mais se destacam em termos de prossecução de objectivos securitários. Encontramos as di-mensões de ordem pública, de protecção e de repressão. A ordem pública surge apenas refe-renciada no âmbito das atribuições de competências dos intervenientes activos na aplicação dasegurança interna, ou seja, nas forças e serviços de segurança. Tendo sido apenas referenciadaa sua existência nestas atribuições de funções, em concreto na Polícia de Segurança Pública ena Guarda Nacional Republicana, leva-nos a interpretar que o conceito de ordem pública,apesar de estar presente na segurança interna e constituir uma das suas dimensões, não é atra-vés dele que o poder político no âmbito da estratégia de segurança para o país, pretende esta-belecer o bem-estar na população. A sua relevância é diminuta, não se encontrando referênciasà manutenção da ordem pública, inserindo-se aqui todo o tipo de manifestação comporta-mental que de alguma forma possa contribuir para a desorganização da ordem necessária à ma-nutenção do bem-estar social. Quanto à dimensão da protecção, esta enquadra-se essencialmente e também tal como a ordempública, nas funções atribuídas às forças e serviços de segurança. Trata-se, na sua essência, deuma protecção de pessoas e de bens de carácter operacional, não tanto de protecção genera-lista, estando esta incorporada no conceito de prevenção.

Garantir a ordem e a tranquilidade públicas e a segurança e a protecção das pessoas e dos bens

Relativamente à dimensão estratégica designada por repressão, esta possui aquilo que se podedesignar por uma dupla acção: reprimir e reagir. Encontramos assim uma orientação de se-gurança que segue as dimensões mais significativas, as da investigação criminal e da preven-ção, que culmina com a repressão ao autor do crime e, simultaneamente, com uma reacção detoda a estrutura de segurança ao facto praticado..

A política criminal tem por objectivos prevenir e reprimir a criminalidade.

São objectivos gerais da política criminal prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade.

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Ao analisarmos a categoria de dimensões estratégicas e verificando que estamos perante umaproposta de segurança significativamente dirigida para o crime (investigação criminal, pre-venção do crime e repressão do crime), somos de imediato catapultados para a categoria detipos de criminalidade. Nesta categoria codificaram-se essencialmente duas grandes áreas decriminalidade: a pequena e a grande criminalidade, sendo que esta inclui todo o crime violento,organizado, criminalidade transnacional, espionagem, sabotagem e terrorismo, enquantoaquela engloba a criminalidade comum.

Categoria Tipos de Criminalidade. Distribuição de referências pelas fontes

Registos Fontes Referências

Criminalidade organizada 6 24Criminalidade transnacional 5 16Criminalidade violenta 4 18Espionagem 2 4Pequena Criminalidade 5 14Sabotagem 2 3Terrorismo 4 18

Origem: Trabalho de análise sob o título “Segurança Interna – A proposta portuguesa”, elaborado no software NVivo,

versão 7.0

Efectivamente aquilo que encontramos é uma segurança interna dirigida para a grande cri-minalidade. A criminalidade organizada, sendo esta composta pela tipificação criminal asso-ciada à corrupção, associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico deestupefacientes, tráfico de influências e branqueamento de capitais; a criminalidade violenta,sendo esta atribuída aos crimes que se dirigem contra a vida, a integridade física das pessoasou da sua liberdade, puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, e o terrorismo, são, emtermos daquilo que é proposto no nosso país, o grande objectivo de segurança.

As medidas previstas na presente lei destinam -se, em especial, a proteger a vida e a integridade daspessoas, a paz pública e a ordem democrática, designadamente contra o terrorismo, a criminali-dade violenta ou altamente organizada.Objectivos específicos: Durante o período de vigência da presente lei, constituem objectivos espe-cíficos da política criminal:a) Prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, grave ou organizada.Tendo em conta os meios utilizados, são considerados de prevenção prioritária os crimes executados:

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Orlando Jorge Mascarenhas

33a) Com violência, ameaça grave de violência ou recurso a armas;b) Com elevado grau de mobilidade, elevada especialidade técnica ou dimensão transnacional ouinternacional;c) De forma organizada ou grupal, especialmente se com habitualidade

Encontramo-nos assim perante um modelo de segurança dirigido para a tipificação criminal,organizada e/ou violenta, de macro aplicação espacial, que nos leva a, no mínimo, levantar adúvida se será esta criminalidade, se serão estes factos, que na realidade provocam os senti-mentos de insegurança nas populações. Para uma melhor compreensão deste fenómeno, en-quadremos esta “vocação” da proposta portuguesa de segurança interna, dirigida para um tipode criminalidade organizada e/ou violenta, com os dados que o relatório anual de segurançainterna (RASI) do ano de 2009 apresentou: a criminalidade violenta e grave representa 5,8%da criminalidade total de 2009, sendo a criminalidade contra o património, ou seja, aquela quedesignamos por criminalidade predatória, aquisitiva, aquela que maior predominância possuino nosso país, representando 54,2%, sendo que, nesta, o furto em veículo representa cerca de85% do total - o tipo de crime com maior participação (RASI, 2009). Estamos assim peranteuma situação em que a atenção prioritária por parte do aparelho securitário é dirigido à cri-minalidade violenta, organizada e transnacional, e os factos criminais a que correspondem, re-presentam uma pequeníssima parte da totalidade da criminalidade participada, sendo estaessencialmente a designada pequena criminalidade.Para dar resposta às necessidades de segurança, o poder político centra a sua actuação nas for-ças e serviços de segurança, isto é, nas polícias. Contudo, nem todos os corpos de polícia exis-tentes no nosso país possuem relevo como tal, designados por nós na categoria intervenientesactivos, actores interventivos de aplicação prática da segurança interna.

Categoria Intervenientes Activos. Distribuição de referências pelas fontes

Registos Fontes Referências

Forças e Serviços de segurança 7 41Guarda Nacional Republicana 5 35Polícia Judiciária 5 36Polícia de Segurança Pública 6 23Serviço de Estrangeiros e Fronteiras 5 28

Origem: Trabalho de análise sob o título “Segurança Interna – A proposta portuguesa”, elaborado no software NVivo,

versão 7.0

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Segurança, Políticas e Polícias

34 Destacam-se neste contexto, a Polícia Judiciária, a Polícia de Segurança Pública, a Guarda Na-cional Republicana e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Todas estas instituições policiais pos-suem a sua própria organização hierárquica e funcional, dotadas de autonomia técnica e tácticapara colocarem em prática as funções que lhes estão adstritas. Contudo, a nível de competên-cias, em particular de competências de investigação criminal - reforçando-se assim o grandeimpacto que possui na segurança interna do nosso país a dimensão estratégica de investigaçãocriminal em matéria da segurança -, realça-se o forte pendor da competência reservada.

As investigações e os actos delegados pelas autoridades judiciárias são realizados pelos funcionários de-signados pelas autoridades de polícia criminal para o efeito competentes, no âmbito da autonomia téc-nica e táctica necessária ao eficaz exercício dessas atribuições A autonomia técnica assenta na utilizaçãode um conjunto de conhecimentos e métodos de agir adequados e a autonomia táctica consiste na es-colha do tempo, lugar e modo adequados à prática dos actos correspondentes ao exercício das atribui-ções legais dos órgãos de polícia criminal.É da competência reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de políciacriminal, a investigação dos seguintes crimes:A atribuição de competência reservada a um órgão de polícia criminal depende de previsão legal expressa.

Considera-se de competência reservada a investigação de determinados tipos de crimes, aquelesque se enquadram na criminalidade organizada, na criminalidade violenta, na criminalidadetransnacional e no terrorismo. Para este tipo de crimes, na categoria da organização funcional, asua investigação é de competência reservada, pressupondo-se que a mesma é atribuída ao(s) in-terveniente(s) activo(s) que se encontra organizado e dotado dos elementos humanos, materiaise técnicos de maior qualidade para que esse objectivo fulcral da segurança seja cumprido.

Categoria Organização funcional. Distribuição de referências pelas fontes

Registos Fonte Referências

Autonomia OperacionalCompetências distribuídas 4 6Autonomia táctica 4 6

Autonomia técnicaCompetência específica 2 3Competência genérica 2 3Competência exclusiva 3 19

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Tendo todos os intervenientes activos, capacidades e funções de aplicação e intervenção, noâmbito das dimensões estratégicas, onde se volta a realçar a importância da investigação cri-minal e da prevenção, verifica-se que um deles possui uma maior relevância neste contexto,pois se a política de segurança é dirigida à criminalidade violenta, organizada, transnacional eao terrorismo e estando este tipo de criminalidade reservada, em termos da sua investigação,a um dos intervenientes, é a Polícia Judiciária que assume esta função de relevo.No entanto, todos os outros intervenientes activos, polícias, possuem competências de inves-tigação criminal, estando estas apenas dirigidas para a chamada pequena criminalidade, bemcomo competências nas suas funções para a prevenção, repressão e ordem pública. Podemos depreender do modelo que nos é assim oferecido, que as divisões de tarefas no âm-bito da segurança estão devidamente atribuídas. Sendo essa segurança oferecida pelas diversasinstituições policiais, ela está distribuída de acordo com as funções e especificidades de cadauma. Nestas funções, constatamos a existência de conceitos de polícia de proximidade e de po-liciamento comunitário, ligados àqueles de âmbito local referidos anteriormente na categoriade políticas de segurança. Estando estes contemplados no âmbito das funções das instituiçõespoliciais, em particular da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana,são os mesmos pouco dirigidos em termos de políticas de segurança emanadas pelo poder exe-cutivo, pois o conceito de âmbito local surge-nos como uma opção em termos de segurançapouco dirigido e quase sem significado nas estratégias de segurança.Chegados a este ponto, verificamos a existência de uma proposta de segurança, caracterizadapor ser emanada pelo poder executivo, sobre a forma de lei, alicerçada nos princípios orien-tadores do Estado de Direito Democrático, onde a soberania do Estado prevalece sobre qual-quer outro. É uma segurança caracterizada pela sua forte centralização no poder executivo enas estruturas hierárquicas das forças policiais, onde a componente de controlo exerce umpapel determinante na fiscalização, sendo contudo articulada por uma acção coordenadoraentre os diversos intervenientes e superiormente por uma entidade nomeada pelo poder polí-tico. A segurança proposta é dirigida à prevenção e combate ao crime, sendo este o que pos-sui carácter de maior gravidade, onde a violência e a sofisticação assumem um papelpredominante. Para tal, o poder político atribui às polícias o papel de desenvolverem as suasactuações no âmbito destes objectivos, sendo que, de todas aquelas, é a Polícia Judiciária quempossui o relevo na execução de tais funções.

VI - CONCLUSÃO

Os resultados obtidos permitem referir que temos a nível de oferta por parte do poder instituído,uma segurança interna que se encontra centrada no próprio aparelho do Estado, fortemente

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36 controlada e coordenada, através da utilização da Polícia, para a prevenção do crime e sua in-vestigação como forma de repressão. A criminalidade que visa atingir, possui carácter violento,organizado, e insere-se num âmbito mais alargado em termos espaciais, alojando-se no conceitode transnacional.Nestas matérias, a sociedade ocidental caracteriza-se por canalizar a segurança para uma pers-pectiva de percepção de insegurança, baseada, por vezes, em modelos mediáticos e discursos alar-mistas sobre determinados crimes, normalmente violentos e, após o atentado terrorista de 11de Setembro de 2001, nos EUA, no medo do terrorismo. Segundo Robert (2007) a respostado Estado a estas emergências, em termos de políticas de segurança, fruto da globalização, emparticular da esfera económica que escapa cada vez mais à regulação, aponta o caminho da coo-peração internacional – através de policiamento – como meio de controlar os grandes fluxostransnacionais de população - emigração ilegal e tráfico de pessoas; de dinheiros - branquea-mento de capitais; de mercadorias proibidas - tráfico de drogas - e o fenómeno do terrorismo.Contudo, e ainda segundo Robert (2007), essas receitas não têm permitido ao Estado respon-der às necessidades de segurança das pessoas e dos seus bens, que assim continuam fortementeabandonadas ao plano da segurança privada. Verificamos, então, possuir uma segurança queemerge numa perspectiva de percepção de insegurança, seguindo as grandes linhas orientado-ras da sociedade ocidental.Recasens (2007) diz que a intervenção de diversos actores sociais é fundamental para que a se-gurança dos cidadãos seja encontrada. A sua maior ou menor presença afecta de modo directoo resultado da prevenção, que possui carácter integrador e requer a cooperação interinstitucio-nal. Os resultados encontrados mostram uma política de segurança apenas centrada na securi-tização, que visa a prevenção direccionada ao crime violento e organizado, isto é, aquele quemenos ocorre no seio da sociedade. Esta prevenção é praticada apenas pelas polícias, inviabili-zando uma acção preventiva integradora, em que as diversas instituições componentes do te-cido social, possam intervir em algo que, como participantes activos na sociedade, lhes dizrespeito. Entendendo-se por políticas sociais um conjunto de acções integradas, (educação, em-prego, higiene, saúde...) e de convivência social.Para Robert (2007) os programas de prevenção tendem a restringir-se a posturas apenas de-fensivas, onde o Estado, sob a pressão de preocupações de segurança originárias de certas fac-ções partidárias, tende a privilegiar as respostas penais, ainda que elas dificilmente bastem parasatisfazer as expectativas de segurança dos cidadãos.Há que encontrar mecanismos que permitam simultaneamente, relaxar as preocupações secu-ritárias, persuadindo aqueles que se sentem excluídos da sociedade a respeitar as regras do jogopor ela estabelecidas, possibilitando manter uma solidariedade social que não exija investi-mentos demasiadamente massivos, aquilo que Robert (2007) denomina de policy mix.Por outro lado, Recasens (2007) refere que em matéria de segurança, o factor de reacção,

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encontra-se indiscutivelmente do lado da polícia. Daí que não seja de estranhar que os políti-cos, de todos os quadrantes, vejam as forças e serviços de segurança como elemento funda-mental de tais políticas. A proposta portuguesa no âmbito da segurança interna e quanto àreacção, não foge a esta quase regra ocidental e deposita na polícia a exclusividade na interven-ção. Tal opção centralista pode, contudo, potenciar um duplo problema: por um lado a exi-gência de elevados meios humanos e materiais para a sua concretização, e, tão ou mais grave, areduzida eficácia das políticas, devido à falta de intervenção de um conjunto de actores sociais,fundamentais na interacção necessária para o bem-estar e solidariedade social.Mas a análise a efectuar não deve ficar-se pela discussão sobre os modelos preventivos ou re-pressivos do controle. Quando se fala de prevenção e/ou repressão, não se está a fazer referên-cia a modelos, mas sim a funções. Aquilo que se deve analisar é o processo de adopção, execuçãoe avaliação das políticas e quantos e quais os instrumentos e métodos de corte preventivo e/ourepressivo, que se empregam na hora de as levar a cabo. Todas as instâncias de controlo, em par-ticular as polícias, efectuam tarefas preventivas e repressivas. A ênfase que se coloca em cada umadelas dependerá sempre das políticas que se adoptem por parte de quem tem capacidade paratal, ou seja o Estado.A relação entre segurança e o Estado-Nação adquire novas características, que forçam o próprioEstado-Nação a ter em conta uma diversidade de actores com que se vê obrigado a chegar aacordo. O governo nacional, tal como refere Hope (2002), continua a ver-se como o sujeito queassume a responsabilidade dos problemas da criminalidade, em particular no momento em queestes parecem estar a diminuir. Mas contemporaneamente, aspira a exonerar-se da responsabi-lidade de proporcionar os meios, podendo tal constatar-se no uso simbólico de termos como oterrorismo, a criminalidade violenta ou a normatividade penal, esta, através da crescente nor-matividade sancionatória.Garland (2001) descreve este momento, como sendo a existência de um tipo de criminalidade“do próprio” que se reflecte em delitos de oportunidade, pequena delinquência considerada “nor-mal”, que é tratada com mecanismos do “managerial” (administrativos) e do “actuarial” e que vaicaindo cada vez mais nas instâncias inferiores do Estado. Em simultâneo, este mesmo Estado tema tendência a conservar o espaço, em boa medida simbolicamente, da criminalidade dita “dooutro”, constituída por delitos perigosos que geram a demonização de quem os pratica e pro-porcionam o argumento para a intervenção punitiva estatal de cariz penal – o crime violento eorganizado, como por exemplo, terrorismo, tráfico de drogas, criminalidade violenta.Resultante da análise efectuada, parece ser aqui que nos encontramos, na proposta de segu-rança que o poder executivo nos apresenta, centrada numa criminalidade violenta, organizadae transnacional, como sendo aquela que gera a insegurança e necessita de toda a atenção e, emsimultâneo, afastando-se da pequena criminalidade, da desordem, dos delitos aquisitivos, etc.,não lhe fornecendo a “segurança” adequada.

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Na perspectiva de Recasens (2007), todas estas metamorfoses possuem um impacto evidentenas políticas de segurança, pois supõem o incremento da chamada “cultura da segurança”, quese traduz numa maior solicitação da mesma, correndo-se assim o perigo de propiciar a persecu-ção de uma espécie de utopia da segurança, que, na medida em que não dá resposta, converte-se em sentimento de insegurança. Tal situação, sendo prejudicial para o todo social, pode, porém,ser extremamente benéfica para todos aqueles que, desde o sector privado ao público, vivam elucrem com tal percepção, já que leva a uma procura sem fim de exigência de mais tecnologia,mais efectivos, mais meios, etc. Ao mesmo tempo, alimenta determinados sectores mediáticosdados ao exagero, e à demagogia de certas alas político-partidárias pouco escrupulosas.Perante tais dinâmicas, aquilo que é indispensável trabalhar urgentemente, mas com rigor, é aredefinição de conceitos, a revisão dos termos e a criação de um discurso eficaz e inequívoco.Para tal, é necessário não confundir a esfera científica com a política, que devem manter-se empatamares devidamente diferenciados, onde cada um tem de encontrar o seu lugar respeitandoo papel do outro, conscientes de que são duas peças chave de uma mesma engrenagem.Um outro ponto importante passa por impedir que o discurso securitário prevaleça sobre o so-cial. O discurso da insegurança contribui para colonizar as diversas políticas sociais, sanitárias,e muitas vezes culturais, já que estas são relegadas para um plano secundário nas preocupaçõesdo Estado. Desta forma vêem-se despojadas dos quantitativos financeiros que são desviadospara engrossar o caudal do orçamento que alimenta esta lógica quase esquizofrénica de securi-tarismo, que assenta na prevenção exacerbada da criminalidade. Ora, é nosso entendimentoque este fenómeno perverte a própria essência do que deve ser a política de segurança em regi-mes democráticos, nos quais deve constituir-se como uma necessidade instrumental, acessória,mas sem nunca perder o seu carácter de indispensabilidade, para que os cidadãos possam usu-fruir em pleno de todos os seus direitos e liberdade.

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Orlando Jorge Mascarenhas

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Segurança, Políticas e Polícias

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João de Almeida

Ex-Subdirector Nacional-Adjunto da Polícia Judiciária. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais.

No presente texto tratam-se questões relacionadas com a direcção do inquérito e da investi-gação criminal, a autonomia da Polícia Judiciária quando em funções de auxiliar da Admi-nistração da Justiça, e o seu relacionamento, no exercício dessas funções, com o MinistérioPúblico. Analisa-se o domínio material da investigação da criminalidade mais complexa e organizadae a coadjuvação prestada pela Polícia Judiciária ao Ministério Público. Discorre-se sobre o grauou a medida da autonomia e os limites em que essa coadjuvação deve ser prestada, com vistaa praticar os actos necessários às finalidades processuais penais.E, por fim, aborda-se a relação funcional no inquérito entre a Polícia Judiciária e o Ministé-rio Público, e analisam-se procedimentos e soluções susceptíveis de debelar a conflitualidadeexistente e, dessa forma, contribuírem para o aperfeiçoamento do sistema de investigação cri-minal.

Cabe ao Ministério Público dirigir o inquérito2 e a investigação criminal, ainda que realizadapor outras entidades3. Com vista à realização das finalidades do processo, o Ministério Público é coadjuvado pelosórgãos de polícia criminal que actuam sob a sua directa orientação e dependência funcional4,mantendo, no entanto, a sua autonomia orgânica,5 técnica e táctica.6

Se a direcção e a titularidade do inquérito pertencem ao Ministério Público, só ele deve tercompetência para definir e decidir quais os actos a praticar em ordem a investigar a existência

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1. Este texto é um excerto de um trabalho académico elaborado em 2005 e discutido em 2007. Para publicação,foram introduzidas algumas alterações relacionadas com a legislação entretanto revogada.2. Artigo 263º, n.º 1, do CPP.3. Artigo 3º, n.º 1, alínea h), do EMP (Estatuto do Ministério Público - Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, com asmodificações introduzidas pelas Leis n.ºs 2/90 de 20 de Janeiro, 23/92 de 20 de Agosto, 10/94 de 5 de Maio, 33-A/96 de 26 de Agosto, 60/98 de 27 de Agosto, 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008,de 28 de Agosto, e 37/2009, de 20 de Julho).

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de um crime, determinar os seus agentes e responsabilidades, identificar e recolher as provaspertinentes a fundamentar e, mais tarde, sustentar uma acusação em juízo.Existem, no entanto, actos a praticar no inquérito para os quais o Ministério Público não temcompetência. São os actos jurisdicionais (que contendem mais directamente com os direitos,liberdades e garantias dos cidadãos) que apenas o juiz de instrução pode praticar ou autorizar. Ainda assim, cabe ao Ministério Público promovê-los, salvo situações em que haja perigo nademora ou urgência em que podem ser requeridos pela autoridade de polícia criminal, ar-guido e assistente e, em casos excepcionais, podem mesmo ser requeridos por um vulgar ci-dadão no gozo dos seus direitos políticos.9

Trata-se de actos que influenciam – ou podem influenciar – o sentido do inquérito e sobre osquais o Ministério Público não detém a direcção ou o controlo da sua execução. Resta-lhe afiscalização processual, podendo impugná-los fazendo uso dos mecanismos do recurso.Não há assim, por parte de Ministério Público, uma exclusividade na direcção do inquérito,entendida no sentido de decidir e orientar a execução de todos os actos tendentes à realizaçãode determinado fim.Cabe ao juiz de instrução apreciar e decidir da prática dos actos que lhe venham a ser pro-movidos ou requeridos. Aferindo da sua legalidade, oportunidade e conveniência. Para isso,o juiz de instrução dispõe de poderes autónomos de investigação, quando entenda necessáriorecolher mais prova indiciária, na medida em que isso se mostre necessário e o habilite a me-lhor poder tomar uma decisão e a fundamentá-la.10

Os restantes actos de inquérito são da competência do Ministério Público,11 que pode praticá-los ou conferir aos órgãos de polícia criminal o encargo de os praticar, com excepção para al-guns deles.12

Para o efeito os órgãos de polícia criminal coadjuvam o Ministério Público e ficam na sua de-pendência funcional.

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4. Artigos 263º, n.º 2, 55º, n.º 1 e 56º - todos do CPP (Código de Processo Penal, em vigor); artigo 3º, n.º 3, doEMP; e artigo 2.º, n.º 4, da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.5. Artigo 2º, n.º 4, in fine, da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.6. Artigo 2º, n.º 5, da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.7. Artigos 268º e 269º do CPP.8. Artigos 268º, n.º 2 e 269º, n.º 2, ambos do CPP.9. Será o caso previsto no artigo 220º, do CPP, “Habeas corpus em virtude de detenção ilegal”, em que o próprio de-tido ou alguém por ele (um qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos) pode requerer a intervenção do juizpara apreciar a sua situação.10. Será o caso de um arguido detido na posse de notas fiduciárias suspeitas de serem contrafeitas, em que o Minis-tério Público depois de o interrogar (artigo 143º), entendeu por bem submetê-lo a interrogatório judicial (artigo141º), promovendo a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva (artigo 202º) (todos do CPP). Suscitando-se a dúvida sobre a falsidade das notas, o juiz de instrução oficiosamente (ou a requerimento da defesa) deve fazer in-tervir um perito que em exame sumário se pronuncie sobre a integridade das notas. Só assim o juiz de instruçãodispõe de prova indiciária bastante que o habilite a proferir a melhor decisão no caso.11. Artigo 267º, do CPP.

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O legislador não indica quais os actos susceptíveis de serem praticados durante um inquéritonem poderia fazê-lo, pois os actos a praticar variam com o tipo de crime e, no tipo de crime,de caso para caso, pois todos os casos são diferentes. Não é assim possível estabelecer um ca-tálogo de actos processuais de investigação a praticar num inquérito, durante a investigaçãode um crime.As estratégias de investigação que venham a ser adoptadas durante a investigação, passam pelaformulação de hipóteses de trabalho que à medida que vão sendo praticados actos processuaise recolhida informação se vão consolidando ou infirmando, dando, neste último caso, emregra, lugar à formulação de novas hipóteses de trabalho. Esta sucessão encadeada de actosprocessuais não é susceptível de ser definida ab initio, pois só a prática de uns é susceptível deconduzir à prática de outros. Este percurso só pode ir sendo definido e trilhado por quem ma-terialmente realiza a investigação criminal. Vê-se assim o Ministério Público impossibilitadode, no despacho inicial, elencar todas as diligências e actos processuais pertinentes à investi-gação.Por outro lado, a investigação criminal só poderá ser realizada com êxito por quem detenha odomínio de determinadas técnicas e saberes, bem como os meios humanos e logísticos, que oMinistério Público claramente não possui, não obstante lhe estar cometida a direcção da in-vestigação criminal.13

Só a polícia de investigação criminal detém esse acervo de meios, técnicas, saberes e experiên-cia acumulada que a habilitam a realizar a investigação criminal mais complexa.Neste quadro, o Ministério Público tem competência para praticar – ou mandar praticar –todos os actos que entenda necessários à realização das finalidades do inquérito, tendo comolimite os métodos proibidos de prova14 e, de alguma forma, também o princípio da economiaprocessual.15

E a regra é de que a investigação seja realizada pela polícia de investigação criminal, sob a di-recção do Ministério Público. Sendo assim, importa tecer alguns considerandos sobre a formacomo essa direcção se materializa, no dia-a-dia, no caso concreto. Ou, dito de outro modo, que

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12. Artigo 270º, n.º 2, do CPP, em que os actos de inquérito ali previstos só podem ser praticados pelo MinistérioPúblico. Não assim no que se refere à Polícia Judiciária, no caso das revistas e buscas não domiciliárias, perícias a efec-tuar por organismo oficial (exceptuando as psiquiátricas, sobre a personalidade e autópsia médico-legal), e apreensões(exceptuando as de correspondência ou em escritório de advogado, consultório médico e estabelecimento de saúde oubancário), no âmbito do despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, que podem ser or-denadas pela autoridade de polícia criminal, nos termos do artigo 12.º, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto.13. Artigo 3.º, n.º 1, alínea h), do EMP).14. Artigo 126º, do CPP.15. Os actos a praticar pelo Ministério Público devem mostrar-se úteis e necessários à realização das finalidades doinquérito – investigar a existência do crime; determinar os seus agentes; apurar as suas responsabilidades; identificare recolher as provas.

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poderes de direcção da investigação criminal do Ministério Público e em que se traduzem ou,visto do outro lado, como se caracteriza a autonomia da polícia de investigação criminal noinquérito.Escreve-se na Circular da Procuradoria-Geral da República n.º 8/87, de 21 de Dezembro,16

que como o Ministério Público não é – e não deve ser – um corpo de polícia, “a titularidadedo inquérito deve ser entendida como o poder de dispor material e juridicamente da investi-gação”, comportando tal poder i) a emissão de directivas, ordens e instruções sobre o modocomo deve ser realizada, ii) o acompanhamento e a fiscalização dos vários actos, iii) a delega-ção ou solicitação de realização de diligências, iv) a presidência ou assistência a certos actos oua autorização da sua realização, e v) o poder de avocar , a todo o tempo, o inquérito. Devendo estes poderes directivos do Ministério Público ser exercidos a dois níveis de inter-venção, a saber: i) o processual (em que devem ser observadas as normas e os princípios cons-tantes do Código de Processo Penal, bem como as regras impostas pelo direito geral de polícia);e ii) organizacional (em que pontificam questões técnicas, operacionais, estratégicas e logís-ticas, resguardando-se aqui a autonomia da polícia de investigação criminal17).Parece assim resultar que à polícia de investigação criminal ficam reservadas as tarefas de in-vestigação criminal que exigem o recurso a técnicas e saberes e o envolvimento de meios hu-manos, operacionais e logísticos, só disponíveis na polícia.Recebida a notícia do crime, registado o inquérito, a polícia cumpre o disposto no artigo 248ºdo CPP enviando cópia ao Ministério Público. E, de imediato, dá início às investigações semque haja qualquer intervenção do Ministério Público. Este limita-se, em alguns casos, a mar-car um prazo para a realização das investigações e, noutros, a emitir um despacho de delega-ção de competência investigatória na Polícia Judiciária e a remetê-lo para os autos.18

A investigação corre por conta da Polícia Judiciária que é quem, de facto, detém o domínioda investigação criminal. Impulsiona e desenvolve as diligências investigatórias que entendeadequadas, promove a intervenção das autoridades judiciárias (em regra, através do Ministé-

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16. Surge na sequência da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º78/87, de 17 de Fevereiro) e destinou-se a fazer a transição do regime do Código de Processo Penal de 1929 (em queo inquérito era aberto e realizada a investigação pela polícia, só nele intervindo as autoridades judiciárias para a prá-tica de actos, quando suscitadas pela polícia) para o regime do novo código. Adivinhando-se algumas dificuldades coma entrada em vigor do novo regime, designadamente na articulação entre o Ministério Público e os órgãos de políciacriminal e no controlo hierárquico da actividade processual, a Procuradoria-Geral da República entendeu por bemdefinir alguns procedimentos e circulá-los junto dos agentes do Ministério Públicos e dos órgãos de polícia criminal,nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (hoje, ar-tigo 12º, n.º 2, alínea b), do EMP).17. Ao tempo ainda não se reconhecia explicita e expressamente a autonomia técnica e táctica da polícia de investi-gação criminal; a consagração legal surge na Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 21/2000, de 10de Agosto) e mantém-se na actual, que revogou aquela (Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto, artigo 2.º, n.º 6).18. Este despacho de delegação de competência investigatória na Polícia Judiciária nem tem qualquer efeito ou mesmosentido, por que essa competência já está delegada no âmbito da competência genérica (artigo 270º, n.º 4, do CPPe Directiva da Procuradoria-Geral da República n.º 1/2002, de 4 de Abril). O que fará sentido é limitar essa compe-tência investigatória preexistente, definindo orientações, dando instruções, marcando prazos ou revogando essa com-petência, através do mecanismo da avocação do inquérito.

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rio Público) quando necessário e, concluídas as investigações, remete o inquérito ao Ministé-rio Público com proposta de acusação ou de arquivamento. O Ministério Público analisa o in-quérito (e, por vezes, devolve-o à Polícia Judiciária para a realização de mais diligências oumesmo para a repetição de outras), procede ao seu encerramento e toma uma decisão de mé-rito, deduz acusação ou arquiva.A direcção da investigação criminal pelo Ministério Público ocorre nas situações em que esteavoca o inquérito e assume o controlo efectivo da prática dos actos processuais e demais tare-fas investigatórias.19 E, num ou outro caso pontual, em que intervém no delinear das estraté-gias de investigação a seguir em determinado caso, ou quando preside a um ou outro actoprocessual, realizado pela Polícia Judiciária.Nas demais situações a direcção da investigação criminal pelo Ministério Público é meramentenominativa, virtual (se se quiser), pois quem detém o domínio material da investigação cri-minal é a Polícia Judiciária, conduzindo as investigações num ou noutro sentido, praticandoos actos processuais que entende adequados, influenciando decisivamente os seus resultados.Ao Ministério Público resta-lhe pouco mais do que a fiscalização da actividade processual de-senvolvida pela Polícia Judiciária durante a investigação criminal, normalmente depois de con-cluída. E isso deve-se, em primeira linha, à falta de formação do Ministério Público eminvestigação criminal, à praxis instituída e sobretudo à falta de meios humanos e materiais doMinistério Público.

Para a realização das finalidades do inquérito, maxime da investigação criminal, a Polícia Ju-diciária coadjuva o Ministério Público. Para o efeito, actua na sua directa orientação e depen-dência funcional.20

Damião da Cunha21 refere que o direito ou dever de coadjuvação previsto no artigo 9º, n.º 2,do CPP, trata de um auxílio mais geral e está próximo da figura do direito administrativo, dacooperação interorgânica, e só ganha contornos diferentes das relações administrativas, pelofacto de estarem em causa relações que envolvem o tribunal e as autoridades judiciárias.22

Este direito ou dever de coadjuvação é, no entanto, substancialmente distinto da competên-cia de coadjuvação conferida aos órgãos de polícia criminal, prevista no artigo 55º, n.º 1, doreferido CPP.Neste caso, do que se trata, é de conferir competência de coadjuvação a um órgão ( a PolíciaJudiciária) que ao lado de outro (o Ministério Público, a quem foram cometidas determina-

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19. O mecanismo da avocação do inquérito (artigo 2º, n.º 7, da Lei 49/2008, de 27 de Agosto) é uma inequívocamanifestação dos poderes do Ministério Público de direcção do inquérito e da investigação criminal.20. Artigos 55º, n.º 1, 263º, n.º 2 e 56º – todos do CPP.21. O Ministério Público e os órgãos de Polícia Criminal, Porto, 1993, pág. 109.

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das tarefas e poderes e é juridicamente o órgão titular da competência) e através da figura dacoadjuvação intervém na mesma esfera de actividade – que pode exercer – do órgão principalou titular.Não se trata de uma competência conjunta ou concorrente destes órgãos (até por que o ob-jecto da competência, no caso da coadjuvação, é a própria coadjuvação). Assim, quando oórgão coadjutor pratica um acto que se insere na competência do órgão coadjuvado, pratica-o dentro das suas competências, dado que o acto praticado cabe dentro da tarefa de coadju-vação, mas não o faz enquanto titular da competência em que aquele acto se insere, mas simenquanto acto do órgão principal, titular da competência.23

O legislador processual penal cria, com a norma do artigo 55º, n.º1, do CPP, uma competênciaque tem por objecto a coadjuvação das autoridades judiciárias pelos órgãos de polícia crimi-nal. Aos quais compete, no exercício dessa competência coadjuvatória, praticar todos os actosnecessários à realização das finalidades processuais penais, ao lado dos órgãos titulares quedetêm a competência para a prática desses actos.A figura da coadjuvação – com a elasticidade que ela apresenta – carece de ser devidamenteregulamentada, pois a actuação conjunta dos órgãos – coadjutor e coadjuvado – poderá con-duzir a alguma perturbação no exercício de ambos.Deve assim o órgão coadjuvado ter a possibilidade de definir quais as tarefas que o órgão coad-jutor deve cumprir e de estabelecer os limites materiais da coadjuvação, reservando para si umnúcleo essencial de tarefas que claramente o definam como órgão principal, titular da com-petência.23

Estes limites à coadjuvação dos órgãos de polícia criminal às autoridades judiciárias, no âm-bito das tarefas processuais penais, foram normativamente estabelecidos pelo legislador pro-cessual penal. Concretamente no que refere à fase de inquérito, o artigo 270º, do CPP e ascirculares da Procuradoria-Geral da República,24 designadamente a Directiva n.º 1/2002, de4 de Abril, delimitam com rigor os contornos da coadjuvação dos órgãos de polícia criminalao Ministério Público, para realização das finalidades do inquérito.Para cumprir as tarefas de coadjuvação (no âmbito das funções processuais penais que legal-mente lhes estão cometidas) os órgãos de polícia criminal actuam no processo sob a direcçãodas autoridades judiciárias e na sua dependência funcional.25

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22. No mesmo sentido CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital – A Constituição da República Portuguesa,Anotada, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 793, quando em anotações ao artigo 205º (hoje, 202º) da Consti-tuição, afirmam que “O direito dos tribunais à coadjuvação de outras autoridades (n.º3) parece dizer respeito apenasàs funções jurisdicionais dos tribunais, mas, por outro lado, envolve todas as demais autoridades do Estado, nomea-damente a Administração, sem excluir, porém os tribunais uns em relação aos outros. O direito à coadjuvação analisa-se em vários aspectos: a) os tribunais têm o direito de solicitar a ajuda das demais autoridades; b) as outras autoridadestêm o dever de prestar a ajuda solicitada; c) a ajuda deve ser prestada nos termos indicados pelo tribunal interessado.”23. Nesta matéria seguimos de perto CUNHA, José Manuel Damião da, O Ministério Público e ... op. cit. pág. 110e ss.

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A actividade processual dos órgãos de polícia criminal no inquérito, enquanto actividade coad-jutória do Ministério Público e funcionalmente dirigida às finalidades do processo penal, estásujeita aos princípios de objectividade, de estrita legalidade e de colaboração na realização dodireito. Princípios estes que enformam toda a actividade de administração da justiça e se apli-cam a qualquer órgão da administração da justiça.Assim, a Polícia Judiciária no inquérito não desempenha uma mera actividade de polícia emfunções processuais penais, mas sim uma actividade em funções de administração da justiça.E fá-lo sob a direcção do Ministério Público, aqui entendida não como poder de direcção tra-duzido numa relação hierárquica, de subordinação do tipo administrativa (que não existe),com a faculdade de dar ordens e emitir directivas, mas enquanto direcção que decorre da de-pendência meramente funcional26 e que confere ao ente superior apenas a faculdade de emi-tir directivas.27

Segundo Damião da Cunha28 a distinção entre ordens e directivas não radica no seu grau devinculação ou de imperatividade, nem na sua extensão (generalidade ou abstracção), mas nodiferente conteúdo jurídico do seu cumprimento; i. e., enquanto a ordem implica um acto

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24. Emitidas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12º, n.º 2, alínea b), do Estatuto do Ministério Pú-blico.25. No âmbito das suas funções administrativas de polícia, vigora a dependência orgânica ou hierárquica. Referindo-se, por isso, CUNHA, José Manuel Damião da - O Ministério Público ... op. cit., pág. 115 - a uma posição de des-conforto dos órgãos de polícia criminal sujeitos a um duplo poder funcional, consoante o tipo de actividadedesenvolvida, vendo-se obrigados ao cumprimento de ambos os poderes que em certas situações poderão mesmo co-lidir.26. Na realização da investigação criminal existem três sistemas – de autonomia, de total dependência e de depen-dência funcional – no relacionamento das polícias de investigação criminal com as autoridades judiciárias, sem pre-juízo de outros modelos mistos, que decorrem daqueles.O sistema de autonomia orgânica e funcional caracteriza-se por a polícia actuar por iniciativa própria. Realiza a in-vestigação criminal e remete os resultados às autoridades judiciárias competentes. É o que acontece nos sistemas dematriz anglo-saxónica, em que a investigação criminal é uma actividade de cariz administrativo, compreendida nasfunções administrativas do Estado. A polícia tem, por isso, competência própria para investigar de forma autónomaos crimes da sua competência, no âmbito de um inquérito policial. Este modelo tem aplicação no sistema processualinglês. As vantagens do sistema – segundo DIAS, Jorge de Figueiredo – Sobre os sujeitos processuais no novo Códigode Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 12 - são a “inexistênciaou redução ao mínimo de conflitos, tanto de competência como institucionais”, porque as “polícias criminais e au-toridades judiciárias trabalham separadamente e com círculos diversos de competência, apenas tangentes no mo-mento da transmissão dos dossiês.” E as desvantagens prendem-se com “a redução da polícia criminal à prática deactos de iniciativa própria – os mais pesados de resto, como se sabe, para os direitos, liberdades e garantias dos cida-dãos...”O sistema de total dependência orgânica e funcional das polícias de investigação criminal das autoridades judiciárias,caracteriza-se por as investigações decorrerem sob as ordens directas da autoridade judiciária competente, como acon-tece por exemplo no sistema italiano actual. As vantagens do sistema – ainda segundo aquele Professor, op. cit. pág.12 – decorrem “da unidade de direcção e facilidade de coordenação de todos os assuntos policiais de natureza judi-ciária ...”, e as desvantagens situam-se ao nível do “esvaziamento ... da polícia criminal das funções de defesa dos ci-dadãos perante perigos e fontes de perigo ...”, da “visível inadequação das autoridades judiciárias, mesmo do ministériopúblico, ao exercício da direcção organizatória, administrativa e disciplinar de corpos policiais...” e à necessidade de“multiplicar por muitas dezenas – fraccionando-as inevitavelmente – unidades de polícia criminal ...”, com “... uminsuportável desbaratamento de recursos...”.

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meramente aplicativo, mecânico, de aplicação, a directiva implica da parte do ente a que sedirige uma atitude valorativa, no mínimo quanto à forma e meios da sua execução. Conclui-se assim, que a Polícia Judiciária nas suas funções de coadjuvação ao Ministério Pú-blico no âmbito de funções de Administração da Justiça, para a realização das finalidades doinquérito, não comporta ordens (pois, tal procedimento representaria uma insuportável in-gerência/intervenção na hierarquia da Policia Judiciária29 e transformaria o órgão coadjutornum mero órgão de execução) mas apenas a emissão de directivas que se traduzem num poderde orientação e controlo, e comportam uma atitude de valoração e de decisão quanto à forma,aos meios a utilizar e à oportunidade da sua execução.Será este último o sentido da expressão normativa “... sob a direcção das autoridades judiciá-rias...”, consagrada no artigo 56º do Código de Processo Penal.

A Polícia Judiciária é um corpo superior de polícia criminal auxiliar da administração da jus-tiça e organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Justiça.30 E estrutura-se ver-ticalmente numa directoria nacional, em unidades nacionais, territoriais, regionais e locais, eem unidades de apoio à investigação criminal e de suporte.31

A Polícia Judiciária depende organicamente do Ministério da Justiça e nessa vertente desen-volve e promove acções de prevenção criminal.32

A Polícia Judiciária enquanto órgão auxiliar da administração da justiça, e nas funções de po-lícia de investigação criminal, coadjuva as autoridades judiciárias na investigação dos crimesda sua competência reservada e dos crimes cuja investigação lhe seja cometida pela autoridadejudiciária competente para a direcção do processo.33

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O sistema de dependência funcional caracteriza-se por as polícias investigarem sob a direcção funcional das autori-dades judiciárias, mantendo, no entanto, a sua dependência orgânica, administrativa e disciplinar dos órgãos da ad-ministração pública onde estão integradas. O sistema tem consagração legal no artigo 56º do Código de Processo Penalportuguês. E tem igualmente aplicação nos sistemas espanhol e alemão. As vantagens do sistema – citando uma vezmais Figueiredo Dias, op. cit., pág. 13 e 14 – passam por permitir “uma rigorosa delimitação das competências entreas autoridades judiciárias e as polícias, aquelas dirigindo, estas realizando as tarefas de investigação...” mantendo-se o“modelo policial unitário constitucionalmente imposto, que atribui a todas as polícias as funções de defesa da legali-dade democrática, da segurança interna e dos direitos dos cidadãos ...”, e as desvantagens passam pela dupla depen-dência funcional havendo “o risco de em alguma coisa dividir as polícias entre exigências contraditórias edescoordenadas: de um lado as da autoridade judiciária, do outro as da hierarquia.”.27. AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 1998, pág. 719, define “ordens” como co-mandos concretos, específicos e determinados que impõem a necessidade de adoptar imediata e completamente umacerta conduta; e “directivas” como orientações genéricas que definem imperativamente os objectivos a cumprir pelosseus destinatários, mas que lhes deixam liberdade de decisão quanto aos meios a utilizar e às formas a adoptar paraatingir esses objectivos.28. Op. cit., pág. 118.29. Consta do artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto “... a PJ actua no processo sob a direcção das au-toridades judiciárias e na sua dependência funcional, sem prejuízo da respectiva organização hierárquica e autonomiatécnica e táctica.”.

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Nesta vertente a Polícia Judiciária actua no processo sob a direcção das autoridades judiciáriase na sua dependência funcional.34

A Polícia Judiciária – como, de resto, acontece com os restantes órgãos de polícia criminal –está sujeita a um duplo poder funcional que varia de acordo com as actividades desenvolvidas.Na vertente administrativa, do Ministro da Justiça. Na vertente de órgão auxiliar da adminis-tração da justiça, da autoridade judiciária competente para a direcção do processo.É nesta última vertente que interessa tecer algumas considerações sobre a autonomia técnicae táctica da Polícia Judiciária, que vinha sendo reclamada como condição de aumento dos ní-veis de eficácia no combate às formas de crime mais gravosas.O legislador consagrou normativamente que a autonomia técnica “assenta na utilização deum conjunto de conhecimentos e métodos de agir adequados” e que a autonomia táctica “con-siste na escolha do tempo, lugar e modo adequados à prática dos actos correspondentes aoexercício das atribuições legais dos órgãos de polícia criminal”.35 36

Partindo da competência de coadjuvação e do princípio da dependência funcional, o legisla-dor vem agora especificar áreas de protecção dos órgãos de polícia criminal, sendo que algu-mas delas já resultavam de uma leitura integrada do sistema.Num primeiro plano de reserva surge a organização hierárquica dos órgãos de polícia crimi-nal, pois estes actuam no processo sob a direcção e a dependência funcional da autoridade ju-diciária, sem prejuízo da respectiva organização hierárquica.37

Num segundo plano surgem i) a reserva de actuação de conteúdo técnico da investigação, as-sente no pressuposto de que os órgãos de polícia criminal detêm o domínio de métodos, co-nhecimentos e técnicas específicos (autonomia técnica), e ii) a reserva de actuação na área daplanificação e da gestão da investigação (autonomia táctica), que escapando a qualquer disci-plina jurídica, encontram o seu espaço nas práticas policiais.38

E fê-lo no pressuposto de que as finalidades da investigação criminal só podem ser cabalmentealcançadas com recurso a entidades, hoje cada vez mais do que nunca, altamente especializa-das e detentoras de conhecimentos, saberes de natureza científica e técnicos, e outros meios sódisponíveis – por enquanto – nas polícias.

