IstvanMeszaros_Critica_Marxista_2.7

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    O MARXISMO HOJE:ENTREVISTA COMISTVN MSZROS

    Traduo:Joo Roberto Martins Filho

    Apresentao

    Esta entrevista uma verso elaborada a partir daquela publicada emMonthly Review (voI. 44, n 11, abril de 1993) e que, inicialmente e nantegra, apareceu em Radical Philosophy (n 62, outono de 1992), sob aconduo de Chris Arthur e Joseph McCarney. Istvn Mszros umconhecido filsofo hngaro que colaborou diretamente com Lukcs, junto Universidade de Budapest, nos anos que antecederam intervenosovitica na Hungria, em 1956. Posteriormente, radicou-se na Inglaterra,unto Universidade de Sussex, onde aposentou-se recentemente. Sua

    produo vasta e significativa, onde destacam-se Marx's theory oalienation (1970), publicada em diversos pases (no Brasil, Rio de Janeiro,

    pela Zahar Ed., 1981); Philosophy, ideology and social science (1986, noBrasil, So Paulo, pela Ed., Ensaio, 1993, dentre vrios textos do autorpublicados por esta editora) e The power of ideology (1989), entre tantosoutros trabalhos.

    Na edio desta entrevista - cuja publicao em Crtica marxista foiautorizada pelo autor - optou-se por destacar aquelas partes em que estopresentes algumas teses que constam de seu novo trabalhoBeyond capital:Towards a theory of transition, que est em via de publicao pela MedinPress, Londres. Volume que sintetiza praticamente duas dcadas de intensaelaborao intelectual, compreendendo, em sua verso original, mais deoitocentas pginas, onde so tematizados elementos decisivos do mundocontemporneo e que se apresenta como uma das mais instigantes e densas

    reflexes no interior do marxismo contemporneo. A publicao destaentrevista objetiva oferecer ao leitor brasileiro algumas das teses presentesemBeyond capital.

    (Ricardo Antunes)

    Em textos recentes sobre a transformao socialista, o senhor introduziuuma importante distino entre capital e capitalismo. Poderia explicaressa distino e seu significado para a luta socialista?

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    MSZROS: Bem, na verdade tal distino remonta ao prprio Marx. Eusalientei inmeras vezes que Marx no intitulou sua principal obra Ocapitalismo, e sim O capital e tambm anotei que o subttulo do volume I

    foi mal traduzido, sob a superviso de Engels, como "o processo deproduo capitalista", quando, de fato, "o processo de produo docapital", o que tem um sentido radicalmente diverso. O que importa aqui,sem dvida, que o objetivo, o alvo da transformao socialista superar opoder do capital. O capitalismo um objetivo relativamente fcil nesseempreendimento, pois voc pode, num certo sentido, abolir o capitalismopor meio do levante revolucionrio e da interveno no plano da poltica,pela expropriao do capitalista. Ao faz-lo, voc colocou um fim nocapitalismo, mas nem sequer tocou no poder do capital. O capital nodepende do poder do capitalismo e isso importante tambm no sentido deque o capital precede o capitalismo em milhares de anos. O capital podesobreviver ao capitalismo, de esperar que no por milhares de anos, masquando o capitalismo derrubado numa rea limitada, o poder do capitalcontinua, mesmo que numa forma hbrida.

    A Unio Sovitica no era capitalista, nem mesmo capitalista deEstado. Mas o sistema sovitico era bastante dominado pelo poder docapital: a diviso de trabalho permaneceu intacta, a estrutura hierrquica decomando do capital subsistiu. O capital um sistema de comando cujomodo de funcionamento orientado para a acumulao, e esta pode serassegurada de muitas formas diferentes. Na Unio Sovitica, o trabalhoexcedente era extrado de forma poltica e foi isso o que entrou em crisenos anos recentes. A extrao politicamente regulada de trabalho excedentetomou-se insustentvel por uma variedade de razes. O controle poltico dafora de trabalho no o que se poderia considerar uma forma tima ouideal de controlar o processo de trabalho. Sob o capitalismo, no Ocidente, o

    que temos uma extrao economicamente regulada de trabalho excedentee de valor excedente. No sistema sovitico isso era feito de um modobastante imprprio, quando a tica a da produtividade, porque o trabalhoretinha um imenso poder, na forma de atos negativos, desafio, sabotagem,dupla jornada etc., diante do qual no se podia sequer sonhar em atingir otipo de produtividade vivel em outros lugares e que minava a raison dtredesse sistema sob Stalin e seus sucessores - a acumulao politicamenteimposta. Sua parte de acumulao ficou paralisada e, por isso, todo osistema entrou em colapso. Publiquei na Itlia um longo ensaio, naprimavera de 1982, no qual afirmei explicitamente que, enquanto as antigaspolticas dos EUA para a regresso poltico-militar do socialismo de tiposovitico no pareciam passveis de sucesso, o que estava ocorrendo naEuropa oriental podia levar restaurao do capitalismo. Pela mesmarazo, eu tambm considerava a idia de socialismo de mercado umacontradio nos prprios termos, porque pretenderia, numa concepoesperanosa, unir as duas modalidades: a extrao econmica com a ex-

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    absolutamente crucial reconhecer que o capital um sistemametablico, um sistema metablico scio-econmico de controle. Vocpode derrotar o capitalista, mas o sistema fabril permanece, a diviso detrabalho permanece, nada mudou nas funes metablicas da sociedade.Com efeito, cedo ou tarde, voc perceber a necessidade de reatribuir essasformas de controle a personalidades, e assim que a burocracia temorigem. A burocracia uma funo dessa estrutura de comando sob ascircunstncias alteradas onde, na ausncia do capitalista privado, voc temque achar um equivalente para esse controle. Considero essa conclusomuito importante, porque com muita freqncia a noo de burocracia apresentada como uma espcie de quadro explanatrio mtico, quando noexplica nada. A prpria burocracia precisa de explicao. Como surge essaburocracia? Quando voc a utiliza como uma espcie de deus ex machinaque tudo explica em termos de burocracia, se voc se livrar dela ento tudoestar resolvido. Mas voc no se livra da burocracia, a menos que ataqueos alicerces scio-econmicos e vislumbre um modo alternativo de regularo processo metablico da sociedade, de tal forma que o poder do capitalseja, de incio, limitado para, ao final, ser certamente eliminado. O capitaluma fora controladora, voc no pode controlar o capital, voc somentepode se livrar dele por meio da transformao de todo o complexo derelaes metablicas da sociedade - impossvel engan-lo. Ou ele ocontrola ou voc se livra dele, no h soluo intermediria, e por issoque a idia de socialismo de mercado no poderia concebivelmentefuncionar, desde o princpio. O que realmente se necessita no a

    restaurao do mercado capitalista, sob o apelido de um mercado socialtotalmente fictcio, mas a adoo de um sistema adequado de incentivos.No h sistema de produo social que possa funcionar sem eles - e comque pessoas devemos relacion-los? No entidades coletivas abstratas, masindivduos. Se as pessoas como indivduos no esto interessadas, no seenvolvem com o processo de produo, com a regulao do processometablico social, ento, cedo ou tarde, elas assumem uma atitude nega-tiva ou mesmo ativamente hostil diante dele.

    Estamos falando de incentivos materiais?

    MSZROS: Ambas as coisas. A oposio entre incentivo moral ematerial , com freqncia, bastante retrica e abstrata, pois se o resultadodessa interveno e participao nos processos sociais uma melhorproduo, uma produtividade crescente, a ativao das potencial idades dosindivduos envolvidos, ento ela se toma um incentivo material. Mas namedida em que eles controlam seus prprios processos de vida, tambmum incentivo moral: os dois devem caminhar juntos. Os incentivos mate-

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    riais e morais devem andar lado a lado. uma questo de controle dosprocessos desse sistema scio-econmico no qual a ativao do potencialreprimido das pessoas tambm um incentivo. Em nossa sociedade, os

    incentivos materiais tal como nos so apresentados sempre colocam aspessoas umas contra as outras. possvel ver isso por toda a parte, em todaprofisso, no ensino, na universidade, em qualquer canto da vida: osincentivos operam na presuno de que podemos dividir as pessoas paramelhor control-las; eis o processo inteiro. Agora, se voc reverte essarelao e diz que as pessoas tm o controle daquilo em que esto envolvi-das, ento a diviso no mais opera, pois elas deixam de ser os sujeitossofredores neste tipo de sistema. Portanto, os incentivos materiais e moraispodem ser tambm de carter igualitrio. Esta a tragdia dodesenvolvimento de tipo sovitico. Quando se fala de colapso dosocialismo para se referir a isso, trata-se de u.ma grotesca deturpao dosfatos, porque o socialismo sequer foi iniciado, no foram dados nem osprimeiros passos na direo de uma transformao socialista, cujo alvosomente pode ser a derrubada do poder do capital e a superao da divisosocial do trabalho, a derrubada do poder do Estado, que tambm umaestrutura de comando para a regulao da vida das pessoas a partir do alto.

    O senhor fala em desafiar o capital e me pergunto se poderia dizer umpouco mais sobre as implicaes prticas, as implicaes para a lutasocialista, de sua distino entre capital e capitalismo.

    MSZROS: Antes de tudo, a estratgia a considerar tem que ser definida nesses

    termos. Os socialistas no podem continuar com a iluso de que tudo se resume aabolir o capitalismo privado - porque o problema real permanece. Enfrentamosrealmente uma profunda crise histrica. O processo de expanso do capital,abrangendo o prprio globo, foi mais ou menos realizado. O que pre-senciamos nas ltimas dcadas foi a crise estrutural do capital. Eu sempre defendique h uma grande diferena da poca em que Marx falava da crise como algo quese desencadeia na forma de grandes tempestades. Hoje ela no tem que assumiressa forma. O que caracteriza a crise de nosso tempo so as precipitaes devariada intensidade, tendentes a um continuum depressivo. Recentementecomeamos a falar de uma recesso de mergulho duplo (double dip), logofalaremos de uma recesso de mergulho triplo. O que estou dizendo que essatendncia para um continuum depressivo, em que uma recesso se segue a outra,

    no uma condio que pode ser mantida indefinidamente, porque ao finalela reativa violentamente as explosivas contradies internas do capital e existemtambm certos limites absolutos a considerar nesse aspecto.

