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O Corpo
Página 1
04.08.2013
ISSN: 2236-8221
Edição n. 60, Setembro de 2016. Vitória da Conquista, Bahia.
O corpo é discurso
A edição 60 de O Corpo é Discurso inaugura suas seções com o Pockets Comix: a vida vai além
de duas opções. Em seguida, um texto: vida e morte. O artigo dessa edição trata da perda da
visão e suas semelhanças com o processo de morte/morrer de Elizabeth Kübler-Ross. Apre-
sentamos o convite para o I Encontro Foucault e Discurso na Bahia - Outras palavras: o nó na
rede. A advogada Bertolina Carneiro entrevista a assistente social Luciana Botelho: Estatuto da
Pessoa com Deficiência e Desigualdades Sociais. Convite para o X SEPEL- Seminário de Pesquisa
em Literatura que acontecerá na UFU - Universidade Federal de Uberlândia. A Seção de Litera-
tura apresenta o artigo: Um Ensaio para Deformar. Dica de vídeo-aula no canal do Labedisco no
Youtube. Por fim, a dica de leitura da Dissertação de Mestrado “A língua portuguesa no Vestibu-
lar dos Povos Indígenas no Paraná: conflitos e contradições entre políticas linguísticas e sociais
de inclusão”, com autoria de Luana de Souza Vitoriano. Boa leitura!
ISSN: 2236-8221
FUNDADORES
(15/03/2011)
Nilton Milanez
Cecília Barros-Cairo
EXPEDIENTE DE O CORPO É DISCURSO
Editores
Nilton Milanez
(LABEDISCO/CNPq/UESB)
Ricardo Amaral
(PPGMLS/FAPESB)
Vilmar Prata
(PPGMLS/FAPESB)
Organizador
Matheus Vieira
(IC/CNPq)
Samene Batista
(PPGMLS/LABEDISCO)
Revisão
George Lima
(PPGLIN/CAPES)
Layanne Mussy
(LABEDISCO/PSINEMA/CNPq)
Vinícius Reis
(PPGMLS/LABEDISCO)
Coordenação da Seção de
Literatura
Jamille da Silva Santos
(GPEA/LABEDISCO/UFU)
Coordenação da Seção de
Ensino e Tecnologia
Jaciane Ferreira
(IFGoiano-Campus Iporá)
Diagramador
Gilson Santiago
(IC/LABEDISCO)
Estagiário
Nathan Soares
(Cinema e Audiovisual/UESB)
Secretária
Géssica Soares
Editoração eletrônica
(MARCA DE FANTASIA)
Henrique Magalhães
Jornal de popularização científica
Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco Contato: [email protected]
Página 2 O Corpo
Renato Lima é graduado em Pintura pela Escola de Belas Artes - UFRJ. Para saber mais sobre o autor e
suas produções, acesse também o site Pockets - Histórias de Bolso ou a página de Facebook Pocketscomics.
Página 3 O Corpo
Realização:
Debruçado sobre a escrivaninha da antessala do meu quarto, no apartamento que fica aos fundos do pátio da minha casa, na rua
Joana Angélica, interior da Bahia, senti um frio percorrer a espinha, como um sopro.
Larguei os utensílios necessários para a escritura, as penas e a tinta, despertei o coração cansado e escutei os passos.
Passos sobre as telhas de barro.
No terreiro ao lado da casa, os ogãs, com o ibê e o ilú salientes, puxavam a voz de uma velha senhora que, em língua afrocubana,
cantava aos mortos.
"La muerte esta con nosotros", celebrava a mulher com autoridade.
Senti outra vez a friúra no corpo tremido e fiquei profundamente impressionado.
Saí ao átrio, um vento farfalhava as folhas da pitangueira miúda à qual fui recentemente presenteado, e tratei de auscultar, na ânsia
de reconhecer os rumores.
Sobre o banco de ladrilhos, meu gato branco olhava para mim, como que espantado.
Esquadrinhavam-me também o livro de capa amarela, a fotografia em preto e branco feita por meu pai há quase trinta anos, a face
de uma Madonna com sombra azulada sobre os olhos e as pequenas estatuetas budistas de bronze, estas últimas viradas de costas
para a porta de madeira gasta.
Não sei bem o que em mim querem lembrar. Por que me miravam?
"Que opinas desta foto? Como me veio?", sussurrou uma alma aos meus ouvidos.
A pergunta quase inestimável, feita em espanhol, sem que eu me recordasse de átimo o contexto, deveria ser fruto dos meus pensa-
mentos.
Mas, ali, naquela noite de domingo, parte do mundo - o que me cerca, mas não me insula - induzia, pelo olhar, a que eu opinasse so-
bre tudo e todos à volta, como se formasse juízo de vida e morte.
Olhavam para mim - o gato, o livro, a fotografia, a sombra - e talvez quisessem descobrir, como no relógio sobre a mesa, alguma
busca ou um impulso.
"Quem sou? Para onde vou?", murmurou a voz desconhecida outra vez.
Não teria feito a menor diferença se fosse uma passagem pela Baker Street ou uma viagem de trem ao redor do mundo.
Fosse um bar à beira-mar ou um café na Serra, em Minas.
Qualquer lugar que eu estivesse - e calhou de ser o pátio onde vejo as estrelas enquanto, por vezes, sozinho, fumo um cigarro -, eu
estaria só, intoxicado em meu próprio medo.
Entre bilhões de humanos, eu estava ali, visto por alguém que não entrevia.
Foi quando notei, sobressaltado, na escuridão diligente da noite, um homem.
VIDA E MORTE
Página 4 O
Realização:
Um homem descorado como um céu branco escorrendo dos olhos.
Meu Deus, autor do mundo, diga-me: estava eu a sonhar?
Entre o plano físico e o que de imaterial há, não deveria aquilo ser real.
Mas trago à memória - e pasmo estou - um fato: este homem me olhou, ali, perto do caqueiro de cimento, coberto de brumas.
De onde veio? De que norte?
Nada seria ainda mais assombroso, no entanto o estranho homem que jazia falou.
"Pare de tanto andar, pensar e pretender mover o mundo", disse ele, em tom imperioso.
Disse, ainda, que preciso reorganizar as minhas forças armadas, abraçar causas até onde meus braços alcancem, e não além.
Contou que um dia terei um sítio, um lugar rústico, com uma pequena granja.
E, dos lábios que mais pareciam feitos da borracha do dia, disse-me que, ultimamente, deixei de existir.
Durante a conversação, cessaram os atabaques.
O som, agora, era quase etéreo, como se precipitasse o amanhecer.
O homem, alheio de si, ainda afirmou que, um dia, criaremos, juntos, obras de real imaginação.
Ah, aquele homem era estrangeiro, que nem eu.
Deixava ali as velhas vestes de seu destino para adotar uma nova humanidade.
Um homem que, de tão morto, quase dormia, aparentemente em vão.
Parecia ter, perto do termo, uma consciência sobre si e sobre o que faria depois, servindo de inspiração.
"Viver é agora e, logo mais, pode não ser", ainda teve tempo de dizer, antes de fenecer.
"Muerto, muerto está. Ni muerto acaba su penar", voltou a rezar a velha senhora do terreiro.
Entre o espanto provocado pelo diálogo austero, os olhares e os sons dos tambores, vi cada gesto, em cada segundo seu, que pare-
cia me dizer que aquele homem era eu.
Farei, então, se preciso for, exatamente assim. Morrerei este homem em mim.
(inspirado no poema "O Descobrimento", de Mário de Andrade)
MARCO ANTONIO JARDIM MELO: É, POR FORMAÇÃO, HISTORIADOR. MAS TRABALHA COM A ÁREA DE
PUBLICIDADE E JORNALISMO HÁ MUITOS ANOS. PARALELO AO OFÍCIO EM EXERCÍCIO, MARCO ANTONIO É
ESCRITOR DESDE OS OITO ANOS DE IDADE. SEU PRIMEIRO POEMA FOI PUBLICADO NA OBRA "VOZES DO MEU
SENTIR", DE ELVARLINDA JARDIM, SUA MÃE, TAMBÉM ESCRITORA E REPRESENTANTE DA ACADEMIA CON-
QUISTENSE DE LETRAS. COMEÇOU COM UM BLOG DE EXERCÍCIO ESTILÍSTICO, JÁ PASSOU PELOS FORMATOS
DAS CRÔNICAS DO COTIDIANO (QUANDO COMEÇOU COM O TOME SUA PÍLULA) E, HOJE, VOLTOU ÀS ORI-
GENS, ESCREVENDO E PUBLICANDO POEMAS NAS REDES SOCIAIS.