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30. Artigo 1º, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto.31. Artigos 22º, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto.32. Artigos 2º, n.º 1 e 4º, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto.33. Artigos 2º, n.º 1, 3º, n.º 1, e 5º, n.º 1, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto; e artigos 7.º e 8º da Lei n.º 49/2008,de 27 de Agosto.34. Artigo 56º, do CPP; artigo 3º, n.º 2, da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto; e artigo 2º, n.º 4, da Lei 49/2008, de27 de Agosto.35. Artigo 2º, n.º 6, da Lei de Organização de Investigação Criminal (Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto).36. A autonomia técnica e táctica já tinham consagração na anterior LOIC (Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto).37. Artigo 2º, n.º 4, da Lei 49/2008, de 27 de Agosto; e artigo 3º, n.º 2, da Lei n.º 37/2008 de 6 de agosto.38. Na sequência do afastamento de dois elementos da direcção de um departamento de investigação criminal, da Po-lícia Judiciária, relacionado com um processo bastante mediatizado, veio o Partido Comunista Português a apresen-tar na Assembleia da República o Projecto de Lei n.º 466/IX, em 18 de Junho de 2004 (publicado no Diário da

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Não deve, no entanto, a autonomia ser interpretada como uma forma de suprir eventuais in-suficiências organizatórias do Ministério Público, mas num plano de complementaridade emque todo o acervo técnico-científico, experiência e saber criminalístico acumuladas, só dispo-níveis nas polícias de investigação criminal, é posto ao serviço da administração da Justiça.Ou seja, a intervenção dos órgãos de polícia criminal na actividade processual penal deve serentendida como uma mais-valia, devido sobretudo à sua preparação técnico-científica e tam-bém à sua proximidade espacial.O grau de autonomia deve ainda ser entendido em função da complexidade do crime em in-vestigação.39 Se na investigação do crime mais complexo e organizado se mostra absoluta-mente necessária à sua eficácia, outro tanto já não sucederá na investigação da pequenacriminalidade ou mesmo da média criminalidade, pois o grau de dificuldade e complexidadesão substancialmente diferentes.De todo o modo, em situação alguma se encontram razões para que o Ministério Público sejaprivado da informação que lhe permita compreender e avaliar as razões que determinaramuma ou outra opções técnica ou táctica por parte da polícia, de forma a que as possa conca-

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Assembleia da República, IIª Série, n.º 68, de 26 de Junho de 2004, pág. 2768 e 2769), propondo o aditamento aoartigo 2º, da Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto), um n.º 8, com a se-guinte redacção : “Os funcionários designados pelas entidades competentes dos órgãos de polícia criminal para a rea-lização das investigações ou actos delegados pelas autoridades judiciárias competentes nos termos da presente lei, nãopodem ser afastados dessas funções sem que se tenha terminado a fase do processo em que se inserem, salvo autori-zação expressa da autoridade judiciária responsável pela sua direcção funcional.”. Explicava-se no preâmbulo que setratava de uma norma de salvaguarda face a um “... qualquer intento, vindo de responsável hierárquico de qualquerórgão de polícia criminal, ou de um qualquer ministro, de interferir na investigação de um processo criminal emcurso através da substituição dos seus intervenientes, [que] seria evitada, com a intervenção obrigatória do magistradotitular do processo ...”. Faz-se ainda referência à Lei Orgânica n.º 6/1985, de 1 de Julho, sobre o poder judicial, emEspanha, que prevê no seu artigo 550º “... que os funcionários de polícia judicial a quem tenha sido encomendadauma actuação ou investigação concreta não possam ser afastados até que se finalize a mesma ou, em todo o caso, afase do procedimento judicial que a originou, salvo por decisão ou mediante autorização do magistrado competente.” O Projecto de Lei caducou com a dissolução da Assembleia da República, em 22 de Dezembro, de 2004. E, entre-tanto, não voltou a ser reapresentado. A questão tem directamente a ver com a autonomia táctica (e, também, orgânica) da Polícia Judiciária. As investiga-ções decorrem numa relação funcional em que são interlocutores (ou deveriam ser) o magistrado titular da direcçãodo processo e o coordenador de investigação criminal que tem a seu cargo as investigações. Quaisquer questões per-tinentes às investigações deverão ser tratadas e resolvidas entre eles (exceptuam-se os casos em que é necessário afec-tar mais meios – humanos e/ou materiais – não disponíveis na secção, em que têm que ser solicitados pelocoordenador à direcção da Unidade). Tratando-se de investigações complexas ou com algum melindre, a substitui-ção da equipa de investigação (que não foi o caso na situação que motivou o projecto de lei, pois tratava-se de ele-mentos da direcção) suscita normalmente dificuldades várias na sua conclusão (desde logo, a transmissão deconhecimentos e informações que não constam dos autos), fazendo assim todo o sentido ouvir o magistrado titulardo processo, a fim de dar o seu contributo para assegurar a boa continuidade das investigações, cabendo, no entanto,à hierarquia da Polícia Judiciária a responsabilidade de seleccionar uma nova equipa de investigação.39. Mas em situação alguma a autonomia táctica pode ser interpretada como oportunidade na realização da investi-gação. Sendo a investigação criminal desenvolvida no âmbito do processo penal que é orientado por critérios de le-galidade, a compreensão do conceito de autonomia táctica passará sempre por excluir parâmetros de oportunidade econveniência enquanto fundamento de condicionamento do início de investigações ou de realização de diligências.Do que se trata é do “como”, “quando”, “de que forma” e “com que meios” as investigações ou diligências são reali-zadas.

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tenar no enquadramento geral da investigação a decorrer no inquérito, não se colocando assimem crise a direcção do inquérito ou mesmo da investigação.A autonomia configura-se assim como um instrumento fundamental para o desenvolvimentodas investigações (no terreno) que obrigam, amiudadamente, à assunção de decisões imedia-tas, as quais, tendo que ser tomadas no momento, só poderão encontrar suporte de legitimaçãonum poder de polícia que se contenha nessa autonomia.Esse poder de polícia há-de ser encontrado no poder de orientação40 do Ministério Públicocujos comandos se concretizam através de directivas, deixando estas ao seu destinatário o poderde os conformar quanto aos meios, às formas e à oportunidade da sua execução.41 E é nestamargem de conformação da execução dos comandos que a autonomia da polícia se desen-volve e legitima.42

A Polícia Judiciária enquanto corpo superior de polícia auxiliar da administração da justiça, eespecialmente vocacionada e dotada para o exercíco das funções de polícia judiciária, tem le-galmente atribuída competência reservada para a investigação dos crimes mais graves, deten-tores da possibilidade de provocar maiores danos à sociedade pelo elevado desvalor que taisactos comportam, pelo impacto que provocam na opinião pública e pela frequência com queocorrem, susceptíveis, portanto, de gerar um clima de grande insegurança na comunidade queimporta acautelar.Ao Ministério Público em representação do Estado, e nos termos da Constituição, estatutá-rios e da lei processual penal, compete-lhe exercer a acção penal orientada pelo princípio dalegalidade, dirigir a investigação criminal e fiscalizar superiormente a actividade processualdesenvolvida (no âmbito da competência coadjuvatória) pelos órgãos de polícia criminal.A repressão ao crime mais violento, organizado e de maior danosidade social, passa pela in-vestigação criminal realizada pela Polícia Judiciária sob a direcção do Ministério Público e nasua dependência funcional.43

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40. CUNHA, José Manuel Damião da, op. cit., pág. 132, define o poder de orientação como “um poder exercitávelduradoura e continuamente, pelo que pressupõe, para que se efective, que a ele estejam conexos outros poderes ins-trumentais em relação ao poder de emitir directivas. Dentro deles, há que referir, fundamentalmente, o poder depedir informações e mesmo um poder de ‘avocação’” E referindo-se à directiva, refere que os encargos que o Minis-tério Público pode cometer aos órgãos de polícia criminal, quanto ao seu âmbito, podem ser genéricos (proceder acertas investigações) ou específicos (praticar determinado acto ou diligência), mas têm que deixar um espaço de apre-ciação, face ao fim e objectivo definidos, quanto à forma e meios de cumprir a directiva.41. COSTA, José de Faria, As relações entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, in Boletim da Faculdade deDireito, Vol. LXX, Coimbra, 1994, pág. 226, refere sobre este ponto que “... o Ministério Público, não obstante sero dominus desta fase, é-o por imperativo da lei e por isso também ele está sujeito às intencionalidades jurídico-legal-mente definidas. Daí que as polícias tenham que seguir as orientações processuais cominadas, ficando, desse jeito, foradaquele âmbito de orientação as questões tácticas ou estratégicas de âmbito puramente policial e não violadoras dalei.”

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A Polícia Judiciária intervém no âmbito das suas competências de coadjuvação, dando cum-primento aos comandos do Ministério Público veiculados através de instruções e directivas.Materializar esta relação funcional no inquérito implica a adopção de procedimentos e um diá-logo institucional que nos últimos anos não se tem mostrado muito consensual e, por vezes,até pouco pacífico.Tal decorre da complexidade desta relação funcional, da por vezes diferente interpretação feitados normativos legais que a regulam, de algum défice de formação em matéria de investiga-ção criminal (e de outros aspectos de natureza organizatória) nos magistrados do MinistérioPúblico que lhes permitam ser mais interventivos, e razões de natureza histórica que tambémaqui pontificam.44

De todo o modo, a investigação criminal constitui o primeiro e um dos passos mais impor-tantes (se não mesmo o mais importante, na medida em que condiciona – ou pode condicio-nar – todos os outros) para o exercício da acção penal. É durante a investigação criminal quese identificam os crimes praticados, se determinam os seus agentes e a sua responsabilidade, ese descobrem e recolhem as provas. Ou seja, é na sequência da investigação, que se define e sefixa o objecto do processo (com a dedução da acusação pelo Ministério Público, pelo assistenteou através do requerimento de abertura de instrução, nos casos em que o Ministério Públiconão deduza acusação) que, em obediência ao princípio da vinculação temática, se há-de man-ter inalterado até final do processo.

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42. O legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro (entretanto revogado, parcial-mente, pela Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto) escreve a certa altura: “... comete-se aos níveis superiores da respectivacarreira [de investigação criminal] um papel decisivo no domínio da valoração das instruções ou directivas das auto-ridades judiciárias na perspectiva do desenvolvimento da autonomia da investigação criminal consagrada na Lei daOrganização da Investigação Criminal”.43. E é na investigação desta criminalidade grave e complexa que deve existir uma relação mais intensa e desburo-cratizada entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, devido às exigências de que a lei faz depender a prática decertos actos e à necessidade de planificar e articular devidamente todos os passos previsíveis da investigação, tendo emvista definir e antecipar o momento de intervenção do juiz de instrução. 44. No âmbito da lei que então regia a Polícia Judiciária (Decreto-Lei n.º 35042, de 20 de Outubro de 1945) os ins-pectores eram recrutados de entre os delegados do Ministério Público, considerados os melhores. A Polícia Judiciá-ria tinha funções de instrução preparatória – artigos 17º e 18º do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945– e de arquivamento dos autos, nas comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra, onde à data estava instalada. Estas fun-ções, próprias do Ministério Público, eram exercidas na Polícia Judiciária pelos inspectores. Sucedia, então, que mesmoalgumas funções de natureza judicial (por exemplo, a libertação e manutenção em prisão preventiva, de indivíduosdetidos) na fase de instrução preparatória foram atribuídas aos órgãos superiores da Polícia Judiciária – director esubdirector -, ocupados por juízes – nos termos do artigo 8º do Estatuto Judiciário à data em vigor.Este estado de coisas alterou-se com a Lei n.º 185/72, de 31 de Maio, quando foi estabelecida a figura do juiz de ins-trução criminal que assumiu a fase de instrução preparatória, com a faculdade de delegar a realização das diligênciasde investigação na Polícia Judiciária (o que normalmente acontecia) que detinha a competência exclusiva para a ins-trução dos crimes mais graves.Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, criou-se uma fase de inquérito policial (de-pois chamado de inquérito preliminar) a cargo do Ministério Público e da Polícia Judiciária, para investigar crimes

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Esta actividade processual contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por-que a prova recolhida tem eficácia indiciária e, nessa medida, é susceptível de fundamentar arealização de actos processuais que afectam a esfera jurídica dos cidadãos, originando a con-tracção de direitos constitucionais como sejam a liberdade (por aplicação da medida de coac-ção de prisão preventiva), a intimidade (por intercepção e gravação de conversas e tomadas deimagem, privadas) e o património (através da apreensão de bens). Nesta medida a investiga-ção criminal é também uma função judicial.A investigação criminal é assim uma etapa fundamental para o êxito do exercício da acçãopenal, que depende directamente da qualidade, idoneidade e correcção com que aquela in-vestigação criminal foi realizada. Impõe-se assim que a investigação criminal seja levada a cabocom garantias de legalidade, isenção e objectividade. A intervenção do Ministério Público na direcção da investigação criminal destina-se a assegurara sua idoneidade e objectividade, a validade da prova indiciária recolhida e a garantir os direitosliberdades e garantias dos cidadãos, em especial do arguido.45

Sucede que na prática – salvo algumas excepções, que poderão confirmar a regra – a investi-gação criminal é realizada pela Polícia Judiciária que faz intervir o Ministério Público quandose trata de praticar actos da sua competência ou da competência do juiz de instrução. Quandoconsidera a investigação concluída, remete-lhe o inquérito com uma proposta de dedução deacusação ou de arquivamento. A direcção da investigação pelo Ministério Público é assim,como já atrás referimos, meramente formal, direi mesmo virtual.46 47 48 49

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cuja moldura penal não ultrapassava os dois anos de prisão. Manteve-se a instrução preparatória e contraditória, nacompetência do juiz de instrução criminal, para os restantes crimes e nas situações em que o arguido tenha sido de-tido e não tenha sido sujeito a processo sumário.A Constituição de 1976, no artigo 32º, n.º 4, ao dispor que “Toda a instrução será da competência de um juiz, in-dicando a lei os casos em que ela deve assumir forma contraditória.” tornou obrigatória a instrução judicial e no ar-tigo 224º, n.º 1 (hoje, artigo 219º, n.º 1), ao dispor que “Ao Ministério Público compete ... exercer a acção penal ...”,cometeu o exercício da acção penal, em exclusividade, ao Ministério Público. Nesta sequência o Decreto-Lei n.º377/77, de 6 de Outubro e a Lei n.º 25/81, de 21 de Agosto, no âmbito processual penal, e o Decreto-Lei n.º 364/77,de 2 de Setembro, no âmbito da Polícia Judiciária, vieram alterar o sistema de forma substancial. A Polícia Judiciáriadeixou de poder arquivar os processos, passando tais poderes em exclusividade para o Ministério Público, e os ma-gistrados do Ministério Público, em exercício de funções de inspector na Polícia Judiciária, foram obrigados a optarpela continuação ou pelo regresso ao Ministério Público. À data um inspector ganhava mais do que um magistradodo Ministério Público, pois auferia o vencimento de delegado de 1ª categoria (o mais antigo), que era acrescido deum suplemento remuneratório pelo exercício daquelas funções. Alguns inspectores optaram por continuar na Polí-cia Judiciária e, desde essa altura, as relações entre os quadros superiores da Polícia Judiciária e os magistrados do Mi-nistério Público não têm sido as melhores, dando lugar a uma conflitualidade ainda hoje não completamente debelada.(Sobre esta matéria, vide CLUNY, António Francisco – O relacionamento da Polícia Judiciária com o Ministério Pú-blico e o poder judicial em Portugal, in Revista do Ministério Público, Ano 16, Outubro/Dezembro, 1995, n.º 64,pág. 68 a 70).45. Isto não quer dizer que a Polícia Judiciária (ou qualquer outra polícia) não esteja obrigada a actuar observandosempre critérios de legalidade. COSTA, José de Faria – As Relações entre o Ministério Público ... op. cit., pág. 222,refere que qualquer polícia está sujeita ao dever de actuar segundo a legalidade e que esse dever tem mesmo uma di-recta legitimidade constitucional (cf. artigo 272º, n.º 1, da Constituição da República).

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Quem detém o domínio material da investigação criminal é a Polícia Judiciária, que define asestratégias investigatórias, pratica actos processuais e determina ou influencia a estrutura deoutros. Ou seja, comporta-se no inquérito como um verdadeiro sujeito processual, em sentidomaterial.Tudo isto por que o Ministério Público depende por completo dos órgãos de polícia criminalpara realizar o inquérito.50 51

É natural que um quadro destes gere conflitualidade com reflexos negativos ao nível dos re-sultados da investigação criminal. Conflitualidade que se agrava quando alguns sectores do Mi-nistério Público defendem que os investigadores da Polícia Judiciária deveriam passar ainvestigar sob as ordens directas dos procuradores. No fundo fazer a extensão e universalizaro regime previsto (no artigo 12º, da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro)52 para a criminalidadeeconómica que permite ao Ministério Público requisitar investigadores à Polícia Judiciáriapara trabalharem directamente sob as ordens dos procuradores e nas instalações do Ministé-rio Público.53

Também o entendimento de alguns sectores do Ministério Público de que tais requisições po-deriam ser nominais, ignorando que tal procedimento constituiria uma intolerável ingerência

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46. MOURA, José Souto de - Justiça, Ministério Público, Criminalidade Económica, in Revista Portuguesa de Ciên-cia Criminal, Ano 13, n.º 2, Abril-Junho 2003, Coimbra Editora, pág. 21, refere que se “o Ministério Público surgecada vez mais como um “dominus” da investigação, meramente formal, se o fulcro do “poder” investigatório nos cri-mes graves está nas polícias, operando os procuradores um mero controlo à distância do conteúdo do inquérito, setudo isto é verdade, também não é menos verdade a falta de alternativas credíveis.” 47. RODRIGUES, José Narciso da Cunha – A Posição Institucional e as Atribuições do Ministério Público e das Po-lícias na Investigação Criminal, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 337, Junho, 1984, pág. 41, já o então Pro-curador-Geral da República afirmava que “Efectivamente, o Ministério Público não coordena a investigação criminal,se se entender por coordenação a superintendência numa actividade que gera relações próprias. Nesta perspectiva oMinistério Público não coordena, ordena.”48. PEREIRA, Rui – A crise do Processo Penal, in Revista do Ministério Público, n.º 94, Ano 24, Abr/Jun 2003, pág.20, quando afirma (referindo-se à constituição de arguido por órgãos de polícia criminal; matéria que, entretanto, foialterada - artigo 58.º, n.º 3 - no âmbito da reforma de 2007 - Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto -, mas com poucasconsequências, já que a validação é normalmente exarada em cópias do auto remetidas, para o efeito, ao MinistérioPúblico, que umas vezes guarda em depósito e outras devolve para junção aos autos) que “... o exercício da acção penalnão se basta com a abertura e o encerramento do inquérito, como pode resultar das delegações genéricas de compe-tência do Ministério Público nos órgãos de polícia criminal (artigo 270º, n.º 4, do Código de Processo Penal). Se-nhores do inquérito, nestes casos, não serão, afinal, os órgãos de polícia criminal?”49. MARTINS, A. G. Lourenço – Poder Judicial e Magistratura de Investigação, in Boletim da Faculdade de Direitoda Universidade de Coimbra, Vol. LXXV, Coimbra, 1999, pág. 411, refere que “ ... o Ministério Público formalmenteé o dominus da investigação mas na prática, quando se trata de crimes graves – talvez com excepção de alguma cri-minalidade de natureza económico-financeira – a verdadeira investigação, mesmo nos momentos em que pode tocarcom as garantias do arguido é “entregue” ou “endossada” aos OPC.”50. MOURA, José Souto de – Justiça, Ministério Público ..., op. cit., pág. 18, neste sentido quando refere que “...parece-nos ser do mais elementar senso comum o reconhecimento de que o Ministério Público depende por com-pleto dos O.P.C. para realizar o inquérito, e de que tudo o que os O.P.C. fizerem, ou serve os propósitos do Minis-tério Público, ou para pouco mais servirá!”. E mais adiante “Na prática, um Ministério Público em absoluto alheadoda investigação, e em certas situações tal tentação existe, acaba por não ter qualquer margem de manobra. Corre osriscos de ficar totalmente condicionado pelas polícias quanto aos resultados obtidos e meios utilizados e, no limite,poderá ser ultrapassado pela tutela governamental dessas mesmas polícias.” Concluindo que a missão das polícias “...fica basicamente cumprida com o fim da investigação em inquérito, para o Ministério Público, o sucesso da investi-

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na direcção da Polícia Judiciária e atentava contra a autonomia – orgânica, técnica e táctica –da Instituição, hoje consagrada na lei e consensual na doutrina, contribuiu para o agravamentodas relações institucionais, dificultando o diálogo institucional entre os investigadores e o Mi-nistério Público.54 55 56

As Leis de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto e Lei n.º49/2008, de 27 de Agosto) e as leis que aprovam a orgânica da Polícia Judiciária (Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro e Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto) parecem apostarnuma revalorização dos quadros superiores e intermédios da Polícia Judiciária57 (a par de umatransferência de mais poderes para a Polícia Judiciária58 e consagração da autonomia técnica etáctica, no âmbito das referidas Leis de Organização da Investigação Criminal) elegendo-oscomo interlocutores privilegiados do Ministério Público e capazes de contribuírem para gerar“um fluxo informacional desburocratizado entre os sujeitos ou as instituições interessadas –que, desse jeito, possam complementar as regras e os princípios básicos do actual código deprocesso penal português.”, como bem refere Faria Costa.59

Mas no dia-a-dia não é isso que acontece. O diálogo entre os procuradores titulares dos in-quéritos e os coordenadores de investigação criminal, que dirigem as unidades orgânicas que

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gação será apenas uma etapa essencial, mas não exclusiva, para atingir o resultado final que se propõe conseguir: a rea-lização efectiva da justiça penal no caso...”.51. No tempo mais recente, assistiu-se – e continua a assistir-se – a situações pontuais em que o Ministério Públicoassume a direcção efectiva de equipas de investigação criminal integradas por investigadores da Polícia Judiciária, emalguns casos mais mediáticos. O quadro em que ocorrem parece-nos ser meramente conjuntural. Os resultados nãosão encorajadores. E deteriora ainda mais o diálogo institucional entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária tãoessencial à realização da investigação criminal. Não será este, seguramente, o bom caminho a trilhar no futuro.52. Dispõe-se nesse artigo que “No caso de avocação de processos pelo Ministério Público, pode o Procurador-Geralda República, tendo em conta a disponibilidade de meios, solicitar, por intermédio do Ministro da Justiça, a requi-sição ou o destacamento de funcionários da investigação criminal da Polícia Judiciária.”53. Ou, como sucedeu, em tempo ainda próximo, no âmbito de um processo de pedofilia muito mediatizado, emque a equipa de investigadores da Polícia Judiciária passou a receber ordens directas e a depender da equipa de pro-curadores que liderou as investigações, quebrando por completo, nesse período, a sua relação funcional e hierárquicacom as chefias da Polícia Judiciária, ficando com reporte exclusivo ao Ministério Público. A equipa apenas utilizouos meios materiais (veículos, instalações e demais equipamentos) da Polícia Judiciária, ao que se sabe, por não existi-rem no Ministério Público. 54. COSTA, José de Faria – As Relações entre o Ministério Público ... op. cit., pág. 235, refere que “... o MinistérioPúblico, tem de respeitar a estrutura administrativa e orgânica das entidades policiais. Para além disso – aliás, comocorolário do que se acaba de afirmar -, a distribuição de competências dentro de um mesmo serviço público – cadaentidade policial – é outrossim tarefa administrativo-policial como, de resto, é também tarefa administrativa, e da com-petência do superior hierárquico, assegurar a eficiência do próprio serviço. Nesta perspectiva resulta claro que só o su-perior hierárquico pode saber qual o funcionário melhor preparado ou mesmo disponível para a realização de umatarefa requerida por uma autoridade judiciária. Tudo, por conseguinte, manifestações de traços reveladores da cha-mada independência orgânica da polícia.”55. MOURA, José Souto de – Inquérito e Instrução, in Jornadas de Direito Processual Penal. O novo Código de Pro-cesso Penal, Almedina, Coimbra, 1988, pág. 106, refere que “A estrutura orgânica, a acção disciplinar, ou o funcio-namento administrativo das polícias, são campos estranhos à actuação M.º P.º. Este superintende no processo e sóno processo.” 56. CUNHA, José Manuel Damião da – O Ministério Público e os Órgãos ... op. cit., pág. 263 e 264, quando refereque “para efeitos de realização de investigações e diligências pontuais, a escolha do funcionário policial compete,única e exclusivamente, ao superior hierárquico.”, assim “as requisições do MP devem ser dirigidas aos directores ou

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realizam a investigação e são por ela responsáveis,60 não se verifica por razões que responsabi-lizam ambos os lados. Mas tem sido a prática dos procuradores que mais tem contribuídopara este estado de coisas. Normalmente são os procuradores que mais vezes necessitam de es-clarecimentos relacionados com as investigações a decorrer nos inquéritos. Por regra, dirigem-se ao inspector que tem o inquérito distribuído (ignorando as hierarquias da unidade orgânica)que, por isso, participa na realização das diligências processuais, organiza o dossiê criminal(actuando sempre sob a directa orientação da chefia imediata) e apresenta-o ao inspector-chefeda Brigada, que, por sua vez, o apresenta ao coordenador para despacho, quando for casodisso. Nenhum inquérito deve entrar ou sair (a título definitivo ou temporário) na unidadeorgânica, sem que o mesmo seja despachado pelo coordenador ou por alguém que o substi-tua.Os procuradores – salvo raras excepções – ignoram as chefias da unidade orgânica de investi-gação, numa lógica de que o encargo da investigação foi cometido ao órgão de polícia crimi-nal Polícia Judiciária e, dentro dele, procura-se ou mesmo escolhe-se o interlocutor mais directoe, de preferência, menos exigente.A esta crítica respondem normalmente os procuradores que os coordenadores raramente têmo domínio material do inquérito, para que possam prestar uma informação pronta e actuali-zada. A crítica tem alguma pertinência e poder-se-á apontar o dedo – nesta matéria, como emoutras – aos coordenadores que, por vezes, se demitem um pouco daquilo que também são assuas tarefas funcionais – elaborar o planeamento das investigações mais complexas e acompa-nhar de perto a sua realização.61

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chefes ... só uma solução deste tipo garante uma verdadeira dependência funcional. E isto, porque a escolha de fun-cionários é questão que cabe, por definição, ao superior, pois só ele poderá saber qual o funcionário melhor prepa-rado ... o que não quer dizer, porém, que, salvaguardada a organização do serviço, não possa o MP sugerir a eleiçãode um determinado funcionário ... sugestão que deve ser, sempre que possível, aceite.”57. Sobre esta matéria vide a nota n.º 42, supra.58. Primeiro através da Lei n.º 103/2001, de 25 de Agosto, que alterou o Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de No-vembro (aditando-lhe o artigo 11-A) e depois no artigo 12.º da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto; isto, não obstante,a revogação da alínea d) do referido artigo 12.º pelo artigo 4.º, alínea b), da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto. Doque resultou os poderes da Polícia Judiciária, em matéria de detenção fora de flagrante delito, ficarem, de novo, con-finados ao disposto no artigo 257.º, n.º 2, do CPP, à semelhança dos restantes órgãos de polícia criminal.59. COSTA, José de Faria – As Relações entre O Ministério Público ..., op. cit., pág. 246.60. As Unidades da Polícia Judiciária (nacionais, territoriais, regionais e locais) que realizam a investigação criminal,organizam-se em secções a que é atribuída a investigação de determinados crimes. A secção – que é dirigida por umcoordenador de investigação criminal – estrutura-se em brigadas – normalmente três, que são chefiadas por inspec-tores-chefes – compostas, em média, por seis inspectores, cada.Os inquéritos entram na Polícia Judiciária e são canalizados para as respectivas secções, em função da distribuição decompetências internas (Decreto- Lei n.º 42/2009, de 12 de Fevereiro) para a investigação dos diversos crimes decompetência reservada da Polícia Judiciária, nos termos da lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º49/2008, de 27 de Agosto).Os inquéritos são distribuídos pelas brigadas pelo coordenador, e nas brigadas o inspector chefe distribui os inquéri-tos pelos inspectores e, por vezes, por ele próprio (quando haja concordância do coordenador e razões de complexi-dade ou outras o justifiquem).

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De todo o modo, a informação deve ser solicitada directamente ao coordenador, que dirige aunidade orgânica, enquanto responsável pela realização da investigação criminal, que deveacompanhar de perto as investigações e actualizar a informação, sem prejuízo de, nos casos emque tal se justifique, fazer intervir na reunião de trabalho com o titular do inquérito outro ououtros investigadores intervenientes nas investigações.Há-de ser num quadro de entendimento, de procura de equilíbrios e consensos, que propen-dam para a harmonização de procedimentos na articulação das actuações do Ministério Pú-blico e das autoridades de polícia criminal da Polícia Judiciária, que se trilha o caminho daeficácia, segurança e aperfeiçoamento do sistema de investigação criminal.Sendo isso verdade, o certo é que os anos passam, os diplomas legais sucedem-se, e a articu-lação entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária não sofre alterações substanciais.62 Ape-nas uns avanços e recuos. Com os prejuízos conhecidos para a (falta de) eficácia da investigaçãocriminal.Na busca de soluções para o problema, uns advogam uma maior dependência da Polícia Ju-diciária face ao Ministério Público, mesmo a nível orgânico, com os argumentos de que se aparte hegemónica do seu labor se consubstancia na coadjuvação ao Ministério Público, faztodo o sentido que dependa organicamente deste e não do poder político o qual, consideram,não ter a independência de uma magistratura para garantir a legalidade de actuação da polí-cia criminal.63 64 Alguns destes vão mais longe e defendem a distribuição dos investigadorespelas procuradorias, organizados em núcleos de investigação na dependência directa dos pro-curadores. O que, a curto-prazo, levaria à extinção da Polícia Judiciária.

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As tarefas de investigação criminal, e os correspondentes actos processuais no inquérito, são realizadas pelo inspectorsob a directa orientação e controlo do inspector-chefe – artigos 67º, n.º 2. alínea c) e 68º, alínea a) – ambos do De-creto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro.O coordenador participa na elaboração do planeamento da investigação criminal, assegura o seu controlo operacio-nal e controla a legalidade e adequação dos actos, acções, diligências e operações desenvolvidos (artigo 66º, n.º 2, alí-nea b) e n.º 3, alínea a), do referido Decreto-Lei n.º 275-A/2000), promove a realização dos actos da competênciado Ministério Público e do juiz, e pratica no inquérito os actos da sua competência (por exemplo, ordenar buscas não--domiciliárias, apreensões, excepto de correspondência ou sujeitas a regime especial, a realização de perícias, quandoefectuadas por organismos oficiais e com excepção para as psiquiátricas, sobre a personalidade, ou autópsia médico-legal, e ordena detenções fora de flagrante delito).Elaborado o relatório final no inquérito, cabe ao coordenador avaliar da conclusão das investigações ou da necessi-dade da sua continuação, indicando, neste caso, quais as diligências a realizar. Após o que remete o inquérito ao ma-gistrado do Ministério Público titular, com proposta de dedução de acusação ou de arquivamento.Estas unidades orgânicas – as secções – são assim as únicas responsáveis pela realização da investigação criminal naPolícia Judiciária, razão pela qual a articulação entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público joga-se, fundamen-talmente, a este nível. Ou seja, nas boas relações institucionais e nas boas práticas cooperativas que se estabelecem ounão entre o coordenador de investigação criminal e o procurador do Ministério Público, titular do inquérito.61. Nos termos da alínea b), do n.º 2, do artigo 66º, do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro, competeao coordenador de investigação criminal “Elaborar o planeamento da investigação criminal e assegurar o respectivocontrolo operacional;”.62. COSTA, José de Faria – As Relações entre Ministério Público ..., op. cit., pág. 225, refere que “o tipo de tensõessuscitadas entre os órgãos de polícia criminal e o Ministério Público se resume ou circunscreve, em larguíssima me-dida, às tensões entre a Polícia Judiciaria e o Ministério Público.”

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Outros, fazendo apelo ao passado, defendem o retorno do Ministério Público ao interior daPolícia Judiciária, ocupando o lugar do coordenador, como em tempos ocupou o lugar doentão inspector. Mas com uma nuance, o Ministério Público chefiava a unidade orgânica deinvestigação, deduzia acusação no inquérito e arquivava, mantendo, no entanto, a sua quali-dade de magistrado sem qualquer reporte de natureza hierárquica à direcção da Polícia Judi-ciária. Alguns destes, mais avisados, defendem a vinda do Ministério Público para o seio daPolícia Judiciária, mas para o exercício de funções exclusivamente de Ministério Público.65

A primeira solução proposta, sendo exequível, deixava de fora a componente de polícia ad-ministrativa. Que, diga-se, representa uma parte menos importante da actividade da PolíciaJudiciária que tem a ver com as actividades de vigiar e fiscalizar previstas no artigo 4º, da Lein.º 37/2008, de 6 de Agosto. As restantes actividades desenvolvidas pela Polícia Judiciária sãoactividades processuais ou materialmente processuais66 67 e, portanto, sujeitas ao regime da leiprocessual penal. A dependência orgânica do Ministério Público levantava ainda outros problemas (para alémdos de natureza política, e que nos abstemos sequer de aflorar) relacionados com a eventualperda de autonomia técnica e táctica e da especialização que hoje decorre do catálogo decrimes de competência investigatória reservada, passando a intervir na investigação de outroscrimes um pouco ao sabor da gestão que o Ministério Público entenda fazer para dar respostaa eventuais insuficiências de outros órgãos de polícia criminal ou mesmo de funcionários. Adirecção e as chefias superiores da Polícia Judiciária teriam, nesse quadro, muitas dificuldades

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63. Esta questão é claramente aflorada por CLUNY, António Francisco – O Relacionamento da Polícia Judiciária como Ministério Público e o poder judicial em Portugal, in Revista do Ministério Público, n.º 64, Ano 16º, Outu-bro/Dezembro, 1995, pág. 76, quando a propósito da requisição de agentes (hoje, inspectores) da Polícia Judiciáriapara a concretização de determinadas diligências, questionava a posição da direcção da Polícia Judiciária que se arro-gava o poder de disponibilizar, ou não, tais meios investigatórios, afirmando “que tudo isto passava pela emergênciapública do fenómeno da criminalidade de ‘colarinho branco’ e pelo alerta que de imediato os centros do poder, de-signadamente o Governo, sentiram, quando começaram a ver investigadas certas figuras politicamente importantes.”E conclui que “A partir de então, começou a travar-se entre a Procuradoria-Geral da República e o Governo, inicial-mente através da Polícia Judiciária, uma guerra fria que veio a ter consequências a nível do próprio Estatuto do Mi-nistério Público... relativamente aos poderes da fiscalização e direcção da Polícia Judiciária”64. Neste sentido ver ainda nota n.º 50, supra65. É o caso do procurador COLAÇO, António Bernardo – O Ministério Público e as Polícias no Quadro do Fu-turo Código de Processo Penal, in Revista do Ministério Público, Cadernos, dedicada às Jornadas do Sindicato dosMagistrados do Ministério Público sobre a discussão do Projecto do Código de Processo Penal, em 7/8 de Novem-bro de 1986, quando se refere à figura do “MP junto da Polícia” nestes termos: “... nada tem a ver com o MP na Po-lícia; ou seja, um MP policializado, tal como acontecia com o antigo inspector da PJ recrutado entre os delegados doProcurador da República (em comissão de serviço).” E mais adiante “... em nada mancha a dignidade da magistra-tura, a figura do MP junto da Polícia, quando directamente dependente da estrutura hierárquica da PGR (em nadadependendo, por ex., do Director-Geral Policial, eventualmente magistrado do MP)”, concluindo que nada deveriaimpedir a generalização da figura junto das entidades policiais “com funções de investigação (e prevenção) criminal(PSP, GNR, GF[entretanto extinta], PJ, Actividades Económicas, etc.).”66. De resto, temos alguma dificuldade em configurar situações que, em sede de prevenção, comportem o registo desom e a tomada de imagens, bem como a realização de buscas, como se refere no n.º 3, do referido artigo 4º, da Lein.º 37/2008, de 6 de Agosto.

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em devolver inquéritos ao Ministério Público que, não sendo da sua competência, lhe são re-metidos para investigação e pugnar para que o mecanismo do deferimento de competênciapara a investigação de certos crimes à Polícia Judiciária se mantivesse dentro de certos parâ-metros.68

Quanto à solução que advoga a distribuição e afectação dos investigadores às diversas procu-radorias do Ministério Público o que, em nosso entender, a curto-prazo, conduziria à extin-ção da Polícia Judiciária, parece-nos ser de rejeitar liminarmente.69 Porque os investigadores amédio-prazo transformar-se-iam em meros funcionários do Ministério Público e a desarticu-lação da Polícia Judiciária (órgão mais dotado e vocacionado para a realização da investigaçãocriminal) representaria uma perda irreparável no panorama da investigação criminal nacio-nal. O capital de experiência acumulado ao longo de sessenta e cinco anos seria desperdiçado.E mais grave, a formação de novos polícias ficaria seriamente comprometida. Essa formaçãosó é possível no seio da Instituição Polícia Judiciária. E não se basta com a vertente teórico-prática, essencialmente cognitiva, ministrada pelo órgão formador. Esta representa apenas umaparte dessa formação. Em regra, a formação de um investigador completa-se ao fim de cincoanos de experiência.Por outro lado, a Polícia Judiciária (ou qualquer outra polícia) consegue resultados na investiga-ção criminal não por que tem nos seus quadros este ou aquele investigador, mas pela força doseu colectivo, pelo caldo de cultura institucional em que actuam, se formam e se movimentamos seus investigadores.

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67. A distinção entre prevenção criminal e investigação criminal é, por vezes, difícil de se conseguir. A prevenção cri-minal é uma das atribuições da polícia instrumental do exercício da acção penal, no sentido de que visa impedir ocometimento de crimes. Tem natureza administrativa e exigências de ordem técnica, táctica, operacional, estratégicae organizativa, que têm muito a ver com a instituição policial que a executa. São meras funções de polícia adminis-trativa, as quais têm de desenvolver-se sem perturbar ou limitar ou ainda menos pôr em crise, os direitos dos cida-dãos. A actuação preventiva de polícia há-de ter mais a ver com a vigilância e fiscalização de locais e actividades e apresença física no terreno de agentes fardados, que desincentivem a prática de crimes, do que com a recolha de in-formações de forma sistemática e organizada que vise pessoas ou grupos de pessoas determinadas ou a determinar.A verificar-se esta última situação, a actividade desenvolvida já se encontra mais próxima da figura da investigação cri-minal do que da prevenção. No sentido de que o que se procura com esta actuação policial não é tanto evitar que cer-tas pessoas ou grupos de pessoas pratiquem crimes, mas recolher informação que permita avaliar se já os praticaramou se preparam para os praticar. A ser assim estamos perante uma actividade que é materialmente de investigação cri-minal ou processual penal e que contende directamente com os direitos, liberdades e garantias do cidadão, pelo quedeve estar sujeita à disciplina do Direito Processual Penal.68. O artigo 8º da Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto) prevê que o Pro-curador-Geral da República pode deferir à Polícia Judiciária a investigação de crimes não previstos no catálogo,quando se trate de criminalidade altamente organizada ou que assuma carácter transnacional ou dimensão interna-cional ou se preveja que a investigação requeira conhecimentos ou meios técnicos especiais e mobilidade de actua-ção, em razão do alargamento espácio-temporal da actividade delituosa ou da multiplicidade das vítimas ou dossuspeitos.69. MOURA, José Souto de – Justiça., Ministério Público ..., op. cit., pág. 22, refere “... caso buscássemos inspira-ção no modelo italiano seria desencadeado um outro desequilíbrio de poderes, com o temível espectro da ‘Repúblicade Juízes’ no horizonte. Ou seja, se se pretendessem criar nas Procuradorias da República corpos de polícia destaca-dos que dependessem do magistrado não apenas funcionalmente. Entre nós, nunca este modelo poderia ser generalizado

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O retorno do Ministério Público à Polícia Judiciária em moldes idênticos ao que sucedeu nopassado, não faz hoje mais qualquer sentido. Qualquer magistrado do Ministério Público nes-sas funções tende mais a assumir-se como polícia do que como magistrado.70 O seu envolvi-mento na investigação criminal, facilmente o levaria a perder algum distanciamento críticonecessário a uma correcta avaliação e ponderação da prova indiciária recolhida, com vista à to-mada de decisão de deduzir ou não acusação.Já a vinda do Ministério Público para o seio da Polícia Judiciária para o exercício de funções es-tatutárias, parece-nos uma abordagem interessante ao problema e susceptível de revelar algumasvirtualidades.71

Sempre defendemos a proximidade (mesmo física) entre o investigador criminal e o acusador pú-blico. O envolvimento do Ministério Público no delinear das estratégias de investigação (e nãona sua materialização) poderia trazer uma mais-valia acrescida à investigação criminal. Por outrolado, há questões, aspectos de pormenor, que por vezes não são suficientemente valorados peloinvestigador mas que o são e se revelam de grande importância na formulação de uma acusação.Um diálogo frequente entre estas duas entidades – investigador e acusador público – afigura-se-nos benéfico em termos de aperfeiçoamento do sistema, de eficácia e de obtenção de resultadosna investigação criminal.Por outro lado, a presença do Ministério Público pode constituir um forte apoio e estímulo aoinvestigador, apoiando-o na abordagem de certos problemas de natureza legal e autorizandoactos processuais da sua competência, designadamente, ao nível das revistas pessoais, buscas não--domiciliárias, detenções72 e na promoção de actos jurisdicionais a praticar no inquérito, encur-tando a demora que por vezes é longa e, não raras vezes, dificulta ou até compromete as inves-tigações.Experiências destas já foram concretizadas com bons resultados e sem que tenham surgido sus-ceptibilidades de um ou de outro lado. Em 1996 uma equipa de magistrados do Ministério Pú-blico instalou-se na então Direcção Central de Investigação da Corrupção e CriminalidadeEconómica e Financeira, onde trabalhou na dedução de acusação de alguns inquéritos de grande

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a todo o País. Para além do que já referimos, pelos abalos que criaria na organização das polícias, pela falta de voca-ção gestionária da maioria dos magistrados, pela falta de meios materiais disponíveis. E ‘Last but not the least’ sempreficariam de pé objecções sérias, como a de se quebrar a distância entre magistrado-polícia indispensável à diferencia-ção real das funções, ou de se não aproveitarem todas as virtualidades da especialização dos corpos de polícia e, por-tanto, não se rentabilizar adequadamente o sistema.”70. Rodrigues, Narciso da Cunha – Direito processual penal – Tendências de reforma na Europa continental, Luga-res do direito, Coimbra Editora, 1999, apud Rodrigues, Anabela Miranda – A Fase Preparatória do Processo Penal –Tendências na Europa. O Caso Português, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra Editora, 2001,pág. 22, refere que “é errado pensar-se que os princípios e a praxis se purificam com a deslocação das polícias para ointerior das magistraturas. O magistrado que dirige orgânica, técnica e operacionalmente uma polícia tende para ac-tuar mais como polícia do que como magistrado.”71. MOURA, José Souto de – Justiça, Ministério Público ..., op. cit., pág. 22, a este propósito, interroga-se “Mas jáque as polícias não podem, não devem, vir trabalhar integradas em serviços do Ministério Público, porque não en-saiar um movimento exactamente em sentido contrário, procurando-se aproximar os magistrados da polícia, co-lhendo-se aliás os benefícios de experiências pretéritas que já ocorreram entre nós?”

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complexidade e, concomitantemente, deu apoio às investigações que ainda decorriam desen-volvidas por aquele departamento da Polícia Judiciária.É este o modelo de articulação entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público que nos parecemelhor garantir o fluxo informacional desburocratizado (a que se refere Faria Costa - vide pág.53 supra) capaz de suprir dificuldades de relacionamento que a lei processual penal e as Institui-ções envolvidas não têm conseguido resolver.

