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ISBN 85-7106-289-7 L,7' L94

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ISBN 85-7106-289-7

L,7' L94

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Coleção Pensamento Criminológico

Cristina Rauter

Crilninologia e subjetividade no Brasil

/

~ Instituto Carioca de

Criminologia

€R Editora Revan

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~Pensan1ento

Criminológico

Prof. Dr. Nilo Batista

© 2003 Instituto Carioca de Criminologia

Rua Aprazível, 85 - Santa Tereza Rio de Janeiro/RJ CEP: 20241-270 Tef: (21 )2221 1663 fax (21 )22243265 [email protected]

Edição Revan

Av. Paulo de 163 20260-010 Rio de Janeiro R,J tel: ) 2502 7495 fax: ) 2273 6873 [email protected] / www.revan.com.br

Projeto gráfico Luiz Fernando Gerhardt Revisão Sylvia Moretzsohn Diagramação lido Nascimento

RaUler, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil! Cristina Rauter. -- Rio

de Janeiro: Revan, 2003

128p.

ISBN 85-7106-289-7

1. Direito penal.

A ;ninhas filhas,

Luísa e Clara

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Sumário

À guisa de prefácio ......................................................... 9

Apresentação ......................... , ......................................... 11

O nascimento da criminologia no Brasil

1. Introdução .................................................................... J5

2. Os juristas e os "progressos da ciência" ......................... 19

Era o caos por toda parte ............................................. 19

c direito ......................................... 25

Sobre a a h~i ..................................... 27

Sobre o livre arbítrio .................................................... 28

Sobre as penas .............................................................. 28

Sobre a natureza do ato de julgar e a origem das leis ....... 29

3. Da anormalidade do criminoso ......................................... 30

--Uma espécie à parte do gênero humano ......................... 30

Anormais morais .......................................................... 34

O brasileiro e a degeneração moral ............. , ................. 37

Curar o crinlinoso ........................................................ 39

Crime e loucura ........................................................... 41

Criminologia e .......................................... 41

Os estados crepusculares da liberdade .......................... 44

O destino do louco-criminoso ....................................... .49

Todos somos criminosos ou a 11".\.."'J, .... ",,;; ......... 50

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4. Da anonnaHdade social ................................................. 57

Ferri, a psiquiatria e as causas sociais do crime .... 58

o micróbio o meio de ......................... 1

e l'eforma socia I ..... : ........................... 62

;Vluitidões crimiílOsas .............................................. 65

5. O Penal de 1940:

....................................................................... 75

do preconceito ........................ -....................................... 83

1. A história individual: o condena ........................ 88

....... 9S

4. do cárcere .......................... 'I' ....................... 98

5. O tratam.ento penitenciário ............................................ 1 02

6. Conclusão ........................................................................... 1 07

Bibliografia ........................................................................ 111

Os carreiristas indisiciplina

Um estudo sobre a psiquiatria e seus ........ ll3

Justiça e psiquiatria ........................................................... 113

o psic(lP~lta como limite entre a 114

A de um saber sobre as .................... 118

Os "carreiristas da indisciplina" ........................................ 121

........................................................................ 125

É uma honra para a Pensamcnto este que reúne três trabalhos da Cristina Raulcr. Desde os anos setenta, Cristina desenvolve não apenas um mas sobretudo uma militância- iniciada como psicóloga do e aprofundada mais tarde como vice-presidente do Conselho Penitenciário

que saberes

história

do inflAm. vinhetas l' ctt) código criminal imperial não impunham irrestritamcntc a institucio­

nalização dos loucos - solução que a reforma que resultaria no código penal de 1890 manterá - as coisas vão mudar na primeira República. O sucesso do positivismo criminológico entre nós tem uma dívida com a abolição da escravatura, porque o discurso do controle pcnal tem que

mover-se do paradigma escravista da il1ferioridadejuríclica para o da

inferioridade biológica; ao contrário do primeiro, pura decisão

ca, o segundo de demonstração "científica". Nina

achava que seu As roças hUlilonas era um cstudo dc

naI. Enquanto, na última década do século XIX. o das de era inventado na Europa, os

vados e recolhidos por co e processos c

crimi­

mcdi­

eram obser-

de em momento a alta provir de decisão

laudo psiquiátrico converter-se cm alvará de soltura, é o

que Cristina nos rcvela e nos drásticos. Sim, bem que neste campo uma tcó-rica tem o mesmo efeito de uma legal, para o bem ou o

9

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mal. Alguémjá se esqueceu da segunda parte do § 4 o das novas regras formuladas pelo Dr. Simão Bacamarte, que significou não só o esva­ziamento da Casa Verde, mas também abriu suas portas para outros hóspedes compulsórios?

O segundo trabalho se detém sobre a expressiva~mostragem de 120 laudos de exame para de cessação de periculosidade.

Embora banidos da prática da execução penal pela reforma de 1984, Cristina tem toda a razão em que "permanece muito do rito que os criou".

Por fim, temos a bem-vinda reedição do primoroso c_esgotadíssimo Os carreiris:as da indisciplina, publicado em 1979 pela Achiamé: o implacávelidesnudamento das entidades nosográficas c0!1hecidas por "personalidade psicopática" e "personàÚdade sociopata". Qualquer

quantos mi­con-

que permanecem ainda que vampirescamente refugiados nas tumbas, à espera dos enig-mas chocantes - um maníaco do parque, por exemplo - cujo sangue lhes garantirá mais sobrevida.

Cristina Rauter é uma:interlocutora especial para os juristas sedi­ciosos porque, invertendo o sentido do contubérnio positivista, atribui à investigação psiquiátrica ou psicanalítica um sentido libertador.

Nilo Batista

10

Apresentação

Este conjunto de textos se propõe a discutir a criminologia brasileira enfocando-a sob doisfispectos pelo menos. Inicialmente, em "O nasci­mento da criminologia no Brasil", empreendemos uma análise da emer­gência do discurso criminológico a partir de novos elementos que foram sendo incorporados ao discurso jurídico liberal a partir do final do século XIX. A partir desta análise podemos conel uir que, não obstante sua fragi­!idade teórica, a crimiriologia já nasce útil- ela não apenas esconde uma realidade carcerária violenta, mas a instrumenta, maximizando seus tos. No contexto de dadedo dos" psiquiátricos, psicológicos, etc.) muitas vezes, perância do próprio sistema, por seu funcionamento discriminatório e ilegítimo, introduzem apenas novos entraves burocráticos que têm como principal efeito concreto o aumento puro e simples da pena. Não é à individualização da pena ou à implementação de novas tecnologias de tra­tamento do delinqüente que prestam serviço a multiplicação das avalia­ções ensejadas a partir do advento da crimínologia. Não seda inexato dizer que o principal efeito dessas novas tecnologias no contexto brasileiro é o aumento da velha pena de prisão. Mas não era disso que tratava desde o início a climinologia, ao pedir o fim da igualdade perante a lei, e clamar por "penas especiais para homens especiais"? Ou ao difundir a idéia de que atrás de cada crime se escondia uma personalidade perigosa, doente e geralmente incurável?

Os outros dois textos dizem respeito mais especificamente à implementação prática do discurso criminológico na r~alídade ." Em "Diagnóstico psicológico do cdmínoso: tecnologIa do preconce~to ,

laudos realizados com a finalidade de avaltar a . Em "Os carreiristas da indis-

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ciplina", analisamos o funcionamento do de psicopatia no ínteriorde um estabelecimento operando como modo de e

llL',ILd.V de "rebeldes".

Os três textos foram escritos ças ocorreram no da

o fato de que o Exame para riculosidade, o não é mais realizado

'"II"",->,,,(10S Não existe mais denominada "duplo , em que se aplicava a pena e a

da de contra-senso que o mais febril dos

veria razões para c cuja adoção atendeu apenas a motivações de

política criminal, de conciljação do inconciliável, ao estilo brasileiro.

Como

Uma certo tipo de "n'1entalidade crirrunológica" fundamenta estas avalià­ções e laudos. A transformação do crime em doença, ptinci paI efeito do

discurso criminológico, deixou marcas indeléveis nos modos de proce­der dos técnicos d~ "sisten)a", com efeitos palpáveis sobre o futuro dos

seus avaliados. No momento atual, porém, a crença nas possibilidades de .. tratamet'lto deste "doente" ou anormal parece estar em franca decadên­

cia, impulsionada pelo discurso da "tolerância zero". O que se quer hoje, mais enfaticamente, sob a pres~ão histélÍca de um inexorável e incontrolável

aumento da criminalidade, é diagnosticar para encarcerar pura e simples­

mente, mais do que para tratar ou individualizar a pena. Haverá

individualização da pena em presídios de segurança máxima? Haverá ain­da interesse em que detento's estudem na prisão, ou que aprendam qual­

quer ofício? Há toda uma redefinição da função do encarceramento em curso no sentido (infelizmente) da ênfase no aspecto punitivo, com me­

nos pudores que outrora, em detrimento do sonho de modificar ou inler­vir sobre a personalidade do delinqüente. Cabe notar que o discurso da

criminologia, desde os seus primórdi.os, não fez outra coisa que cantar

12

aos quatro ventos esse irresistível aumento da criminalidade, de conclamar a todos para a de mais modem as e A LC;L.llL"V)".Ht

Por outro da população se constitui cada vez mais a zona cinzenta do

tráfico e do uso de como forma predominante de cri mina lização .

dos pobres e ou usuários de outros sociais continuam em minoria ou quase ausentes no penal). Esses novos clientes da prisão e também dos manicômios judiciários

nida dessa clientela gra-

que se trala, , ainda

associada a transtornos anti-sociais. J,-'

Em "Os'carreiristas da Íl1disciplina", abordamos a questão da

psicopatia. O diagnóstico sofreu transforr:nações, sendo prefe:'ida ho}e a , categoria de Transt01110 Anti-Social, a pintir da DSM IV, a maiS atuahza­

da classificação internacional de doenças mentais, A psiquiatria america­

na contemporânea, ou quem sabe poderíamos chamá-la com mais exati­

dão de psiquiatria globalizada, ou até "impelial", e, em especial, a corrente denominada "psiquiatria biológica", qtfer afastar-se de denominações re­

lacionadas a estados internos. Afasta-se da psiquiatria outrora denomina­da "dinâmica", de inspiração psicanalítica, ou de inspiração fenomenológica,

e aproxima-se de correntes comportamentais, em que a descrição P/u~'a e simples, considerada objetiva e não filiada a qualquer corrent~ te~n~a, atende melhor às definições atuais sobre o que é científico em pSl,qUlatna.

o\transtorno anti-social não é diferente da psicopatia num aspecto

básico~~ de pretender fazer da oposição às leis, da rebeldia, da desobedi-o sintoma de uma doença1A mudança reside muito na desen-

voltura com que os novos psiquiatras, apoiados em suas ditas neutras e descompromissadas, se desobrigam de buscar causas ou

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de contextualizar os fenômenos que observam. Estão comprometidos apenas com descrições "objetivas" de comportamentos que os autorizam pragmaticamente a eIlfrentar esses transtornos "Com o arsenal medicamentoso da moderna psiquiatria. Para cada síndrome, UJ11 moder­no medicamento - a potente indústria fannacêutica parece ter encontrado um novo campo, o da prisão, ~àra vender seus produtos. Isso já é verda­de nas americanas; será necessário empreender urna pesquisa sobre essa questão nas prisões brasileiras. De qualquer modo, já estão lançadas as bases para que, sem qualquer pudor, se diga que as síndromes anti-sociais têm maior incidência nos bainos pobres e nas prisões, e para que se busque resolver pragmaticamente a questão, pela via medicamentosa, sem necessidade de qualquer reflexão teórica ou política.

A chamada "reforma psiquiátrica", com suas excelentes inten­ções no sentido de pedir a reinserção do doente mental na sociedade e o fim dos manicômios, parece não chegar ao campo penitenciário. Ao

o se acolhendo novos cli-entes, mesmo em que a psiquiatria imperial se em direção aos normais mais do que aos loucos desarrazoados de outrora: o diagnóstico de transtorno anti-social, este híbrido situado a meio caminho entre justiça e psiquiatria, é urna das ferramentas dessa nova tendência expansionista, pois se refere a estranhas formas de loucura lúcida, difíceis de diferenciar da normalidade.

Sobre a criminologia, a mais pragmática e utilitária entre as ciências humanas e, por outro h;ldo, talvez a menos coerente e sistemática, podemos dizer que segue sendo um poderoso instrumento de 6ontrole social, acolhendo cm seu campo de dispersão as recentes contribui­ções de uma psicologia e de uma psiquiatria globalizadas. A partir de uma análise de sua emergência histórica no Brasil e de seus usos con­cretos em instituições penais brasileiras, pretendemos contribuir para seu combate e para a dinrinuição de seus efeitos mortificadores.

Niterói, ] 1 de março de 2003

14

o nascimento da criminologia no Brasil

1. Introdução

Este trabalho tem por objetivo analisar a constituição históri­cá da criminologia no Brasil, bem cOmO a história das transforma­ções dos dispositivos de poder que este saber foi capaz de instrumentar. Tomaremos a déeada de 1930 como período privile­giado, uma vez que foi particularmente fecundo na elaboração das idéias que geraram o Código Penal de 1940. Éjustamente o "Novo Código" que incorporará a noção de periculosidade, como resulta-do décadas de discussões nos meios brasileiros em torno da de modos de julgar e f. Não é nosso tivo, ,'empreender uma análise mais aprofundada sobre as tr~nsformações pelas quais passava o Estado brasileiro na época. Ativemo-nos exclusivamente às transformações no âmbito do dis­curso jurídico e a algumas mudanças nos dispositivos legais relacio-nados ao discurso crirrlÍnológico que se difundia. '

Ao tomarmos a criminologia como um "saber", estamos desde já nos afastando de um tipo de an1ilise que pretendesse formular uma

, nova criminologia, capaz de resolver os problemas de uma anterior, excessivamente vinculada ao Estado e a seus interesses.

As relações entre saber e poder são, em nossa concepção, intrínsecas. Lançando mão da noção de "poder disciplinar"!, pode­mos compreender os saberes enquanto partes de estratégias de poder. Neste sentido, as humanas (psicologia, psiquiatria, criminologia e outras) surgem historicamente como ponto de apoio para novas técnicas de gestão das massas humanas, capazes de

I Michel Foucault. Vigiar Vozes, p. 191-9.

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controlá-las, fixá-las e de produzir indivíduos vista da produção e dóceis do ponto de vista polític02.

do ponto de

A de poder não deve ser com­exclusiva a transformações ocorridas no

As ~"'v',JU"'L'0 se como uma rede que atravessa o espaço social, não têm como fonte única o (embora não estejam desligadas dele), mas se em dis­positivos nas instituições, nos métodos de vigilância e COl1-

tw1eJJa

Por outro lado, o modo de funcionamento deste dispositivo .não se caracteriza apenas pela repressão, pela violência, rrfas também i)ela . produção de saberes que instrumentam táticas de controle, fixação e adestramento dos corpos.

pela da não apenas como de

os de presentes na prisão e mesmo fora dela, a rede forma­

da pelos procedimentos policiais, pedagógicos e assistenciaís que a complementam, são todos eles produtores de "conhecimentos" relati­vos aos indivíduos sobre os quais se exercem.

Da mesma forma, a constituição da psiquiatria não pode ser se­parada da criação do asilo, que inaugura novas formas de gestão da loucura, abrindo espaço para uma observação "cientificamente" orien­tada do louco, que o redefinirá como um "doente" 5 •

Cabe também aqui esclarecer o que entendemos por reconstituicão da história de um saber. Não se trata de buscar nos precursores' os primeiros sinais de uma verdade que ao longo do tempo pode se tor­nar mais evidente. Não se trata também de marcar o pontoa partir do

2 Id.. ibid. p. 193.

3 Roberto Machado. "Por uma genealogia cIo poder". Prefácio n Michel Foucault, Microfísica do podei; Rio de Janeiro, Graal, 1979, p.VIl-XXIII. 4 Michel Foucault. op. cit., p. 172.

5 lel. História da lOl/cura. São Paulo, Perspectiva, 1978. p. 459-503.

16

qual passou-se ao domínio científico, fazendo aparecer o passado como um passado de erros6. Interessará aqui conceber a história da criminologia como a história das marchas e contramarchas de um novo dispositivo de poder que se armou no Brasil, no interior do qual o saber deve ser entendido, enquanto "arma,,7.

A condução deste tipo de análise no contexto brasileiro requer especiais. Sendo as disciplinas características de socie­

dades industriais avançadas, que papel desempenhariam numa socie­dade como a nossa, na qual as formas de dominação burguesa encon­tram (e encontraram historicamente) métodos peculiares de implanta­ção? RemetemcH10s aqui a uma problemática ampla, que vem sendo discutida por diversos autores8: a de não se poder falar de uma "revo­lução burguesa" no sentido estrito entre nós, de se ter que repensar as características do Estado de se criticar as análises que pen­sam a social de atraso, de repe­tição tardia e elos nas soei-edadeS ditas desenvolvidas.

Se as disciplinas são como que a outra face do liberalismo polí­tico, como pensá-las no Brasil, onde a ação do Estado sempre se fez de modo violento, onde as relações antagônicas entre as classes não puderam ser absorvidas ou geridas através das estratégias mais sutis e anônimas características deste dispositivo de controle social?

Sem pretender dar uma resposta definitiva a essas questões9,

deixemos esclarecido que não pensamos que saberes como a psiquia-

6 Sobre a concepção descontinuÍsta da história das ciências, ver, entre outros, Michel Pêcheux e Michel Fichant. Sobre la historia de las ciendas. Buenos Aires, Siglo XXI, 1971. 7 Gilles Deleuze. "Os intelectuais e o poder", in Microfísica do p. 71. 8 A questão é colocada com relação ao papel da burguesia industrial na revolução cIe 1930 em Boris Fausto (A revoluçâo de 1930. São Paulo, Brasiliense, 1972) c Paulo Sérgio Pinheiro (Política e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977). 9 Ver a esse respeito Roberto Machado et aI. Da(n)ação da norma. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

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tria, a criminologia, a psicologia, estejam no Brasil "fora de lugar"JO, no sentido de que sirvam apenas para esconder, de modo imperfeito, uma outra realidade política, sem ter qualquer efeito positivo.

Estudando o discurso da criminologia em seu processo de im­plantação no Brasil, pretendemos mostrar que embora em muitos mo­mentos ele tenha servido como disfarce, noutros foi evidente seu pa­pel positivo. A constituição histórica deste saber está ligada, como procuraremos mostrar, à instauração de novas formas de julgamento, -à reforma (ainda que sempre inacabada) das instituições penais, en­fim, à implementaçãO novas de controle social de que se arma o Judiciário para realizar o que a própria criminologia vai definir como "defesa da sociedade". .

Estas transformações correspondem a um processo de "norma­lização"]1 da sociedade brasileira, que não se dá apenas no nível das práticas judiciárias, mas pela escolarizDção, pela mediealização, etc., e que são o correlato do de um indus-trial" crescente. Veremos nos 3 e 4 como se respectivamente as noções de anormalidade do criminoso e anormali­dade social, que instrumentam uma transformação das concepções relativas ao delito.

Segundo Georges Canguilhem, "uma norma se propõe como um modo possível de unificar um diverso, de reabsorver uma diferença, de resolver uma desavença ... a regra só começa a ser regra fazendo regra e essa função de correção surge da própria infração" 12. O modo de absorção ou dissolução das diferenças e contradições nas socieda­des industriais vai ser cada vez mais a normalização técnica, pela qual se pretende racionalizar a produção e ao mesmo tempo racionalizar a vida social e o comportamento dos indivíduos.

10 Roberto Schwarz. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 13-25.

ti Georges Canguilhem. O normal eo Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1 p. 210.

12Id., ibid. p. 212-3.

18

O processo brasileiro vai requerer que se pensem certas es­pecificidades: não se pode dizer que as normas sociais, econômicas, técnicas ou jurídicas tenham se generalizado ou difundido na socieda­de de uma forma abrangente, da mesma maneira que o processo in­dustrial. No entanto, não se trata de diminuir a importância destes mecanismos: talvez o que tenhamos de pensar sejam fornías peculia­res de combinação, nas quais a repressão ou a tentativa de solução das contradições por essa via se articule com estas formas "novas", ca­racterísticas do processo de normalização.

É o que pretendemos também discutir ao longo deste trabalho, em especial no capítulo 5: de fato, no Brasil, o Judiciário incorporou o que poderíamos chamar de uma tecnologia penal normallzadora, com o advento e expansão do discurso da criminologia. No entanto, no nível das práticas sociais (das instituições elo Judiciário), este proces­so não pôde se dar sem um ônus de violência que aparentemente o contradiz. Esta bizarra, até certo de norma e re-

talvez a peculiaridade no processo de zação da sociedade brasileira. As operações conhecidas como de "re­educação", "cura" ou "ressocialização", etc., não podem se dar sem um nível de violência mais ou menos explícitq que todo o tempo as denuncia.

2. Os juristas e os "progressos da ciência"

Era o <;.aos por toda parte

O aparelho judiciário é a instância que possibilita e assegura as condições de exploração que um grupo de indivíduos exerce sobre outro na sociedade. Mas sua ação não deve ser entendida unicamente no sentido da repressão, da violência explícita da polícia, ou da exclu­são pelo encarceramento. Ao lado destes efeitos mais visíveis, é posta em uma engrenagem que inclui também saberes destinados a instrumentar e validar tais procedimentos.

encobrissem ou mascarassem as verda-deiras Ao eles se de modo

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indissociável com as mesmas, produzindo efeitos concretos, capazes de dotá-las de novos e mais eficazes métodos de controle sobre a

Os cesso de

zaria as sociedades do a uma forma de so, de um contrato

costumam referir-se a um pro­que caracteri­

ter-se-ia seriam fruto de consen­

Nessa ser punido sem que uma lei

preexistente, e proporcionalmente ao mal que praticado contra a sociedade. A aplicada a que o

contrato antes de tudo legítima, além de serjusta porque aplicada a todos indiferenciadamente.

leis ter-se-ÍalTl e cstc proccsso na maIs

menos o o que na verdade que, se de urn lado não tem mais as formas

claramente violentas de punição, como o açoite, os suplícios, as fo­gueiras ou os métodos de intimidação exercidos diretamente sobre o

corpo, surgem, de par com este aparente abrandamento das penas, novas tecnologias de poder capazes de, com diferentes métodos, con­seguir a sujeição e a docilidade dos indivíduos.

A disciplina é esta nova tecnologia de poder que age, de certo modo, como prolongamento da lei, preenchendo os espaços vazios deixados pelo'Judiciário. /'

Com o desenvolvimento da sociedade burguesa, desenvolve­ram-se também a medicina social, a escolarização em massa, a polí­cia, os métodos de racionalização da produção, os sistemas carcerários. O espaço social foi reorganizado no sentido de impedir que as massas

populares, ao invés de serem obedientes ao "contrato", descambassem para as ilegalidades, para o desrespeito à propriedade privada, para o

não pagamento dos impostos cobrados pejo Estado, etc. A não obser­vância das leis do Estado vai ser um problema combatido não apenas pela punição, mas, preventivamente, haverá uma tentativ,úle se for-

20

mar, pelos diversos dispositivos disciplinares (pedagógico, médico, militar, etc.), gerações de indivíduos obedientes à lei. Mas é de uma outra lei que se trata aqui - que se de maneira sutil, lento

'U1LUUV da disciplina, do adestramento corporal; que se faz ao em que se educa o povo, se de

higiene, se torna o militar obrigatório. Trata-se ela norma, atra­vés de cuja generalização na sociedade o Estado burguês garante a

do contrato social em bases liberais.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil trouxe-nos os ventos das grandes tnmsformações As "Bases da Consti­tuição da Monarquia Portuguesa", promulgadas em 1821, prepara­ram terreno para a Constituição do Império e para o Código Penal de 1830. Ele vinha substituir as nas

de

o crime de encantos, o trato ilícito de cristãos com Judia ou Moura, e o furto de marco de são igualmente punidos com pena de morte 13 .