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    bom lembrar que estou falando da crise estrutural do capital, que umproblema to srio quanto a crise do capitalismo, pois uma forma de selivrar da crise do capitalismo, em princpio, era a regulao estatal da

    economia - e, em alguns aspectos, no horizonte externo do sistemacapitalista ocidental voc pode considerar sua possibilidade. O capitalismoestatal pode surgir quando o sistema capitalista ocidental enfrentaproblemas profundos, mas eu diria de novo que esta no uma soluovivel a longo prazo, porque os mesmos tipos de contradies soreativados, notadamente a contradio entre a extrao poltica e aeconmica do trabalho excedente. E no estou falando de fictcios eventosfuturos. Basta pensar no fascismo, no sistema nazista que tentou esse tipode regulao corporativa estatal do sistema, a fim de sair da crise docapitalismo alemo naquele momento preciso da histria. Portanto, o queestamos considerando aqui que todas essas formas de deslocartemporariamente as contradies internas do capital esto se esgotando. O

    mundo todo muito inseguro. A maioria avassaladora da humanidade vivenas condies mais abominveis. O que aconteceu com a modernizaodesses pases? Ela assumiu a forma de roubo, subtrao e recusa insensataem considerar mesmo as implicaes para a sobrevivncia da humanidade -o modo como esses territrios e sua populao foram tratados -, que tudofoi completamente solapado, e hoje voc tem uma situao na qualningum acredita mais na modernizao do chamado "Terceiro Mundo". E por isso que esse continuum depressivo , a longo termo, uma situaoinsustentvel e, por essa razo, uma transformao social deve ser vivel.Mas no o por meio da revitalizao do capital. S pode ser efetuada combase em um afastamento radical da lgica desse insensato e destrutivocontrole orientado para a acumulao.

    Essa crise imensa a que me refiro viu no apenas a virtual extino dospartidos comunistas, dos partidos da Terceira Internacional, mas tambm aextino dos partidos da Segunda Internacional. Por quase cem anos,aqueles que acreditavam nas virtudes da reforma e do socialismoevolucionista falavam da transformao da sociedade que conduz srelaes socialistas da humanidade. Tudo isso foi descartado, mesmo emtermos de seus prprios programas e perspectivas. Vimos recentemente queos partidos socialistas da Segunda Internacional, e seus vrios associados,sofreram derrotas e reveses avassaladores em cada pas particular: naFrana, na Itlia, na Alemanha, na Blgica e nos pases escandinavos eagora h pouco tambm na Inglaterra, a quarta derrota consecutiva doPartido Trabalhista. Foi bastante apropriado que essa derrota em srie, emtodos esses pases, coincidisse com a abertura festiva da Euro Disney,porque o que esses partidos adotaram nesse perodo histrico, em suaresposta crise, foi uma espcie de socialismo Mickey Mouse, e este totalmente incapaz de intervir no processo social. Eis por que no acidental que esses partidos adotem a sabedoria do capital como sistemainsubstituvel. O lder do Partido Trabalhista chegou a declarar que a tarefa

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    dos socialistas o melhor gerenciamento do capitalismo. Atualmente essaespcie de grotesca insensatez ela mesma uma contradio. umacontradio nos prprios termos porque extremamente presunoso pensarque o sistema capitalista funcionaria melhor com um governo trabalhista.Os problemas continuam a se tomar mais graves e o sistema poltico incapaz de responder, porque opera sob os cada vez mais estritosconstrangimentos do capital. O prprio capital no deixa mais nenhumamargem de manobra. A margem que antes existia para os movimentospolticos e as foras parlamentares era incomparavelmente maior no sculoXIX ou nas trs primeiras dcadas do sculo XX. A Gr Bretanha j parteda Europa e no h meio de reverter esse processo, no sentido de que apequena Inglaterra ser capaz de resolver tais problemas.

    Mas isso tambm levanta imediatamente a questo: como nosrelacionamos com o resto do mundo diante do que aconteceu no Leste, naUnio Sovitica? Um novo problema fundamental surgiu no horizonte. Nocaso da Rssia, li recentemente que, alm dos 25 bilhes de dlaresprometidos pelo Ocidente, ela precisar somente este ano de outros 20

    bilhes. Onde vamos achar os bilhes de dlares de que a Rssianecessitar quando o dbito americano ele prprio astronmico? Osproblemas deste mundo esto se tomando to entrelaados, to mescladosuns com os outros, que no se pode pensar numa soluo parcial para eles.So necessrias mudanas estruturais fundamentais. As duas dcadas emeia de expanso depois da Segunda Guerra Mundial foram seguidas porum mal-estar cada vez maior, o colapso de estratgias antes acalentadas, ofim do keynesianismo, o aparecimento do monetarismo etc., e todos eleslevando a nada. Quando pessoas autocomplacentes como John Majordizem que o socialismo est morto e o capitalismo funciona, devemosperguntar: o capitalismo funciona para quem e por quanto tempo? Lirecentemente que os diretores da Merrill Lynch receberam, um 16,5

    milhes de dlares, outro 14 milhes e outros dez ou quinze deles, 5,5milhes cada um, como remunerao anual. Funciona muito bem para eles,mas como funciona para os povos da frica, onde voc os v todo dia, natela da TV? Ou em vastas reas da Amrica Latina, ou na ndia, ou noPaquisto, ou em Bangladesh? Eu poderia continuar enumerando os pasesonde falamos de centenas de milhes de pessoas que mal podemsobreviver.

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    Em sua viso, o agente da mudana nessa situao, o sujeitorevolucionrio, ainda a classe operria?

    MSZROS: Sem dvida, no pode haver outro. Lembro-me que houveuma poca em que Herbert Marcuse sonhava com novos agentes sociais,os intelectuais e os marginalizados, mas nenhum deles foi capaz deimplementar a mudana. Os intelectuais podem desempenhar papel im-

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    portante na definio de estratgias, mas impossvel que osmarginalizados sejam a fora a implementar essa mudana. A nica foracapaz de introduzir a mudana e faz-la funcionar so os produtores dasociedade, que tm as potencialidades e as energias reprimidas por meiodas quais todos esses problemas e contradies podem ser resolvidos. Onico agente capaz de alterar essa situao: que pode fazer valer sua fora,encontrando satisfao nesse processo, a classe operria.

    E quanto sua formo. de organizao? O senhor pensa que sonecessrias novas formas de organizao? H quem diga que o partidopoltico de velho estilo irrelevante.

    MSZROS: Sim, eu concordaria totalmente com isso. O partido polticode velho estilo est integrado no sistema parlamentar, o qual sobreviveu sua relevncia histrica. Ele existia bastante antes do aparecimento daclasse operria no horizonte histrico como agncia social. A classeoperria teve que se acomodar e se constranger s possibilidades, sejamquais fossem, que esse quadro fornecia e, conseqentemente, podiaproduzir apenas organizaes defensivas. Todas as organizaes da classeoperria historicamente constitudas sendo os partidos polticos e ossindicatos de trabalhadores as mais importantes - foram organizaesdefensivas. Mas elas funcionaram at um certo ponto e por isso que aperspectiva do socialismo evolucionista teve sucesso por tantos anos, umavez que ganhos parciais podiam ser conquistados. Os padres de vidaoperria dos pases do Grupo dos Sete subiram enormemente nesse perodo.

    Quando Marx diz no Manifesto comunista que a classe operria tinha aperder apenas os seus grilhes, isso certamente no verdade para a classeoperria dos pases do Grupo dos Sete, tanto hoje como h algum tempo.Eles foram muito bem-sucedidos em melhorar seu padro de vida por todoesse perodo histrico at a ltima dcada, aproximadamente. O queaconteceu na ltima dcada ou dcada e meia foi a concluso desseprocesso, porque o capital no pode mais permitir-se garantir benefcios eganhos significativos s classes trabalhadoras. O capital nunca deu nada depresente. Se isso estivesse afinado com sua prpria lgica interna deexpanso, de auto-expanso, ento esses ganhos podiam ser fornecidos. Naverdade, eles se tornaram fatores dinmicos nesse processo auto-expansionista. Eis por que estamos na situao em que os servios de sade

    esto em crise, o sistema educacional est em crise, o sistema de welfare,em seu conjunto, est em crise. Assim, o fim histrico desse processoreabre a questo: se a classe operria no pode mais obter ganhosdefensivos, por meio de que estratgias ela pode transformar a sociedade?

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    O que eu tinha em mente eram mais os partidos extraparlamentares como osbolcheviques de Lenin ou o Partido Comunista Chins, que foram bem-sucedidosem destruir o capitalismo. Eles esto historicamente superados?

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    MSZROS: Sim, completamente. Mesmo eles permaneceram

    constrangidos pela perspectiva do parlamentarismo e o prprio Lenin era afavor de que operassem no quadro parlamentar. Assim, o que constituicertamente um imenso problema para a agncia histrica da transformao que o capital , por definio e de forma bastante efetiva, em seu modo deagir e funcionar, uma fora extraparlamentar. Os sindicatos detrabalhadores seriam uma fora extraparlamentar, mas eles se identificaramcom os partidos reformistas, o que os refreou. No haver avano algum atque o movimento da classe operria, o movimento socialista, sejarearticulado de forma a se tomar capaz de ao ofensiva, por meio de suasinstituies apropriadas e de sua fora extraparlamentar. O parlamento, sedeve se tomar de algum modo significativo no futuro, deve ser revitalizadoe somente poder s-lo se assumir uma fora extraparlamentar em

    conjuno com o movimento poltico radical, que tambm pode ser ativoatravs do parlamento.

    Oque o senhor pensa do estado presente da filosofia marxista?

    MSZROS: Penso que a filosofia marxista em geral encontra-se numasituao muito difcil, precisamente pelas razes que estamos mencionando,porque estamos numa crise histrica crucial, a desorientao a regra dodia e o que aconteceu no Leste afetou fortemente socialistas e marxistas noOcidente, de forma compreensvel. Ela tem que passar por um processo de

    reavaliao, de busca de nimo e redefinio de todo tipo de coisas.Considero muito mais interessante, por exemplo, a situao na AmricaLatina, o fermento intelectual que ocorre ali muito mais interessante nomomento do que eu possa apontar aqui. Mas no creio que essa situaoseja permanente e sou o ltimo a sugerir que uma transformao socialistaradical possa vir dessas reas sozinhas. Com efeito, estou paradoxalmenteconvencido de que o futuro do socialismo ser decidido nos EstadosUnidos, por mais pessimista que isso possa soar. Tento aludir a isso naltima seo de The power of ideology, em que discuto o problema dauniversalidade. Ou o socialismo se afirma universalmente, de forma aabranger todas essas reas, incluindo as regies capitalistas mais avanadasdo globo, ou ele no vencer.