I) Direcção do inquérito

Impõe-se que seja levada a cabo com garantias de isenção, legalidade e objectividade, por umMagistrado com estatuto de autonomia, que valide os actos praticados pelos órgãos de políciacriminal no inquérito. E que o Juiz de Instrução Criminal surja no seu papel de Juiz das Li-berdades (como garante dos Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos).A investigação da criminalidade mais complexa e organizada deve ser realizada pela Polícia Ju-diciária, na sua função de coadjuvação do Ministério Píblico, observando-se a sua autonomia– orgânica, técnica e táctica –, mas sem correr riscos de policialização do inquérito, pois, a issoobriga, toda a intencionalidade político-legislativa subjacente à lei processual penal vigente.

II) Relacionamento (articulação) entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária

À Polícia Judiciária e ao Ministério Público enquanto protagonistas da investigação do crimemais complexo e organizado, exige-se-lhes uma relação funcional baseada em procedimentos enum diálogo institucional que garanta a eficácia, a legalidade, a isenção e a objectividade da in-vestigação criminal.A deslocação dos magistrados do Ministério Público para o interior da Polícia Judiciária, nassuas funções estatutárias, e salvaguardando as autonomias orgânica, técnica e táctica da Polícia,consagradas na lei e já defendidas por muitos, parece-nos ser uma experiência a levar a cabo,enquanto meio de ultrapassar problemas de comunicação entre quem investiga e quem acusa.

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72. Aspectos que de alguma forma o legislador pretendeu solucionar com a Lei n.º103/2001, de 25 de Agosto (en-tretanto revogada; vide nota n.º 58, supra), em que se cometem às autoridades de polícia criminal da Polícia Judiciá-ria, no âmbito de delegação genérica de competência de investigação criminal, competências próximas das doMinistério Público no inquérito, nestas matérias.

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Direcção do Inquérito e Relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária

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Técnicas Especiais de Investigação Criminal

Factor de Segurança

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António Sintra

Coordenador de Investigação Criminal da PJ.

“A Justiça é a Liberdade em acção”, Joseph Joubert1

A proliferação de nefastos fenómenos globais associados a crescentes vagas de criminalidadetransnacional grave e/ou organizada, bem como a emergência de diferentes formas de terro-rismo fundamentalista, constituem concreta, profunda e permanente ameaça para os direitosfundamentais e condições de vida das pessoas.Desse modo, são colocadas em crise a segurança, a autoridade e a soberania dos Estados de Di-reito, bem como, naturalmente, a estabilidade da comunidade globalmente considerada.As transmutações negativas na cena internacional e as correspondentes respostas por parte dosEstados determinam, não raras vezes, porventura de forma intolerável e ilegítima, a compres-são de direitos fundamentais dos cidadãos.Tais reacções tendem a afectar o justo equilíbrio entre segurança e liberdade.Destarte, não é admissível olvidar que a segurança, como valor social, é solidária da ideia deliberdade e que a segurança por si só nada deve justificar.Por isso, o presente estudo tem como objecto a segurança em geral e como sujeito as deno-minadas técnicas especiais de investigação criminal, persegue o objectivo específico de deter-minar, através de método curial, se a aplicação de tais técnicas constitui efectivo factor desegurança ou se, pelo contrário, representa causa de insegurança na medida em que é suscep-tível de conflituar com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. No plano das metodologias foi usada a jurídica para análise legal do sistema de investigaçãocriminal e a sociológica para exame das estruturas e funcionamento do sistema. Quanto àsfontes, foram utilizadas as primárias, oficiais, jurídicas e estatísticas, bem como o testemunhode protagonistas, nomeadamente magistrados e responsáveis por diferentes estruturas poli-ciais relacionadas com a matéria, no nosso país e no estrangeiro.

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1. Joseph Joubert, in http://www.pensador.info/autor/Joseph_Joubert/2/

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A dimensão, motivação, influência, capacidade, mobilidade e grau de sofisticação de deter-minados grupos criminosos revelam-se aptos para provocar alterações significativas no para-digma da segurança em geral e, por extensão, também no da actuação policial, mormente emsede de investigação criminal.Perante tal constatação, os Estados, conscientes da gravidade da ameaça, essencialmente nasduas últimas décadas, optaram por intensificar estudos e reflexões sobre a matéria, concebendoe aplicando políticas e estratégias de resposta tendentes a minimizar os efeitos e consequên-cias resultantes da prática de tais acções de cariz delituoso. Assiste-se então, por vezes, ao emergir de tendências de securitização que funcionam como po-líticas de excepção orientadas em função do grau de intensidade da contraposição, ou conflito,amigo/inimigo.O conceito de excepção teorizado por Carl Schmitt2 é definido como uma realidade de talforma perigosa que é capaz de ameaçar a existência do próprio Estado.Entende o mesmo autor que, perante ameaça de relevo, a entidade competente poderá sus-pender o ordenamento jurídico de forma a atingir uma realidade estável que permita o seu ul-terior restabelecimento com a finalidade de proteger ou salvar o Estado. Por isso, é usual considerar que a securitização é baseada na manipulação do poder por parteda elite.Nessa conformidade, emergem as políticas de excepção consubstanciadas em medidas, regimesou estados com diferentes graus de intensidade de intrusão nos direitos fundamentais dos ci-dadãos.As políticas de excepção, no estrito plano do soft-power, podem consistir na mera aplicação denormas jurídicas inovadoras em sede do designado direito penal de primeira velocidade3, célere,expedito e eficaz, com perfeita e absoluta aderência às normas constitucionais vigentes. Ainda no mesmo modelo, embora já no limiar do hard-power, a teoria do direito penal do ini-migo, enunciada em 19854, refere-se ao inimigo como alguém que não admite fazer parte dacomunidade (Estado) pelo que não deverá beneficiar das prerrogativas atribuídas ao cidadãocomum.No contrato social entre o Estado e o cidadão, o bem comum representa o fim primário. Daí, emana o desiderato da segurança5, quotidianamente prosseguido pela polícia: «a realiza-ção do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos»6.

Técnicas Especiais de Investigação Criminal – Factor de Segurança

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2. Schimtt, Carl (1996). The Concept of the Political, University of Chicago Press. U.S.A.3. Pereira, Rui (2007). «Segurança e Justiça em Portugal», Revista Segurança e Defesa, nº 1, Diário de Bordo. Loures4. Gunter Jakobs (1985). Feindstrafrecht.5. Art. 27º, nº1, da C.R.P.; art. 1º, nº 1, da Lei de Segurança Interna, aprovada pela Lei nº 53/2008, de 29 deAgosto.

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Em parte alguma existe paz pública eterna, nem sociedade sem crime.Nunca há Estado sem polícia: «a existência da polícia é um facto universal, inevitável e aceite comotal em todas as sociedades»7.Forçosamente, as informações guiam a acção policial. A informação policial favorece a previ-são da ilicitude e permite reforçar o cumprimento dos comandos legais.E sem informação precisa, não existe prevenção eficaz do delito nem tranquilidade pública.Assim, parecem passíveis de inserção nesse espaço as técnicas especiais de investigação crimi-nal, com matriz na intelligence, geralmente assumidas como factor de segurança.

A premência e concretização das ameaças, bem como a constatação da insuficiência, ou até fa-lência, dos métodos tradicionais de investigação criminal potenciaram os esforços dos Estadosno sentido de conceberem instrumentos adequados ao combate de formas graves de crimina-lidade e de terrorismo.A necessidade de resposta adequada, eficiente e eficaz, esteve na origem das ora denominadastécnicas especiais de recolha de informação para fins de investigação criminal na tríplice di-mensão: táctica, operacional e estratégica.Perante tal contexto, a persistente mobilização de organizações internacionais possibilitou a ela-boração e aprovação, desde o final do século transacto, de diversas recomendações e instru-mentos de Direito Internacional para promoção do combate eficaz à criminalidadeorganizada8. Desde logo, pelas inovações introduzidas no ano 2000, assume particular destaque a Con-venção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Transnacional Organizada, também co-nhecida por Convenção de Palermo, à qual Portugal aderiu9. O texto da Convenção exorta osEstados-Partes a adoptarem medidas para intensificar a cooperação através da implementaçãoe aplicação de medidas de diferente índole, contemplando expressamente no seu texto a apli-cação das denominadas técnicas especiais de investigação criminal10.

António Sintra

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6. João XXII, Encíclica Pacem in Terris, de 14 de Abril de 1963, Instrução 54, apud António dos Reis Rodrigues, op.cit., p.113.7. Vendelin Hreblay (1997), La Police Judiciaire, Presses Universitaires. Paris – França.8. Organização das Nações Unidas, União Europeia, Conselho da Europa, Recomendação da Reunião dos Ministrosda Justiça e Assuntos Internos do G8, em Maio de 2004, e Recomendação Rec (2005) 10, do Comité de Ministrosdo Conselho da Europa, em Abril de 2005.9. Aprovação pela Resolução nº 32/2004 da Assembleia da República e ratificação pelo Decreto do Presidente da Re-pública nº 19/2004, de 2 de Abril.10. Art.s 20º e 26º.

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O conceito de técnicas especiais de investigação criminal, engloba a actividade policial dissi-mulada, de natureza confidencial, ou até secreta, que é desenvolvida com a finalidade de obterfluxos de informação tratada (intelligence11) respeitante a actividades de pessoas suspeitas e/oude recolher material probatório resultante da sua participação em práticas delituosas, a nívelindividual e/ou no seio de grupos criminosos organizados, com destaque para as condutas queintegram as definições legais de terrorismo, criminalidade violenta, especialmente violenta ealtamente organizada12, mediante recurso a adequados meios humanos e/ou técnicos13.Consideram-se técnicas especiais de investigação criminal, nomeadamente: as acções enco-bertas, a gestão e o controlo de colaboradores, a protecção de testemunhas, as entregas con-troladas, o seguimento e a vigilância electrónica, incluindo a intercepção de comunicações.Essencialmente, tais técnicas são aplicadas como instrumento de suporte em acções de inves-tigação policial de índole pró-activa, dirigidas à criminalidade organizada grupal, por normacaracterizada pela repetição de crimes, sem prejuízo do seu uso noutras acções de investigaçãoreactiva ou cujos alvos sejam autores isolados. Inevitavelmente, a informação privilegiada que resulta da aplicação das técnicas especiais deinvestigação criminal favorece a previsão da ilicitude, determina a emanação de provas con-cludentes e permite reforçar a observância dos comandos legais.De facto, desde tempos ancestrais até à idade hodierna, tem sido comummente aceite que ainformação radicada no conhecimento de vulnerabilidades e fragilidades do adversário cons-titui pressuposto de qualquer tipo de estratégia, incluindo as que são aplicadas à investigaçãocriminal. Nesse sentido, um dos maiores estratego da história da humanidade, o general chi-nês Sun Tzu (500 a.C.)14, ensinou: «Conhece o teu inimigo e conhece-te a ti próprio; numa cen-tena de batalhas nunca estarás em perigo».Na mesma esteira, Luís Vaz de Camões15, autor da grande epopeia portuguesa, dispôs: «Adi-vinhar perigos e evitallos». Também no nosso país, a representação da produção de informação como actividade prévia einstrumental da perseguição penal não constitui inovação recente. De facto, nos primórdiosdo século XVII, já o Livro I das Ordenações Filipinas atribuía aos quadrilheiros, oficiais de in-formações ao serviço do Rei, a missão de detectarem crimes para os comunicarem às justi-ças16.

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11. Terminologia oriunda do espaço anglo-saxónico, actualmente de aplicação universal.12. Cfr. art. 1º, nº 1, alíneas i), j), l) e m) do Código de Processo Penal.13. HUMINT, SIGINT, COMINT, ELINT, MASINT, IMINT, FISINT, OSINT, etc.14. Tzu, Sun (1974). A Arte da Guerra. Tradução de Pedro Cardoso, Editora Futura. Lisboa.15. Camões, Luis V. (1981). Lusíadas, Canto VIII, 89, 6.ª Edição, I Volume, Círculo de Leitores. Lisboa.16. Ordenações Filipinas (1870). Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro – Brasil.

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O bem sedimentado e largamente aplicado conceito anglo-saxónico intelligence-led policingalicerça-se na pesquisa de notícias em busca de resposta assertiva para resolução de uma ocor-rência policial, em função do conhecimento de dados, padrões e tendências criminais.Em síntese, as técnicas especiais destinam-se a apoiar as unidades de investigação na pesquisa,detecção e recolha de dados, notícias ou provas, não acessíveis de outro modo, que permitamcaracterizar e antecipar cenários delituosos e elaborar planos de actuação fiáveis e consistentesque conduzam a subsequentes intervenções policiais com resultados de excelência.

Tratando-se de um tipo específico de actividade de polícia, mais intrusivo que os tradicionais,é susceptível de contender amiudadamente com os limites do direito à privacidade ou outrosdireitos fundamentais dos visados suspeitos.Dessa forma, o uso de técnicas especiais de recolha de informação pelos funcionários de po-lícia torna imperativo que quaisquer condutas por parte dos mesmos estejam estritamenteconfinadas aos princípios do primado do direito e da legitimidade democrática com estrita ob-servância das leis e normas morais, éticas e deontológicas.Assume pois particular relevância por parte dos seus aplicadores, funcionários de polícia, oprofundo conhecimento de comandos e conteúdos de direito internacional, tratados, acor-dos, convenções, doutrina e jurisprudência, de cariz externo e interno, em matéria de direitoshumanos17. Do mesmo modo, no que concerne aos direitos, liberdades e garantias pessoais, aos princípiosfundamentais da administração pública e às disposições sobre polícia com consagração na leiconstitucional18. Assim, emergem desde logo dos princípios constitucionais: a) a comprovada exigência de in-tervenção policial e a necessidade dessa actuação restringir os direitos dos cidadãos; b) a ade-quação entre a acção policial e o valor constitucional a salvaguardar; c) a proporcionalidadeentre o direito que é sacrificado e o benefício que se pretende alcançar.Relevam ainda, particularmente, os normativos insertos na lei processual penal acerca da le-galidade da prova e dos métodos proibidos de prova19. Efectivamente, são nulas quaisquerprovas obtidas mediante ofensa à integridade física ou moral das pessoas (direitos indisponí-veis) e ainda as que são obtidas através de intromissão na vida privada, no domicílio, na cor-respondência ou nas telecomunicações (direitos disponíveis).

António Sintra

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17. Declaração Universal dos Direitos do Homem; Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Código de Con-duta da Nações Unidas; Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.18. Art.s 24º, 27º, 29º, 32º, 34º, 266º e 272º Constituição da República Portuguesa.19. Art.s 125º e 126º do Código de Processo Penal.

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Por outro lado, são primordiais os sistemas de controlo, interno e externo, formal e informal.Entende-se que o nível de controlo aumenta com a implementação de sistema curial de au-torização prévia, antecedendo a efectiva aplicação da técnica especial. As diferentes instânciase modalidades de controlo devem ser complementares, dependendo do grau de intrusão queo uso da técnica implica na esfera privada do visado suspeito. No caso concreto de actuações encobertas, entregas controladas, intercepção de comunica-ções e registo de voz e de imagem, para além de outras, é exigida autorização prévia e duplocontrolo, antes, durante e após as operações, tudo abrangido, naturalmente, pela intervençãodas autoridades policiais e judiciárias no exercício das suas proficiências específicas.

As referidas técnicas especiais têm aplicação em sede de exercício da competência geral e es-pecífica dos órgãos de polícia criminal, mormente da Polícia Judiciária (PJ), em matéria de pre-venção, detecção e investigação criminal, bem como de coadjuvação das autoridadesjudiciárias20. A montante da actividade de investigação criminal tout court, importa contudo salientar as atri-buições específicas que determinam a relevante colaboração do Serviço de Informações de Se-gurança (SIS) e do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) no processo deprodução de informação criminal.De acordo com o General Pedro Cardoso, ideólogo da comunidade de informações em Por-tugal: «…quanto mais livre é uma sociedade mais necessita de estruturas que a protejam. Uma des-sas estruturas é, sem dúvida, um eficiente serviço de informações»21

Rui Pereira expende que «…para utilizar uma imagem eloquente, dir-se-à que a actividade dosserviços de informações está para a investigação criminal tal como os crimes de perigo estão para oscrimes de dano»22. Na verdade, em substância, a actividade dos serviços de informações constitui uma antecipa-ção da tutela do Estado de Direito democrático relativamente à investigação criminal.Tal antecipação é claramente guiada pelo conhecido aforismo popular segundo o qual «maisvale prevenir que remediar».

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20. Art.s 1º, nº 1, alínea c), 9º, nº 2, 55º, 56º, 249º, 250º, 263º e 288º do Código de Processo Penal; art.s 2º e 3ºda Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto (Lei de Organização da Investigação Criminal; art.s 2º, 3º, 4º e 5º da Lei n.º37/2008, de 6 de Agosto (Lei Orgânica da Polícia Judiciária).21. CARDOSO, Pedro (1980). As Informações em Portugal, Revista Nação e Defesa, nº 76/80, Instituto de DefesaNacional. Lisboa.22. PEREIRA, Rui (1995), O Dolo de Perigo. Lex, Lisboa.

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Campo de aplicação das técnicas especiais nos espaços da prevenção e inves-tigação criminal

Fonte: António Sintra

Relativamente às medidas de polícia, a Constituição da República Portuguesa apenas exigeque venham previstas na lei (princípio da legalidade) e que não devem ser utilizadas para alémdo estritamente necessário23.A prevenção criminal destina-se: «…a impedir o aparecimento de condutas delituosas ou a suacontinuação, reduzir os factores sócio-económicos gerais e as circunstâncias criminógenas e obviara que as potenciais vítimas se coloquem em situações, ou assumam condutas negligentes, geradorasde delitos. (…) As funções de recolha e tratamento de informações, vigilância e fiscalização a levara cabo pelas entidades competentes nessa área, porque preventivas e dissuasoras, estão dirigidas paraa generalidade das pessoas e dos locais sobre os quais incidem ou são de matriz específica desmoti-vadora mas não se orientam para uma actividade investigatória de crimes praticados».Quanto à investigação criminal: «…qualquer das acções a desenvolver pela P.J. que interfira, nosentido de comprimir e/ou devassar, com direitos liberdades e garantias dos cidadãos não pode terlugar fora de um processo criminal devidamente formalizado»24.Em resumo, «…a prevenção distingue-se da intervenção penal porque a primeira é eminentementepró-activa, enquanto que a segunda é de natureza restritiva». Contudo, «…nem sempre ser fáciltraçar a linha de separação entre prevenção e repressão pois, em múltiplas situações, a actividadede polícia torna difícil a separação da acção preventiva da acção repressiva devido ao continuumque se estabelece entre ambas e à dupla natureza das medidas»25.Por outro lado, perante a definição de objectivos, prioridades e orientações da Lei de PolíticaCriminal para o biénio 2009/2011, prevê-se que a informação criminal obtida através de téc-nicas especiais se revele instrumento de inequívoca utilidade em acções policiais para preven-ção e redução da criminalidade violenta, grave ou organizada e investigação de crimes

António Sintra

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23. Art. 272º, nº 2 da C.R.P.24. Acórdão n. 465/93 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República n. 212/93, de 9 de Setembro.25. FERREIRA, Luís Fiães (2006). A Prevenção da Criminalidade. II Colóquio de Segurança Interna, I.S.C.P.S.I.,Coimbra, Almedina, p. 74.

INVESTIGAÇÃOCRIMINAL

PREVENÇÃOCRIMINAL

VIGILÂNCIAE

SEGUIMENTOSREGISTO

DEVOZ E IMAGEM

INTERCEPÇÃODE

COMUNICAÇÕES

ENTREGAS

CONTROLADAS

GESTÃO

COLABORADORESPROTECÇÃO

TESTEMUNHAS

ACTUAÇÕES

ENCOBERTAS

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prioritários, designadamente de terrorismo, tráficos de estupefacientes e de armas, imigraçãoilegal, etc26. Na PJ, corpo superior de polícia criminal, a competência para a aplicação das técnicas espe-ciais de recolha de informação criminal está atribuída à Unidade de Prevenção e Apoio Tec-nológico (UPAT)27.A U.P.A.T. intervém quando solicitada por outras unidades orgânicas de investigação crimi-nal, em acções destinadas à pesquisa e obtenção de informação para prevenção, detecção e re-colha de provas de práticas delituosas.Essa Unidade executa actuações encobertas, entregas controladas e vigilância de actividades,pessoas e locais suspeitos da preparação ou prática de actos ilícitos, mormente os associados àcriminalidade organizada, grave ou violenta.Em tais contextos, pode ainda dar seguimento a outras acções tendentes a detectar, identifi-car, colher, analisar e interpretar elementos diversos associados aos meios, fenómenos e ten-dências criminais, mediante adequados instrumentos de recolha de informação criminalprivilegiada.

Considerando que a lei processual penal é aplicável em todo o território português e, bemassim, em território estrangeiro nos limites definidos por tratados, convenções, acordos bila-terais e multilaterais, e ainda regras do direito internacional, revela-se como praticamente uni-versal o espaço físico disponível para a aplicação das técnicas especiais de investigação eintrínseca recolha de informação e provas de natureza criminal, sendo tal campo potencial-mente extensível aos territórios de elevado número de Estados, bem como às jurisdições pre-valecentes em espaço aéreo e alto-mar28.Em sede de cooperação internacional, vigora a protecção dos interesses da soberania, da se-gurança, da ordem pública e de outros constitucionalmente definidos, bem como os princí-pios da reciprocidade e da confiança mútua entre Estados. Para além dos já mencionados, outros instrumentos de cooperação, de natureza convencional,assumem particular relevância na matéria29.

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26. Lei nº 38/2009, de 20 de Julho, em cumprimento da Lei nº 17/2006, de 23 de Maio (lei Quadro da Política Cri-minal).27. Art.s 1º e 27º da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto (Lei Orgânica da P.J.).28. Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas; Convençãode Viena, de 1988; Convenção sobre Tráfico Ilícito por Mar (Montego Bay) de 1982; Convenção de Palermo; art. 6ºdo Código de Processo Penal; Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, alterada pela Lei nº 104/2001, de 31 de Agosto e pelaLei nº 48/2003, de 22 de Agosto (Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal).

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No ordenamento jurídico interno, a Lei da Cooperação Judiciária Internacional em MatériaPenal contém medidas resultantes dos compromissos assumidos que representam importantesalto qualitativo em termos de cooperação transfronteiriça, concretizadas, entre outras, na posi-bilidade de: execução de entregas controladas ou vigiadas30 , de acções encobertas31 e de inter-cepção de telecomunicações32. Está também prevista a possibilidade de criação de equipas deinvestigação criminal conjuntas33. Por seu turno, a Convenção de Aplicação do Acordo Schengen34 contempla medidas de coo-peração policial internacional, mormente a possibilidade de execução de vigilâncias e segui-mentos ou perseguições transfronteiriças (hot-pursuit)35.De referir que, embora residualmente, na ausência de acordos bilaterais ou multilaterais, aexecução de investigações/acções policiais conjuntas de cariz internacional pode ser autori-zada de modo casuístico.Recentemente, entrou em vigor o acordo entre sete Estados-Membros da União Europeia, in-cluindo Portugal, que criou o Maritime Analysis and Operations Centre – Narcotics (MAOC-N) para partilha de informação e gestão conjunta de meios aéreos e navais a empregar nocombate ao tráfico ilícito de estupefacientes, por via marítima e aérea, da América do Sul paraa Europa, através do Oceano Atlântico e Costa Ocidental de África. Pela sua natureza, trata-se de área de intervenção que convoca frequentemente diferentes valências das técnicas espe-ciais de recolha de informação criminal.

As técnicas especiais de investigação são usadas na obtenção dissimulada de intelligence ou narecolha de provas em meios fechados com sustentação em fontes de informação tecnológica (devigilância e detecção, de intercepção de sinais e de comunicações) e em fontes humanas de in-formação.

António Sintra

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29. Convenção Europol, em 1995, a Convenção Internacional para Repressão de Atentados Terroristas à Bomba, em1998, a Convenção para Eliminação do Financiamento do Terrorismo, em 1999, a Convenção Penal sobre a Corrup-ção, também em 1999, e a Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados da UniãoEuropeia, em 2000 (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 63/2001, de 21 de Julho,e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 53/2001, de 16 de Outubro).30. Art. 160º-A.31. Art. 160º-B.32. Art. 160º-C.33. Art. 145º-A e B.34. Portugal aderiu por protocolo ao Acordo de Schengen e por acordo à Convenção, aprovado por Resolução da As-sembleia da República nº 35/93, de 25 de Novembro, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 55/93 35. Art.s 39º, 40º e 41º da Convenção Schengen.

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Em termos organizativos, no nosso país e nas congéneres estrangeiras de referência, as compe-tentes unidades orgânicas funcionam com base em princípios de especialização e de racionaliza-ção de meios, dividindo-se as subunidades com base em critérios decorrentes da predominânciados meios humanos ou tecnológicos, salvaguardada a respectiva interoperabilidade.De acordo com a melhor doutrina internacional, característica comum e de primordial im-portância em ambas as vertentes é a imperiosa necessidade de análise e de gestão de risco, cal-culando a sua probabilidade, determinando o respectivo impacto e agindo para o mitigar,através de meticulosa elaboração do planeamento operacional e dos correspondentes planos decontingência que são imprescindíveis para a boa e segura aplicação das técnicas especiais de in-vestigação criminal.As dinâmicas geradas pelo uso dessas técnicas, com incidência em grupos-alvo suspeitos, sãocomplementadas através de curiais métodos de análise e adequada difusão de informação, comestrita observância do princípio da necessidade de conhecer, para concretização de subse-quentes operações policiais (detenções, apreensões, etc.), actividade que culmina com a apre-sentação dos resultados às autoridades judiciárias.

Estratégia integrada de gestão de informações e operações

Fonte: António Sintra

Aqui se inserem as vigilâncias e seguimentos de pessoas, bem como de veículos, embarcações,aeronaves, mercadorias e outros, as observações em locais públicos suspeitos, o registo de voze de imagem, a intercepção de comunicações telefónicas, correio electrónico ou transmissãode dados por via telemática, etc., tudo com recurso a uma vasta panóplia de equipamentos elec-trónicos adequados.

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No plano legal, tais acções são desenvolvidas a coberto de normas constitucionalmente con-sagradas em sede de direito penal adjectivo, direito civil e legislação avulsa, designadamente:o valor probatório das reproduções mecânicas36, extensão da intercepção de comunicações37,medidas cautelares e de polícia38, bem como outras medidas de polícia e medidas especiais depolícia39, registo de voz e de imagem, videovigilância40, direito à imagem41 e competênciaspara a prevenção, detecção e investigação de actividades criminais42. De referir também as disposições da lei penal substantiva no que concerne aos crimes contraa reserva da vida privada43, gravações e fotografias ilícitas44, bem como instrumentos de escutatelefónica45.

Naturalmente, a ancestral importância das fontes confidenciais de informação humana é pre-ponderante para o sucesso das técnicas especiais de investigação criminal.Na definição da Europol46, «informador é um indivíduo tratado com confidencialidade e quepassa informações e/ou presta auxílio às autoridades competentes».Manuel Costa Andrade47 explica que «…homens de confiança são todas as testemunhas que co-laboram com as instâncias formais de perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa deconfidencialidade da sua identidade e actividade, particulares e agentes das instâncias formais, no-meadamente da polícia, que se introduzem naquele submundo». Em função da intensidade e profundidade da sua intervenção, é usual agrupar os informado-res em três categorias: de apoio, de acção e participantes.

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36. Art. 167º do Código de Processo Penal.37. Art. 189º, Op. cit.38. Art.s 249º e 250º, Op. cit.39. Art.s 28º e 29º da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto (Lei de Segurança Interna.)40. Art. 2º, nº 1, da Lei nº 1/2005, de 10 de Janeiro (Regula a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviçosde segurança em locais públicos).41. Art. 79º, nº 2, do Código Civil.42. Art.s 2º, 3º, 4º e 5º da Lei 37/2008, de 6 de Agosto (Lei Orgânica da Polícia Judiciária).43. Art.s 190º a 196º do Código Penal.44. Art. 199º, Op. cit.45. Art. 276º, Op. cit.46. http://www.europol.europa.eu/47. ANDRADE, Manuel C. (2006). Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra Editora. Coimbra.

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Níveis de risco de informadores

Fonte: António Sintra

No conceito amplo de informador cabem os colaboradores ou terceiros (na acepção do RegimeJurídico das Acções Encobertas48), testemunhas, suspeitos, arguidos e outros sujeitos ou par-ticipantes processuais, bem como quaisquer outras pessoas dotadas de conhecimento e aptasa facultar elementos úteis relacionados com a preparação ou execução de crimes.Pelo seu inquestionável mérito, importa, a nosso ver, que os funcionários de investigação cri-minal adoptem regularmente atitudes pró-activas no sentido de identificar, recrutar e explo-rar fontes confidenciais de informação humana, encorajando-as a colaborarem com a polícia.Contudo, atendendo ao melindre de que tais actuações sempre se revestem, antecedendo o de-sencadear de qualquer acção, é fulcral a avaliação do perfil, motivação, credibilidade e fiabili-dade da potencial fonte, do risco decorrente da sua intervenção e também a ponderação sobreas medidas de protecção a aplicar. Aspecto a ter também em conta na relação entre o informador e o funcionário de investigaçãocriminal incumbido, em primeira linha, da recolha de informação é a possibilidade de surgi-rem estados psicológicos, o denominado Síndroma de Estocolmo, geradores de perturbação,sem que a vítima, no caso o funcionário de investigação criminal, adquira consciência da suaexistência, determinando a prevalência de interesses pessoais, ou grupais, do informador emdetrimento dos objectivos da organização policial e, consequentemente, da prossecução dointeresse público. A garantia de aplicação das melhores práticas sobre a matéria, gestão e controlo de informa-dores, depende, inequivocamente, da existência de unidades especializadas no seio das organi-zações policiais com adequado sistema de registo, gestão e controlo centralizado de fonteshumanas de informação confidencial.

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Aumento donível de risco

Informadoresparticipantes

Informadores deacção

Informadoresde apoio

Públicoem geral

48. Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto.

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Sob impulso do Regulation of Investigatory Powers Act 200049, do Reino Unido, e também daEuropol50, está definido o formato da estrutura ideal de gestão e estabelecidas as tipologias,princípios de utilização, regras de contacto e sistema de codificação de informadores. O recurso a informadores de acção, também designados por informadores-participantes, im-plica, para além de outras medidas de controlo, que lhes seja explicitado e que aceitem, semreservas, o conteúdo do mandado que lhes for conferido tendo em vista a delimitação concretada sua actuação, a clarificação do risco e o cerceamento do erro.A despeito da inexistência de normativo legal específico para a actividade dos informadores, aPJ recorre à sua utilização no âmbito das medidas cautelares e de polícia51 e também de pre-venção e detecção criminal52.Os informadores, enquanto testemunhas no âmbito do processo criminal, podem usufruir devantagens da aplicação de normas emanadas do sistema legal de protecção, concretamente:restrição de assistência do público e exclusão da publicidade na audiência de julgamento53.Também da prestação de declarações com ocultação de imagem e/ou distorção de voz, tele-conferência, depoimento sob anonimato, medidas pontuais de segurança, programas especiaisde segurança e medidas para testemunhas especialmente vulneráveis54. Enquanto arguidos, podem também beneficiar de vantagens em juízo, nomeadamente: ate-nuação especial da pena55, atenuação especial da pena em crimes de branqueamento56 e ate-nuação ou isenção da pena em crimes de associação criminosa57. Similarmente, diversalegislação especial avulsa contém idênticos dispositivos, designadamente em matéria de tráficode estupefacientes58, organizações terroristas e terrorismo59, imigração ilegal e tráfico de pes-soas60. A mesma lei prevê a atribuição de autorização de residência para estrangeiros que co-laborem nas investigações de natureza criminal .O sistema de recompensas contempla ainda a atribuição de prémios pecuniários e/ou paga-mento de despesas, classificadas62.

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49. RIPA is an Act of the Parliament of the United Kingdom, regulating the powers of public bodies to carry out sur-veillance and investigation.50. http://www.europol.europa.eu/51. Art.s 249º e 250º do Código de Processo Penal.52. Art. 4º da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto (Lei Orgânica da Polícia Judiciária).53. Art. 87º do Código de Processo Penal.54. Art.s 2º, 4º, 5º, 16º, 20º a 22º e 26º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e Dec-Lei n.º 190/2003, de 22 de Agosto(Lei de Protecção de Testemunhas), também com consagração no art.º 24º da Convenção de Palermo.55. Art.s 72º do Código Penal.56. Art. 368º-A, Op. cit.57. Art. 299º, Op. cit.58. Art. 31º do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.59. Art.s 2º a 5º da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto.60. Art. 188º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.61. Art. 109º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.62. Art. 48º da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto (Lei Orgânica da Polícia Judiciária).

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No campo das actuações policiais encobertas propriamente ditas, a gestão e o controlo de in-formadores continua a revelar-se absolutamente necessária, até imperativa, para garantia deboa e segura execução das suas diferentes fases.A operação policial encoberta é considerada uma técnica especial que consiste na actuação defuncionário(s) de investigação criminal, ou de terceiro(s) sob controlo da PJ, que:- devidamente autorizado(s) e enquadrado(s);- dissimulando a sua qualidade e/ou identidade;- conservando a aparência de alguém que integra o meio criminal;- se insinua(m) junto de suspeitos ou autores de actividades criminosas;- com a finalidade única de coligir informações ou recolher provas;- sem contudo os determinar à prática de novas infracções.É uma técnica de exercício voluntário, de uso excepcional, dotada de garantias jurídicas e pes-soais, reconhecida internacionalmente e direccionada para o combate activo e eficaz da cri-minalidade grave e/ou organizada. Em 1992, importante decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio legitimar a ac-tuação de agentes encobertos ao considerar que «...a infiltração de um agente de polícia numa redede tráfico de estupefacientes, por meio de contactos que permitam conhecer uma conduta criminal quese produziria de maneira análoga, ou semelhante, mesmo sem a sua intervenção, não viola a esfera davida privada do suspeito, no sentido do art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem...».O Regime Jurídico das Actuações Encobertas está plasmado na Lei n.º 101/2001, de 25 deAgosto. Nele se prevê a possibilidade de intervenção de funcionários de investigação criminal,ou de terceiro, com fins de prevenção e de investigação de um amplo leque de crimes, corres-pondendo, na generalidade, aos que integram o catálogo daqueles cuja competência reser-vada, absoluta e relativa, bem como concorrencial, está atribuída à PJ63 Vigoram os princípiosda adequação, necessidade e proporcionalidade em relação àqueles fins e à gravidade do crimesob investigação. A actuação de funcionários e terceiros carece de prévia autorização de Ma-gistrado do Ministério Público ou de Juiz de Instrução. A sua protecção passa, desde logo,pela possibilidade de não junção ao processo do relato da intervenção, o qual constitui expe-diente autónomo e confidencial64. É permitida a actuação de funcionários sob identidade fic-tícia65. A isenção de responsabilidade do agente encoberto que consubstancie a prática de umainfracção em qualquer forma de comparticipação, diversa da instigação e de autoria mediata,está abrangida por uma cláusula de não punibilidade por força da exclusão da ilicitude66.Em análise crítica do diploma, não se vislumbra razão plausível para a exclusão de alguns cri-mes insertos no catálogo das competências reservadas da PJ, nomeadamente: informáticos,poluição com perigo comum, tráfico de obras de arte e falsificação de documentos, até pelarepercussão que têm no panorama internacional.

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63. Art.s 1º e 2º da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, e Lei nº 49/2008, de 27 de Agosto.

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Contudo, apesar da assinalada lacuna normativa, não será de excluir a possibilidade de exe-cução de acções encobertas relacionadas com tais matérias desde que sejam colhidos indíciosque possam configurar a existência de associação criminosa para a prática daqueles crimes. Parece pacífica a interpretação de que o legislador pretendeu atribuir o monopólio da gestãodas actuações encobertas à PJ. Assinale-se que embora o art. 188º da Lei nº 23/200767 atribua competência ao Serviço de Es-trangeiros e Fronteiras para desenvolver actuações encobertas em investigações de associaçõescriminosas relacionadas com imigração legal, remete para o Regime Jurídico das Actuações En-cobertas com todos os requisitos e imperativos daí decorrentes no que respeita à intervençãoda PJ.Os tipos de operações encobertas são todos os que se revelem legal e tecnicamente exequíveis,designadamente: compras simuladas, intervenção em meios e circuitos criminosos através daprestação de serviços, entregas controladas, papel de vítima potencial, bem como, fundamen-talmente, a recolha pontual ou sistemática de informação criminal não acessível por outrosmeios.Por norma, todos os funcionários de investigação criminal que aplicam técnicas especiais deinvestigação estão qualificados para o efeito após fase de recrutamento, selecção, formação etreino adequado com controlo psicológico especializado.Para além disso, actuam sempre com monitorização próxima, sob responsabilidade de um su-pervisor ou controlador sénior. Dispõem de adequado suporte logístico, instalações, equipa-mentos e veículos não identificáveis com a actividade policial. A PJ pode dispensar temporariamente a necessidade de revelação de identidade e da quali-dade dos seus funcionários de investigação, dos meios materiais e dos equipamentos utiliza-dos68.Por seu turno, a aplicação do princípio da corroboração independente de provas, consubs-tanciado na recolha das mesmas através de outros meios paralelos, constitui garantia acrescidade protecção para funcionários de investigação criminal e também para o(s) visados(s) sus-peito(s). A segurança, na sua tríplice vertente legal, ética/moral e física, constitui factor absolutamenteprioritário, impondo-se que os funcionários de investigação criminal incumbidos da aplica-ção de técnicas especiais de investigação criminal mantenham prudente afastamento de este-reótipos emanados de culturas televisivas, cinematográficas ou romanescas.

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64. Art. 3º, Op. cit.65. Art. 5º, Op. cit.66. Art. 6º, Op. Cit.67. Aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional.68. Art. 16º da Lei n.º 37/2008, de 6 de Agosto (Lei Orgânica da PJ).

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Os aspectos relacionados com a segurança deverão prevalecer sobre quaisquer outros, incluindoo êxito de qualquer operação que cederá perante potencial ameaça considerável.No âmbito das competências que lhes estão atribuídas, os órgãos de polícia criminal devempois estar dotados de estruturas e meios adequados e suficientes, aqui se incluindo as condi-ções materiais e as competências humanas, para corresponder a solicitações que impliquem orecurso à utilização de técnicas especiais de investigação, procurando:- identificar, aplicar e disseminar as melhores práticas policiais para dissuadir e evitar a prá-tica de crimes, bem como a descoberta e apresentação de material probatório de excelência quesustente as boas decisões das autoridades judiciárias competentes,- sem expor desnecessariamente os próprios métodos de investigação, as fontes de informaçãoe os intervenientes nas operações,- sem conflituar, para além do legalmente admissível, com os direitos, liberdades e garantiasdos cidadãos,- incutindo a necessária confiança no sistema de justiça e na população em geral.

Os esforços dos Estados no sentido de mitigar ameaças e efeitos da criminalidade organizadae do terrorismo global, reflectem-se, essencialmente, no reforço da cooperação internacionale na criação de um direito penal de primeira velocidade, mais célere, expedito e eficaz, man-tendo-se intacto o núcleo de garantias de defesa dos visados suspeitos. As técnicas especiais de investigação, com produção de notáveis fluxos de informação e deprovas criminais, brotaram dessa matriz. Paulatinamente, granjearam progressiva relevância eregistaram forte incremento. Por isso, actualmente, tornaram-se quase indissociáveis da gene-ralidade das correspondentes acções policiais de prevenção e investigação, sendo a respectivaavaliação considerada bastante satisfatória.O permanente escrutínio dessa específica actividade de polícia por parte das magistraturas,do poder político, da comunidade científica, da comunicação social, da opinião pública, dossujeitos e intervenientes processuais, bem como da cadeia hierárquica nas instituições poli-ciais, sob um quadro ético-legal bem definido, é bastante para afastar quaisquer hesitações emrelação à benignidade da aplicação das técnicas especiais de investigação criminal. Revela-se meridianamente claro e absolutamente tolerável o estado de equilíbrio entre os di-reitos fundamentais dos cidadãos e a compressão a que esses direitos estão sujeitos por moti-vos intrínsecos à aplicação da justiça e à segurança. A segurança, como valor social é solidária da ideia de liberdade e por si só nada deve justificarsendo «a superioridade ética, política e jurídica que dará aos Estados de Direito a vitória a longo--prazo69».

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Perante tal panorama, concluímos que a aplicação das técnicas especiais de investigação cri-minal, entendidas e aceites como aposta no espaço de segurança, liberdade e justiça na di-mensão interna, mas também como ampliação de manifesta tendência que extravasa fronteiras,constitui inequívoco factor de segurança para a comunidade em geral.

“A Liberdade só existe com Lei e Poder”, Emanuel Kant70

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69. PEREIRA, Rui (2007). «Segurança e Justiça em Portugal», Revista Segurança e Defesa, nº 1, Diário de Bordo.Loures.70. KANT, Emmanuel (2007), Antropologia do Ponto de Vista Pragmático, Editora Iluminuras. Brasil.

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87João Miguel Ramos Mateus

É Inspector da PJ desde 1990. Licenciado em Direito e pós–graduado em Criminologia pela Universidade Lusíada.

Este trabalho incide sobre um fenómeno que começou a manifestar-se há alguns anos e quetem vindo a ocorrer de forma significativa em todos os países da Europa Ocidental, dos quaisnão se exclui Portugal. Procura-se, numa perspectiva criminológica, explicar a razão de serpara a prática de condutas criminosas por parte de cidadãos oriundos do leste da Europa. Fa-zendo uso das competências adquiridas no exercício da actividade profissional, visa-se aindacaracterizar o modus operandi de grupos criminosos compostos por indivíduos essencialmenteprovenientes da Moldávia, da Ucrânia e da Rússia e as repercussões geradas nas vítimas. Deigual forma, são estabelecidas várias premissas que possibilitarão uma maior eficácia da acti-vidade policial na prossecução do combate a este fenómeno criminal.

O presente artigo tem como objectivo a realização de um estudo sobre um fenómeno que co-meçou há alguns anos e que tem vindo a ocorrer de forma significativa em todos os países daEuropa Ocidental, dos quais não se exclui Portugal. De facto, devido a factores de cariz eco-nómico e social, centenas de milhares de pessoas vêem-se na contingência de abandonar os paí-ses onde nasceram e possuem família, sendo que o fazem na esperança de poderem encontrarmelhores condições do que aquelas que lhes são proporcionadas nos países de origem. Desdehá algumas décadas que determinados países da Europa (França, Alemanha, Luxemburgo,Inglaterra) são confrontados com vagas de imigrantes. Alguns dos contingentes de imigrantes

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que chegaram aos países anteriormente referidos, nomeadamente em 1960 e 1970, eram com-postos por portugueses. Com a independência das ex-colónias portuguesas, o fenómeno daimigração começou a assolar Portugal, sendo que passámos de um país com forte emigração,para um país com forte imigração. Na década de oitenta e noventa, Portugal recebeu de formasistemática milhares de pessoas vindas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,São Tomé e Príncipe e numa fase posterior do Brasil. Já no final da década de noventa e nosprimeiros anos do século XXI, a problemática da imigração assume novos contornos, ou seja,com o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e queda do regime po-lítico que ali vigorava, muitas das nações que haviam sido ocupadas, recuperaram a sua inde-pendência e soberania. Com a implementação da democracia e a abertura a ocidente, as pessoasforam impelidas a pensar que iriam dispor de um melhor nível de vida. Contudo, em algunsdesses países acabou por se verificar que as condições socioeconómicas se degradaram de formasignificativa, frustrando as expectativas criadas e obrigando a procurar novas soluções que lhesalimentassem a esperança de poderem vir a ter uma vida melhor. Efectivamente, milhares depessoas originárias de inúmeros países situados na Europa do leste, começaram a viajar paraos diversos países que compõem a União Europeia, isto porque necessitavam de trabalho, quedificilmente encontravam nos seus países, e porque tais trabalhos eram melhor remuneradosque aqueles que exerciam na sua terra natal. Por outro lado, a vinda de indivíduos do leste daEuropa é igualmente bem vista pelos países de destino, isto porque os mesmos, com o seulabor, oferecendo uma melhor produtividade por menos custos, acabam por satisfazer as ne-cessidades de mão-de-obra e ter consequentemente um papel primordial na prossecução dosobjectivos de determinados sectores da economia. Isto apesar de nem sempre se criarem ascondições e as infra-estruturas indispensáveis para viabilizar uma rápida integração dessas mes-mas pessoas nas sociedades dos países de destino. Esta deslocação em massa de indivíduos originários do leste Europeu, acabou por trazer paraos aludidos países da Europa Ocidental, determinados grupos de indivíduos, os quais, ao con-trário dos seus compatriotas não vêm imbuídos no objectivo de se sacrificarem por uma vidamelhor. Tais indivíduos, devidamente instruídos por cúpulas de organizações já fortemente im-plementadas nos países de origem, pautam a sua conduta por uma actuação de cariz ilícito, ten-tando, dessa forma, atingir fórmulas de sucesso, mediante o recurso a processos de carizilegítimo. Essas condutas são exercidas sobre os seus compatriotas, os quais submetidos a di-versos tipos de coacção e práticas extremamente violentas, acabam por se ver constrangidos aentregar dinheiro. As quantias extorquidas destinam-se não só aos autores das condutas cri-minosas, mas principalmente para as ditas organizações que os mesmos integram, acabandopor contribuir para o aumento do seu poder. Este é o fenómeno que tem vindo a acontecerum pouco por toda a União Europeia, incluindo Portugal. É o fenómeno que vem de leste.