Os juristas liberais saúdam este processo humanizador por que passam as leis brasileiras e olham para o passado com indignação. A pena de morte era freqüente, o direito e a religião se misturavam, a aplicação da lei era desigual, havia as provas secretas, as devassas.

Ao marido traído era permitido matar o adúltero desde que esse não

fosse fidalgo l4.

As leis brasileiras humanizam-se, com a adoção de legislações

liberais calcadas 110 modelo europeu. Mas certos autores dirão tam­bém que elas se humanizam excessivamente. Discussões na Câ­mara dos Deputados lamentam o salto exagerado entre as Ordena­ções Filipinas e leis, segundo eles, inadequadas à realidade do país. Defendem o retorno ao fortalecimento da autoridade, ante a amea-

13 João Mendes de Almeida Júnior. Processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1911, p. 105.

14 Id., ibíd. p. 105.

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ça, segundo já o dizem naquela época, de uma criminalidade cres­cente. É assim que a lei de 3 de dezembro de 1841 já impõe restri­ções ao Código de Processo Penal de 1832, limitando as atribui-

dos de paz e conferindo às autoridades policiais fun-ções judiciárias. E, neste momento, a criminalidade é claramente associada à contestação política ao Estado que se implantava. Se~ gundo o Marquês do Paraná,

... a estatística criminal era assombrosa! Era a desordem, a anar­quia, o caos por toda parte! Em diversas províncias o furor re­vo!ucionário se ostentou de modo avassalador... JS

o liberalismo das leis desde cedo pareceu inadequado, do ponto de vista do poder político, à realidade do país, sempre a reclamar instrumentos de controle mais eficazes. A coexistência, no Brasil, de uma legislação liberal, com dispositivos autoritários que são como seu "pano de fundo", tem sido uma constante no direito brasileiro. Para

no textn das leis são encontradas amiúde de evi­dente sentido liberal, alternadas com outras, com nítida inspira­ção autoritária ... O discurso liberal está aí simultâneo, coexistente com o discurso autoritário da "necessidade" de controle, de segurança, de preservação de valores e de condições de sobre­vivência 16.

É também do início do século XIX que data o crescimento em importância da medicina no Brasil e sua expansão enquanto medicina social. As epidemias que assolavam o Rio de Janeiro e o seu combate através de programas de saúde pública trouxeram consigo também uma reorganização do espaço urbano que não se referia unicamente à higiene propriamente dita. A medicina social prescrevia também no­vos hábitos ("civilizados") de vida, novos costumes, combatia a de-

15 Id., ibid. p. 198.

16 Felipe Augusto de Miranda Rosa. e Rio de 1980, p. 37-55.

22

sordem relacionando-a à doença, oferecendo-se ao Estado como fun­damento de uma política social racional e tecnicamente orientada 17;

Mas o processo de medicalização da sociedade brasileira teve lenta evolução, permanecendo ainda hoje inacabado, com fo-cos sucesso nos maiores centros urbanos ao lado de re-

pouco exploradas.

Com isso queremos dizer que o esquadrinhamento do social, efeito característico do poder disciplinar, não se operou no Brasil de maneira tão acabada quanto nos países'de' onde importamos tais mé­todos. Ou seu modo de articulação foi diverso do europeu, com estra­tégias peculiares de poder. Se a medicalização e a escolarização foram implantadas no país de forma desigual, isto não provocou um vazio de poder. O que ocorre é que convivem, no nível das práticas sociais, novas e velhas

s em que o de modo mais ou menos onde a repressão violenta, sem segue sendo a forma de que o Esta-do se vale para a sua preservação. Ou, ainda, pode haver a combina­ção de estratégias sutis de normalização com formas de repressão violentas, que de certo modo denunciam e contradizem as primeiras.

Podemos pensar, neste ponto, a questão da inadequação da legisla­ção liberal à realidade do país, preocupação repetidas vezes demonstrada pelos juristas desde o século XIX. Se as disciplinas não puderam se ex­pandir a contento no Brasil, conclui-se que a norma não pôde ser genera­lizada a ponto de atuar como complemento adequado de um contrato social em bases liberais. E, neste sentido, os juristas do Império tinham razão ao considerar que as leis eram inadequadas ao Brasil; para manter as condições de exploração de uma minoria sobre uma esmagadora maio­ria, de escravos inclusive, era necessário que o Judiciário se armasse de instrumentos mais potentes para a do Estado.

Com o Código Penal de 1890, o código da República, a questão

Jurandir Freire Costa. Ordem médica e norma IUflL/LllCif. Rio de Janeiro, p.79-123.

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da inviabilidade do liberalismo é recolocada pelos juristas, em suas críti­cas a um código ultrapassado e ineficaz para o combate ao

neste período, essa é de modo não é como Ulna j'Jolftica que a mas como !fma

os ventos d '1 cOl'r'C11fe " a necessi-dade de se estar em dia com este movimento renovador, vindo da Europa. Seus são repletos de mão, italiano. Quando são feitas sobre crimes os exemplos são quase sempre estrangeiros. As referências à realida­de brasileira são particularmente escassas.

apenas, que as

só teriam um de da

mos que não. O discurso da criminologia capaz de produzir efeitos concretos: que l~e~ultaram num reaparelhamento do Judiciário, amplian­do seus dISpOSItIVOS de controle e repressão.

A criminologia, espécie de amálgamupor vezes mal articulado e confuso das ciências humanas, foi a via através da qual o JudicIário pôde incorporar certas estratégias disciplinares que redefiniram as noções de delito e de punição e que modificaram a ação dajustiça. Ela pôde aparentemente se humanizar, revestir-séde uma finalidade tera­pêutica e de uma neutralidade científica.

. ~os chamados desenvolvidos a disciplinarização da jus-tlça fOI o correlato de um processo de disciplinarizacão de toda a sociedade. >

Teremos que reconstituir o significado da introdução do discur­so da criminologia junto ao Judiciário numa sociedade como a brasi­leira, em que os controles disciplinares tiveram um modo de articula­ção peculiar, jamais conseguindo ocultar a violência das relações entre as combinando quotidianamente norma e

24

Criminologia e direito penal

A principal produção do discurso da criminologia é a figura do criminoso anormal, cuja era anti-gos Tal desconhecimento, dizem os com que as antigas leis fossem, zindo os

aos de defesa social

reais, não fJHHH""

O criminoso não era tematizado pelo liberal, a não ser como o agente de uma transgressão à lei. Todo cidadão devia ser considerado responsável, já que parte contratante, a não ser que se tratasse de um louco, de um débil ou uma Fundadas num contrato social livremente firmado, as leis eram consideradas produ­tos de um consenso democrático e portanto legítimas, Legítima era

A punição infligida ao indivíduo pela pena devia ser também pro­porcional ao deUto cometido, delito este definido por lei preexistente. Se há arbítrio na lei, este é antes de tudo legítimo, já que visa sobretu­do a defesa da sociedade contra o arbítrio de um só de seus cidadãos, que, pelo delito, ameaça a liberdade da coletividade.

A criminologia vai empreender uma crítica radical dos funda­mentos do direito penal liberaL Ela vai traçar uma história evolutiva segundo a qual o direito, a partir da criminologia, pôde enfim tornar­se uma ciência, redefinindo retrospectivamente o passado como um passado de erros.

Segundo os criminólogos, o direito penal teria saído de um está­gio embrionário, rudimentar, de um tempo em que assumia formas semi-selvagens, inci vilizadas, para chegar, depois de lenta evolução, a um período em que basear-se-ia finalmente em métodos científicos.

Nesse período inicial, as penas eram excessivamente cruéis, a tortura era aplicada sem limites, confundia-se a lei com a religião

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e o c~ime com o pecado. A sociedade, dizem-nos os criminólogos, r~agla natural e espontaneamente contra seus detratores, mas esse tIpO de reação social era desordenado, excessivamente cruel e aca­ba~a ~ui.tas vezes por voltar-se contra a sociedade mesma, já que a vIOlencIa acabava por dizimar parte da população.

Num período intermediário, o direito horroriza-se com a cruel­dade pena~. mais humano e justo, as penas são apli­cadas ~om"n:alOr parcimônia e uniformidade. É o período "ético­hu.ma;l~sta maugurado por Beccaría, com o estabelecimento do pnncIpIO da pI:oporcionalidade das penas e dos delitos, da igual da­~e perante a leI, da não-retroatlvidade da lei penal e da responsabi­hdade corno fundamento do direito de punir.

Mas, s~ por um lado há um avanço no sentido da humanização, por o~tr~ ha uma certa ingenuidade, ignorância até, no entender dos cnmmólogos. Por prescindir de . nas qUaIS se

em considerações metafísicas e , sua tarefa a

À t~rceira ~as~ corresponderia, com o advento da criminologia, a ascensao do dIreIto penal ao seu período científico, no qual a lei passa a corresponder a uma avaliação científica da sociedade e da mente humana. De certo modo, essa terceira fase reedita a primei­r~. A reação social contra aquele que c'omete um delito é também v1sta como natural. Tal como nas tribos primitivas, o direito penal representa uma reação legítima do "corpo social" a uma das suas p~rt~s doenti~s. A seleção natural é tornada como fundamento do dIreIto de pumr por alguns autores:

A lei que ~arante e mantém a conservação das espécies consis­te, enten~lda na sua acepção ética, em que o indivíduo receba os proveItos e sofra os prejuízos de sua próprÍa natureza e do comport':l:mento que dela decorreIs.

No entanto, se em seus primórdios esta

Bastos, 1963, p. 95. escolas penais. Rio de Janeiro, Freitas

26

e por demais violenta, hoje ela é mais elaborada, mais racional e sistemática, já que fundada na ciência.

O momento tático inicial que inaugura a criminologia traz corno efeitos, de um lado, a promessa de um direito penal que pode enfim conhecer cientificamente o crime e os meios para seu combate e, de outro, a denúncia de que o direito liberal é anticientífico e ineficaz. Aparece a denominação "escola clássica", que passará a designá-lo, por oposição à "escola antropológica" ou "positiva", construída pela crillÚnologia.

Vejamos inicialmente, de modo resumido, que transformações, no nível do discurso, a criminologia vai operar sobre o direito penal, em nome desta nova realidade trazida à luz pela ciência da crillÚnologia.

Sobre a igualdade perante a lei

O direito "clássico", por prender-se a metafísicos, não ver a fundamental entre os ho-mens. Deve haver homens As não têm o mesmo efeito de intimidação e coerção sobre todos os ho­mens, pois há aqueles que se constituem como verdadeiros inimi­gos da ordem jurídica, sendo insensíveis à pena.

Assim sendo, o direito deve deslocar-se da apreciação dos delitos e das penas para o estudo daquele que comete o delito. Deve analisar os criminosos em suas peculiaridades psico-sociológicas. A partir desta operação, estabelecer-se-ão penas adequadas a características de per­sonalidade.

O crime, que anteriormente era definido como transgressão à lei penal, converte-se em indício, em manifestação superficial que aponta para a personalidade do criminoso.

Contraria-se também o princípio cardeal do direito penal "não há pena sem lei". Pois que a pena deve basear-se, mais do que na violação de um artigo do Código Penal, no estudo da personalidade do criminoso.

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..

Sobre o qvre arbítrio

A idéia de que o fundamento das leis é a existência de um contra-to social firmado entre os membros da a concep­

LI'-'.IU(;lU,", racional de decidir sobre ção de que os homens têm esta seus atas. Considerados como em virtude desta mesma

neste contrato, é se

violação dos mesmos. Os loucos, as os dementes não podem decidir com a seus atas, não tanto nem criminosos, no sentido jurídico do termo.

A vai criticar a noção de livre arbítrio e de respon-sabilidade, mostrando que não é a razão que controla nossos atas, mas os instintos, os afetos, os atas reflexos. Há uma de monstro

não apenas os mente

Do de da urge que as pe-nais se adequem a esta realidade trazida à luz pela ciência. Se os ho­mens não são livres para agir, como fundamentar a legitimidade da reação social sobre o livre arbítrio e sobre a responsabilidade?

A lei smge, no discurso da criminologia, como um anteparo ne­cessário que a sociedade deve opor a esta espécie de caos íntimo que habita todo ser humano.

Sobre as penas

Para o direito liberal, a pena, antes de ser útil ou devia ser legítima, ou seja, fundada em lei anterior e aplicada em indivíduo res­ponsável. A criminologia inaugura a noção de que as penas devem, antes de tudo, ser eficazes. Sua legitimidade baseia-se não mais em considerações estritamente jurídicas, mas cÍentíficas.

A proporcionalidade entre os delitos e as penas deve ceder lugar a considerações quanto à modalidade de pena a ser aplicada, de modo a corrigir uma anormalidade e, ao mesmo tempo, dotar o Estado de

28

meios mais eficazes na defesa contra estes seus inim~os anormais. Surge a noção de pena indeterminada, graduada segundo o . d.e

. . - por sua mefl-anormalidade do cnmmoso. As vao ser

1 Quanto aos

~o~ . deveriam prodUZIr

de

razão da própria do criminoso,

isso não ocorre. Em não intimidável

ou de por meio de

Sobre a natureza do ato de ea das

Um dos maiores alvos da crítica a ser d~s~'echada yela criminologia é o júri popular. O direito liberal defIma a funçao de

d "de mo-como "de bom e ,

19. Pois a

são do consenso seus

aplicar a lei, o juiz, em razão de seu próprio e poderia hipertrofiar-se em suas funções. .

O júri popular, formado por representant~s.do P~v?, sena u.~ elemento de moderação a impor limites ao arbltno do JUIZ. DeveI lU

ser composto por "homens do trabalho ativo", "pesso~s ~u~ se atêm ao lado prático da vida,,2o, contrastando com os própnos JUIzes, que, por força da profissão, estariam relativamente afastados dos

efubates quotidianos. Ora, o discurso criminológico veiculará um outro tipo de vi­

são sobre a atividade de julgar. O júri popular pass~ a s.er c~:n:re­endido como um obstáculo a uma compreensão maIS clCnufIca do criminoso e do crime. É tornado incompetente para julgar porque

19 Magarinos Torres. "A importância do para B ']' a de I R· d J "0 Sociedade raSI elr

Brasil", in Revista de Direito Pena. !O e anel! , Criminologia. Vol. VIII, J 935, p.47-57.

20 id., ibid. p. 47-57.

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. , 'I! ,

não detém um saber q '" ' p 'J 1 ' ue so a magIstratura togada" é capaz d C~l~;~~e:~~~passa a ser um:função técnica, noção essa que s:

à origem das lei; ~~: ~~:~;~;a~ naturalís,ta (e não política) quanto vida coletiva de que a so 'do d a necess1dade, determÍnada pela

d ' L Cle a e se defenda de seus detratore ' :0~1 o, ao mes~o te~11po, no nível individual, um freio aos insti:~

, ~ue covernam todo ser humano, impedindo-o d· I' , mente decldIr sobre seus atos, e lvrc-

Qual o fundamento das leis? Qual' J a" ,

imposta a.quem as transarid"e? ~ . da ebltlmld'~de. da punição leis são consídcrad c ,om o a vento da cnmmologia, as

d d 4' a~ como fundamentadas na necessidade "natu-e elesa da socledade A qu C dI"

da eficácia O J d' .,.' es ao a eglt1midade cede lugar à . U IClano pode aparecer com

nomo e técnico "da . d d " . o um regulador autô-SOCIe a e entendIda e 'd

isenta de contradições I t' I _ m sentI o genérico, , en a evo uçao finaln t

se produzÍsse um ( , len e Com que Ia de a de armá-

para sua

3. anormalidade do criminoso

Uma espécie à parte do gênero humano

Por volta da segunda metade do sécuI XIX . ,. relacionados ao direito ena! com o , ?S textos jUndlcoS

modernizador por que pa~~ este ra;:~~~ c::::~~Ir-se ao proce~so ris tas discutem as idéias de Lomb mento. Nossos jU­estas surgem na Europa. /' roso quase ao mesmo tempo em que

Em 1871 é publicada a obra L' U . fundadora da criminologia M ' o~o del~nquente, considerada

, as a cnmmologIa não sur B' apenas em decorrência dessa importação cultural ' ge no rasll caracterizou a produção intelectual b '1' maCIça que sempre

ras1 eIra.

O processo de ímplantaç d d" do no princípio do século d a~ a me lcma social no Brasil, já inicia-

prisões, Tornar os cárcer~s ~r~s :~:~ a uma ~eflexão h~giênica sobre as focos de epidem' :Jados e lImpos, eVItando possíveis

las, de mod 'b' o a COl Ir a convivência ne-

30

fasta dos malfeitores entre si, taís passam a ser as preocupações dos médicos e juristas, Em 1868, há notícia de um médico dirigindo uma prisão no Rio de J aneiro21 ,

Mas, 1833, o Brasil já tinha uma prisão expressamente voltada para a recuperação do criminoso e que se das demais por não ser uma prisão coletiva: a de da Corte, As prisões-depósito são vistas como fonte de males e mentais para os presos, pela falta de higiene e pela desordem que propiciam,

Aí senhores [na Casa de Correção da C011e] ... é expressamente proi­bido aos presos conversarem sobre qualquer assunto, devendo todos trabalhar com os olhos baixos e se qualquer deles é surpreen­dido desviando os olhos do trabalho: .. procurando comunicar-se com os companheiros ... é ali mesmo castigado pelo guarda que para isso se serve de um látego de couro22 .

Trata-Sé de o espaço da prisão, que não deve ape-nas excluir, mas ser capaz de evitar possíveis entre os presos,

wmbém um de obediência moralidade atra-vés do trabalho. É enquanto reforma moral que se define, neste mo­mento, a recuperação do preso, Mas já se fala aqui de uma outra fina­lidade da pena, que não se reduz à intimidação ou à punição.

O processo de medicalização, enquanto introdutor no Brasil de uma ordem disciplinar, cria condições para uma reflexão médica so­bre as prisões, que vai acabar por estabelecer um parentesco, desde então sempre afirmado, entre doença e crime. Além disso, ele vai possibilitar uma reorganização do espaço da prisão, processo que.vai se dar de forma lenta e incompleta, Pois permanecerão existindo no Brasil, em maioria absoluta, os depósitos de presos, estes espaços mais ou menos caóticos, cuja finalidade é apenas a exclusão e o cas­tigo, ao lado de outras instituições, onde já se opera a implantação de uma tecnologia disciplinar,

21 Roberto Machado et al, op, eU., p. 328. 22 Clemente da Cunha Ferreira, "Sistemas Peni tenci ários", 111

(f1Jl.H(J.,FS n° 9, Rio de Janeiro 1876, p. 73.

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É a disciplinarização do espaço da prisão e do espaço social como um todo que cria condições para a veiculação do discurso da criminologia no Brasil. Em seu início, os textos reproduziam, quase que sem as na

o momento de da de "mo-mento de dos E: . d . . _ ' .. , um momento upIo, de cons-tltUlçao de um saber sobre o criminoso e de constituição do criminoso como um anormal. O olhar do vai

nele que sua comparado às "pessoas honestas". Os criminosos são uma parte do humano, dirá Lombroso. e se eles assim se não se trata mera afirmação casuística:

Eu Q tenho demonstrado, nas minhas visitas (,<lly·.~!·f, fato para vencer os

um que transformar o penaL E este vai ser visto corno

metafísico e anti-científico exatamente porque não se baseia na "ob­servação dos fatos".

Para Lombroso, um médico, a anormalidade do criminoso ex­pressa-se em características físicas, que vão dos "zigomas enormes" à cor negra dos cabelos, passando pela analgesia (insensibilidade à dor). Uma série de procedimentos de medição, inclusive com apare­lhos ("algômetro elétrico"), vão descrever fisicamente o delinqüente.

A maior anomalia dos criminosos natos é a resistência à dor. .. os médicos das prisões sabem como as operações mais dolorosas ... aplicações de ferro em brasa ... são muitas vezes pouco sensíveis aos criminosos 24.

Aragão, op. cit., p. J 71. 24 Id., ibid. p. 177.

32

Assimetria do fosseta occipital média, maior desenvolvi­mento da região occipital em relação à frontal, fronte fugidia, assimetria de seios frontais ... má formação da orelha ... falta de barba ... predomínio da envergadura sobre a estatura25.

de características do corpo dos criminosos irão constituir sua anormalidade. O é um ser

É o acabado de um às avessas, m(}qermis o em seus caracteres

cos, instintos e ausência de sensibilidade física e moral

o criminoso típico seria urna cópia ... nas sociedades modernas do homem primitivo, aparecido, pelo fenômeno do atavismo, no meio social civilizado, com muitos de seus caracteres somáticos e os mesmos instintos falta de

fase ela existência ... mento da humana 26.

Que projeto institucional se articula à concepção de atavismo? Em outras palavras, que fazer com estes anormais? Diante dos atávicos, nada mais resta que a eliminação ou a exclusão. Os criminosos são anormais e sua anormaJidade, incurável. Não há sentido em se falar de responsabilidade moral como fundamento da punição, pois todos os criminosos são irresponsáveis.

Os juristas brasileiros, na passagem do século, vão discutir as . .-/

teses lombrosianas. Ruy Barbosa, ele próprio defensor de anarquistas processados pelo governo brasileiro, vai apontar os compromissos políticos de Lombroso, mostrando que em todos os anarquistas italia­nos ele diagnostica a "tara hereditária". Transparece de maneira por demais evidente a ligação da teoria do atavismo com o arbítrio, com o aumento das penas, colocando-se em confronto claro com o liberalis­mo, sem conseguir articular uma proposta de reforma ou cura do

25 Id., ibid. p. 183. 26 Id., ibid. p. 133-4.

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criminoso, que permitisse dar à uma característica humanizadora.

Para nos hannonizannos com a ciência da criminologia teríamos que subverter ... as garantias mais respeitáveis do processo penal entre nós ... favorecendo a ampliação do cárcere preventivo, diminuindo os casos de liberdade provisória, abolindo a publicidade na forma­ção de culpa ... mutilando o direito de graça, amesquinhando a anis­tia e restaurando a pena de morte27 .

Por outro lado, começa-se a admitir, como é o caso de Clóvis a ele "um morbus que ao elelito,,28 e contra

o qual a pena se revelará ineficaz. Da discussão da teoria do atavismo surge a idéia de uma punição baseada num certo tipo de anormalidade de que padeceria o criminoso, idéia essa que passa a ser incorporada

por nossos juristas, apesar das críticas aos exageros de Lombroso.

morais

em louvar o do

a para um outro de vista de criminosos encarcerados: seus vícios, seus

seu comportamento. É Feni quem será p31iicularmente citado, como autor da descoberta de que o climinoso é um anormal moral.