Página 5 O Corpo
A compreensão do modo
como as pessoas reagiam diante
da perda da visão ou mesmo do
surgimento de um déficit visual,
começaram a ser coletadas pela
literatura na segunda metade do
século XX. Com concepções diver-
sas e abordagens dispares, ambas
esforçavam-se para tentar com-
preender o processo de sofrimen-
to, de ajuste, de adaptação e de
intervenções necessárias a serem
prestadas às pessoas cegas ou
deficientes visuais.
Segundo Salabert e Gon-
zález (2003), vários foram os au-
tores que se dedicaram a descre-
ver as reações ante a deficiência
visual, comparando esse processo
doloroso com a morte. Cholden
(1958 apud SALABERT; GONZÁLEZ,
2003, p. 76), por exemplo, consi-
derava que ao perder a visão a
pessoa deveria transformar-se:
“aquele que fica sem a visão deve
morrer como vidente para nascer de
novo como cego”. Identificando, as-
sim, três fases que caracterizam
esse período: o estado de shock, que
ocasiona a incapacidade de sentir e
pensar, a depressão ou reação emo-
cional à perda, que ocasiona a resis-
tência na mudança de personalidade,
e a aceitação.
Posteriormente, Schultz
(1997 apud SALABERT; GONZÁLEZ,
2003) ao repensar a classificação
descrita por Cholden, coloca que em
vez de utilizar o termo aceitação,
seria mais prudente o uso do termo
reorganização, pois este conteria
em sua essência o sentido que tais
fases não são necessariamente se-
quenciais e obrigatórias, mas sim
dependerão dos fatores relaciona-
dos à personalidade e a perda de
cada sujeito.
Em 1984, pautado no princí-
pio de que para que ocorra o desen-
volvimento de qualquer criança,
inclusive as cegas, faz-se necessá-
rio as variáveis autoconhecimento e
autoestima, Tuttle (apud SALABERT;
GONZÁLEZ, 2003) desenvolveu de
forma mais específica e amplificada
um modelo de fases para a identifi-
cação dos sentimentos e adapta-
ções que ocorrem durante o pro-
cesso de perda da visão. Identifi-
cando, assim, sete fases e não so-
mente três, como os anteriores: 1.
Trauma físico ou social; 2. Schok e
negação inicial; 3. Aflição e ira; 4.
Afundamento e depressão; 5. Rea-
valiação e reafirmação; 6. Confron-
to e comissionamento; e 7. Auto-
aceitação e autoestima.
Muito próximo às discus-
sões de Tuttle, em 1985, encontra-
Daniela Leal (FFCLRP-USP)
A PERDA DA VISÃO E SUAS SEMELHANÇAS COM O PROCESSO
DE MORTE/MORRER DE ELIZABETH KÜBLER-ROSS
Página 6 O Corpo
se na teoria de Elizabeth Kübler-
Ross, sobre o processo entre a
morte e o morrer, contribuições
significativas para compreensão do
processo de perda da visão. Isto
porque, Kübler-Ross durante a des-
crição do processo de morte/
morrer, traz vários mecanismos
que são desenvolvidos pelas pesso-
as e que podem ser observados em
cinco períodos: a negação e isola-
mento, a raiva, a barganha, a de-
pressão e, finalmente, a aceitação
– que serviram de base para a aná-
lise do exemplo dado neste artigo.
O primeiro período, o de ne-
gação e isolamento, é uma defesa
temporária que logo será substituída
por uma aceitação parcial (há casos,
entretanto, que a negação dura até o
fim, até a morte). Para Kübler-Ross
(2005, p. 47), em toda pessoa que
vivencia o período entre a morte e o
morrer existe a necessidade da ne-
gação no começo, isto porque,
“como somos todos imortais em
nosso inconsciente, é quase incon-
cebível reconhecermos que também
temos de enfrentar a morte”.
Quando não é mais possível
manter o estágio da negação e isola-
mento, a pessoa o substitui pelo sen-
timento de raiva, de revolta que dá
origem a pergunta: “Por que eu?”.
Em comparação com o período de
negação, o período de raiva é muito
mais difícil de ser lidado, pois a raiva
se propaga em todas as direções e
projeta-se no ambiente. Kübler-Ross
(2005) destaca que, o que torna es-
se período difícil é que poucos
(familiares, médicos, enfermeiros,
etc.) colocam-se no lugar da pessoa
e se perguntam de onde vem tanta
raiva: “Talvez ficássemos também
com raiva se fossem interrompidas
tão prematuramente as atividades
de nossa vida; se todas as constru-
ções que começamos tivessem de
ficar inacabadas, esperando que
outros a terminassem [...] (KÜBLER-
ROSS, 2005, p. 56).
Passada a raiva, a pessoa
depara-se com um curto e menos
conhecido período, o da barganha,
isto é, se antes não conseguia en-
frentar os tristes acontecimentos e
revoltava-se contra Deus, neste
período decide tentar algum tipo de
acordo que adie o desfecho inevitá-
vel. Por intermédio da barganha
tenta-se adiar o inevitável: a morte,
através de promessas de bom com-
portamento, de metas auto-
impostas, de promessas feitas a
Deus, geralmente mantidas em se-
gredo. “Se Deus decidiu levar-me
deste mundo e não atendeu a meus
apelos cheios de ira, talvez seja
mais condescendente se eu apelar
com calma” (KÜBLER-ROSS, 2005, p.
87).
O período da barganha, ape-
“Para Kübler-Ross, em
toda pessoa que vivencia
o período entre a morte e
o morrer existe a neces-sidade da negação no co-
meço, isto porque, “como
somos todos imortais em nosso inconsciente, é
quase inconcebível reco-nhecermos que também
temos de enfrentar
a morte”.”
Página 7 O Corpo
sar de ser útil à pessoa, ele é curto
e com o seu final verifica-se a im-
possibilidade de negar a morte e,
consequentemente, toda a sua re-
volta e sua raiva cederão a um sen-
timento de grande perda, dando
início ao período de depressão. Es-
te período apesar de ser difícil pa-
ra as pessoas que estão a volta de
quem está entre a morte e o mor-
rer, permite prepará-la para a per-
da; permite facilitar o estado de
aceitação, o encorajamento e a
confiança para seguir para o próxi-
mo período, o de aceitação. Nas
palavras de Kübler-Ross (2005, p.
117), a pessoa que tiver tido tempo
necessário e “tiver recebido algu-
ma ajuda para superar tudo con-
forme descrevemos anteriormente
atingirá um estágio em que não
mais sentirá depressão nem raiva
quando ao seu ‘destino’ [...] e con-
templará seu fim próximo com um
certo grau de tranquila expectati-
va”.
O período da aceitação, ca-
be lembrar, não é um período de
felicidade, mas sim um período de
fuga dos sentimentos; “é como se a
dor tive esvanecido, a luta tivesse
cessado e fosse chegado o momento
do ‘repouso derradeiro antes da lon-
ga viagem’” (KÜBLER-ROSS, 2005, p.
118).
Dando continuidade aos es-
tudos sobre a compreensão do modo
como as pessoas reagiam diante da
perda da visão, Alian G. Dodds (1989
apud SALABERT; GONZÁLEZ, 2003),
psicólogo britânico, descreve a
questão dos sentimentos de incom-
petência e desamparo ocasionados
pela perda da visão. Segundo ele,
além da análise das fases por qual
passam às pessoas que perdem a
visão faz-se necessário realizar
intervenções de reabilitação, que
permitam que aquelas tarefas que
antes eram realizadas com facilida-
de e que com o déficit tornam-se
complexas ou impossíveis, possam
ser realizadas com um adequado
treinamento.
Salabert e González (2003)
afirmam que, para se falar na evo-
lução que ocorre depois da perda
da visão, faz-se necessário falar da
maneira como se produz e como se
vive esse momento, da maneira co-
mo a pessoa recebe a notícia ou o
diagnóstico, como os familiares e
amigos concebem e aceitam o que
está ocorrendo ou vai ocorrer. Afi-
nal, a perda da adequação social,
segundo Carrol (1968, p. 61), é um
dos golpes mais graves, pois a per-
da da aceitação pessoal “é imposta
à pessoa cega, não pela cegueira,
mas por pessoas supostamente
“[...] além da análise
das fases por qual pas-sam às pessoas que
perdem a visão faz-se necessário realizar in-
tervenções de reabilita-
ção, que permitam que aquelas tarefas que an-
tes eram realizadas
com facilidade e que com o déficit tornam-se complexas ou impossí-
veis, possam ser reali-zadas com um adequa-
do treinamento.”