    O mundo um s. Eu sempre rejeitei a noo de um "TerceiroMundo": existe um nico mundo. Estou convencido de que uma retomadado pensamento marxista no futuro tambm ocorrer aqui em resposta aosproblemas e demandas da poca, especialmente quando foram varridasalgumas das mistificaes do passado. At quando as pessoas podero ser

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    enganadas com a idia de que se esperarem bastante tempo, por meio dosprocessos de reforma social-democratas e do socialismo evolucionista, umdia seus problemas sero resolvidos? No creio que as pessoas acreditemnisso hoje e houve bastante evidncia nas eleies por toda a Europa de

    que essa idia foi profundamente desacreditada. Quando as expectativasparlamentares so amargamente contrariadas, as pessoas se movem para aao. Tivemos um exemplo muito dramtico no passado recente com aoposio ao Poll Tax* e, por meio desse processo, a derrota de MargaretThatcher, antes considerada permanente, imbatvel. E agora, depois daeleio geral britnica, na Esccia as pessoas j falam de ao direta emesmo de desobedincia civil, a fim de afirmar o que consideram ser seuinteresse legtimo de assegurar seu prprio parlamento ou at suaindependncia. Ento, esse o tipo de eventos sociais, de movimentossociais, em relao aos quais a filosofia marxista, o pensamento marxistaem geral, pode se redefinir.

    Presumivelmente o que precisa acontecer que os operrios nos EstadosUnidos formem vnculos e faam causa comum com os trabalhadores noTerceiro Mundo. Mas como podem faz-lo? Esses trabalhadores vivem, emcerta medida, de uma transferncia de valor desses mesmos pases.

    MSZROS: Este um dos problemas e tambm onde uma crtica deMarx tem que ser indicada, pois a prpria classe operria fragmentada,dividida, h muitas contradies. Nos Estados Unidos, nos ltimos dezanos, o padro de vida da classe trabalhadora decaiu. Assim, estamosfalando de um processo, no falamos de objetos de desejo mas de realidadesque ocorrem em nosso tempo. Em janeiro de 1971, proferi a Conferncia

    Memorial Isaac Deutscher, "A necessidade do controle social", e a euindicava o incio do desemprego estrutural. Mas o desemprego na Gr-Bretanha da poca estava bastante abaixo de um milho. Hoje, mesmodepois de 23 falsificaes das verdadeiras cifras de desemprego, estoficialmente em torno de 2,7 milhes. E no h compromisso, nem mesmodo Partido Trabalhista, de retorno ao pleno emprego. Eis a medida dasmudanas em curso. uma contradio macia quando voc declarasuprflua uma parcela bastante grande da populao. Esta parte dapopulao no vai permanecer sempre dcil, complacente e resignada scondies s quais est condenada. Portanto, as coisas esto acontecendo,esto mudando. Mas essas mudanas tero que se aprofundar e estouconvencido de que o faro.

    * Poll Tax: imposto pago por cabea. (N.T.)

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    DEBATEAtualidade do marxismo eda revoluo

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    REVOLUO, UMFANTASMA QUE NO

    FOI ESCONJURADO

    FLORESTAN FERNANDES*

    Hobsbawm, em um livro inteligente e provocativo, procuroudemonstrar que o drama da Europa consistia na conjuno (ou tradio) deintelectuais revolucionrios e uma sociedade que repele a revoluo.Durante a leitura senti o historiador, que vivera o ps-bolchevismo, lidandosutilmente com convices ntimas e a justificao dos erros da Unio

    Sovitica nas questes internas do partido, dentro de suas fronteiras, e napoltica internacional de concesses "guerra fria".Ns, no Brasil, nem isso poderamos fazer. Os nossos partidos de

    esquerda viram-se forados a um oportunismo tortuoso, compensado commomentos de exaltao terica, e s uma vez chegaram prtica, com aexperincia da Aliana Nacional Libertadora (ANL), em 1935. Esse"revolucionarismo subjetivo" comeou a sofrer retificaes, exatamente napoca em que ruiu a "guerra fria" e se proclamou o novo credo burgus da"morte do socialismo", Os intelectuais, na maioria, quando desligados daprtica preferem salvar a pele, para no sacrificar a conscincia... Houveum deslocamento nem sempre coerente e encoberto em direo socialdemocracia, que no seria um mal em si. O mal procedeu na disposio de

    ceder terreno sem luta e na instrumentalizao da social democracia para acondio de mo esquerda da burguesia. Esse processo continua e nosameaa com a perda das poucas alternativas partidrias de construo deuma sociedade nova.

    Gostaria de tratar do tema como socilogo. Na PUC, por exemplo,onde passei a lecionar no ltimo trimestre de 1977, deparei com uma ofertarica de cursos. Havia um que focalizava a organizao social. Em ummpeto automtico, perguntei por que no havia um curso que tratasse noapenas da mudana social, mas especificamente da revoluo social. Aestariam dados os dois plos: a ordem e a sua reproduo; a ordem e suatransformao radical ou pelo avesso. Meus colegas do curso de ps-graduao, que eram abertos reflexo crtica, logo endossaram essa

    complementao necessria.

    * Socilogo e professor aposentado da Universidade de So Paulo.

    140 .REVOLUO, UM FANTASMA QUE NO FOI ESCONJURADO

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    De uma perspectiva macrossociolgica, a revoluo mais importanteque a estabilidade social, vistas como assuntos especficos. Osevolucionistas foram combatidos por causa da predominncia deabordagens mecanicistas e positivistas. No existiria, porm, "evoluosocial da humanidade" ignorando-se mudanas sociais abruptas,

    provenientes de invases, difuso cultural e mudanas sociais queadaptassem a ordem a inovaes que conduziam reforma social e revoluo.

    Se ultrapassssemos os raciocnios circulares, a ordem social noganharia muito com a obsesso comparativa. Especialmente em sociedadesestratificadas, nas quais a ordem social pode conter contradies e tensesmais ou menos violentas em virtude de sua constituio. um mitopostular que os dinamismos reprodutivos so mais importantes que ostransformadores. Nessas sociedades, a estabilidade procede do monopliodo poder por uma categoria social, uma casta, um estamento ou uma classe.Como explicaram Marx e Engels em A ideologia alem, o monoplio dopoder e a estabilidade vinculam-se supremacia ou dominao

    predominante.Isso no pressupe, por si s, a existncia de tenses e de contradies

    que exijam algum tipo de mudana social. E a revoluo (como a reformasocial, de outro ngulo) cria as motivaes da rebelio. A dominao declasse, que nos interessa aqui, tende a reforar a estabilidade e a prolongar aordem social existente alm da capacidade de tolerncia e submisso deoutras classes ou dos sem-classes, que chegam a uma viso negativa daordem social e terminam por desejar explodi-la, eliminando a ordemprevalecente e a dominao de classe.

    A desintegrao da feudal idade foi prolongada. Apesar da dispersodos ncleos de populao e do grau de autonomia dos grandes senhores, asolidariedade dos estamentos dominantes conteve as impulses quepoderiam acelerar os ritmos histricos. O preo da salvao da nobrezadecidiu-se pela centralizao do poder nas mos das casas nobres maispoderosas, no aparecimento resultante da monarquia e na dissociaoprogressiva dos artfices-comerciantes de controles rgidos. Foi assim quesurgiram as premissas histricas da difuso do capital sob a forma demoeda, da propriedade privada moderna e das relaes mercantiscorrespondentes. Aos poucos, esse estamento intermedirio ajudou asoterrar a ordem feudal e tornar-se ele prprio muito importante nasociedade emergente.

    Ficando dentro dessa perspectiva morfolgica, que abstrai aspectosdecisivos da totalidade dos processos econmicos e polticos, observa-se

    que se formava uma classe nova, interessada na desintegrao da sociedadefeudal apenas para aproveitar-se dos dividendos que podiam ser convertidosem riqueza ou poder. A burguesia abriu o seu caminho de forma sinuosa einseriu-se na revoluo que se travava no tope ao mesmo tempo ativa eparasitariamente. Iria demorar mais de trs sculos para que ela brandisse

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    bandeiras revolucionrias "populares" e de "salvao nacional".O exemplo esclarecedor, porque mostra a formao de uma

    dominao de classe segundo moldes dissimulados e sob o manto de umaespoliao de outros setores da sociedade, de alto a baixo, com economia deenergias sociais e por meio da penetrao sistemtica em todos os postosacessveis de poder. Nesses termos, a desintegrao da sociedade feudal e aconsolidao da monarquia erigem-se em um modelo de rebelio silenciosa,que abrange reformas sociais sucessivas, a extino paulatina da heranafeudal e a fermentao de inovaes estruturais de cima para baixo e vice-versa. De fato, antes de encerrar esse complexo ciclo de alterao da ordem,burgueses conseguiram enobrecer-se, suas subclasses se irradiavam portodo o sistema de poder e, no conjunto, ardiam pelo advento de uma ordemsocial na qual no encontrassem obstculos para difundir uma novaconcepo do mundo. A revoluo social coroa, nos fins do sculo XVIII eno incio do sculo XIX, essa ecloso tardia que transmuta uma redeintricada de interesses econmicos, valores sociais e aspiraes polticas.

    No comando das fbricas, de outras instituies-chaves da sociedade e,em particular, do Estado inaugura-se outro estilo de ao social burguesa.Com ritmos rpidos, a burguesia consolida uma dominao de classe queinverte os pilares centrais da "Grande Revoluo". Liberdade, igualdade efraternidade, nos seus principais desdobramentos, no eram conciliveiscom a forma moderna de propriedade, com a acumulao ampliada docapital, que impunha, inexoravelmente, a explorao intensiva dotrabalhador, e com as lutas sociais inerentes ao novo tipo de sociedade civil.A burguesia "conquistadora" no podia ceder espao ebulio que agitavaa sociedade. Ela no interrompe sua revoluo, mas passa a gradu-la com ofito de estend-la a todos os recantos do meio scio-econmico, cultural epoltico. As suas bandeiras revolucionrias foram enroladas e todatransformao que afetasse a estabilidade da ordem sofria paralisaesprolongadas.

    Excludo, de fato, das malhas do confronto tolerado e da submisso aopoder, o proletrio no dispunha de vias de auto-emancipao coletiva. S aexperincia ensinaria quais eram as armas institucionais que deveriam serpostas em movimento para desencadear lutas sociais que ameaassem aorganizao das fbricas ou da sociedade. O Estado assumiu o pendo degarantir a estabilidade e de selecionar mudanas que s a largo prazo teriamum significado positivo para todos. No havia como infiltrar-se, a no serpor peneiramento social, que desfalcava os proletrios de seus quadros maiscapazes e combativos ("circulao das elites" acompanhada da acefalizaodecorrente da pequena burguesia e dos lderes dos trabalhadoresqualificados).

    O nvel cultural mdio dos pases europeus mais adiantados fazia comque os mestres-artesos tivessem informaes especializadas econhecimentos superiores aos que possuam outros trabalhadores. Isso faci-

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    litou a disseminao do radicalismo poltico e a formulao dereivindicaes que conduziram a posies de reforma social e permitiram aerupo dos dois movimentos sociais descritos por Marx e Engels noManifesto comunista. Liberais e conservadores resistiam s presses debaixo para cima. Na iminncia de manifestaes desastrosas para a ordempreferiam, se tivessem alternativa, dosar as mudanas exigidas. Apenasendossavam o que era mais urgente ou inevitvel. A "democraciaburguesa", portanto, entrava no compasso da acomodao e sua realidadehistrica nascia dos setores em confronto com a dominao de classe.