Segundo ele, os criminosos são insensíveis, imprevidentes, co­vardes, preguiçosos, vaidosos e mentirosos. Manifestam incapacidade para o amor fino e delicado, seu apetite sexual é exagerado e tendem para o homossexualismo e a promiscuidade.

Nas galés, come-se com mais apetite, dorme-se com mais abando­no que em muitos lares honestos, atormentados pela preocupação do presente ... os presos cantam, riem, divertem-se ao conto das proezas feitas ... glorificam os atas mais vis e exibem, como diploma de honra, as mais ignóbeis tatuagens, vivem com a esperança da liberdade e preparam novos negócios para a hora em que ela

27 Ruy Barbosa. A obra de Ruy Barbosa em criminologia e direito Rio de Janeiro, Escola Nacional de Direito, 1952, p. 164. 28 Clóvis 29 Moniz Sodré de

rll7llll()IUI!IU e direito.

op. cito p. 190.

34

1896. p. 17.

Os criminosos, diz-se neste momento, são basicamente incapa­zes de realizar um adequado controle moral, como o são as pessoas honestas. Sua anormalidade se manifesta por um excesso instintivo, explicado como um retorno a um estado selvagem, atávico, hereditaria­mente determinado. Mas este mal oculto, existente no corpo, não se exterioriza mais, como em Lombroso, apenas em características caso O que permite um alcance muito maior, para o discurso da criminologia. Ele pode deslocar-se dos procedimentos de mensuração e observação do corpo do para a do comporta-mento, seja dos criminosos do seja dos criminosos em poten-cial, na sociedade.

A anormalidade, a tendência para o crime, pode agora ser reco­nhecida em hábitos de vida, em comportamentos considerados anti­sociais. Ela não se expressa mais na fisionomia, mas numa tendência

pela do

,""'.r'i'.PC' que se tornarão chaves na

a de ou temibilidade e os novos de clas­sificação dos criminosos. Em Ferri, como em Lombroso, opõem-se as categorias de normal e anormal (homem honesto x homem crimi­noso). Mas insinuam-se entre os dois pólos outras categorias, que terão papel fundamental na progressiva ampliação do discurso da criminologia, como veremos mais tarde.

Como um discurso que pode remeter ao social, sem ficar cir­cunscrito à bio-típologia, Fen'j empreende uma classificação dos indi­víduos na sociedade, segundo sua tendência para o crime.

Podemos dividir as camadas sociais em três categorias: a classe moral­mente mais elevada, que não comete delitos porque é honesta por sua constituição orgânica, pelo efeito do senso moral.. do hábito adquiri­do e hereditariamente transmitido ... mantido pelas condições favorá­veis de existência social... Outra classe mais baixa é composta por indivíduos refratários a todo sentimento de honestidade, porque pri­vados de toda educação e impregnados ... da miséria material e moraL.. herdam de seus uma anOlmal que une a

tiPctp,,..p,·,,t,'v" a uma verdadeira volta atávica às

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raças é nesta classe que se recruta o maior número de delinqüentes natos. A terceira classe [é a dos que) não nasceram para o delito, mas não são completamente honestos ... 30.

da evolução natural, em que uma classe é en­

desenrolar outra é naturalmente do mesmo processo.

São

, porum mais

do neste momento consideradas hereditariamente. Ferri considera que o criminoso deve ser classificado cm tipos, tendo-se em conta seus

de e assim seu de temibilidade ou de anti-sociabilidade". O crime deve ser to­

mado como sintoma deste mal moral que habita o criminoso e as em que estc mal ser

de "de para quem as penas tradicionais ainda ou de crimino­sos "natos", "loucos", "por paixão" ou "por hábito", que requerem penas especiais. A maioria dos criminosos, segundo esta concepção, está entre aqueles para quem as penas falham como meio de regeneração.

Mas, neste momento de implantação da criminologia, não se enfatiza tanto a recuperação do criminoso quanto a necessidade de que a sociedade se defenda destes degenerados morais. As penas, transforma­das no sentido de se tornarem mais severas, devem atuar como uma

../

espécie de seleção artificial: eliminar os degenerados, os atávicos, os pro-dutos mal sucedidos do processo de evolução "natural" da sociedade.

Temos, portanto, um discurso em que o crime é visto como sin­toma de um mal moral hereditário. Deve-se, assim, adequar as penas à personalidade do criminoso, empreender um estudo desta personali­dade, de sua origem social, etc. Ao mesmo tempo, o projeto institucional que se articula a essas inovações é o de um maior rigor das penas, que permita defender a sociedade dos criminosos.

30 Id., ibid. p.286-7.

36

E como atuar preventivamente sobre a camada "baixa" da popu­lação, na qual o crime é sempre uma possibilidade, dada a ausência hereditária de freios e a devassidão dos costumes favorecida

Pela vigilância e também por meio de

ç"'<1UUC que te-rão mais tarde, nem estão bem

aLXL,""',O" o do crime com um ele é entendido como um mal de natureza não se com a no dizer de Ferrí. anor-malidade no terreno da das e do temperamento.

o brasileiro e a degeneração moral

Em torno da do um discurso que

começa a ser os autores

mas que se à realidade brasileira. encontram um

vasto campo de para a tese de que o é resultante de uma anomalia biológica atávíca, que afeta a moral. Não é ainda de doença mental que se fala na acepção moderna do termo, mas desta outra forma de anormalidade, calcada na noção de "evo­lucionismo às avessas".

o olhar dos criminólogos se volta para os costumes brasileiros: o carnaval, os sambas, os cangaceiros nordestinos, a miscigenação. Todos estes são indícios de uma incapacidade para o controle moral, que explica também a indolência para o trabalho, a tendência para o desrespeíto à autoridade e finalmente para o crime.

.., grande número de crimes violentos tem origem nos sambas, se não mesmo durante eles praticados31 .

Clóvis Bevilaqua refere-se às raças brasileiras: a miscigenação não favorece o crime e quanto mais ela tende para as características negras, mais esta tendência se acentua. Porque as raças inferiores,

31 Clóvis Bevilaqua, op. cit., p. 94.

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III :,1

negra e índia, representam por si sós uma espécie de degeneração. São estágios inferiores de um processo evolutivo, que culminaria com a raça branca, ariana, menos propensa à criminalidade.

Em razão das características degenerativas trazidas misci-genação, justificar-se-ia um aumento const.ante no rigor de nossas leis, sempre ameaçadas pela propensão inata do povo ao crime.

... que admirável caldo de cultura para as mórbidas manifestações do crime essa nova sociedade, formada de uma miscigenação ... de­senvolvida à solta num ambiente em que o império da lei mal se fazia sentir, dominada pelos imperativos do instinto e da força ... 32.

O mais triste e desanimador, porém, está em sermos uma espantosa população de bárbaros heterogéneos ... entre nós não existe o brasi­leiro, mas os tipos brasileiros. Diferenças raciais profundas ou indi­vidualidades profundamente dissemelhantes, com o agravante do atraso e da incultura ... daí semlOS uma população de mentalidade

e o criminoso ... encontram-se em e:;tado dos bárbaros híbridos das cidades e dos

o discurso da degeneração articula-se mais a uma proposta de eliminação e exclusão do criminoso, pelo aumento do poder repressivo das leis, do que a uma perspectiva de-cura ou reforma. Ele arma para

32 José Mesquita. "Evolução e aspectos da criminalidade em Cu yabá" , in Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Criminologia, vaI. XIV, 1936, p. 27. 33 Mário Gameiro. "Pena de morte", in Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, Sociedlide Brasileira de Criminologia, VoI. VIII, 1935, p. 184-6. Este é um trecho da década de 30, que reedita o discurso criminológico mais característico do final do século XIX ao início do século XX. Na realidade, a demarcação precisa das épocas históricas não é possível neste tipo de análise, principalmente num discurso como o da criminologia, cujo caráter utilitário se sobrepõe à necessidade de coerência interna. Os criminólogos não hesitaram, sempre que "necessário", em utilizar conceitos aparentemente em desuso numa determinada época, ou mesmo em deturpar de modo cerras teorias, pois trata-se, em primeiro lugar, de demonstrar a "necessidade" de um maior rigor das de criticar o liberalismo, etc.

38

o Judiciário uma estratégia na qual o aumento do rigor das penas tor­na-se justificado, através de uma crítica repetitiva a leis excessiva­mente liberais, inadequadas à índole do povo, etc.

Mas justamente por mostrar de forma excessí vamente clara sua com o autoritarismo, este discurso fracassa, do ponto de

vista de sua penetração no Judiciário. No Brasil republicano, o discur­so liberal predomina no campo penal, e a maioria de nossos juristas olha com certa desconfiança essas "inovações científicas".

Curar o criminoso

Quando as provas faltassem, por que não haveríamos de procurar

no delinqüente a sua t ireóide? 34

corpo a tendência médica no Encontrar um corpo doente para o entre cardíacas, tuberculose, verminose e crime, seja buscando associar variações da quota hormonal com distúrbios de comportamento, tal vai ser a tendência do discurso neste momento.

A mulher criminosa e o homossexual serão objeto de considera­ções, no sentido de comprovar a influência dos hormônios sobre o caráter. O fluxo menstrual, visto como espécie de crise endócrina natural, pode levar a manifestações criminosas, assim como o perío­do puerperal. O homossexual é arries de tudo um doente, tratável pela injeção de hormônios sexuais. Teríamos por esta via a solução de muitos dos "crimes contra os costumes", inclusive da prostituição.

Estaria aberto o caminho para se afirmar que se alguém é preso, privado de suas garantias de cidadão, isto ocorre não apenas em razão de ter sido cometido um delito, mas em razão de uma doença que se quer curar. A prisão, como fOfila de intimidação, de vingança, está em

Péricles Madureira de Pinho. "Estudos de Cultura Jurídica. Bahia, 1932, p. 11.

39

, in Revista de

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des~so, ou fora de moda. O Judiciário humaniza-se, ao mesmo tempo que mcorpora o desenvolvimento da ciência. A prisão se dá em nome da cura e em do próprio preso.

A volta à idéia da ".H,Ul1l,W.\"dU ",H"'U'C>V, mas sob a forma mais radical e humana da

A vindo confirmar o que Lombroso E com vantagens, teria vindo falar-nos de um corpo anormal . .. de um quimismo interno, não expresso na

fisIonomia, mas detectável por científicos.

. Como corolário busca em estabelecer o elo corpo cn~1~, te~lO.s o crescimento em importância da figura do médico jun­to as mstltmções judiciárias. Será cada vez mais aconselhável ter-se um médico como diretor de .

Ul\.;Ut~:' ideais para or-administrados por

um O / • • A • como u, mesmo que na

pratica a vlolencla tenha continuado a mesma nas prisões, ao menos ela pode aparecer como uma deturpação, como um desvio indevido da nova vocação curativa do cárcere.

Poderíamos sintetizar as inovações trazidas pelo discurso médi­co ~o interio.r da crimi.nologia enumerando três estratégias básicas que serao postenormente Incorporadas ao direito penal:

1. O criminoso é um doente.

2. A pena é um tratamento que age em benefício do criminoso.

3. A prisão não deve punir, mas curar.

.o discurso médico não é o único a veicular esta nova estratégia ~ se~ ~n~orporada pelo Judiciário, que vai redefinir a pena procurando JustIfica-la não em si mesma, mas fazendo menção a finalidades ao mesmo tempo científicas e humanitárias. A pedagogia, a psicamÚise

35 Id., ibid. pJ3.

40

criminal, a psiquiatria, vão também, mais ou menos no mesmo perío­do, começar a produzir novos discursos de readaptação

e cura dos condenadOS,

e loucura

LV"" "'-J'U e a da segunda meta-

de do século XIX, um diálogo constante, ao mesmo tempo

vando certas especificidades e diferenças.

Para a psiquiatria, a do sempre uma estratégia para a confirmação de sua competência, de seu lugar social. O louco é alguém potencialmente capaz de cometer um crime tal foi sempre

dos e

simultaneamente o louco teve certo para ser no no

bojo de um lento e sempre inacabado processo de medicalização da

sociedade brasileira.

A diversidade fundamental entre a criminologia e o discurso psi­quiátrico sobre o crime reside no fato de que, enquanto a primeira representa uma transformação interna do direito penal sob o impacto das ciências humanas, a psiquiatria se insurge do exterior, disputando com o direito penal o papel de gestora dos criminosos, através da afirmação de uma relação, progressivamente mais íntima, entre crime

e doença mental. -

Se a criminologfa buscou, a partir de Lombroso, estabelecer en­tre crime e anormalidade uma relação estável, por outro lado apenas a psiquiatria afirmou de modo inequívoco que o criminoso é quase sem­preum doente mental. Embora buscando causas mórbidas para o cri­me, a criminologia não deixou de tematizá-lo enquanto tal, enquanto a psiquiatria pretendeu colocá-lo como mais uma dentre outras mani­festações de loucura, medicalizando a noção de crime e transferindo-

a para a esfera da psiquiatria.

41

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A história das relações entre psiquiatria e direito penal no Brasil pode ser traçada fazendo-se menção à maneira como se colocou, nos códigos penais brasileiros, a questão da responsabilidade climinaI do louco.

O primeiro código penal brasileiro, de 1830 (o Código do Impé­rio), tornava irresponsáveis "os loucos de todo gênero salvo se rem intervalos Iucidos e neles cometerem crimes".

A existência de loucura tornava o crime inexistente no sentido jurídico, e neste momento a loucura era compreendida como o con­

da lucidez, como a incapacidade de discernir segundo a razão. Os loucos seriam desarrazoados e por incapazes para o contrato social.

o código de 1830, um código liberal e calcado nos códigos que se faziam na Europa sob influência francesa, fundava a responsabili-dade o que, racional de

estava ausente no

A nascia í 1841 o

no Rio de Janeiro. Mas este não erà ainda o lugar reconhe­cido pela sociedade para o envio de loucos. Havia loucos vagando pelas ruas, no hospital da Santa Casa, misturados a vagabundos, sifi­líticos e prostitutas, nas prisões e nas casas de família, especíalmente as abastadas.

O Código Penal de 1830 previa que os loucos que cometessem crimes podiam ser entregues "às famílias e casas a eles destinadas" conforme ao juiz parecesse mais conveniente. O destino dos loucos criminosos era incerto, assim como o eJ:a o dos loucos em geral. A

própria noção de que os loucos devem ser encerrados em hospícios ainda se construía no Brasil.

À medida que o.processo de medicalização da sociedade brasi­leira avança, a psiquiatria, reivindicando competência ex­clusiva sobre a loucura, ganhando espaços junto ao Estado e ao mes­mo tempo dotando-o de novas técnicas de controle social.

O discurso quer ,",'-0La.v e controle sobre as

42

ao que não se

mas como complemento de programas de higienização e de saúde pública, ganhando um caráter técnico-científico.

A psiquiatria, ao se pretender um saber sobre a loucura, se apre­senta ao mesmo tempo como uma medicina que prescreve os com­portamentos a serem considerados normais.

E acíma de tudo ela reserva a estes cidadãos, cujo comporta­mento é considerado fora da norma, um tipo ele destino inteiramente novo: não serDO excluídos por infraçDo a um código de explí-cito, como o criminoso. Mas, ao serem definidos como sua exclusão justifica-se como tratamento.

A doença de que padecem é justamente esta incapacidade para o contrato social, esta ausência de "razão" que os torna perig9sos para o convívio com a sociedade. A possibilidade de exclusão de cidadãos

. ! C 'd' f) t ' que não tenham contrariado qualquer artlgo c o U 19O 1 ena e a arma que a a ao mas que no Brasil só será incor-

e acelta oficialmente em alra vês ela lei

Esta lei, resultado dos esforços dos alíenistas mento científico e político da psiquiatria, finalmente regulamenta a guarda temporária dos bens do alienado pelo psiquiatra, define o hos­pício como único local onde devem ser recolhidos os loucos, subor­dinando a internação a um parecer médico.

A psiquiatria passa a dispor de um poder de seqüestro divers? daquele de que dispõe o Judiciário. Podemos neste p~n:o nos refe~r de modo mais claro às relações entre a psiquiatria e o dlrelto penal: sao relações entre dois tipos de poder de seqüestro, um fundamentado em leis advindas de um contrato social de bases liberais, outro fundamen­tado na tecnologia médica.

Sob o impacto das ciências humanas, o próprio direito penal irá transformar o direito de seqüestrar (ou de punir) numa função técni­ca, baseado nas noções de anormalidade e de cura. A psiquiatria exer­ce junto ao direito penal um papel ao mesmo tempo semelhante e diverso do da

36 Roberto Machado, op. cit., p. 484.

43

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Semelhante porque vai dotar o Judiciário de meios técnicos para que mais e mais se fale em prender para tratar do que para punir. Diverso

será a de colocar o juiz, de celto

Sc)b a tutela do o que levará as duas técnicas de como denominamos a um confronto com cs-

vários mOlncntos, mas nunca conflito.

o Penal dc 1830 não considerava criminosos lou-

,com crescente d2 aumento dc seu na sociedade críticas começam a

I. A loucura não deve ser num sentido tão coo H.6 várias formas e vários graus de loucura.

2. Loucura e irracionalidade não são sinónimos. Há as loucu-

loucura c criminal há 1'e-

s, que requerem a avaliação do psiquiatra para sua

determinação

estados crepusculares da liberdade

A psiquiatria, numa de suas estratégias de consolidação, procura definir-se como autoridade única nas questões de respon­

sabilidade é ela quem vai apontar, para a Justiça, o grau em que a capacidade de discernimento do criminoso está afetada.

processo, vai ser destruída a idéia de que para haver loucura é so haver perda de razão. Surgem as loucuras sem

as loucuras quase aos olhos do Ce do juiz), mas detectáveis para o perito alienista. Vários graus de lou­cura que são o correlato de vários graus de responsabilidade. O poder do psiquiatra aumenta na medida em que ele pretende ser o verdadeiro juiz, porque médico e cientista.

A tentativa é a lei, aproximar crime e doença men-tal, transferindo para o psiquiatra maior poder.

44

Cedo os juristas empreendem uma eríUca deste ideal psiquiá-

trico, pretendendo a competência do perito: há a crítica

de que a psiquiatria do-o num doente. E tal crítica de certo

A grande batalha que se trava entre Justiça e

!

... médicos e s6 aos médicos é definir mente o estado normal ou anormal da constituição psicofísica dos criminosos ... Assim como temos médicos do exército, médicos da armada, médicos da polícía, poderíamos ter médicos da justiça 37.

Mas vejamos o lugar do médico dajustiça definido pelo mes-

mo autor:

Não confundir esta minha opinião com a que viesse colocar o legis­ladoI/penal sempre à escuta dos orúculos da medicina, nas ques-

tões de

Os juristas abrem um para a psiquiatria junto ao direito

penal, mas pretendem limitar este ante a de que toda a sociedade se transforme num imenso hospício, ante a dos

"patólogos do crime" ...

Tobias Barreto de Meneses. Menores e loucos em direito de Janeiro, Simões, 1951, p. 103. 3B ld., ibid. p. 98.

45

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'" em cujas obras a sociedade inteira aparece cómo uma imensa casa de Orates enquanto esses ilustres ... não descobrirem o meio nosocrático suficiente para opor barreira ao delito39 .

Talvez em razão dessa desconfiança reinante nos meios jurídi­cos, o Código Penal de 1890 ainda não incorpore muitas das inovações psiquiátricas. Os juristas esperam que os se ocupem dos

mas não lhes tantos poderes na avaliação e detecção da loucura quanto estes reivindicavam.

O destino do louco-criminoso pode ainda ser a além do "hospital de alienados" já referido no texto da lei. Mas, por outro lado,

a palavra loucura é substituída por "afecção mental", termo médico que ratifica, de certo modo, a competência do médico-psiquiatra.

Artigo 27: "Não serão criminosos ... os que se acharem em estado de completa privação dos sentidos e da no Mo ele co­meleI' o crime".

nasce criticado tas abrir para o referência aos "loucos de todo gênero" era por demais ampla, a "com­pleta prívação dos sentidos e da inteligência" será criticada por seu caráter restrito demais, "aplicando-se apenas aos mortos"40.

Os psiquiatras querem demonstrar que um indivíduo não precisa estar privado de seus sentidos e inteligência para estar acometido de uma afecção mental. Há os loucos lúcidos, os que conservam as fa­culdades intelectuais, as formas morais de loucura que deixam intacta a integridade do eu. Há ainda os estados de inconsciência temporários

e situacionais (as cataJepsias, o sonambulismo, as histerias) capazes de suprimir a capacidade de imputação e de conviver com uma perso­nalidade que, fora deste estado, é inteiramente normal.

Aparentemente, os psiquiatras parecem mostrar à Justiça que há

muito mais casos de inimputabilidade do que osjuristas poderiam su-

39 Id., ibid. p. 34,

40 Dario Callado. Inconsciência do 1916, p, 5,

46

Rio de Janeiro, du

por, muito mais casos em que o psiquiatra a~ar~ce com~ o perito providencial, subtraindo criminosos à . da,Jus.tlça, no dIzer de al­

guns juristas. Mas se à prímeira vista a pSJ~~:a~na pare~e~ concorr:r

d· . l'ção do raio de ação do JUdIcIano, na verdade ela abe para uma lmmu c . •

muito mais no sentido do seu reaparelhamento. Acusada, mUltas ve-

d . t't de humanitária, com a qual desculpa-

zes, . e uma a 1 u . ,. ,,," o criminoso, a psiquiatria, embora não desmentm~o sua ~unçclo

curativa, buscou sempre se apresentar como aliada no fortalecImento

da rPT,r..",,, e do controle social, agora dotado de novas

associadas a uma ação médica.

O ensinamento psiquiátrico mais característico do perÍo~o em

torno da elaboração do Código Penal de 1890 é o de que a razao ~ a desrazão não podem se opor de modo antagônÍco, que as r~laç~es entre Justiça e psiquiatria não podem ser colocadas de modo tao slm~

1 I C )S o aos a p]cs, como, por cxemp o, aos ou ( Entre a e sua

1 " t· '1 l"lZ" o e a loucura encontram-se do mesmo mOlO que ell te, "~,I . . gradações diversas na constíluiç~? menta14~os indivíul.l.OS, fonnan-

do os estados crepusculares da llberdade .

O destino institucional destes criminosos cuja re~pons~b.ilidad~ é modificada em razão de patologia mental está ainda ll1def1!1ld~. N.ao

querem os juristas transferi-los totalmente para a guar.d~ ,d? pSIqUIa­

tra. A tentativa da criminologia é dotar o próp~io ~ud~cIano de_um: tecnologia própria recolhendo subsídios da pSlqUIatna, mas nao s

confundindo com ela. Algumas entidades nosográficas da psiquiatria vão estar particu-

larmente relacionadas ao crime: . d' 'duos com uma inteli-

As loucuras morais encontram-se em lD IVl ,? . d detestave14

-. gêncla regular ou mesmo agu a e um

41 Rodrigues DolÍa. Responsabilidade Económica, 1929, p. 1l.

Id., ibid, p. 48.

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Os epilét~cos são sempre inclinados à ira, à violência, enérgicos e sen: ~scrupulos na são excessivos nas opiniões religiosas e pohtIcas, conservadores revolucionários

A

são ou aesr1ropo:rciIJnlldliIS, . . com que S.Ofl am ou .faça~~ sofrer a socIedade. Consti tuem o grupo das persona-lIdades pSlcopatlcas. Junto com as neuroses, constituem os casos de

restrita ... A

nes-

do não . que o acusado por dizer, um "destino psiquiátrico".