Página 8 O Corpo
bondosas e simpáticas que a cer-
cam”. Como exemplo de tal aponta-
mento, Carrol (1968, p. 63, grifos
do autor) descreve a realidade de
profissionais que se tornaram ce-
gos: se antes não se pesava “nele
em termos de adjetivo especial,
têm agora uma nova concepção a
seu respeito ele é o advogado cego,
o alfaiate cego, e a ênfase está na
sua cegueira. [...] Está colocado
numa categoria na qual se espera
que ele se enquadre”.
Carrol (1968), pontua, tam-
bém, que para que ocorra a evolu-
ção do processo de perda da visão,
não basta apenas olhar para a ati-
tude do outro frente a nova realida-
de, mas necessita-se, principal-
mente, observar à atitude da pró-
pria pessoa que ficou cega, pois “se
no íntimo [ela] não estiver [apta] e
[pronta] a assumir sua posição
anterior, para viver no seu ‘status-
quo’, então [ela], com todas essas
atitudes, aumentará a dificuldade e
a importânc ia des ta per-
da” (CARROL, 1968, p. 64). Para
tanto, a personalidade que a pessoa
cega possui, suas forças e fraque-
zas, suas atitudes e conquistas se-
rão fundamentais para que prossiga
sua vida durante o processo de per-
da e, consequentemente, em toda a
sua vida.
Findada às discussões sobre
os mecanismos de defesa, os perío-
dos entre a morte e morrer e/ou
entra a perda e o perder, acredita-
se que deve ter surgido um breve
questionamento: “O que toda esta
discussão tem de fato relação com o
processo de perda da visão?”. Res-
ponder-se-á a esta pergunta por
intermédio da descrição da história
de Dália, mais especificamente o
processo entre a perda e o perder
da visão que se estendeu por mais
de 30 anos de sua vida. Tentando,
assim, revelar como mencionado por
Carrol, que a perda da visão é um
morrer; é o fim de uma maneira de
viver para dar origem a outra e, co-
mo observa Schultz, apesar dos pe-
ríodos não serem sequências, podem
se repetir em vários momentos des-
se longo processo, como afirma
Kübler-Ross.
A história de perda de Dália e os
desafios de aceitar a tonar-se
cega
Dália, na época da entrevis-
ta, era uma jovem senhora de 42
anos, cursando sua primeira pós-
graduação Lato Sensu em Psicope-
dagogia. Há apenas seis anos estava
completamente cega em decorrên-
cia da retinose pigmentar, adquirida
desde o nascimento (degenerativa)
e de um glaucoma adquirido com o
passar da idade e a aproximação da
perda total da visão. Por este pro-
cesso de perda ter sido prolongado
ao longo de sua vida, durante sua
narrativa encontrar-se-á momen-
tos distintos onde a análise dos pe-
ríodos enunciados por Kübler-Ross
fizeram-se frequentes em um misto
de negação-aceitação, raiva e bar-
ganha, bem como de depressão que
circundaram toda a sua infância,
adolescência e atualmente a fase
adulta.
A primeira vez que Dália, ou
melhor, sua mãe teve a certeza que
nunca mais voltaria a enxergar, Dá-
lia estava com cerca de 6 anos,
Página 9 O Corpo
cursando o primeiro ano do antigo
primário, apesar de apresentar
sintomas anteriores a sua entrada
na escola como, constantes trope-
ços em casa e na rua, dificuldade
para ver o que estava a sua volta,
somente quando recusa-se a en-
trar na escola por não conseguir
enxergar o que a professora colo-
cava na lousa, é que Dália é levada
ao oftalmologista, por indicação da
nova professora, na nova escola
onde passa a estudar. Em suas pa-
lavras, Para mim era normal. Eu via
pouco, mas como ia saber como
era a visão normal? [...] Como tro-
peçava muito minha mãe achava
que era por conta de ser muito dis-
traída ou outra coisa parecida.
Como se observa, apesar de
dizer que tudo isso era normal, ao se
rebelar contra a professora que a
acusava de mentirosa e preguiçosa,
ou contra as crianças vizinhas que
faziam piadas sobre suas dificulda-
des, Dália já mostrava certo descon-
forto com sua condição de “não sou
cega, nem enxergo” que se fará pre-
sente em quase todo o seu discurso.
O que ajudou Dália, nesse primeiro
momento, a alcançar o período de
aceitação, controlando sua raiva
frente as condições que lhe eram
impostas pela baixa visão, foram os
diversos tratamentos realizados
para que a perda fosse retarda cada
vez mais: Fui encaminhada para o
oftalmologista, que receitou os ócu-
los [...]. Lembro-me que ia no con-
sultório [...] fazer acompanhamento,
tratamento.
Com a chegada da adoles-
cência, apesar de afirmar por várias
vezes que não tinha noção da gravi-
dade de sua deficiência visual, Dália
expressa de forma mais contundente
os sentimentos que antes eram ex-
ternalizados vagamente, principal-
mente no espaço escolar onde o
uso da visão era constantemente
solicitado.
[...] nessa época era um sofri-
mento... ter que chegar no
professor e falar para ele:
“Tenho uma deficiência”. Não! Eu dizia: “Eu não enxergo”, pois
nessa época não se usava o
termo deficiência. [...] porque,
até então, eu tinha... um pro-
blema na vista: enxergava pouco. Não tinha noção do que
realmente tinha! Apenas acha-
va que enxergava menos que
as outras pessoas. Depois de
tudo que já havia vivenciado,
era um sofrimento ter que chegar em um professor e
falar que enxergava pouco.
Ficava vermelha, começava a
chorar, a lágrima caia.
Revelando, assim, um certo
conflito entre o que de fato ocorria
e a verdadeira aceitação de sua
condição, pois por mais que relata-
va que não sabia o que tinha, as
condições estavam postas e impos-
tas e isso lhe causava sofrimento,
medo e insegurança para expor-se,
mesmo nos momentos que se expor
fazia-se necessário para seu pró-
prio bem e desenvolvimento. Mos-
trando, dessa forma, o que Kübler-
Ross (2005, p.47) denominou de
estado temporário de choque, ou
“O que ajudou Dália, nesse
primeiro momento, a alcan-
çar o período de aceitação,
controlando sua raiva fren-
te as condições que lhe eram impostas pela baixa
visão, foram os diversos
tratamentos realizados pa-
ra que a perda fosse
retarda cada vez mais.”
Página 10 O Corpo
seja, a negação da sua condição
real como mecanismo de defesa.
Estava perdendo mais ainda a visão, no entanto, sempre tinha uma desculpa: “É porque
estou estudando a noite”. “Ah! É porque a lâmpada não está
refletindo direito”. Então, tudo era assim... sempre encontra-
va mecanismos para justificar
o não enxergar como antes.
Não conseguia aceitar que
estava perdendo!
Outro período que esteve
sempre presente na adolescência
de Dália, intercalando entre os pe-
ríodos de negação e possível acei-
tação, foi o de depressão. Em vá-
rios momentos, ao recordar-se de
tudo que vivenciou durante essa
fase de sua vida, Dália externaliza,
ainda com pesar, os questionamen-
tos, as inseguranças que a levavam
ao desespero, ao sofrimento, sejam
ocasionados por sua condição, se-
jam pela fala das pessoas a sua
volta.
Lembro-me de algumas crises
que tive na época da adoles-
cência... Por exemplo, passava
e ouvia um comentário, uma voz: “Está vendo? Tem dia que cumprimenta, tem dia que
não! É metida! Está ficando metida!”. Isso me doía, porque
não estava ficando metida, eu
não sabia quem era! Eu só re-
conhecia a pessoa pela voz,
mas as pessoas não entendiam
isso. Mas, como elas iam enten-
der?
A esse respeito, Dália acres-
ce ainda,
Lembro-me que uma vez, não
sei para onde estava indo, me
deu uma crise de identidade...
Dentro do ônibus chorava; as lágrimas desciam... Não me
lembro o que aconteceu naque-
le dia, só sei que enquanto cho-
rava falei: “Eu não sou cega e
nem enxergo, Deus devia me
tirar a visão totalmente! Eu não gosto de ficar nesse meio ter-
mo! Meio termo não é bom! Não
sou nem uma coisa nem outra”!
