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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antonio Wardison Canabrava da Silva ITINERÁRIO FORMATIVO DA ÉTICA DO DISCURSO DE KARL OTTO APEL Mestrado em Filosofia SÃO PAULO 2013

ITINERÁRIO FORMATIVO DA ÉTICA DO DISCURSO DE KARL OTTO APEL · Karl Otto Apel. Nesta perspectiva, a pesquisa, de caráter analítico-crítico, parte de um questionamento que norteará

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Antonio Wardison Canabrava da Silva

ITINERÁRIO FORMATIVO DA ÉTICA DO DISCURSO

DE KARL OTTO APEL

Mestrado em Filosofia

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Antonio Wardison Canabrava da Silva

ITINERÁRIO FORMATIVO DA ÉTICA DO DISCURSO

DE KARL OTTO APEL

Mestrado em Filosofia

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Mestre

em Filosofia, sob orientação do Prof. Dr.

Ivo Assad Ibri.

SÃO PAULO

2013

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BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

__________________________________________

__________________________________________

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In memoria, Lucivalda C. Silva,

minha mãe.

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IV

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela presença em todos os momentos da minha vida e, em particular, pela

força concedida ao longo de todo este curso de Mestrado. Muitos desafios e desânimos me

acompanharam nesta empreitada, como também muitas alegrias e novas perspectivas. Por

isso, sou grato a muitos amigos que me ajudaram a alcançar este tão esperado sonho: ao Prof.

Ivo Assad Ibri, pela sua maestria e nobreza intelectual, orientação e humildade; ao Prof. José

Luiz Zanetti, pelos longos diálogos e perspicácia filosófica, aprendizagem e partilha de vida;

ao Prof. Antonio J. R. Valverde, pela sua apreciação e contribuição nesta dissertação; ao Prof.

José Moacir de Aquino, pela sua honrosa presença e ajuda ao longo da minha formação

acadêmica, em particular pelas sublimes orientações filosóficas; aos meus familiares, pelo

encorajamento e orações; aos salesianos Pe. Lauro T. Shinohara e Ronaldo Zacharias que, em

seus nomes, agradeço a todos os salesianos pela minha formação humana, espiritual e

acadêmica; aos padres José Spinola e Cézar Teixeira, pela ajuda, presença e torcida pela

minha carreira acadêmica; aos amigos Ideylson dos Anjos, Fernando Zanatta e Junior Ribeiro,

pela partilha de vida e de utopias, principalmente nos momentos mais delicados da nossa

aventura em uma “terra desconhecida”; aos amigos Pe. Maurício Cruz, Pe. Humberto

Carvalho, Pe. Eduardo Capucho, Pe. João Mendonça, Pe. Antonio C. Galhardo, Herivelton

Breitenbach, Marcelo Pereira, Edi Morato, Marcelo Madeira, Francisco Razzo, Rodrigo

Almeida e à comunidade educativa do Colégio Passionista São Paulo da Cruz, pelo apoio e

entusiasmo. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –

pelo financiamento em grande parte desde curso, como também pelos amigos do Programa de

Filosofia e do Centro de Estudos de Pragmatismo, PUC-SP. Em síntese, agradeço a todos os

amigos que, direta ou indiretamente, me deram suporte para a realização deste honroso

Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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V

“A reflexão transcendental-hermenêutica sobre as

condições de possibilidade do acordo mútuo

linguístico em uma comunidade ilimitada de

comunicação parece fundamentar a unidade da

prima philosophia como unidade da razão prática e

teórica”.

Karl Otto Apel

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VI

RESUMO

Esta dissertação se propõe identificar e analisar o itinerário formativo da Ética do Discurso de