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1. Figueiredo Dias e Costa Andrade em “ Criminologia – O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena –1984 (pp. 256) referem que a criminologia socialista obedece a um modelo de consenso puro.

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Fazendo uso da experiência e conhecimento obtidos no âmbito da actividade profissional exer-cida, tendo inclusivamente beneficiado da vantagem de ter contactado pessoalmente com al-guns dos intervenientes nesta actividade criminal, querendo referir-me a vítimas, testemunhase suspeitos, procura-se dar um retrato fidedigno deste fenómeno. Efectivamente, entre 1999e 2004, tive a oportunidade de conhecer uma nova faceta da actividade criminal organizada.Por um lado, fui confrontado com um novo tipo de mentalidade e forma de encarar a vida,por outro, com a eficácia da utilização da violência como processo de atingir objectivos e emterceiro lugar com o drama de inúmeras pessoas que vivendo num contexto sociocultural des-conhecido, passaram por situações atrozes e indescritíveis. Foi uma lição de vida. Como instrumento de auxílio do artigo aqui em foco, recorri a um conjunto de dados e no-tícias que abrangem o período de tempo decorrente entre 2001 e 2004. Através da análise detais elementos ficou claro e notório que este fenómeno criminal já vinha ocorrendo desde fi-nais de 1999, tendo atingido o seu auge em 2001. Nos anos que se seguiram, notou-se umadiminuição da actividade criminal, fruto da actuação policial. Não obstante tal, a criminali-dade desencadeada por cidadãos provenientes do leste da Europa continua a ocorrer em Por-tugal, apresentando no entanto novos contornos.

No presente capítulo vamos escalpelizar as vertentes de cariz psicológico e social que desen-cadearam este tipo de criminalidade e que caracterizam a forma como a mesma evoluiu. Desde os finais do século XIX que nos deparamos com uma doutrina criminológica, designadade socialista e que assentava no postulado que os fenómenos criminais surgiram e se desen-volveram no seio das sociedades capitalistas. Entendia-se que o capitalismo motivava de formadesmesurada a cobiça, a ambição, a procura exacerbada do lucro e o egoísmo, o que era en-carado como factor explicativo de um determinado tipo de criminalidade. Perante tal deside-rato, apontava-se o socialismo como solução para estabilizar a economia e atenuar asdiscrepâncias na distribuição da riqueza, havendo a convicção que tais medidas iriam desen-cadear uma redução sistemática do crime, até à sua erradicação. De acordo com esta teoria, asociedade vigente nos regimes socialistas seria mais justa, mais homogénea e necessariamentemais pacifica, onde a criminalidade estaria fortemente condicionada e em função disso maisfacilmente controlável. Na prática, apesar dos regimes socialistas se caracterizarem por ummodelo económico de distribuição colectiva da riqueza e por uma absoluta identificação dosindivíduos com a sociedade onde estão inseridos,1 sempre se verificou a ocorrência de condutas

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2. Figueiredo Dias e Costa Andrade em “ Criminologia – O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena “ –1984 (pp. 323 e 324) referem que Robert Merton analisava a sociedade numa dupla estrutura, a cultural e a social.A primeira oferecia a todos os mesmos objectivos e as mesmas normas, a segunda confere uma base de oportunida-des reais para alcançar os imperativos culturais com base nas normas legitimamente estabelecidas. Quando não existeuma absoluta correspondência entre as duas estruturas, corre-se o risco de haver um alheamento das pessoas em re-lação ao sistema normativo.

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criminosas, o que faz pressupor que o espectro do modelo económico do capitalismo nunca foicompletamente esquecido pela população. Tudo isto, associado ao facto do desenvolvimentoeconómico não haver atingido níveis que proporcionassem a satisfação integral das necessidadessociais, levou a que cada vez mais pessoas começassem a interagir com as características do capi-talismo. Com o desmembramento da União Soviética e a consequente democratização dos regimes po-líticos implantados nos novos países entretanto surgidos, criaram-se condições para satisfazer osanseios das populações, que consistiam na abertura ao ocidente e instauração do modelo da eco-nomia de mercado. Desencadeou-se, dessa forma, uma significativa alteração social, nomeada-mente ao nível dos objectivos culturais propostos aos membros da sociedade, que fizeramdespertar grandes expectativas nas pessoas. De uma forma geral, as populações desses novos paí-ses, presumiram que o nível de vida fosse melhorar e que fosse possível estabelecer determina-dos objectivos que no período de vigência do regime comunista não era possível preconizar.Efectivamente, com a implantação da economia de mercado, as pessoas começaram a ser con-frontadas com determinados bens, os quais eram trazidos pelas grandes “ multinacionais “ domundo ocidental e que motivavam as pessoas a consumi-los. Acontece que com o decurso dotempo veio a ser constatado que o poder de compra da população veio a decair, o que impossi-bilitou que as mesmas tivessem acesso aos bens de consumo anteriormente referidos. Tal veio adefraudar as expectativas criadas na população, ou seja, os meios legítimos determinados pela so-ciedade não se mostraram adequados para que todas as pessoas pudessem prosseguir, em condi-ções de igualdade, os aludidos objectivos culturais. No fundo, estamos perante um desfasamentona repartição das oportunidades legítimas reais, que levou a que as pessoas tivessem que optarentre a perda de respeito pelas normas institucionalizadas e procurarem outros meios para atin-gir os objectivos culturais, ou então, em continuar a respeitar essas mesmas normas institucio-nalizadas, e não conseguir prosseguir os objectivos que lhes foram incutidos.2

É então caso para perguntar: O que é que leva as pessoas a assumir posturas diferentes quandoconfrontadas com situações de desequilíbrio social? Porque é que determinado grupo de pes-soas se conformam com tal cenário, enquanto outras adoptam uma conduta inovadora, re-correndo a meios ilegítimos para satisfazer os objectivos culturais. Fazendo uma retrospectivapor várias das teorias que foram surgindo ao longo do tempo encontramos várias formas di-ferentes de encarar a questão. Houve quem dissesse que a diferença entre os que se conformam(cidadão normal) e os que recorrem a formas alternativas (criminoso), resulta de vicissitudes

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3. Teorias Psicodinâmicas.4. Teorias Psicossociológicas – “ Containment Theory “ e Teoria do Vínculo Social.5. Teoria da Associação Diferencial e Teoria da Anomia.6. Figueiredo Dias e Costa Andrade em “ Criminologia – O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena “ –1984 (pp. 333 e 334) referem que o termo “Alienação” é utilizado por Cloward e Ohlin para explicar tal processo, oqual uma vez consumado, viabiliza a entrada nas soluções subculturais sem qualquer tipo de culpa ou medo.

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próprias da formação a que estiveram sujeitos e da forma como decorreu o processo de apren-dizagem e socialização.3 Outros sustentam que a distinção está na natureza e na força dos vín-culos que ligam o indivíduo à sociedade e no controlo externo e interno, que levam aquele asuperar os impulsos naturais e a actuar em conformidade com a lei.4 Finalmente há quem digaque tudo depende do processo interactivo que essas pessoas mantenham com outros grupos edas oportunidades legítimas e ilegítimas que surjam.5 O que acontece no fenómeno que é ob-jecto de análise na presente exposição, abarca um pouco de tudo o que foi dito. As pessoas queviviam nos países do leste da Europa, foram despertadas para uma nova realidade, geraram-se expectativas na satisfação de certo tipo de objectivos, nomeadamente de índole material, osquais acabaram por não ser viabilizados. Por um lado, temos aquele conjunto de pessoas queaceitam a situação, não assumindo soluções desviantes, preferindo continuar a viver em con-dições socioeconómicas bastante degradadas. Depois, temos aqueles que se identificam comos objectivos culturais preconizados pelos novos regimes democráticos, mas que, pelo facto dehaverem assimilado melhor o sistema normativo, por terem um melhor auto-controlo, umamaior resistência à frustração, se recusam a recorrer a meios ilegítimos. Estes são os que deci-dem emigrar para prosseguir os aludidos objectivos culturais num contexto social que ofereçauma estrutura de reais oportunidades legítimas. Por fim, somos confrontados com um ter-ceiro grupo, que ambicionando de forma desmesurada os objectivos culturais, mas não se con-formando com a falta de eficácia dos meios fornecidos no acesso às oportunidades legítimas,recorrem a um sistema normativo paralelo que os conduz para condutas de cariz criminoso.6

É caso para dizer que quanto maior for a divergência entre os valores sociais que estão inti-mamente ligados ao sucesso, como por exemplo, o vestir roupa de marca, o automóvel que seconduz ou a casa que se habita, e a existência de condições que viabilizem a sua aquisição porprocessos convencionais, maiores probabilidades existirão de o crime surgir como um modoorganizado de vida. É na interacção que este tipo de pessoas mantêm com as estruturas cri-minais e igualmente através das oportunidades que estas lhes oferecem para atingir os ditos ob-jectivos culturais, que decorre o processo de integração nas subculturas delinquentes. A decisãode assumir condutas desviantes não assenta unicamente em factores de cariz individual, ine-rentes à personalidade do indivíduo, mas igualmente num processo de cariz social, caracteri-zado pela influência que os actos e as palavras dos membros de um determinado grupocriminoso exercem sobre a pessoa em questão. Cumpre sublinhar que o facto de uma pessoase identificar com uma subcultura, não significa que haja um corte absoluto com os objectivos

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7. Figueiredo Dias e Costa Andrade em “ Criminologia – O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena “ –1984 (pp. 290) referem que em termos sociológicos, cultura é o conjunto de critérios de valor susceptíveis de orien-tar eficazmente a acção social.8. Inquéritos de auto-denúncia e Inquéritos de vitimização.

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incutidos pela cultura dominante,7 ou seja, a subcultura pressupõe uma certa continuidadecom aquela. O que se passa é que as pessoas não podendo satisfazer os seus anseios no planodas oportunidades legítimas, recorrem e aproveitam as oportunidades que lhes são oferecidaspelas estruturas criminosas para satisfazer os seus anseios. É desta forma que se explica que muitos jovens, normalmente com carreiras de sucesso, comopor exemplo na área do desporto, vendo que o sistema socioeconómico vigente nos paísesonde viviam não lhes permitia alcançar os aludidos valores de sucesso, decidem recorrer às or-ganizações criminosas que lhes ofereciam as alternativas, acima designadas por oportunidadesilegítimas. Tais organizações criminosas são verdadeiras estruturas, tendo uma influência sig-nificativa na economia desses mesmos países e que através da prática reiterada e com elevadograu de concertação, de condutas ilícitas diversas, acabam por configurar uma autêntica sub-cultura criminal. Quando se fala em subcultura criminal, subentende-se uma relação directa com a criminali-dade organizada. Constitui uma verdadeira escola do crime, onde se transmitem os conheci-mentos, a disciplina, as técnicas específicas de actuação, para de uma forma racional se atingiro objectivo primordial – A obtenção do lucro económico. É caso para dizer que tanto as or-ganizações criminosas, como as pessoas em quem elas investem, retiram dividendos do com-promisso a que ambas ficam adstritas, isto porque, com o recrutamento de novos elementos,as organizações conseguem não só manter uma dinâmica de actuação como igualmente ex-pandir a sua esfera de influência para novas áreas e novos mercados. Já no que respeita às pes-soas que são recebidas no seio das organizações, acabam por ver realizado o sonho de aprenderuma carreira, a qual, além de lhes proporcionar prestígio e sucesso, viabiliza a integração nomundo convencional. Uma das técnicas específicas que caracteriza a actuação das subculturas criminais e que as dis-tingue das restantes subculturas, tem a ver com o cariz estratégico inerente à utilização da vio-lência. No crime organizado tudo é feito com base no pressuposto de que sejam eliminadostodo o tipo de obstáculos que possam interferir na prossecução dos objectivos preconizados.Dessa forma, através do recurso à violência procura-se garantir a eliminação de resistências eao mesmo tempo criar nas vítimas um sentimento de forte intimidação que as leve a renun-ciar ao direito de recorrer ao auxílio das autoridades policiais.Até à presente data não existem elementos de cariz técnico,8 que permitam obter uma ideiamais real da forma como o problema criminal aqui em foco, se tem desenvolvido em Portu-gal. Contudo, através do contacto mantido com a questão, e recorrendo a um juízo de cariz

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9. As vítimas afiguram-se como a mais decisiva instância informal de selecção, bem como, os principais responsáveispela inserção de casos no sistema formal de controlo.10. Casos houve em que os membros das organizações criminosas, na presença de diversas vítimas, chegaram a matarpessoas que tinham recusado satisfazer os respectivos intentos.

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intuitivo, facilmente se depreende que uma quantidade significativa de condutas que seriamsubsumíveis a diversos tipos previstos na lei jurídico-penal, não chegam ao conhecimento dasinstâncias formais de controlo. Efectivamente, nem mesmo a Polícia, como instância formalde controlo que se encontra num plano mais acessível às vítimas de crimes, conhece muitasdas situações ocorridas. Em função disto, terá que se estabelecer um forte e convicto juízo depresunção quanto à existência de cifras negras assinaláveis, ou seja, existirão largas margens decriminalidade oculta. O raciocínio que acabou de ser enunciado leva a centrar a nossa atenção em relação à figurada vítima e ao problema que decorre da sua reacção às condutas criminosas de que é objecto.9

As cifras negras que assolam este tipo de fenómeno criminal devem-se ao facto das vítimas mos-trarem relutância em participar as situações às autoridades policiais. Interessa então apurarquais as razões que justificam tal comportamento. Em primeiro lugar, terá que se destacar o facto das pessoas que decidem emigrar para paísescom um cariz sociocultural diverso do que está implementado nos respectivos países de ori-gem, fiquem dependentes das pessoas com quem contactam no decurso do processo. O queacontece é que na esmagadora maioria das vezes, as pessoas com quem os emigrantes se rela-cionam, são membros integrantes das organizações criminosas e que desencadeiam as medi-das tendentes a explorar essa mesma dependência, querendo fazer-se referência às exorbitantessomas que são pedidas para viabilizar a entrada no nosso país. Confrontados com tais postu-ras, os emigrantes não as configuram como de cariz ilícito e consequentemente não se sentemcomo vítimas. Em segundo lugar, porque muitas vezes as pessoas que se encontram na con-dição de imigrantes, não têm a sua situação devidamente regularizada, decidem não recorreràs autoridades policiais, isto no pressuposto que poderão ser tomadas medidas que conduzamà expulsão do país. A não colaboração com as autoridades policiais dever-se-á igualmente a umafalta de confiança nas instâncias formais de controlo. Tal desconfiança está relacionada com arepresentação que as pessoas fazem das instâncias formais de controlo dos respectivos países,e na presunção de que no nosso país a situação ocorre de forma homóloga. Por fim, terá quese dizer que a principal razão que inviabiliza que a vítima de condutas criminosas recorra àsautoridades policiais, está intimamente relacionada com o medo de retaliações que os crimi-nosos possam adoptar, não só em relação a eles próprios, mas também no que concerne aosrespectivos familiares que se encontram nos países de origem. Tudo isto é fruto da violênciaque as organizações imprimem na execução dos crimes cometidos e que incutem um clima deterror nas vítimas.10

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Associado ao problema da criminalidade oculta está o do criminal case mortality, também co-nhecido por “Efeito de funil”, o qual se verifica nas passagens do crime pelas várias instânciasformais de controlo e que decorre de uma actuação mais ou menos discricionária das mesmas.É óbvio que a evolução ocorrida ao longo do processo formal de reacção e controlo, implicauma diferença na quantidade de volume de casos processados pela Polícia e no volume decasos que chega aos Tribunais e que é inclusivamente alvo de condenação. Atendendo ao que foi explanado no presente capítulo, terá de ser dito que a recusa sistemá-tica das vítimas em colaborar com a Polícia, assim como, a ocorrência de cifras cinzentas aolongo do processo formal de controlo, desencadeiam a não aplicação da lei incriminatória aum considerável número de casos. É por isso que terá que se colocar a hipótese de estarmosperante uma descriminalização de facto.

Ao longo de várias décadas, o regime comunista impôs a criação de um vasto império territo-rial, desrespeitando a independência e soberania de diversas nações. Tal império assentava numregime fortemente centralizado, cujo modelo económico veio a demonstrar-se incapaz de sa-tisfazer as necessidades e anseios de grande parte da sua população. Já na década de oitenta,surgiram sinais de insatisfação e de vontade em alterar o modelo sócio-económico vigente.Dessa forma, no decurso do ano de 1991, na sequência da implementação de políticas deabertura e democratização na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, deu-se aqueda do regime comunista e o consequente desmembramento daquele colosso. Em respeitoàs diversas nações que integravam a aludida União, dotadas de identidade cultural própria esatisfazendo os desejos de independência das respectivas populações, foram criados váriosnovos Estados. Com o decurso do tempo, verificou-se que grande parte dos governos queforam eleitos para gerir as políticas nestes novos países, não obtiveram os resultados esperados,originando grandes convulsões no plano económico e social. As situações de carência econó-mica já vividas no tempo em que vigorava o regime comunista, acabaram por se agravar, acar-retando que largas faixas da população, nomeadamente as pessoas que se encontravam emidade útil para poder trabalhar, se vissem obrigadas a deslocar-se para o estrangeiro. Por outrolado, convém fazer uma chamada de atenção para o facto da adesão destes novos países à eco-nomia de mercado, e ao contrário do que acontecia no anterior regime, haver desencadeadoum mercado paralelo, o qual fazendo proveito das fraquezas do Estado legítimo, acaba por con-correr com ele no controlo dos sectores mais importantes da economia. Os baixos salários au-feridos pelos trabalhadores e essencialmente pelos funcionários estatais, motiva-os para orecurso a procedimentos ilícitos, não hesitando em vender os seus serviços em contrapartida

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da realização de favores. Estamos perante a corrupção. As fraquezas do sistema, já anterior-mente aludidas, acabam por ser aproveitadas de forma extremamente eficaz por um conjuntode indivíduos, os quais, usufruindo das especificidades organizacionais e políticas dos paísesonde nasceram, congregam esforços com o sentido de atingirem vastos proventos através daprática das mais diversas actividades de cariz criminoso. De acordo com o que foi divulgadoem 1991 pelas Autoridades Russas, existiam na Federação Russa cerca de oito mil grupos cri-minosos que controlavam cerca de quarenta por cento das empresas do sector privado e ses-senta por cento das empresas que integram o sector público. Estas organizações controlavamigualmente cerca de oitenta por cento do sector bancário. Segundo a mesma fonte, desde1991, terão sido transferidos da Rússia para o ocidente, cerca de cem mil milhões de dólares,o que acaba por revelar o elevado poder destas organizações. Contrastando com o cenário an-teriormente referido, a grande maioria da população da Federação Russa viu o seu poder decompra reduzido na ordem dos quarenta e oito por cento no decurso dos últimos sete anos.Atente-se ao caso da República da Moldávia, com uma reduzida dimensão territorial, situadaentre a República da Ucrânia e a Roménia, tendo uma população de aproximadamente qua-tro milhões e meio de habitantes, com forte predominância agrícola, embora rudimentar, umaprodução industrial escassa e uma economia débil, que se repercute no facto do salário médioatingir montante equivalente a vinte e cinco euros. Perante tal quadro, é normal que as ex-pectativas das populações em obter uma vida melhor nos respectivos países acabassem por sairdefraudadas, pelo que se viam obrigadas a procurar locais onde pudessem ganhar mais di-nheiro e consequentemente melhorar o seu nível de vida, bem como, o dos seus familiares.Nesta altura, as organizações criminosas já anteriormente referidas, perspectivando novas fon-tes de receita, começaram a anunciar que nos diversos países da Europa Ocidental haveria bas-tante oferta de emprego, e que as remunerações seriam vantajosas. Tal acabou por motivar aspopulações desses novos países, as quais, se submetem a todos os sacrifícios para conseguir apassagem para o ocidente. Desde logo, há que chamar a atenção para um primeiro obstáculo que se colocava a tais indi-víduos, que era o facto de necessitarem de visto para entrarem no espaço territorial corres-pondente à União Europeia. Para contornar esta aparente adversidade, as organizaçõescriminosas implantadas nos países do leste da Europa, nomeadamente, na Federação Russa,na República da Ucrânia, na República da Moldávia e na Roménia, começaram a estruturar-se de forma a criar verdadeiras rotas de viagem, com início nos países de origem e final nos di-versos países da Europa Ocidental. Normalmente, é mediante a obtenção de visto turístico queos imigrantes conseguem aceder ao território da União Europeia. Para o conseguir recorrema agências que se denominando de turismo, acabam por ser verdadeiros entrepostos de circu-lação de candidatos à imigração para os países da Europa Ocidental. Estas agências são cria-das pelas organizações criminosas, as quais explorando o estado de necessidade dos candidatos

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à imigração, acabam por obter vastos proventos económicos. Segundo as estimativas das Na-ções Unidas, o volume de negócios das diversas redes de imigração clandestina atinge cerca devinte mil milhões de euros. De facto, e na sequência do que foi explanado no anterior parágrafo, convém realçar que osindivíduos com pretensões a deixar os respectivos países para obter mais dinheiro, são alicia-dos pelas ditas agências, isto através dos constantes anúncios de existência de emprego nos di-versos países do ocidente, com remunerações bem mais elevadas do que aquelas que sãopraticadas nos países onde vivem. Não dispondo de qualquer conhecimento em relação aotipo de documentação que é necessário para poderem exercer funções laborais nos países dedestino, os futuros imigrantes acabam por ser enganados pelas organizações criminosas, asquais lhe fornecem vistos de turismo, documentos estes que viabilizam a entrada no espaçoSchengen, mas apenas por um período de noventa dias. A obtenção de tais vistos decorre doestabelecimento de relações privilegiadas das aludidas agências com os serviços diplomáticose consulares dos países que integram a União Europeia. A emissão de vistos é um negócio demilhões para tais organizações, pelo que as mesmas acabam por investir junto das entidadesconsulares, no sentido de conseguir “facilidades” no fornecimento de tais documentos. Nãopoderá deixar de se observar que tal estratégia só acaba por resultar em virtude da política se-guida pelas entidades governamentais dos países da União Europeia, ou seja, a emissão de vis-tos prévios torna-se um instrumento útil para as organizações criminosas, promovendo-as demeros operadores turísticos a controladores dos circuitos de mão-de-obra. As organizaçõescriminosas, para obter um visto, têm que despender junto das entidades diplomáticas, cercade quinhentos euros, sendo que o mesmo documento acaba por ser cedido ao futuro imi-grante mediante o pagamento de quantias bem superiores, as quais ultrapassarão sempre os mile quinhentos euros. Além de controlar a obtenção da documentação, as organizações criminosas, através das alu-didas agências de “turismo”, asseguram aos interessados o transporte para os países de destino,sendo as rotas utilizadas estrategicamente delineadas. As principais rotas relacionadas com aimigração ilegal são escolhidas de acordo com a situação geográfica dos países de trânsito, tam-bém em função da forma como a fiscalização é feita nesses mesmos países e finalmente com afacilidade com que se consiga a legalização das pessoas que ali sejam colocadas. Ainda não foipossível compreender de forma aprofundada, todos os pormenores que conduzem à adopçãode uma determinada rota, isto porque as mesmas mudam constantemente. As mudanças ocor-rem quando as organizações descobrem que a mesma está identificada e controlada pelas au-toridades policiais. De acordo com o que foi apurado até agora são cinco as principais rotasutilizadas pelas organizações criminosas:

1 – Rota do Báltico – A partir de Moscovo, atravessando os Estados do Báltico e finalizando na Fin-lândia e Suécia, ou passando pela Polónia, República Checa, até à Áustria ou Alemanha;

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2 – Rota do Leste da Europa – A partir de Moscovo ou da Ucrânia, através da Polónia, Eslová-quia, Hungria ou República Checa, até à Áustria ou Alemanha;3 – Rota do Mediterrâneo Oriental – Com início no Médio-Oriente, Turquia, passando pela Gré-

cia, Itália, França e muitas vezes pela Inglaterra, através do túnel do Canal da Mancha;4 – Rota Norte-Africana – Essencialmente a partir de Marrocos, para França, Itália ou Espanha;5 – Rota dos Balcãs – Com início na Turquia através dos Estados Balcânicos, até à Grécia, Itália

ou Áustria;

Tais viagens são essencialmente realizadas em pequenos autocarros ou de barco. Numa primeirafase, isto no que concerne ao que vem acontecendo no nosso país, os autocarros ligados às or-ganizações criminosas transportavam as pessoas até Portugal, deixando os imigrantes em lo-cais definidos, como por exemplo, “Gare do Oriente – Parque das Nações”, Cais do Sodré,Rossio ou no Barreiro. Posteriormente, e porque tais locais foram devidamente referenciadospelas autoridades policiais, as organizações alteraram a sua estratégia e começaram a deixar osimigrantes junto à fronteira de Portugal com Espanha, acabando os mesmos por seguirempara os seus locais de destino nos transportes públicos, o que implicava uma menor exposiçãoe consequentemente, menos riscos em serem detectados. Para os imigrantes, o transporte paraos países de destino, implica o dispêndio de mais dinheiro, sendo que muitas vezes, no decursoda viagem, acabam por ser assaltados por brigadas móveis pertencentes às organizações cri-minosas, que lhes levam o pouco dinheiro que ainda possam ter, ficando completamente de-pendentes do cenário que venham a encontrar nos países de destino. Tais brigadas sãoinformadas pelos próprios motoristas dos autocarros em que os imigrantes efectuam a via-gem. Dessa forma, as mesmas colocam-se em locais previamente estipulados aguardando achegada do autocarro.Na esmagadora maioria das vezes, os imigrantes têm à sua espera alguém, igualmente ligadoàs organizações criminosas, que tem por missão colocar os imigrantes em locais de trabalho.Estes indivíduos são vulgarmente designados por “comerciantes” e estão minimamente inte-grados no mercado de trabalho, nomeadamente na área da construção civil, tendo contactocom empreiteiros e subempreiteiros. É assim que se inicia a saga dos imigrantes no nosso país.

Conforme já foi anteriormente referido, o espaço da União Europeia tem sido assolado poruma vaga de imigrantes, sendo que os mesmos são provenientes dos mais diversos locais, si-tuados não só na própria Europa, como igualmente em outros continentes.

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Sem dúvida que o problema da imigração ilegal é de facto uma ameaça para o sistema har-monizado de controlo de entradas, admissões e de direito de asilo, tal como ele foi estabele-cido no Tratado de Amesterdão. Hoje em dia, chega-se à conclusão que a União Europeia nãose preveniu devidamente para fazer face a este fluxo de imigrantes, não tendo sido colocadaem prática uma política caracterizada por medidas concertadas. Isto assim acontece, porquenenhum dos Governos dos Estados que integram a União Europeia está disposto a abdicar dopoder sobre tão fulcral questão. Em Outubro de 1999, no âmbito do Conselho de Tampere,os líderes governamentais dos Estados da União Europeia, reuniram-se para implementaremuma política comum para o asilo e a imigração. O princípio inscrito no Tratado de Amester-dão prevê edificar na União Europeia uma “zona comum de segurança, liberdade e justiça” noprazo de cinco anos. Fazendo uma análise ao que tem vindo a acontecer, constata-se que as vá-rias propostas efectivadas pela Comissão Europeia, para viabilizar os princípios preconizadosno Tratado de Amesterdão, não foram, de uma forma generalizada, acatadas pelos Estados-Membros. A acção política no que concerne à imigração verifica-se, quase em exclusivo, aonível nacional, sendo que as disposições legais adoptadas caracterizam-se por regimes mais se-veros, os quais se limitam a tentar salvaguardar a situação no domínio interno de cada Estado,sem ter em conta as consequências que dali poderão advir para os Estados vizinhos. Será quea aplicação de medidas mais restritivas à imigração conseguirá acabar com os “ilegais”? É depresumir que não. Pelo contrário, tal agravará o problema, pois as pessoas não irão desistir deprocurar novos rumos para procurarem melhores condições de vida. Esta estratégia apenasbeneficiará as organizações criminosas que se dedicam a auxiliar a imigração ilegal, isto em fun-ção da expansão do mercado. Logicamente que o fenómeno da imigração ilegal, devido às proporções já assumidas, acaboupor despertar o interesse das organizações criminosas, as quais, estando fortemente estrutura-das nos países de origem, e perspectivando grandes margens de lucro, acabam por investir nodesenvolvimento da imigração ilegal e no tráfico de seres humanos. Assim sendo, constata-se que o crime organizado na sua interacção com o auxílio à imigração ilegal, se apresentacom uma dupla dimensão. Por um lado, temos a vertente “Administrativa”, a qual assenta naprática da corrupção, da contrafacção de documentos e da violação das leis da imigração, e poroutro lado, constata-se que as organizações criminosas também se dedicam à produção de di-versas actividades criminosas, como por exemplo, o lenocínio, o tráfico de armas e de droga,a extorsão, entre outros. Enquanto que a primeira vertente se revela como um investimento,a segunda faceta destas organizações acaba por se afigurar como o efeito decorrente do inves-timento previamente realizado, sendo através dela que acabam por resultar os rendimentos. Asorganizações criminosas que estão implantadas nos vários países do leste da Europa, assentamnuma estrutura clássica de cariz piramidal. No topo da hierarquia, temos o líder máximo, oqual normalmente é uma pessoa experimentada, com idade avançada e que tem um prestígio

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muito forte junto dos restantes membros da organização. No caso da República da Moldávia,um país de reduzidas dimensões territoriais, existem quatro ou cinco pessoas que lideram ou-tras tantas organizações. Tais organizações dominam zonas geográficas bem definidas, as quaiscorrespondem a concelhos. Num grau hierárquico inferior, existe um grupo de alguns indiví-duos, os quais serão os assessores do líder máximo, tendo cada um deles, uma missão especí-fica. Alguns destes indivíduos estarão bem relacionados com as autoridades locais,nomeadamente a Polícia e as Entidades Governamentais. Cumpre sublinhar que a linha quemarca a fronteira entre as organizações criminosas propriamente ditas e as entidades policiaisé muito ténue. De facto, as organizações criminosas, através da prática da corrupção e do trá-fico de influências, estão bem implantadas nas autoridades locais. Tal relacionamento implicaque, mesmo no caso de membros da organização serem detidos e posteriormente condenados,poderão algum tempo depois serem libertados, mediante o pagamento de quantias pecuniá-rias devidamente tabeladas. Contudo, nem todos os “bandidos” usufruem de tal estatuto. Mui-tos indivíduos, principalmente os mais jovens, confrontados com tal quadro, constatando oelevado nível de vida que os elementos das organizações criminosas apresentam, acabam porse sentir aliciados a integrar tais estruturas. Mostram-se dispostos a tudo, sendo que muitasvezes acabam por cometer abusos, infringindo constantemente a lei criminal. As organizaçõescriminosas, confrontadas com o fluxo de pessoas que viajavam para o ocidente, acabam porutilizar estes indivíduos ambiciosos e dispostos a correr todos os riscos, colocando-os nos paí-ses de destino dos imigrantes, a fim dos mesmos se integrarem na sociedade local, e dessaforma abrirem o caminho, para aquelas estenderem os seus tentáculos e a sua esfera de in-fluência. No fundo, foi aplicar a estrutura implantada pelas organizações nos respectivos paí-ses, aos diversos países da Europa Ocidental. Tal estrutura assenta numa rede devidamentecompartimentada, em que cada sector se dedica a um tipo de crime específico, havendo, noentanto, que ressalvar que os vários sectores acabam por se complementar na prossecução dosobjectivos preconizados pela organização criminosa, e que visa a obtenção de proventos eco-nómicos. Existe o recurso estratégico à violência, encarada como um investimento que se irárentabilizar no futuro, mediante a diminuição de resistências por parte dos alvos da organiza-ção criminosa. Cada um dos membros da organização criminosa tem uma missão concreta,possuindo escassa informação sobre a forma como a organização actua, isto para reduzir os ris-cos ao nível da confrontação com as autoridades policiais. A imigração ilegal, através do po-tencial de receitas monetárias que acaba por desencadear, atrai o crime organizado. É dessaforma que se compreende, que surja uma multiplicidade de grupos, que se estabelecem pelosdiversos países da União Europeia. Estes mesmos grupos acabam por adoptar uma estratégiaeficaz, que consiste em gerir os fluxos de imigrantes que se formaram, ou seja, além de bene-ficiarem com todo o processo de transferência dos imigrantes dos países de origem para ospaíses de destino, acabam por os controlar nos diversos locais onde eles se estabelecem, sendo

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que mediante o recurso à ameaça e à violência acabam por impor a sua “lei”. A multiplicidadede grupos criminosos atinge tais proporções que muitas vezes os mesmos acabam por entrarem confronto directo, disputando determinadas franjas do mercado.

No que a Portugal diz respeito, foi essencialmente a partir de 1999, que começaram a afluirsignificativos contingentes de pessoas, vindas essencialmente da Ucrânia, da Moldávia e daRoménia, sendo que a esmagadora maioria desloca-se para o nosso país para trabalharem nosector da construção civil, isto em virtude de nos respectivos países de origem lhes ser dito quetal actividade é bem remunerada. Muitos desses imigrantes, só para chegarem a Portugal,vêem-se obrigados a pagar quantias exorbitantes, passando pelas mais variadas peripécias. Umavez em Portugal, possuindo apenas visto turístico, com validade para três meses, acabam porficar dependentes da honestidade do patrão a quem são apresentados. Os primeiros indivíduos provenientes do leste da Europa, apesar de auferirem salários inferioresaos normalmente praticados, demonstraram uma capacidade de trabalho bastante superior àque era habitual, sendo que tal despertou ainda mais o interesse do lobbie da construção civil,pelo facto de tal binómio acarretar necessariamente lucros mais volumosos. Assim sendo, foisurgindo um conjunto de empresas de trabalho temporário, que em estreita colaboração comindivíduos igualmente originários do leste da Europa, angariadores de trabalhadores, criaramum rentável esquema que permite obter receitas assinaláveis, isto em prejuízo dos trabalha-dores. Para viabilizar o processo atrás referido, as aludidas empresas dispõem ou colaboram comindivíduos que exercem as funções de motoristas, que asseguram o transporte dos trabalhadoresdos locais onde estão alojados, normalmente estaleiros das firmas de construção civil, para oslocais onde vão trabalhar. Tanto a empresa, como o motorista vão receber parte do salário queé inicialmente destinado ao trabalhador. Por exemplo, se é acordado que um determinado tra-balhador vai receber quatro euros por cada hora de produção, um euro destina-se à empresa,enquanto o motorista recebe igual quantia, acabando o trabalhador por auferir apenas doiseuros. Se tivermos em consideração que normalmente, os indivíduos provenientes do leste daEuropa trabalham em média doze horas por dia, conclui-se que ao final de um dia, a empresae o motorista ganham cada uma, doze euros por trabalhador. Se multiplicarmos esta quantiapor vinte trabalhadores, obtém-se o montante de duzentos e quarenta euros. Para além disso,muitas empresas e principalmente subempreiteiros, não celebram qualquer contrato com o tra-balhador, pelo que consequentemente não são efectuados descontos para a segurança social,implicando ainda mais ganhos. No fundo, muitas empresas e subempreiteiros, acabam por fo-mentar a imigração ilegal, havendo inclusivamente casos de colaboração com indivíduos queintegram organizações criminosas compostas por indivíduos do leste da Europa.

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Tentando alterar este estado de coisas, foram implementadas pelas entidades governamentaisvárias medidas. Uma dessas medidas já foi focada nesta exposição, e consistiu em instaurar umprocesso de legalização extraordinário, a fim de cativar os imigrantes a regularizar as respecti-vas situações. De acordo com o que foi anteriormente dito, houve um número considerávelde imigrantes que se mostraram receptivos a este convite das autoridades. Sensivelmente namesma altura em que se desencadeou este processo de legalização extraordinário, entrou emvigor legislação diversa a qual veio regular as condições de entrada, permanência, saída e afas-tamento de cidadãos estrangeiros do território nacional. De acordo com o preceituado nestasleis, nem todas as actividades laborais viabilizam a emissão de um visto de trabalho e a conse-quente autorização de permanência, mas somente as que constarem de um relatório elaboradopelo Governo. Por outro lado, foi implementado um numerus clausus relativamente aos pos-tos de trabalho considerados necessários, sendo que, sempre que esse número for ultrapas-sado, teoricamente deverá ser impedida a emissão de visto de trabalho. Com a instauraçãodestes diplomas legais, tornou-se bem mais difícil obter vistos de trabalho. Tal por si só nãose revelou suficiente para fazer face ao aumento do número de imigrantes em situação ilegal.Uma das medidas que poderá combater de forma eficaz este problema, consiste no agrava-mento da moldura penal e das “coimas”, isto em relação às organizações criminosas e a todosos que empregam mão-de-obra ilegal. No caso concreto das empresas que beneficiam do tra-balho de pessoas que não estejam legalizadas, aquilo que tem ocorrido até agora, é que as mes-mas acabam por correr o risco de manter uma postura à margem da lei, pois caso sejamsurpreendidos por uma acção de fiscalização das autoridades, acabam por ser obrigadas a pagarquantias que se podem considerar irrisórias, isto atendendo aos lucros que entretanto auferi-ram. É caso para dizer que o crime compensa.Com a vinda dos imigrantes provenientes do leste da Europa, começou a chegar ao conheci-mento das autoridades policiais a ocorrência de situações que não eram usuais anteriormenteno nosso país, ou seja, os imigrantes estariam a ser extorquidos, havendo igualmente notíciade agressões. Estas situações acabaram por ser denunciadas inicialmente por portugueses, nor-malmente patrões de imigrantes do leste, isto porque estes preferiam manter-se em silêncio,não só para evitarem as represálias daqueles que lhes faziam mal, mas também porque não de-sejavam uma exposição perante as autoridades policiais. Acrescente-se que este último argu-mento tem por base dois pressupostos. O primeiro tem a ver com o facto de muitos dosimigrantes não apresentarem a respectiva situação legalizada. Já o segundo pressuposto está in-timamente relacionado com a imagem de desconfiança que os imigrantes têm das autorida-des policiais dos seus países de origem. Com as detenções dos primeiros indivíduos que foram referenciados no cometimento destetipo de ilícitos, ocorridas em 2000, aquilo que aparentava ser um conjunto de situações iso-ladas, veio a revelar uma verdadeira organização, fortemente estruturada, implantada não só

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11. Em alguns casos a violência exercida, acaba por provocar a morte das pessoas agredidas. Tal significa que as or-ganizações não olham a meios para atingir os objectivos a que se propuseram e que consiste na obtenção de lucros. 12. A determinada altura um dos indivíduos que integrava a organização e que inclusivamente liderava uma das cé-lulas, deixou de cumprir os códigos de conduta instituídos. Efectivamente, o indivíduo em questão deixou de entre-gar ao líder o dinheiro proveniente das extorsões aos imigrantes. Tal acabou por chegar ao conhecimento do chefe,tendo o mesmo providenciado no sentido de aquele ser barbaramente espancado e consequentemente expulso da or-ganização e de Portugal.

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em Portugal, mas também em outros países. De acordo com as referências obtidas este grupoera suportado pelo crime organizado existente na Moldávia, nomeadamente por um dos gran-des chefes sediados naquela república. Era composto por mais de uma centena de indivíduos,de diversas nacionalidades, sendo que se dedicava não só a fomentar a imigração ilegal, comoigualmente o lenocínio, a extorsão, sequestros e roubos, entre outros. Este grupo tinha comoobjectivo o domínio de todo o mercado, visando eliminar ou absorver outros grupos que exis-tissem, caracterizando-se ainda por ter células espalhadas em várias cidades do país, as quaiseram chefiadas por elementos de confiança do líder. Cada célula dispunha de pessoas que con-trolavam a chegada de novos imigrantes e que os colocavam no mercado de trabalho, desig-nados por “comerciantes”. Dispunham igualmente de várias brigadas operacionais, as quaisperpetravam as extorsões juntos dos trabalhadores. Estes mesmos “comerciantes”, ficavam comos passaportes e outros documentos pessoais dos imigrantes, assegurando-se que todos eles,além de pagar pela colocação no mercado de trabalho, ficavam vinculados ao pagamento deuma taxa mensal que supostamente garantiria a oferta de protecção quando tal se mostrassenecessário. Sempre que um dos trabalhadores não quisesse disponibilizar tais quantias, o “ co-merciante “ comunicava aos indivíduos que lideravam as células, os quais por sua vez canali-zavam a informação para o líder. Era este que dava a ordem para as brigadas de operacionaisavançarem. As visitas das brigadas operacionais eram efectuadas durante a noite, nos locaisonde as pessoas se encontravam a descansar, normalmente contentores instalados nos própriosestaleiros onde prestavam trabalho. Dessa forma eram apanhados de surpresa e não tinhamgrande capacidade de reacção. Os grupos de operacionais escolhiam as alturas em que os tra-balhadores tinham acabado de receber os salários, e no caso de não encontrarem dinheiro, to-mavam posse dos passaportes de outros trabalhadores que ainda não estivessem a sercontrolados pela organização, como forma de garantir a posterior entrega das quantias esti-puladas. Se algum desses mesmos trabalhadores mostrasse novamente relutância em satisfazeras pretensões daqueles, os assaltantes acabavam por adoptar uma postura agressiva, recorrendoa métodos mais violentos para os convencer a pagar. Tal tipo de violência acaba por ter um carizestratégico, ou seja, afigura-se como uma mensagem para toda a comunidade de imigrantes,a fim dos mesmos se sentirem ainda mais atemorizados e consequentemente não hesitarem emsatisfazer os propósitos da organização criminosa.11 Todas as receitas obtidas eram entreguesaos responsáveis de cada célula, sendo que estes as remetiam para o líder. Sempre que os

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13. O fundo geral do crime organizado, designado no meio criminoso deste tipo de organizações pela palavra “Obs-hak”, tem como função primordial a aplicação do dinheiro obtido para viabilizar a concessão de todo o tipo de apoioaos membros que se encontram privados da liberdade. 14. Além do sequestro e do roubo, foi registada a prática de um engenhoso crime de burla a instituições bancárias.Os criminosos abordam imigrantes em diversos pontos do território português, apropriam-se de forma ilegítima dosrespectivos cartões de crédito/débito e obrigam os respectivos titulares a acompanhá-los até diversas localidades es-panholas que fiquem situadas perto da fronteira com Portugal. A determinada altura, os próprios criminosos, obri-gando as vítimas a fornecer os códigos dos cartões bancários, acabam por depositar nas contas correspondentes aosaludidos cartões, largas somas de dinheiro. Uma vez consumada tal operação, os criminosos deslocam-se a grandessuperfícies comerciais sitas em Espanha, e utilizam os cartões em apreço para adquirir inúmeros artigos, nomeada-mente, relógios, peças em ouro, electrodomésticos, entre outros. Regressam de imediato para o território portuguêse deslocam-se a uma caixa multibanco, onde providenciam no sentido de o dinheiro que haviam depositado ante-riormente na conta titulada pela vítima, ser transferido para as respectivas contas bancárias. Alguns dias mais tarde,quando as instituições bancárias procederem ao débito das quantias dispendidas com a aquisição dos aludidos arti-gos comerciais, constatam que a conta não tem saldo suficiente e que o respectivo titular apresentou queixa por uti-lização abusiva do cartão bancário. É a instituição bancária que acaba por ficar lesada com toda esta situação.