EIS por q~e esta categoria diagnóstica pode promover "uma conciliação ~ntre Justlça e psiquiatIia, pode ser uma ponte de transformação no inte­nor das técnicas judiciárias, dotando-as de uma feição médl'ca qu _ . '.' . e per mltlla confundir, de forma definitiva, punição e tratamento.

, ? psicopata é um louco lúcido, cuja patologia consiste numa esp~cl~ de opção cIiminosa. Mas o diagnóstico de psicopata não envia o CflI~'lI~OSO ao hospício, nem mesmo se tem a esperança de 1110dificá­]0. Immlgo das leis por natureza, ele é antes alguém de quem a socie­dade deve se proteger:

Na sociedade o número de IJsicopatas é de ] 001 . . ";0 .•• pessoas que

entram em conflIto com o direito administrativo, civil e pena145 .

X

44

vI Conferência Brasileira de Criminologia, in Revista de Direito Penal "01 , 1936,p.58. . . VI •

45Id., ibid. p. 58.

48

A oposição às leis pode ser transformada em patologia, o que permite "adoecer", por extensão, as formas de contestação ao Esta­do. Cria-se a de dispositivos capazes conter tal tipo de "anomalia

As marchas e que as en-tre e ao longo das últimas décadas do século XIX vão encontrar sua contrapartida prática na década 20, da _''' __ " .. ~ do Manicómio Judiciário.

Este é um evento que coroa de êxito a dos por seu reconhecimento oficial, mas, por outro lado, são impostos certos limites a seu poder quanto ao destino do louco-criminoso.

Um decreto lei em 1903 parecer, momentaneamente, que os vão esta classe de criminosos em

os estados nados e condenados alienados somente per­manecer em asilos públicos, nos pavilhões que especialmente se lhes reservem (Artigo 11 do decreto 1132 de 1903).

Mas os manicómios criminais serão o resultado de um armistício entre as duas partes em disputa: nem manicómio, nem prisão, um híbrido, que muitas vezes sofrerá a crítica do psiquiatra. Ele não po­derá aplicar totalmente a tecnologia disciplinar característica do hos­pício e nem poderá decidir autonomamente sobre o destino desta classe de alienados, ficando as internações e altas a critério do juiz. /'

O Manicômio Judiciário é uma dependência da assistência a aliena­dos do Distrito Federal destinada a internações ... dos delinqüentes isentos de responsabilidade por motivo de afecção mental quando, a critério do juiz, assim o exija a segurança pública (Decreto 14831 de 25/5/1921, artigo 1°. Grifo nosso).

Em decretos subsequentes a competência do psiquiatra restrin-gia-se mais e mais:

Em qualquer dos casos a internação far-.se-á por ordem ou de­terminação dos juízes respectivos (Parágrafo Único do Decreto 17805 de 23/5/1927).

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As limitações ao poder psiquiátrico impostas pelo Judiciário vão marcar a forma com que se dará a absorção da tecnologia psiquiátrica por parte do mesmo. Ou seja, a psiquiatria não se apresenta para o direito penal como uma alternativa que até mesmo a suprimi-lo. Ao contrário, ela vai ser um complemento da ação repressiva, dando ao aparelho de uma disciplinar. O Judiciário se arma de

uma própria, que não se confunde quer com a psiquiatria, quer com a penalogia tradicional.

somos crnrmll0S:0S ou a

seremos latência ... Seremos todos ambulantes cheias de criminosos

aferrolhados e que buscam escapar-se, a despeito das grades e dosferrolhos do recalcamento,

dos carcereiros da censura. EI'fes evadidos sedio !1USSOS crÍmes. como

assassinos a

para o roubo ou homicidio46•

Dentre os discursos produtores da anormalidade do criminoso, a psicanálise criminal é o que vai aproximar de tal forma as noções ho­mem honesto, normallhomem criminoso, anormal, que a oposição entre elas deixará de existir. .

A psiquiatria, ao produzir categorias como a de psicopatia, neu­rose ou loucura mental, já permitiu que a questão da responsabilidade penal se colocasse não mais como oposição (responsável/irresponsá_ vel) mas como uma questão de se avaliarem "graus de responsabilida­de". As formas em que a doença mental podia afetar a razão (capaci­dade de livre arbítrio, de responsabilidade penal) eram múltiplas, e por sua correta avaliação feita pelo psiquiatra, podia o direito penal orien­tar-se quanto à forma de sanção adequada a cada caso.

Moniz Sodré de

50

A psicanálise, ao pensar o problema do crime, vai tomar caduca a idéia de responsabilidade. Nas décadas de 20 e 30 vão se tornando mais freqüentes as referências ao que seria uma criminologia ~sic~na­lítica, que de certo modo vai reeditar o pensamento dos p:'lluelros criminólogos neste particular. Mas quando Lombroso e Fern susten­tavam que todos os eram e inimigos da ordem social, quase não deixavam outra alternativa senão sua exc1u-

através de um aumento do rigor das penas e da vigilância policial.

Ao contrário, a psicanálise criminal poderá articular a idéia de irresponsabilidade criminal a uma proposta de "recuperação" do cri­minoso. Ao i11esmo tempo, por deixar em segundo plano as causas biológicas e hereditárias, ela vai deslocar totalmente as determinações do crime para a esfera do comportamento.

Na psicanalítica do a razão rcspon-ou os graus cm que ela está de ser

A se desloca para os afetos e para o controle que o indivíduo é capaz de fazer deles, capacidade esta determinada por sua história de vida e pela educação que recebeu.

Tanto no homem criminoso quanto no homem honesto, o in­consciente seria a força capaz de direcionar seus atos (e não a razão).

A psicanálise criminal é contemporânea de propostas pedagógi­cas de recuperação do delinqUente, e veremos mais adiant~ que as duas estratégias, psicanalítica e pedagógica, podem ser conSIderadas complementares.

... já vimos que a afetividade se educa ou é. susc~tível d_e modifi­cação ... assim como a inteligência, por VJ~ da ms~'uçao. Se u~ homem não foi educado, se não teve na VIda senao o conhecI­mento que ela própria lhe deu ... [se seus) sentid~s embotados ... jamais sofreram os benefícios das sanções bem onentadas.:. ate~­dendo às requisições egoísticas do eu ... delinque ... [r~gnde] as condições primitivas. Esses elementos afetívos, exammado: e:n

- 'I' d' - , de Patna função da noçao ... de faml la con uzuao a _ . e ao sentimento Cívico e Social... da conclusao ser llnpos-

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ta ao paciente, mesmo que a título de conselho... ele próprio quem à conclusão compatível com a moral

Queméo Alguém a quem não foi dada a adequada levar instintos sem opor frei-

do

em comum: uma afetividade caó­sempre a

sociais, o adequado controle IJ'-'Uti."-u

os objetivos

A . associada à vai procurar as c:usas do cnme no inconsciente do este manancial de pai-xoe~ des~rdenadas que habita todo ser humano. Na criança, que neste sentIdo e.semelhante ao criminoso, os afetos, ainda não

vai opor a

nosos, incompatíveis com a convivência social.

Segundo a psicanálise criminal, o criminoso e o neurótico ao mesmo :e~po se aproximam e se diferenciam. Neste ponto, o centro. de referenCia das discussões é a noção de Complexo de Édipo.

O enfermo neurótico e o delinqücnte são no fundo a mesma coisa ... ~ que o .neurótico faz pela representação, no domínio dos sintomas mof~slvOS executa-o o delinqüente em reais ações criminosas ... ambas as condutas mórbidas se originaram na vida sexual da crian­ça e em seus desejos proibidos ... os delinqüentes praticam o crime porque este é proibido e porque sua execução lhes dá alívi048.

aspecto da colaboração do educador na obra de regeneração do sentenciado", in Revista de Direito Penal VoI. IX, 1935, p. 163/5. '

48 ~elson Hungria Hoffbauer. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro RevIsta Forense, vol. I, tomo l, p. 502. '

52

Nosso propósito não é o de analisar a propriedade ou a exatidão com que os conceitos psicanalíticos são utilizados neste contexto, mas de situar o da que antecede à elaboração do Código ~""JL~., da anormalidade do sobre o

Mas é de uma que nos falam os autores, e neste ponto tornam-se os mais "otimistas" quanto à cura do

Como uma tendência no interior do a psicanálise nos fala da "necessidade" da lei. Se Lombroso e Tarde enfatizam a necessidade de defesa social (através da metáfora biológica, um organismo que se defende), aqui as leis surgem desta

vos atuando e, de certo cujas proibições intern~s falharam49:

Com relação às penas, vimos que o discurso médico (psiquia­tria, endocrinologia, etc.) as vê sobretudo como possibilidade de cura, tendo uma finalidade terapêutica, embora quase sempre imposta ao doente, pela necessidade de defesa social. Apenas a psicanálise crimi­nal vai falar do desejo inconsciente que todo criminoso tem pela pena, o que a torna, como veremos, ineficaz, apontando para a necessidade de sua transformação.

Vai ser operada uma redefinição da pena. Se o delinqüente in­conscientemente a deseja, ela se torna ineficaz, já que o levà a come-

49 Interessante questão a ser pensada pelos psicanalistas de hoje, a da coincidência (ou não) da "lei" (do aparelho judiciário) com "a lei" do pai, o superego, etc. Caso não se faça uma correta distinção das duas acepções do termo, dificilmente poderá ter a psicanálise um outro papel que não o da adaptação e do controle social. No exame desta questão podemos verificar freqüentemente que a psicanálise "de hoje" não é tão diferente da "de ontem", na qual apenas sua feição autOlltária apareceria mais claramente.

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ter novos crimes. As culpas edípicas inconscientes que o levaram a delinqüir continuam agindo, levando-o a novos atas criminosos. E neste ponto, enquanto alguns autores defendem que o delinqüente deve ser submetido ao tratamento psicanalítico, outros defendem a refor­ma das para que deixem ser punitivas, tornando-se

A idéia de punição deve ser riscada de todo o direito penal, pois que a pena satisfaz somente a culpa íntima infantil. A aboliu a pena ... a destruirá a

Seja via de reforma ela prisão, seja pela psicanálise, o que se busca é a reconstrução do respeito às leis, não conseguida através da punição ou intimidação, segundo o direito penal "clássico", mas pela reconstrução de algo interno ao indivíduo, que se diferencia também de uma dita.

que me habituei a conhecer a alma humana através da do inconsciente tellho

culdade de os códigos me ensinou que é possível cultivar a infância e até mesmo regenerá­la ... mas isso sem a necessidade de punições nem de castigos ... o único meio atual capaz de mergulhar no inconsciente do indivíduo e de refazer-lhe o superego, isto é, de reconstruí-lo na capacidade de adaptação [é a psicanálise]51.

Produz-se aqui uma técnica de regeneração através de uma pe­dagogia dos afetos e dos instintos. Sem punições ou castigos, essa técnica pode conduzir o indivíduo ao respeito às leis. Não há pois lugar para a prisão tradicional. As prisões poderiam mesmo ser "aber­tas", semelhantes a hospitaIS psiquiátricos "open doors", à medida que fosse sendo reconstruída no indivíduo esta capacidade de auto-aprisionamento instintiv052• .

50 J.P. Porto-Carrero. Mano, 1932, p. 27. 51 Id., ibid. p. 58-63. 52 Id., ibid. p. 63.

e psicanálise. Rio de Janeiro, Flores e

54

Como parte das estratégias de recuperação e também como for­ma de evitar o favorecimento do homossexualismo nas prisões, estas não devem proibir a vida sexual. As proibições e punições devem ce­der lugar ao controle adequado sobre a sexualidade, dirigindo-a no

sentido da adaptação social.

Pois o crime é o produto de uma errónea impul-sos sexuais. Como canalizá-los adequadamente, no sentido da adapta­ção? Através da educação, seja na nos casos seja pela psicanálise, nos casos de insucesso. Mas esta é, antes de tudo, uma

tarefa de toda a sociedade:

.:. quando uma educação sexual bem dirigida preparar o indivíduo para a vida coletiva, que é a vida de espécie, quando houver um regime de trabalho obrigatório e toda vocação for discriminada no gabinete do técnico, será pelo menos raro que os sexuais não satisfeitos ato procriador, e não sublimados

se desviem para as suas ;mômalas: perver-

A sociedade deve se transformar num imenso laboratório peda­gógico, em que a tarefa do Estado deve ser não apenas repressiva (de fato, deve deixar de sê-lo), mas educativa, agindo sobre os afetos e sobre os instintos e dessa forma eliminando as ilegalidades. Enquanto tal reforma social não se dá, a sociedade aparece como um imenso celeiro de comportamentos desadaptados. A miséria preocupa nossoS teóricos exatamente no que ela pode trazer no sentido de uma má canalização dos impulsos, pela desagregação sla família, pela promis­cuidade. A infância abandonada merece especial preocupação - des­cuidada, ou cuidada por famílias corruptoras, ela vai ser vista como o

domínio natural para a ação pedagógica do Estado.

Ao desprender-se das determinações biológicas para a compre­ensão do crime, a criminologia psicanalítica pôde dar significado pre­ponderante às chamadas "causas sociais" do mesmo. Entretanto, esse "social" será compreendido de modo especial. De par com a constru-

53 Id., ibid. p. 29.

55

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da do criminoso anormal, constrói-se também uma visão do social como fonte de anonnalidade e de crime, como tanto, à de negativos. r::)~arnH1aI'en10S

a o modo como o discurso para além do da

ao Judiciário de sobre as

a décadade30,vJI~V',ldHHçl

tenl"aCao entre os juristas na se as de incor-

poração Código

discurso aos novos dispostivos inaugurados com o de 1940.

o novo código vai reconhecer a anormalidade do criminoso muito mais via do discurso Por outro este

muito mais voltado para o a

que, em e

permanece como um discurso relati vamen-te inoperante.

Ela se liga a estratégias disciplinares, que permanecem, de certo modo, preventivamente organizadas, mas apenas parcialmente leva­das à prática na sociedade brasileira da época.

. A criminologia psicanalítica é, por outro lado, alvo de crítica aCIrrada por parte da maioria dos juristas do período:

... dír-se-ia o sonho delirante de um fébrento ... o métod;de Freud é anti-científico e a psicanálise não passa de um episódio de cultura54 .

... É tão excêntrica, tão repugnante ao nosso sentido moral a teoria freudia~a, no ~a:e.rialismo obsceno de seus raciocínios forçados e conclusoe~ arbltr~nas ... a criminologia dos psicanalistas é bem aque­la que sena arqUltetada por um delinqüente55 .

54 Nelson Hungria Hoffbauer, op. cit., p. 507. 55 M . S·d' omz o re de Aragão, op. p. 370.

56

Embora fosse a criminologia psicanalítica a tendência no interior da criminologia capaz de instaurar formas de controle mais marcada-mente disciplinares, ela relativamente inoperante no período da psiquiatria,

da qual a

conotação

com uma

conotação essa melhor fornecida pelo discur-

80 psiquiátrico.

Da anormalidade social

Além de ser um discurso da anormalidade do so, a criminologia produz também, tendo como ponto de apoio o estu­do das causas sociais do crime, um discurso complementar, que per­

mite ao Judiciário remeter-se ao social como um foco anómalo de

causas criminosas.

A anormalidade do criminoso e a anormalidade social são na ver­

dade concepções indissociáveis, partes de uma estratégia que arma o

Judiciário de maior poder de repressão e controle social.

Ao produzir a figura do criminoso anormal, a criminologia pro­

cura caracterizar a transgressão à lei como sintoma de anormalidade . Abre espaço, por outro lado, para confundir todas as formas de ilega­lidade, desde o homicídio, mais facilmente identificado com formas patológicas, até aquelas formas de ilegalidade popular mais evidente­mente contrárias às autoridades constituídas, à moral burguesa e aos

interesses de propriedade.

56 Mário Gameíro, op. cit., p. 190.

57

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Já vimos ~L:e no ~iscurso da criminologia o Estado aparece como reg~lador apohtlco, tecnico-científico, podemos dizê-lo d d socIal _ ele se coloca acima, descompromissado de ua ' a, or em se, Seu compromisso único delegado q .lquer mteres-

'I ' ' ' ~ ao sena com a defe sa l a socIedade em sentido a /' d -legitimo . benenco, a qual ele se apresenta como

~,

Nesta medida o cr'] 1" • ::J dr. '" J 11e \ aI sei tematlzado, na vertente sociológi-Cc. o (,IS:,U~so da cnmmologia, enquanto A do JudIclano seria o combate a esse "mal" d·· 1 . que po e germmar em

. cA

as:e ou segmcnto social. Para comprovar tal tese . cem referenc' ' ' apate-. las aos cnmes das classes abastadas que d' . combatIdos com' " > ' ,evem ser a mesma energIa que os demais' o O'Cl'O d ' dão a d f ' ,a evaSSI-

, ; gran es alcatruas, delitos igualmente graves e tão pouco ob-serva os, Por outro lado, a articulação afirmada entre

o nódulo das anMises cri­do crimc.

e

No a anon113lidade do

~~qu~mto pr~dução do discurso da criminologia, fizemos menção tam­

l' d m: ma~~Jra com~ era paralelamente produzida a noção de anorma-l, a e SOCIal. R~ca~Itulemos aqui, brevemente, como ela a areci

dISCurSO dos pnmeIros criminól ' " p a no criminal. ogos, na pSIqUIatna e na psicanálise

Lombroso, Ferri, a psiquiatria e as causas soCiais do crime

o atavismo, reconhecido por Lombroso no delinqüente l'mpI' cava também u . - d' ' 1-'d ma vlsao o SOCial, segundo a qual um grupo de indi VI uos_(o~ transgressores das leis) representava o resultado d -evoluçao as aves t e uma as formas de i1ecr:~:~~~eO(~a~do, ao primi~i:ismo e à seJvageria. Todas

, _ b mc USlve as pobtlcas) eram vIstas como m -

:olt:Sedsteaçaod deste retrocesso evolutivo, transmissível hereditariamen~e scen entes razão 1'1 ' vív' . I " pe a qUd estes deVIam ser excluídos do con-

10 SOCla , A leI as eram

58

mesmo raciocínio, um resultado «feliz" da seleção natural no campo da cultura. A sociedade estava assim dividida entre seres atávicos, que reeditavam a selvageria dos primitivos, e seres normais, produtos bem sucedidos da cvolução, que naturalmente detêm o poder de legis-

lar sobre os primeiros,

Em esta concepção da divisão das classes segundo

seu grau de evolução hatural se torna mais clara c prescinde da de estigmas físicos, São defeitos morais transmitidos here-

ditariamente, que podem ser adquiridos, c pela convivência nos ambientes pobres e por isso mesmo devassos. A seleção natural, única responsável pelas diferenças e contradições so­ciais, dá o fundamento da reação social contra aqueles que transgri­

dem suas leis, pois a sociedade é também um organismo "natural".

tem o direito de amputá-lo ... a por um de seuS membros ... tem o di-

do social e no interesse

A psiquiatria, em sua contribuição ao direito penal, sempre re­

meteu ao social ou às causas sociais da doença mental. Inicialmente vinculada ao discurso da degeneração, ela também encontrava no do­ente mental um degenerado. As causas de seu mal, hereditárias, esta­vam presentes sobretudo nas classes pobres, nas "raças inferiores",

especialmente a negra, para alguns autores da passagem do século XIX ao XX, Mais tarde a doença mental passará a ser vista.como

produto da interação dos fatores hereditários com as causas ambientais, O que se herda, a partir dessa interação, é uma disposição à doença, que só vai se manifestar se fatores externos colaborarem. E estes fatores estarão ligados, quase sempre, aos ambientes onde imperam a pobreza e suas conseqüências somáticas, tais como a subnutrição, e por outro lado à desagregação familiar e moral, os chamados antece-

sociais da doença,

57 Moniz Sodré de

59

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Para a psiquiatria, o combate ao crime só se dá em toda sua plenitude se, além do diagnóstico e tratamento das patologias mentais relacionadas ao se fizer uma política de higiene das popula-

uma vigilância sobre as sobre os etc.

doentes mentais

é estabelecer o exato U5"~C'''~'~ da temibilidade dos candidatos a livramento condicional e sua CajX1C;W;a-

de de anti-social. O que se torna de absoluta necessidade é fixar sua médica fora das e o programa conveni-ente de higiene mental a que cada um deve ser

A do Judiciário, medicalizada pela psiquiatria, deve ser es-tendida para fora da prisão ou do manicómio Judiciário - o termo vigilância médica fala por desta trica sobre a sociedade.

o discurso da totalmente d<1 causa Ul1'''h'U, abriu espaço para que a sociedade, especialmente no que

diz respeito à organização da família, puoesse ser vista como a grande fonte produtora de criminalidade. A solução para o problema do crime é colocada, fundamentalmente, como resultado de uma ação reformadora sobre o social- ação refoDnadora que se daria através de métodos educativos.

Mas a criminologia psicanalítica apenas retoma uma questão sem­pre presente no discurso da criminologia: a das relações entre a pobre­za enquanto desorganização da soc;iedade ("o caos") e o crime. O discurso criminológico, no período que antecede a elaboração do có­digo penal de 1940, não se articllla necessariamente a ações reformadoras sobre o social; pode articular-se apenas a ações repres­sivas de cunho policial e judicial.

psicopáticos dos sentenciados", in Revista de Direito Penal, vaI. VIU, 1935, p. 27.

60

o micróbio e o meio de fermentação

o meio é o caldo de cultura da o "'U"'nmfJ é o criminoso, um

senZio no dia As elemento' que não tem

em que acha o caldo quc têm os que: merecem .

,como eles

de uma

se de 20 e que tematiza de delineada nas . . O la~o entre questão das causas socuus do '<. . estará sempre presente, mas articulado de duas fOlmas "

a e crime

. / ; m mal-estar flSlCO, Na primeira deJas, a mlsena, ao gerar u A da desnu-

ao o

eo '1estas o

taras. ". / . doenças lado a . d d eração A 111lSena . dIscurso a egen (. . " das populações pobres

. . Tal dIagnostlCo lado com anomalias moraIS. " t " que vão desde

- d " nétodos de tratamen o , levou à elaboraçao e vanos 1 . _ dos menores sempre

e'os pedacrógicos até políticos de recuperaçao ' mI/;> .. " associados a medidas policiais e JudicIaIs. . ' cala que

1 a renda em mUlto malor es Que ele ( o povo) aprenda a er e . p 1 _ das sílabas se lhes injetem

e com a artlcu açao. , . atualmente ... mas qu . _. 1 slnente falando a mte-. J do direIto nao sImp e. . . os preceItos;:l:a mora e '. t para melhor disClph-

liuência, mas principalmente aos senumen os, o 60

na da vontade . ue este transplan-À 'famílias é preciso tirar-lhes o filho para q.. 6'1

smas _ t r a tara ongmal . tado e regenerado, nao possa perpe ua

59 Moniz Sodré de Aragão, op. cit., p.

60 Clóvis Bevi1aqua, op. cit., p. 95. . Rio de Janeiro, Brasil, d ". da criminologta .

61 Astolpho Rezende. Nos ommlOS .

1939, p. 169.