Karl Otto Apel. Nesta perspectiva, a pesquisa, de caráter analítico-crítico, parte de um

questionamento que norteará toda sua reflexão: qual o caminho percorrido por Apel para

elaborar seu postulado ético? Este questionamento buscará compreender como Apel arquiteta

uma ética racional em meio às discussões travadas com filósofos modernos e

contemporâneos. Para cumprir esta tarefa, o primeiro capítulo irá analisar o problema de uma

fundamentação ética na era da ciência, caracterizada pela situação do ser humano como

problema ético, pela paradoxalidade de carência e abnegação de uma ética racional e pelas

correntes filosóficas que desafiam a fundamentação da ética, a saber: a moderna filosofia

analítica, a lógica da ciência de Wittgenstein, o decisionismo de Hans Albert, as

racionalidades e postulados éticos de Max Weber e o solipsismo metódico. O segundo

capítulo apresentará a transformação hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental, ao

analisar a perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão, a virada hermenêutica

de transformação da filosofia transcendental e, com isso, a fenomenologia de Heidegger e

Gadamer, assim como a crítica apeliana a esses dois pensadores, a transformação semiótica da

filosofia transcendental instaurada por Peirce, o postulado da comunidade de experimentação

e interpretação e a crítica de Apel ao cientificismo peirciano e o conceito transcendental-

hermenêutico segundo a compreensão de Apel. O terceiro capítulo apresentará a arquitetura

da Ética do Discurso, compreendida pela sua dimensão pragmático-transcendental, as partes

“A” (ideal) e “B” (real) da ética discursiva e a dialogicidade existente entre elas, a reflexão

transcendental como fundamentação última da filosofia, e a particular contribuição de

Kohlberg para a fundamentação da ética apeliana e, por fim, a relevância da Ética do Discurso

para o mundo contemporâneo. Em suma, esta dissertação procurará identificar e analisar o

caminho percorrido por Apel para a elaboração da sua proposta ética filosófica.

Palavras-chave: Ética do Discurso. Linguagem. Transcendental. Universal. Responsabilidade.

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VII

ABSTRACT

This thesis aims to identify and analyze the itinerary that led Karl Otto Apel to his Ethics

of Discourse. In this perspective, this research, which is critical-analytical in character,

departs from an inquiry that will guide his whole reflection: what is the way that was

covered by Apel to elaborate his ethical postulate? This inquiry will try to understand how

Apel built a rational ethics amid discussions waged with modern and contemporary

philosophers. So as to accomplish this task, Chapter One will analyze the problem of the

ethical grounding in the Age of Science, characterized by the situation of the human being

as an ethical problem, due to the paradox of the dearthiness and abnegation of a rational

ethics and due to the philosophical currents that defy a possible ethical grounding: modern

Analytical Philosophy, Wittgenstein’s Logic of Science, Hans Albert’s Decisionism, Max

Weber’s Rationality and Ethical postulates, and methodological Solipsism. Chapter Two

will present the hermeneutical-semiotic transformation of Transcendental Philosophy, by

analyzing Apel’s critical perspective regarding the Kantian factum of Reason; the

Hermeneutical Turn in the transformation of Transcendental Philosophy and, with that,

Heidegger’s and Gadamer’s Phenomenology, as well as Apel’s critique of those two

thinkers; the Semiotic transformation of Transcendental Philosophy brought about by

Peirce, the postulate of the Community of Inquiry and Interpretation, and Apel’s critique of

Peirce’s Scientifism and the Transcendental-Hermeneutical concept according to Apel’s

understanding. Chapter Three will present the architecture of Apel’s Ethics of Discourse,

understood by its Pragmatic-Transcendental dimension, the “A” (ideal) and “B” (real) parts

of his Ethics of Discourse and the existing dialogicity between, the transcendental

reflection as philosophy’s last grounding, and Kohlberg’s particular contribution to Apel’s

ethical grounding; and, lastly, the relevance of Apel’s Ethics of Discourse to the

contemporary world. In sum, this thesis will try to identify and analyze the course covered

by Apel to elaborate his ethical-philosophical proposal.

Key-words: Ethics of Discourse. Language. Transcendental. Universal. Responsibility.