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procedimentos instituídos pela organização não eram cumpridos, registava-se a aplicação desanções severas.12 Parte das receitas eram destinadas aos elementos do grupo, no entanto, haviasempre uma percentagem significativa que era enviada para um fundo geral do crime organi-zado na Moldávia.13

Com o decurso das investigações desencadeadas pelas autoridades policiais, este grupo sofreuum forte revés, tendo sido detidos vinte cinco dos seus elementos, entre os quais o líder, o seuassessor principal, a grande maioria dos líderes de células e ainda vários operacionais. Todoseles aguardaram o respectivo julgamento em prisão preventiva, sendo que o respectivo líder,além de ter procurado manter a dinâmica de actuação do grupo no exterior, ainda tentou,acompanhado de outros elementos do grupo, evadir-se do estabelecimento prisional onde seencontrava. Somente não conseguiu devido à eficaz e pronta actuação dos elementos dos Ser-viços Prisionais que ali estavam de serviço.Uma vez limitada a actuação deste grupo, bem como, de outros de menores dimensões, e pe-rante um vazio de poder, foram chegando novos elementos para reorganizar toda a dinâmicadeste tipo de crime organizado. Surgiram múltiplas organizações criminosas de menores di-mensões, mas de cariz estrutural homólogo, para continuar a fomentar a imigração ilegal e aextorsão. Tais organizações, ao tomarem conhecimento das técnicas utilizadas pelas autorida-des policiais no decurso das investigações, adoptaram novos métodos de actuação,14, visandouma menor exposição e uma diminuição dos riscos corridos. Assim sendo, passou a haver ummaior cuidado com o teor das conversas mantidas por telefone/telemóvel e deixaram de tomarposse dos passaportes das vítimas, isto pelo facto de constituir uma prova importante do tipode actividade exercida. Os membros das organizações criminosas, de uma forma geral, tam-bém trabalham, sendo que em algumas situações integram os órgãos estatutários de associa-ções de apoio ao imigrante. Para lá destas formas de branqueamento das actividades ilícitas

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praticadas, tem vindo a ser constatada a preocupação em constituir empresas, mediante asquais se poderá justificar a obtenção das receitas monetárias auferidas com a extorsão. Tudoisto veio dificultar a actuação da Polícia, no entanto, continuam a ser envidados esforços nosentido de manter o combate a tal tipo de criminalidade. O fenómeno aqui em análise encontra-se em plena expansão. Não obstante tudo o que temsido feito, terá que se considerar que muito mais há para fazer, nomeadamente no que se re-fere ao estabelecimento de políticas concertadas, não só entre os vários órgãos de polícia cri-minal, mas igualmente entre estes e as restantes instâncias formais de controlo. É essencialuniformizar os critérios de valoração e de decisão das diferentes instâncias formais de con-trolo, isto em prol de uma maior eficiência da administração da justiça penal. Somente destaforma é que se poderá enfrentar com maior eficácia a criminalidade organizada e no caso dasestruturas criminais em apreço no presente trabalho, evitar que os respectivos membros be-neficiem do processo de aculturação, o que a acontecer será necessariamente decisivo para umaumento e expansão do fenómeno criminal. Nessa altura, também os Portugueses poderãovir a sofrer com a actuação deste tipo de organizações, passando igualmente a ser considera-dos como alvos.15

ESTRUTURA BASE DE UMA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA

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15. Tal deixou de ser uma conjectura, isto em virtude de já terem sido referenciadas condutas criminosas perpetradaspor indivíduos do leste em que as vítimas são de nacionalidade Portuguesa. Numa dessas situações chegou a ser ex-torquida a quantia de três mil euros.

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De tudo quanto foi escalpelizado, ficou claro que de algum tempo a esta parte existe um fluxode imigração do leste da Europa, não só para Portugal mas para todos os países da União Eu-ropeia. A deslocação de imigrantes para o ocidente está intimamente relacionada com o factodos mesmos procurarem melhores condições de vida. Foi igualmente referido que associadoao problema da imigração, está o das estruturas criminais que se aproveitam desse fenómenoe que nele investem para que daí resultem novas fontes de receitas. Para efectivar tal aprovei-tamento, as organizações criminosas enviam representantes para os diversos países de destinodos imigrantes, onde montam uma complexa rede de influências, que lhes permitem contro-lar as áreas do mercado de trabalho onde aqueles consigam exercer funções. É dessa formaque as organizações criminosas, usufruindo do facto da generalidade dos imigrantes se en-contrarem num meio social que lhes é completamente estranho, acabam por exercer todo umconjunto de pressões, as quais visam única e exclusivamente retirar todo o dinheiro que aque-les possuam.Por outro lado, abordou-se a forma como as autoridades policiais enfrentaram este cenário.Apesar das dificuldades de vária ordem que foram surgindo, tem sido possível dar uma respostaminimamente adequada, isto sem que tal signifique que o problema foi erradicado do nossopaís. Para que os resultados a alcançar sejam ainda mais positivos, e considerando que estaproblemática se estende a todo o território da União Europeia, torna-se prioritário criar efei-tos de sinergia entre as acções nacionais, acrescentando-lhes uma dimensão europeia. Nessa conformidade, interessa reflectir sobre algumas questões que poderão ser úteis para pre-venir o alastramento de toda esta problemática e consequentemente enfraquecer o poderiodas organizações criminosas.

Assim sendo, torna-se imperioso investir em campanhas de informação nos países de ori-gem e de trânsito, isto com o intuito de sensibilizar o público em geral para os problemase os riscos relacionados com a imigração clandestina.Aplicar as regras estabelecidas no seio da União Europeia, relativas à emissão de vistos ede controlo nas fronteiras, tendo em conta as respectivas necessidades económicas e de-mográficas.Melhorar a cooperação operacional, mediante a utilização de telecomunicações e tecno-logias modernas, visando uma difusão mais rápida da informação sobre os fluxos migra-tórios irregulares.

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16. A Europol é um serviço Europeu de Polícia, incumbido do tratamento e intercâmbio de informação criminal. Visacontribuir de forma significativa para a aplicação das leis da União Europeia no âmbito do combate à criminalidadeorganizada. Tem por objectivo melhorar a eficácia e a cooperação entre os serviços competentes dos Estados-Mem-bros no domínio da prevenção e combate ao crime organizado em áreas concretas, sendo que uma delas é a crimina-lidade relacionada com as redes de imigração clandestina.

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Que as sanções a serem aplicadas aos agentes promotores da imigração clandestina, bemcomo das actividades criminosas dela decorrente, sejam definidas como corolário de umapolítica consensual entre todos os Estados-Membros. Concretizando, será necessário queas sanções cominadas assegurem o congelamento e a apreensão dos ganhos de todas as pes-soas que estejam envolvidas no fenómeno criminal aqui em causa. Actuar em relação ao trabalho não declarado de residentes em situação ilegal, o que sig-nifica a tomada de medidas, quer em relação aos empregadores, quer em relação aos po-tenciais imigrantes irregulares.Reforçar a cooperação policial e ao mesmo tempo conceder à Europol16 um papel de re-levo, essencialmente através de uma maior operacionalidade no trabalho a desenvolvercom as autoridades de cada um dos Estados Membros.Desenvolver uma rede de agentes de ligação ou de equipas conjuntas que viabilizem umcontrolo efectivo das fronteiras. Criar condições que ajudem a tornar mais célere o processo de integração dos imigrantesnas sociedades dos países onde os mesmos se encontrem e que façam diminuir o seu es-tado de dependência em relação às organizações criminosas que exploram o problema daimigração ilegal.Conceder às vítimas das actividades criminosas o direito à informação e à protecção noâmbito do processo penal, assim como, regalias para aquelas que se mostrem dispostas acolaborarem com as investigações.Definir uma estratégia de combate comum às várias instâncias formais de controlo de ummesmo Estado, nomeadamente através da identificação dos objectivos a alcançar e dosprocedimentos a adoptar.Dotar as autoridades policiais de mais meios humanos e meios técnicos que possam aju-dar a tornar mais eficaz o combate a este tipo de criminalidade.

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108 Investigação Criminal face ao Tráfico de Seres

Humanos

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Anabela Filipe

É Especialista-Adjunta da PJ desde 2001. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lis-

boa. Pós-graduada em Criminologia pela Universidade Lusíada. Mestre em Ciências Criminais pela Faculdade de

Medicina da Universidade de Lisboa. Doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

O crime de Tráfico de Seres Humanos (TSH), complexo, multifacetado e transnacional, per-mite-nos aqui um breve enquadramento jurídico (nacional e internacional), ponto de partidapara buscar definições, enunciar dificuldades e lançar desafios aos elementos dos vários Órgãosde Polícia Criminal (OPC) que com ele frequentemente são confrontados. A análise exaustivae contínua das múltiplas vertentes deste crime implica a delimitação conceptual e a percep-ção real do fenómeno, passando pela necessidade de consciencialização da sociedade bemcomo da utilização de todos os instrumentos que a globalização disponibiliza, manipulando-os para o aumento da eficácia deste combate.O índice de subdesenvolvimento de um país é directamente proporcional ao número de na-cionais traficados que buscam, muitas vezes em situações de desespero e extrema vulnerabili-dade, uma vida melhor em países estáveis económica, social e politicamente. Estes movimentosmigratórios levam a que o mundo do crime, quer ao nível altamente organizado, quer assentenum sentido de oportunidade pontual, não resista aos avultados lucros de uma actividade(que envolve também o auxílio à imigração ilegal) cujo risco é, por ora, compensador. Às as-simetrias mundiais e à imigração juntam-se as desigualdades de género, raça e etnia para se con-cluir que o TSH é um paradigma na violação de Direitos Humanos. Responder às clássicas perguntas jornalísticas Quem, Como, Onde, Quando e Porquê revela-seuma árdua tarefa sobretudo quando se debate com um problema prévio de definição ou coma escassez e dispersão de informação. Importa delimitar conceitos, integrá-los na realidade,enquadrá-los juridicamente. Importa traçar rotas comportamentais na perspectiva das vítimase traficantes dos vários “tráficos” de seres humanos, só assim desvendando estruturas, interli-gações, modus operandi, fragilidades deste crime.

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Este artigo procura contribuir, sem nunca menosprezar uma reflexão crítica, para o esboço dareal dimensão do TSH numa sociedade cuja paisagem do crime está em constante mudança,dificultando a sua análise e, por conseguinte, o seu combate; uma sociedade que é fonte decrime e de um sentimento de insegurança generalizado: a chamada sociedade de risco (Beck,1992)A. Múltiplos factores - como a dificuldade de determinar o local de consumação, a po-rosidade evidente entre o poder económico e político e o mundo do crime ou ainda as com-plexas relações entre crime organizado e de rua - viciam os dados da análise criminológicaconvencional. Os OPC assumem um papel fundamental, estruturante no combate ao TSHque deve ser sublinhado pela formação inicial e contínua, transversal e adequada às compe-tências legalmente atribuídas bem como pelo trabalho de especialização, que se sabe optimi-zador da actividade operacional.

"Human trafficking is a crime that strips people of their rights, exploits people's dreams of a betterfuture, robs people of their dignity. It can cause physical and psychological damage. It can evenkill."

Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon

O TSH é o reverso da globalização, alimentado pela fragilidade de muitos Estados, acentuadopelas desigualdades de género, raça ou etnia. Revela profundas contradições da própria natu-reza humana e do suposto percurso evolutivo da nossa civilização, que preconiza um desen-volvimento sustentável para todos. Este crime é muito mais que uma grave violação da lei, éuma afronta à dignidade humana. O filósofo esloveno Slavoj Zizek1 adianta que, perante talfenómeno, foi criado um novo racismo do mundo desenvolvido, de certa forma mais brutalque o anterior, uma vez que a legitimação implícita não é natural ou cultural, é reduzia antesao chamado egoísmo económico.As respostas legislativas ao TSH variam de país para país, movidas por razões de ordem polí-tica, económica, social ou cultural: constata-se que o grau de desenvolvimento de um país édirectamente proporcional às medidas tomadas para combater o TSH e persistência na suaaplicação. O esforço de harmonização legislativa passa pela criação de enquadramento jurídicointernacional – ao nível global e regional – sendo disso exemplos:

a) O Protocolo Adicional contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo àPrevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas em especial Mulheres e Crianças,

Investigação Criminal face ao Tráfico de Seres Humanos – (in)definições, dificuldades e desafios

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A. BECK, U. (1992) “Risck Society. Towards a new modernity” London, Sage Publications.1. ZIZEK, Slavoj; DALY, Glyn (2004) “Conversations with Zizek “, London, Polity Press.2. Para informações específicas sobre o Protocolo – países signatários, países ratificadores, por exemplo – consul-tarhttp://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVIII12&chapter=18&lang=en – ace-dido em 01/09/2010.

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em vigor desde Novembro de 20033 adoptado pela Resolução 55/25 de 15/11/2000. As-sinado e ratificado por mais de 110 países, inúmeros governos e respectivos sistemas ju-diciais ainda não o colocaram de facto em prática, apesar dos recursos postos à disposiçãopela ONU para reforma e harmonização de novas leis, punição dos traficantes, resgate dasvítimas e prevenção junto de grupos de risco (potenciais vítimas). Este Protocolo - adi-cional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional3 - sur-giu por força do impacto significativo, e crescente, do fenómeno ao nível mundial,aplicando-se à prevenção, investigação e perseguição mas somente se o TSH for transna-cional e envolver um grupo que se dedica à criminalidade organizada, de acordo com adefinição contida no art. 2º a) daquela Convenção4;b) A Convenção do Conselho da Europa contra o TSH (Convenção de Varsóvia, de 16de Maio de 2005) – a qual aguarda ainda a ratificação de muitos dos Estados-Membros5

- bem como o Plano de Acção da UE sobre as melhores práticas, normas e procedimentos paraprevenir e combater o TSH (Dezembro 2005)6. A Convenção de Varsóvia tem um campomais vasto de aplicação que o Protocolo da ONU ora mencionado, pois, de acordo como seu art.2º, abrange todas as formas de TSH quer seja de cariz nacional ou internacio-nal, estando associado ou não ao crime organizado. Enunciadas duas iniciativas europeias importa mencionar outras, específicas e estrutu-

rantes, como a Decisão-Quadro 2002/629/JAI do Conselho relativa ao TSH7, instru-mento jurídico que obriga cada Estado Membro a adoptar medidas necessárias paragarantir que os actos que preencham o conceito de TSH sejam puníveis. Em Março de2010 foi apresentada pela Comissão Europeia uma proposta Directiva – que se encontraainda em discussão e revogará a anterior Decisão-Quadro - relativa à prevenção e lutacontra o TSH que incluirá disposições de aproximação ao Direito Penal, bem como a as-sistência, medidas de apoio e protecção das vítimas.A Directiva 2004/81/CE do Conselho8 concede título de residência aos nacionais de paí-ses terceiros que sejam vítimas de TSH, ou objecto de uma acção de auxílio à imigraçãoilegal, e que cooperem com as autoridades competentes.

Anabela Filipe

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3. Frequentemente denominada Convenção de Palermo.4. Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e actuando concertadamentecom a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a in-tenção de obter, directa ou indirectamente, benefício económico ou outro benefício material.5. Ratificação portuguesa efectuada através do Decreto do Presidente da República nº 9/2008 de 14 de Janeiro, pu-blicada no DR 1ª Série.6. Publicado no Jornal Oficial L 311 de 09/12/2005.7. Publicada no Jornal Oficial L203 de 01/08/2002.8. Publicada no Jornal Oficial L 261 de 06/08/2004.

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A União Europeia mostra-se preocupada com este fenómeno no seu território9 sobretudodevido à livre circulação de pessoas à luz da Convenção Schengen10. Segundo recentesestimativas da Organização Internacional de Migrações (OIM)11 cerca de 800,000 pessoassão anualmente vítimas de tráfico com destino à Europa. Os últimos alargamentos trou-xeram dificuldades de diálogo e harmonização a vinte sete, não só resultantes do númerode Estados-Membros envolvidos como de divergências culturais que relevam nesta maté-ria. Se por um lado não existe uma efectiva política penal comum, matéria em que os Es-tados-Membros insistem em não ceder, sob perigo de perda de soberania, por outro há aconsciência de que dentro da UE existem realidades diferentes, países de origem e de des-tino, com níveis de desenvolvimento distinto, múltiplas formas de encarar desigualdadesde género ou raciais. Outras iniciativas subsequentes, acompanhadas dos respectivos pro-gramas de financiamento, encaminham a U.E. para a harmonização possível nesta maté-ria, sobretudo através do lançamento e renovação dos Planos Nacionais de Luta contra oTSH e da cooperação judiciária/policial internacional, bem como no apoio comum cres-cente às organizações não-governamentais (doravante ONG) cujo papel não deve ser me-nosprezado12.

Em Portugal as preocupações com o crime de TSH já se verificavam, por exemplo, no pe-ríodo anterior à entrada em vigor do primeiro Código Penal no pós-25 de Abril: o Parecer daProcuradoria Geral da República13, de 1978, cujo relator foi o Procurador-Geral Adjunto Mil-ler Simões, já sublinhava, na sua conclusão, as “(…) sugestões da Polícia Judiciária no sentidode se adoptarem medidas legislativas tendentes a uma previsão legal completa das situações de TSHcom vista à sua exploração sexual predominantemente de mulheres, e a sua punição com penas degravidade correspondente, e, bem assim, proporcional a uma intervenção adequada e exclusiva da-quela Polícia na investigação desses crimes (...). ”A redacção do art.160º da Lei 59/2007 de 04 de Setembro14, acolhe a definição mais abran-gente deste crime, consentânea com os instrumentos legais internacionais ora enunciados. OTSH é integrado pela primeira vez na categoria dos crimes contra a liberdade pessoal per-dendo, simultaneamente, o seu exclusivo carácter transnacional na medida em que a anteriorredacção – artº169º da Lei 99/2001 de 25 de Agosto – não mencionava o efectuado dentrodo país. Esta redacção contém um elemento inovador (nº5) que promove a consciência cívica

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9. “Trafficking in persons to Europe for sexual exploitation” (June 2010) – ONU – UNDOC. Disponível emhttp://www.unodc.org/documents/publications/TiP_Europe_EN_LORES.pdf - acedido em 18/08/2010.10. Acervo de Schengen publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 22/09/2000.11. Disponível em http://www.iom.int/jahia/Jahia/counter-trafficking - acedido em 20/08/2010.12. Papel determinante em Portugal, além das estruturas estatais, da Congregação Religiosa das Irmãs Adoradoras,O Ninho e APF - Espaço Pessoa.13. Parecer (nº convencional) PGRP00006147 de 15/06/1978, disponível na Internet: www.dgsi.pt/pgrp.nsf/In-ternet?OpenView – acedido em 05/09/2010.14. Código Penal português em vigor.

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e apela à responsabilização da sociedade civil: são punidas todas as pessoas que, tendo conhe-cimento que alguém esteja a ser vítima de TSH, usufruam dos seus serviços. No que respeitaa tráfico de menores admite-se que seja cometido através de meios além dos enunciados no nº1(vide nº 2 e nº3 do art.160º), mas se através daqueles há lugar a agravação.O legislador achou também necessário, dada a complexidade do crime, criar incriminações co-nexas “referentes à adopção de menores mediante contrapartida, utilização de serviços ou órgãos depessoas vítimas de tráfico e à retenção, ocultação, danificação ou destruição dos respectivos docu-mentos de identificação ou de viagem”15. Na nova redacção do crime de TSH continua a ser punida a tentativa, o que dada a nova mol-dura penal, está implícito (conjugação com o art. 23 nº1 CP). No que se refere ao auxílio e àinstigação aplicam-se as regras gerais da autoria, da cumplicidade e comparticipação (art.26ºa 29º do CP).Uma questão que sempre se levantou, sobretudo no domínio da criminalidade organizada,foi a necessidade de consagração da responsabilidade penal de pessoas colectivas – ora con-cretizada - tida como especialmente relevante quer na prevenção quer no combate ao crime.O art. 100º do Código Penal – interdição de actividades - permite, no âmbito das medidas desegurança não-privativas de liberdade, o encerramento temporário ou definitivo de qualquerestabelecimento utilizado para a prática de TSH ou para interdição ao autor da infracção, atítulo temporário ou definitivo, do exercício de actividade relacionada com a prática daquelecrime16. As circunstâncias agravantes deste tipo de crime não são alteradas (excepto no caso pontual dosmenores) ficando ainda aquém do art. 24º da Convenção de Varsóvia: no quadro actual ape-nas são consideradas as determinadas pelas relações de parentesco ou existência de relação dedependência. Sucintamente enumeram-se novas circunstâncias agravantes que deveriam tersido adoptadas:

a) O TSH ter colocado em perigo a vida da vítima, deliberadamente ou por negligênciagrave;b) O TSH ter sido cometido contra uma criança;c) O TSH ter sido cometido por um agente público no exercício das suas funções;d) A infracção ter sido cometida no quadro de uma organização criminosa.

Quando se trata da matéria relacionada com os bens, produtos e vantagens provenientes daprática do crime de TSH têm de ser feitas duas considerações: a primeira relativamente à sua

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15. Proposta de Lei nº98/X, Exposição de Motivos, p.10 (laborada pela Unidade de Missão para a Reforma Penal,criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº113/2005 de 29 de Julho).16. Ainda de referir que uma das medidas especiais de polícia – aplicadas sempre de acordo com o principio da ne-cessidade -, consagradas na alínea h) art.29º da Lei de Segurança Interna – Lei nº53/2008 de 29 de Agosto, publi-cada no D.R.1ª série, nº197 - é a cessação da actividade de empresas, grupos, organizações ou associações que sedediquem à criminalidade violenta ou altamente organizada.

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perda, por parte dos agentes, já se encontrava prevista no anterior Código Penal - artigos 109º(perda de instrumentos e produtos) e 111º (perda de vantagens) – pois, verificando-se os pres-supostos ali definidos expressos, são declarados perdidos a favor do Estado. Estes bens e pro-dutos estão abrangidos também pelo art. 368º-A do Código Penal referente aobranqueamento, aplicando-se-lhe como tal o regime que estabelece medidas de natureza pre-ventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e aofinanciamento do terrorismo, aprovado pela Lei 25/2008 de 5 de Junho.A legislação relativa aos meios de obtenção da prova na investigação do crime de TSH, maisconcretamente a que regula as acções encobertas, parece apresentar uma lacuna: o art. 1º daLei 101/2001 de 25 de Agosto enumera taxativamente os crimes nos quais aquelas são ad-missíveis. O TSH não está incluído, pelo menos à luz da mais recente revisão do Código Penal,pois de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual passou a crime contra a liberdadepessoal. Conclui-se, na sequência desta mudança, que anteriormente pudesse estar abrangidoem parte pela alínea b) do art.1º da Lei 101/2001 de 25 de Agosto. Parece que o corpo legalcriado em 2007 não produziu, nesta matéria, as repercussões desejadas pois, numa primeiraanálise, um crime de prevenção e investigação prioritária como o TSH (artigos 3ºnº1 a) e4ºnº1ª) da Lei 38/2009 de 20 de Julho17) deveria estar abrangido por aquele diploma. O factoé que, na prática, são escassas as investigações onde existe somente TSH: ora em redes maissimples, pequenos clãs familiares/étnicos, ora em redes mais amplas e estruturadas – onde émais eficaz, aliás, utilizar as acções encobertas – a actividade criminal abrange vários tipos decrimes desde o tráfico de estupefacientes, passando pelo branqueamento, associação crimi-nosa, contidos no já referido art.1º da Lei 101/2001 de 25 de Agosto. Importa aferir da ne-cessidade de alteração da Lei das Acções Encobertas para que ali seja inserido o conceito decriminalidade altamente organizada de acordo com o Código de Processo Penal, art.1ºm)18. O balanço desta mais recente redacção do Código Penal é positivo, eliminando uma série dedesajustes à realidade criminal e à produção legal internacional contidos no anterior artigo169º CP, empurrando até então a prática jurisprudencial para a aplicação de tipos legais quepossuem elementos que de alguma forma estão ligados ao TSH mas que não preenchiam otipo. A revisão do CP é primeiro passo para encetar um movimento de mudança de rumo dasorientações políticas, quer no que respeita à investigação criminal (sensibilização, formação es-pecífica dos órgãos de polícia criminal no terreno, bem como da própria Magistratura, no-meadamente o Ministério Público que tem em mãos a condução das investigações), quer nas

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17. Lei que define os objectivos, prioridades e orientações da política criminal para o biénio 2009-2011 no cumpri-mento da Lei 17/2006 de 23 de Maio (Lei-Quadro da Política Criminal). Publicada em 20/07/2009, Diário da Re-pública, I Série.18. De acordo com a 19ªalterção ao Código de Processo Penal, Lei nº 26/2010 de 30 de Agosto, criminalidade alta-mente organizada são denominadas as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas,tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias.

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próprias políticas de imigração e seu reajuste ao nível internacional ou no aprofundamento dequestões sociológicas, ainda não resolvidas por entraves culturais, como a discussão sobre le-galização/criminalização da prostituição. Do esforço português para acompanhar a evolução no combate a este crime é ainda reflexo a ela-boração do I Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos19 que - conjugado com o PlanoNacional para a Inclusão Social (2008-2010), que prevê um modelo de acolhimento às vítimasde TSH, com o I Plano para a Integração dos Imigrantes (2010-2013) e com o III Plano Na-cional para a Igualdade, Cidadania e Género (2007-2010)20 - visa colmatar um vazio que exis-tia nas vertentes, nomeadamente, da inclusão social, imigração e de género, demonstrando umavisão integrada do problema. Este Plano funciona ainda como impulso inicial na sensibilizaçãoda sociedade portuguesa para um problema que lhe é transversal, obrigando-a a partilhar res-ponsabilidades com as diversas entidades governamentais. No I Plano Nacional Contra o Trá-fico de Seres Humanos, concebido para o quadriénio 2007-2010, definiram-se grandes áreasestratégicas de intervenção, contemplando um leque de mecanismos de referência nacionais, nosentido de identificar os contornos específicos do TSH, harmonizar procedimentos e dissemi-nar boas práticas. Ali foram definidas, em concreto, medidas a tomar, sendo o primeiro pontode partida para todas as outras: implementação de um sistema de monitorização do TSH, con-cretizado através da criação do Observatório de Tráfico de Seres Humanos21 e de um fórum,com periodicidade anual, alargado a todos os agentes envolvidos nesta matéria.Recentemente – a 18/10/2010, dia europeu contra o TSH - foi apresentado o II Plano Na-cional. Concebido para o triénio 2011-2013, pretende consolidar a estratégia nacional destaluta reforçando as respectivas áreas de intervenção, apostando na construção de um acervo demedidas operacionais com objectivos claros, facilitadores da sua aplicação22.

O fenómeno do TSH continua num impasse gerador de indefinições. Apesar do esforço paratraçar limites, por exemplo, entre o TSH e o auxílio à imigração ilegal, as vítimas do primeirocontinuam a ser tratadas frequentemente como imigrantes ilegais, confrontadas com a detenção

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19. Resolução do Conselho de Ministros 82/2007, publicada no Diário da República, I Série, de 22 de Junho.20. Publicados respectivamente através de Resolução de Concelho de Ministros n.º 136/2008, 1.ª série do D.R. n.º174, de 9 de Setembro; Resolução do Conselho de Ministros n.º 63 -A/2007, 1ª Série do DR nº85 de 3 de Maio (ac-tualmente já disponível o anteprojecto do II Plano para o triénio 2010-2013); Resolução do Conselho de Ministrosn.º 82/2007,1ª Série do D.R.nº119de 22 de Junho.21. Criado pelo Decreto-Lei nº 229/2008 de 27 de Novembro, publicada no Diário da Republica I Série. Site ofi-cial: http://www.otsh.mai.gov.pt/ - Organicamente enquadrado na Direcção-Geral da Administração Interna – Mi-nistério da Administração Interna.22. II PNCTSH disponível para consulta pública em http://www.portugal.gov.pt/pt/GC18/ConsultaPublica/Pages/20101019_Plano_Combate_Trafico_Seres_Humanos.aspx - acedido em 19/10/2010.

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ou deportação. A Convenção de Palermo é constituída por dois protocolos: ”Protocolo Adi-cional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mu-lheres e Crianças” e o “Protocolo Adicional contra o Contrabando (Smuggling) de Migrantes porVia Terrestre, Marítima e Aérea”. Ambos apresentam definições que, embora não isentas de crí-ticas, são, até ao momento, as mais abrangentes e consensuais. Também a legislação comuni-tária se impôs legislar sobre esta distinção, de acordo com a Directiva 2002/90/CE23.À revisão do Código Penal de 2007 sucedeu a Lei dos Estrangeiros24 consagrando, no seu art.183º, o crime de auxílio à imigração ilegal e agravando a medida legal da pena se for praticadocom perigo para a vida do imigrante (art. 183 nº3). De acordo com o art.186º daquela lei, sur-gindo necessidade de tipificação de uma realidade descrita frequentemente pelos OPC, foi aindacriado o crime de casamento por conveniência – na gíria apelidado de “casamento branco”. Analisando estes dois conceitos, segue-se tabela simplificada, visando auxiliar, na prática, àsua distinção:

Semelhanças e Diferenças entre Auxilio à Imigração Ilegal e TSH

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Semelhanças

Frequente movimento voluntáriodos migrantes;Exposição a situações de descon-forto e perigo durante longas via-gens;Estatuto de ilegalidade no país dedestino – situação de vulnerabili-dade dos migrantes – aumento dorisco de exploração (que não reportaao momento e passagem da fron-teira que normalmente é efectuadode forma legal).

Factores básicos comuns para a suaexpansão:-Pobreza e falta de oportunidades;-Fronteiras menos controladas em

algumas regiões (exemplo U.E);-Internacionalização da economia/globalização;-Avanço nos transportes e vias e co-municação;-Crescimento do crime organizado.

Diferenças

Tipo de CrimeTSH considerado como crime contra as pessoas enquanto o au-xílio à imigração ilegal é considerado um crime contra o Estado;Consentimento:Auxílio à imigração ilegal: fá-lo sempre voluntariamente (não hávítima);TSH: neste caso pode haver engano, acção ou rapto (há vítima).Liberdade da vítima:Auxílio à imigração ilegal: relação entre Traficante e traficado termina com a chegada ao país de destino.TSH: traficado colocado em situação de exploração, por períodolongo de tempo, em condições que desconhecia à partida.Pagamento efectuado: Auxílio à imigração ilegal: imigrantes pagam à partida o serviçode transporte e acolhimento no país de origem;TSH: relação de dependência traficantes/traficados, pequena per-centagem paga inicialmente a traficantes que cobram a restantedívida através do prolongamento da exploração.Objectivo do recrutamento:TSH: possível recrutamento dos traficados para actividades cri-minosasEstrutura organizativa dos agentes:Auxílio à imigração ilegal: actos podem ser praticados por umapessoa ou estrutura simples;TSH: frequentemente organização mais bem estruturada quecobre vários aspectos do processo.

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As linhas que, de uma perspectiva teórica, oferecem contornos evidentes quanto às caracte-rísticas específicas de ambos, rapidamente se esbatem perante as seguintes questões:

a) Onde começa o TSH e termina o auxílio à imigração ilegal;b) Como provar a coacção ou o engano, ou avaliar o grau deste com base na informaçãoobtida do imigrante, promovendo desta forma a análise de vários níveis de vitimização;c) Como analisar a cadeia de explorações que os imigrantes ilegais sofrem da origem aodestino (se integram ou não o conceito de TSH);d) Como identificar uma vítima de TSH quando, frequentemente as próprias encaram otrabalho forçado, a escravatura ou a servidão como aceitáveis, quer porque, por exemplo,nunca conheceram outro modo de vida, quer porque temem a denúncia dos traficantesvivendo apavoradas com ameaças, lançadas por aqueles, sobre si ou familiares.

A chave da diferença entre TSH e auxílio à imigração ilegal parece estar nas definições do con-texto de exploração do primeiro – vide art. 160ª do Código Penal – embora se saiba que existeuma “linha contínua a unir, nos dois extremos, estes dois crimes, o que torna difícil de avaliar aexistência de exploração e grau de exploração do imigrante” (Mendes, 2008). Devido, entre ou-tras razões, sobretudo à fome, à guerra, à seca surgem movimentos massivos migratórios quedificultam a distinção, mais concretamente a delimitação do fim de um e princípio de outro.“Nessas circunstâncias tudo se confunde. Emerge uma zona cinzenta onde é particularmente com-plexo deslindar o que é normal movimento migratório daquilo que já é censurável acto de tráficode pessoas com o seu calvário de situações adjacentes” (Faria Costa, 2007).

Na complexa tarefa de abordar o TSH de forma holística não pode ser esquecido o cerne daquestão: as vítimas, 2 milhões estimadas anualmente pela ONU25. Gera-se controvérsia sobreo seu número efectivo: não se dão a conhecer pelos mais diversos motivos, quer estatísticos –inerente ao TSH está a natureza clandestina do crime que dificulta as estatísticas oficiais, con-taminando-as com cifras negras - quer culturais ou jurídicas: em muitos países as vítimas nãopodem ter esse estatuto devido à não criminalização do TSH (quer nas legislações nacionaisquer pela falta de ratificação de instrumentos jurídicos transnacionais). Contribuem, para estavulnerabilidade estatística, factores como o estigma social sentido pelas vítimas – sobretudo nocampo da exploração sexual, que as leva a sofrer em silêncio. Muitas simplesmente não se

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23. Publicada no Jornal Oficial I 328 de 5 de Dezembro de 2002.24. Lei nº 23/2007 publicada na 1ª Série do D.R. nº 127 de 04 de Julho.25. No final de Agosto de 2010 a Assembleia-Geral da ONU lançou oficialmente um Plano de Acção Global con-tra o TSH (Resolução 64/293) visando reforçar o combate internacional a este crime através de implementação deacções concretas para prevenir, proteger as vítimas e encontrar cadeia de responsáveis e da colaboração entre os Es-tados, ONG e sector privado, nomeadamente órgãos de comunicação social.

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reconhecem como tal por pura desinformação ou pelas suas raízes culturais/étnicas, outrasainda porque temem por si ou pelos seus, sentem-se desorientadas, confusas relativamente àsautoridades de um país estranho (o de destino ou de trânsito). Existem sim cálculos baseadosna observação das ONG no terreno e nas redes internacionais de TSH, que vão sendo lenta-mente desmanteladas por uma investigação criminal cada vez mais suportada por legislação só-lida nesta matéria, cada vez mais sensibilizada para a abordagem às vítimas. Aliás, actualmenteno que respeita a TSH, o aspecto quantitativo é ainda uma quimera, daí o esforço desenvol-vido na última década de alerta mundial, ecoando verbos como prevenir, alertar, compreen-der a diversidade, intervir, harmonizar legislações, cooperar na exacta medida datransnacionalidade deste tipo de crime, punir, proteger as vítimas efectivas e as potenciais que,por razões económicas, sociais ou culturais correm o sério risco de serem traficadas.De um ponto de vista jurídico uma pessoa traficada é um sujeito passivo (vítima) do ilícitopenal e/ou pessoa contra quem se comete crime ou contravenção. O tribunal competente parajulgar um crime de TSH deverá certificar o estatuto de vítima no âmbito do processo para queesta possa usufruir plenamente dos seus direitos.Já do ponto de vista social tem-se vindo a constatar uma associação entre vítima e submissão,uma ênfase da sociedade no lado subjectivo e moralista da questão sobre os quais é preciso re-flectir e desconstruir. A aferição dos vários níveis de vitimização é fundamental, da total coacção (rapto) ao menosgravoso (há conhecimento e consentimento na actividade mas desconhecimento do trata-mento característico do TSH: intimidação, endividamento, coacção e exploração) há umimenso degrade que exige delimitação de contornos. Associar esta realidade a disposições le-gais pouco claras pode deixar cair a definição de vítima em teias de valores morais, hierarqui-zando-as quanto ao nível de ajuda que as autoridades lhes devem prestar. Às vítimas deve serassegurada a sua plena protecção em todas as fases do processo, para tal é preciso criar a váriosníveis (internacional, regional, nacional) mecanismos, instrumentos jurídicos coerentes, efi-cazes, céleres baseados na Convenção de Palermo e no seu Protocolo adicional relativo à Pre-venção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas. Aliás o reforço dos direitos das vítimas, suaprotecção e assistência, tem início exactamente nesta Convenção na qual se distinguem três na-turezas diferentes de normas26 :

• Normas que obrigam o Estado parte a actuar: art. 6º nº1 do Protocolo contém uma ob-rigação de protecção da identidade/privacidade da vítima levando a que os casos de pro-cedimentos criminais sobre TSH sejam confidenciais; art. 6º nº 2 a) contém a obrigaçãode prestar à vítima informação sobre procedimentos administrativos e judiciais; art. 6º nº2

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26. Classificação adoptada no estudo PEREIRA, Sónia, VASCONCELOS, João (2007) “Combate ao Tráfico deSeres Humanos e Trabalho Forçado - Estudos de casos e respostas de Portugal” – OIT (Setembro 2007).

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b) contém a obrigação e garantir à vítima a possibilidade de expor a sua versão dos factosbem como as suas preocupações no momento adequado dos procedimentos criminaisque envolvam o(s) seu(s) agressor(es); finalmente o art. 6º nº6 do Protocolo e art. 25 nº2da Convenção contêm a obrigação de incluir na legislação interna meios que permitamà vítima de TSH obter uma compensação por danos sofridos;• Normas que solicitam ponderação/esforço dos Estados na sua aplicação: art. 24 nº 4 da Con-venção exige que cada Estado parte adopte medidas adequadas para que seja garantida aprotecção das vitimas, e, quando conveniente, a dos seus familiares, que sejam testemu-nhas em procedimentos criminais; o art. 6º nº5 do Protocolo prevê mesmo que os Esta-dos deverão garantir a segurança física das vítimas enquanto se encontrem no seu territórionacional; o art. 7º do Protocolo aponta para que os Estados ponderem uma forma de re-gularização de permanência das vítimas de TSH no país de destino;• Normas cuja implementação é de natureza totalmente opcional: o art. 6º nº3 do Protocoloenumera um conjunto de medidas que visam a recuperação física, psicológica e social davítima como alojamento adequado, acompanhamento e aconselhamento na sua língua ounuma outra que consiga compreender adequadamente, assistência médica, psicológica ematerial, emprego e acesso ao ensino e à formação.

Já no ordenamento jurídico comunitário, a Decisão-Quadro do Conselho 2001/220/JAI de15 de Março fornece, no seu art.1º, um conceito básico inicial para esta análise relativa ao es-tatuto de vítima em processo penal. Estabelece ainda que beneficiem de um estatuto especí-fico, adequado à sua situação em sede processual (art.2 nº2), ao qual deve ser dada especialatenção tratando-se de um menor que preste testemunho em audiência pública (art.8º, nº4).Por outro lado o impulso para que se estabeleça a abertura de procedimentos criminais que te-nham por base o crime de TSH não depende de queixa da vítima (art.7º nº1).A Directiva 2004/81/CE do Conselho de 29 de Abril regula a autorização de título de resi-dência concedido aos nacionais de países que sejam vítimas de TSH ou objecto de uma acçãode auxílio à imigração ilegal e cooperem com as autoridades competentes. Essa autorização (vá-lida por um período mínimo de seis meses de acordo com o art.8 nº3) deve ser concedida sobas seguintes condições cumulativas (art. 8º nº1 e nº2):

• Demonstração de uma vontade clara de colaborar por parte da vítima;• A vítima não se encontrar em contacto com os presumíveis autores do crime;• Relevância do seu depoimento para investigações ou processos judiciais.

Uma crítica imediata ao primeiro destes requisitos reside no facto de estarmos perante umcrime que implica a violação dos Direitos Humanos, proteger a vítima somente em troca dasua participação activa nos procedimentos criminais enfatiza a ideia errada de que a única ví-tima nos casos de TSH é o Estado. Há quem adiante que a vítima, ao colaborar, se expõe detal forma que existe um segundo momento de vitimização.

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A Directiva prevê igualmente a possibilidade das vítimas disporem de um prazo de reflexãopara se desligarem definitivamente dos autores do crime e, simultaneamente, tomarem umadecisão informada sobre as consequências de uma possível colaboração com as autoridades,cujo início e duração é deixado à discricionariedade dos Estados-Membros. Durante este prazobeneficiam de assistência médica, ou outra necessária, bem como da possibilidade de serem in-seridas em programas de reintegração social, de acordo com os arts.9º e 12º respectivamente.Quando se trata de menores a Directiva exige que seja, antes de tudo, considerado o interessesuperior da criança aquando da aplicação do seu regime. No caso de um menor não acompa-nhado, segundo o art.10º, as autoridades devem desenvolver todos os esforços para que sejadeterminada a sua identidade, localizar a família existente e promover a sua representaçãolegal. O legislador nacional, por seu turno, optou por defini-la como “pessoa em relação à qual hajamadquiridos indícios da prática desse crime, por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal,ou quando o coordenador do Plano Nacional contra o TSH entender que existem motivos sufi-cientemente ponderosos para crer que essa pessoa é vítima de tráfico e determina que a necessidadede protecção se mantém enquanto houver risco de a vítima, os seus familiares ou pessoas que comela mantenham relações próximas serem objecto de ameaças ou ofensas a bens pessoais ou patrimo-niais, praticadas pelos agentes do tráfico”27. Nesta matéria importa elencar os seguintes diplomas no ordenamento jurídico português demaior relevância na protecção às vítimas de TSH:

• Lei nº 93/99 de 14 de Julho28 que regula a aplicação de medidas de protecção de testemu-nhas em Processo Penal; - A aplicação dessas medidas, quer gerais quer pontuais, dependeda demonstração de factos que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação datestemunha, entendida como toda a pressão ou ameaça, directa, indirecta ou potencialexercida com o objectivo de condicionar o seu depoimento ou declarações (art.4º nº2);• Lei nº23/2007 de 04 de Julho – Lei de Estrangeiros - cujo Capítulo VI contém a Secção V(artigos 109º a 115º) dedicada à autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas oude acção de auxílio à imigração ilegal. – Consagra finalmente, à luz da Directiva2004/81/CE do Conselho de 29/04/2004, uma protecção para as vítimas de TSH ab-sorvendo as recomendações que têm sido emitidas pela comunidade internacional: auto-rização de residência (art.109º), período de reflexão de, no máximo, 60 dias (art. 111º),especial atenção dada à vítima menor (art. 114); • Decreto-Lei nº368/2007 de 05 de Novembro – define, num artigo único, o regime espe-cial de concessão de autorização de residência a cidadão estrangeiro identificado como ví-tima do crime de tráfico de pessoas;

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27. Decreto-Lei 368/2007 de 05/Novembro,Diário da República I Série.28. Decreto-Lei nº190/2003 de 22 de Agosto que a regulamenta.

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• Plano para Integração dos Imigrantes – Resolução do Conselho de Ministros nº 63-A/2007de 03 de Maio – Enfrenta o facto do fenómeno migratório ter assumido um novo contornopara a sociedade portuguesa, acarretando uma responsabilidade para a integração destescidadãos. Os pontos 119 a 122 debruçam-se especificamente sobre o TSH apontandoquatro grandes medidas que se harmonizam com o conjunto legal em vigor, traçandocomo metas específicas: a) o reforço na protecção legal e apoio jurídico às vítimas, in-cluindo crianças; b) a criação de Centro de Acolhimento para vítimas de TSH; c) a cria-ção de um Observatório de TSH; d) o desenvolvimento de estratégias mais eficazes decombate ao TSH;• Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto – Código de Processo Penal – no que respeita ao reforçoda tutela das vítimas de crimes, estabelece-se que o Tribunal informa a vítima da liberta-ção ou fuga do arguido ou condenado, sempre que se entenda que pode existir perigopara a vítima. Para proteger directamente testemunhas e vítimas de TSH, prescreve-se oregime de declarações para memória futura no inquérito (art. 271 nº1) não sendo tam-bém autorizada, aos órgãos de comunicação social, por qualquer meio, a publicação daidentidade da vítima salvo se nisso ela consentir expressamente ou se o crime for praticadoatravés daquele meio (art. 88º nº2 c)). São permitidas, em sede de audiência de julga-mento, a leitura das declarações para memória futura sem necessidade de acordo do MP,do arguido ou do assistente (art.356 nº2 a)), anulando o risco de perda desse importanteelemento de prova testemunhal.

O mais recente Relatório sobre TSH elaborado pelo Departamento de Estado Norte-Ameri-cano (Junho de 2009)29 salienta que o Governo Português, no que respeita à protecção de ví-timas de TSH, tem desenvolvido esforços para lhes prestar assistência bem como a encorajá-lasa depor contra os seus traficantes, contribuindo de forma determinante para esse facto toda areforma legislativa iniciada em 2007. Contudo é apontado um enorme fosso entre o númerode vítimas identificadas e as que efectivamente aceitaram assistência e protecção (138 para 22)apesar de implantados os modelos de intervenção (sinalização, identificação e integração) e demonitorização (recolha e análise de dados quantitativos e qualitativos relativos ao TSH)30.Quem são afinal as vítimas de TSH, qual a sua proveniência, a sua motivação, quais as razõesque as levaram a dar um salto no vazio deixando as suas raízes no passado? O referido Relatório31 adianta 800 mil (em trânsito ou destinadas aos E.U.A) das quais 80%são do sexo feminino (70% são traficadas para fins de exploração sexual) e 50% são menores,

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29. “Trafficking in Persons Report”. United States Department of State Report. Disponível na Internet:http://www.state.gov – Acedido em 05 de Julho de 2010.30. Estes modelos funcionam em rede, visando articulação dos vários OPC no térreo (PSP, GNR e SEF, PJ),ONG, com papel activo no combate a este crime, o Observatório e o Coordenador do I Plano Nacional Contra oTSH (nomeado através do Despacho 1596/2008, publicado na II Série do D.R. nº10 de 15 de Janeiro).31. Idem.