61

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o segundo tipo de articulação entre miséria e crime presente no discurso da chamada criminologia crítica é o que relaciona não a miséria em si, mas a desigualdade na distribuição de bens, ao fenômeno do crime.

É importante sublinhar que, em ambas as concepções, o meio social é visto antes de tudo como um gerador de crime. Estamos diante de uma concepção segundo a qual as as

antagônicas entre as classes, são produtoras, antes de tudo, de um fenômeno negativo, patológico, sobre o qual é reclamada urna

reformadora.

E de onde partiria esta ação reformadora? Do próprio Estado, entendido, como já vimos, enquanto regulador técnico, apolítico, da

sociedade. As diferenças sociais, mesmo quando apontadas (fala-se aqui em desigualdade), são esvaziadas de qualquer positividade, de

qualquer potencialidade de mudança e transformadas em sinal de anor­social a ser

A miséria e as sociais nào em seu cial de mas sempre como do crime en-quanto um mal a ser sanado por medidas repressivas e técnicas.

Alardeia-se a necessidade inadiável de que se contenha a "onda sempre crescente" da criminalidade, frase encontrada repetidas vezes

e em diferentes épocas nos textos criminológicos, como parte de uma estratégia que justifica o constante reaparelhamento do Judiciário e da

polícia, viabilizando um aprimoramento constante dos meios de re­pressão e controle social.

/'

Trabalho e reforma social

No discurso criminológico sobre a anormalidade social, a pobreza é vista como o principal agente causador do fenômeno do crime. Mas pre­cisemos melhor de que maneira esta é concebida: não que o estado de necessidade material gerasse, por exemplo, os delitos contra a proprieda­de, ou que estes encontrassem um sentido ao serem assim explicados.

Ao contrário, a pobreza é vista como deconente de característi­cas morais ou mentais de um grupo de indivíduos na sociedade. A

62

mais importante destas características refere-se ~ incapac~dade ou in­

dolência para o trabalho, associada a outros víc:os. n::orms decorren­tes, como a tendência para o alcoolismo, a proStltUlçao etc.

O . 1l\'nólogos comentam que a vadiagem, antes de ser um delito,

seUl . d 'd é sobretudo um assunto para médicos. Representa um e v: a incompatível com a convivência social. É justamente ess~ gênero de VIda

que caracteriza a pobreza e, em última análise, o cnme.

A reforma social de que nos fala a criminolo~ia versa just:~en~e sobre a transformação de~es hábitos de vida. E uma estrategta ue

_ b oe o social de modo a melhor controlá-lo. Gerir e tutelar a açao so I .' . miséria: assim poderia ser definida a proposta da cnImnolog13 em seu

projeto de intervenção sobre a sociedade.

No que se refere à questão da recuperação do criminoso, o traba­a terapêutica privilegiada. As prisões devem transformar-se

oficinas, erl1 que o trabalbo'é antes de eda e

lho em de o

[iamente ." esta marcha lenta da prisão mais rigorosa à liberdade obri?a o sentenciado a uma ginástica contínua de suas facul~ades mor~l~. A todo momento ... tem (o preso] que respeitar os pre.ce~to~ dogmatIc.as do estabelecimento, tem que se restringir, se dIs~lphnar e. aSSIm aprender a viver com modéstia, tolerância e r.espelto ao reg.une ~a ordem e do trabalho ... isto traz grandes sofnmentos morms, mas precisamos aprender que só com o sofri~ento aprendemos a ser

pacientes, resignados, tolerantes e bons .

A indisciplina e a ociosidade geram a miséria, que é por sua vez o

gerador número um da criminalidade. Nada melhor, pa:a o combate ao crime, que combater o ócio e a indisciplina, tanto na socle~ade. c~m~ um

todo quanto na prisão, enquanto micro-s~ci~da~e. O mel~~ p~vIl~~lado para o aprendizado da disciplina, do respeIto a leI, da obedIencla, e Justa-

62 Roberto Moreira da Costa Lima. "A de Direito Penal, vol. X, p.32.

Paulo", in Revista

63

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mente o trabalho. É o que veremos a seguir, num exemplo privilegiado

desta estratégia fornecido pelas colónias correcionais agrícolas.

lhes

não

As colónias correcionais agrícolas, segundo o exemplo pas-

seI' tomadas como laborató-

que o Judiciário arma

do

à lei.

As colónias ~~'.'.-,~,~. têm como

a à vadiagem e o amparo aos necessitados ... impedir que os egressos do cárcere e os sem trabalho se tomem vadios ... que os vadios se tornem criminosos.

Destinam-se também a "vadios condenados" e,

livres que por de emprego a

ser consideradas que os guar-

de rnanrida a

noturna dos e absoluta dos

indivíduos de seções diferentes" e de "solicitar ... o auxílio da força

pública para pôr fim a motins e lutas entre os internados".

o "cliente" da colónia é o vadio:

Inspirou-se o regulamento na moderna corrente penalista que sus­tenta ser a vadiagem um estado patológico do indivíduo ... o vadio será condenado à residência na colônia correcional... procurou o legislador incutir-lhe [assim] o hábito de residência.

Há ainda um "Conselho de Trabalhadores", decorrente da neces­

sidadede

se levantar o nível do moral do internado, despertando a noção ex ata de seu próprio esforço ... estimulando a vida em sociedade, o êxito da produção racionalizada e as múltiplas vantagens da justiça social.

Os membros do Conselho dos Trabalhadores são escolhidos pelo

diretor, entre os trabalhadores de melhor conduta, podendo ser desti­tuídos se for posta em risco "a boa ordem e disciplina da colônia".

64

A colônia é "uma verdadeira -escola de trabalho e readaptação,

onde são também ministrados ensinamentos de de moral e

disciplina"63.

a o o Judiciário

corrente de residência", são estratégias disci-

plinar do Estado sobre os setores da população.

Eis as mudanças sociais de que nos falam os criminólogos. Na verdade, elas se referem mais a mudanças na própria estratégia do

Judiciário, que mas procura dar à

político a idéia um sindicato ideal, onde os trabalhadores são cúmplices na vigilância, tra­

balham sem reivindicar direitos, organizando-se apenas para sustentar

a própria exploração.

Multidões criminosas

Os motivos populares têm sempre a pronta . • 65

adesão dos piores elementos SOClalS

Em suas análises sobre os delitc:s das multidões, que se tornam

freqüentes na déc~da de 30, a criminologia mostra uma outra faceta de

seu discurso "sociológico" . É como se fosse neste momento avaliado

63 Milton Barcelos. "As colónias correcionais agrícolas constituem meio de profilaxia social", in Revista do Direito Penal, vol. XIII, 1936, p. 175-82. 64 De fato a repressão policial segue sendo o método mais comum de controle sobre esta parcela da população, mas que se dá muitas vezes acompanhada de um discurso como o que descrevemos. 65 Nelson Hungria Hoffbauer. "O crime da sedução", in Revista de Direito

Penal, voI. X, 1935, p. 9.

65

11

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i .

o potencial político das massas populares, no que elas representam como ameaça ao Estado, ao mesmo tempo instrumentando este mes­mo Estado para sua própria preservação.

Nos textos criminológicos das décadas de 20 e 30 aparecerão com insistência referências à selvageria das massas em geral, ao "bra­sileiro" em particular, fadado por sua própria natureza ao desrespeito

às leis, à indolência, e outras características de conduzir à

delinqüência.

A causa deste estado emocional caótico e descontrolado que ca­racterizaria o coletivo vai ser buscada, neste momento, tanto na ori­

gem racial do povo, no atavismo (reeditando o lombrosianismo), quanto 116S fenômenos psicológicos descritos por Gustave Le Bon, Freud e outros.

Quando na multidão enfurecida os homens obedecem mais aos fa­tores

Brasil dárias, é um vasto campo para essas

reveltas

As manifestações populares preocupam os criminólogos e aos fenômenos que nelas estes observam são dadas várias designações:

epilepsia das multidões, furor coletivo, degradação do pensamento, estado hipnóide. Na multidão o indivíduo perde os freios morais que

possuía: a afetividade se intensifica, a inteligência decresce, já não pode decidir livremente por seus atos, torna-se facilmente suges-tionável, odeia e ama exageradamente.

Necessário se torna, do ponto de vista do poder dominante, que

se oponha um paradeiro ao perigo que representam os indivíduos reu­nidos. E mais uma vez surgem o Estado e as leis como fruto de uma necessidade, aqui, a "necessidade" de ordenar o caos, de conter o inaciona!.

'" a disciplina legal, formulada pelo direito, inspirada pela necessi-

p. 108-9.

66

dade ... vem tornar em manso lago as inconstantes ondas das mas­sas que se arrepiam aos mais leves sopros de opiniões soeiais ... 67 .

Ao caracterizar como doentias e selvagens as manifestações da multidão, a criminologia se apresenta como um dfficurso através do qual o Judiciário capta seu potencial político. Ao mesmo tempo, faz

aparecer como uma necessidade natural o de as leis, os dispositivos de repressão e controle social, respostas tecnicamente justificadas à desagregação mental das multidões em revolta.

Através do estudo dos chamados crimes da multidão, o Judiciá­rio elabora um saber que se articula a uma estratégia de controle sobre

as formas de organização popular.

A multidão coloca-se, agora, no primeiro plano da vida social, ins­talando-se nas praças, como no gover'flo. Enlarguecendo os hori­zontes da função do Estado, fazendo-a em órbita

(os estudiosos da duplo serviço: à

sociedade e ao indivíduo ... mostrando o caminho a

para, em sua contra os excessos das mul-

tidões dclinqüentes68.

5. O Código Penal de 1940: vigilância e tratamento

Ao longo de cerca de quatro décadas, a partir do final do século

XIX, a criminologia se expandiu, ampliando sua importância junto ao direito penal e produzindo transformações concretas nas práticas ju­

diciárias. O Código Penal brasileiro de 1940 é saudado como aquele que finalmente incorpora as inovações trazidas por esta jovem ciên­

cia, ainda que com atraso em relação aos grandes centros e mesmo

em relação a outros países da América Latina.

A criminologia, esta espécie de amálgama confuso formado a

partir das ciências humanas, se por um lado deixa a desejar em

67 Haeckel de Lemos. "A razão de ser da disciplina", in Revista de Direito Penal, voI. XIV, 1935, p. 217-9.

68 Elias de Oliveira, op. cit., p. 3-7.

67

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termos de elaboração dentre as mesmas69.

por outro é talvez a mais

As vH'~'--J'-'''' entre as chamadas ciências humanas e o poder não

são nunca de exterioridade: estas não são "usadas" ou no sentido de aos interesses da e do controle so-

cia!. Ao e estão indissociavelmente

que instrumentam e viabilizam.

Não que a deixem de ter,

neste sentido, um caráter aqui é que a demonstra de por demais evidente

esta com o poder.

O direito criminal moderno deve ser estudado, não para complicar ... mas para armar o

defesa contra de meios mais

70 e eficazes

ela

de Estado.

O poder disciplinar se generaliza na sociedade, através de outros dispositivos como a psiquiatrização, a escolarização, etc., instaurando

formas de controle sutis, não violentas à primeira vista. Acompanhan­

do este processo, o próprio Judiciário adquire uma feição disciplinar,

mas que não consegue descartar-se de sua outra face, claramente re­pressiva.

Eis por que a criminologia não pode disfarçar seu compromisso básico com a "defesa social", ainda que se esforçando em ser uma

69 "Tem-se a impressão de que o discurso da criminologia possui uma tal utilidade, de que é tão fortemente exigido e tornado necessário pelo funcionamento do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente ou mesmo simplesmente de ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteiramente utilitário", (Michel Foucault. "Sobre a prisão", in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 138).

70 Esmeraldino O. T. Bandeira. Estudos de política criminal. Rio de Luzinger, 1912, p.12.

68

ciência "do homem", no sentido de que visaria a cura do criminoso, a solução do problema do crime, etc.

de crime na qual este não

cas quase à lei, mas a um fenômeno com característi­

ÁlUi,--,ç,uv social ou individual. O alvo inequívoco desta de popu-lar que ameaçam diretamente o mas que dessa forma seu caráter político.

É constante, desde o da criminologia, o repetitivo

clamor contra um aumento da criminalidade e pela necessidade de uma reação contra este fenômeno. Podemos considerar que o tão es­

tudad.o e propalado problema da criminalidade, de seu aumento

do discurso ,no SCI1-

tido de que isola e descarta de seu contexto

o chamado "combate ao crime", urna tarefa técnica, é descaracterizado, em seu compromisso com

a manutenção das formas de dominação vigentes na sociedade.

Em nome da adoção desses novos meios técnicos para o comba­te ao crime são incorporadas ao "Novo Código" algumas inovações. No período que antecede a elaboração do mesmo, os juristas mais ligados à tradição liberal do direito já denunciavam estes novos dispo­

sitivos no que estes representavam enquanto aumento do arbítrio e

restrição das liberdades individuais.

Como diz Magarínos Torres:

O direito penal foi subvertido em seus princípios mais elementares ... abolido por completo o princípio da igualdade perante a tornada esta retroativa e, em certos casos, pura criação do juiz, tendo em vista a periculosidade do delinqUente. Não serão coisas velhas com

71É também, certamente, uma invenção do discurso veiculado através da imprensa, freqüentemente impregnado de opiniões de cientistas sociais, psicólogos, criminólogos, etc.

69

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novos nomes? Não serão ... males que a humanidade lutou séculos para corrigir?72.

Mas se a tentativa de aumentar o espectro repressivo das leis era, em anteriores ao surgimento da criminologia, identificada de ime-diato com o autoritarismo, com uma política conservadora, a

relJreseJntc)u uma via através da esta apa-recer como apolítica, neutra e descompromissada, porque científica.

Dissemos que a intervenção da criminologia junto ao direito penal resulta em que este passe a ter uma disciplinar, OH que

a tecnologia disciplinar práticas judiciárias tradicionais.

No Brasil, este processo tem características peculiares. O Códi­go Penal de 1940 traz consigo dllas inovações, produtos do desenvol­vimento da ciência da criminologia: o critério da periculosidade para a aplicação da pena e o dispositivo da medida de segurança.

Nesta de pudor de que é tomada a a COll­

sendo pouco a pouco de um que não mais pela

punição, mas pelo tratamento, readaptação ou reforma do delinqüente.

Mas, ao mesmo tempo que se reconhece nas medidas de seau-o

rança este novo tipo de pena de tratamento, os juristas brasileiros re-conhecem também que este ideal reformador terá limitadas condições de se efetivar no Brasil:

Sobre o estabelecimento especial... na prática vamos ficar mesmo nos limites da primeira galeria e dasala da capela do pré-histórico e dantesco presídio da rua Frei Caneca e nas infectas cadeias do interior do país 73.

A medida de segurança deveria ser cumprida em estabelecimento especial, intermediário entre a prisão e o hospital, as chamadas Casas de Custódia e Tratamento. Mas sua inexistência no Brasil da época não

Penal, voI. XV, 1936, p. 15. Brasileira de Criminologia", in Revista de Direito

73 Id., p. 109.

70

faz com que se recue na adoção deste dispositivo. Na exposição de motivos ao Código Penal de 1940, Francisco Campos assim define sua utilidade:

É notório que as medidas e penais se revelaram insuficientes na luta contra a criminalidade ... para conigir a ao !adodas penas, que têm finalidade e intimidante, as medidas de segurança. embora aplicáveis em regrapost delictum, são

destinadas à e tratamento dos indivíduos perigosos, ainda que moralmente írresponsáveis74

A adoção da medida de segurança a incorporação CiO

direito penal de um critério de julgamento que não se refere ao delito, mas à personalidade do criminoso. O julgamento do juiz refere-se a um tipo de anormalidade reconhecida no delinqüente, a "periculosidade".

77: ... deve ser reconhecido o indivíduo se sua perso-nalidade e bem como os motivos e circunstâncias do

autorizam a que ou torne a

A noção de periculosidade não equivale exatamente a um diag­nóstico psiquiátrico, mas os considerados doentes mentais são tam­bém vistos como perigosos, juntamente com os reincidentes, os con­denados por crimes organizados e, o que é mais importante: todo e . qualquer criminoso, desde que o juiz o avalie como virtual reincidente.

O arbítrio do juiz é enormemente aumentado em razão desta ca­pacidade de julgar tecnicamente, que a ciência da criminologia lhe ou-

/'. . torgou. A personalidade perigosa é definida como aquela em que eXlste uma tendência delituosa, tendência essa avaliada pelo juiz com o auxí­lio de seus peritos auxiliares (os psiquiatras, principalmente).

Uma vez considerado "perigoso", o destino do criminoso é a medida de segurança. E neste ponto surge uma aparente incongruên­cia do "novo código", que faz conviver este novo dispositivo, curativo

74 Francisco Campos. Diário Oficial de 31/12/1940.

Penal Brasileiro de 1940.

de Motivos ao Penal de 1940.

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e preventivo, com a velha pena, punitiva e intimidatória. As propostas da não se fazem e por

graus variados de responsabilidade, dos por

Assim sendo,

lidade é aLC~llCH1Uld

os criminosos considerados 22 do

22: É isento de pena o agente que. por

clescnvo lv'imento

ruinoso do dimento.

Parágrafo Único: A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desen­volvimento mental incompleto ou retardado, não possuía, ao tem­po da ação ou omissão, plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato ...

É neste ponto que a contribuição psiquiátrica dos graus variados de responsabilidade penal permite conciliar a existência das penas, em seu sentido retlibutivo e expiatório, com as medidas de segurança, que seriam sua antítese. Isentando de pena os doentes mentais (os antigos loucos de toda espécie) e reduzindo-a no caso dos limítrofes (os parcialmente res­ponsáveis), não se está deixando indeterminado o destino destes anor­mais perigosos, como ocorria nos códigos de 1830 e 1890.

Ao contrário, seu destino está definitivamente selado. O destino do louco criminoso é a medida de segurança, a ser cumprida em mani­cômio judiciário, por um período determinado, ao fim do qual será avaliada a cessação de sua periculosidade e a cura de sua doença, o que poderá não ocorrer jamais ...

72

Os limítrofes, os psicopatas, os perigosos de toda além da pena, que cumprirão serão enviados para instituições

"tratamento e Francisco Cam-

Na a extrema com que são definidas as medidas de segurança acaba por deixar claro sua intenção primeira éa e não o tratamento:

A fórmula do projeto medidas de segurança) virá aumen1ar a celteza geral de punição dos que delinqüem, tornando maior a eficiên-

(13 ao homo-77

reformadas (ou o serão cm que do entre hospital e prisão ficaremos na prática com a. velha prisão. E com a adoção da medida de segurança ao lado das penas teremos na prática um aumento destas, sem nem sequer uma feição curativa, aumento este baseado no arbítrio do juiz, que julga finalmente sem lei.

A penetração de concepções sobre a anormalidade do criminoso, processos de reeducação ou cura, concepções sobre a anormalidade social e propostas técnicas de reforma social ou institucional são algu­mas das questões trazidas pelo discurso da criminologia e incorpora­das ao antigo direito penal de tradição liberal.

A "colonização" do Judiciário pelas ciências humanas, pela via da criminologia, corresponde a um processo de implantação de urna

76 A única instituição do gênero ainda hoje existente no Brasil é a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, São Paulo. sendo válida, ainda hoje, a afim1ação de que as medidas de segurança são na prática, na maioria das vezes, penas prolongadas cumpridas em prisões comuns. 77 Francisco Campos, op. cit., p. 17.

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tecnologia disciplinar, com efeitos no nível do discurso e também das práticas sociais.

Um dispositivo como a medida de segurança é o resultado práti­co de cerca de quatro décadas de discussões nos meios jurídicos bra­

aU\J",dlU de um novo critério de julgamento, baseado não no mas na do deIinqüente. Além

a uma transformação na concepção de pena e de sua sobre uma personalidade considerada anormal: nasce a idéia de uma pena de tratamento.

Mas este processo de incorporação de uma tecnologia disciplinar ao Judiciário tem no Brasil características peculiares. Estas peculiari­dades fazem com que tenhamos uma completa redefinição das con­cepções relativas ao ato de julgar (de fato, passa-se ajulgar uma per­sonalidade) ao lado de uma realidade institucional (prisões, que não se modifica ou o faz de desigual.

úU\.JL,!\ I do "Novo de a uma das judiciárias, mas que se processa

no sentido do aumento do arbítrio judicial pura e simples, de uma ampli­ação na duração das penas, ou seja, numa ampliação do poder repressivo deste aparelho de Estado que se dá em nome da ciência.

Entendemos que o discurso da criminologia teve, pois, uma contrapartida prática, no nível das transformações que foi capaz de operar nos dispositívosde poder. Entretanto, esta sua positividade deve ser entendida tendo-se em conta as condições peculiares da formação social brasileira. Nela o processo de implantação de tecnologias disci­plinares não se dá sem um ônus de violência, de repressão sem másca­ra, que o coloca permanentemente em xeque. O esquadrinhamento do campo social no Brasil, também no período que focamos nossa pes­quisa bibliográfica - o que antecede à elaboração do Código Penal de 1940 ~, é imperfeito e deixa muitos pontos claros. É sabido que a generalização da medicalização e da escolarização, no Brasil, pemmne­ce como um projeto embrionário. Podemos dizer que regiões de amon­toados humanos - de cheias de presos sem nome

74

ou número, de favelas e bairros pobres sem médico ou escola, onde crianças morrem de verminQ.se - convivem com regiões esquadrinha­das onde a tecnologia disciplinar de fato se efetivou.

Um último ponto a mencionar seria o próprio modo como o Judi­ciário incorpora essa tecnologia disciplinar: o discurso criminológico não pode sem um excesso de utilitarismo, o que o torna cla­ramente comprometido com a repressão. Essa característica do dis­curso criminológico torna-se particularmente visível na realidade bra·· sileira, mas não seria exclusiva da implantação desse discurso entre nós. A criminologia, como a mais utilitária das ciência humanas, não pode propor um "tratamento" do delinqUente sem enfatizar a necessi­dade da "vigilância", ou não pode falar de reforma social sem defender a repressão policial, ligada ao chamado combate ao crime. Contraditório, impreciso, desordenado, ° discurso da não deixa de ter, en-tretanto, pm'a o Judiciário, a de dotá-lo de um::! Clcn-

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Diagnóstico psicológico do criminoso: tecnologia preconceito

o objetivo deste trabalho é refletir sobre os pressupostos em que se baseiam as avaliações, exames e procedimentos diagnósticos de indivíduos encarcerados, considerados "criminosos". Embora esta reflexão diga respeito mais especificamente à avaliação ou diagnóstico psicológico, tal restrição relaciOfla-se com a maior familiaridade da autora com as técnicas psicológicas, e não com a existência de qual­quer distinção importante, do ponto de vista de nossa análise, entre

e exames levados a efeito ou assistentes

A do Penal de I crescem em Brasil, os procedimentos destinados a diagnosticar, analisar ou estudar a personalidade e a história da vida dos condenados, com vistas a prescrever adequadas técnicas de tratamento penal, assim como pre­ver futuros comportamentos delinqüenciais. Mas esta é uma tendência na legislação penal ocidental: a de se aplicar a pena tendo em conta uma personalidade, muito mais que um delito cometido.