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VIII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 01

I – PROBLEMA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA NA ERA DA CIÊNCIA .... 07

1.1 A situação do ser humano como problema ético ............................................................. 07

1.2 A paradoxalidade da situação problema: exigência de uma ética racional de

responsabilidade solidária...................................................................................................... 10

1.3 Posições teóricas que desafiam a fundamentação de uma ética racional ........................ 14

1.3.1 A moderna filosofia analítica ........................................................................... 15

1.3.2 A lógica da ciência de Wittgenstein .................................................................. 21

1.3.3 O decisionismo de Hans Albert ........................................................................ 28

1.3.4 Max Weber: racionalidades e postulados éticos .............................................. 32

1.3.5 O solipsismo metódico ...................................................................................... 37

II – TRANSFORMAÇÃO HERMENÊUTICO-SEMIÓTICA DA FILOSOFIA

TRANSCENDENTAL ........................................................................................................ 43

2.1 A perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão ..................................... 43

2.2 A perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental ..................... 49

2.2.1 O novo paradigma da filosofia: a fenomenologia-hermenêutica de Heidegger e

Gadamer .................................................................................................................... 52

2.2.2 A perspectiva crítica de Apel à filosofia hermenêutica de Heidegger e Gadamer

................................................................................................................................... 56

2.3 A transformação semiótica da lógica transcendental kantiana ........................................ 66

2.3.1 O postulado da comunidade de experimentação e interpretação .................... 70

2.3.2 A crítica de Apel ao cientificismo de Peirce ..................................................... 76

2.4 O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel ........................... 80

III – ARQUITETURA DA ÉTICA DO DISCURSO ....................................................... 86

3.1 A compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso................................... 86

3.2 A estrutura da Ética do Discurso ..................................................................................... 90

3.2.1 A dialogicidade entre a comunidade ideal (parte “A”) e a comunidade real

(parte “B”) da Ética do Discurso ............................................................................. 94

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IX

3.3 A reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia ................................ 99

3.3.1 A contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva ......... 104

3.4 A relevância da Ética do Discurso ................................................................................... 109

CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 115

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................................... 121

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1

INTRODUÇÃO

O filósofo e professor emérito da Universidade de Frankfurt, Karl Otto Apel (1922 –

Düsseldorf), tem se destacado no mundo contemporâneo por sua extraordinária reflexão e

elaboração de uma proposta filosófica para a filosofia hodierna, como transformação de todo

legado filosófico tradicional. Sua extensa vocação pela história e pela filosofia, além do

interesse singular pelas línguas clássicas bem como pelas atuais, o fez artífice de uma sólida

formação acadêmica, inclinada aos estudos da linguagem, da hermenêutica e da ética. Apel

recebeu grande influência do humanismo renascentista e, por isso, interessou-se pela cultura,

linguagem, arte e política deste período histórico. Suas primeiras reflexões terão um caráter

eminentemente hermenêutico, que o permite pensar a linguagem, a história e a filosofia.1

Apel estudou história, especializou-se em literatura e, logo depois, dedicou-se, com

Erich Rothaker, a estudar a filosofia da existência, concluindo uma tese doutoral, com o tema

“O Dasein e o conhecer: uma interpretação teórico-cognitiva da filosofia de Martin

Heidegger”. Nos anos 50 inicia seus estudos na corrente analítica anglo-saxã (com Charles

Morris). Depois, emprega esforços na filosofia da linguagem, porém ainda numa perspectiva

antropológica e não ética. Investe nos estudos hermenêuticos de Heidegger e Gadamer e na

filosofia de Wittgenstein, sempre a partir de uma análise crítica e de uma perspectiva de

superação. Com a admissão de Habermas, aluno e amigo, no Instituto de Pesquisa Social de

Frankfurt, em 1956, Apel desenvolve sua consciência política. E, através de seus estudos de

Charles S. Peirce, atinge o ápice da crítica à filosofia kantiana e ao fundamento do seu

pensamento filosófico. Entre 1967 e 1972 desenvolve sua tese acerca da pragmática-

transcendental, que será publicada como Transformação da Filosofia, ao dar sequência a um

itinerário salutar de inúmeras discussões filosóficas até alcançar uma fundamentação última

da ética. Ainda neste período, trava uma discussão com os popperianos e com a filosofia da

linguagem, particularmente com o primeiro e o segundo Wittgenstein. Na década de 80,

procura confrontar-se com a filosofia mais atual, como o pensamento de Derrida, Lyotard e

Rorty.2 Nos anos que seguem, procura consolidar o seu pensamento e defender uma filosofia

de caráter transcendental-pragmático-semiótico.