Externalizando, assim, de
forma clara e real, todos os senti-
mentos que antes estavam guarda-
dos e encobertos por uma falsa
aceitação da condição que vivencia-
va. Ao externalizar buscava ter cer-
teza de que não estava sendo esque-
cida; ao levantar a voz, ao fazer exi-
gências, ao se queixar e reclamar
atenção, talvez tivesse em mente um
último brado, uma última chance de
ser escutada (KÜBLER-ROSS, 2005).
Findado esse período, passa-
da a fase da adolescência, com o
discurso de aceitação de enxergar
pouco, mas enxergar – lembrando
que, como pontua Kübler-Ross
(2005), aceitação não quer dizer
estágio de felicidade –, Dália, aos
30 anos, passou a vivenciar tudo
novamente. A confirmação de que
perderia de fato a visão e de que
não teria nem o pouco que ainda
possuía, a levou a repensar vários
traumas, a tentar barganhar pedi-
dos anteriormente feitos e buscar à
reabilitação como mecanismo de
aprendizagem para a sua futura
condição.
Quando admiti, quando aceitei
enxergar só um pouco... des-
cobri que ia ficar cega. Foi
difícil... pedi perdão a Deus:
“Ah, Senhor! Você tinha que
me escutar justamente nisso?
Pedia tanto para ser totalmen-te cega ao invés de ter enxer-
gado uma vez e, agora, tinha
que ser totalmente cega?”.
Tentando, dessa forma, adi-
ar o inevitável: a perda total da vi-
são. Ou, nas palavras de Kübler-
Ross (2005), se não consegue adiar
o inevitável com nosso esbraveja-
mento, passa-se a apelar com cal-
ma:
Página 11 O Corpo
Aí, fui conversar com Deus,
mas o pedido já estava feito.
Não tinha pedido lá atrás para
ser totalmente cega?... “Meu
Deus do Céu, o senhor não
pode voltar atrás do meu pe-
dido?”. Só que não teve jeito...
estava perdendo cada vez mais a visão e tive que aceitar
essa parte.
Com isso, o sentimento de
perda, de não ter mais aquilo que
se possuía, começa a provocar
grandes períodos de dúvida, de in-
certezas e, em certo ponto, de de-
pressão, pois, como descrito por
Carrol (1968, p. 11), “O primeiro so-
pro amargo, nas múltiplas limita-
ções da cegueira, é a perda da inte-
gridade física, do todo. O indivíduo
que cresceu e edificou sua vida,
como um ser inteiro, global, é ago-
ra somente uma parte do mesmo
que está fragmentado”.
Especificamente sobre a
perda, Dália relata que os principais
momentos de angustia e sofrimento
foram ocasionados pela ansiedade
de saber que perderia um dia a vi-
são, mas não sabia quando e, conse-
quentemente, de querer saber por
quanto tempo ainda teria o pouco
residual de visão e quando o desfe-
cho se daria. Em suas palavras,
A ansiedade maior, a dor maior
era a da perda! Não da perda
da visão, mas da perda! De não
querer perder, independente de
ser a visão, a perda é o proble-
ma: não queria perder! Não
admitia perder! O fato de ter
ficado sem visão foi normal.
Não comemorei, não soltei fo-
gos, mas tive que aceitar que
perdi. No momento em que você
perde, acabou. Não tem mais o que discutir!
Essa suposta aceitação mais
tranquila da perda da visão só se fez
possível porque, ao longo do período
entre a descoberta de que iria perde
e a perda de fato da visão, Dália po-
de contar com a ajuda de profissio-
nais que lhe deram todo o suporte
necessário para lidar com a situa-
ção e a vida após a perda. Uma das
profissionais que mais contribuíram
e deixaram marcas em Dália foi a
assistente social da instituição a
qual frequentava.
Quando passei com a assisten-
te social, esta relatou que a
sua cegueira tinha a mesma
causa que a minha: a retinose pigmentar. [...] Um dia ela con-
versou comigo especificamen-
te sobre a retinose pigmentar:
- “Antes de perder totalmente
a visão, tinha a visão de um jeito e depois vi que não tinha
mais sofrimento. Aquela enca-
nação de antes, aquela sensa-
ção de que ainda tem um pou-
quinho e de que, aí meu Deus,
segura esse pouquinho, vai esvaindo-se. É como você pe-
gar uma porção de areia e ela
ir saindo pelos vãos do seu
dedo... não adianta, você não
vai segurar. Você vai pegar
outra areia, outra coisa, não é
aquela areia, aquela não volta
mais”. Disse-me, também, que
quando perdeu totalmente a
visão, a vida dela transformou-
se; ficou bem mais tranquila. E
realmente ela estava certa!
Porque antes de perder a vi-são ficava naquela paranoia,
naquela tristeza... “Coitada de
mim! Além de não ter, o que tenho vou perder”.
Observando nessa fala de
Dália que, a única coisa que perma-
nece em cada um dos períodos, em
cada uma das fases que envolve o
processo entre a perda e o perder,
é a esperança. Ou, como descrito
“O primeiro sopro
amargo, nas múlti-
plas limitações da
cegueira, é a perda
da integridade física,
do todo.”
Página 12 O Corpo
por Kübler-Ross (2005, p. 144), “O
que os sustenta através dos dias,
das semanas ou dos meses de so-
frimento é este tipo de esperança.
É a sensação de que tudo deve ter
algum sentido, que pode compen-
sar, caso suportem por mais algum
tempo. É a esperança que de vez
em quando se insinua [...]”.
Posto isso, verifica-se, por-
tanto, que os períodos enfrentados
pelas pessoas que perdem a visão
são os mesmos apresentados pelas
pessoas que estão entre a morte e
o morrer, pois em ambos os casos
nega-se, revolta-se, barganha-se e
deprime-se em detrimento de algo
que sabe que se perderá, que não
terá volta, mas que mesmo assim
quer mantê-lo, quer ter a esperan-
ça que se pode reverter a situação
e conquistar aquilo que tanto se
deseja: no caso dos que estão entre
a morte e o morrer, a vida; no caso
das pessoas que estão entre a perda
e o perder do sentido, a visão.
Crê-se que, por fim, ao com-
preender todos esses períodos pela
qual a pessoa cega passa, desde a
descoberta até a aceitação da per-
da, torna-se mais fácil para os fami-
liares, amigos e professores estabe-
lecerem um espaço de convivência
que ajude a pessoa a superar seus
medos, suas angustias, seus mo-
mentos de raiva e depressão, de
negação e barganha para que seu
desenvolvimento e sua readaptação
ao espaço social possam ocorrer de
maneira significativa e, senão praze-
rosa, mas de forma harmoniosa co-
mo observado em algumas passa-
gens da história de vida de Dália,
para conquistar a verdadeira aceita-
ção.
Referências Bibliográficas
CARROL, T. J. Cegueira – O que ela
é, oque ela faz e como viver com
ela. Trad. Jurema Lucy Venturini e
Ana Amélia da Silva. São Paulo: Mi-
nistério da Educação e Cultura,
1968.
KÜBLER-ROSS, E. Sobre a Morte e
o Morrer. 8ª ed. Trad. Paulo Mene-
zes. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
SALABERT, M. D.; GONZÁLEZ, R. P. El
proceso de ajuste a la discapacidad
visual In: BENITO, J. C.; VEIGA, P. D.;
GONZÁLEZ, R. P. Psicología y Ce-
guera – Manual para la interven-
ción psicológica en el ajuste a la
deficiencia visual. 1ª ed. Madrid:
ONCE, 2003. p.45-102.
DANIELA LEAL: DOUTORA E MESTRE EM PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
SÃO PAULO (PUC-SP). ESPECIALISTA EM EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DEFICIÊNCIA MENTAL (PUC-SP) E PSICOPEDAGO-
GIA (UNISANTANNA). GRADUADA EM PEDAGOGIA PELA UNISANTANNA (1999). ASSOCIADA À SOCIEDADE BRASILEIRA
DE HISTÓRIA DA PSICOLOGIA (SBHP) E À ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
(ABPEE). ATUALMENTE SEUS PRINCIPAIS TEMAS DE PESQUISA E ATUAÇÃO RELACIONAM-SE À EDUCAÇÃO ESPECIAL,
TANTO EM SEUS ASPECTOS HISTÓRICOS QUANTO CONTEMPORÂNEOS, E À HISTÓRIA DA PSICOLOGIA, COM ENFOQUE NA
CONCEPÇÃO TEÓRICA DE ALFRED ADLER. AUTORA DE LIVROS NA ÁREA DE EDUCAÇÃO, PSICOPEDAGOGIA E PSICOLOGIA
DA EDUCAÇÃO. Currículo Lattes: Clique Aqui!