    Quase um sculo mais tarde, o capitalismo financeiro tomou-se crescen-temente burocrtico e processos de internacionalizao da produo, domercado e do "Estado de Direito" germinaram em trs ondas sucessivas deoligopolizao e de avanos e recuos na incorporao imperialista daperiferia. No nterim, os centros imperiais fabricaram sua prpria periferia.A tecnologia dos computadores e a tecnocracia tomaram conta do que sechama hoje em dia de "globalizao". Depois do desfecho da "guerra fria"

    disseminou-se o mito de que o "socialismo est morto" e a ordem social daterceira revoluo do capital monopolista funcionou como uma armadilhatanto para o "radicalismo responsvel", quanto para a prpria revoluo. Ospases pobres ou em desenvolvimento foram empurrados para essaarmadilha, pois o capitalismo monopolista da era atual requer uma infra-estrutura nova (uma fronteira de expanso dentro do mesmo espaogeogrfico). O "neoliberalismo" serviu para dar uma aparncia de sentido aesse processo de devastao das classes sociais e dos sem-classes. Umembuste ideolgico sem paralelos e tambm sem premissas histricasengana a imaginao burguesa e daqueles que deveriam encamar aresistncia acirrada s formas de violncia, de ultra-espoliao e deesmagamento das lutas sociais dos trabalhadores, da pequena burguesia e de

    estratos das classes mdias em desnivelamento social. As respostas a essatragdia, dadas em nome da "esquerda" pela social democracia, assumiramcarter ambguo e conformista.

    Nesse passo revela-se a atualidade do marxismo e a necessidade dosocialismo revolucionrio militante. A experincia do socialismo de acu-mulao(l) e das tentativas revolucionrias nacionalistas patentearam-secomo insuficientes. Eles tiveram um ponto positivo: a volta a Marx, con-jugando dialeticamente teoria e prxis. Os erros cometidos tm importnciacrucial. Eles apontam para as exigncias expressas do pensamento socialistarevolucionrio. Reclamam fidelidade integral aos objetivos da democraciada maioria e a elaborao dos requisitos do advento do comunismo. No se

    1. Conceito provocado pela obteno de excedente, de carter espontneo ou obrigatrio (na Rssia revolucionria e

    em outros pases).

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    pode separar em trs o processo da revoluo socialista: no tope dirigente,as lideranas intermedirias polticas e tecnocrticas; no meio, mas sempossibilidades concretas de ao revolucionria propriamente dita, os

    "intelectuais orgnicos", sbios eunucos de uma ordem social moldada sema compreenso das tendncias histricas de mdio e longo prazos darevoluo; na base, uma extensa populao excluda das atividades queligam teoria e prtica, fanatizada por uma mquina de propaganda cruel ecastrada do poder operrio.

    Muitos rastreiam em Marx suas previses geniais da organizao e dofuturo do capitalismo, inclusive no que se refere primeira manifestao docapital monopolista. Mas no por a que se define toda a grandeza deMarx e de outros marxistas de formao terica rigorosa. Ela est descritana "tica comunista", que ele e Engels formulam com perspiccia polticanoManifesto comunista. A diviso corre entre a reproduo e a ampliaoda barbrie; e uma sociedade sem classes, que aniquila larga parte da

    herana cultural burguesa. Os acadmicos se apossaram dos textos clssicosdo socialismo revolucionrio. Chegaram a tom-lo to preciso queacabaram lidando com um marxismo morto, uma espcie de teologiatomista ou de metafsica kantiana (como se pode exemplificar comAlthusser). A erudio afogou o que havia de inventivo e de provocativopara a reflexo e a contribuio das geraes posteriores. Ora, o destino desua obra no era esse - mas o de fundir as idias dos filsofos s aesrebeldes dos operrios, gerando foras sociais de construo de umasociedade nova.

    A atualidade de Marx prende-se, pois, diretamente ao solapamento eeliminao do capitalismo monopolista avassalador da "globalizao" deeconomias, culturas e sociedades que, na verdade, s se unificam em certos

    pontos estratgicos da consolidao do capitalismo em seu paradigma final,mais brbaro e brutal que se poderia imaginar. H pensadores simpticos aMarx e neo-marxistas rigorosos que enxergam nos caracteres do capitalmonopolista em desenvolvimento para duvidar ou mesmo negar aprobabilidade de uma revoluo operria. Sem proceder a umarepresentao do concreto como totalidade histrica, tiram ilaes queabstraem o campo das mudanas revolucionrias. Seria preciso perguntar:tais caracteres fundamentam a presuno de que as mudanas em vir a serhistrico se concretizem? O capitalismo monopolista da era atual sufocouas contradies intrnsecas ao capitalismo em geral e que se agravam demaneira imprevista graas composio do capital e tecnologia que elepressupe? Ao produzir lucro e pobreza numa escala geomtrica e aoentronizar uma tecnocracia que domina todas as instituies, da corporaogigantesca ao Estado, ele aumenta a tolerncia dos subalternizados, cujopatamar mnimo de pobreza gira em tomo de 25% para cima ou para baixo?A comunicao de massa exerce um efeito narctico permanente na cabea

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    dos escorraados do sistema. Mas ela no tem como anular as contradiesreais de uma sociedade desse tipo.

    Aproximamo-nos da verdade por inteiro. A atualidade de Marx noreside nas obras que escreveu, mas no apelo para estudar e reinterpretar oconcreto como totalidade histrica e descobrir nele a natureza da revoluo.Atualidade significa "ir alm", seguindo os mesmos princpios e mtodosinterpretativos. Se sobrevivem as crises de longa durao e se persiste oclamor rancoroso dos que sofrem os dilemas sociais, a ordem estcondenada. Generaliza-se o saber de que na civilizao vigente fica agnese das iniqidades, das psicoses e do padro de desumanizao dapessoa. As duas alternativas so a decadncia inevitvel ou o socialismo. Deque lado nos situamos? Deixar que a civilizao mais rica da histria dahumanidade perea miseravelmente ou levar avante os processos derenovao sem limites que ela contm, sob a gide do socialismorevolucionrio?

    Voltamos ao ponto de partida que Marx e Engels atravessaram. As revo-lues de meados do sculo XIX falharam, dentro de uma tica comunista.O que os dois pensadores fizeram? Debruaram-se sobre a histria paradescobrir as fontes de seus erros. Puseram revoluo e contra-revoluoface a face e buscaram novas interrogaes para os problemas mal-entendidos ou para os processos em gestao. As evolues do capitalismomonopolista hodierno so claramente reacionrias. Reao versusrevoluo. Temos de recuperar a noo de revoluo permanente, que elesenunciaram. E verificar por que os caminhos dessa tpica reao, imersa sobinovaes e "modernidade", desembocam nos limites de uma civilizaoesttica. E, principalmente, cabe-nos estudar se os dinamismos da revoluono esto alimentando, no substrato da sociedade capitalista mais avanada,

    algo diferente - uma civilizao capaz de fomentar um mundo histrico quev alm dos tecnologistas e dos seus aproveitadores. Ou seja, liberar aimaginao inventiva, a cincia e a tecnologia das cadeias que as prendem multiplicao da injustia social.

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    TRANSFORMAOCAPITALISTA:RELEVNCIA E LIMITESDO MARXISMOJAMES PETRAS*

    Traduo:Joo Roberto Martins Filho

    Introduo

    O colapso do coletivismo burocrtico significa a definitiva reabilitaodo marxismo como teoria e prtica poltica. De mais a mais, a prolongadaestagnao do capitalismo em escala mundial atingiu nveis historicamentesem precedentes(1), o que corrobora a crtica marxista do capitalismo. Masos problemas que, hoje e no futuro prximo, se colocam aos marxistas noso pouco intimidantes.

    Inicialmente, discutiremos a chamada "crise do Marxismo" como umacrise dos intelectuais - um "colapso de energia". Diante das poderosas pres-ses originrias dos centros capitalistas, a "crise do marxismo" enfocadacomo uma realidade subjetiva visvel nos erros de avaliao e na sensaode impotncia da ex-intelectualidade marxista. Ao discutir e analisar a"subjetividade" da crise, estaremos limpando o terreno para abrir o debatesobre a relevncia objetiva do marxismo na anlise no apenas da falnciado coletivismo burocrtico, como da dinmica estrutural do capitalismocontemporneo. Passaremos, ento, ao exame da relevncia do marxismopara a compreenso do desaparecimento do stalinismo. A esse respeito, importante salientar que, enquanto os autores burgueses inicialmentedescreveram o comunismo como algo beira do colapso iminente, paradepois apresent-lo como um "monolito totalitarista" incapaz de evoluointerna, os marxistas enfocaram a natureza contraditria do regimecomunista (tenses entre origens operrias e dominao burocrtica,tenses entre produo socializada e controle e apropriao burocrticos doexcedente) e de suas pretenses ideolgicas (bem coletivo versus elitesprivilegiadas). Enfim, voltaremos nossa ateno para a relevncia domarxismo para a compreenso da dinmica estrutural profunda do capitalis-

    * Professor da State University of New York - Binghamton

    1. A estagnao, ou o declnio absoluto, afetou todos os continentes e os principais pases capitalistas por quase umadcada, ao passo que graves depresses foram a regra nos ex-pases comunistas, na Amrica Latina e na frica.

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    mo contemporneo - de maneira a destacar o modo como o quadro analticomarxista superior a quaisquer de seus concorrentes liberais, neoclssicosou ps-modernos. Isso, por sua vez, permitir levantar os desafios e

    problemas reais que desafiam o marxismo, se este pretende se tornarpoliticamente relevante no mundo contemporneo.

    Crise dos intelectuais

    A "crise do marxismo", na forma como hoje discutida, configura uma"crise de energia intelectual" - a capitulao dos antigos esquerdistas dianteda presena aparentemente avassaladora e dos triunfos poltico-militares docapitalismo no mundo contemporneo. Os ex-esquerdistas esto trauma-tizados por sua viso negativa. O mercado mundial est por toda parte, as

    regras dos bancos internacionais so solidamente impostas, a classetrabalhadora industrial entra em declnio ou bate em retirada, as NaesUnidas tornaram-se uma polcia global americano-europia. Confrontadoscom essa viso apocalptica, os ex-esquerdistas decidem que o melhor atuar a partir do mercado(2). manejaras regras dos bancos nas margens,concentrar seu foco nas atividades locais ("sociedade civil"), fazer danecessidade uma virtude, aderindo ao coro que condena a intervenoestatal e a luta pelo poder de Estado, abraar identidades culturais estreitascomo foco da atividade militante, nos interstcios deixados pelos poderescapitalistas dominantes..., numa palavra, aderir ao "possibilismo" - aesperana de que, ao pintar a mscara no Moloch, a ganncia ser domadaem um pacto social do capitalismo humanista.