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números esses que não incluem as vítimas traficadas dentro dos seus próprios países, como fre-quentemente é verificado no tráfico de mão-de-obra. A Organização Internacional do Traba-lho (OIT) adianta que actualmente estimam-se em 12.3 milhões os seres humanos vítimas detráfico de mão-de-obra (engloba trabalho forçado ou como pagamento da sua comida e alo-jamento, trabalho infantil e exploração sexual). Urge identificar não só países de origem, trân-sito e destino como também populações-tipo para que as temidas cifras negras sejamsubstancialmente reduzidas. “Buscar um conhecimento rigoroso e actual sobre o tráfico é, sem dú-vida, um dos aspectos centrais de qualquer estratégia de intervenção, impedindo que ocultação seconfunda com ignorância do problema”32. Traçar um perfil tipo de vítima é possível mas, dada a complexidade que envolve o TSH, po-derá limitar a análise: a sua maioria é originária de países com condições sócio-económicas pre-cárias. Contudo há exemplos de pessoas que são traficadas por circunstancialismos subjectivos,não cabendo no perfil estereotipado de vítima de TSH: têm a sua escolaridade obrigatória in-completa, fogem de abusos familiares reiterados ou relações sentimentais falhadas, são de-sempregados de longa duração, não tendo qualquer perspectiva de futuro. Surpreendentementeexistem vítimas cuja educação é elevada, falam mais de uma língua, têm relações estáveis eemprego mas a globalização permite-lhes viajar de forma rápida e acessível, aguçando a cu-riosidade para uma vida completamente diferente em outro país. O ponto comum a todas éa vontade de agarrar o que lhes parece uma oportunidade de emprego demasiado boa para serverdade, caindo posteriormente numa teia de oferta e procura da qual recrutadores tiram o má-ximo partido das suas fragilidades, da pobreza, do desemprego e da discriminação.Relativamente às crianças, parcela significativa das vítimas de TSH, os processos de recruta-mento envolvem terceiros sobretudo pais, familiares ou responsáveis pela sua educação que,confrontados com a oportunidade de lucro, paralelamente à desresponsabilização, colaboramnum esquema de tráfico mais sofisticado.A Europol (Serviço Europeu de Polícia)33, distingue dois tipos de factores - push and pull - quetransformam este vasto leque de pessoas em vítimas de TSH:

•Desemprego elevado;•Discriminação de género reflectidas também no mercado de trabalho;•Falta de oportunidade para melhorar a qualidade de vida;•Discriminação com base no sexo ou na etnia;

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32. Conferência sobre Tráfico de Seres Humanos e Género no âmbito da Presidência Portuguesa da União Europeia,Porto, Outubro de 2007, Background Paper, p.6. 33. Agência Europeia orientada para a cooperação policial, criada pela Decisão do Conselho 2009/371/JAI de 10 deAbril – publicada no Jornal Oficial da União Europeia L121 em 15/05/2009.

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•Pobreza.•Fuga de algum tipo de perseguição, violência ou abuso;•Fuga de violação de Direitos Humanos;•Colapso da infra-estrutura social;

•Situações conjunturais como conflitos de vária ordem, guerra;•Percepção das oportunidades em países/regiões desenvolvidos.

•Melhoria da qualidade de vida.•Perspectivas de uma educação com mais qualidade;•Ausência de discriminação ou abuso;•Reforço dos patamares mínimos para o respeito dos direitos individuais;•Melhores oportunidades de emprego;•Procura de trabalho pouco qualificado, mal remunerado para os parâmetros do país des-tino;•Procura de trabalhadores para a indústria do sexo;•Salários mais elevados e melhores condições de trabalho.

Determinante ainda o momento da identificação da vítima, podendo ocorrer em diferentesfases do ciclo de TSH – recrutamento, transporte, acolhimento que implica atribuição e efec-tivo exercício das funções. Contudo é certo que a identificação de vítimas de TSH no país dedestino é comum sobretudo por razões relacionadas com a consumação do crime, ou com adiferença que a vítima tantas vezes marca, quer do ponto de vista étnico, cultural, social ouaté mesmo comportamental. Há um longo caminho já percorrido no que respeita à busca de um perfil de vítima de TSHassociado a vulnerabilidades sobretudo de mulheres (a “feminização da pobreza”) e crianças.Importa fazer também um levantamento quantitativo cada vez mais preciso das vítimas, in-terpretá-lo enquadrando-o espacialmente, uma vez que o tipo de vítimas varia consoante a re-gião mundial (por exemplo em África e na Ásia o número de menores traficados é bastantemaior que o de mulheres adultas, situação contrária verifica-se no Leste Europeu). Por fimdesencadear medidas quer preventivas quer ao nível do auxílio, protecção e reintegração dasmesmas, num constante esforço de adaptação às suas necessidades específicas, eliminando pro-gressivamente a ideia de que as vítimas de TSH são de algum modo cúmplices deste crime,abolindo a violência sobre elas exercida com a aplicação de medidas punitivas no lugar das decariz protector, adequadas à sua condição vulnerável.O impacto que o TSH tem nas suas vítimas pode ser devastador: extorsão, condições de vidadeploráveis, desnutrição, ausência ou deficiente assistência sanitária, medo constante, abortos

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forçados ou homicídios impunes. As vítimas tornam-se dependentes, isoladas socialmente,vulneráveis, expostas ao racismo, à xenofobia, à discriminação e intolerância de vários tipos.O TSH tem repercussões nefastas na saúde, física e mental, das suas vítimas quer a curto quera longo-prazo: o transporte provoca, logo à partida, possível risco de vida devido à inanição,ao risco de afogamento, sufocação, etc. As vítimas de exploração sexual são expostas a todo otipo de violências físicas e psicológicas, frequentemente contagiadas com doenças sexualmentetransmissíveis. Por fim, as que conseguem escapar, que são protegidas, apoiadas e voltam às suasorigens enfrentam, além da sua dor, do sentimento de culpa por terem falhado na sua aven-tura, a desonra e o ostracismo, a rejeição das suas próprias famílias, factores que aumentam orisco de revitimização.A aposta na prevenção do TSH pretende, nas potenciais vítimas – grupos de risco, sensibilizá-las para as múltiplas formas de aliciamento, para os perigos da tentação para aceitarem pro-postas irreais, tentando, por fim, valorizar o bem vida, as relações familiares ou comunitárias,apresentando-lhes uma alternativa que em nada se identifica com o TSH. Por outro lado aoserem colocados os holofotes sobre a procura, alimentando a consciência social, identificandoclientes com criminosos, tem um efeito dissuasivo por exemplo na indústria do sexo, no tu-rismo sexual e eventualmente nos recrutadores de mão-de-obra escrava que, ao saberem da pos-sibilidade eminente de fiscalização, têm tendência para se retraírem. O combate ao TSH requer uma coordenação de todos os actores envolvidos nos mais diver-sos níveis. As ONG têm um papel fundamental sobretudo no âmbito da prevenção e do con-tacto próximo com a potencial ou efectiva vítima, reencaminhando-a, aconselhando-a,protegendo-a, sem o eventual estigma de se tratar de um OPC. A identificação das vítimas éo primeiro passo a dar, requer profissionais especializados e infra-estruturas (reforçadas nocaso de se tratar de uma criança) para que se sintam em território seguro num momento degrande vulnerabilidade. Posteriormente lidera o factor tempo para que a confiança necessáriaseja estabelecida e a vítima secundarize o trauma e o medo, falando sobre a sua realidade. Apósesta fase inicial, cabe ao Estado oferecer-lhes um período de reflexão razoável – em Portugalvai de 30 a 60 dias – e um visto de residência, se assim o desejar. Segue-se o papel determi-nante da assistência social que deve prover as necessidades imediatas da vítima e TSH34 mas,a médio e longo-prazo, permitir que criem defesas, accionando a sua reintegração social,abrindo-lhes rumos reais e viáveis para que escape definitivamente do tráfico, da violência, daexploração. Esta assistência deve efectivar-se quer nos países de destino, quer nos de origemou em quaisquer outros por onde possa passar a vítima de TSH. Importa que as vítimas sejam

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34. De localização secreta, o Centro de Acolhimento e Protecção (CAP) é o único local que recebe, em Portugal, asvítimas de tráfico e as tenta reintegrar em sociedade. Nesta casa abrigo as vítimas contam com o apoio de um psi-cólogo, um jurista e quatro monitores. 35. Human Rights Watch Report 2001. Disponível na Internet: http:// www.hrw.org/reports/world/reportsAcedido em 20/08/2009.

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acompanhadas adequadamente durante todo esse tempo para que recuperem o controlo dassuas vidas. Esse processo contribui de uma forma decisiva para a recolha de informação, paraaperfeiçoamento de procedimentos, delineando-se estratégias de combate adequadas que pro-movam a efectiva protecção de vítimas identificadas.A magnitude do TSH aumenta ao mesmo ritmo que as assimetrias sócio-económicas globais,as vítimas – a sua origem, a sua fragilidade – e a negligência dos governos mundiais para comelas, numa espécie de banalização da desigualdade. Por tudo isso o TSH tem sido mencio-nado como o lado negro da globalização ecoando, na comunidade internacional, a frase de alertapara a máxima protecção das vítimas: desperate people will resort to desperate measures35.

“Digam o que disserem, o dinheiro sujo mata a fome, tal como o limpo”36 .

A vertente de actividade económica do TSH, cuja busca de lucro envolve o uso da coacção,engano, fraude, violência física e psicológica, isolamento, exploração, poderá ser determinantena investigação criminal. Auxílio à imigração ilegal e TSH são, confundidos frequentemente,ambos envolvem um certo número de pessoas que se associam, constituindo redes e diversascomplexidades, especializando-se em cada tarefa específica, agindo movidas pela obtenção delucro. Algumas dessas pessoas são utilizadas com o desconhecimento de que estão a participarnuma rede cujo fito é cometer, pelo menos, algum destes dois crimes. A dimensão das redes,a sua organização e modus operandi são de uma diversidade que dificulta a padronização: umastêm hierarquia definida que deve ser estritamente respeitada, outras organizam-se horizontal-mente de forma flexível, muitas vezes com bases ad hoc sem definições claras e comando. Ou-tras ainda operam a um nível familiar em que todos os elementos se conhecem. Existem aindaex-elementos de algumas dessas redes, ou até mesmo ex-vítimas, que devido a antigas cone-xões e conhecimentos que restaram dessa época actuam como elo em alguma altura da rota oucomo recrutadores. Vários estudos, contudo, apontam para a divisão destas redes em três sub-categorias:

• Pequena escala: envolvem poucos membros, cobrem todo o ciclo do TSH, traficam umdiminuto número de pessoas anualmente, com lucros menos atractivos mas ainda assim,na sua perspectiva, compensadores; • Média escala: envolvem um maior número de membros que a anterior e também maiorespecialização em certo tipo de tráfico numa zona específica, o que implica infra-estrutu-ras solidificadas que permitam o recrutamento, o transporte e a obtenção de documen-tos falsos tanto nos países de origem, como de trânsito ou destino;

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36. PÉREZ-REVERTE, Arturo “A Rainha do Sul”,Ed.Asa.

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• Larga escala: tem as mesmas capacidades que as anteriores mas envolvem contactos aomais alto nível, tanto no país de origem como no de destino. Estas redes são de tal modocomplexas e bem organizadas que, contrariamente às anteriores, controlam todo o negó-cio, todo o ciclo do TSH, maximizando os lucros.

As redes organizadas podem ser fechadas sobre si mesmas, dedicando-se à corrupção estraté-gica para que a sua actividade flua sem qualquer impedimento, ou podem recrutar pessoas,“soldados”, de alguma forma ligadas ao mundo do crime, gangsters de rua, toxicodependen-tes, mendigos que em algum momento, e a troco de pouco, se poderão transformar em trafi-cantes amadores. As redes mais conhecidas, possuidoras de todo o know-how criminoso,porque há muito estabelecidas em outras actividades ilícitas, como o tráfico de droga ou dearmas, são a máfia japonesa – yakuza - a russa, a chechena, a italiana, a albanesa e as tríadeschinesas. Organizações criminosas sul-americanas têm vindo a ganhar relevo sobretudo notráfico de mulheres e crianças que exercem, com frequência, como actividade alternativa a ou-tros tráficos. Conclui-se, pela diversidade descrita, que “trafficking falls more in the “crime thatis organized” category than it does into true organized crime” (Finkenauer, 2001).As autoridades responsáveis por investigar o TSH têm que escavar a realidade abaixo da su-perfície visível, avaliar a capacidade e desenvoltura de uma rede para corromper as estruturasmédias e elevadas das autoridades dos países em que pretendem actuar. Uma situação de TSHpode estar camuflada numa “comum” rede de imigração ilegal ou pode apresentar um dosseus tentáculos através de uma empresa cuja principal actividade é o recrutamento e selecçãode trabalhadores. Por outro lado a sua mudança rápida e engenhosa de modus operandi cria fre-quentemente um certo desfasamento acerca da realidade do terreno, como se de observaçãode estrelas se tratasse que, por distarem a milhares de anos-luz, projectam ainda uma imagemmeramente virtual após a sua extinção.Investigar TSH torna-se um trabalho complexo, intenso, paciente e frustrante pois as autori-dades deparam-se também com legislação frágil ou até mesmo inexistente, não só relativa-mente ao crime em concreto mas a toda uma rede de outros a ele interligados, como porexemplo a corrupção e o branqueamento de capitais. A acrescentar a dificuldades de ordemprática, como a componente étnica destas redes ou a sua transnacionalidade. Recorrer a meios clássicos de obtenção de provas como a vigilância, as escutas, o exame dedados financeiros, entre outros, não é suficiente nesta luta desigual autoridades-traficantes: ainformação policial, além de ser devidamente tratada por analistas especializados, impõe-se quecircule entre os vários OPC nacionais. Paralelamente devem ser promovidos mecanismos decooperação policial/judiciária internacionais que promovam a celeridade e eficácia37 no com-bate à criminalidade transnacional.Esta actividade orientada para o lucro baseia-se, para o tornar cada vez mais compensador, naoferta e na procura. As leis do mercado determinam o seu sucesso como qualquer outra acti-

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vidade económica legal: a oferta é preenchida nos países menos desenvolvidos económica e so-cialmente ou em territórios temporariamente assolados por conflitos provocando um êxododa população, fragilizando-a às mãos de oportunistas redes de TSH. A procura integra pessoas,individuais ou colectivas, que, mais ou menos conscientes da vulnerabilidade das vítimas re-solvem tirar disso proveito: o tráfico de crianças será útil tanto para casais com problemas deinfertilidade, que poderão abreviar o moroso processo de adopção como para redes de pedo-filia ou empregadores que consentem escravatura para trabalhos minuciosos; o tráfico de mu-lheres será útil para quem tem por hábito recorrer a serviços de prostituição sem se importarcom as condições em que seus objectos de prazer vivem. Criou-se o conceito de turismo sexual,um nicho de mercado alimentado por agências de viagens exploradoras desse filão. Traçar rotas das vítimas de TSH pode ser o mesmo que traçar as rotas do dinheiro que esta ac-tividade envolve. Sabe-se que o valor da dívida da vítima de TSH determina, por exemplo, otempo que os traficantes irão retê-la e explorá-la, que os custos das viagens variam consoantea zona do mundo da qual a vítima é originária e para a qual será traficada, que a forma de fi-nanciar essa mesma viagem varia dependendo tanto da origem da vítima (as famílias e ami-gos africanos costumam unir esforços para financiar os traficados) como das exigências dostraficantes.O fenómeno de TSH, que se julga ter iniciado quase espontaneamente em pequena escala, temrevelado indícios de lucros cada vez mais chorudos. Este factor é determinante para atrairgrandes organizações criminais que exercem a sua actividade sob um cálculo de risco mínimo.Rotas maiores, fases do ciclo de TSH mais complexas, uso de transportes e tecnologia sofisti-cada fazem presumir, dado o aumento de capital envolvido, que o interesse das grandes orga-nizações criminais cresceu em detrimento dos pequenos traficantes. De acordo com o sub-tipode tráfico em causa é calculado qual o valor a ser dispendido na manutenção da exploração dasvítimas, sendo considerado mais rentável o de mulheres e crianças para exploração sexual (bas-tam poucos elementos para controlarem as vítimas que, chegadas ao seu destino, são forçadasa trabalhar para rapidamente gerarem lucros). A exploração deve ser ainda contextualizadaculturalmente, o que é aceite num país e tido como absolutamente normal pode ser, noutro,social ou legalmente sancionado. Tal acontece com as expectativas dos próprios traficados: emdeterminados países a vida quotidiana é de tal forma dura e sem perspectivas que muitos pre-ferem correr o risco de serem explorados em países ditos de Primeiro Mundo, de viverem emcondições sub-humanas, com horários de trabalho medievais e pagamentos exíguos para,

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37. Actualmente em discussão na UE a Decisão de Investigação Europeia – Proposta no Documento do Conselhoda União Europeia 9288/10 de 03 de Junho – que visa substituir um corpo jurídico fragmentado e ineficaz, im-plantando, simultaneamente, um sistema que facilita a obtenção de provas pelas autoridades judiciárias no âmbitode investigações penais transnacionais. A proposta permitirá àquelas autoridades solicitarem aos seus homólogos a in-vestigação, partilha e recolha de provas com base no princípio do reconhecimento mútuo, bastando para tal o preen-chimento de formulário único.

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posteriormente, voltarem aos seus países onde o pouco poupado, na Europa por exemplo,poder-se-á transformar numa pequena fortuna, permitindo-lhes uma posição confortável parao resto da vida. A utilização de ferramentas eficazes para diminuir os lucros desta actividade tem demonstradoresultados sobretudo aquando da efectiva aplicação das leis que lutam contra o branquea-mento de capitais (efectuado através da criação de empresas-fachada, de remessas de dinheiropara contas no estrangeiro, de preferência em paraísos fiscais ou colocando bens adquiridos emnome de terceiros de confiança), o confisco e penhora de bens, os procedimentos indemniza-tórios em direito civil ou da adaptação do sistema fiscal para que os traficantes sejam efecti-vamente taxados.Os factores económicos têm aqui um papel determinante, por um lado os traficantes calcu-lam os riscos/benefícios gerindo a actividade como se de uma empresa se tratasse alterando omodus operandi, as rotas ou os meios de transporte, se necessário, para reduzir os custos. Porseu lado os traficados procuram uma vida melhor, com perspectivas evolutivas económico-socialmente inexistentes ou negadas nos seus países de origem. Escapar à pobreza e enrique-cer às custas dessa ânsia vulnerável, são os dois motores complementares para que o TSH sejauma actividade em ascensão.

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A realidade deste crime é bastante difícil de investigar, exigindo crescente necessidade de sen-sibilização dos OPC, acompanhada de formação especializada. Partindo da análise do casoconcreto poder-se-ão traçar directrizes de investigação, determinar situações-tipo, outras si-milares mas de consequências distintas, identificar especificidades, compreender o grau decomplexidade de cada situação que lhes seja apresentada, reencaminhar as vítimas adequada-mente. Definidas competências legalmente39, importa sentir a sensibilidade dos vários actores no ter-reno: deve ser criada e alimentada interdependência entre polícias de proximidade e eventuaisunidades especializadas de investigação. Paralelamente a articulação da investigação criminal(policial e judicial) com entidades na área da segurança social, da saúde, das finanças, da edu-cação, na área dos transportes, com as autarquias locais, empresas de outsourcing, bem comoONG que, devido ao seu conhecimento da realidade quotidiana, contribuem para a identifi-cação de vítimas de TSH em diversos contextos.

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38. “Inspirado na frase “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” , Saramago, José , “Ensaio sobre a Cegueira” Edi-torial Caminho.39. Em Portugal têm competência para investigar o crime de TSH o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – nos ter-mos do art. 188º nº1 da Lei dos Estrangeiros - e a Polícia Judiciária - de acordo com o artigo art. 7ºnº4 c) da Lei deOrganização de Investigação Criminal (Lei 49/2008 de 27 de Agosto publicada na 1º Série do DR nº165).

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Problema inicial reside na detecção da situação de TSH: a polícia de proximidade é a primeiraa ser confrontada com as denúncias da população ou com as observações diárias de pequenasmetamorfoses sofridas na sua comunidade. Essa detecção tem diferentes origens mas, tra-tando-se de um crime público, na sua maioria, é manifestada através de denúncia sobretudoanónima - possivelmente devido à delicadeza do crime e ao grau de perigosidade das organi-zações criminosas - ou efectuada por pessoas que, de alguma forma, estão relacionados coma(s) vítima(s).As vítimas devem ser acompanhadas40 por agentes de autoridade especializados na investiga-ção deste crime que as tratarão com o respeito e confidencialidade exigidos à altura da situa-ção, proporcionando-lhes acompanhamento, paralelamente, por ONG que deverá(re)construir alicerces à margem das diligências processuais.Após a detecção é necessária perspicácia para entender se estão presentes os característicos “sin-tomas” neste tipo de vítimas, pessoas sob controlo de traficantes durante um certo período detempo: restrições variadas à liberdade, sinais físicos e psicológicos de violência, dificuldades decomunicação sobretudo devido à falta de domínio da língua, percurso descrito desde o paísde origem ou desnorte geográfico. Devem ser ainda considerados como indícios os docu-mentos que a vítima tem ou não em sua posse e se estes, a existirem, forem falsos. O com-portamento da vítima apresenta invariavelmente sinais claros de medo, de depressão e de forteinsegurança. Além destes indícios, considerados genéricos, importa considerar outros, decor-rentes da especificidade do tipo de TSH a que a vítima foi submetida41. As autoridades devem libertar-se de rótulos e ideias preconcebidas quanto a conceitos como“trabalhadores”, “prostitutas”, “imigrantes ilegais” bem como de perfis-padrão de vítimas, doconceito de “vítima” propriamente dito no sentido de querer por sua iniciativa expor-se, pro-curar denunciar e pedir ajuda. A complexidade do crime abre, também neste aspecto, umleque de dificuldades ultrapassadas pela experiência e sabedoria dos OPC.O primeiro contacto com a potencial vítima requer prévia formação – apoiados em linhas prédefinidas, especializados para diversas vertentes de TSH e preparados para possível menoridadeda entrevistada - perspicácia e paciência. Considerando-se livre de preconceitos o agente devetentar criar laços de confiança42, oferecendo-lhe a oportunidade para finalmente contar a sua

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40. Nos casos de vítima menor os agentes de autoridade devem de imediato desencadear procedimentos céleres paraque exista um tutor que a acompanhe.41. Na exploração sexual , por exemplo, as vítimas são frequentemente controladas através de telemóvel que lhes éfornecido pelos traficantes. Já nos casos de exploração laboral são expostos a violência e a um número excessivo dehoras de trabalho, uma das condições que se revelaram opostas do acordado num primeiro momento. Por último, naescravatura doméstica, a vítima é mantida no interior da residência, sob coacção, sem qualquer respeito pelos direi-tos laborais que lhe assistem.42. Eliminando desconfiança natural das vítimas, que como imigrantes ilegais que são, desenvolvem relativamenteàs autoridades locais. Julgam que os querem deportar para os países de origem, corromper ou simplesmente tememameaças (a si e, frequentemente, à família) dos seus traficantes.

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história num ambiente acolhedor (a entrevista deve ser conduzida por dois investigadores)longe de qualquer influência de terceiros. É fundamental que lhes seja proporcionada infor-mação legal de forma compreensível sobre os seus direitos enquanto vitima de TSH – des-mistificando a ideia recorrente de que não têm direito a ser livres - e aconselhamento sobreprogramas nacionais que as poderão acompanhar visando apoio imediato e futura reintegra-ção. Qualquer abordagem deve considerar o impacto do medo das vítimas que joga semprecontra o sucesso da investigação criminal.Identificar traficantes é tarefa igualmente delicada: actuam em diversos pontos geográficos dasrotas distribuindo-se pelas actividades características do ciclo de TSH. Habitualmente inseri-dos em redes que, quase por definição, têm um projecto criminoso - que envolve múltiplas ac-tividades e tipos de crime - desenvolvendo-se no seio de um grupo social específico. Contudoé nos países de destino, onde a actividade é desenvolvida por um maior período de tempo, queos indícios da existência de TSH podem ser mais evidentes. A identificação de pessoas que tra-balham em bordéis, hotéis, saunas, bares interligados com a prostituição, concepção e manu-tenção de sites que oferecem, por exemplo, serviços sexuais, ou nas ruas, adultos controlandomenores que se dedicam a pequenos furtos ou à mendicidade podem produzir informaçãofundamental nesta luta desigual. De considerar pessoas cujo registo criminal anterior revela en-volvimento em crimes como imigração ilegal ou de lenocínio, assim como verificar-se, em suaposse, valores que permitam suspeitar de proveniência ilícita ou de documentos de identifi-cação de vítimas (sobretudo passaportes) retidos indevidamente. Alguns traficantes foram ví-timas de TSH no seu passado, chegando mesmo a oferecer serviços sexuais conjuntos,controlando de perto todas as actividades da vítima. Questões práticas surgem às autoridades policiais quando confrontadas com vítimas, teste-munhas e traficantes. Importa saber onde procurar indícios, o que procurar que faça efecti-vamente prova de preenchimento do tipo, quais as questões a formular e como colocá-lascorrectamente43. Uma investigação bem sucedida deste crime implica que a rede seja des-mantelada bem como os traficantes identificados, reflectindo o despacho de acusação a mi-nuciosa actividade de recolha da prova eliminando, na medida da mais exacta reprodução darealidade, as probabilidades de uma absolvição. A corroboração do testemunho da vítima devedispor de todos os meios de obtenção de prova permitidos – desde vigilâncias, intercepções te-lefónicas às provas forenses - com especial enfoque na investigação de transacções financeiras44

que poderão fornecer lugares e períodos de tempo, entidades pagadoras, modos de pagamento

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43. Existem, ao nível nacional e internacional, guias orientadores da acção dos OPC dado o teor específico destecrime. É disso exemplo o “Anti-Trafficking Training for the Law Enforcement Offcers” elaborado pelo InternationalCentre for Migration Policy Development.44. Esquemas de financiamento da actividade criminosa como o branqueamento de capitais, fugas fiscais e como osnegócios variados, aparentemente lícitos.

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envolvidos, conexões entre indivíduos e o fosso entre lucros legais e actividade criminosa. Urgeum maior investimento na fiscalização das entidades empregadoras e dos angariadores de mão-de-obra acompanhado de adequada regulamentação de sectores em que os imigrantes nor-malmente se inserem (construção civil, agricultura, prostituição, trabalho doméstico). Aoanalisarmos os métodos e os fins dos traficantes de crianças entende-se a urgência de lei penalpor um lado, e das polícias e a segurança social por outro, de se debruçarem sobre a porno-grafia infantil e a sua divulgação via Internet, bem como sobre as leis e procedimentos deadopção, simplificadas ao nível internacional, compensando os nacionais, demasiados moro-sos e burocráticos que apelando ao aumento de um mercado paralelo.O sucesso de uma investigação dependerá, da transformação da vida das vítimas, proporcio-nando-lhes efectivas condições de tratamento físico e/ou psicológico, se necessário. A efectivareintegração social das vítimas, quer no país de destino quer no de origem – 90% das vítimasidentificadas em Portugal manifestam vontade de regressar ao seu país - encerra, com chave-de ouro, qualquer investigação de TSH.Há um longo caminho a percorrer para que o TSH seja compreendido e combatido nas suasdimensões preventiva, punitiva e reintegradora. Por ora importa investir na observação destefenómeno, cujas múltiplas especificidades impedem a percepção da sua real quantificação maspermitem analisar traficantes, vítimas, rotas-tipo e as suas mutações. Thinking Globally, Acting Locally é muito mais do que um (di)lema quando falamos de TSH.As causas das assimetrias globais do nosso planeta são as principais responsáveis pelos grandesêxodos migratórios, pelo desespero, pela luta pela sobrevivência de muitos seres humanos,pela recondução, em última instância, ao caminho da vitimização. Como se adianta, em jeitode conclusão, num estudo referente ao TSH para fins de exploração sexual (Leal&Leal, 2005)“ o desafio da sociedade civil, do poder político, da Media, da academia e agências multilaterais, éo fortalecimento da correlação de forças ao nível local e global, para interferir nos planos e estraté-gias dos blocos hegemónicos, a fim de diminuir as disparidades sociais entre países.”

Bakirci, Kadriye “Human trafficking and forced labour: a criticism of the Internacional Labour Organiza-tion” Journal of Financial Crime, Bingley, Vol. 16, nº 2 (2009), p. 160-165;Bell, R. E., “Sex trafficking : a financial crime perspective” Journal of Financial Crime, London, V.9, n.º 2(November 2001), p. 165-177;Costa, José de Faria “A globalização e o tráfico de seres humanos : o pêndulo trágico da história e o direitopenal” Revista de Legislação e de Jurisprudência nº 3944(Maio-Junho de 2007), p.258-265;

Anabela Filipe

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Dalbora, José Luis Guzmán “O tráfico de pessoas e o problema do seu bem jurídico” Revista Portuguesa deCiência Criminal, Coimbra, Ano 18, n.º 4 (Outubro-Dezembro 2008), p. 447-464;Davin, João “A criminalidade organizada transnacional : a cooperação judiciária e policial na U.E”.- 2.ª ed. re-vista e aumentada.- Coimbra : Almedina, 2007;Finkenauer, J.O.“Russian Transnational Organized Crime and Human Trafficking” (2001) Kyle, D. and R.Koslowsky Ed.;Leal, Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima (2005) “Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins deexploração sexual comercial: um fenómeno transnacional” – SOCIUS Working Papers – Centro de Investiga-ção em Sociologia Económica e das Organizações, Instituto Superior de Economia e Gestão, UniversidadeTécnica de Lisboa;Mendes, Paulo de Sousa, “Tráfico de pessoas” Revista do CEJ, [Lisboa], 1.º Semestre, n. 8 (2008) Especial, p.167-178, Jornadas sobre a revisão do Código Penal. Estudos; McGrath, Mike “Slavery in Britain”, Police Review, London, Vol. 116, n. 5960 (4 January 2008), p. 16-19;Munro, Vanessa E.“A Comparative Study of Responses to the Trafficking in Women for Prostitution” – Bri-tish Journal of Criminology (The) – Oxford, vol.46, n.2 (March 2006);Neves, João Ataíde das, “Tráfico de seres humanos : o que fazer?” Segurança e Defesa, p. 70-75, N. 7 (Julho- Setembro 2008), Lisboa;Okereke, Godpower “The international trade in human beings : a critical look at the causal factors “ Crimeand Justice International, Chicago, V. 21, n. 86 (May-June 2005), p. 4-17. Disponível em: http://www.cjcen-ter.org/documents/pdf/cji/Cji0505-06.pdf;Patto, Pedro Maria Godinho Vaz “O crime de tráfico de pessoas no código penal revisto: análise de algumasquestões”Revista do CEJ, [Lisboa], 1.º Semestre, n. 8 (2008) Especial, p. 179-203 Jornadas sobre a revisãodo Código Penal. Estudos;Rodrigues, Anabela Miranda,“O papel dos sistemas legais e a sua harmonização para a erradicação das redesde tráfico de pessoas” - Revista do Ministério Público, Lisboa, A.21,n.84 (Outubro-Dezembro 2000), pp.15-29;Santos, Boaventura Sousa (2001) “Globalização: fatalidade ou utopia?” Porto, Ed. Afrontamento;Santos, Boaventura Sousa; GOMES, Conceição; DUARTE, Madalena; BAGANHA, Maria Ioannis (2007)“Tráfico de Mulheres em Portugal para fins de exploração sexual” – CES – Coimbra (Setembro);Turner, Jackie, e outro, “Trade secrets: intersections between disaporas and crime groups in the constitutionof human trafficking chain” British Journal of Criminology (The), Oxford, Vol. 49, n. 2 (January 2009), p.184-201.

Investigação Criminal face ao Tráfico de Seres Humanos – (in)definições, dificuldades e desafios

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Análise de Resíduos de Disparo de Armas de Fogo

por MEV / EDERX

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João Freire Fonseca

Perito de criminalística no Laboratório de Polícia Cientifica da PJ desde 2001 e responsável pela “Componente de

Precisão da Secção de Tiro da ADCRPJ”. Licenciado em Física e Mestre em Engenharia Física pela Faculdade de

Ciências da Universidade de Lisboa.

O presente artigo tem por objectivo discutir a utilidade da análise de resíduos de disparo dearmas de fogo por Microscopia Electrónica de Varrimento/Espectroscopia de Dispersão deEnergia de Raios-X, no âmbito da investigação criminal e, em particular, a capacidade de di-ferenciar entre tipos diversos de munições.A análise dos vestígios resultantes de um disparo de uma arma de fogo mostrou que, em geral,não é possível individualizar combinações de elementos característicos da cápsula, do projéc-til ou da carga propulsora, já que os elementos encontrados são comuns em outros materiaisde uso frequente. Apenas o primário (componente da munição que se destina à ignição dacarga propulsora) tem uma composição que inclui combinações incomuns de elementos e,por isso, a detecção de vestígios com essa composição permite associá-los a um disparo. Nestetrabalho, foram analisadas amostras de 24 munições representativas dos grupos de primáriosactualmente existentes em munições de armas de fogo. Essas amostras foram preparadas deforma a evitar contaminações externas e analisadas em detalhe, testando a reprodutibilidadedas composições obtidas. Os resultados permitem concluir que existem combinações de ele-mentos características dos diferentes tipos de primário, mas que não é possível diferenciarentre marcas diferentes que utilizem o mesmo primário. Foi possível com os resultados destetrabalho elaborar uma tabela que associa univocamente os resíduos detectados aos primários.É parte importante deste trabalho, para além da análise dos resíduos propriamente ditos, a de-finição de um protocolo de recolha desses resíduos. Procurando realçar aspectos práticos, éfeita uma avaliação das formas e zonas de deposição dos resíduos em causa bem como da eficácia

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* O presente artigo foi elaborado com base na Dissertação de Mestrado em Engenharia Física apresentada pelo autor,em 2009, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

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com que podem ser recolhidos. Existindo escassas referências quantificadas procura-se, antes demais, um conjunto de números que constitua um ponto de partida para uma refinação futura.O artigo começa com uma descrição breve da evolução das armas de fogo e da sua constitui-ção, continuando com a identificação dos resíduos resultantes do disparo dessas armas. Os re-síduos são separados pela sua origem: a arma de fogo propriamente dita e a munição, e faz-seuma avaliação preliminar do valor probatório dos mesmos. Em seguida é descrita a técnica ex-perimental Microscopia Electrónica de Varrimento, abordando os diferentes métodos de aná-lise e as técnicas associadas de descriminação da radiação X (comprimento de onda e energia).Apresenta-se então a discussão da forma de recolha de resíduos e os resultados obtidos para oconjunto de munições seleccionadas. Finalmente apresenta-se um quadro resumo dos resul-tados e as conclusões deste trabalho.

Um dos desejos mais intrínsecos do homem é a prosperidade. Sendo sapiens, o homem rapi-damente percebeu que para que pudesse prosperar necessitava de sistemas básicos. Estes, ape-sar de terem vindo a evoluir ao longo dos tempos, são na sua essência aquilo que hojedesignamos por saúde, segurança, educação e justiça.Um dos principais factores que permite ao homem viver numa sociedade próspera é a exis-tência de regras, tendo particular importância aquelas que se designam por leis. Estas leis, re-gendo condutas, não têm todas o mesmo valor sendo organizadas em termos de umahierarquia ético-jurídica e aplicadas pelo sistema judicial.No topo desta hierarquia estão as leis penais que estabelecem as condutas consideradas pelasociedade como crime e que atentam contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.Entre estes, têm particular importância os crimes que atentam contra a vida.A correcta identificação dos actos e dos autores destes crimes é objecto de procedimentos es-pecíficos. O conjunto destes procedimentos designa-se por processo penal, sendo componentefundamental deste a investigação criminal.Durante a era moderna, vigorou, na generalidade das legislações europeias continentais, oprocesso inquisitório, em que competia ao juiz inquirir, acusar e julgar. Sendo a mesma pes-soa a reunir, analisar e valorar as provas, existiam fortes limitações às possibilidades de defesado arguido neste método processual.Na sequência da Revolução Francesa o processo penal passa de inquisitório a acusatório. Nestemétodo passa a haver a separação entre quem investiga, quem acusa e quem julga. Tal levou ànatural evolução dos métodos de investigação criminal, evolução durante a qual foram intro-duzidas as ciências nas metodologias de investigação criminal, passando esta a ser multidisci-

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plinar. Tendo actualmente não só um papel fundamental, como constituído um dos verda-deiros garantes dos direitos, liberdades e garantias.O primeiro laboratório forense foi montado em 1910 em Lyon por Edmond Locard (1877-1966), o qual era formado em medicina e direito, e tinha como únicos equipamentos um mi-croscópio e um espectrómetro. É a este cientista que se deve a enumeração do Princípio deLocard. Desde esta data, houve uma grande evolução no conhecimento científico e nas téc-nicas e equipamentos disponíveis num laboratório forense actual. São vários os indícios pas-síveis de terem valor na investigação criminal, desde físicos, químicos, biológicos, geológicose outros. Entre estes encontram-se os vestígios físicos que permitem a identificação do uso dearmas de fogo na prática de crimes.Quando ocorre a deflagração de uma munição de arma de fogo, são produzidos diversos resí-duos com origem nos vários elementos constituintes do sistema arma – munição. Apesar des-tes resíduos poderem ter origem nas ligas metálicas constituintes da arma ou nos elementosda munição como a escorva, a cápsula, a carga propulsora ou o projéctil, apenas os que têmorigem no primário contido na escorva são únicos, pois apresentam uma morfologia e com-binação de elementos nunca detectada noutros enquadramentos.Assim, este artigo descreve este tipo de resíduos bem como a técnica que melhores resultadosapresenta para a sua análise, a Microscopia Electrónica de Varrimento/Espectroscopia de Dis-persão de Energia de Raios-X, conforme ficou originalmente demonstrado no Aerospace Re-port Nº ATR-77(7915)-3.

A principal característica que distingue o ser humano dos restantes animais é a sua capacidadepara criar instrumentos que lhe permitam atingir objectivos para os quais não está natural-mente habilitado. Não sendo dotado de garras ou de uma força significativa que lhe permi-tisse caçar os animais dos quais dependia a sua alimentação e agasalho, o ser humano primitivoviu-se na necessidade de criar instrumentos que lhe possibilitassem ir de encontro às suas ne-cessidades. A evolução destes instrumentos constitui a história das armas, as quais, apesar deatingirem actualmente um elevado grau de complexidade e ter mudado o essencial da sua apli-cação, continuam ainda a permitir a sobrevivência do ser humano tanto como ferramenta au-xiliar da sua subsistência como da sua defesa.As armas permitem uma substancial vantagem sobre terceiros, em particular se forem armasde fogo, razão pela qual são frequentemente utilizadas na prática de crimes. Sendo um dos ob-jectivos da investigação criminal a identificação dos sujeitos envolvidos na prática ilícita, torna-se fundamental identificar quais os vestígios materiais que podem resultar do uso de uma armade fogo. Para tal é necessário compreender o seu funcionamento.

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Considerando as armas de arquitectura moderna, surgidas após a criação do cartucho metá-lico em meados do séc. XIX, podemos considerar que uma arma de fogo é basicamente cons-tituída por um cano de interior liso ou estriado e um mecanismo de disparo, estando ambosmontados num suporte, designado carcaça, que permite empunhá-la. A extremidade do canojunto ao mecanismo de disparo designa-se por câmara e é o local onde se encontra a muniçãoa ser deflagrada.

Figura 2.1: vista explodida de uma arma defogo moderna. [1]

As munições podem estar contidas numdepósito, designado carregador, que ali-menta a câmara a cada disparo, de formaautomática ou manual. O mecanismo dedisparo é constituído por uma peça de co-

mando, designado gatilho, o qual está ligado a um conjunto de molas que accionam, directaou indirectamente, um elemento, designado por percutor, responsável pela deflagração da mu-nição. Para que o projéctil contido na munição seja propulsionado na direcção certa, a extre-midade oposta à boca de fogo, a culatra, é fechada por um elemento designado ferrolho. Ligadoa este ferrolho estão os dois elementos que permitem a extracção e injecção da cápsula da mu-nição deflagrada, designados extractor e ejector.Embora não sejam componentes da arma, são as munições que de facto fazem da arma umaarma de fogo. Originalmente, as armas de fogo não eram mais do que pequenos canhões demão ou seja um tubo metálico fechado numa ponta no qual era introduzida uma carga pro-pulsora (constituída por nitrato de potássio, carvão vegetal e enxofre – pólvora negra) e umprojéctil. Estes projécteis primordiais eram normalmente pequenas esferas rudimentares fei-tas de pedra ou de metais com baixos pontos de fusão, normalmente chumbo. Entre a carga

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Elementos principais:

1-Corrediça (ferrolho);2-Cano;5-Percutor;17-Carcaça;26-Gatilho33-Carregador.

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propulsora e o projéctil era necessário introduzir um vedante para maximizar o efeito da ex-pansão dos gases resultantes da combustão da carga, não permitindo a sua passagem para ládo projéctil. Quando eram usados vários projécteis em simultâneo, o vedante servia tambémpara evitar a fusão dos projécteis metálicos dentro do cano num fenómeno designado por em-balamento. Na zona posterior do tubo existia um pequeno orifício, designado ouvido, atra-vés do qual a carga propulsora era inflamada com recurso a uma mecha de mão.Desde a introdução das primeiras armas de fogo no séc. XIV até ao início do séc. XIX, o prin-cípio de funcionamento manteve-se essencialmente inalterado. Neste período, as várias evo-luções ocorridas centraram-se na forma como a carga era incendiada. Deixou de ser necessáriaa mecha de mão, tendo sido criados diversos mecanismos que, por acção de um gatilho, trans-mitiam a energia suficiente para a ignição da carga propulsora. É fácil perceber que estas armaseram lentas, devido ao seu processo de carga, susceptíveis a condições climatéricas, pelo sis-tema de ignição e de propulsão, e pouco precisas, pois o movimento induzido ao projéctil eraapenas devido à força que o projectava para fora do cano.Entre o final do séc. XV e o fim do séc. XVI, começaram a aparecer os primeiros canos es-triados (sulcos helicoidais ao longo do cano) por forma a induzir uma rotação do projéctil eobter uma maior precisão na sua trajectória.Um dos marcos mais importantes na evolução das armas de fogo e suas munições deu-se noinício do séc. XIX, primeiro com o estudo dos fulminatos metálicos pelo Reverendo Alexan-der Forsyth e, passado poucos anos, pelo desenvolvimento das cápsulas de fulminante porparte de Joshua Shaw.

No entanto, a grande evolução das armas decorre da apresentação do sistema Lefaucheux naGrande Exposição de Londres de 1851. Aproveitando a descoberta dos fulminatos metálicose a criação das cápsulas de fulminante como elemento de ignição, Lefaucheux integrou num

único elemento, desig-nado cápsula, o sistemade ignição e da cargapropulsora, fixandomecanicamente o pro-jéctil na extremidadeaberta da cápsula.

Figura 2.2: sistema Lefaucheux. [3]

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Para além da vantagem óbvia que representava na rapidez com que passava a ser possível car-regar a arma, o sistema Lefaucheux permitia igualmente que as armas passassem a ser carre-gadas pela retaguarda.Sendo a cápsula um cilindro constituído de uma liga de latão macio aberto apenas numa ex-tremidade, a cápsula dilatava e fazia a obturação dos gases à retaguarda durante a combustãoda pólvora. O projéctil, com um diâmetro ligeiramente superior ao cano, contendo os gasesno interior do cano até à saída do projéctil, maximiza a queima da carga propulsora.A partir deste ponto, as grandes inovações residiram na forma de colocar o primário na mu-nição, tendo sido primeiro criado o sistema de percussão anelar, com o primário aplicado nointerior do bordo e, posteriormente, o sistema de percussão central, com o primário contidonuma cápsula, designada escorva, encastrada no centro da face posterior da cápsula (ver Fig.2.3).

Figura 2.3: desenho das munições actualmente usadas. [3]

Ao deflagrar uma munição, é gerada uma substancial pressão no interior da arma (a especifi-cação NATO, M882, referente ao calibre 9x19mm indica uma pressão média de 1 900 bar).Tanto a cápsula da munição, como o exterior do projéctil, são constituídos por ligas macias.

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Os elementos constituintes da arma que estão em contacto com as munições são constituídospor aços com diversos graus de dureza. Conjugando estes dados é simples concluir que quandoocorre um disparo ficam impressões de todos os contactos entre os elementos da arma e os ele-mentos da munição.Assim podemos encontrar nos elementos da munição:

• Marcas de carregador;• Marcas da câmara;• Marcas do percutor;• Marcas da chapa de obturação (localizada no topo do ferrolho);• Marcas do extractor;• Marcas do ejector;• Marcas do estriado.

Estas marcas permitem agregar univocamente a uma arma de fogo elementos municiais de-flagrados, cápsulas e projécteis, constituindo vestígios fundamentais em termos de prova ma-terial. Podemos designar este conjunto de elementos por vestígios balísticos, pois sãohabitualmente analisados no âmbito desta especialidade forense. Estes elementos não permi-tem fazer a ligação entre o disparo e um sujeito. Para tal, temos de identificar vestígios queficam depositados sobre o autor do disparo.