Página 13 O Corpo
Dica de O Corpo
Para acessar, clique na imagem acima.
Foucault esteve na Bahia, em 1976, na Faculdade de Filosofia na UFBA e proferiu sobre as malhas que tecem o poder nos nossos tem-
pos. Discutir sobre as redes dos discursos, entre sujeitos e poderes, é celebrar a voz de Foucault, que ecoou em meio a um sufoca-
mento de plena ditadura naquela época. Queremos com o I Encontro Foucault e Discurso na Bahia. Outras palavras: o nó na re-
de retornar à história do sujeito cotidiano para reencontrar novas formas de atualidade e fatos do discurso contemporâneo que evo-
cam a coragem dos dizeres e das imagens, hoje, 40 anos depois, em 2016. O convite a um Encontro, em nosso caso, é a festividade de
um Reencontro de Grupos de pesquisa que problematizam as experiências discursivas de Michel Foucault nas Universidades Baianas
e seu entrelaçamento com Universidades de norte a sul, em especial, nesta ocasião, com o GEADA – Grupo de Estudos de Análise do
Discurso de Araraquara, da UNESP, e o CIDADI – Círculo de Estudos em Análise do Discurso, da UFPB. A rede entre Grupos de Pesqui-
sas é, portanto, o nó que acolhe o laço dos saberes. A possibilidade de se dizer de outra maneira são as palavras que furam o espaço
do território Baiano atravessando todo o Brasil. O I Encontro com Foucault na Bahia é o lugar da malha de vontades de saber entre
o LABEDISCO – Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e do LINSP – Lingua-
gem, Sociedade e Produção de Discursos, na UEFS - Universidade de Feira de Santana, no quadro dos trabalhos do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Linguísticos, o PPGEL. O enredamento dos dizeres em instâncias midiáticas, literárias, jurídicas, históricas e
educacionais são as marcas do intercâmbio desse Encontro Baiano para pesquisadores, estudantes e estudiosos das Outras Pala-
vras que Michel Foucault nos dá a possibilidade de dizer. É nessa orla do discurso que desejamos encontrar vocês nos dias 20 e 21
de outubro na UEFS em Feira de Santana, na Bahia.
Página 14 O Corpo
Bertolina Carneiro: Em janeiro do
corrente ano, entrou em vigor o Esta-
tuto da Pessoa com Deficiência que,
dentre tantas outras alterações, trou-
xe uma Nova Teoria das Incapacidades
pela qual houve uma reconstrução do
respeito à dignidade do portador de
deficiência para que assim o mesmo
possa gerir sua vida, fazendo suas
escolhas para atender aos seus inte-
resses, valendo-se, se necessário for,
de institutos assistenciais para a efe-
tivação de atos negociais ou patrimo-
niais. Com tal inovação é possível
acreditar que haverá uma mudança na
vontade social?
Luciana Botelho: Eu penso que esta
vontade social ela vem processual-
mente, pois não faz parte da nossa
cultura ainda entender como vai fun-
cionar esta lei realmente, até para
nós que somos profissionais na área
eu vejo com um pouco de dificuldade
esta lei porque lido diariamente com
casos onde a pessoa com deficiência
entende o que está acontecendo com
ela, mas não posso afirmar que ela tem
discernimento para manter uma vida
fora de perigo, inclusive em alguns ca-
sos acho perigoso. Eu entendendo que
cada indivíduo deveria passar por um
estudo de caso separado, capaz de
identificar a mazela que lhe aflige, pois
cada indivíduo tem uma deficiência di-
ferente, tem uma necessidade diferen-
te, então se a gente coloca num todo a
gente não vai conseguir proteger esse
indivíduo, pois na verdade a lei deveria
ser protetiva e eu não sei até que ponto
a lei será protetiva ou será de fator de
risco.
Bertolina Carneiro: Assim como tan-
tas outras leis no Brasil, as normas que
tratam da pessoa com deficiência tam-
bém não possuem efetividade. Qual a
sua visão, enquanto assistente social,
para este descaso?
Luciana Botelho: Aqui nesta instituição
nós temos um grupo de família, neste
grupo de família é tratado diversos
assuntos, inclusive o serviço social
entra trabalhando a questão dos direi-
tos, visando informar acerca de todos
os direitos que o indivíduo possui, além
de tratar as questões psicológicas.
Esta iniciativa foi adotada no intuito de
empoderar a família que chega bas-
tante fragilizada, além de que as pes-
soas que comparecem aqui na APAE
são pessoas de menor poder aquisitivo
e de pouca escolaridade e em função
disto não possuem conhecimento
acerca dos seus direitos, e é neste
momento que nós atuamos ministran-
do palestra quinzenalmente sobre os
direitos da pessoa com deficiência,
orientando como cada um pode lutar
pelo que é seu por direito e caso não
consigam também são informados
acerca da ouvidoria de cada institui-
ção para denunciar a negligência, por-
tanto nos dedicamos em realizar um
trabalho de base direcionando a pes-
soa com deficiência no caminho do
alcance de seus direitos e isto tem
BERTOLINA CARNEIRO ENTREVISTA LUCIANA BOTELHO
Estatuto da Pessoa com Deficiência
e Desigualdades Sociais
Página 15 O Corpo
dado certo. Dito isto, entendo que é
uma luta incansável, mas que cada um
deve se empoderar dos seus direitos
e ir atrás pois vão conseguir.
Bertolina Carneiro: O tratamento
diferenciado previsto em lei para a
pessoa com deficiência visa justamen-
te remover qualquer obstáculo que
impeça o exercício pleno de algum
direito e de participar na sociedade
em igualdade de condições com as
demais pessoas. É possível afirmar
que existe uma redução das desigual-
dades?
Luciana Botelho: Eu não sei dizer se
houve uma redução, mas posso afir-
mar que um olhar diferenciado da
população já existe, se a gente olhar a
trinta anos atrás a pessoa com sín-
drome de down era denominada de
mongoloide, em virtude da aparência
com a população da Mongólia, então
eu penso que a sociedade está cami-
nhando para esta redução, pois tudo
depende de uma conjuntura. Hoje a pes-
soa com síndrome de down está em
todos os lugares e antigamente as fa-
mílias escondiam eles, esses dias eu vi
um aluno nosso aqui da APAE como co-
roinha de uma igreja, inclusive avisando
ao Padre acerca de um ritual que ele
havia esquecido, eu achei isso muito
bacana pois ele também está se
“empoderando”, está se sentindo parte
da sociedade.
Bertolina Carneiro: A situação da pes-
soa com deficiência a muito vem sendo
protegida pelo Estado, que, enquanto
guardião da sociedade, busca extermi-
nar as desigualdades. Ocorre que a
sociedade em si caminha na contramão
do quanto estabelecido por lei. Você
acredita na conscientização da socie-
dade no intuito de reduzir tais desigual-
dades?
Luciana Botelho: Sim, acredito pia-
mente nisto. Na verdade nós esquece-
mos de trabalhar isso nas escolas,
porque quando nós trabalhamos isso
enquanto criança é um outro valor, ou
seja, se isso é trabalhado na base, na
escola, essa criança não vai crescer
com preconceito pois somos iguais a
todo mundo ele só nasceu com alguma
deficiência que em algum momento da
sua vida vai precisar de alguma medi-
da protetiva. Por outro lado, o fato de
não ter sido adotado esta política na
infância não impede que o trabalho
seja feito com adultos também, tá cer-
to que é mais difícil pois o adulto já
possui suas crenças, já tem seus valo-
res, já tem sua opinião formada, mas
nada impede que seja trabalhado e
toda a conjuntura mude pois todos
estamos aptos a mudar de opinião.
BERTOLINA CARNEIRO NETA: GRADUADA EM DIREITO, ADVOGADA, PÓS-GRADUADA EM DI-
REITO DO ESTADO PELA UFBA, PESQUISADORA DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO DISCURSO E
DO CORPO — LABEDISCO/UESB.