    O "colapso de energia" tem suas razes no fracasso da esquerda emresistir s presses ideolgicas dos meios de comunicao de massa e dosestados ocidentais (bem como de seus intelectuais de planto) no sentido deamalgamar marxismo e regimes coletivistas burocrticos.

    Existe a percepo por parte de muitos, particularmente na esquerda,de que o colapso dos regimes coletivistas burocrticos reflete a "falncia"do marxismo. Na medida em que tal viso permeou os movimentos sociaise polticos em escala mundial, ela enfraqueceu severamente toda aesquerda, inclusive aqueles que tm uma compreenso diversa. Na medidaem que essa percepo levou a defeces em direo poltica liberal e amovimentos reformistas setoriais, ela restringiu a arena do debate pblico,fechou o acesso mdia e promoveu desmoralizao e desorientao nos

    movimentos populares.

    2. Jorge Castaeda. A utopia desarmada, So Paulo, Companhia das Letras, 1994.

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    Em segundo lugar, na medida em que parcelas substanciais da esquerda- incluindo setores no-comunistas - dependiam do apoio material dosregimes comunistas, o desaparecimento destes solapou a disposio e acapacidade da esquerda de funcionar fora dos parmetros do capitalismomundial.

    Em terceiro lugar, a classe poltica no Ocidente e os ex-lderes

    stalinistas no Leste monopolizaram os meios de comunicao de massa e odebate pblico sobre o significado do colapso do stalinismo, amalgamandoideologia estatal comunista e marxismo. Na medida em que foram bem-sucedidos em convencer o populacho e os intelectuais da verdade de suaequao (colapso do stalinismo = fim do marxismo), as tarefas de clarificare distinguir marxismo e stalinismo tomou-se infinitamente mais difcil.

    Pelas razes acima, ao contrrio do que acreditam muitos marxistasantistalinistas, a falncia do comunismo sovitico no limpou o terrenopara a avaliao racional da teoria e da prtica marxistas, nem facilitou aexpanso de movimentos marxistas autnomos (sem o albatroz dostalinismo). Como conseqncia, no debate ideolgico e terico pblico,entre muitos acadmicos e ativistas polticos, o marxismo visto como uma

    ideologia cujo tempo passou.

    Crticas ps-marxistas

    Para alguns autores, o desaparecimento do stalinismo significou aascenso em escala global da liberal-democracia - o "fim da histria".Nessa perspectiva, as revolues comunistas constituram um desvio namarcha da histria rumo ao capitalismo liberal-democrtico. Para outros,elas funcionaram como mo oculta por trs de revolues burguesas,removendo da sociedade o entulho pr-capitalista e preparando o terrenopara um estgio novo e mais vital do desenvolvimento capitalista.

    A tese do "fim da histria", com sua viso teleolgica, fracassa em ver

    o capitalismo liberal como um sistema social historicamente especficocom morfologia prpria, nascimento, maturao, declnio e transformao.Os colapsos peridicos das sociedades capitalistas, suas violentasintromisses em estados mais fracos, sua perene expanso, com asubordinao de economias vulnerveis, seu desvio de recursos epauperizao de sociedades nacionais em nome da liderana global foramacompanhados por guerras destrutivas e perdulrias, que por seu turno setransformaram, s vezes, em revolues anticapitalistas, algumas das quaisforam depois revertidas. Em suma, no h base histrica para defender o"progresso linear" rumo ao "livre mercado" e "democracia liberal". Ocapitalismo - seja liberal-democrata ou autoritrio, centrado no Estado oudirigido para o mercado - evoluiu em resposta tenso entre foras opostasinternas e externas: os conflitos internos entre capital e trabalho e osexternos entre os capitais concorrentes. Revolues e contra-revoluesperidicas refletem os conflitos internos; guerras comerciais de escalamundial e regional, os conflitos externos.

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    Em segundo lugar, o declnio do comunismo no foi realizado por umaclasse social capitalista, nem tampouco emergiram da uma sociedade e eco-nomia capitalistas democrticas. A derrubada do comunismo foibasicamente o produto de uma elite burocrtica imbuda de uma ideologiacapitalista, mas sem laos histricos com o capitalismo, seudesenvolvimento e seus mercados. A coisa mais prxima de uma classecapitalista nativa eram as redes ilcitas de contrabando, operando nosinterstcios do sistema de planejamento estatal. A conseqncia darestaurao capitalista por uma classe no-capitalista foi o enxerto depolticas-: e de prticas numa sociedade carente das agncias sociais aptas aimplement-las. Em vez de uma classe capitalista domstica o que emergiufoi, por um lado, um grupo de intermedirios do capitalismo ocidental e, poroutro, o crescimento de uma poderosa camada de espoliadores ("redesmafiosas") que pilham a economia existente de seus recursos pblicos edesviam emprstimos ultramarinos para contas bancrias estrangeiras, sem

    desenvolver as foras produtivas. A resultante decadncia das sociedades co-munistas expressa-se em desemprego endmico, crime e prostituio emlarga escala, bem como no declnio da produo e do consumo. A isso cor-responderam a expanso de governos autoritrios e a imposio externa dapoltica econmica. Nem a democracia liberal nem o desenvolvimentocapitalista emergiram da derrubada do coletivismo. O colapso da URSS e aascenso ao poder de governantes pr-Ocidente tampouco resultaram noestabelecimento de Estados-nao viveis. Divises tnicas e guerras civis,autoritarismo nacionalista e religioso foram o trao mais proeminente domundo ps-comunismo.

    Contrariando o "cenrio de fim da histria", muitas sociedades ps-comunistas regrediram em termos sociais e culturais: voltaram doenas do

    sculo XIX, esto em vigor proibies ao aborto, o pauperismo generalizadotomou-se regra entre os aposentados; cientistas altamente especializadosesto sem emprego ou trabalham por uma ninharia. O que se apresenta comoo triunfo definitivo da liberal-democracia e do capitalismo sobre ocomunismo , de fato, a desintegrao do Estado-nao em enclaves cadavez mais reduzidos de etnias beligerantes, a decadncia da vida pblica e adestruio dos sistemas produtivos. Os sinais de desencanto pblico massivoesto presentes por toda a parte nos pases onde "o mercado" venceu. medida que crescem as vtimas do livre mercado, o que efetivamente acaboufoi a celebrao "triunfalista" da restaurao do mercado. Em vez deconsiderar a derrubada do comunismo como uma revoluo burguesa quelimpa o terreno para o avano capitalista, seria empiricamente mais correto

    (ao menos na ex-URSS e na Europa oriental) encarar a ascendncia deregimes ps-comunistas como um retrocesso histrico - talvez como umdesvio temporrio no caminho de uma forma nova e revitalizada decoletivismo democrtico.

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    Crticas marxistas do comunismo

    Se, no momento, fomos capazes de resistir s modas "ps-marxistas"

    do dia e identificar as categorias analticas essenciais do marxismo,poderemos considerar como elas se saem ao enfrentar as tendnciasestruturais de larga escala e longo termo do capitalismo contemporneo. Oponto bsico que o marxismo - e no a economia neoclssica ou a polticaliberal - tem grande relevncia para nosso entendimento das transformaesestruturais em curso. Alm disso, a evoluo, crise e desaparecimento dostalinismo foram mais brilhantemente analisadas e antecipadas porpensadores marxistas que empregavam categorias marxistas.

    Foi Rosa Luxemburgo quem identificou as tendncias autoritriasimplcitas na estrutura do Partido Bolchevique. Leon Trotski, quemidentificou o novo aparelho de Estado como estrato scio-poltico distinto,que se apropriava do excedente da classe trabalhadora, minando as regras

    igualitrias e contradizendo as origens revolucionrias do regime. Ohistoriador marxista Isaac Deutscher discutiu a possibilidade de umaevoluo no sentido da restaurao capitalista. O filsofo marxista HerbertMarcuse refutou criticamente a pretenso sovitica de pertencer tradioideolgica marxista.

    O mtodo dialtico marxista, o emprego da anlise de classe, aaplicao das noes de contradies de classe, conflitos de classe e denatureza de classe do Estado foram essenciais para a compreenso dascrises do sistema stalinista e da restaurao do capitalismo. Assim como ostalinismo no poderia explicar sua prpria degenerao, o capitalismoliberal ps-comunista no capaz de explicar as crises catastrficas quesuas instituies e polticas engendram. No se deve confundir a penetrao

    conjuntural ou mesmo a hegemonia de uma ideologia com suaprofundidade ou durabilidade.

    A relevncia do marxismo

    Hoje, o marxismo a mais til perspectiva para entender as principaistransformaes estruturais que tm lugar na economia capitalista mundial.No obstante, os tericos marxistas devem acertar as contas com as vastastransformaes nas estruturas de classe, tecnologias, relaes Estado-sociedade civil, que tiveram lugar no ltimo quarto de sculo. De outraforma, seu quadro conceitual tornar-se- irrelevante para a anlise domundo contemporneo e para a criao de uma alternativa convincente.

    Os principais processos estruturais contemporneos so melhor com-preendidos dentro de um quadro marxista. Uma retomada de alguns pro-cessos, relacionados com alguns conceitos bsicos, ilustrar a utilidade dateoria marxista.

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    1) A concentrao e centralizao de capital no interior de pases e emescala regional. As fuses e compras que acompanham a expanso dasempresas globais so uma indicao dessa "lei do capitalismo" presente naanlise marxista.2) A intensificao e extenso da explorao que acompanham a expanso ecompetio capitalistas. O declnio dos salrios, a eliminao de benefciosrelacionados sade, penses, frias e outros, acompanhados pelo aumentodo tempo de trabalho e crescimento da produtividade dos trabalhadoresatestam a relevncia da anlise marxista.3) Desigualdades de classe e polarizao social crescentes. Na Europa,EUA, Amrica Latina e sia, as polticas de "livre-mercado" romperam asredes de seguridade social e contriburam para o aumento da concentraode renda e para um crescente subproletariado.4) Crescente competio intercapitalista. As guerras comerciais e aformao de blocos rivais pelos maiores adversrios capitalistas, bem como

    a reemergncia de rivalidades inter-imperiais solaparam por completo asnoes neoclssicas de relaes de mercado complementares e harmoniosas.5) As tendncias do capitalismo s crises e estagnao. Com o declnio daseconomias de guerra, a ausncia de grandes inovaes capazes de estimulara recuperao e o crescimento, a dvida e os dficits fiscais montantes, acrescente produtividade, ao lado da reduo da base de consumo, ganharamo primeiro plano as tendncias inerentes s crises.6) O imperialismo um trao dominante na definio de relaes entreEstados capitalistas avanados e menos desenvolvidos. A subordinao daEuropa oriental e da ex-URSS ao capital da Europa ocidental e dos EUA,evidenciada na pilhagem de suas economias e na crescente penetrao esubordinao do mercado chins pelo Japo, Hong Kong e Taiwan,

    testemunha do fato de que a expanso global - o imperialismo - a forapropulsora de nossa poca. 7) A Luta de classes como fora motriz dahistria. Os principais termos em praticamente qualquer discurso polticoso "competitividade" e "flexibilizao da mo-de-obra", expresses quedescrevem mudanas em grande escala na relao trabalho-capital. Nas duasltimas dcadas, a classe capitalista e seus representantes estatais seengajaram em uma violenta guerra de classes, convertendo trabalhadorespermanentes em temporrios, alterando normas de trabalho e, o que maisimportante, assumindo o controle absoluto sobre as condies de trabalho. Atmida resposta da classe trabalhadora e dos sindicatos a essa luta de classe(sua natureza unilateral) no obscurece a essncia do processo, a luta de uma

    classe (a dominante) para impor seu poder e suas prerrogativas sobre outra,estabelecendo unilateralmente os termos da produo e da reproduo.