Conforme foi mencionado anteriormente, a deflagração de uma arma de fogo é um acto vio-lento. Geram-se pressões de milhares de bar e temperaturas de milhares de graus Kelvin. Sendouma arma constituída por diversas peças em movimento, existem folgas indispensáveis entreas peças. Através destas, bem como através das aberturas criadas pelo funcionamento da arma,são projectados, na sequência da deflagração, diversos resíduos com origem em todos os com-ponentes constituintes do sistema que se irão depositar sobre as superfícies envolventes, entreas quais naturalmente se conta o autor do disparo.Os componentes constituintes do sistema, até agora descritos, arma, cápsula e projéctil sãoconstituídos por ligas metálicas relativamente comuns. O ferro, o cobre, o zinco e o chumboestão presentes em inúmeras aplicações, o que implica que a detecção destes elementos num su-jeito tem um valor probatório quase nulo. Assim, para encontrar resíduos específicos a um dis-paro temos que investigar os componentes que nos restam: a carga propulsora e o primário.As primeiras cargas propulsoras eram constituídas por pólvora negra, uma mistura de nitratode potássio, carvão vegetal e enxofre cuja origem remonta à China de Genghis Khan. Estamistura apresentava diversos problemas graves como a susceptibilidade à humidade e a enorme

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nuvem de fumo que produziam. Em resposta aos vários problemas da pólvora negra, surgemas pólvoras vivas ou pólvoras sem fumo. A primeira referência a este tipo de pólvoras é atri-buída ao francês Vieille, em 1884, o qual criou um novo tipo de carga propulsora ao dissol-ver nitrocelulose numa mistura de éter e álcool. A este tipo de pólvora, também designada debase simples, seguiram-se as pólvoras de base dupla, desenvolvidas por Alfred Nobel, con-tendo nitroglicerina, e as pólvoras de base tripla, contendo nitroguanidina. Qualquer um des-tes tipos de pólvora pode ainda, dependendo do fabricante, conter aditivos, em pequenaspercentagens, com diversas funções, como, por exemplo, estabilização química, aumento deeficiência e identificação.

componentes habitualmente encontrados nas pólvoras modernas.

Função Componente

Plastificante oxidante de alta energia Nitroglicerina

Plastificante combustível ftalatos, adipato de polyester ou uretano

Cristais orgânicos Nitroguanidina

Estabilizadores Difenilamina, 2-nitrofenilamina, dinitroto

lueno, N-metil-p-nitroanilina, centralites ou

acardites (e.g., N, N1-difenilureia)

Aditivos inorgânicos giz, grafite, sulfato de potássio, nitrato de

potássio, nitrato de bário

Metais em pó Diversos

Corantes Diversos de uso comum

Apesar dos elementos constituintes da carga propulsora poderem ser facilmente recolhidos eanalisados, sofrem do mesmo problema que os componentes anteriormente mencionados.São mais ou menos comuns, existindo diversas utilizações em outros produtos de qualqueruma das moléculas que podem constituir a carga propulsora. Assim não permitem associar ine-quivocamente o autor ao acto.

O elemento constituinte que resta é o primário contido na escorva.As primeiras escorvas tinham como explosivo o fulminato de mercúrio e como oxidante oclorato de potássio. Com a introdução das cápsulas metálicas por volta de 1850, verificou-sea necessidade de substituir o fulminato de mercúrio por outro composto, já que o mercúrio

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originava a amalgamação do zinco, presente no latão. Nas forças armadas ocidentais os pri-mários com mercúrio foram abandonados até aos primeiros anos do séc. XX, tendo perduradoapenas mais alguns anos no mercado civil. O clorato de potássio também revelou ser proble-mático, pois causava a oxidação dos canos das armas mesmo após uma boa limpeza. Para col-matar ambos os problemas foi comercializado em 1928 pela firma RWS o primeiro primárioSinoxid no qual o papel do explosivo é desempenhado pelo estifanato de chumbo (substi-tuindo o fulminato de mercúrio) e o papel de oxidante pelo nitrato de bário (substituindo oclorato de potássio).Actualmente, no mundo ocidental usam-se essencialmente primários do tipo Sinoxid com aexcepção das munições para uso em carreira de tiro interior. Para este tipo de utilização foramdesenvolvidos por alguns fabricantes outros primários como a Dynamit Nobel AG que substi-tui o estifanato de chumbo por 2-diazo-4,6-dinitrofenol (diazole) e o nitrato de bário e o sul-fito de antimónio por uma mistura de peróxido de zinco e pó de titânio. Este tipo de primários,designados Sintox, apenas produz resíduos metálicos constituídos por titânio e zinco. Ideal-mente este tipo de primários é aplicado em munições cujos projécteis são totalmente enca-misados, evitando a vaporização do chumbo que se encontra a descoberto na zona posteriordos projécteis do tipo FMJ habitualmente usados.A evolução descrita deveu-se essencialmente a motivos económicos (a necessidade de reutili-zar as cápsulas eliminou o fulminato mercúrio e a preservação dos canos eliminou o cloratode potássio) e, só no final do século passado, a motivos ambientais. Tendo tido um desenvol-vimento diferente, a evolução das munições seguiu outro rumo nos antigos países de leste. Atítulo de exemplo, verifica-se que ainda hoje são fabricadas munições com cápsulas de ferro.Nestas economias o uso do fulminato de mercúrio perdurou até bastante tarde, não existindouma prova clara que tenha sido completamente posto de lado. Ainda hoje é natural encontrarlotes de munições de leste com este tipo de primário. Dado o actual panorama de fabrico demunições, existe também a hipótese, real mas remota, de encontrar munições ocidentais cujofabrico foi subcontratado a fábricas de antigos países de leste podendo estas ter incorporadoalguns primários com mercúrio.Em resumo, podemos afirmar que os primários têm três componentes básicos: um explosivo,um oxidante e um combustível, podendo conter diversos aditivos como abrasivos, sensibili-zadores e ligantes. Existem várias composições disponíveis mas basicamente é possível encon-trar seis tipos de primário:

• Com mercúrio e corrosivos;• Com mercúrio e não corrosivos;• Sem mercúrio e corrosivos;• Sem mercúrio e não corrosivos (tipo Sinoxyd);• Sem chumbo (tipo Sintox);• Mistura.

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Os quais podem ser encontrados em quatro tipos de configuração de escorva:• Anelar (em munições de calibre .22);• Bateria (em munições para armas de alma lisa, espingardas);• Berdan;• Boxer.

Figuras 2.4 e 2.5: escorvas do tipo anelar e bateria. [2]

Figuras 2.6 e 2.7: escorvas do tipoBerdan e Boxer. [2]

Conforme foi demonstrado pela primeira vez em meados da década de 1970 [8], e confir-mado por inúmeros estudos posteriores, os vestígios de um disparo de arma de fogo, com ori-gem no primário contido na escorva, são únicos (quando conciliada a sua morfologia ecomposição). Assim temos finalmente a resposta à questão colocada no início ou seja um ves-tígio que permite associar univocamente resíduos encontrados num sujeito ou numa zona aum disparo de arma de fogo.O National Institute of Law Enforcement and Criminal Justice, agência federal norte-ameri-cana, estabeleceu em, 1974, um protocolo com a Aerospace Corporation para a realização de umestudo que permitisse responder a esta questão: quais os vestígios materiais que podem resul-tar do uso de uma arma de fogo e como podem ser analisados. Foi feito um levantamento dastécnicas usadas à data e do tipo de respostas obtidas bem como uma comparação entre os ves-tígios produzidos num disparo de arma de fogo e os vestígios que se podem encontrar na

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população em geral, tendo sido produzido um relatório final em 1977, o Aerospace Report n.ºATR-77(7915)-3.Recorrendo à técnica de Espectroscopia de Absorção Atómica (AA), este estudo permitiu iden-tificar a presença de uma combinação rara de elementos (chumbo, antimónio e bário), asso-ciada a um disparo de arma de fogo. Como esta técnica é uma análise em volume, não permitiadescartar a possibilidade de uma conjunção fortuita que justificasse a presença dos elementosem causa. A AA apresentava também como desvantagens a necessidade de processar as reco-lhas e de estas terem de ser efectuadas num período muito curto após o disparo.Sabendo que, dadas as condições de formação, os elementos provenientes de um disparo estãoligados, recorreu-se a uma técnica de análise elementar pontual: a Espectroscopia de Disper-são de Raios-X acoplada à Microscopia Electrónica de Varrimento. Esta técnica permite umaanálise elementar associada a uma caracterização morfológica, e consequentemente ligar ine-quivocamente os vestígios produzidos por um disparo de arma de fogo, encontrados num su-jeito ou superfície, a esse mesmo disparo. É também eliminada a necessidade de processar asrecolhas e é quase duplicado o período durante o qual é pertinente efectuar a recolha.Em termos de composições detectadas, este relatório elabora uma tabela cuja leitura nos per-mite concluir que foram essencialmente usadas munições com primários do tipo Sinoxyd.Ressalve-se no entanto que o objectivo não era identificar os diversos tipos de primário exis-tentes mas sim identificar qual a melhor técnica de análise e analisar aspectos práticos comooutras possíveis origens para os resíduos e períodos de persistência.

3.1.1 Introdução

Ainda o homo não era sapiens e já a curiosidade lhe era intrínseca. Ver mais, ver melhor eperceber o que está a ver, foram desejos que desde sempre acompanharam o Homem. Foi cer-tamente esta ânsia que levou o franciscano Roger Bacon (1215-1294) a sugerir a combinaçãode lentes para formar um telescópio (posteriormente concretizado pelo fabricante de óculosholandês Hans Lippershey (1587-1619)) ou à invenção do microscópio por Zacharias Jans-sen (1588-1632), tendo ficado para a história as primeiras observações efectuadas pelo pai damicrobiologia o holandês Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723).Estes primeiros instrumentos rapidamente sofreram melhoramentos, como a introdução delentes côncavas (no microscópio por parte de Francisco Fontana (1580-1656) e no telescópiopor Johannes Kepler (1571-1630) tendo as observações com estes instrumentos contribuído

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fortemente para a evolução da teoria científica subjacente. É Kepler que em 1611 publica aprimeira grande obra sobre óptica intitulada Dioptrics, à qual se seguiram os trabalhos de Wil-lebord Snell (1591-1626), René Decartes (1596-1650), Pierre de Fermat (1601-1665), Ro-bert Hooke (1635-1703) e Isaac Newton (1642-1727). Paralelamente a estes estudos, que sebaseavam na teoria corpuscular da luz, começou a desenvolver-se também a teoria ondulató-ria por Christian Huygens (1629-1695), Thomas Young (1773-1829) e Augustin Fresnel(1788-1827).Naturalmente que não basta ver. É preciso medir, analisar. Assim, logo após os primeiros equi-pamentos ópticos, nasce a espectroscopia. William Wollastron (1766-1828) faz a observaçãodas riscas do espectro solar em 1802 e Joseph Fraunhofer (1787-1826) observa a risca duplado sódio. A estas observações, seguem-se os trabalhos de Gustav Kirchoff (1824-1887) e Ro-bert Bunsen (1811-1899) que estabelecem que cada átomo tem uma assinatura espectral di-ferente. Vemos mais, vemos melhor e começamos a perceber o que vemos.A evolução continua: Michael Faraday (1791-1867) e James Maxwell (1831-1879) estabele-cem a relação entre o electromagnetismo e a luz e Louis de Broglie (1892-1987) estabelece arelação entre partícula e comprimento de onda. Tendo por base estas relações, Knoll, em 1935,descreve o conceito do microscópio electrónico concretizado por Von Ardenne em 1938, con-seguindo, assim, mais uma vez, ver mais e melhor.O primeiro microscópio electrónico foi construído por Knoll e Ruska em 1932 e tratava-sede um microscópio de transmissão, tendo o eixo óptico montado na horizontal. Passados dezanos surge o primeiro microscópio de varrimento construído pelos Laboratórios RCA emNova Jersey apresentando já o eixo óptico na vertical.Desde 1942 até aos nossos dias ocorreu uma grande evolução tecnológica, mas os compo-nentes básicos de um MEV mantiveram-se. Esta grande evolução foi essencialmente ao nívelda electrónica de controlo e de processamento de sinal.A microscopia electrónica é uma derivação evolutiva da microscopia óptica. Derivação porque,embora baseando-se nos mesmos princípios, usa electrões em vez de fotões, lentes electro-magnéticas em vez de lentes ópticas e um processo de formação da imagem por varrimento1

em vez de uma imagem instantânea. Evolutiva porque nos permite não só maiores ampliaçõese maior profundidade de campo como também obter mais informações sobre o que estamosa observar. Assim a descrição começará pelos princípios da microscopia óptica e seguirá, comas necessárias adaptações, para a microscopia electrónica e o que de novo este tipo de micros-copia nos traz.

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1. No caso dos microscópios electrónicos de varrimento.

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Um microscópio é um sistema óptico que permite obter uma imagem ampliada de um objecto.É importante perceber como essa imagem é formada.Quando um raio de luz passa de um meio para outro ocorre um fenómeno de refracção quepode ser traduzido matematicamente pela lei de Snell da refracção:

sendo e os índices de refracção dos meios 1 e 2 e e , os ângulos do raio incidente edo raio emergente com a normal da superfície de fronteira. Usando este efeito, podem cons-truir-se dispositivos para controlar o percurso da luz, lentes, que consistem num meio trans-parente limitado por duas superfícies curvas. Uma lente é caracterizada pela distância focal f,distância à lente do ponto imagem de um feixe de raios paralelos. A distância focal é funçãodos raios de curvatura das superfícies que a limitam e do índice de refracção do meio.Para lentes delgadas (espessura pequena) convergentes, a um objecto colocado a uma distân-cia entre f e 2f, corresponde uma imagem ampliada, real e invertida.

Figura 3.1: imagem obtida por uma lente convexa. [6]

As distâncias à lente do objecto, u, e da imagem, v, relacionam-se pela equação das lentesdelgadas

que permite obter uma relação entre a altura da imagem e do objecto, que se designa por am-pliação linear M.Conforme se deduz da figura 3.1, essa relação é dada por:

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Caso desejemos ampliações superiores podemos usar combinações de lentes, sendo a amplia-ção final o produto das ampliações de cada lente:

Habitualmente a lente mais próxima do objecto designa-se por objectiva e a lente mais pró-xima da imagem por ocular.

Figura 3.2: combinação de duas lentes delgadas. [6]

Complementando esta configuração com uma fonte de luz e uma lente condensadora obte-mos um microscópio óptico.

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Figura 3.3: esquema representativodos dois tipos básicos de microscó-pios ópticos. [6]

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As configurações apresentadas na Figura 3.3 representam dois tipos de microscópios distintos.Na primeira, a imagem é obtida por transmissão da luz através da amostra sendo normal-mente usada em amostras finas e semitransparentes, e na segunda, a imagem é obtida por re-flexão, sendo normalmente usada em amostras espessas e opacas. Por uma questão decomodidade, existem equipamentos que permitem os dois tipos de iluminação.A ampliação máxima possível num microscópio óptico é limitada pelo comportamento on-dulatório da luz e em particular pelo efeito de difracção. Este efeito consiste na possibilidadeda onda se propagar atrás de um obstáculo.Se uma onda electromagnética incide numa superfície onde esteja presente uma abertura comdimensões maiores, mas da ordem do seu comprimento de onda, ocorre um fenómeno de di-fracção. Este caracteriza-se pelo aparecimento de um padrão causado pela interferência entreas ondas.

Figura 3.4: fenómeno de in-terferência causado pela pas-sagem de uma onda atravésde uma abertura. [5]

Considerando um feixede luz e uma abertura cir-cular, verificamos que de-vido à difracção, surge um

padrão constituído por anéis concêntricos em torno do círculo central. Estes anéis designam-se por discos de Airy e resultam da difracção da luz.

Figura 3.5: relação entre os discos de Airy e o gráfico da in-tensidade. [6]

Este fenómeno estabelece a distância mínima quepode existir entre dois pontos do objecto para pode-rem ser distinguidos na imagem. Esta limitação de-signa-se por resolução e pode ser definida peloCritério de Rayleigh que nos diz que dois pontos sãodiscerníveis se o máximo de intensidade do primeirodisco de Airy do primeiro ponto coincidir com o pri-meiro mínimo do segundo.

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Figura 3.6: Critério de Rayleigh para distinção entredois pontos. [6]

O critério pode ser traduzido matematicamente,para uma abertura circular de raio r, pela equação[6]:

onde α representa o ângulo entre o bordo da abertura da lente e o seu eixo óptico.

Tendo em conta que o olho hu-mano é sensível a comprimentosde onda entre os 400 e os 700nm, que, mesmo recorrendo auma objectiva de imersão emóleo, apenas podemos obter umíndice de refracção máximo de1,6, e admitindo que a objectivatem uma dimensão muitogrande comparada com a distân-

cia ao objecto, obtemos um valor de . Se considerarmos que o olho humano con-segue distinguir objectos até 0,2 mm obtemos uma ampliação máxima de aproximadamente1300x. Na prática a microscopia óptica é usada até 1000x.Como os objectos são tridimensionais, é também importante introduzir um outro parâmetro

referente à resolução em profundidade.Este parâ-metro é habitualmente designado por profundi-dade de campo e indica-nos a distância h ao longoda qual o objecto aparenta estar focado.

Figura 3.8: definição de profundidade de campo. [6]

Até agora considerámos o sistema óptico perfeito eapenas limitado pela difracção nas aberturas.Existem, no entanto, outras limitações, que estãoassociadas a imagens deformadas do objecto, de-signadas aberrações. Segundo a primeira regra de

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Figura 3.7: definição de α. [6]

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Maxwell para a formação de uma imagem, a cada ponto do objecto tem de corresponder umponto da imagem. Quando tal não acontece a imagem é deformada. As aberrações podem seracromáticas com origem na geometria da lente (aberração esférica, astigmatismo) ou cromá-ticas com origem na presença de vários comprimentos de onda no feixe.

Como em geral as lentes têm superfícies curvas, raios que passam próximo do centro da lentesão focados a distâncias distintas de raios que incidam próximo dos extremos. Em vez de ter-mos um ponto de focagem, existe uma região entre o foco correspondente aos raios paraxiaise o foco correspondente aos raios incidentes junto dos extremos, em que a imagem aparece

aproximadamente focada.Para um feixe cilíndricode raios paralelos que in-cide em toda a lente de-fine-se o plano defocagem como o planoperpendicular ao eixoprincipal da lente na po-sição em que a imagemcorresponde a um discode menores dimensões,

que se designa por disco de menor confusão.O astigmatismo é causado pela assimetria esférica da lente. Esta aberração é perceptível peloalongar da imagem segundo X e Y quando passamos o ponto de focagem.

A aberração cromática é devida àpresença de vários comprimentosde onda no feixe. Sendo cada com-primento de onda focado numponto distinto, num feixe em queexistam vários comprimentos deonda não existe um único pontode focagem e mais uma vez pode-mos definir um disco de menorconfusão.

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Figura 3.9: aberração esférica. [6]

Figura 3.10: aberração cromática. [6]

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Uma das formas mais simples de melhorar a resolução de um microscópio é usar radiação comum comprimento de onda tão pequeno quanto possível. Tal pode ser parcialmente conseguidonum sistema óptico com recurso a iluminação ultravioleta em conjunção com objectivas dequartzo e filtros para o visível. No entanto, a iluminação UV apenas nos permite baixar de umfactor 2 o comprimento de onda (de 400 nm para 200 nm).Este factor 2 pode ser largamente ultrapassado recorrendo a partículas materiais com compri-mentos de onda de Broglie pequenos. As partículas a usar devem estar facilmente disponíveis,poder ser focadas e ter um comprimento de onda inferior a 200nm. As que melhor respondema este conjunto de condições são os electrões.Os electrões estão facilmente disponíveis por emissão termiónica, que ocorre por exemplo numfilamento aquecido, em simultâneo com a emissão luminosa. Sendo partículas carregadas, podemser focados utilizando campos electromagnéticos. O seu comprimento de onda depende da ener-gia podendo ter valores da ordem dos 10-3 nm. Existe ainda a vantagem adicional deste últimoparâmetro ser seleccionável, pois é função da velocidade final a que os electrões são acelerados.Outra das grandes vantagens da microscopia electrónica, relativamente à óptica, reside na grandeprofundidade de campo. Como vimos anteriormente, este parâmetro depende do ângulo deabertura. Dado que as aberturas podem ser várias ordens de grandeza inferiores, podemos ter pro-fundidades de campo várias ordens de grandeza superiores. Esta é uma das principais caracterís-ticas das imagens obtidas em microscopia electrónica de varrimento.Naturalmente existem também desvantagens sendo a principal a necessidade de manter vácuona região onde se propagam os electrões pois estes interactuam fortemente com as moléculascom que se possam cruzar. O processo de formação de uma imagem resultante da interacção dofeixe de electrões com um objecto é também mais complexo. No entanto, considerando quepassamos para comprimentos de onda da ordem da milésima de nanómetro (no caso do MEV),ganhamos 3 a 4 ordens de grandeza na resolução ao passarmos da microscopia óptica para a mi-croscopia electrónica.

Um microscópio electrónico de varrimento tem os seguintes componentes principais:• Canhão de electrões;• Lentes condensadoras;• Objectiva;• Bobines de varrimento;• Porta amostras;• Detectores;• Monitor;• Bombas de vazio.

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Figura 3.11: esquema de um MEV. [5]

O canhão de electrões inclui o sistema que fornece electrões e o sistema de focagem inicial. Éem geral constituído por um filamento, que funciona como cátodo, montado no interior deuma campânula de Wehnelt e por uma fonte de alta tensão que estabelece a diferença de po-tencial entre o filamento e o ânodo, o qual está a um potencial nulo. A campânula de Weh-nelt é um sistema que permite, pela regulação de uma resistência variável ligada ao filamento,a focagem dos electrões dentro do canhão e o controlo da quantidade de electrões emitidos.Existem dois processos pelos quais podemos obter a emissão de electrões: a emissão termió-nica ou o efeito de campo.

A emissão termiónica ocorre sempre que aumentamos a temperatura de um metal até que aenergia térmica fornecida aos electrões da banda de condução seja superior ao hiato de ener-gia entre a banda de valência e o vazio.A densidade da corrente de emissão pode ser obtida integrando a contribuição dos electrõesexcitados com energias superiores a φ :

O resultado desta integração conduz à equação de Richardson:

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Onde A é a constante de Richardson (106Am-2K-2), T a temperatura, φ a função de trabalhodo metal e kB a constante de Boltzman.Tendo em conta a temperatura de fusão e os valores da função de trabalho bem como as suascaracterísticas mecânicas, o metal mais usado para o fabrico dos filamentos é o tungsténio.Este apresenta uma temperatura de fusão de 3650 K e uma função de trabalho de 4,5 eVsendo facilmente maquinado num filamento em V. Para maiores densidades de corrente deemissão é também possível usar filamentos de LaB6 com uma função de trabalho de 2,7 eV,mas, dado que este composto reage com o oxigénio é necessário que a coluna do microscópioesteja preparada para manter o canhão sempre em vazio, ventilando apenas a câmara.Dado que o objectivo é acelerar a maior quantidade de electrões ao longo da coluna, existe umparâmetro mais importante que a densidade de corrente de emissão. Designa-se por brilho eé dado pela razão entre a densidade de corrente e o ângulo sólido de emissão.

Uma forma de aumentar o brilho é diminuir o valor do ângulo sólido. Tal é conseguido comrecurso a filamentos constituídos por uma ponta aguçada e à emissão por efeito de campo. Aárea de emissão destas pontas é da ordem dos 0,1 μm sendo a área de emissão de uma pontade tungsténio da ordem do 1 μm.Ao aplicarmos um campo electrostático a um filamento deste tipo ocorre um fenómeno de-signado por efeito de Schottky, que se caracteriza pela redução da barreira de potencial, quepermite a emissão de electrões. Se aumentarmos mais o campo electrostático, essa barreiratende para zero, ocorrendo emissão de electrões, independentemente da temperatura. É estefenómeno que está na origem da emissão por efeito de campo.Embora se consigam níveis de brilho muito superiores com recurso ao efeito de campo, e con-sequentemente melhores resoluções, é necessário manter o feixe em ultra alto vácuo. Outra des-vantagem é o custo deste tipo de equipamentos, substancialmente superior aos que utilizama emissão termiónica.Tendo em conta o equilíbrio entre robustez, facilidade de utilização e custo, os filamentos detungsténio são a melhor opção excepto se necessitarmos de resoluções muito elevadas.

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Figura 3.12: comparação dos tipos de filamento. [5]

Figura 3.13: processo de formação dofeixe num MEV. [7]

Como os electrões são partículas car-regadas, as suas trajectórias podemser modificadas com recurso a cam-pos eléctricos (lentes electroestáticas)ou a campos magnéticos (lentes elec-tromagnéticas). Estas lentes desig-nam-se lentes condensadoras, sendoas electromagnéticas as mais usadasdevido aos factores descritos na ta-bela seguinte:

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Comparação das vantagens dos dois tipos de lentes

Lentes electrostáticas Lentes electromagnéticas

Imagem não rodada Menos efeitos de aberração

Leves e de baixo consumo Não é necessário isolamento para alta tensão

Não necessitam tensão muito estável Podem ser utilizadas em imersão

Focagem fácil

Um electrão que possua uma componente da velocidade não paralela ao eixo óptico sofre umaforça dada por: ao passar pelo campo magnético. Assim, é possível alinhar oselectrões num feixe cilíndrico usando um primeiro conjunto de lentes. O segundo conjuntode lentes condensadoras permite reduzir ainda mais a dimensão do feixe. Usam-se duas len-tes em cada conjunto para reduzir a aberração esférica. O limite de resolução devido a esta aber-ração é dado por:

em que Cs é o coeficiente de aberração esférica e α a abertura do feixe.A lente objectiva permite a focagem do feixe na amostra e contêm no seu interior quatro bo-bines que deflectem o feixe e permitem efectuar o varrimento da amostra. Este varrimento ésimilar ao que ocorre num tubo de raios catódicos.Existem ainda, tal como nos sistemas ópticos, aberrações cromáticas devido ao facto de oselectrões serem emitidos com energias dentro de um intervalo de energia ΔE (ver fig. 3.23) oque introduz um limite de resolução dado por:

É a soma dada por: que estabelece o verdadeiro limite de resolução do MEV poiso limite dado pelo critério de Rayleigh é bastante inferior a este valor, dado estarmos em con-dições de vazio e o valor de α ser muito reduzido.Um segundo aspecto a ter ainda em conta diz respeito ao astigmatismo, que, no caso de umMEV, pode ser corrigido com recurso a um quadrupólo magnético designado astigmator.

Na formação da imagem num MEV, embora o motivo da utilização de electrões derive di-rectamente da explicação óptica, o papel dos restantes elementos não tem paralelo na micros-copia óptica clássica. Num microscópio óptico, a imagem tem origem em fotões, é observada

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directamente, sendo formada no seu todo em simultâneo e com uma ampliação que dependedas lentes. Quando usamos electrões, as imagens obtidas são igualmente constituídas por elec-trões ou por radiação X resultante da sua interacção com os átomos da amostra. Mas, comovimos anteriormente, o olho humano não é sensível ao comprimento de onda destas partícu-las; assim, necessitamos de um transdutor que transforme os electrões em fotões passíveis deserem observados.Quando os electrões do feixe penetram na amostra podem interagir com os electrões dos áto-mos presentes na amostra trocando energia (dispersão inelástica) ou com os núcleos desses mes-mos átomos, podendo considerar-se que a sua energia se mantém constante (dispersão elástica).

Figura 3.14: sinais pas-síveis de obter da inte-racção do feixe com aamostra. [3]

No caso da radiaçãodetectada corres-ponder também aelectrões, estes divi-dem-se em electrõessecundários e elec-trões rectrodifundi-dos. A partir dacorrente que flui

através da amostra obtemos uma informação que é um misto de contraste de número ató-mico e topografia. Os electrões transmitidos permitem obter um espectro de energia perdidapelos electrões bem como informação sobre a estrutura da amostra. A EBIC (sigla inglesa paracondutividade induzida por feixe de electrões) permite, pela acumulação de cargas, analisar acondutividade em circuitos integrados. A catodoluminescência permite a identificação de ma-teriais que sofrem transições ópticas nas orbitais exteriores ou à identificação de defeitos cris-talinos. Os restantes sinais, raios-x característicos e electrões de Auger permitem a identificaçãodos elementos presentes na amostra.

No primeiro caso, a energia fornecida na interacção dos electrões do feixe com os electrões daamostra pode ser suficiente para que estes se libertem da amostra. Dada a reduzida energia des-tes electrões secundários, estes só são detectados se forem emitidos da superfície da amostra.

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Assim, a detecção do número destes electrões permite obter uma imagem com contraste to-pográfico, pois quanto maior é a variação topográfica maior será a área de emissão. Esta ima-gem é obtida ponto a ponto, fazendo varrer o feixe ao longo da superfície da amostra, sendoem cada ponto obtido um sinal com origem nos electrões secundários. Se enviarmos esse sinalpara um monitor com um varrimento sincronizado com o varrimento do feixe, obtemos umaimagem interpretável pelo olho humano.O sinal dos electrões secundários é obtido através de cintilador ligado a um fotomultiplicador,numa montagem designada por Everhart-Thornley.

Figura 3.15: detector Everhart-Thornley. [5]

Os electrões originários de dispersão elástica comos átomos da amostra são designados electrões re-trodifundidos. Como a probabilidade de rectro-difusão depende do número atómico doelemento (varia com Z2), a intensidade destesinal apresenta contraste na composição química.Os electrões retrodifundidos são detectados comrecurso a um detector semicondutor.

Figura 3.16: interior da câmara de um MEV onde évisível ao centro o detector de electrões secundários efixo na haste visível à direita o detector de electrões re-trodifundidos originários na dispersão elástica. (Fotodo autor)

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Tendo em conta o processo de formação da imagem, o feixe deverá ser o mais fino possívelsendo a ampliação num MEV não mais que a razão entre a área varrida pelo feixe e a dimen-são do monitor. A dimensão do feixe na amostra é habitualmente designada por spot size.

3.2.1 Introdução

Conforme mencionado no capítulo anterior, num MEV a imagem é obtida com recurso aoproduto da interacção dos electrões com a amostra. Essa interacção pode ter uma naturezaelástica, dando origem a electrões retrodispersados, ou uma natureza inelástica, dando origema vários sinais tais como os electrões secundários mencionados anteriormente. Sendo partícu-las carregadas, há que ter em conta igualmente a emissão de radiação de travagem, a qual iráaparecer essencialmente como radiação de fundo embora possa dar também um pequeno con-tributo para a emissão de electrões secundários.Os electrões num átomo ocupam estados de energia estacionários associados a funções deonda (f.d.o.) que definem a região do espaço onde é mais provável encontrar o electrão. Comoas f.d.o. têm raios médios que aumentam quando o electrão ocupa níveis de energia superior,é frequente uma representação do átomo por um modelo em que os níveis de energia são re-

presentados por órbitasde raio crescente. Estaé uma forma simplesde visualizar os níveisde energia e representaros processos de emissãoe absorção dos electrõesligados, que correspon-dem às transições entreesses níveis.

Entre as transições electrónicas possíveis, têm particular importância as que ocorrem nas ca-madas mais internas, K, L e M, pois estas são características de cada elemento e têm uma ener-gia dentro da zona do espectro correspondente à radiação X.Conforme descrito por Bethe (1930), os electrões do feixe incidente vão perdendo energiapor dispersão inelástica à medida que vão penetrando na amostra. A zona de penetração dos

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2. XEDS – da sigla inglesa “X-ray Energy Dispersive Spectroscopy”3. XWDS – da sigla inglesa “X-ray Wavelenght Dispersive Spectroscopy”

Figura 3.17: volume de interacção. [5]

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electrões designa-se por volume de interacção e é habitualmente representada por uma pêra,sendo função da energia do feixe e da composição da amostra. Na realidade o volume de interacção corresponde ao volume que engloba as trajectórias doselectrões, ilustradas na figura pelos resultados de simulações pelo método Monte Carlo.

Figura 3.18: simulações pelo método de Monte Carlo. [5]

Uma das formas pela qual os electrões do feixe perdem energia é pela colisão com electrões dascamadas internas dos átomos presentes na amostra. É possível que na sequência destas colisõeso electrão atómico adquira energia suficiente para se libertar, deixando o átomo num estadoexcitado. Quando tal ocorre, o átomo retoma o estado de equilíbrio pela transição de um elec-trão de uma camada superior para a lacuna criada com a consequente emissão de radiação Xcaracterística ou pela emissão de um electrão de Auger. Este segundo processo de desexcita-ção é mais comum em materiais de baixo número atómico. Assim os Raios X detectados per-mitem a identificação dos electrões presentes na amostra. Tal como os raios X, os electrões deAuger também permitem a identificação dos elementos presentes podendo ser detectados comrecurso a um espectrómetro electrostático.A identificação da radiação X detectada pode ser realizada pela medição do seu comprimentode onda (XWDS) ou pela medição da sua energia (XEDS).

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A técnica de XWDS utiliza oefeito de difracção num cristalpara separar os comprimentosde onda (Lei de Bragg da difrac-ção) e, como tal, necessita deuma montagem algo complexa evolumosa, composta por diver-sos cristais e um detector mon-tados ao longo de um círculodesignado círculo de Rowland.A medição dos comprimentosde onda é lenta, pois é medidoum valor de cada vez mas emcompensação permite obter re-soluções em energia na casa dos5 eV.

Figura 3.19: montagem para XWDS. [5]

A técnica de XEDS é bastante mais simples pois apenas requer um detector de estado sólidoe um analisador multicanal para resolver a energia dos electrões. Para além desta vantagem, oprincipal factor que leva a que o detector de XEDS seja quase standard nos MEV’s modernosé a rapidez de análise. Em alguns segundos é possível obter um espectro razoável. Em geral,há necessidade de arrefecer o detector à temperatura do azoto líquido e a resolução em ener-gia é limitada por este facto, obtendo-se resoluções da ordem de grandeza dos 100 eV, bastanteinferiores ao XWDS. Dada a presença do detector arrefecido, é necessário existir uma janelaantes da entrada do detector para evitar fenómenos de condensação. Esta janela é habitual-mente de berílio o que impede a detecção de elementos abaixo do boro. As janelas mais mo-dernas, constituídas por polímeros, já permitem a detecção do boro.

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4. XWDS – da sigla inglesa “X-ray Wavelenght Dispersive Spectroscopy”5. XEDS – da sigla inglesa “X-ray Energy Dispersive Spectroscopy”

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Figura 3.20: detectorXEDS. [5]

Em resumo enquanto o XWDS é volumoso, lento, caro mas têm uma excelente resolução oque permite a detecção de baixas concentrações, o XEDS é compacto, prático, barato e dadaa sua baixa resolução necessita de maiores concentrações do elemento a detectar. Tendo emconta a capacidade de processamento actualmente disponível, a discriminação das energiasdetectadas é relativamente simples, sendo feita por programas dedicados. Esta técnica é a queserá utilizada neste trabalho.Na análise dos espectros de XEDS, é conveniente mencionar duas fontes de confusão usuais.

Análise de Resíduos de Disparo de Armas de Fogo por MEV / EDERX

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Figura 3.21: comparação entre um espectroXWDS e um espectro XEDS. Observe-se aseparação entre os picos de Mo e S. [5]

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Uma é a presença de picos soma no espectro, com origem na detecção conjunta de dois fo-tões, o que dá origem a um pico desconhecido com o dobro da energia de um pico identifi-cado. A outra é a presença de picos-escape. Estes resultam na detecção de fotões com energiasuperiores à necessária para a ionização dos átomos de silício do detector que decaem emitindoum fotão X com 1.74 keV; se este fotão escapa do detector existirá associado ao fotão incidentea detecção de um fotão com uma energia inferior em 1,74keV à esperada. Tanto um fenómenocomo o outro encontram-se habitualmente associados a picos com um elevado número decontagens.Deverá ser ainda tido em conta que os electrões emergentes da amostra podem ter energia su-ficiente para excitar elementos presentes em materiais constituintes de elementos da câmaracomo por exemplo o alumínio. Sendo estes elementos detectados, simultaneamente com os ele-mentos da amostra, no espectro de raios X.

No capítulo 2, referente aos resíduos de disparo de armas de fogo, vimos que estes resíduoseram depositados na zona limítrofe ao disparo após a deflagração da munição. Destes resí-duos, com origem em qualquer um dos componentes do sistema arma + munição, apenasaqueles com origem no primário têm interesse enquanto prova material. É, pois, importantedeterminar onde vão esses resíduos depositar-se e como podem ser recolhidos.

A observação do disparo de uma arma de fogo permite visualizar a nuvem de resíduos pro-duzida o que nos dá uma primeira indicação da zona de propagação dos resíduos.

Figuras 4.1 e 4.2: nuvens de resíduos produzidos por uma pistola calibre .22Lr e por um revolver cali-bre .38 Special. [4]

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Figuras 4.3 e 4.4: nuvens de resíduos produzidos por uma espingarda calibre 12 e por uma carabina ca-libre .223 Remington. [4]

Os resíduos com origem na carga propulsora são os mais leves e, por isso, os que constituemo maior volume das nuvens visíveis, mas não são os de maior interesse para a identificação deum disparo de arma de fogo. É necessário determinar as zonas de deposição dos resíduos commaior valor probatório, ou seja os resíduos mais pesados que têm origem no primário.Para estimar a região de interesse, consideramos as aproximações seguintes para os resíduos li-bertados pelas folgas da arma e na sua abertura:

1. São constituídos por partículas esféricas, com um diâmetro de 1μm e constituídas porpartes iguais de chumbo, antimónio e bário;2. São projectados isotropicamente, e o alcance máximo corresponde a um ângulo de 45ºcom o plano horizontal que passa pelo cano da arma;3. Considera-se a força de impulsão do ar, mas o atrito do ar é desprezado, porque as ve-locidades são baixas e porque se pretende determinar o alcance máximo; o efeito das for-ças de atrito será sempre o de reduzir o valor calculado na sua ausência;4. Existem duas velocidades iniciais de projecção: uma com origem no movimento daarma (partículas projectadas na abertura) e outra para as perdas pelas folgas;

Sendo as partículas esféricas, com um diâmetro de 1μm e constituídas por 1/3 de chumbo, 1/3de antimónio e 1/3 de bário, a sua massa pode ser facilmente calculada por:

Durante o movimento, as partículas estão sujeitas à força da gravidade e à força de impulsão,na vertical. A resultante destas forças permite obter a aceleração vertical:

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Quanto às velocidades iniciais, o limite inferior será dado pelo movimento dos elementos daarma. Considerando uma pistola, o elemento que se move será a corrediça cuja velocidadepode ser obtida tendo em conta que a cada disparo a corrediça percorre uma distância cor-respondente a duas vezes o comprimento total da munição (cápsula + projéctil) pois primeirorecua para extrair a cápsula deflagrada e depois retoma a posição inserindo uma nova muni-ção na câmara. Considerando uma cadência de tiro de 1000 tiros por minuto e uma muni-ção calibre 9x19 mm com um comprimento total de 30 mm, obtemos uma velocidadeaproximada de funcionamento de 1ms-1.

O limite superior corresponde às perdas pelas folgas. Segundo a especificação NATO M882,um projéctil 9x19mm tem uma velocidade de 380ms-1, tendo em conta que as armas são fa-bricadas para que não ocorra qualquer perda, podemos considerar que os resíduos com origemnas folgas são projectados com uma velocidade inicial correspondente a 1% da velocidade doprojéctil ou seja 3,8ms-1.As equações paramétricas do movimento serão então:

Considerando que os resíduos são depositados ao mesmo nível da arma (nas mão(s) do sujeitoautor do disparo, no seu vestuário ou elemento vizinho), obtém-se para a velocidade maisbaixa um alcance de 0,1 m e para a velocidade mais elevada um alcance de 1,5 m.Podemos assim assumir que os resíduos de disparo de uma arma de fogo com origem no pri-mário se irão depositar numa vizinhança até cerca de 1,5 m, definindo este valor o raio má-ximo da área de recolha, com uma maior concentração até um raio de 0,1 m. As recolhas aefectuar deverão incidir nas mãos, na face e no vestuário de quem seja suspeito de estar en-volvido num incidente envolvendo o disparo de uma arma de fogo.No caso de suspeitos vivos, a actividade humana normal, durante o hiato temporal que me-deia entre a ocorrência e a recolha, pode perturbar o padrão de deposição das partículas de-positadas à superfície, já que qualquer contacto com esta irá causar a sua transferência. Assim,existem dois aspectos a realçar: primeiro, nada se pode inferir da distribuição de partículasobservada em cada uma das recolhas efectuadas; em segundo lugar, para além das zonas do ves-tuário expostas é também possível efectuar recolhas de recurso nos bolsos e outras zonas aces-síveis do vestuário, pois é perfeitamente razoável assumir que o sujeito poderá ter transferidopartículas para essas regiões.No caso de suspeitos mortos, como, por exemplo, em suicídios, o padrão de deposição não é

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perturbado. Assim devem ser feitas recolhas que permitam diferenciar se a deposição detectadateve origem numa acção por parte do sujeito ou por transferência secundária da arma para osujeito. Neste tipo de cenários, é redundante efectuar recolhas no vestuário.

Existem dois factores importantes que determinam a forma como a fixação destas partículaspode ocorrer nas zonas de deposição: a dimensão das partículas e a sua temperatura quantoatingem a superfície.Tendo em conta a dimensão reduzida das partículas, estas podem ficar aprisionadas nos in-terstícios da pele e do vestuário, processo que se designará por fixação mecânica.Quanto ao efeito da temperatura, é importante relembrar que na deflagração se geram tem-peraturas da ordem dos 2000 K. No percurso até à superfície, a partícula arrefece essencial-mente por radiação, segundo a lei de Stefan, com uma taxa aproximada que é directamenteproporcional à diferença entre as quartas potências da temperatura absoluta da partícula e datemperatura externa. A equação que determina a evolução da temperatura da partícula podeescrever-se como:

Onde Cv é a capacidade calorífica da partícula, A é a superfície da partícula esférica, ε é aemissividade da superfície da partícula e σ é a constante de Stefan-Boltzmann. Text representa,a temperatura exterior.Resolvendo para a temperatura da partícula obtemos:

Onde para além dos parâmetros já referidos, representa a capacidade calorífica volúmicamédia das capacidades caloríficas do Ba, Sb e Pb (considerados constituintes em volumesiguais) e V e r são respectivamente o volume e o raio da particular esférica.A integração desta equação permitiu avaliar o arrefecimento das partículas em função dotempo, curvas que estão ilustradas no gráfico seguinte onde, Text a temperatura exterior, foiconsiderada igual a 290 K.

Análise de Resíduos de Disparo de Armas de Fogo por MEV / EDERX

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Figura 4.5: Evolu-ção temporal daemperatura de par-tículas Ba/Sb/Pbsujeitas a perdas deenergia por radia-ção num ambientea 290 K, conside-rando uma tempe-ratura inicial de2000 K.

Como a partícula demora cerca de 0,5 s até atingir a superfície, a sua temperatura pode ser ele-vada na deposição, dependendo do tamanho da partícula e da emissividade da sua superfície.No gráfico seguinte representa-se a temperatura das partículas em função da sua dimensãopara uma temperatura inicial de 2000 K e intervalos de tempo entre 0,3 s e 0,6 s.

Figura 4.6: tempe-ratura de uma par-tícula sujeita aperdas de energiapor radiação numambiente a 290 K,considerando umatemperatura inicialde 2000 K.

Considerando os resultados obtidos, caso a deposição ocorra sobre superfícies com uma baixatemperatura de fusão pode ocorrer fusão parcial com a superfície, ficando a partícula encas-trada, efeito que se designará fixação termodinâmica.

Tendo em conta que a técnica adequada para a análise deste tipo de resíduos é a Espectrosco-pia de Dispersão de Energia de Raios-X acoplada a um Microscópio Electrónico de Varri-mento, os suportes para quais se deverão efectuar as recolhas deverão ser os adequados a esta

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técnica. Assim, o suporte adequado é constituído por um stub em alumínio sobre o qual estáaplicada uma fita adesiva de carbono com dupla face. Este conjunto está montado num su-porte de plástico que possui uma tampa no mesmo material e é habitualmente designado por:“kit de recolha de resíduos de disparo de armas de fogo”. A sua utilização é extremamentesimples, segurando pelo suporte de plástico, retira-se a tampa e depois a película protectoraapós o que basta percorrer a zona a recolher pressionando a fita sobre a superfície em toquessucessivos. Segundo a literatura, a adesividade da fita mantém-se ao longo de 50 toques. Apósestes 50 toques é só fechar o suporte e etiquetar com os elementos identificativos pertinentes(NUIPC6, nome do sujeito e zona de recolha).

Figura 4.7: kit de recolha de resíduosde disparo. (Foto do autor)

Antes de especificarmos quais as re-colhas a efectuar, será convenienteavaliar as áreas de recolha em causa.Os discos de fita adesiva de car-bono têm um diâmetro de 12,5

mm, a que corresponde uma área de aproximadamente 123 mm2. Em primeira aproximação,podemos considerar que a superfície da mão (dorso e palma) é constituída por dois rectânguloscom 150x90 mm2, a face é uma circunferência com uma área de πx1002 mm2, a zona dasmangas correspondente aos antebraços é um rectângulo com uma área de 250x50 mm2 e azona anterior do vestuário é outro rectângulo com uma área de 500x400 mm2. A área dosbolsos pode ser considerada igual à área das mãos. Se usarmos apenas um kit por recolha e porzona, podemos calcular qual a área coberta por este em 50 toques.

eficiência de recolha com um kit em termos de área coberta.