LUCIANA DALINEA BOTELHO PIRES: ASSISTENTE SOCIAL DA APAE, DA COTEFAVE E DO
CAPS EM PLANALTO/BA. FORMADA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE, PÓS-GRADUADA
EM GESTÃO DE PESSOAS E PÓS-GRADUADA EM SAÚDE MENTAL EM DEPENDÊNCIA QUÍMICA.
Página 16 O Corpo
Dica de O Corpo
Página 17 O Corpo
Quando o assunto que nos
cerca é o ensino de literatura nas
escolas, tocamos em questões que,
ao mesmo tempo, mostram-se es-
senciais a uma prática literária e
cerceadas por parâmetros escola-
res pragmáticos.
Assim, este ensaio vem co-
mo uma reflexão baseada em textos
que discutem o ensino de literatura,
partindo de três principais caminhos:
o metodológico, o teórico e o ideoló-
gico-filosófico. Comecemos por esse
último.
Um viés ideológico-
filosófico da literatura
Quando um professor de
literatura entra em sala, mais do que
sua bagagem teórica e metodológica,
ele carrega consigo uma visão de
literatura, de por que ensiná-la e sua
relevância para o contexto escolar.
Essa visão de literatura encontra-se
no complexo ideológico e filosófico com
o qual o professor trabalha, se identifi-
ca e partilha.
Por um lado, o professor pode
encarar a literatura como o suprassu-
mo cultural de uma sociedade, retiran-
do-a do contexto diário e cotidiano –
onde ela nasceu. Através dessa pers-
pectiva, frases como “Literatura não é
para todos!” são comuns, o que leva o
aluno a desvincular-se essa forma ar-
tística, muitas vezes causando-lhe
aversão – o aluno se sente inferior ao
objeto livro e o recusa. Essa, contudo,
não é nossa perspectiva.
Como Petit (2010) aponta no
início de sua argumentação em As duas
vertentes da leitura, a leitura pode ser
encarada como instrumento de empo-
deramento, como um recurso que sub-
verte os discursos autoritários e estru-
turais que atingem todos aqueles que
se inserem nas sociedades atuais –
principalmente os jovens – manipulados
pela própria escrita que liberta. Em
outras palavras, é a leitura como
emancipadora, como objeto que permi-
te fugir à servidão e ao controle.
[...] não se pode jamais estar seguro de dominar os leitores,
mesmo onde os diferentes pode-res dedicam-se a controlar o
acesso aos textos. Na realidade, os leitores apropriam-se dos
textos, lhe dão outro significado, mudam o sentido, interpretam à
sua maneira, introduzindo seus desejos entre as linhas: é toda a
alquimia da recepção. Não se pode jamais controlar o modo
como um texto será lido, compre-
endido e interpretado. (PETIT, 2010, p. 26)
Essa perspectiva – longe de
objetivar restringir ou pragmatizar a
leitura – é uma das vertentes que a
leitura pode ter, segundo a autora. Mas
aqui, chamamos atenção para a segun-
da delas.
Segundo Petit (2010), uma
outra vertente da leitura é “o leitor
‘trabalhado’ por sua leitura”.
[...] ler permite ao leitor, às ve-
zes, decifrar sua própria existên-cia. É o texto que “lê” o leitor, de
certo modo, é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o
leitor, de regiões dele que ele
Luiza Maria Fonte Boa Melo (ILL-UFU)
UM ENSAIO PARA DEFORMAR Seção
de
Literatura
Página 18 O Corpo
mesmo não saberia nomear. As
palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar. (PETIT,
2010, p. 38)
A leitura que o texto faz do
leitor parte, em primeiro lugar, da
construção do texto pelo leitor. Como
a autora pontua em outro momento, o
leitor não é um papel em branco em
que se derramam palavras, ele possui
vivências e autonomia para ressignifi-
car e modificar as palavras do texto.
Ao se inserir no texto literário, o tra-
balho do leitor é desvendar a si mes-
mo, é descobrir-se através dos cami-
nhos que o texto abre, é segui-los e
encontrar-se no final deles. É através
desse trabalho – dificílimo muitas
vezes – que o leitor encontra em si a
capacidade de questionar e rever os
conceitos que o cercam e o constitu-
em.
Através dessa vertente, é
possível compreender as inúmeras
interpretações que um texto pode ter,
partindo sempre das experiências do
leitor e de sua forma de preencher as
lacunas do texto. Assim, podemos dia-
logar o conceito de Petit (2010) com o
de Larrosa (2000), em seu texto So-
bre a lição.
Neste texto, Larrosa (2000)
apresenta dois conceitos essenciais
para uma nova perspectiva de leitura e
literatura: a experiência e a lição. Esses
conceitos relacionam-se diretamente
com a prática em sala de aula, como
uma alternativa ao método ainda atual.
Primeiramente, o conceito de
lição diz respeito ao ato de ler. Mas ler
como uma dívida ou uma tarefa, algo
que coloca em movimento a capacidade
de se entregar e se reconhecer em um
texto, algo que exercita a possibilidade
da experiência literária. A lição é dada
pelo professor, como que direcionada a
seus alunos – tal qual uma carta – em
que nela se encerra um segredo, algo
que será compartilhado apenas entre
aquelas pessoas, algo que as une.
Essa experiência de leitura,
contudo, é a experiência primordial, do
coletivo. É a leitura em voz alta, em que
os inúmeros espaços do texto são pre-
enchidos por variadas vivências. É onde
se abre o leque de possibilidades que
aquele texto traz, é o ato de comparti-
lhar as várias interpretações e saber
que, ao final, a partilha será para todos
inominável, imensurável. É nessa expe-
riência que se dá o ato de falar de ou-
vir. De se constituir também através de
outras vivências e de ter com outros o
indizível da partilha.
Essa experiência leva, além de
tudo, a um outro lugar da relação en-
tre professor/a luno ; esco la/
literatura; sala de aula/leitura. É uma
nova forma de fazer florir uma ideia
que até então não se concretiza em
sala de aula.
As formas pragmáticas da
literatura encontram-se de forma
massiva nos contextos escolares. Pro-
fessores que ainda acham-se superio-
res por sua posição letrada, domina-
dores de literaturas, detentores da
cultura. É inevitável que essa perspec-
tiva seja propagada na prática para
nossos alunos, aqueles que tão ingenu-
amente tentamos formar como leito-
res, críticos e autores de suas vidas e
vivências. Cremos que essa funcionali-
dade em relação à literatura tenha
muito do que Barthes (1977) aponta em
Aula:
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o
poder que reside na língua, por-que esquecemos que toda língua é
uma classificação, e que toda
classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo,
repartição e cominação. Jákob-son mostrou que um idioma se
define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele
obriga a dizer. (BARTHES, 1977, p. 11)
Página 19 O Corpo
Se observarmos atentamente
essa pontuação de Barthes (1977),
veremos como a literatura sofre pelo
pragmatismo intrínseco à língua –
justamente por ser a arte que mais
dialoga com essa capacidade humana.
A impossibilidade de não dizer, de ter
que traduzir em palavras, confere à
literatura o status da arte do dito-
para-quê; a arte da escrita para ensi-
nar, para pensar, para conscientizar.
Não que a literatura não seja capaz
dessas e de muitas outras funções,
mas ela em si vai além. Além mesmo
do que as palavras podem dizer e é aí
que não chegamos, mas que devemos
chegar.
Mas a nós, que não somos nem
cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim
dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro
magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplen-
dor de uma revolução permanen-te da linguagem, eu a chamo,
quanto a mim: literatura. (BARTHES, 1977, p. 15)
Desta forma, seguindo as
pontuações de Barthes (1977) cabe ao
professor – dentro de nossa perspec-
tiva – reconhecer a literatura como o
lugar da língua fora do poder e, atra-
vés desta visão, levar aos alunos à
possibilidade da leitura, não só como
prática educacional, mas como um
meio e uma oportunidade para a refle-
xão, a partilha e o conhecimento.
Sabemos das inúmeras dificul-
dades que se apresentam no caminho
de um professor que tem como ideal
essa perspectiva de leitura e literatura,
mas sabemos também da necessidade
de um viés mais literário dentro das
escolas – que fuja ao padrão mecani-
cista, autoritário e ditador que ainda
prevalece nos centros de ensino.
Ao tratar a literatura em sala
de aula, o professor toma para si a
responsabilidade – talvez única – de
levar a seus alunos um novo caminho e
uma nova maneira de experienciar a
vida. É essencial que isto esteja claro a
todos nós.