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    8)A natureza de classe do Estado. A esmagadora nfase da poltica estatalconcentrou-se em facilitar o amplo processo econmico empreendido pelaclasse capitalista dominante. A "reestruturao" da classe trabalhadora foipromovida por polticas estatais enfraquecedoras dos sindicatos de

    trabalhadores. Os movimentos do capital foram subsidiados por polticasfiscais do Estado; a concentrao de capital, pela "desregulamentao"estatal; efetivou-se a "transferncia" de perdas privadas, por meio dainterveno do Estado, para o errio pblico. As profundas mudanas nossalrios, baseadas no poder estatal de intervir em benefcio do capital,reduziram a funo de "legitimao" do Estado a uma atividade mnima. OEstado no uma entidade autnoma que media as classes. Suas principaisdecises podem ser melhor entendidas no quadro de seu carter de classe.

    Em suma, o sentido da mudana, a dinmica das relaes Estado-sociedade civil, o processo de expanso internacional, a estrutura domercado e as formas organizacionais emergentes dos principais atoresscio-econmicos podem ser entendidos num quadro marxista. Na livre

    concorrncia das idias, os conceitos-chaves marxistas demonstraram suavalidez em face da e contra os paradigmas neoclssicos liberais. Contudo, opoder explanatrio global do marxismo no suficiente para enfrentar omundo contemporneo, a menos que se reconheam as vastastransformaes ocorridas tanto dentro como fora de suas "categoriashistricas".

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    O ECONOMICISMOOCULTA A REVOLUO

    "Uma certa idia abstrata, porm cmoda, tranqilizante, deum esquema 'dialtico', purificado, simples (...) e a f na'virtude' solucionadora da contradio abstrata como tal: a belacontradio entre capital e trabalho. "

    (Louis Althusser, depois de Lenin e Mao Ts-tung)

    ARMANDO BOITO JR.*

    O debate sobre a atualidade do movimento socialista e da revoluo temse desenvolvido, em grande parte, em bases equivocadas.

    Intelectuais de diferentes posies polticas tm debatido o futuro do so-cialismo e da revoluo circunscritos, em grande medida, ao terreno estreitoda tecnologia e da situao de trabalho e de mercado da classe operria. Oeconomicismo, tpico da ideologia neoliberal, espraiou-se por diversas reasdas cincias humanas. Os movimentos operrio e socialista seriam, segundoessas abordagens, coisas do passado devido s novas tecnologias, s novasformas de gesto da fora de trabalho, ao desemprego e fragmentao daclasse operria. As bases scio-econmicas para unificao da classeoperria num movimento de classe teriam desaparecido.

    Muitos crticos de esquerda tm argumentado, com razo, que astransformaes econmicas e tecnolgicas no apontam para a eliminaodo trabalhador coletivo assalariado, manual e no-manual. Ocorre que

    operam com esse argumento no interior da mesma problemtica terica qual pertence a anlise que pretendem criticar. Consideram-no suficientepara demonstrar a possibilidade histrica da revoluo. Tudo se passa comose, de fato, os movimentos operrio e socialista pudessem ser deduzidos dasituao de trabalho e de mercado da classe operria, isto , do "universoestreito" (Lenin) das relaes entre operrios e patres. Ora, o movimentooperrio e a revoluo foram, ao longo de todo o sculo XX, resultado deum conjunto amplo, complexo e heterogneo de relaes e contradiesentre diversas classes sociais, nacionalidades e Estados, conjunto esse que,embora extravasasse o sistema capitalista, articulava-se em tomo dele emescala internacional. do processo poltico global, desse conjunto derelaes e contradies, que se deve partir para compreender as condiesnas quais a classe operria pode unificar-se num coletivo de classe e ascondies nas quais podem ocorrer as revolues.

    * Professor do Departamento de Cincia Poltica do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UniversidadeEstadual de Campinas

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    A longa onda revolucionria do sculo XX iniciou-se no Mxico em1911, com uma revoluo democrtico-burguesa, e, depois de passar pelaEuropa, sia e frica, encerrou-se na Nicargua, em 1979, com umarevoluo democrtico-popular. O ciclo abriu-se e fechou-se na AmricaLatina, e comportou vrios tipos de revoluo nos quatro continentes.Foram contradies tpicas do sistema capitalista, mas tambm, de modobastante amplo, contradies prprias de modos de produo pr-capitalistas e, principalmente, contradies oriundas do sistema imperialistaque provocaram essas revolues.

    O capitalismo estava consolidado em 'poucos pases no incio destesculo XX: na maioria dos pases da Europa ocidental, nos Estados Unidose, talvez, no Japo. Mesmo nesses pases, contudo, as sobrevivncias pr-capitalistas (feudais e escravistas) eram marcantes. Na Amrica Latina, adespeito da existncia de Estados burgueses na maioria dos pases, aagricultura, na qual estava alocada a maior parte da populao latino-americana, baseava-se, inclusive no Brasil, em relaes de produo de tipopr-capitalista, caracterizadas por formas variadas de subordinao pessoaldo trabalhador ao proprietrio da terra. Na sia, formas comunitrias deutilizao da terra conviviam com sistemas de castas e ordens e comlatifndios tipicamente pr-capitalistas. Na frica negra, aindapredominava a organizao tribal. A luta camponesa pela terra e contradiversas formas de renda pr-capitalista foi um dos componentes

    fundamentais das revolues do sculo XX.O sculo XX foi, tambm, o sculo da formao do novo sistemaimperialista internacional: a disputa entre as potncias pela repartio daperiferia e a luta de libertao nos pases dependentes estiveram na raiz decrises e revolues. A dominao imperialista articulou-se, na periferia dosistema, com toda sorte de economias e Estados de tipo pr-capitalistas,introduzindo, nos pases perifricos, contradies de novo tipo - ascontradies de classe tpicas do capitalismo e as contradies decorrentesda dominao imperialista sobre os Estados e as economias nacionais. Essasnovas contradies vieram se somar s contradies especficas daquelasformaes sociais.

    As revolues do sculo XX estiveram, todas elas, ligadas a esse

    quadro geral: o desenvolvimento desigual do capitalismo, o sistemaimperialista e o pr-capitalismo ainda prevalecente em grande parte dospases perifricos. A Revoluo Russa de 1917 e, mais tarde, a RevoluoChinesa de 1949 e a bipolarizao da poltica internacional entre EstadosUnidos e Unio Sovitica geraram novas contradies e estimularam os

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    movimentos revolucionrios em escala internacional.Nos pases capitalistas centrais, o movimento operrio foi, na maior

    parte do tempo, um movimento por reformas, cujo resultado foi a extensoda cidadania do plano civil, no qual a burguesia procurava confin-la, para

    os planos poltico (democracia) e social (Estado de bem-estar). Omovimento operrio dos pases capitalistas centrais converteu-se emmovimento revolucionrio em conjunturas especficas de crise, propiciadas,no mais das vezes e de modos variados, por disputas e guerras entre asburguesias nacionais imperialistas e neocoloniais (revolues russa ealem) e pelas lutas de libertao nacional nas colnias (RevoluoPortuguesa). As guerras exigem muito das massas, degradam suascondies de vida, provocam um crescimento "desmesurado" e brusco dabase "proletria e popular" do Exrcito burgus e podem dividir edesmoralizar as classes dominantes. Os Estados Unidos, potnciacapitalista cujo territrio nunca foi palco de conflito blicointerimperialista, jamais estiveram ameaados por um movimento operrio

    socialista revolucionrio.Nos pases perifricos, as revolues, nacionais ou populares, sempre

    estiveram vinculadas luta contra a dominao imperialista e,principalmente nos casos da frica e da sia, contra a dominao de tiponeocolonial. Essas revolues tiveram, no mais das vezes, o campesinatocomo principal fora motriz. O que variou de uma para outra dessasrevolues foi a sua fora dirigente: ora a burguesia nacional, ora apequena burguesia e as camadas mdias urbanas, ora ncleos reduzidos daclasse operria que agiam representados por um tipo particular de partidopoltico operrio, forjado pela Terceira Internacional. Do mesmo modo quea luta pela independncia nacional, que foi prolongada em toda a periferiado sistema, levou a crise poltica para o centro do sistema imperialista,propiciando oportunidades de ao mais ofensiva e mesmo revolucionriaaproveitadas pelo operariado dos pases centrais, assim tambm, naperiferia, as classes populares e as' burguesias nacionais foram beneficiadaspelas contradies e lutas que dividiam os pases centrais. De um lado, aluta de libertao nacional pde jogar com as contradies que dividiam aspotncias imperialistas e, a partir da Segunda Guerra Mundial, essa lutatem condies de explorar a contradio que opunha as duas superpotncias- EUA e URSS. De outro lado, o movimento de libertao apropriou-se, sua maneira, da crtica social e do conhecimento estratgico acumuladopelo movimento operrio europeu. Apropriao que, de resto, criou umadas figuras ideolgicas tpicas deste sculo: uma ideologia "socialistaperifrica", que era, em realidade, expresso de um movimento nacional epopular. Talvez apenas na China e na Unio Sovitica tenha existido, defato, e mesmo assim apenas nas primeiras fases dessas revolues, umalinha socialista proletria diferenciada das linhas nacional e popular.