Zona de recolha Área (mm2) Eficiência cobertura ((50x123)/área)x100%Mão dorso 13500 45,6%Mão palma 13500 45,6%Face 31416 19,6%Manga (zona antebraço) 12500 49,2%Zona anterior do vestuário 200000 3,1%Bolso 13500 45,6%

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6. NUIPC: Número Único Identificação Processo Crime.

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Os bolsos, apesar de não serem uma zona exposta, são incluídos nas zonas a recolher poispodem constituir uma zona de deposição secundária por transferência das mãos. Salienta-se,no entanto, que a recolha nos bolsos deve ser considerada uma recolha de recurso, dado estespoderem constituir depósito para resíduos oriundos de ocorrências anteriores.Existem mais dois parâmetros a ter em linha de conta para definirmos quais as recolhas a fazer.O primeiro é logístico e diz respeito à capacidade da platina do microscópio. O segundo é adistribuição das partículas que determina a probabilidade de serem recolhidas.As platinas standard do Microscópio Electrónico de Varrimento têm oito posições disponíveis.Destas apenas estão livres cinco pois, quando procedemos à análise de resíduos de disparo énecessário um padrão de calibração da imagem (brilho e contraste), uma amostra virgem e umaamostra padrão para validação da análise. A amostra padrão é habitualmente constituída porum filme que simula um número definido de partículas de várias dimensões. Tendo em contaque em termos práticos é útil preencher completamente a platina a cada análise e que, por prin-cípio, não se deve juntar recolhas de vários sujeitos, concluímos que o número de recolhas aefectuar deve ser múltiplo de cinco.Considerando que temos uma população de N elementos dos quais m têm o atributo pre-tendido e sobre a qual são efectuadas n extracções, podemos calcular a probabilidade de ob-termos x elementos com o atributo pretendido recorrendo à formula que define a distribuiçãohipergeométrica:

A definição desta probabilidade obriga a dividir a área da amostra (definida na Tabela 4.1) emcélulas que neste caso terão a dimensão da área do kit de recolha. O resultado desta divisão dá-nos o valor de N. A eficácia da fita adesiva (50 toques) define o valor de n e, no caso em apreço,considera-se que pretendemos encontrar pelo menos x=1 partículas de um universo de m=5partículas existentes.O número de recolhas a efectuar é uma opção estratégica; no entanto, tendo em conta todosos parâmetros descritos, apresentam-se os valores para a eficiência ponderada, considerandoas recolhas definidas nas Tabela 4.2 e 4.3.

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recolhas a efectuar num sujeito vivo (1 rec p/ zona)

Zona de recolha Eficiência ponderada

Recolhas principais Mão drt (dorso e palma) 31,9%

Mão esq (dorso e palma) 31,9%

Face 66,7%

Mangas (drt+esq) 76,1%

Zona anterior do vestuário 14,5%

Recolha de recurso Bolsos (drt+esq) 31,9%

recolhas a efectuar num sujeito morto (1 rec p/ zona)

Zona de recolha Eficiência ponderada

Mão drt dorso 95,5%

Mão drt palma 95,5%

Mão esq dorso 95,5%

Mão esq palma 95,5%

Até agora, apenas tivemos em conta as zonas de deposição no sujeito. No entanto, existem ou-tras duas superfícies onde podemos encontrar igualmente resíduos: na arma e na cápsula de-flagrada.

Uma arma, devido à sua configuração e às reacções químicas que ocorrem no seu interior, éum instrumento difícil de limpar. Para eliminar os resíduos presentes é necessário desmontara arma, esfregar todos os componentes com escovas e escovilhões e lavar com solventes ade-quados. Pela prática, é possível afirmar que este tipo de limpeza é rara, sendo possível detec-tar resíduos de disparos efectuados em alturas diferentes e ao longo de um substancial períodode tempo. Assim, podemos dizer que as armas têm memória quanto aos disparos com elasefectuados e, como tal, não deverão ser objecto de recolha excepto em casos excepcionais.As cápsulas deflagradas têm outro valor, pois é possível efectuar recolhas no interior das mes-mas (basta bater com a boca da cápsula sobre um stub). Sendo perfeitamente razoável assu-mir que no interior das cápsulas estão apenas os resíduos da sua deflagração, é possível

Análise de Resíduos de Disparo de Armas de Fogo por MEV / EDERX

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estabelecer um nexo de causalidade entre os resíduos detectados num sujeito ou superfície euma ocorrência onde tenha sido encontrado um elemento municial deflagrado. Embora exista um número reduzido de tipos de primário, sempre que sejam detectados resí-duos em recolhas efectuadas deverá ser efectuada uma recolha extra nos elementos municiaisdeflagrados para comparação. O resultado pode permitir detectar, caso existam, diferenças sig-nificativas entre os resíduos detectados no sujeito e os presentes nos elementos municiais,sendo que por diferenças significativas se entende uma diferença entre os componentes prin-cipais como, por exemplo, a presença de estanho em vez de antimónio.

Uma das abordagens clássicas neste tipo de estudos passa por uma recolha de munições porfabricantes e calibres, porém os dados obtidos da revisão da literatura e a experiência adqui-rida indicam que esse tipo de amostragem pode ser redundante (dada a subcontratação exis-tente entre as diversas marcas) e pouco exemplificativa (dada a partilha de primários entre osdiversos calibres num determinado período e zona). Assim sendo, para a realização deste ar-tigo, optou-se por tentar obter amostras exemplificativas dos tipos de primários conhecidos:

• Com mercúrio e corrosivos;• Com mercúrio e não corrosivos;• Sem mercúrio e corrosivos;• Sem mercúrio e não corrosivos (tipo Sinoxyd);• Sem chumbo (tipo Sintox);• Mistura.

: Lista de munições analisadas

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Amostra

1

2

3

Fabricante

S&B - Sellier &Bellot

S&B - Sellier &Bellot

S&B - Sellier &Bellot

Calibre

9x19mm

9x19mm

9x19mm

Projéctil

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Ponta furada encamisado

Marcações

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13

14

15

16

GFL - Giulio

Fiocchi, Lecco

Winchester

FNM - Fabrica

Nacional de

Munições

FNM - Fabrica

Nacional de

Munições

.357Magnum

.357Magnum

7,62x51mm

5,56x45mm

Truncado semi-encamisado

Truncado revestido

Ogival encamisado

Ogival encamisado

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1724

5

6

7

8

9

10

11

12

9x19mm

7,65mmBrowning

9x19mm

.22Lr

9x19mm

9x19mm

9x19mm

.38ACP

7,65mmBrowning

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Ponta furada s\ camisa

Ponta furada encamisado

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Ogival encamisado

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Nota: não foi possível deflagrar a munição n.º 20 provavelmente devido à sua idade.

Para obter os resíduos, o procedimento habitual segue os seguintes passos:➢ Seleccionar uma arma de calibre adequado;➢ Limpar rigorosamente a arma desmontando-a e lavando com solventes;➢ Deflagrar a munição em causa em condições de segurança (carreira de tiro ou caixão ba-lístico);➢ Bater ou raspar a cápsula deflagrada sobre o kit de recolha.

Este procedimento é moroso e requer um conjunto substancial de meios além de ser suscep-tível a transferências secundárias da arma ou do local onde é efectuado o disparo.

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17

18

19

20

21

22

23

24

FNM - Fábrica

Nacional de

Munições

711 - Podolsk,

Russia

539 - Tula

Cartridge Works,Russia

IPM - Indústria

Portuguesa de

Munições

S\ marca

Remington

Fiocchi

Eley

7,62x39mm

7,62x39mm

7,62x39mm

12

12

12

12

12

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Ogival encamisado

Bagos de chumbo

Bagos de chumbo

Bagos de chumbo

Bagos de borracha

Bagos de borracha

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Conforme vimos anteriormente as partículas características de resíduos de disparo de armasde fogo são aquelas que têm origem no primário contido na escorva, o que significa que paraa análise em questão não tem interesse a carga propulsora ou o projéctil. Assim a técnica tra-dicional é desnecessariamente complicada pois utiliza a usar a arma como suporte da muni-ção e mecanismo de percussão e o local como forma segura de parar o projéctil.Alternativamente utilizou-se neste trabalho o procedimento seguinte:

➢ Desmontar a munição com recurso a um martelo cinético;➢ Fixar a cápsula com a escorva intacta num torno de precisão;➢ Colocar um kit de recolha sobre a boca da cápsula, protegendo o suporte e o torno comum disco de papel de filtro;➢ Percutir a munição com um furador e um pequeno martelo.

Figuras 4.8 e 4.9: martelo cinético e montagem da munição. (Fotos do autor)

Figura 4.10: montagem usada para a recolha de re-síduos. (Foto do autor)

Esta técnica permite economia de meios,enorme facilidade de utilização, melhor amos-tragem do produto da deflagração do primá-rio e, principalmente, a eliminação dosfactores susceptíveis de causarem uma trans-ferência secundária.

A técnica tradicional de recolha apenas permite obter uma pequena fracção das partículas poisa esmagadora maioria é perdida aquando da deflagração. Quando observamos o kit no SEM,vemos apenas algumas partículas por campo. A técnica empregue neste trabalho elimina estasperdas e permite obter uma muito melhor amostragem pois fica depositado sobre a fita decarbono um filme de resíduos.

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Figura 4.11: filme deresíduos obtidos com atécnica aplicada.

As amostras foram analisadas segundo os seguintes parâmetros:➢ Tensão de aceleração: 25kV;➢ Corrente de filamento: 2,2A (1º pico);➢ Spot Size: 558;➢ Corrente de feixe: 100μA;➢ Corrente de sonda: 2nA;➢ Livetime: 30s;➢ Tempo de processamento: 4;➢ Gama de energias: 0-20keV;➢ Número de canais: 2000.

Por cada amostra foram obtidos três espectros gerais a uma ampliação de 350x e posterior-mente foram seleccionadas três partículas e obtidos um espectro de cada a 700X. No totalforam obtidos 138 espectros.

Seguem-se algumas das imagens e espectros obtidos por cada munição sendo os resultadosobtidos sistematizados na tabela 4.5.

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resumo dos resultados experimentais obtidosAmostra Fabricante Elementos detectados1 S&B - Sellier & Bellot Fe, Al, Si, S, K2 S&B - Sellier & Bellot Pb, Ba3 S&B - Sellier & Bellot Al, Pb, Sb, Ba4 CBC – Companhia Brasileira de Cartuchos Al, Si, S, K5 GFL – Giulio Fiocchi, Lecco S, Sb, Ba6 Barnaul Al, Pb, Zr, S, Sb, Sn, Ba7 Federal Al, Pb, S, Sb, Ba8 S&B - Sellier & Bellot Pb, S, Sb, Sn, Ba9 EDP – Olympic Ammunition Si, Pb, S, Sb, Ca, Ba10 FNM – Fabrica Nacional de Munições Pb, S, Sb, Ba11 RP – Remington Peters Al, Pb, S, Sb, Ba12 HP – Hirtenberg Patronen Al, Pb, S, Sb, Ba13 GFL – Giulio Fiocchi, Lecco Pb, S, Sb, Ba14 Winchester Al, Pb, S, Sb, Ba15 FNM – Fábrica Nacional de Munições Al, Si, Pb, Sn, Ca, Ba, Cu16 FNM – Fábrica Nacional de Munições Si, Pb, S, Sb, Ba17 FNM – Fábrica Nacional de Munições Si, Pb, Sn, Ca, Ba18 711 – Podolsk, Russia Al, S, Cl, K, Sb, Ca19 539 – Tula Cartridge Works, Russia Hg, S, Cl, K, Sb20 IPM – Indústria Portuguesa de Munições Não foi possível deflagrar esta escorva.

21 S\ marca Al, Pb, S, Sb, Ba22 Remington Al, Pb, S, Sb, Ba23 Fiocchi Al, Pb, S, Sb, Ba24 Eley Al, Pb, S, Sb, Ba, Fe

Amostra 2.

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Amostra 3.

Amostra 4.

Amostra 19.

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5 CONCLUSÕES

Conforme descrito na introdução, este artigo pretendeu dar uma contribuição na área da iden-tificação de indivíduos ou objectos próximos de um disparo de arma de fogo, com base nosvestígios físicos recolhidos, e com o objectivo de apoiar a investigação criminal de actos pra-ticados com esse tipo de armas.Existem diversas abordagens a um trabalho deste tipo. É possível fazer uma recolha sistemá-tica de amostras culminada em centenas de espectros. É plausível analisar matematicamentea técnica, desde a emissão do electrão à detecção da radiação X, passando pela interacção dofeixe com a amostra.Sendo todas estas abordagens pertinentes, o trabalho aqui apresentado foi norteado pelo prag-matismo da realidade, tendo sido elaborado em ambiente de trabalho real. Assim, optou-se poruma abordagem mais prática ou seja, pretendeu-se obter alguns dados para o uso de quem nodia-a-dia lida com a necessidade de analisar e interpretar resíduos de disparo de armas de fogo.As certezas científicas aliadas ao pragmatismo necessário, para a produção de prova materialno âmbito da investigação criminal, foram a linha de rumo do presente trabalho. Assim, combase na teoria, obtiveram-se valores que permitem quantificar áreas de deposição dos resíduos,sendo possível afirmar que resíduos de disparo de uma arma de fogo com origem no primá-rio se irão depositar numa vizinhança até cerca de 1,5 m, definindo este valor o raio máximoda área de recolha, com uma maior concentração até um raio de 0,1 m. Partindo destes valo-res, será simples concluir que as recolhas deste tipo de resíduos deverão incidir nas mãos, naface e no vestuário de quem seja suspeito de estar correlacionado com um incidente envolvendoo disparo de uma arma de fogo.Quanto à forma de deposição foi possível determinar que as partículas originárias neste tipode resíduos se fixam de duas formas: mecânica e termodinâmica. Sendo a fixação mecânicauma mera consequência da dimensão das partículas, obtiveram-se valores para a temperaturadas partículas à chegada à superfície, sendo possível concluir que, caso a deposição ocorrasobre superfícies com uma baixa temperatura de fusão, pode ocorrer fusão parcial com a su-perfície, ficando a partícula encastrada.Tendo em conta as zonas e formas de recolha, calculou-se a área que efectivamente pode sercoberta recorrendo aos kits de recolha com discos de fita adesiva de carbono de 12,5 mm. Estecálculo permite concluir que apenas é possível cobrir 45,6 % de cada lado das mãos, 19,6 %da face, 49,2% de cada manga e 3,1% da zona anterior do vestuário. Com base nestes valo-res, na capacidade da platina do Microscópio e estabelecendo como 5 o número mínimo departículas a detectar, foram definidas seis áreas de recolha [mão direita, mão esquerda, face,mangas, zona anterior do vestuário e bolsos (recolha de recurso)], calculando-se a EficiênciaPonderada para a recolha em cada uma destas áreas. Conclui-se que, apesar da análise das

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recolhas nas mãos e face ser fundamental, é a recolha das mangas que apresenta uma maior Efi-ciência Ponderada (76,1% contra 31,9% das mãos). Estes cálculos permitem também concluirser fundamental dividir a recolha nas mãos em quatro recolhas distintas (dorso e palma de cadamão) se a ocorrência em causa for um suicídio com arma de fogo.Em termos analíticos, dos 6 grupos de primários identificados na revisão da teoria apenas seobtiveram amostras representativas de 5, pois não foi possível deflagrar a amostra que, emprincípio, seria representativa de um primário com mercúrio e não corrosivo (Amostra 20).Os resultados obtidos permitiram agrupar as amostras obtidas e identificar subgrupos em cadaum dos tipos de primários.

munições analisadas em função de tipo de primário.

Tipo de primário Subgrupo Amostras

1 Com mercúrio e corrosivos - 19

2 Com mercúrio e não corrosivas - -

3 Sem mercúrio e corrosivos - 18

4 Sem mercúrio e não corrosivos (tipo Sinoxyd) 1 7, 10, 11, 12, 13, 14, 21, 22, 23

2 3

3 2

4 15, 17

5 16

6 24

7 9

5 Sem chumbo (tipo Sintox) 1 1

2 4

3 5

6 Mistura 1 6

2 8

Os resultados obtidos, da análise das 24 amostras de munições permitem concluir que existede facto um grupo restrito de composições de primários e que, apesar do seu elevado valor pro-batório genérico, as variações de composições detectadas permitem individualizar ocorrênciasem casos específicos.

João Freire Fonseca

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[1] - www.glockmeister.com;[2] - Handbook of Firearms and Ballistics;[3] - Chemical Analysis of Firearms, Ammunition, and Gunshot Residue;[4] - Current Methods in Forensic Gunshot Residue Analysis;[5] - Physical Principals of Electron Microscopy, Ray F. Egerton, Springer;[6] - Electron Microscopy and Analysis;[7] - Scanning Electron Microscopy and X-Ray Microanalysis;[8] - ASTM E 1588-07, Standard Guide for Gunshot Residues Analysis by Scanning ElectronMicroscopy / Energy Dispersive X-ray Spectrometry.

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Análise das Marcas de Impactos e de Perfurações

em Vidros

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Vitor Teixeira

É Inspector da PJ e instrutor de armamento e tiro. Em 2005 iniciou colaboração regular com estabelecimentos deensino superior, estando ligado a projectos científicos. É frequentemente nomeado perito forense.

Na investigação criminal a análise das marcas dos impactos e/ou de perfurações nos vidrosplanos é importante na medida em que poderá contribuir para a reconstituição cronológicade acontecimentos e para a correlação entre os danos nos vidros e o cenário do crime. Igual-mente importante, sob o ponto de vista táctico-policial, é a noção da resistência dos distintostipos de vidros e da forma como se despedaçam. Este artigo aborda estas questões, sob ambasas perspectivas e incide sobre os três tipos de vidro que habitualmente se encontram nas es-truturas acima referidas: o vidro temperado, o vidro laminado e o vidro comum.Ao longo do artigo tenta-se alertar para concepções erradas quanto à interpretação das mar-cas de impactos nos vidros, analisando, entre outros, o mito de que as estrias concêntricas eradiais são indicadores da acção de projécteis provenientes de armas de fogo com canos dealma estriada.A

A análise das marcas de impactos e/ou de perfurações nos vidros planos, particularmente na-queles usados em janelas, montras, ou portas, tem interesse para a investigação criminal na me-dida em que poderá contribuir para a reconstituição cronológica de acontecimentos e para acorrelação entre os danos que esses vidros apresentam e o cenário do crime.Numa outra vertente, desta feita sob o ponto de vista táctico-policial, é importante ter a cor-recta noção da resistência dos distintos tipos de vidros e do modo como se despedaçam. Porém,está demonstrado que a nossa percepção tende a subavaliar a resistência do vidro. Decerto essaconcepção errada terá origem nos efeitos especiais que se repetem nos muito filmes que todosvemos e que, dessa forma, sedimentam imagens fantasiosas.Esta análise, sob ambas as perspectivas, irá incidir sob os três tipos de vidro que habitualmentese encontram nas estruturas acima referidas; o vidro temperado, o vidro laminado e o vidro comum.

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A. Este artigo corresponde à adaptação de extractos da obra do mesmo autor, denominada "Armas e Munições, ca-racterização técnica e legal", que se encontra em fase de pré-publicação.

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Os vidros temperados (também chamados de vidros de segurança) são dos mais comuns nanossa sociedade. Revestem as janelas laterais e traseiras das viaturas automóveis e são tambémusados em portas, montras, paredes de vidro (revestimentos de banheiros) e em utensílios decozinha (pyrex). Esta profusão de utilizações tem um denominador comum; a segurança. Defacto, o vidro temperado caracteriza-se por partir estilhaçando em pequenas partículas, evi-tando assim a formação de grandes planos corto-perfurantes passíveis de causar ferimentos (as“lâminas de vidro”, comuns nos vidros banais). A técnica de fabrico utilizada1 aumenta-lhe a resistência entre 4 a 5 vezes em relação ao vidrocomum e confere-lhe uma propriedade especial: quando ultrapassado o limite de ruptura, aforça destrutiva é dissipada por todo o vidro, originando a sua desagregação em pequenos pe-daços. Como tal, as linhas de tensão e de fractura abarcam toda a superfície e entrecruzam-se múltiplas vezes, delineando pequenas parcelas de material. Apesar dessa destruiçãoabrangente, o objecto nem sempre se desagrega, sendo possível que mantenha, precariamente,a forma que tinha antes da ruptura do vidro2. Em todo o caso, a estrutura perde resistência eo vidro quebrado deixa de representar perigo, por se transformar numa imensidão de peque-nos fragmentos.Como facilmente se percebe, impactos neste tipo de vidro nunca deixam as características“estrias concêntricas e radiais” que podem aparecer noutros tipos de vidros.Quando uma superfície em vidro temperado é sujeita a uma força que ultrapassa o seu limitede resistência – e é indiferente se isso advém da acção de projéctil ou de uma “pressão quase es-tática" 3 – as múltiplas linhas das fracturas espalham-se por toda a sua superfície, de formaquase igual. Logo, não é possível recorrer à análise do cruzamento dessas linhas de desconti-nuidade para tentar determinar a cronologia de sucessivos impactos. Por vezes, a desagrega-ção é tal que nem sequer é possível contabilizar o número de impactos que causaram a rupturado vidro, nem ter a noção do diâmetro ou forma do objecto que o fracturou.Assim, sob o ponto de vista da investigação criminal, estes vidros são os que menos dados for-necem. Não só não permitem estimar a cronologia de impactos múltiplos, como não forne-cem dados fiáveis quanto ao tipo de acção que levou à sua destruição.

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1. O vidro temperado é fabricado a partir de vidro comum, que se aquece até cerca de 600 ºC e depois arrefece brus-camente.2. Esta situação acontece, sobretudo, nos vidros “semi-temperados”, sendo exactamente essa a propriedade que os ca-racteriza. Contudo, também pode ocorrer nos vidros temperados.3. Em termos absolutos não existem pressões estáticas. Quando um corpo (neste caso o vidro) é sujeito a uma forçasob a forma de uma pressão crescente localizada, essa tem sempre um componente de movimento. Daí que não sejacorrecto confundir aquilo que, na prática, se denomina de "pressão estática" com o que na realidade é, ou seja: uma"pressão quase estática".

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Para além dos vidros temperados possuírem capacidade para resistir a elevadas temperaturas echoques térmicos, são dotados de uma resistência física e rigidez surpreendentes. Note-se que,como acontece com qualquer tipo de vidro, essa resistência aumentará proporcionalmente àárea do objecto. Quanto maior for a superfície, mais elasticidade terá a estrutura global, logo,melhor serão absorvidas as forças destrutivas que sobre ela são exercidas.Como já se referiu no início, é normal ser subavaliada a resistência deste tipo de vidro. Daí re-sultam situações constrangedoras em termos operacionais. Como, por exemplo, as tentativasfalhadas de arrombar as janelas laterais dos automóveis, aquando de intercepções/detenções.Entre outras práticas, esta foi uma das que impulsionaram as acções de formação que o autortem vindo a ministrar4 sobre balística terminal e sobre abordagem policial de automóveis.Nesse contexto, foram consumadas experiências em mais de uma centena de janelas de auto-móveis, procurando reproduzir as acções de intercepção/abordagem em que há tentativa de ar-rombamento das mesmas.Importa aqui salientar que, apesar de muitos crerem que basta uma pancada com a arma numdos cantos5 das janelas dos automóveis para as conseguir quebrar, a prática demonstrou queesse resultado é extraordinariamente difícil de obter E mais difícil será recorrendo a pistolasGlock, ou quaisquer outras com estrutura em polímero (pois absorvem melhor os impactos doschoques contra os vidros).Esta técnica tradicional foi testada incontáveis vezes e verificou-se que, mesmo recorrendo aarmas todas em aço, – como as pistolas HK-P7, a Browning GP-35, ou a Walther PP – só emcasos residuais funcionava e, mesmo assim, só excepcionalmente à primeira tentativa.Foram também experimentados bastões extensíveis, barras de aço e talhadeiras para metal,quase sempre sem sucesso. Situação caricata detectou-se ao ensaiar os “martelos dos autocarros”,pois constatou-se que poucos promoveram a quebra dos vidros (por aqui se vê a falsa segurançaque representam…). Aliás, alguns desses martelos ficaram com as pontas metálicas completa-mente rombas logo à primeira pancada, sem nunca terem conseguido partir qualquer vidro.A solução encontrada – e recomendada a nível operacional – foi a de recorrer a ferramentasespecíficas para a quebra de vidro temperado. Existem diversos tipos, nomeadamente: nava-lhas com ponteiras especialmente destinadas a esse fim, bastões extensíveis com pontas de

na base, Pocket Rescue Tools, martelos quebra-vidros de boa qualidade e… cacos da ce-râmica provenientes das velas de motor ou de facas com lâminas em cerâmica.Se as “simples” janelas dos automóveis têm tanta resistência, facilmente se percebe que a resistênciados vidros temperados usados em edifícios será exponencialmente maior. Não só por serem

Vitor Teixeira

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4. Na Directoria do Norte da PJ e na Escola da Polícia Judiciária.5. Porque nessa zona há menos capacidade para a elasticidade da estrutura amortecer os choques.

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vidros mais espessos (mais de 1 cm), mas também porque são superfícies com áreas muito vas-tas (o que implica maior elasticidade e melhor repartição da energia). Para mais, esses vidrosnem sempre estão firmemente seguros, dado que as portas e janelas móveis apresentam folgas emovimentos que actuam como amortecedores dos choques. Assim sendo, é inútil recorrer à forçabruta e torna-se essencial o uso das tais ferramentas especializadas. Estas, quando empregues deforma correcta, quebram os vidros com uma facilidade surpreendente e de forma segura.Porém, nessas ferramentas “nem tudo que luz é ouro”. De facto, tendo o autor testado mui-tas navalhas tácticas e “Pocket Rescue Tools de diversas marcas, constatou que alguns modelospossuem pontas quebra-vidros que não passam de acessórios meramente cosméticos. Todavia,nos casos dos instrumentos de boa qualidade, verificou-se que funcionaram na perfeição, con-seguindo o fácil estilhaçamento dos vidros, mesmo só com um ligeiro impacto na zona cen-tral da estrutura (portanto onde há maior elasticidade e resistência). Contudo, até nessasferramentas de melhor qualidade, as ponteiras têm que ser afiadas ao fim de algum uso, poiscomeça a ser necessária cada vez mais força para conseguir partir os vidros. Por aqui se percebeo grau de dureza dos vidros temperados.Abrindo aqui um parêntesis, pois o artigo não pretende dissecar as técnicas de abordagem po-licial a viaturas, convém alertar para o facto de que a quebra das janelas de vidro temperadocausa uma multiplicidade de pequenos cortes na mão de quem manuseia a ferramenta de ar-rombamento. Para precaver esses efeitos secundários torna-se necessário usar luvas anti cortee recorrer a boas ferramentas, sejam elas martelos quebra-vidros, navalhas tácticas ou PocketRescue Tools. Quanto melhor for a qualidade desses instrumentos, menos força será necessáriapara quebrar os vidros e menos tendência haverá para que a mão e braço do operador atra-vessem a superfície estilhaçada.

Este tipo de vidro é formado por, pelo menos, três componentes: duas faces de vidro e uma pe-lícula em material elástico no seu interior. Há vidros laminados constituídos por diversas ca-madas sucessivas, o que acontece, entre outros, com os chamados “vidros à prova-de-bala”. Pornorma, o vidro laminado é fabricado com vidro comum, mas também pode ser composto poruma ou mais faces de vidro temperado, nomeadamente quando se pretende obter uma resis-tência extrema. Estas combinações, embora possíveis, são extraordinariamente raras, pelo quea seguir se abordará apenas o caso dos vidros laminados constituídos por vidro não temperado.A película6 polimérica é o elemento principal do conjunto. Não só consolida a junção das facesde vidro que lhe estão adjacentes, tornando-as num único elemento, como possui a capacidadepara se manter “colada” aos vidros mesmo quando estes quebram. Para aumentar a resistênciaestrutural, a película possui elevada resistência à tracção e muita elasticidade. Daí que, em

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termos práticos, para conseguir transpor uma estrutura deste tipo torna-se imperioso quebrarambas as faces de vidro e (literalmente) cortar a película polimérica que está no seu meio.A finalidade deste tipo de vidro é, também, a de impedir que fragmentos cortantes causemdanos secundários. Exemplos mais comuns são os dos vidros usados nos pára-brisas dos au-tomóveis7 e os usados em montras, portas e janelas de edifícios, sempre que se quer obter umcerto nível de protecção contra intrusão, daí que a nível comercial seja também conhecidopor "vidro anti-vandalismo".Sob o ponto de vista da investigação criminal, a análise das marcas neste tipo de vidro é, grossomodo, idêntica à que se efectua no vidro comum. De facto, na maior parte dos casos, é pos-sível interpretar a forma e a distribuição das linhas de fractura, não obstante estas não sejamtão manifestas quanto nos vidros comuns.Se essas fracturas forem provenientes de uma força localizada sob um pequeno ponto, pode-rão originar linhas concêntricas e radiais. A propósito destas, importa esclarecer que, contra-riamente à crença generalizada, as estrias concêntricas e radiais não são, necessariamente, provade impactos por projécteis de armas de fogo. Esta crença, de que existe uma relação directa entre estas marcas e a acção de projécteis dearmas de fogo, está de tal maneira sedimentada que consubstanciou uma das respostas-padrãodo recente teste escrito para o concurso de Inspectores-Chefe da Polícia Judiciária. Ditava essaresposta, que, de resto, espelha perfeitamente a tese comum:“As linhas de fractura (também designadas estrias) concêntricas e radiais são vestígios presentes nosvidros quando atravessados por projéctil de arma de fogo.As linhas concêntricas resultam do arrastamento do material na superfície vidrada devido ao mo-vimento de rotação do projéctil, em torno do seu eixo longitudinal, na acção perfurante do mesmona superfície do vidro e observam-se na superfície do lado do orifício de entrada do projéctil, en-volvendo tal orifício; as linhas radiais resultam da força de compressão do projéctil na massa dovidro, a qual provoca a desagregação do material por falta de resistência do mesmo e observam-seno lado do orifício de saída, desenvolvendo-se a partir desse orifício” .Mas, nem sempre assim é.Desde logo se percebe que as estrias radiais e concêntricas apenas podem ser formadas nalgunstipos de vidro8. São impossíveis de se formar nos vidros temperados. Mas, mesmo quandosurgem, não provam que os vidros tenham sido trespassados por projéctil de arma de fogo.Somente indiciam que foram atingidos por um projéctil, ou que foram submetidos a umaforça “quase estática” localizada num pequeno ponto da sua superfície.

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6. Normalmente de "PVB" (Polivinil butiral).7. Embora os dos automóveis muito antigos possam ser em vidro temperado.8. Este artigo só aborda os vidros, contudo, conjuntos de estrias concêntricas associadas a estrias radiais tambémpodem surgir noutros materiais e serem analisadas de modo semelhante, por exemplo, em ossos planos.

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Concluir que as estrias radiais e concêntricas são univocamente resultado da acção de projéc-teis de armas de fogo é um erro grosseiro. Muitas outras causas distintas podem estar na ori-gem dessas linhas de factura. Basta uma experiência tão simples como arremessar uma pedracontra um vidro (obviamente não temperado) e facilmente se verá que esse impacto tambémpoderá produzir estrias radiais e concêntricas.Também não é correcta a causa alegada para o aparecimento das linhas concêntricas. Ou seja,que são resultado do movimento de rotação de projéctil em torno do seu eixo principal9 (spin)e formadas pelo "arrastamento" deste na superfície do vidro. Esta teoria, completamente er-rada, tem vindo a ser tão frequentemente repetida que já chega a ser disseminada por reputa-dos especialistas. Trata-se, contudo, de um mito.Mito que é fácil de desmascarar.Desde logo, porque se comprova que as linhas concêntricas e radiais aparecem, também, comoconsequência do impacto de projécteis sem movimento de rotação (exemplo da pedra). Ouseja, estão associadas a impactos de projécteis não providos de movimento giroscópio em tornodo eixo longitudinal à sua linha de deslocação. No universo das armas de fogo, seriam, entreoutros, a generalidade dos projécteis disparados por armas com canos de alma lisa. Por outro lado, convém não esquecer que, mesmo nos projécteis disparados por armas decanos estriados, o componente spin do seu movimento tem sempre que ser estudado em con-jugação com os restantes movimentos: precessão, notação e yaw (entre outros insignificantes).Ora, nesse conjunto dinâmico, a rotação é pouco significativa.Até nos casos em que o spin se mantém para além do momento do impacto inicial e os pro-jécteis são disparados por canos com passos de estrias extraordinariamente curtos, estes só têmuma rotação muito lenta (normalmente mais de 1,20 m para uma volta completa). Assim sendo,não faz sentido afirmar que: “…as linhas concêntricas resultam do arrastamento do material na su-perfície vidrada devido ao movimento de rotação do projéctil…” pois esse arrastamento não existe.Ou melhor, em termos práticos, o movimento de rotação é desprezível e mais será um eventual“arrastamento”, alegadamente causado pelo atrito entre o projéctil e a superfície de vidro. Aliás,o trabalho exercido pelo factor rotação só se poderia fazer notar sobre o vidro se este tivesse umaespessura suficiente para que os vectores da rotação lhe fossem transmitidos.Para que se perceba quanto é insignificante a rotação, encare-se a hipótese dum vidro com a es-pessura de 10 mm ser trespassado por um projéctil disparado por um cano com um passo de es-trias de 1,20 metros (que é mais apertado do que o habitualmente encontrado nas armas defogo10). Facilmente se conclui que, em teoria, durante a transposição desse vidro o projéctil sópoderia rodar 0,083333 de uma volta completa. Na realidade, nem isso chega a acontecer, poisa rotação reduz-se aquando do impacto. Mas não só por isso a teoria cai por terra. Pois acontece

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9. Caso típico dos projécteis disparados por armas de fogo com canos de alma estriada.10. Não se está aqui a prever a hipótese de o disparo ter sido efectuado num "cano de teste", coisa que só existe noslaboratórios de balística.

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que no momento exacto em que um projéctil de alta velocidade embate num vidro, este últimoentra em vibração de alta-frequência e começa a desagregar-se em micro-fissuras resultantes daacção das ondas de choque. Este fenómeno dificulta a transmissão do vector rotação, nomeada-mente sob a forma do “arrastamento”, pois reduz (ou elimina) o contacto entre os lados do pro-jéctil e o bordes do orifício criado pela sua ponta. É que, quando a secção lateral do projéctiltrespassa o vidro, este já foi destruído pelas ondas de choque geradas pelo impacto da sua ponta.O mito que associa as linhas concêntricas ao arrastamento causado por projécteis em rotação,só poderia fazer algum sentido se os projécteis tivessem uma rotação extraordinariamente rá-pida, semelhante à broca de um berbequim eléctrico e – cumulativamente – os vidros tives-sem uma anormal viscosidade.Por tudo isto se percebe que não pode existir relação, directa e necessária, entre impactos deprojécteis de armas de fogo e as linhas de fractura concêntricas e radiais.Na realidade, esses conjuntos geométricos de linhas de descontinuidade resultam de diversosfactores, podendo, no limite, ocorrer como resultado de pressões “quase estáticas”, portantosem implicar a intervenção de qualquer projéctil. Diversas variáveis interferem na génese des-sas linhas de fractura, designadamente: a força exercida em relação à área onde é aplicada, aenergia cinética que o projéctil possui no momento do impacto, a densidade seccional do pro-jéctil, a sua dureza e, sobretudo, as características do próprio vidro.Recorrendo a uma explicação simplificada, pode-se afirmar que: quando o vidro sofre umapressão localizada, a face oposta à pressão é “empurrada” e distendida, tornando-se convexa,enquanto que a face onde a pressão incide directamente vai sendo “empurrada” e comprimidasobre si própria, tornando-se côncava. A distensão origina as linhas radiais e a compressão domaterial sobre si próprio forma as linhas concêntricas. Identificando a face em que está cada um desses tipos de linhas pode-se concluir qual terá sidoo sentido da força. Surge assim a fórmula que dita que as linhas de fracturas concêntricasaparecem na face que sofreu o impacto (ou melhor, onde incidiu o vector força) e as fractu-ras radiais surgem do lado oposto. Note-se que estas linhas podem também sobrevir mesmosem perfuração completa do vidro.Decompondo no tempo a ocorrência, verifica-se que as fracturas radiais são as que primeirosurgem; portanto, a face oposta àquela onde incidiu a força será a primeira a apresentar linhasde fractura. Só se for ultrapassado determinado limiar de tensão poderão vir a surgir as frac-turas concêntricas, desta feita, do lado onde a força foi directamente aplicada. Assim sendo,torna-se possível determinar qual o sentido da força, mesmo não existindo perfuração nem li-nhas concêntricas; bastará determinar em que face do vidro estão as fracturas radiais para sepoder concluir que a acção se iniciou na face oposta.Esta ausência de fracturas concêntricas e/ou a inexistência de perfurações completas é fre-quente nos pára-brisas das viaturas automóveis, sendo que, por vezes, nem se chegam a formar

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quaisquer linhas de fractura, tão-somente pequenos pontos de material desagregado.Percebe-se agora porque é importante ter presente que a existência destes dois tipos de estriasnão representa, necessariamente, o resultado de impacto de projéctil. Tão pouco implica a in-tervenção de qualquer arma de fogo e ainda menos a de armas de fogo com cano de alma es-triada. Não são de descartar essas hipóteses, mas nunca podem ser as únicas a considerar.Mantendo presente esta limitação, a interpretação da geometria das linhas de fractura con-cêntricas e radiais tem a vantagem de nos revelar o sentido da força que levou à ruptura dovidro e pode permitir estabelecer uma cronologia entre os diversos impactos, através da aná-lise dos cruzamentos das linhas de fractura.Essa análise tem por base o facto de uma fractura nunca se propagar para além de outra já exis-tente, com a qual se cruze. Assim, se ao seguir uma linha de fractura se detectar que esta foiinterrompida ao entroncar-se com outra, tal significa que a segunda já lá estava, portanto, oque quer que a tenha causado terá que ter ocorrido antes.Não obstante esse exame extraordinariamente complexo no caso de múltiplos impactos, torna-se tanto mais simplificado quanto menos forem e permite descortinar a cronologia dos even-tos. Assim, por exemplo, no caso de fracturas causadas por projécteis de armas de fogo, pode-sedescortinar qual a sequência cronológica dos disparos.No caso das perfurações causadas por impactos de projécteis, outra característica servirá de in-dicador, trata-se do cone de saída11. Essa formação (tal como as estrias) nem sempre ocorre,dependendo, sobretudo, da velocidade do projéctil.O cone de saída resulta da forma como é transmitida a energia cinética através do vidro.Quando uma superfície vítrea é atingida por um projéctil de alta velocidade, a sua elasticidadenão chega a ter efeito relevante ao nível da absorção da energia destrutiva. Nessas condições aacção do projéctil é demasiado rápida para que a energia se possa dissipar muito para além doponto de impacto. Assim sendo, o projéctil aplica a energia num pequeno ponto e a pressãopropaga-se rapidamente sob a forma de ondas de choque. Essas ondas de choque são conve-xas com origem no ponto do impacto e deslocam-se no sentido em que a força foi exercida.O cone de saída reproduz a “forma” e a direcção de propagação das ondas de choque. Assim,em termos práticos, surge a norma que dita que a face do vidro onde o orifício tiver menordiâmetro corresponderá “ao lado de onde veio o projéctil”.O modo como os projécteis de alta velocidade transferem a sua energia através dos vidros levaa que as suas perfurações sejam, por norma, mais focalizadas do que as causadas por choquesde objectos a baixas velocidades. Por oposição, quando um vidro é quebrado por acção de umobjecto com baixa velocidade a destruição será mais extensa, uma vez que a força destrutivaterá mais tempo para se dissipar ao longo da superfície do vidro. Assim se chega à conclusão

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11. Também chamado de "cone de percussão".

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de que, por norma12, quanto mais se prolongarem as linhas radiais menor terá sido a veloci-dade do impacto, ou menos focalizada terá sido a força destrutiva. Esta pequena distinçãopode servir de indício da intervenção de projécteis de armas de fogo. No caso particular de pro-jécteis de alta velocidade, pode, também, permitir estimar o seu ângulo de embate, porquantoo orifício será tão mais circular quanto mais perpendicular for a incidência do projéctil, pas-sando a elíptico conforme esse ângulo se vai reduzindo.

A transposição de estruturas em vidro laminado é extraordinariamente difícil. Não só porquese trata de vidros com uma grande elasticidade (superior à do vidro comum e muitíssimo su-perior à do vidro temperado), mas também porque a película plástica no seu interior confereresistência adicional e permanece intacta mesmo que ambas as placas de vidro se quebrem.As únicas formas de transpor vidros laminados são o desmantelamento da sua estrutura de su-porte (por exemplo, desmontando/cortando as junções entre o vidro e a caixilharia), ou a que-bra dos vidros seguida do corte da película plástica. Qualquer das opções será demasiadodemorada para a maior parte dos cenários táctico-policiais. É certo que uma solução mais ra-dical permite surtir efeito rápido, nomeadamente para conseguir transpor janelas ou portas emvidro laminado, mas tal implica o recurso a explosivos dispostos em cargas lineares de corte.Os “vidros à prova-de-bala” são, normalmente13, vidros laminados com múltiplas camadas devidro intercaladas por películas de PVB. Este tipo de construção permite a dissipação da ener-gia dos impactos e, a cada embate, a estrutura vai consumindo essa energia na destruição de umaou mais camadas de vidro/película. Sendo que, para a trespassar, será imperioso destruir todasas camadas sucessivas de vidro e de película. Assim sendo, percebe-se porque nenhum vidro seráabsolutamente "à prova-de-bala", uma vez que a cada impacto que sofrer se irá destruindo par-cialmente. Bastará repetir impactos numa mesma zona para que a coesão deixe de existir e ovidro seja trespassado.

São os vidros mais baratos e mais fáceis de produzir, daí a sua profusão e denominação de“vidro comum”. São usados em vasilhame, louça, objectos decorativos, janelas de habitaçõese numa infinidade de objectos.

Vitor Teixeira

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12. E, obviamente, mantendo constantes as demais variáveis.13. No caso dos “vidros” totalmente em policarbonato a resistência desse material é proporcional à sua espessura eresulta da estrutura molecular do composto e das suas extraordinárias propriedades elásticas (absorção da energia) eplásticas (deformação sem atingir o limite de ruptura). Actualmente, certos tipos de vidros à prova de bala lamina-dos intercalam placas de policarbonato com placas de vidro.

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Sob o ponto de vista da resistência, são os mais frágeis, tendo a desvantagem adicional de ori-ginarem “lâminas de vidro” quando partidos. Mas, ao contrário dos vidros temperados, podemsofrer rupturas localizadas e ser cortados ou perfurados sem que se estilhacem. Sob o ponto de vista da análise dos danos, aplicam-se os mesmos métodos utilizados nos vi-dros laminados. Saliente-se que nos vidros comuns as linhas de fractura são mais consolida-das e extensas do que nos vidros laminados. Porém, existe uma maior tendência para a perdade vestígios, pois é frequente o vidro comum quebrar em grandes pedaços que posteriormentequebram novamente ao embaterem no chão.

Estes vidros não representam obstáculo ao arrombamento, mas são perigosos pois podem pro-vocar cortes devido ao facto de se decomporem em secções afiadas. Esta particularidade temque ser tida em conta por quem pretenda atravessar uma estrutura recém-arrombada (portaou janela, por exemplo), pois pode acontecer que sobre si estejam pendentes lâminas de vidroprestes a cair. Exactamente por isso torna-se necessário “limpar” as janelas ou portas arrom-badas antes de as transpor. Ao nível de ferramentas tácticas de arrombamento, existem ins-trumentos específicos para esta função. Na sua falta, terá que prevalecer muita cautela porparte de quem pretenda quebrar um vidro deste tipo. Não só por causa das lâminas que ficampresas à estrutura arrombada, mas também por causa dos pedaços que se soltam e caem no mo-mento em que o vidro se quebra. Esta necessidade de cuidado aumenta proporcionalmente àárea do vidro arrombado, de modo que, nos vidros de grandes dimensões, é necessário prevera zona onde os fragmentos irão cair. Recorde-se o quanto é comum a ocorrência de ferimen-tos graves nos indivíduos atingidos por pedaços de vidro comum. Foi exactamente esse perigoque levou à adopção de vidros temperados e de vidros laminados na construção de portas,montras e janelas.

Após muitas experiências de arrombamento de vidros de viaturas automóveis, as conclusõesobtidas contradizem algumas das crenças do senso comum. Convém recordar que muitas des-sas crenças nascem da extrapolação de casos isolados e de generalizações indevidas. Ora, nestecampo, as variáveis são tantas, que frequentemente surgem resultados atípicos, que não podemser confundidos com a norma.

Análise das Marcas de Impactos e de Perfurações em Vidros

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INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Revista Semestral de Investigação Criminal, Ciências Criminais e Forenses

Publicação da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária

2011

1 . Ensaios e Estudos

Preç

o: 7