Seguindo essa tendência, o princípio de individualização das pe­nas parece ter tomado proporções muito maiores e mais abrangentes. Isto significa também que as instituições penais deverão transfOl:mar­se cada vez mais em locais onde deverá ocon"er uma constante avalia­ção do compOliamento do preso, uma vez que "o mérito do sentencia­do é o que comanda a execução progressiva"l .

Parecem ter aumentado as ocasiões em que estará criada a ne­cessidade de se avaliar a personalidade do preso, avaliação esta apoia­da em procedimentos técnicos, mais do que no simples olhar leigo de um Situações como mudança de penitenciário (de

I Lei de Penal.

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me fechado semi-aberto), concessão de livramento condicional, bem como a chamada do condenado, através da qual

mes, pareceres ou laudos formulados por

a daconfiabilidade que dos referidos exames. Das duas uma: ou de

que examimm-não versado nos mesmos conhecimentos. Além disso,

por se tratar de procedimento normalmente reconhecido como científi-

c, dadcs de vir a no erro. De posse desta cle."rndiografia" (ou exercício de futurologia ... ), a Justiça poderia enfim ter o respaldo seguro de uma ciência.

Nosso objetivo não é o de, simplesmente, denunciar o caráter não-científico dos exames e técnicas empregados, o que não consti­tuiria grande novidade. Se este fosse o caso, tratar-se-ia simplesmen­te de, demonstrado o fracasso destes instrumentos, defender que a Justiça os pusesse de lado.

O que nos chama a tenção é, sobretudo, o grau de eficácia ou de utilidade que os referidos exames apresentam: eles têm conseqüências palpáveis, no que diz respeito ao futuro do condenado. Na maioria das vezes, um resultado desfavorável lança uma desconfiança sobre a ín­dole do preso, que poderá perdurar como uma marca indelével sobre seu futuro no interior das instituições carcerárias, tendo como efeito prolongar-lhe indefinidamente o tempo de reclusão ou dificul tar-Ihe a concessão de benefícios.

Este tipo de avaliação do condenado goza, portanto, de elevado grau de credibilidade junto à Justiça, trazendo efeitos concretos sobre

84

o seu destino. Não se pergunta o Judiciário sobre as razões que justi­ficam tão a da utiliza as téc-

nicas

de um os ,instrumentos a que nos podem ser denunciados por sua "fraqueza" teórica, de outro

seu elevado grau de utilidade. O

de '--'~,,"""~yO,'-' no Instituto de Classificação Nelson Hungria no período de 1968 a

Os EVCP faziam parte dos dispositivos legais do Código Penal de 1940. Eram realizados ao final dos prazos estabelecidos para as medidas de seaurança impostas aos semi-imputáveis ou aos condena­dos julgados :Specialmente perigosos. As referidas ~edidas de seg~­rança, impostas em combinação com as penas, deven~m ser cumpn­das em estabelecimentos especiais, onde se processana o tratamento por elas pretendido. Como estes estabelecimentos não chegaram de fato a existir, na maior~dos casos, pena e medida de segurança eram

na prática a mesma coisa. Os EVCP, que deveriam significar uma espécie de avaliaç~o dos

efeitos do tratamento penal, na prática reduziam-se a u~.a tentativa de prever a capacidade de reinserção social do preso, admltmdo-se desde já, pelas condições do sistema penitenciário, que nenhum tratamento

tivesse sido levado a efeito. Um laudo desfavorável do EVCP significava, na maioria dos ca­

sos, um prolongamento do tempo de reclusão do condenado, a pre­texto de um tratamento sabidamente inexistente.

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'Ii

Com a entrada em vigor do Novo Código Penal e da Nova Lei de Execução Penal, emjaneiro de 1985, não há mais medida de secruran­ça para os condenados imputáveis. Deixam também de existir os EVCP, mas, a nosso ver, permanece muito do espírito que os criou. Continua o Judiciário a nutrir a expectativa de que um parecer técnico possa prever comportamentos, servindo de base para a penal. É de se .o~se~var que a no diagnóstico do não pressupõe a eXlstencla real de tratamento ou de modificações nas instituições carcerárias. No campo penal: o diagnóst~co cttmpre antes de tudo uma função de

e lflstrumentahzação de procedimentos carcerários ..

/ O novo c6digo ampliou as oportunidades em que um condenado sera tomado alvo de uma avaliação técnica. No início do cumprimento da p~na deverá ser submetido a um "exame criminológico", caso te­nha sldo condenado a pena privativa de liberdade em regime fechado. Para mudança do regime (do fechado para o novo exa­me será

da pena e relevo com a de

técnicas de classífic~Ção - CTC", de cuja composição obrigatória, re-gul~mentada por lei, farão parte um psicólogo, um psiquiatra e um asslstente SOCIal.

A classifica~ão será feüa por Comissão Técnica de Classificação que elaborara o programa individuajjzador e acompanhará a execu­ção das penas privativas de liberdade e restritivas de direito deven­do pro~or à autoridade competente as progressões e re~ressões dos reglmes bem como as conversões2.

Deste m~do, toda a vida do condenado numa instituição prisional pa~sa a subordmar-se a um exame ou avaliação formulada por uma equi­pe mtegrada.por "cientistas humanos". Pretende-se certamente revestir estes pr?~edunentos de certo grau de cientificidade, emanando daí sua con~abIl~dade. . _ a inovação. como um considerável avanço no sentIdo da humamzaçao e da modernIzação do tratamento penitenciário. ~

Lei de Exec!Jcão

86

Também nos idos da década de 30 saudou-se o código anterior como grande inovação e os hoje tão criticados EVCP como grande avanço científico. Na prática, no entanto, eles se converteram numa verdadeira fonte de arbitrariedades, concorrendo em última análise para o encarceramento prolongado ou até perpétuo de muitos prisioneiros cuja periculosidade jamais foi dada como "cessada"3 .

Assim, a avaliação de um preso feita por um psicólogo ou equipe interdisciplinar tem, como teve no passado, conseqüências importan­tes sobre sua vida na instituição.

Que dizer, por outro lado, destas próprias avaliações? Quem ava­lia os autores da avaliação em seus compromissos político-ideológi­cos? Muitas vezes se tem apontado as falhas ou a tendenciosidade dos dados trazidos à tona pela chamadas "ciências humanas", em diferen­tes campos de atuação. Apesar disso, em vários setores da sociedade, muitas atribuições e têm das mãos do homem co-mum para o arbítrio do . Nas sociedades industriais mo-

o L!l """ ,

transmissão de indivíduos que se encontram aparentemente "mais pr6ximas da verda­de" por disporem de um saber científico.

No campo da justiça penal têm-se operado transformações se­melhantes: mais e mais pretende-se julgar e condenar um indivíduo com o respaldo pretensamente neutro e seguro de uma cjê~cia. Violên­cia, repressão, punição são palavras em desuso. Trata-se hoje de cu­rar, tratar ou recuperar o criminoso.

Neste trat)alho pretendemos mostrar que, ao invés de serem descompromissados e neutros instrumentos científicos, as avaliações ou exames técnicos de criminosos reproduzem todos os estereótipos e preconceitos, em suma, toda a ideologia que permeia a questão do crime, traduzindo-se em práticas de repressão, controle e disciplina­rização das parcelas mais pobres da população.

3 Cristina Rauter. Criminologia e Poder Político no Brasil. Rio de Janeiro, de Filosofia da PUC, Tese de mestrado, mímeo,

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o técnico, tão característico do capitalismo moderno, pe-netra cada vez mais no campo das inter-relações humanas, instru-mentando novas de controle sobre a população. No campo

e instrumental tem correspondido a mudanças nos métodos de como violentos à

que não mais mas de um cunho

e de sobre a subjetividade do encarcerado.

Nosso

LA

prático ao escrever este trabalho foi o de

proce­em geral.

É na teoria psicanalftica que freqüentemente se pretende encon-trar a fundamentação teórica para este tipo de estudo da personalida­de. Grosso modo, pode-se dizer que, neste campo do conhecimento, é a partir de Freud, de suas primeiras teorias do trauma como fator causal da neurose, que se construiu o modelo segundo o qual a partir dos fatos do passado é que se compreende o funcionamento psíquico presente.

/'

No que se refere à teoria freudiana, a concepção de história indi­vidual evoluiu muito desde a teoria do trauma. De imediato, uma dis­tinção importante deve ser feita: na perspectiva psicanalítica, não é a história real que importa; não há uma preocupação com a veracidade dos fatos narrados pelo cliente. Parie-se do princípio que essa história se passa num outro plano que não o do real concreto. Ela remete à vivência particular de cada indivíduo ou à "realidade psíquica" que lhe é peculiar. "

Também no campo da medicina está dado o modelo de recons­tituição da história individual, desta vez buscando o ponto de eclosão

88

da doença, seus fatores desencadeantes, seus antecedentes, historiados pelo médico numa ordem cronológica.

" Nos procedimentos judiciais e IJU'l1\.,1<LJl" busca-se também rc-constituir a história do réu ou do Um objetivo claro deve ser

e é ele que norteia os a fala das testemunhas: a reconstituição do A de fatos concretos "vistos" por a partir da fala do

fonte de erros e e que deve ser deles depurada, buscar-se-ia à "verdade". Nesta que chamaremos de jtttídico-policial, os"antecedentes" ou a "história são utilizados para condenar ou inocentar, para fornecer elementos para o julgamento, par"a incriminar.

Na perspectiva psicanalítiea, deve ser indivíduo é tomada

real ou O mesmo

ou aos acontc­

à sua

por um dos seus filhos como severo e por outro como indulgente e afetuoso. Os acontecimentos reais têm pois uma importância relativa no que se refere à patologia mental. Fica preservado deste modo um certo grau de liberdade do indivíduo com relação à influência que pos­sam ter as vicissitudes da existência sobre sua personalidade. Feliz­mente, nem todos adoecem psiquicamente devido a um mesmo fato traumático real: o valor que este fato terá futuramente, na determina­ção de uma neurose ou psicose, é dado não por características intrÍn­secas ao mesmo, mas por sua tradução nos termos da realidade psí­quica individual. Ou seja, os acontecimentos têm seu valor dado pela maneira como o indivíduo os vê, de acordo com sua realidade interior.

De que forma é colhida a história individual no campo da técnica psicanalítica? Ela vai sendo reconstituída na fala do cliente num tempo que lhe é próprio. O que está emjogo é o livre desejo do cliente de fal~ d~ silenciar, de omitir um fato, de revelar outro. Esta liberdade com relaçao a própria fala, no entanto, não se deve a razões éticas apenas: ela é.cOI:d~ÇãO de possibilidade para que emerja o inconsciente. Ou seja, que o mdlvl.d~o possa comunicar livremente o que lhe vem à cabeça: esta é uma C~~dlÇ~O metodológica indispensável, sem a qual está invalidada qualquer uülizaçao

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da teoria e ~a técnica psicanaIiti.ca: ~mbor~ ao psicanalista não esteja veda~o fazeI perguntas, a reconstltUlçao da hIstória individual não é feita a~ra~es de res~ostas dadas a um interrogatório, mas a partir da associa­çao hvr~. As dIstorções ou omissões são parte do material colhido, sendo determmadas por e motivações inconscientes; ao de se-rem vistas como -sao um material valioso para se

uma do psiquismo do sujeito.

f. • Nã? se !r~ta aqui de defender a coneta utilização de qualquer ceona pSlcologlca no campo dajustiça penal para elaboração de exa­mes ~e ~ersonalidade. Nosso objetivo é deixar claro que ~xistem di­~ergenclaS fund~me~tais e~~re métodos e técnicas empregados, por ex~mpl0, na teor~a pSlcanahtlca, e aqueles empregados na feitura dos EV CP que e~am1I1amos. Entretal}to, também não podem ser entendi­dos .os re~el~ldos exames como conespondendo unicamente à pers-pectlvamedlca ou à perspectivaJ·urídico-polícial.

mal de de . uma

e

. Uma vez ~osto em ação, a partir da lógica interna deste disposi-~lV~ P?de-se afirmar que se, por exemplo, um indivíduo teve uma ll1fanCla pobre e povoada de incidentes em suas relações familiares (mort~s de pa~'entes próximos, separações de casais, vícios como alcoolIsmo, pnvações financeiras), ele com certeza será um crimino­so.

Um determinismo ceg?, mecânico e simplista é o que caracteri­za estes laudos_de e~ame. E este tipo de determinismo que permite f?rmul~r equaçoes taIS como: carências familiares na infância + mi sé­na = cnme.

Estamos diante de uma concepção segundo a qual o indivíduo é escravo abs~lu:~ dos f~tos concretos de sua vida pregressa, não lhe r~s~an.do sermo cumpnr seu destino criminoso" já determinado pelas VICISSItudes de sua vida familiar.

. ?~ais afirmações pretendem, evidentemente, basear-se em teorias cIentlfIcas. Entretanto, se tomarmos a teoria psicanalítica e mesmo outras concluiremos de

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isolados acontecidos na vida de alguém, não podemos tirar conclu­sões seguras sobre seus efeitos sobre a personalidade. Tomemos, por exemplo, um fato geralmente aceito como traumático: a morte da mãe de uma criança na primeira infância. Como um dado isolado, nem mesmo este exemplo extremo nos autoriza a fazer previsões sobre o futUro psicológico do indivíduo que tivesse sofrido esta perda. Há

que encontram um substituto satisfatório e, embora viven­dando grande perda afetiva, esta não marcas duradouras em sua personalidade. Há certamente aqueles casos em que a vivência provavelmente contribui para a eclosão de uma psicose ou neurose grave. Por outro lado, há também pSÍCóticos graves em cuja história clínica não se encontram acontecimentos familiares deste tipo.

A teoria psicanalítica, assim como qualquer outra teoria psicoló­gica que conheçamos, não nos autoriza a fazer previsões sobre o com­portamento ou sobre a saúde ou a doença. Através da reconstrução do

com ele ficou na memória e nas vivências luz sobre a natureza de seus confli-

tos atuaís. A sempre O para ~H~'v"HU o E o futllro continua pertencendo a Deus ...

O processo de reconstituição da história do condenado nos EVCP poderia ser descrito como uma mirada em direção ao passado do indi­víduo, buscando a confirmação de que realmente existiram aconteci­mentos em sua vida que por sua própria natureza são geradores de crime. Circula-se tautologicamente sobre este tipo de raciocínio: se tenho diante de mim alguém que está preso e condenado, este alguém só pode ser criminoso e, como criminoso, só pode ter história de crin:linoso. A este passado se tem acesso pela fala do preso, mas esta não é, por certo, uma via totalmente confiável: acredita-se que, certa­mente, ele procurará enganar, falsear a "verdade". Lança-se mão dos autos do processo-crime, da ficha de comportamento carcerário, etc. Com base nestes dados considerados inquestionáveis, chega-se ao que se desejava: vidas pontilhadas de indícios só poderiam mes­mo levar ao crime. Supõe-se que, sem sombra de dúvida, o crime só pode ser uma aI10rn1alidade psicológica. Ao se historiar a vida do indi­víduo, o que se quer é encontrar os indícios desta anormalidade desde a (abandonou a escola? seus pais não o criaram? já praticava

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pequenos furtos? egresso da Funabem?), pela vida no cár­cere (cometeu muitas infrações disciplinares? tentou fugir?) e assim por diante, atentando-se para uma trilha de pequenos atos de indisciplina.

de é

2.

da sua é

nais de saúde mental, de várias tendências.

indiví­importância na formação

chamados profissio-

qualquer modo, mesmo que os psicanalistas afirmem tratar­se de "imagens parentais internalizadas" e não de personagens concre­tos, o fato é que o modelo edipiano mais difundido é aquele que pres­supõe a existência de uma família baseada na autoridade paterna e composta de pai, mãe e filhos.

É a difusão deste modelo edipiano, talvez em desàcordo, dirão alguns, com a teoria "pura", que permitirá a nossos psicólogos e psi­quiatras forenses caracterizarem como potencialmente criminogênicas e patogénicas situações do tipo:

.. Famílias onde ocorreu a morte do pai ou o abandono precoce por parte deste.

fi Famílias onde o pai bebe, está preso ou doente.

.. Famílias onde a mãe cria o filho sem o pai, ou onde a mãe tem filhos de homens diferentes.

• Famílias onde a mãe está ausente, mesmo que seja por ter que trabalhar.

92

• Famílias onde a mãe bebe, está presa, é prostituta, etc.

Podem ser encontradas nos EVCP interpretações como "ausên­cia da figura do de personalidade variados; ca­'~>'~"'W ;fctivas gerando mecanismos de que podem íl1-

por exemplo, à do roubo; "não recomendáveis": etc,

Mas o principal eixo interpretativo é aquele que reconhece no preso as chamadas "carências ,confundindo num só bloco afetivas e carências materiais. Um sem-número de situações são apon-

I deste de e c]uando tentamos tac as como , listá-las, concluímos que qualquer acontecimento familiar pode s~r tomado como causa: morte de brigas de man­do e mulher, traições, vícios c até mudanças freqüente de do~1icílio. O

de a mãe ter que trabalhar fora e deixar o filho sob os cUldados de se auscntar lar por

devido scr daninhos

que ou a falta de (:os laços familiares é uma característica das cham~das po~ula~~es ~e, bmx~ renda' as uniões sexuais são efêmeras, os flihos dItos IlegItlmOS prolif~ram. As mortes, tanto de genitores quanto da.s crjan~as, ,são precoces e freqüentesem razão da miséria (a expectatlva d~ VIda e d~ fato menor), as condições de trabalho e a extrema exploraçao levam a que os pais se ausentem de casa por longos períodos.

Ter que deixar os filhos aos cuidados de outras pessoas para /' poder trabalhar, freqüentemente pela semana inteira, ~ seguramente a

realidade da maioria das mulheres deste segmento SOCIal.

E logo nos damos conta de que todos os graves indícios d~ a~o:­malidade mental ou de tendência a delinqüir encontra~os na hl~tona familiar dos indivíduos examinados fazem parte da realidade maIS co­mum e cotidiana vivida pela camada da população a que per~encerr:' Ou seJ' a as condições de miséria geradas pela própria exploraçao capl-

, / '1' d onstru-talista recebem uma leitura estigmatizante, que e utl lZa a na c , ção da personalidade criminosa. Entretanto, o que é tomado por nos­sos peritos como "anormalidade" constitui, na verdade, a regra, o re-

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sultado mesmo das condições a que são submetidos imensos setores da população brasileira.

Nunca se pensa, por outro lado, que estas mesma<; condições pos­sam gerar fenômenos positivos, ou seja, fom1as diversas de organização

valores dos das classes dominantes, colocando-os em Nenhuma é claro, sobre a luta de classes.

para detectar de e contradição e diversidade.

o modelo a partir do qual se a e a

de é o da família conjugal. No entanto, nas populares, parece haver formas de organização familiar de

diverso. Enquanto nos segmentos médio e alto da sociedade a unidade ar composta de pai, mãe e filhos preva­lece, nas populações economican1ente carentes as famílias se cons-tituem em grupamentos Segundo dados do Departamento do Sistema do Rio de 13%

presos

além de pai, mãe e filhos.

A partir do modelo conjugal e do referencial teórico edipiano, no entanto, estes grupamentos familiares extensos são vistos freqüen­temente como formas de anomalia familiar, como possível foco de patologias. São pensados a partir das categorias como "promiscuida­de", "simbiose", etc., são tomados como o famoso "caldo de cultura" dentro do qual é gerado o micróbio do crime.

/

A partir de outro ponto de vista, poderíamos perceber esta forma de organização familiar como ligada a pelo menos duas causas:

1. Estratégia de sobrevivência para estas populações, que desta forma dividem entre si o custo da moradia, luz, gás, etc., bem corno a alimentação, trabalho doméstico e cuidados com os filhos.

Janeiro, 1984, do Sistema Penitenciário do Rio de

94

2. Presença de valores morais e formas de organização familiar diversos daqueles das classes dominantes.

Estes dois enfoques não são excludentes, mas con:plemen~ares. De fato, numa casa onde dormem no mesmo cômodo paI, fIlhos, como é nas classes populares, por certo outras maneiras de se relacionar com o corpo. Quantas e mas levantados pela psicanálise tcriam que scr neste co~-texto: a nudez do's país e a tão falada "cena primária", a informaçao sexual elas etc.

Esta é por'certo úma questão complexa. Por um.lado, é verdade que a dominação cultural exercida pel~s elites gen~rahza ou ~u,sca :e­neraJizar por toda a sociedade determmados padroes de mOla:ldade e de comportamento sexual. Porém, é verdade também q~~ ha ou~ras formas de comportamento sexual, de relacionament~ fa:mhar, pratIca-d emoraIs chversos daque­as na les difundidos ele de que para a daquela das classes dominantes, que, no entanto, será sist~matica­mente reprimida por esta, no sentido de manter sua hegemoma cultu­ral, também neste campo, o da moral sexuaIs.

Ora o discurso psicológico contido em nossos laudos claramen­te opta p~la defesa dos valores morais das e~i:es. Lá onde seria pos~í­vel ver diferentes formas de organização fmmhar, atenta-se ~ara a eX1S­tência de promiscuidade, de transgressão à norma. E cunosam~nte este tipo de visão leva nossos peritos a consi?e:ar como anom~h~ e tendência criminosa tudo aquilo que se constItUI como caractenstlca de nossas populações pobres. Ao agirem deste modo, acre~itam estar, no entanto, desvendando as causas desta grande anomaha que para eles constitui o fenômeno do crime.

3 .. Cultura, subcultura ou ausência de cultura?

Adquirindo uma feição sociológica, os laudos do EVCP relacio­nam também a cultura do preso com o ato criminoso que cometeu.

Jos van Ussel. Rio de Janeiro, '-éllU,,,"w 1990, p. 57,

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I I

I I

I I : I

Assim, aparecem concepções de deterioração cultural, desvirtuamen-to ou até mesmo de estados de "incultura" que à produção do

crime. Se o detento é um do se foi todos

estes antecedentes

de nota é o caso dos detentos que na estiveram reclusos em algum tipo de patronato, instituição de reeducação, etc. Neste caso costumam ser considerados "à margem" ou fora da cultu­ra (a cultura das elites), o que levaria a um desconhecimento dos valores da mesma. Esquece-se (sintomaticamente) que nestas insti­tuições, como nas prisões, não se está fora da sociedade, apesar dos muros. Em seu interior encontram-se reproduzidos os mesmos valo­res e preconceitos "de fora", tornando-se a distinção dentro/fora um falso problema. Os egressos de instituição de menores que, quando adultos, caem nas malhas da prisão, fornecem com suas tristes vidas exemplos de como toda a engrenagem supostamente "recuperadora e reeducativa" , na verdade, cria para o sujeito uma caneira, a de crimi­noso crônico. Com suas histórias pessoais peculiares, suas infâncias atípicas se comparadas às de crianças de classe média, estas crianças por certo adquirem valores também peculiares e diversos destas. Para um ser humano, entretanto, um fato impensável e paradoxal seria não participar de uma cultura ou não ter uma cultura. A não ser que se queira retornar às concepções lombrosianas de atavismo, degenera­ção e de aproximação do criminoso ao animaL

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Cabe aqui uma sobre a questão que a questão cultura16. É certo que diferenças culturais entre os

0v!"-Ul.vuevc> na sociedade, entretanto a de deve de contradição. É

a às demais classes. Por outro

sua culturais das não consegue se efetivar. Ora, o

acertadamente a culturais,

mas como desvio relativamente a um básico, que é a cultura das elites. Não há enfrentamentos, não há luta, não se vê

A entre as

('ue audos para esta diversificação cultural, tão nefasta, por ser a geradora de crimina!i?ade. Trata-se de um processo que poderíamos chamar de exerClCIO de dominação cultural "à força". Encarcere-se este desaculturado!. .. A prisão seria uma espécie de nivelador cultural compulsór~~, a~u~nd? através da disciplina, do trabalho, do aprendizado da obedICncla a leI, etc. Nestes locais de subcultura (o morro, as favelas, o sertão), impe­rariam outras leis ou nenhuma lei: far-se-ia necessário que o crimino-so aprendesse as "nossas leis", por bem ou por mal. /'

O que podemos facilmente verificar é q~e tamb~m os exames ~e cessação de periculosidade compartilham da IdeologIa posta em açao desde a fase policial (no reconhecimento do crime e do criminoso) até a fase judicial: pune-se e julga-se muito mais um indivíduo em função de sua classe social do que em função de seu crime. Segundo tal

6 Marilena Chauí. "Cultura do povo e autoritarismo das elites", in Cultura e democracia. São Paulo, Moderna,198L 7 Karl Marx e Frederico Engels. La ideología alemana. Buenos Aires,

Pueblos Unidos, 1973, p.50.