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    certo que o processo revolucionrio na Unio Sovitica e na China,aps um perodo de lutas, redefinies e retrocessos, tomou o caminho docapitalismo burocrtico - sem revogar, convm lembrar, todas as conquistasda revoluo. Mas o resultado mais geral, e em muitos casos indireto e

    involuntrio, dessa vaga revolucionria e dos movimentos reformistas que,de diversas maneiras, foram favorecidos pelas revolues, esse resultadogeral foi positivo para as classes populares: o fim do neocolonialismo(China, Egito, Arglia, Guin-Bissau, Moambique, Angola etc.), ademocratizao do acesso terra em inmeros pases (Mxico, China,Vietn, Nicargua etc.), a expanso do capitalismo nos mais importantespases da periferia (ndia, Brasil, Mxico, Argentina etc.), a criao doEstado de bem-estar nos pases centrais, a democratizao do Estadoburgus em escala planetria e a integrao de grandes contingentes dasmassas populares ao consumo industrial.

    II

    Desde o final da Segunda Guerra Mundial, essas transformaes, quese processavam em tempos desiguais, foram confluindo, gradativamente,para uma situao nova que encerrou aquele ciclo revolucionrio. Ascontradies em jogo no conjunto do sistema encontraram, em momentosdistintos e de modo desigual de pas para pas, solues ou acomodaestemporrias, e as novas contradies que surgiram no atingiram, ao menosat agora, um nvel crtico.

    A expanso da democracia poltica e do Estado de bem-estar no centrocapitalista, a ausncia de conflitos blicos importantes entre as potnciasimperialistas, a formao de novos Estados nacionais na Europa,permitindo a organizao em Estado-nao de nacionalidades oprimidas, adesagregao da Unio Sovitica e a conseqente eliminao dabipolaridade no sistema internacional, o fim do neocolonialismo na fricae na sia, a industrializao capitalista dependente na Amrica Latina e asreformas agrrias em inmeros pases da periferia solucionaram ou entoacomodaram, ao menos temporariamente, as contradies que estiveram nabase das revolues: a) a contradio entre o movimento operrio e aburguesia, principalmente nos pases centrais; b) a contradio entre aspotncias imperialistas pela repartio da periferia; c) a contradio entre assuperpotncias (EUA e URSS), que, aps a Segunda Guerra Mundial,cindiu a poltica internacional; d) a contradio entre, de um lado, as

    burguesias nacionais, a pequena burguesia e as camadas mdias urbanasdos pases perifricos e, de outro lado, o neocolonialismo; e) entre ocampesinato e o sistema latifundirio; f) entre as populaes urbanas dospases perifricos e a antiga diviso internacional do trabalho quebloqueava o acesso dessas populaes ao consumo de tipo industrial; g)entre as burocracias (civil e militar) de Estado da periferia, que aspiravam a

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    autonomia jurdica do Estado que encarnavam, e a dominaoneocolonialista, contradio que teve um papel central em revoluesnacionais como a do Egito.

    O topo do sistema imperialista completou a passagem para um perodono qual predomina a unidade poltica entre as grandes potncias - organiza-

    das em tomo da hegemonia poltico-militar solitria e absoluta dos EstadosUnidos, a relao do centro com a periferia encontrou uma nova acomo-dao e as referncias poltico-ideolgicas principais da luta revolucionriaesvaneceram-se com o rumo capitalista burocrtico tomado pelas principaisrevolues.

    III

    O quadro histrico nesta ltima dcada do sculo XX de estabilidadepoltica relativa do capitalismo e do sistema imperialista. Mais do que isso:assistimos a uma ofensiva geral das foras conservadoras. medida que aluta revolucionria recuava, o declnio e a desagregao final da UnioSovitica se consumavam e a cena internacional passava a ser ocupadaapenas pela alternativa reforma ou reao, o reformismo foi levado devencida pelas foras conservadoras do neoliberalismo. No que respeita superao da bipolaridade entre a URSS e os EUA, o resultado foi, para osreformistas, o oposto do que esperavam. Diziam que o fim da guerra friaretiraria o pretexto (sic) do qual dispunham os EUA e a direita paracombater as reformas. A esquerda reformista teria melhores condies deavanar. O que se verificou foi o contrrio. O fim do "perigo vermelho", isto, do espectro do capitalismo nacional autnomo de Estado que havia

    aterrorizado a burguesia privada imperialista ocidental, favorecendo tanto asreformas como a revoluo no centro e na periferia do sistema, liberou adireita para partir para a ofensiva. A histria no se repete; mas, emcondies novas e com caractersticas particulares, a burguesia e oimperialismo procuram sim anular boa parte do saldo obtido no perodoanterior: ameaam o Estado de bem-estar, a industrializao obtida naperiferia e, at, a descolonizao - por que no comeamos a pensar numnovo colonialismo comandado pelos EUA sob a bandeira da ONU?

    No momento atual, a revoluo no se encontra na ordem do dia. Issoquer dizer que a revoluo est superada historicamente? Pensamos que no.O capitalismo e o imperialismo no resolveram as contradies que podemgerar as revolues.

    Essa nossa convico, queremos enfatizar, no provm da refutao deargumentos como aqueles que se referem s estatsticas sobre o nmero deoperrios. Muitos marxistas raciocinam informados pela tese errnea dapolarizao scio-demo grfica entre a burguesia, que tenderia progressivareduo de seu contingente, e o proletariado, que cresceria incorporando os

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    desclassificados das demais classes sociais, tese defendida por Marx em Omanifesto do Partido Comunista. Ignoram a anlise mais profunda esofisticada do volume I de O capital, na qual, em ruptura com a tesepresente em O manifesto, Marx demonstra que o aumento da composioorgnica do capital pode levar a uma diminuio, relativa ou absoluta, daclasse operria. Deve-se lembrar que grandes pases industriais, como osEstados Unidos, nunca estiveram seriamente ameaados pela revoluo. Deresto, o movimento desigual: com a internacionalizao da produocapitalista, o contingente de operrios pode diminuir em alguns pases docentro e crescer em outros da periferia. No consideramos decisivo,tampouco, o nvel de emprego: a Rssia e a Alemanha revolucionrias noeram uma "sociedade do trabalho", mas de desempregados, e a primeiracontava com uma classe operria bastante diminuta.

    necessrio ter presente que, se a situao de trabalho e de mercadotem uma incidncia direta sobre o movimento sindical, o mesmo no valepara a revoluo. Na verdade, parte dos processos que tm afetado a atualsituao de trabalho e de mercado da classe operria so muito mais efeitodo que causa do recuo da revoluo. A questo decisiva no que tange situao da classe operria e sua possibilidade de dirigir um processorevolucionrio consiste em saber se o trabalho manual, coletivo eassalariado est, sim ou no, em processo de extino - seja pelodesaparecimento ou reduo insignificncia do trabalho vivo nosprocessos produtivos, seja por um processo de regresso ao trabalhoparcelar e independente. As pesquisas indicam que nada disso estocorrendo. Se isso assim, continua dependendo da poltica, nacional einternacional, a possibilidade de a classe operria unificar-se num

    movimento revolucionrio.O novo surto de crescimento das foras produtivas portador decontradies novas e pode aguar velhas contradies no resolvidas.

    Esse crescimento tem provocado o aumento da pobreza na periferia eno centro. O Estado de bem-estar, que integrou o movimento operrioeuropeu, est em crise. Amplos setores das classes mdias encontram-senum processo de degradao scio-econmica, depois de terem, de mododesigual, garantido alguma melhoria com o Estado de bem-estar no centro,e com a industrializao dependente na periferia. A organizao daspopulaes pobres e desenraizadas das grandes metrpoles podercompensar, para as foras revolucionrias, o refluxo, em parte temporrio,do movimento campons em escala internacional. Refluxo que resultou das

    vitrias na luta pela reforma agrria e do avano do sistema de trabalhoassalariado no campo. Hoje o capitalismo ocupa sozinho - de fato e, o que importante, tambm na percepo dos agentes sociais - a cena histrica. Oagravamento das condies de vida poder mais facilmente ser debitado,pelas massas, a esse sistema.

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    A unidade no topo do sistema imperialista poder romper-se. Desde osanos 80, a tendncia das potncias imperialistas tem sido o agrupamento emblocos concorrentes. No interior de cada um desses blocos h grande desi-gualdade entre as potncias associadas. As disputas por mercados e emtomo de dvidas, como a norte-americana, no esto isentas de seconverterem em conflitos mais graves, e mesmo em conflitos blicos.Guerras localizadas, como no Iraque ou na Bsnia, s so localizadas devidoao atual quadro internacional. Somente uma viso idlica da histria dosculo XX e do imperialismo pode desconsiderar a hiptese de umagravamento das relaes internacionais.

    A situao de acomodao entre o centro e a periferia poder deteriorar-se. As potncias imperialistas tm pressionado, dos anos 80 para c, porpolticas de desindustrializao na periferia, e por um processo global dereconcentrao financeira e tecnolgica no centro do sistema. Tais presses

    podero reativar, em bases novas, a contradio de setores das burguesiasnacionais perifricas, das classes mdias e das massas populares com oimperialismo.

    Pode-se levantar a hiptese de que, na nova situao histrica, asrevolues que podero surgir estaro apontando muito mais para o futurodo que para o passado, ao contrrio do que ocorreu com as revolues doperodo 1911-79, que estiveram s voltas, em grande medida, com ofeudalismo e com o imperialismo de velho tipo das potncias neocoloniais.Se isso estiver correto, essa uma razo a mais para os intelectuaissocialistas assumirem a tarefa de desenvolver o marxismo, com base noestudo crtico dos textos e da experincia revolucionria do sculo XX. Nosculo XXI, ao contrrio do que ocorreu neste sculo, o socialismo podercolocar-se como objetivo prtico para um grande nmero de revolues.

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    REVOLU OCOPERNICANANAREVOLUAO

    EMIR SADER *

    I

    Deixando de lado sua origem astronmica, historicamente revoluo nosremete a 1789, a 1848 e a 1871, antes de qualquer coisa. Nesses trsmomentos, com sinais de classe diferenciados, temos dois movimentos emque se unificam dois momentos diferenciados: a luta pelo poder e umprojeto de transformaes radicais da sociedade.

    A insurreio de massa estava presente nos trs, uma luta populararmada por parte da maioria excluda do poder para derrotar o podervigente, destru-lo em suas razes e erigir um poder alternativo, democrtico,majoritrio, sob direo da massa da populao.

    II

    Eclodindo sempre no centro do capitalismo mundial, aquelas lutasapontavam para uma dinmica contnua entre os dois momentos - o doassalto ao poder e o da transformao radical da sociedade. Se 1879apresentava uma mescla quase indiferenciada de classe, j 1848 e 1871possibilitavam definir que a classe que se postava frente da luta pelo poderseria aquela que daria a direo das transformaes revolucionrias. Arevoluo - "democrtica com alma social" ou anticapitalista - ganhava umcarter em que o vnculo indissolvel entre seu momento negativo e positivose resolviam um no outro, possibilitados pela continuidade garantida noprprio carter dual do proletariado - classe do sistema e classe contra osistema.