Um viés teórico da literatura
Após refletirmos sobre o papel
ideológico e filosófico da literatura e da
leitura em sala, precisamos pensar em
como estamos fazendo isso. Através de
um viés teórico, podemos analisar o
ensino de literatura para, então, pro-
pormos uma metodologia que se ade-
que às visões ideológicas-filosóficas
apresentadas.
No ensino fundamental e mé-
dio, onde há a maior ocorrência de
obras literárias – bem como o maior
afastamento dos jovens da literatura –
encontramos massivamente a leitura
de cânones nacionais, muitas vezes as
mesmas obras que os professores dos
professores leram em sua formação
básica. Contudo, é importante pensar o
papel dessas obras na formação de
nossos alunos, como leitores e como
cidadãos.
Primeiramente, grande parte
das obras canônicas que são indicadas
para a leitura escolar partem, a prin-
cípio, do entendimento dessas obras
como exemplares da boa literatura e
da boa forma linguística – muito mais
do que bons livros a serem tratados
literariamente com os alunos. Ao invés
de receberem as obras e buscarem os
elementos que fazem dela um clássico,
os alunos já recebem o livro com uma
importância anterior, mistificada, à
sua leitura. Essa perspectiva está di-
retamente ligada ao conceito que Gra-
ça Paulino (2004), citando Calvino,
apresenta:
Acreditando nas “coisas que só a
literatura nos pode dar”, Calvino retoma as qualidades canônicas
Página 20 O Corpo
que ligariam a Antiguidade ao
presente e ao futuro, na constru-ção da arte literária: leveza,
rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência.
(PAULINO, 2004, p. 12)
Além disso, é clara a pouca
prática de leitura que os próprios
professores possuem, perceptível
pela repetição exaustiva das obras
canônicas, mesmo diante de um esco-
po quase infinito de obras. A simples
repetição desses textos– consequen-
temente a repetição do trabalho em
sala – demonstra que não houve, e
ainda não há, um trabalho contínuo
com a leitura que contribua para a
formação de gosto dos alunos e pro-
fessores dentro do campo literário.
Entendendo que tais cânones
escolares derivam de uma for-mação que não desenvolveu a
cidadania literariamente letrada, defino esse processo de escolha
de textos como o trabalho de educadores não leitores literá-
rios, que lidam apenas profissio-
nalmente com a literatura dita “juvenil”. (PAULINO, 2004, p. 17)
É a partir dessas práticas
que procuramos entender a relutância
dos jovens em relação à literatura.
Quando não há um trabalho efetivo de
mediação por parte do professor,
muitos dos cânones indicados no de-
correr do trajeto escolar podem apre-
sentar-se como uma barreira quase
intransponível. A língua e as temáticas
podem dizer muito pouco respeito aos
jovens e sem um histórico de leitura a
tarefa de ler um cânone pode tornar-se
impossível. Essa impossibilidade, mui-
tas vezes, é ainda conferida ao leitor –
culpabilizado pelo insucesso da leitura.
Novamente, uma alternativa a esse ce-
nário seria a busca por outras obras
canônicas, que dialogassem melhor
com a realidade dos estudantes.
Contudo, para sanar ou reduzir
os problemas apresentados sobre as
obras canônicas, Graça Paulino (2004)
discute o conceito de letramento literá-
rio – processo pelo qual há a apropria-
ção das práticas de leitura e escrita de
textos literários; que passa pela escola,
mas não se restringe a ela. Esse méto-
do torna-se a melhor alternativa quan-
do pensamos que o bom leitor é aquele
que possui autonomia para escolher
suas leituras, e essa prática só se tor-
na possível quando o trabalho com os
cânones deixa de dizer respeito apenas
aos acadêmicos e professores, e pas-
sam a figurar no escopo literário dos
alunos.
O conceito de letramento lite-
rário, inaugurado no Brasil por Graça
Paulino (2004), foi tratado por Rose-
mar Coenga (2010), que dialoga tam-
bém com os PCNs sobre uma nova
possibilidade de ensino. A má forma-
ção de professores, bem como o prag-
matismo escolar tem sido, segundo o
autor, fatores que dificultam o proces-
so de letramento, muitas vezes impe-
dindo-o através da escolarização da
leitura.
A prática da leitura literária
tem como palco, muitas vezes, a esco-
la. Esta, por sua vez, apresenta-se
muito mais como cerceadora da leitu-
ra do que como incentivadora, já que
pragmatiza e prescreve as inúmeras
possibilidades que a leitura possui,
como vimos no primeiro tópico.
Através dessas reflexões e da
análise dos PCNs, é possível perceber
que o conceito de letramento literário
está muito mais próximo do que se
espera da educação atualmente do que
das práticas reais de ensino de litera-
tura.
Entendendo o letramento lite-
rário como uma concepção que coloca
a literatura em contextos de prática
social, bem como um meio de empode-
ramento do indivíduo sobre a leitura e
a escrita, percebemos que esse é o
Página 21 O Corpo
caminho para a formação da cidada-
nia, participação social e política, pre-
vista nos PCNs.
Dessa forma, concluímos que
a metodologia que resulta dos concei-
tos ideológicos-filosóficos apresenta-
dos deve se embasar no conceito teó-
rico de letramento literário, apresen-
tado aqui como forma possível do en-
sino de literatura, além de apresentar
-se como viés que supre as necessi-
dades dos documentos educacionais
atuais.
Um viés metodológico
Para concluir a proposta de
ensino que este ensaio apresenta,
discutiremos, por fim, práticas possí-
veis para a aplicação do viés teórico e
ideológico exposto. Para tanto, utiliza-
remos como base fundamental a obra
de Rildo Cosson (2006), Letramento
Literário: teoria e prática.
Essa obra possui como funda-
mento quatro momentos em que se
realiza a prática do letramento literá-
rio. Cremos que essa perspectiva é
uma excelente proposta, já que apre-
senta possíveis situações mas permi-
te – e incentiva – alterações nos pro-
cessos metodológicos expostos, visan-
do a adaptação das estratégias de le-
tramento de acordo com a turma.
Os quatro momentos apresen-
tados por Cosson (2006) são: motiva-
ção, introdução, leitura e interpretação.
No primeiro, o objetivo é fazer com que
os alunos despertem sua curiosidade e
vontade de ler. Sabendo que o letra-
mento literário é uma prática social, de
apropriação da leitura e escrita, é ine-
vitável que o desejo pela leitura seja um
fator relevante, já que trata da pers-
pectiva de leitura e ação do aluno.
Na segunda etapa, a introdu-
ção, o aluno entrará, efetivamente, em
contato com a obra, ou as obras, esco-
lhida. Esse é o momento em que o pro-
fessor se fará mediador entre o objeto-
livro e seus alunos, mostrando desde a
capa da obra até discorrendo sobre
fatos relevantes do contexto histórico e
do autor. É o momento do contato inici-
al com o livro, com sua significação, e
cabe ao professor cativar seus alunos
nestes detalhes que às vezes passam
despercebidos, mas são extremamente
relevantes para a fase seguinte: a leitu-
ra.
Nessa fase, após os processos
anteriores, o aluno estará apto tanto
para uma leitura individual quando
para uma leitura coletiva. Lembrando
d’A Lição, de Larrosa (2000), percebe-
mos que o professor pode tornar este
o momento mais relevante para seu
aluno e sua turma e cabe a ele ser o
mediador desse processo sem, contu-
do, cercear as possibilidades de leitu-
ra que seus alunos possuem.
Por fim, a interpretação é a
hora da partilha, da discussão. É o mo-
mento de expor sua leitura e ouvir a
dos alunos, bem como refletir e se
permitir – aqui se faz a ideia do letra-
mento literário como um processo
contínuo – enxergar novos caminhos
dentro das obras.
Souza e Girotto (2011) tratam
em seu artigo Estratégias de leitura:
uma alternativa para o início da educa-
ção literária sobre as várias estraté-
gias de leitura que podem conduzir ao
ensino pautado no letramento literário.
As autoras possuem Cosson (2006)
como referência nesse trabalho e fo-
cam-se no segundo momento proposto
por ele: a leitura.