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I' li II! :Ii

concepção, quem é o criminoso? Alguém pobre, negro, favelado, anal­fabeto, rude e não tanto alguém que matou ou furtou, simplesmenté.

O que os laudos fazem é reproduzir o estigma do criminoso, detectando carências familiares, subculturas, descontroles afetivos, todos eles localízados nos segmentos mais pobres da população.

4. do

instituição não é algo abstrato que paira acima das cabeças UL'UUv"~" que nela trabalham. Ela se reproduz cotidianamente nas dife­rentes tarefas que a constituem. É assim que, cada qual a seu do guarda ao diretor do presídio, do psicólogo ao psiquiatra ou assis­tente social, todos se enContram envolvidos na tarefa última e mais importante que é a colocação em. marcha da engrenagem carcerária. É assim que muitas afirmações contidas nos laudos examinados só

sentido se as evidência desta que, antes de estar

outros, é um fun-do ciírcere. inicialmente a de exa-

me que se estabelece entre um técnico e um preso. Se se tratasse de um outro contexto, o de um consultório, clínica psicológica ou psi­quiátrica, o técnico teria como requisito básico de sua tarefa de exa­minador a criação de uma atmosfera de confiança e amistosidade, sem a qual os resultados poderiam até ser prejudicados. Vejamos o que dizem a esse respeito os manuais de testes psicológicos, usados com freqüência neste campo:

Especialmente importante es la llamada preparación psicológi­ca ... en todos los casos se procurará establecer un buen contacto ... debe existir una atmosfera de y muy particularmente en pacientes angustiados y temerosos9.

Ora, a situação em que se realizam exames como o exame criminológico desfavorece, por si só, o estabelecimento da chamada

8 Augusto Thompson. Quem são os criminosos? Achiamé, 1983, p. 63.

9 Ewald Bohn. Manual deZ de Rorschach. Madri, Morata, 1971,p.26.

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"relação de confiança". As relações estabelecidas numa instituição to­tal entre aqueles que estão a ela submetidos e as diversas categorias funcionais que compõem a instituição estão marcadas, de imediato, por um desequilíbrio de poder, por uma situação de controle e opres­são exercida pelo funcionário (técnico ou guarda) sobre o preso, que se estabelece até mesmo independente de sua vontade. Esta situação, que poderia ser simplificadamente descrita como uma condição fun­damental entre os que "têm a'chave" da cadeia e os que não a têm, está presente na situação de exame.

É estabelecida uma polarização na qual um dos pólos é ocupado por alguém que deve ser submetido e outro por alguém que deve propiciar condições para a efetivação dos controles institucionais que se atualizam cotidianamente.

A si tuação de exame é, para o preso, antes de simples oportunidade de introspecção ou auto-conhecimento, uma que tem repercus­sões futura. Se os resultados lhe forem favorá-

!-'Ü"';)Ü,hC1U do para o "n,,"""",,""~ Fv"~,,,obter livramento seu tempo de reclusão se prolonga, seu direito a benefícios se restringe. É, na prática, uma situação de julgamento revestida de uma peculiaridade: sua aptidão para o reingresso na sociedade é determinada por critérios e mé­todos, que lhe são desconhecidos e inacessíveis, pois se referem, em tese, a dados fornecidos independente de sua vontade, já que por defini­ção seriam inacessíveis ao próprio sujeito, inconscientes, subjetivos, etc. No cárcere, o emprego da noção de inconsciente tem desdobramentos bastante peculiares: o examinador é capaz de saber coisas sobre seu exa­minado, mesmo que este não as confesse. A veracidade ou a razão de ser dos dados obtidos deste modo é caucionada pela existência de um saber científico. Como se sabe, um não em psicanálise pode ser entendido como um sim, uma discordância como mera resistência. Está montado um sistema eficiente e imbatível na construção da personalidade crimino­sa, ao mesmo tempo a partir e contra a fala do preso.

Com relaçãoà ética profissional, também descobriremos inte­ressantes questões relativas à atuação dos técnicos na prisão. Veja­mos, por exemplo, o que reza a respeito do sigilo profissional o Códi­go de Ética do Psicólogo:

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Art. 24 - Somente o examinando e a critério do psicólogo rã ser informado dos resultados dos exames.

Art. 25 - Se o atendimento for realizado a pedido de outrem, só ser dadas as a quem o solicitou dentro

dos limites do estritamente necessário e com fi anuência do exa-minando.

§ 10 - 13 vedado ao ClatS pessoas ou entidades que 11:10

por de ética ou que, por estranhos o acesso às informações.

§ 2° - Nos casos de laudo pericial, o deverá tomar todas as a fim de que, servindo à autoridade que o designou, não venha a expor indevida e desnecessariamente seu examinando.

íntimns da persona-lidade", serão matéria privativa técnico e de seu examinando. Ao contrário, poderão ser veiculados no intelior de equipes interdisciplinares, das quais participam inclusive elementos da segurança do estabelecimen­to. Serão remetidos ao juiz solicitante ou a outras autOlidades judiciárias. Freqüentemente o examinado será o último a saber (ou não saberá) dos resultados do processo a que se submeteu. Quanto a consultá-lo sobre que informações deseja ver transmitidas, nem pensar...

E todos dirão que, obviamente, tais restricões à liberdade indívi-/" '

dual, tais "ananhões" à ética profissional, deconem da condição de "condenado" do cliente em questão. Todos se apoiarão na idéia de que, se agem de modo diverso do que reza o código de ética ou a consciên­cia profissional, assim o fazem apenas em cumprimento à lei.

A relação entre o técnico e seu cliente, no entanto, não pode deixar de ser marcada por este estado de coisas: de um lado um "téc­nico" desobrigado do sigilo, com um instrumental que o preso sabe ser capaz de decidir seu futuro e cujo funcionamento escapa à sua compreensão, e de outro o preso, o infrator das leis, o condenado, a quem cabe um papel apenas passivo e sem quaisquer direitos.

100

Ora, nesta relação surgirá um fenômeno interessante, referido nos laudos. O da dúvida sempre com que se debatem os técni­cos: estará o preso dizendo a verdade? diante de uma ou simulação? Por isso os laudos de do entrevistado: se

ou se, desafiar a autoridade do examinador; se procurava impressionar de modo se dava mostras de etc.

A nosso ver, a situação se estabelece entre o e o seu examinando não pode ser outra senão a de um confronto de duas

em luta. O preso luta com as armas de que jamais algo que perceba como comprometedor, procurará agradar, impressio­nar bem. A simulação é a arma por vezes falha de q~e ele dispõe contra o desmesurado de seu examinador.

do in-com o deve \~ntelll!ido

seu sentido por outro a não-colabora-ção, ou a falsa colaboração, tendo como conseqüência um mau resul­tado, evidencia o lugar do "funcionário do cárcere" neste confronto.

A defesa e a manutenção da ordem institucional é o princípio a partir do qual é interpretado o comportamento do preso na situação do exame. As tentativas de oposição, as manifestações de indisciplina são vistas como indícios de não recuperação ou de distúrbio menta1. A colaboração, ° respeito às normas e à hierarquia institucional, sim, constituem sinais de normalidade e regeneração.

Uma solução parcial é encontrada no que diz respeito a saber se o paciente diz ou não a verdade: a referência aos autos do processo. Se a versão do preso é compatível com a dos autos, é sinal de que ele

a verdade. Caso contrário, "está se defendendo" (no sentido psi­cológico) ou não está suficientemente arrependido (o que provavel­mente implicará um resultado desfavorável).

A verdade é a verdade da instituição, é a ela que o preso deve se adequar. A Justiça, na visão do perito, nunca falha. A fala do detento deve ser a fala dos autos. Deve amoldar-se a ela, submeter-se a ela.

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Mais espantosa se torna a de se tomar o conteúdo dos autos como expressão da verdade, quanto pensamos sobre as condições em que muitas vezes terão sido julgados estes condenados: provas duvidosas ou falsas obtidas até mediante tortura, ausência de UI..-J,vU0VJ

do Augusto Thompson, "a dos pobres sem defe-sa, ou, o que dá no mesmo, com um simulacro de

Mais realistas do que o rei, nossos se conduzem como se de fato a justiça fosse "cega" e descompromíssada. leitura dos laudos de exame, a crença numa imparcial, acima das classes, uma espécie de apolítico da ordem Tal crença equivale também a uma despolitização do próprio nico, que dessa maneira atua Úil continuidade com o Judiciário, exer­cendo dominação e controle sobre as populações pobres.

5. O tratamento penitenciário

Os EVCP teoricamente a avaliar os se convcnciollou chamar "tratamcnto

o conleúdu dos grau de compromisso dos técnicos com a curiosamente, uma visão segundo a qual se crê na eficácia da prisão, nos resultados positivos que ela pode proporcionar ao indivíduo.

A prisão é freqüentemente desclita como o lugar onde vai se operar uma transformação na personalidade do preso. Assim, ela teria como virtude possibilitar a reflexão, a introspecção, o arrependimento. Pela dis­ciplina ela possibilitaria a intemalização da lei, a aquisição de valores mo­rais, substituindo um estado de incultura ou uma subcultura por uma cultura caracterizada pelo respeito à lei e à ordem. A pena-prisão, segun­do opiniões expressas nos laudos, é, enfim, regeneradora.

Na construção desta imagem da prisão enquanto espaço terapêutico aparece com insistência a referência ao trabalho. A plisão seria uma espé­cie de oficina-escola onde os presos poderiam curar-se do mal da ociosi­dade, admitido como fator que induz ao clime. Uma vida de trabalho e disciplina é, no entanto, apenas uma exceção ou uma virtualidade nas

10 Augusto Thompson, op. cit., p. 96.

102

prisões. O trabalho prisional atende, além disso, a muitos interesses para além da "recuperação" do preso. No cárcere tudo se converte em um bem negociável e isto também OCOITe com as oportunidades de trabalho. Muitas vezes uma é o prêmio por uma a oportuni­dade de estar mais próximo da administração e com isso obter certas'

como o acesso mais f,ícil ao mundo lá melhor de comportamento, proteção contra os Hi\.diL(~yU,V melhor, etc.

Além o trabalho nas prisões a ser um légio: segundo dados do Desipe 11 , aproximadamente apenas da po­pulação carcerária trabalha. Se atentarmos, porém, para a natureza do trabalho, concluiremos que 90% da mão-de-obra estão empregados em atividades de manutenção do próprio sistema, ou seja, cozinheiros, bom­beiros, eletricistas, pintores, faxineiros que trabalham na manutenção da

cadeia ou até inexistentes.

em

e menos do de vi sta da

a

trabalho prisional atende a uma necessidade da instituição, tanto material (suprir o trabalho de muitos funcionários que seriam onerosos para o Estado) quanto de segurança. O preso que trabalha pode ser usado como um aliado na instituição: em detemúnadas ocasiões, o "faxina" (designa­ção do preso que trabalha, na gíria carcerária) é geralmente escolhido por suas características colaboracionistas. Há também aqueles que trabalham em favor de seus companheiros como assistentes jurídicos, escrevendo cmtas para o.§Aue não sabem escrever, etc. Mas o que queremos ressal­tar é que o trabalho é algo a ser compreendido no jogo das múltiplas forças institucionais: a possibilidade de trabalhar é vista pelo preso como um privilégio, em virtude dos benefícios secundários que acarreta. Além disso, ela é um imperativo, do ponto de vista da preservação da sanidade mental, para alguém mantido em confinamento por longos anos.

Este talvez o único "lucro" do preso que trabalha: a preservação de sua saúde psíquica. Fora este aspecto, lucra sempre a instituição, real i -

II Anuário Estatístico do 1984.

103

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zando um do capitalismo: o trabalhador deseja apenas trabalhar, exigindo muito pouco.

que

tratamento é que ser por teóricos ou mesmo autoridades na Tem exaustivamente demonstrado que a pri-são, ao contrário de qualquer efeito recuperador sobre o delinqüente, parece ter como

seus ao preso só resta es-tabelecer novos laços com possíveis futuros cúmplices. Estigmatiza­do como ex-presidiário, freqUentemente retorna ao mundo extra-mu­ros se~ esclarecimentos ou orien~ação sobre ?S documentos de que neceSSIta, ou sobre como consegmr emprego. E presa fácil da polícia num país de desempregados, onde estar sem trabalho era considerado até há pouco tempo como crime ("vadiagem") e onde ter estado no cárcere significa ter uma ficha "suja".

Tudo se passa como se a,..prisão produzisse exatamente o con­trário daquilo que seria sua missão primordial, como se ao invés de curar o criminoso ela agravasse o seu mal. Este fracasso da prisão tem sido exaustivamente admitido até mesmo por autoridades do sis­tema penitenciário, policiais, autoddades judiciárias. As críticas e ten­tativas reformadoras são tão antigas quanto a própria prisão. E, no entanto, sua realidade quase imutável tem desafiado todas elas como se delas zombasse.

E se, aceitando a proposta de Foucault12, invertêssemos a 01'-

Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977, p. 243-7.

104

Através da o aparecer como produto de uma individualidade especial, animal, ca-

sem cultura, etc. O criminoso

outras formas de que oposlçao ao burguês e suas instituições. São os parentescos do criminoso "comum" com o chamado criminoso "político", ou, o que seria mais terrível, com o homem comum, que, embora vivendo as mesmas condições de ex­ploração, talvez não tenha tido coragem ou força para se revoltar.

Apesar tudo isto, o perito encontra razões para afirmar a cfi­da prisão em seus pareceres - em algum nível o sistema carcerário

precisa desta imagem de eficácia para que se mantenha em funciona­mento. O técnico é, pois, o funcionário encanegado de fabricar este sonho: o da eficácia da prisão em fazer de um criminoso um homem de bem. A fabricação desta imagem da prisão aparece aqui como uma das do técnico enquanto funcionário da instituição carcerária. Uma função complementar às funções carcerárias ligadas à repressão propriamente dita. A função dos sempre fracassa­dos projetos de reforma prisional é também esta, perante a opinião pública "mais esclarecida" ou perante a boa consciência dos psicólo­gos, psiquiatras, etc. É como se dissessem: na prisão, trata-se de reprimir, mas estamos fazendo o possível para alguma outra coisa mais digna, mais edificante: tratar, etc. Misteriosa-

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mente, sempre fracassamos e acabamos encarcerando simplesmente. Mas fazemos o possível...

Tal necessidade de mascarar a violência pelo Judiciário, Estado em última análise, articula-se com uma política

!las sociedades os mecanismos re-e substituídos por de controle

internalizados indivíduos. Os controles institucionais podem ser menos violentos e sutis, pois agem sobre o indivíduo previamen-te discipl inarizado, desde a famflia, a etc.

dizer sobre os efeitos da carcerária sobre o indi-víduo que a sofre? Sabemos que uma vida no cárcere pode

adequação às normas discipl nada tendo a ver com a saúde psíquica que certamente necessana para que um indivíduo pudesse, à saída da prisão, reorganizar sua vida, vencer o

do criminoso e do arrumar um emprego, "re-enfim.

onde estão as formas mais acabadas de controle sobre os indivíduos. Nestas instituições a intimidade, a privacidade são siste­maticamente violadas em razão dos objetivos institucionais, através, por exemplo, da censura da correspondência, da impossibilidade de o indivíduo ter padrões pessoais de conduta (os horários e locais de refeições, de dormir, acordar, por exemplo, são coletivos). Restam ao indivíduo poucas possibilidades para manifestação do seu eu (que é algo não uniformizável), o que não se dá sem uma conseqUência so­bre a personalidade, a "mortificação do eu".

E no caso da qual será o preso cujo eu está morto? Éjusta-mente o preso bem comportado. É aquele preso que nada mais sabe fazer do que obedecer e perpetuar a rotina do cárcere. É aquele preso que reúne em si a contradição de ser um ótimo preso, imprestável, porém para a vida onde teria novamente que lutar por si próprio, algo que há muito desaprendeu.

13 Goffman. ll1anÍcômio. e conventos. São Paulo, I-'p"cn,M'_

tiva,1974.

106

Felizmente, nem todos os indivíduos se submetem à disciplina carcerária, tornando-se mortos-vivos, autómatos que apenas cum­

prem ordens.

Apesar de toda a pressão institucional em contrário, existem. for-mas infinitas de individual e que ser VIstas como formas de chamar da saúde psíquica.

de se que todos os envolvidos com a promoção da chamada saúde mental encontrassem meios de solidarizar­se com estas manifestações, ou, ao menos, de não atuarem contra elas, superando sua condição de "funcionários do e, com.o tais, en-volvidos na reprodução e atualização de seus mortJficadores.

6. Conclusão

os leitores a uma reflexão a nosso ele

os te-

mas nos Uma que logos, psiquiatras, assistentes sociais, etc., ante a leitura deste material, é pensar: ora, mas estes são exemplos de mau uso da ciência, ou de eu'os, deficiências conceituais ou de formação, etc. Eu não faria isso ... A meu ver, não se trata aqui de apontar eiTOS deste tipo, o que reduziria nosso trabalbo a mero inventário crítico. Trata-se sim de restabelecer as cone­xões entre nossas tão "humanas" ciências e os mecanismos de controle, mortificação, sujeição dos indivíduos. As conexões existem. Com a pala-

vra, os laudos.

1. A história individual: o passado condena

A reconstituição da história é uma montagem, cuja finalidade é con­

firrnar no indivíduo o rótulo de criminoso ...

"Totalmente abandonado pelos familiares ... aos 15 anos na prostituicão ... mantém uma conduta a infância*, mos­trando~s~ pessoa de fácil sugestibilidade com tendências à delinqUência"

(EVCP 270-1972),

, Os são meus.

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"A rude do interno atribuímos ao ambiente cola em que se local onde desde cedo as habituam-se

não sobrando para ainda menor conheceu as celas do

2. Família: o modelo

ao

da a screm a válvula de escape cios . este de retaliação pelas sofridas no interno como móvel de suas ações ... " (EVCP 45-1969).

"A história psico-evolutiva mostra que o periciado teve uma for­mação de personalidade com carência de um lar onde pudesse introjetar os costumes da Teve um pai irresponsável que maltratava os filhos e a esposa. incutiu-lhe a revolta contra a autoridade, pois em nossa sociedade é a figura paterna o primeiro exemplo de autori­dade. As carências afetivas por que passou desenvolveram-lhe propó­sitos de retaliação, o que motivou sua impulsão a apropriar-se dos bens alheios ... " (EVCP 70-1969).

"O interno formou sua personalidade num ambiente carente de pai e mãe ... a presença de pai e mãe é importante para um jovem que se desenvolve ... outro fator foi o fato de seus pais tere/ri constituído novas famílias. A vivência de rejeição deve ter sido Sua queda na vida delinqüencial pode estar ligada ao desejo de atenção dos pais para si. .. com sua vinda para o mobilizou a

dos 39-1968).

108

"O periciado teve uma tantemente de

de

3. ?

As vistos como o "caldo da e

são vistas como

"Trata-se de pessoa pobre globalmente ... era matutão e ter criado antes de c

anos de o confronto com a Justiça lhe mostraram que a sociedade tem outro padrão de masculinidade, diferente daquele que aprendeu no ambiente dafavela" (EVCP 1968).

"Ao trocar a vida da roça pela vida da grande cidade, perdeu as possibilidades de controlar sua agressividade, que até então utilizava nos rudes misteres lavrara terra" (EVCP 1-1968).

4. Funcionários do cárcere

As atitudes do preso, de colaboração ou de oposição, de rebeldia ou subserviência, são determinantes para os resultados dos exames. Admitir como verdadeira a versão dos autos pode contar pontos a

favor...

"A apresentação displicente, sobre a cadeira em que o convidamos a sentar. Gestos e trejeitos aco~panham as . . tas do periciado. Tom de voz firme, rápido no f1mr, erros gramatIcaIS em abundância, predomínio acentuado da gíria carcerária, às veze~ acrescida de explicações para que possamos entender. O humor e basicamente Os conceitos são incapaz de boas

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respostas, quando inquirido sobre sentimentos espirituais superiores ... " (EVCP254-1972).

"Respondeu-nos com evasivas quando lhe perguntamos se esta­va envolvido na revolta ... " (EVCP 42-1968).

a versão autos com serenidade, dizendo-se arre-(EVCP 252-1972).

"O periciado era elemento a uma quadrilha de nssal-tendo cometido bárbaro como tornam

os autos. Todavia, ele nega a autoria dos crimes ... " (EVCP 42-1968).

simulador-dissimulador ... ocultou a verdade ... a ver­são que dá de seus crimes foge flagrantemente dos autos. Isto deve resultar de seu não-arrependimento" (EVCP 30~ 1968).

Os exames podem até prescindir de toda a lógica. Sua função éa de

relação eu-mundo, apresenta sinais ambiental" (EVCP 34-1968).

5. O tratamento penitenciário

Alguns efeitos da prisão sobre os condenados, tal como apare­cem nos laudos ...

"Embora o periciado tenha começado sua vida no mundo do cri­me, da ociosidade, vemos que sua conduta modificou-se dentro do ambiente penitenciário. Deixou sua vida de contendas, desavenças, para trilhar a do respeito à ordem" (EVCP 106-1970).

"Vinte e dois anos de ajudam a resolução de alguns pro-blemas psicológicos, mas podem também criar novos ... Na penitenciária não consegue relacionar-se, já ganhou apelidos por causa de sua apro­ximação com homossexuais. Nenhuma perspectiva de futuro. Nota-se, portanto, que ainda não foi pela penitenciária"

971).

110

"Há quase oito anos e meio no cárcere, permanece ~om~ / .

t t"rabcllhador ... acha-se totalmente adaptado à pemtenclana, lnen o , fi' t a uma nova onde trabalha como cozinheiro ... o tempo e su lClen e p/ar, C .

. 'd deflexão Esta pronto. es-colocacão e adequação da agresslVl a e, r . sada a periculosidade" (EVCP 255-1972).

con-"Fcz uma crítica de seu .

. d b A' colocando-os como mconse-siderações sobre vicra os e oe:m~;," T

ealheiosàrealidadedavlda (EVCP 1972).