    IIIA revoluo - como se sabe - levou pela primeira vez de forma duradou-

    ra ao poder o proletariado na Rssia atrasada. Ali se separavam os dois ele

    * Professor do Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo.

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    mentos indissoluvelmente ligados nos episdios anteriores: a luta pelo poderno era levada a cabo nas condies de um capitalismo desenvolvido para apoca e o proletariado dependia, para a sua vitria, da aliana de classemajoritria, um campesinato ansioso pela posse da terra.

    Nos termos de Lenin, era mais fcil tomar o poder na Rssia atrasada,embora fosse mais difcil construir o socialismo. A revoluo russa teria queser resgatada pela revoluo na Europa avanada. Seno, nos termos deMarx em A ideologia alem, se faria a socializao da misria e o retomopaulatino barbrie.

    A tomada do poder era mais fcil pela fragilidade maior das condiesde dominao do Estado tzarista, que havia tomado a Rssia atrasada no elomais frgil da cadeia de dominao mundial do imperialismo, ao acoplar ummeio social atrasado com as tentativas de se tomar um Estado imperialista,sentado mesa com as potncias europias que repartiam o mundo entre si.A excessiva presso sobre a sociedade produzia aquela fragilidade, que aguerra se encarregou de materializar mediante a incorporao macia de

    operrios e camponeses s armas e ao fronte de guerra irmanados.

    IV

    Uma vez terminada a guerra e a j ento Unio Sovitica isolada -depois que, num certo momento, entre 1919 e 1923, como que se decidiu odestino do socialismo neste sculo, quando se jogava a sorte da Alemanhaderrotada na guerra -, colocaram-se os termos do debate entre Stalin eTrotski. Um dilema diante do fracasso da expanso do socialismo na Europaavanada e do resgate da URSS atrasada.

    O triunfo de Stalin possibilitou transformar em virtude a debilidade da

    revoluo: concentrar foras para construir o socialismo no "territriolibertado" da primeira "ptria do socialismo". A extenso da revoluomundial ficaria para quando condies mais propcias voltassem a aparecerno horizonte.

    Assim se dissociavam os dois elementos antes intrinsecamentevinculados, sem que isto fosse assumido corno tal: o assalto ao poder levavao proletariado a construir o socialismo, corno se ele atuasse nas condiesdo capitalismo alemo ou ingls desenvolvido. "Condies objetivas" e"condies subjetivas" encontravam um hiato entre si, que, de forma anlogaao que aconteceu nos capitalismos tardios da Alemanha e da Itlia, foipreenchido pelo Estado.

    As "condies subjetivas" se encarregariam de criar as condies mate-

    riais necessrias a colocar a URSS no caminho da construo do socialismo.Nesse espao de tempo surgiu o que se convencionou chamar de"stalinismo", caracterizado pela interveno sem contrapesos - nos camposeconmico, social, poltico, militar e ideolgico para gerar a partir do seiodo Estado um socialismo de um ventre cuja gravidez foi forjada medianteuma violao.

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    V

    O aparente "sucesso" da construo da URSS como pas socialista -afirmada incondicionalmente pelos partidos comunistas, mas aceita por

    quase toda a esquerda, no sentido do crescimento econmico e daconsolidao como segunda potncia do mundo - apontava os caminhos darevoluo numa determinada direo. Era possvel tomar o poder econstruir o socialismo mesmo nos pases perifricos do capitalismo, demenor desenvolvimento econmico-social. Isso parecia se confirmar,porque os pases que chegavam ao socialismo depois da consolidao daURSS como potncia mundial, aparentemente como um sistema social"irreversvel", poderiam contar com esta como ponto de apoio. Comoposteriormente teorizaram dirigentes da Revoluo Cubana, o papel do"campo socialista" deveria ser o de propiciar a acumulao socialistaprimitiva para as novas revolues.

    O triunfo da Revoluo Chinesa parecia demonstrar praticamente queo socialismo comia o capitalismo pelas beiradas, construindo-se a partir desua periferia, o que poderia transformar o que seria uma exceo numaregra.

    Vietn e Cuba estendiam essa idia, j teorizada pelos dirigenteschineses, com a transferncia da teoria do cerco das cidades pelo campopara a do cerco das metrpoles capitalistas pela periferia. Dali ao papel devanguarda do campesinato e depois, no Cambodja, teorizao dasvirtudes do campo sobre a "corrupo" das cidades, foi um passo quealguns chegaram a dar.

    Porm isso tudo partia de uma realidade evidente. A Europacapitalista. assim como os EUA e o Japo - conjunto das metrpoles

    capitalistas - se reconstruam no maior ciclo de expanso desse sistemadesde seu surgimento, vivendo sua idade do ouro, sem que os movimentosoperrios e os partidos comunistas ou social-democratas conseguissemfazer da revoluo - e do socialismo - uma atualidade. Esse bloco unificadose opunha ao "campo socialista" e aos pases do Terceiro Mundo queresistiam sua subordinao econmica. poltica, militar e ideolgica.

    Havia um suposto nisso tudo: uma vez "tomado" o poder pelo pro-letariado e seus aliados, a construo do socialismo era possvel. Haviadiferenas no que se refere ao que significaria "tomar" o poder, quecaminhos esse processo deveria assumir etc. Mas se mantinha comoindissolvel a continuidade entre os dois elementos - as duas acepes de

    revoluo: tomada do poder e construo da sociedade socialista.

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    VI

    O fracasso da Unio Sovitica fez retomar com toda sua fora a formula-o de Marx a respeito da construo do socialismo em condies de atraso,acrescida do cerco de potncias mais desenvolvidas tecnolgica eeconomicamente. Mas, alm disso, ressaltou com fora no menor outrasdimenses subestimadas do socialismo: a democracia poltica e o elementomoral da igualdade, da justia social. Mesmo que competisse em condiessuperiores materialmente com o capitalismo, o socialismo teria que perfilaruma sociedade qualitativamente superior, distinta, das sociedades baseadasna maximizao do lucro.

    O sentimento difundido de que a "roda da histria" no tinha volta atrse que ela se encarregaria de repor as condies "corretas" de construo dasociedade que superaria o capitalismo ajudou a selar um certo determinismo

    histrico, subproduto da viso stalinista da histria. Hoje temos conscinciade que o socialismo no inevitvel, que no certo que a histria caminhapara o socialismo ou mesmo que a histria "caminhe". O mtodo marxistatem compromisso com a idia de contradio, que mais do que nunca semanifesta real e no com um unidirecionamento da histria.

    Mesmo numa primeira revisita da categoria revoluo, podemosconstatar que ela requer uma revoluo copernicana: a histria no gira emtomo da revoluo; esta - se se quer efetivamente superar o capitalismo econstruir uma sociedade qualitativamente diferente - que deve procurar seadequar ao movimento da histria e das sociedades concretas.

    Isso significa reapropriar-se do anticapitalismo como base da reconstru-o da idia do socialismo e da revoluo. Foi da negao superadora docapitalismo que o socialismo marxista surgiu. da sua reapropriao quepode ressurgir a revoluo, que ter vida to longa - assim como osocialismo quanto a do capitalismo como sistema baseado na explorao,gerador de excluses, de desigualdades, de preconceitos, na mercantilizaoda vida. De sua negao superadora em todos os campos, a revoluo sereafirmar, longe de qualquer viso redutora que a limite a um processo deluta pelo poder, mas que inclua, desde hoje, a construo da fora social,ideolgica, poltica, organizativa e material que conduzir a construo deuma sociedade humana, justa, solidria.

    CRTlCA MARXISTA . 163

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    A ATUALIDADEDA REVOLUAOPROLETRIA

    OSVALDO COGGIOLA *

    A vigncia histrica da revoluo proletria refere-se atualidade dassuas premissas objetivas e subjetivas: crise e declnio da sociedadeexistente e de seu correspondente regime poltico, existncia de uma classerevolucionria, isto , portadora de um projeto social superador, e que ageobjetivamente para lev-lo prtica contra o Estado que condensa,organiza e defende as atuais relaes sociais.

    No adianta responder aos defensores do "fim do socialismo" (devido dissoluo da ex-URSS e do mal-chamado "campo socialista") que ocapitalismo tambm est em crise: o que aqueles questionam a prpriaexistncia de um projeto social alternativo, ou seja, a prpria capacidade deuma classe em materializ-lo.

    A nica maneira de se opor a essa intoxicao ideolgica defendendoa concepo j exposta por Leon Trotski na dcada de 30 (em especial emA revoluo trada): a burocracia dirigente da URSS (e da China e daEuropa oriental) um rgo da burguesia no Estado operrio; oaprofundamento da crise capitalista mina, por isso, as bases de suadominao; a crise resultante pe cara a cara as alternativas da revoluooperria antiburocrtica e da contra-revoluo capitalista, s possvel por

    meios violentos (Tienanmen, Bsnia, Tchetchnia etc.). Falar em "morte domarxismo" (derivada da morte da URSS), quando s o marxismo foi capazde um prognstico histrico to preciso, dar prova, no mnimo, decompleta ignorncia.

    mais vlida do que nunca, portanto, a concluso ento tirada porTrotski: a revoluo socialista continua vigente na conscincia das massas(expressa, tambm, nas revoltas antiburocrticas do passado e do presente)e na crise capitalista mundial. Devido ao carter mundial do capitalismo, avigncia das premissas apontadas inicialmente s pode ser medida nombito internacional.

    Quanto ao suposto declnio da classe operria, convm no confundiresse conceito com o declnio da esquerda que dizia represent-la. Uma

    esquerda to esquizofrnica que, recentemente, cantava loas queda doMuro de Berlim (o "muro da vergonha") durante o dia, mas chorava o "fimdo socialismo"durante a noite.

    * Professor do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade deSo Paulo.

    164 .A ATUALIDADE DA REVOLUO PROLETRIA

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    As mesmas condies de especulao financeira desenfreada e de endivi-damento externo crescente, que constituem a principal manifestao da crisecapitalista mundial, estiveram na base da crise mortal dos "pases socialistas"(por exemplo, as dvidas externas per capita da Polnia, Hungria eIugoslvia eram/so iguais ou superiores quelas dos pases latino-

    americanos). Isto configura a base econmica da crise mundial (ruptura detodos os equilbrios polticos precedentes) que se desenvolve presentemente.

    A degringolada das burocracias destri um dos pilares da velha ordemmundial, que teve como marcos principais os acordos de Ialta e Postdam,aprofundados (ou melhor, precariamente consertados) em uma srie de acor-dos posteriores. Os enfrentamentos diplomticos e, s vezes, at militares dachamada "guerra fria" no puseram em questo esse marco: ao contrrio, fo-ram limitados pelos conte