Tanto o trabalho de Souza e
Girotto (2011) quanto o de Cosson
(2006), em consonância com Larrosa
(2000) e Petit (2010), possuem como
Página 22 O Corpo
momento crucial no ensino de litera-
tura, o momento da leitura. Em acordo
com os autores, cremos que esse é o
momento fundamental para que a lite-
ratura faça parte da escola e da vida
dos alunos. Sabendo da importância
dessa arte, bem como de suas possi-
bilidades, cremos que as ideias apre-
sentadas nesse ensaio sejam um ca-
minho para a literarização da escola –
ao invés da escolarização da escola.
Por fim, sabemos das dificul-
dades incutidas no ensino de literatu-
ra, já que o movimento deve ser feito,
em última instância, pelo leitor. Sabe-
mos também que esse movimento
pode ser dolorido, difícil e revelador,
propenso a inúmeras mudanças, so-
bressaltos e nevoeiros, mas acredita-
mos que esse é o caminho que, em
consonância com Durval, deforma.
Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Por
um ensino que deforme: o docente
na pós-modernidade. Disponível em: <
h t t p : / / w w w . c n s l p b . c o m . b r /
arquivosdoc/MATPROF.pdf. > Acesso
em: 17 mar. 2014.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,
1988, p. 7-29.
COENGA, Rosemar. Margeando o concei-
to de letramento literário. In: ___. Lei-
tura e letramento literário: Diálogos.
Cuiabá: Carlini & Caniato, 2010, p. 48-
69.
COSSON, Rildo. A sequência básica. In:
___. Letramento literário: teoria e
prática. São Paulo: Contexto, 2006, p. 51
-73.
LARROSA, Jorge. Sobre a lição. In: ___.
Pedagogia profana: Danças, piruetas e
mascaradas. Trad. Alfredo Veiga-Neto.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 139
-46.
PAULINO, Graça. Formação de leitores:
a questão dos cânones literários. In:
GAMA-KHALIL, Marisa Martins; ANDRA-
DE, Paulo Fonseca (Org.). As literatu-
ras infantil e juvenil ... ainda uma
vez. Uberlândia: GPEA/CAPES, 2013.
PETIT, Michèle. As duas vertentes da
leitura. In: ___. Os jovens e a leitura:
uma nova perspectiva. São Paulo: Ed.
34, 2008, p. 15-58.
SOUZA, Renata Junqueira de; Girotto,
Cyntia Simões. Estratégias de leitura:
uma alternativa para o início da educa-
ção literária. Álabe - Revista de la red
de universidades lectoras. p. 1-21, v. 4,
dez. 2011.
LUIZA MARIA FONTE BOA MELO: GRADUAÇÃO EM ANDAMENTO EM LETRAS - PORTUGUÊS.
TEM EXPERIÊNCIA NA ÁREA DE LETRAS, COM ÊNFASE EM LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES,
ATUANDO PRINCIPALMENTE NOS SEGUINTES TEMAS: FONOLOGIA, DIDÁTICA E LITERATU-
RA. INSTITUTO DE LETRAS E LINGUÍSTICA, UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA.
Currículo Lattes: Clique Aqui!
Página 23 O Corpo
Dica de O Corpo
Assista a aula “O Corpo Enquanto Objeto de Discurso” ministrada pelo
Profa. Msndo. Vinícius Reis (PPGMLS/UESB/Labedisco)
no I Encontro do Ciclo de Estudos:
"Corpo e Audiovisual: Aportes Teóricos para Estudos em Análise do Discurso".
Para acessar, clique na imagem abaixo.
Leitura da Dissertação “A língua portuguesa no Vestibular dos Povos Indígenas no
Paraná: conflitos e contradições entre políticas linguísticas e sociais de inclusão.”
Autora: Luana de Souza Vitoriano
Dica de O Corpo
Página 24 O Corpo
RESUMO
Em 2001 a Lei nº 13.134 estabeleceu-se como acontecimento histórico e, principalmente, discursivo, uma vez que
foi capaz de modificar a ordem educacional do Ensino Superior do Estado do Paraná, em níveis sócio-culturais,
políticos e econômicos. A criação dessa Lei possibilitou condições de emergência para a prática sócio-política e
educacional de realização do Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná, espaço de visibilidade às divergências
culturais e linguísticas do sujeito indígena contemporâneo, e condições para que os enunciados elaborados pe-
los candidatos inscritos revelem (ou não) sua proficiência, na modalidade escrita, da língua portuguesa. Diante
dessas singularidades, aquilo que se enuncia sobre o vestibular e, principalmente, nas redações, circunscreve-
se sob a égide de um efeito de raridade e de exterioridade, e acomoda um gesto de leitura e de interpretação,
que correlaciona essas propriedades do enunciado aos seus efeitos de dispersão e regularidade. Assim, como
problematização norteadora da pesquisa trouxemos as seguintes inquietações: Como o dispositivo da exclusão
pela língua cria espaços de (in)visibilidades nas políticas afirmativas e linguísticas, as quais fundamentam a prá-
tica discursiva do Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná? E como esse mesmo dispositivo cria condições de
possibilidade nas (re)constituições dos processos nos modos de dizer de si manifestados pela/na proficiência
do candidato indígena em língua portuguesa? Para tanto, nos propusemos a investigar nesta pesquisa o arquivo
composto por 57 redações do II Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná (2003), bem como o próprio proces-
so seletivo em suas singularidades. Traçamos como objetivo geral da pesquisa: demonstrar os modos como as
condições de emergência, (co)existência e possibilidade, que constituem o vestibular específico para os povos
indígenas, criam espaços de (in)visibilidades para os modos de ver e dizer a proficiência dos sujeitos indígenas
no Ensino Superior, e por objetivos específicos buscamos: i. Investigar as maneiras pelas quais a proficiência
Para acessar, clique no título acima.
Dica de O Corpo
Página 25 O Corpo
em Língua Portuguesa é capaz de captar o candidato/sujeito indígena no interior de formulações Biopolíticas; ii.
Abranger os modos como as políticas afirmativas, bem como as políticas linguísticas, que constituem o proces-
so seletivo do vestibular indígena são arquitetadas sob um dispositivo de inclusão imaginária e solidariedade; iii.
Esclarecer por quais razões a singularidade dos enunciados produzidos pelos sujeitos indígenas contemporâ-
neos expressa processos de subjetivação e de resistência às práticas sociais não indígenas, e ao funcionamento
da língua portuguesa. O percurso teórico-analítico estabeleceu-se sob o regime de olhar da Análise do Discurso,
de linha franco-brasileira, priorizando, especialmente, os princípios erigidos por Michel Foucault. Depositamos
nossa expectativa e confiança na relevância deste estudo pela carência de pesquisas no âmbito das questões
linguístico-discursivas relacionadas as populações indígenas no Paraná, não somente para deixar legados a pes-
quisadores das próximas gerações, mas, fundamentalmente, aprofundar conhecimentos que levassem à com-
preensão do modo como o dispositivo da inclusão imaginária e da solidariedade é capaz de subjetivar os sujeitos
indígenas às práticas que correspondam à língua e cultura maternas, como também às práticas referentes à
língua e cultura não indígenas. Fez-se necessário investir e urdir nesse processo seletivo, para depreender os
modos como os procedimentos entendidos e formulados como políticas de “inclusão” circunscrevem-se sob a
égide do regime de funcionamento de um dispositivo governado pela “exclusão”.
Palavras-chave: Biopolítica. Políticas linguísticas. Proficiência. Vestibular indígena. Inclusão-exclusão. Língua
Portuguesa.
LUANA DE SOUZA VITORIANO: DOUTORANDA EM LETRAS, PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ (UEM).
MESTRA EM LETRAS, NA ÁREA DE LINGUÍSTICA (2016) E GRADUADA EM LETRAS (2013) PELA UEM. NO MESTRADO
INVESTIGOU A PROFICIÊNCIA EM LÍNGUA PORTUGUESA DOS CANDIDATOS INDÍGENAS NO II VESTIBULAR DOS POVOS INDÍ-
GENAS NO PARANÁ (2003), PARA TANTO RESGATOU A HISTÓRIA E MEMÓRIA ENVOLVIDAS NESSE PROCESSO SELETIVO.
ASSUME POR EIXOS TEMÁTICOS DE PESQUISA O DISCURSO, A LÍNGUA, A PROFICIÊNCIA EM LÍNGUAS, PROCEDIMENTOS
BIOPOLÍTICOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO, POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E AFIRMATIVAS. É PESQUISADORA DO GRUPO DE
ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ (GEDUEM/CNPQ). Currículo
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O corpo é discurso
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