. . .' e não ter com "O hOlmcídlO em apreço p,nec "'. de personalidade ... decorreu mesmo das co/n~ições cult~~'ms, da e:~:~ la de valor..:s, onde o interno formou seu COdIgO de hon~,à ... sua eXI "

riência carcerária lhe deu um lastro de controle sobre :'vW .

(EVCP 250-1968).

"Aprendeu que existe que eleve ser respeitada, ii qual

vez que noS em nossos

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c

As entre a e a justiça penal têm sido, pelo menos desde o iníeio do século bastante um a justiça não dispunha de meios para dar conta de um certo tipo de crime cujas características pareciam fugir completamente à razão.

nl1.PC'TQr. ao mesmo tempo deixada em aberto nascente.

(role

Não se trata, como ainda hoje se confunde, de desculpar o cri­minoso, dispensando-lhe um tratamento mais humano. O que ocorre é apenas a substituição de um tipo de controle por outro, mais efieaz e abrangente.

Enquanto ajustiça só pode agir sobre o delito quando este já tiver sido cometido, a psiquiatria aparece como capaz de prevê-lo em fun-

de critérios de periculosidade definidos "cientificamente". O ato criminoso torna-se resultado inevitável de uma condição mórtÍIda que já se esboçava desde a infância. A criminalidade atravessa a vida do indivíduo, o crime é sempre uma virtualidade.

A descoberta, por pmie de Esquirol, da "monomania" permite trans­formar a simples existêneia de crime em sinal de doença. Ao mesmo tempo, amplia a noção de alienação mental: enquanto na tradição intelectualista do século XVIII ela era equiparada a um erro ou delírio da razão, torna-se possível pensar numa espécie de "loucura sem del{rio".

Com o diagnóstico de monomania fala-se pela primeira vez de uma patologia dos sentimentos e da vontade sem qualquer pertur­bação do entendimento. Pode-se, a partir daí, incluir na categoria

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i ,;,

de alienado m~nt~l U1.n número maior de indivíduos, trazendo para a alçada da pSlqUJatna eventos sociais anteriormente situados na área do Judiciário.

. ~ar~ que ~al processo pudesse se dar em toda sua extensão, a pSIqUIatna preCIsou se armar de um instrumental institucional e teóri­c~ do qual ainda carecia ao tempo de Esquirol. Mas, ao menos no mvel do. . a m~clicina mental elabora uma entidade nosográfica que se sItua na fronteIra entre seu próprio campo e o da justiça.

O ou o de uma determinada ria de indivíduos; na entre as duas institui-

. haverá aqueles considerados excessivamente lúcidos para casas de alIenados e insuficientemente responsáveis para a prisão. Além disso, se aparentemente a psiquiatria livrou das mãos da justiça o monomaníaco. dando-o como irresponsável, por outro lado sempre acentuou o carátel:

ele sob a tutela do

sem de tratamento.

Do P?nto de vista institucional, porém, os criminosos perversos ou a:norats colocam uma questão aparentemente insolúvel: ao co.nslderá-Ios incuráveis, a psiquiatria parece admitir a ineficácia do asIlo para sua,norma~zação. Embora merecedores de um diagnóstico, o~ monomamacos nao se adequam às táticas do tratamento moral, a:nda que ele ~e baseie em recobrar a razão"? Como proceder dIante de alguem ao mesmo tempo lúcido e anormal?

. Trazen~o ~ pr?blemática do alienado criminoso e lúcido para a -atu'­alIda.de da pSlqmatna, veremos como hoje esta tendência a estender mais e maIS os domínios da mesma frente ao Judiciário se ampliou. Entretanto, permanece a questão do destino a ser dado a estes indivíduos.

o psicopata como limite entre a psiquiatria e ajustiça penal

. Procur~remos desenvolver aqui algumas considerações a res­peIto das entidades nosográficas da psiquiatria atuaI conhecidas como "personalidade psicopática", "personalidade anti-social ou sociopata"

entre as não são importantes). Tal como entre psiquiatria e

114

justiça penal. Representam, para o poder psiquiátrico, um instrumen­tal para a patologização de um número cada vez maior de atos e indi­víduos; para ajustiça, a possibilidade de uma solução cómoda para o crescente índice de criminalidade, permitindo a referência a causas mórbidas e mascarando a problemática política e social.

Para Kmt Schneider1, a personalidade é uma perso-nalidade anormal, definível em função de procedimentos "sociológi­cos" ("variações de uma faixa que se tem em mente"). Não se trata porém de uma personalidade mórbida, como é o caso das nQ,r-r,c'c>Q

De acordo com sua célebre definição, as personalidades psicopáticas "são aquelas que sofrem ou fazem sofrer a sociedade". Como subdivisões da mesma cntidadc clínica, o autor distinguc oito tipos que podcm ser subdivididos entre os caracterizados pelo sofrimento próprio e o gru­po perturbador da "vida familiar e da ordem social". Para nosso pro-pósito, interessa apcnas o grupo. Assim,

denominamos carentes de as parecer mais do que são... ifesta-se [a anormaJida-

por um modo de ser adotando formas de ser estranhas. Os psicopatas explosivos ... são as pessoas que explodem ao me­nor ensejo ... os psicopatas insensíveis são as pessoas destituídas ou quase destituídas de compaixão, vergonha, sentimento de hon­ra, arrependimento, consciência ... são em princípio incorrigíveis e não podem ser educados2.

Na psiquiatria contemporânea, aponta-se em Kurt Schneider o mé­rito de ter trazido para o campo da psicopatologia as psicopatias. Ou seja,

/ ter extraído os fenómenos de conduta que se desviam em relação a "uma faixa média" do campo exclusivo da climinologia ou do direito criminal. Embora seja um avanço no sentido da ampliação do dominio de influênci­as da psiquiatria, ao não considerar a personalidade psicopática como um "fenómeno mórbido", o autor remete parcialmente este tipo de indivíduo ao campo não-psiquiátrico. Anormal, porém não-doente; merecedor de um rótulo, mas dado como irrecuperável. A personalidade psicopática é, assim, definida de maneira contraditória.

I K. Schneider. f'slcOj'JatolOgza clínica. São Paulo, Mestre lou, 1968, cap. 2. 2 fel.

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Que a sociedade"? A sociedade é tomada como um todo único, indivisível e harmónico. Transgredir suas no1'-

E a para tal é de

conter em seu têm conduta e

poder enfim, todos E para eles a dis-

de não-educabilidade.

definições de personalidade psicopática, a "sociedade

e causas relativas ao quase sempre por uma solução conciliatória, a da colaboração dos dois

como personalidades anti-sociais classificam-se os indivíduos cro­nicamente anti-sociais, incapazes de ligar-se ou serem leais a al­guém, a grupos ou a modos de vida. Dados a prazeres imediatos, parecem carecer de senso de responsabilidade e apesar de humilha­ções e punições deixam de aprender a modificar seu comportamento. Carecem de capacidade de julgamento social, embora sejam fre­qüentemeRte capazes de racionalizações verbais que os convençam de que suas ações são justificadas ... O comportamento da personali­dade sociopata impede o ajustamento psicossocial e vai da estranheza à criminalidade, com um grupo intennediário formado por excêntricos, extremistas, delinqüentes e outros desajustados sociais ... fre-qüentemente mostram atitude de rebeldia frente à sociedade ... são incapazes de se identiticar com a sociedade e suas leis3.

A personalidade sociopata, segundo este autor, caracteriza-se fundamentalmente pelo "desrespeito às leis". Evidentemente, a psi qui-

C. KohJ. Modem Clinical Psychiatry. Filadélfia, W. B. Sownders, 1973, p. 496-500.

116

atria, como de poder, toma as leis da sociedade como nor­ma da qual qualquer desvio se constitui em patologia. Mais claramente do que na a de que considera a

U."L<U.U\.oJUlI.J uma existência desequilíbrio > da devaSSldao.

os produtos dos lares velmente serão esta corrente tipo de pessoa uma atitude de rebeldia frente à socie-dade, não aceitando suas leis. uma tão que vai da excentricidade à criminalidade, passando pelos "extremistas e de­linqüentes": a psiquiatria, como dispositivo de controle

por um erro da rebeldes que,

acerca da

diagnóstico de personalidade anti-social traria em si alguma dificuldade no que diz respeito à diferenciação frente à neurose. Schneider não chega a utilizar o termo, referindo-se em contrapartida aos indivíduos que sofrem, por oposição aos que fazem sofrer a soci­edade. Isto porque, ao contrário dos psicóticos, esquizofrênicos, cicIotímicos, os neuróticos e psicopatas não cometem "eITos de ra­zão". Para o diagnóstico diferencial precisa-se, além da exploração direta, do estudo da "história vital" completa do indivíduo.

Na análise da biografia de psicopatas sobressai a ausência de uma comunicação com o meio que data da infância4 .

O estudo da história e da infância destes indivíduos torna-se im­portante para a constatação da anormalidade. Pois o que se valorizará serão as pequenas oposições e rebeldias às "leis da sociedade", no interior de cada um de seus dispositivos disciplinares. Serão de desadaptações à escola, ao exército, ao trabalho, às autoridades, à moral vigente, que acabarão por definir, aos olhos do psiquiatra, a psicopatia.

4 Hafner, apud F. Alonso-Fernandez. Fundamentos de la IJ')"L/I{,IU/

Madri, Paz Montalvo, 1972.

117

actual.

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o discurso psiquiátrico, estaria justificada a de tratamento para tais indivíduos e sua internação em hospitais. Entre­tanto, permanece ainda uma ambigüidade: os psicopatas dificilmente

por influências seu comportamento. Tal c:"Jfno para são incuráveis em sua maioria.

aceitam o uma vez rompido seu

da autoridade e da mais facilmente curáveiss,

no caso dos psicopatas ou au-tores parecem que apenas o tempo com a aceitação das "exigências da

Embora proclamando-se de antemão fracassada diante deste tipo de doença mental, a psiquiatria sugere que a aceitação da autoridade e da responsabilidade conduziria à cura.

o '" parece preferir o trato dos juízes ao dos médicos .. , tais personalidades não são tributárias de tratamento médico mas de atividade educacional-pedagógica6.

A psiquiatria parece transferir a tarefa de lidar com os questio­nadores da lei para as autoridades judiciárias ou para as instituições de "reeducação". Ao mesmo tempo em que dispõe de uma entidade nosográfica capaz de dar conta da contestação às leis, do extremismo e da excentricidade, recua diante da tarefa de disciplinarizá-Ios. Resta­nos examinar por que isto ocorre, ou que tipo de oposição faz à pró­pria psiquiatria o chamado psicopata.

A produção de um saber sobre as ilegalidades

Só poderemos compreender o discurso psiquiátrico acerca dos chamados indivíduos anti-sociais se fizermos referência ao local de constituição deste discurso, ou seja, às instituições disciplinares. A questão se situa, como já dissemos, na fronteira entre a e a

61d, p. 102.

118

justiça penal, e será necessário remeter à prisão como uma espécie de instituição disciplinar modelo, "um quartel um pouco estrito, uma es­cola sem indulgência, uma oficina sombria, mas levando ao fundo, nada qualitativamente C1l1:en~m.e

inaugurou, com uma nova dita , ll11°1 saber sobre a diríamos mms

que a produz a delinqüência, não no sentido de que se reformá-la ou de que seu tivesse ser aperfeiçoado. Ao dizer que a prisão o é dizer que cum-pre plenamente seu papel enquanto dispositivo de controle social.

Dentre as instituições disciplinares, a é a que leva a efeito com maior intensidade a utilização da maquinaria disciplinar. A priva­ção da liberdade é apenas uma das estratégias: com o aperfeiç~amento das técnicas de observação e registro de dados sobre as mOVImenta-

do que tendem a as formas de a de um novo

Como se diz a uma dade no interior da sociedade. Sob condições de extrema privação, ela faz conviver todo tipo de infrator das leis, proveniente das camadas mais pobres da população, e produz um tipo de c?~unid~d~ ~nde prolifera uma estranha espécie de seres violentos, VICIOSOS, 111lmlgos de qualquer ordem social. É a própria prisão que constrói meticulosa­mente este tipo de violência que se manifesta de forma incoercível e desligada de qualquer contexto.

Estímulando a delação e a chantagem, ela tenta destruir ErS laços entre os que a ela estão sujeitos. Na prisão se manifesta de forma mais acabada o esquadrinhamento disciplinar: são estabelecidos lugares rí­aidos para observação e controle das individualidades, privilegiam-se ~s contatos no sentido vertical (o da hierarquia), maximizam-se as diferenças no sentido de neutralizar possíveis alianças.

A pena-prisão inaugura também uma forma de que não se refere tanto a uma infração, mas a um comportamento, compreen-dido no de uma história individual.

7 M. FOllcault. Vozes, 1977.

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. Aqui, e penal se confundem: a de delmqüente, produzida no interior das prisões, como já vimos, estabe-

uma entre estes Tal como nas que dc

como atos que têm ao indivíduo.

tomam-se a dia mais do dc Não é ~ue todas elas tcnham em si propósitos políticos, mas podem conduzIr a estes ou mesmo ser capitalizadas em seu favor.

Ao. produzir a del!nqüência, a prisão procura romper os elos que unem o mfrator das leIs com seu meio social, utilizando-se de duas

principais:

1 .. No int~rio.r da pr?pria prisão, através da delação, ou de privilégios e sub-hlerarqUlas ll1centIvados como forma de diluir as alianças.

2. No meio social, através do estigma do condenado que o impe­dirá de ':r~integrar-se" mesmo que queira, forçando-o a uma situação de bandJtlsmo, que o faz voltar-se contra seu próprio meio

. Ao mesmo tempo, o esquadrinhamento geral da população, es­pecIalmente dos setores pobres, torna-se justificado, sob do combate ao crime. Os jornais e a literatura policial contribuem para fazer dest~ o produto de uma maneira de ser muito especial e selva­gem, deslIgada do contexto social e político.

A psiquiatl:ia é também um dos mecanismos de poder que tem descaractenzar a transgressão à lei como oposição política, bus-

120

cando dessa forma agir no sentido de preservar o poder dominante. Vimos como a é uma entidade noSognUH:a que visa "adoecer" a rebeldia frente às normas

no mcreCedl)res deste

ou mesmo para ajustiça

os indivíduos

sões psiquiátricos eles parecem opor ao poder uma forma de resistência.

Na tentativa de ser considerado poeta exibia retórica sobre os temas

do amor e da liberdade ... 8

Vejamos, primeiramente, de que maneira a sociopatia é constmída no interior do hospital-prisão, ponto singular de convergência de duas grandes instituições disciplinares.

Desde a primeira entrevista com o psiquiatra, algo é determinante para que o futuro paciente receba este diagnóstico.

... atitude ligeiramente hostiL.. foi logo ameaçando a equipe de se­gurança, avisando que a qualquer momento poderia causar proble­mas se as coisas não caminhassem como queria ... diz que não é cobáia: de psiquiatra e que há muito tempo está curado.

O psiquiatra aqui não se defronta com um "paciente" no sentido próprio da palavra, mas com alguém que oferece resistência através de um discurso coerente do ponto de vista racional. Não se trata de um delirante, por mais que se quisesse enquadrá-lo como tal. Seme­lhante atitude de rebeldia deve ser designada como psicopática, po­dendo ser estabelecido um paralelo com a característica, descrita por

8 Extraído, como as citações a seguir, de um laudo psiquiátlico elaborado em insítuição psiquiátrico-penal no Rio de Janeiro, em 1978.

121

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Kurt Schneider, dos psicopatas que "desejam parecer mais do que são". Ao invés de submeter-se, o paciente faz ameaças, reivindica, desconfia, não aceita o lugar de submjssão a que seria confinado.

Esta, entretanto, não é a única atitude de resistência possível. Há os que simulam doença, os que se mostram solícitos para com isso obter benefícios; numa do psiquiatra com estranha astúcia e em nenhum momento parecem "fora de si", a não ser por vontade própria.

é a chamada "curva de vida" que deJ~nirá o enquadramento do indivíduo como personalidade sociopata:

'" casou aos 17 anos com a namorada que engravidara e no dia do casamento deixou a esposa e saiu com outras mulheres ...

... há registros de distúrbios de compOltamento desde a infância, sem-pre com beligerância. Brigas freqüentes, fre-

uma amante.

A psicopatia é como um germe que tem sua origem na infância e caracteriza-se pela oposição ou transgressões sistemáticas à ordem da família, da escola, do trabalho, do exército. O desrespeito à autori­dade é também um "sintoma" importante.

Dissemos que tal espécie de anormalidade é construída no inte­rior da instituição, no caso um hospital-prisão. Sem dúvida, a oposi­ção sistemática à maquinaria disciplinar é um ponto central na defini­ção do diagnóstico.

... em todos os estabelecimentos plisionais tornou-se elemento inde­sejável, temido e causador de inúmeros problemas de disciplina ... ne­cessário esquema de Segurança Especial para contenção das atitudes sociopáticas do paciente. Também nos estabelecimentos psiquiátrico­penais conquistou a incômoda posição de ser absolutamente intolerá­vel pelo potencial de periculosidade que encerra, levando as equipes a um clima de tensão, perturbando a assistência a psicóticos, graças à sua influência e de nefastas ... lidera gru­po de mantendo de sobreaviso os esquemas de segu-

122

rança ... teria chefiado rebelião para atear fogo às enfermarias (de

outro hospital penal].

Exercer liderança é algo inteiramente intolerável numa instituição disciplinar. De um iado, a constante vigilânc~a ~ obse~va~ã?, o c~ída~ d~so esquadrinhamento do espaço com o obJetlvo de ll1d.lv.ldu.al:zar e

, para com isso obter maior controle e prodUZIr mdlvH.iuos e dóceis. De outro, um grupo de indivíduos não tão

intoleráveis, como o próprio psiquiatra o confessa, tanto na comum quanto no hospital penal. Na verdade estas duas

remeter estes tipos de indivíduos uma à outra. No caso psiquiatria, embora esta disponha de um di.agnóstico, não . dis-por de um tratamento suficientemente eficaz do ponto de VIsta da

nommtização.

Vejamos mais concretamente de que maneira s~ dá a oposição ao poder psiquiátrico levada a efeito pelo chamado soclOpata.

... manteve sempre um comr)ortarnelmo rdante, reivindicador, taleo . volvi menta das rotinas de investigação ... mostrou-se o todo rebelde, pouco cooperador e ameaçador ... revela incapacidade de es-tabelecer aliança terapêutica ... a investigação psicológica foi prejudi­cada porque o paciente recusou-se a fazer testes. Em sua participação nos grupos operativos incita os outros pacientes à greve de fome ... aparentemente simulava delírio como maneira de ser dado como ilTes-

ponsável climinalmente ...

O chamado sociopata parece dispor de meio singular de oposi­ção ao poder psiquiátrico. Ao invés de submeter-se às rotina~, aos testes, estabelecer alianças, cooperar, como se espera de um paCIente, ele reivindica e ameaça, mostrando-se irredutível. E o faz de modo coerente do ponto de vista racional. Se entendermos a i~tervenção psiquiátrica como uma luta que só termina com o subm~tlmento e a aceitação da palavra-verdade do médico por parte ~~ pacIente, pode­mos supor que no caso em questão isto não se venfIca.

Se o paciente parece delirar, o faz apenas em seu benefício; se aceita participar de grupos que funcionariam como pontos de obser-

e de a o faz de ma-

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a e promover revoltas. No contato com o psiquiatra, rei-vindica sem cessar, coJocando-o constantemente à prova.

, .. conta nando "rrp'nF'n

tornou-se amante de um

se envol vendo nem mencio­ordenada", diz que sua mulher

ele a matou,

Conforme mencionamos, quando nos referimos à produção da delinqüência, aqui também, por mecanismo

Este controle, no que se refere ao psicopata, não parece se dar de forma eficaz:

, .. carreirísta da indisciplina e da desordem, campeão da pantomima e da burla, põe em polvorosa os agentes da terapêutica.'E ingénuo manter sob regime hospitalar psiquiátrico perigosos deste porte. Recomenda-se encaminhamento para estabelecimento penal de se­gurança máxima e disciplina rígida, onde seu comportamento pos­sa ser avaliado à luz do regulamento penitenciário tão-somente.

Que destino dar ao psicopata? Seu envio para o hospital psiquiá­trico penal é, por si só, um indício de que a prisão fracassou na tenta­tiva de obter o enquadramento à sua ordem.

Paradoxalmente, o psiquiatra lhe dá um diagnóstico, mas, ao in­vés de tratá-lo, remete-o de volta à prisão. Por "segurança máxima e disciplina rígida" podemos entender a violência sem máscara que se exerce diretamente sobre o corpo9. Com este tipo de indivíduos, a

9 O detento foi enviado a uma prisão conhecida pelo emprego sistemátíco da violência física.

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psiquiatria se apresenta como uma modalidade de controle PO\ebelde sutH, ineficaz quem também se comporta

de manter sua nos do louco e

mel1 te em no momento não se fazem presentes.

momentos culminando com

d d m de consciên-crime contra a vida em or ena a, se .

incapacidade de estabelecer relações afetlvas adequadas, à de fomentar

Curva de vida

de

tratamento,

Bibliografia ALONSO-FERNANDEZ, F. Fundamentos de la psiquiatria actual. Madri,

paz Montalvo, 1972. . . .,. 'd d d o Iro do alienismo. RIO de CASTEL, R. A ordem pSlqwatnca .- a I a e e 1

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FouêA ULT, M. Eu, Pierre Riviere ... Rio de Janeiro, Graal, 1977.

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. [,. S- Paulo Mestre Jou, 1968. SCHNEIDER, K. Psicopatologta c l/nca. ao "

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os problemas bases diferentes de e constitucional.

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Introdução crítica ao direito penal brasileiro, de Nilo Batista. Nesta obra, fundamental para o ensino jurídico, Nilo Batista faz uma revisão pontual de soluções usualmente adotadas na literatura jurídico-penal brasilei­ra. Adotada em diversas faculdades de direito em todo o país, está em 8a edição. 14 X 21 cm 136 p. R$ 17,00

produziram de Latina". Adotado em 14 X 21 cm 282 p.

e estudantes da cientistas sociais debates entre o autor e seus

de

O juiz e a democracia, (Le gardien des promesses), de Amoine Garapon. Livro do renomado jurista e homem público francês que vem alcançando grande repercussão internacional. Com introdução de Paul Rícoeur, trata do aumento-da importância do poder judícülrio na sociedade moderna, quando as instituições políticas (partidos e poder executivo) perdem crédito junto à população e cresce nesta a solicitação do recurso aos juízes para a solução de seus problemas individuais e como fiadores da ordem e do direito. 16 X 23 cm 272 p. R$ 39,00

Corpo e alma da magistratura brasileira, de Luiz Wel71eck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos. Uma pesquisa sobre a estrutura e o funcionamento do Poder Judiciário no Brasil foi o ponto de partida para este grupo de renomados cientistas sociais do IUPERJ traçar um perfi I social do magistra­do brasileiro, das suas opiniões e atitudes, sua trajetória profissional e seu processo de recrutamento, bem como relacionar o magistrado com o Esta­do e a sociedade, o direito e a organização deste poder. Trabalho pioneiro, analisa cerca de quatro mil questionários respondidos juízes de todas as instâncias e do inovando tanto no análise quanto

de - a do direito. 2" 336 p.

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