1 Cf. CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel. Verdad y Responsabilidad. In APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y

ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona: Paidos, 1998, p. 9. 2 Cf. DUSSEL, Ética da libertação – na idade da globalização e da exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 2

Ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 182-183.

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2

Convicto da responsabilidade como filósofo, Apel encara a filosofia como tarefa

específica e necessária para a reflexão acerca da humanidade e do mundo e, por isso, é

rigoroso quanto ao método, critérios de comprovação e resultados próprios da filosofia, ainda

mais diante do paradigma relativista e cientificista da era tecnológica. Neste sentido, Apel

constrói não um sistema filosófico, mas uma proposta filosófica própria, elaborada

arquitetonicamente e capaz de dar respostas específicas para os problemas do mundo

globalizado: “sem dúvida, Karl Otto Apel é um pensador original que capta os diversos níveis

de uma transformação da filosofia contemporânea”.3 Sua filosofia comporta, particularmente,

uma antropologia do conhecimento, uma hermenêutica e uma pragmática transcendental,

uma semiótica, uma teoria consensual da verdade e uma ética discursiva, em diálogo com a

sociedade, com a política, com a economia e com a ecologia. Por isso, sua perspectiva

filosófica se caracteriza pela longa discussão com os principais pensadores da filosofia

moderna e contemporânea, como também com o debate às principais correntes filosóficas

desse contexto histórico: pelo diálogo com Kant, Wittgenstein, Weber, Heidegger, Gadamer,

Peirce, Habermas, o positivismo, o cientificismo, a filosofia analítica, entre outros.

Ao se referir à teoria consensual da verdade, Apel defende uma teoria da evidência

da correspondência, que terá grande expressão na mediação entre a evidência referida à

consciência e a intersubjetividade referida à linguagem; quanto à pragmática, acena para um

viés transcendental, que lhe permite pensar um método para a comprovação da verdade e

diálogo com as ciências. O método transcendental estará caracterizado pelo seu alcance

universal, validade, verificabilidade e contradição performativa. Elementos que, segundo

Apel, conduzem a filosofia para uma fundamentação última, uma vez que os seus

pressupostos pragmáticos transcendentais da argumentação sejam observados e insuperáveis;

quanto à ética, parte da argumentação como possibilidade de toda fundamentação moral, na

tentativa de fundar uma ética racional (constituída pelas partes “A” e “B”4) e aplicável ao

mundo real; e, quanto à perspectiva da hermenêutica filosófica, se apoia em grandes colunas

do pensamento filosófico, como Heidegger e Gadamer, embora, depois, procure superá-los, e

Austin e Searle, mas sem deixar-se contagiar pela filosofia anglo-saxônica. Particularmente,

Apel desenvolverá uma proposta filosófica fenomenológico-hermenêutica, de alto teor

reflexivo, em busca da compreensão e validade da verdade, embasada pelo questionamento

3 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, p. 182.

4 Apel arquiteta sua proposta ética em duas partes: a parte “A” corresponde à comunidade ideal de comunicação,

portadora de validade das verdades tomadas em consenso; a parte “B”, à comunidade real de comunicação,

historicamente situada e responsável pela aplicabilidade das normas.

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3

kantiano acerca das condições de possibilidade e validade do conhecimento, que é a pergunta

pelo critério da validade do conhecimento. Neste sentido, fundamentação, universalidade,

critérios e argumentação são a base de toda a sua proposta filosófica rigorosa,

compromissada em livrar os indivíduos do dogmatismo e do irracionalismo. Nesta base, é

possível erguer uma cultura e oferecer mecanismos racionais de ação, para impedir que

Auschwitz não mais aconteça!5

Apel empregará grandes esforços para pensar e construir uma ética solidária para o

mundo atual, caracterizado pelo perigo de destruição em massa. Com a publicação do O a

priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética, em 1973, sua reflexão ética

toma solidez e decola em um crescente processo de desenvolvimento e fundamentação, até

elaborar a Ética do Discurso, tão difundida e estudada na filosofia atual: uma ética fundada no

a priori da comunidade ilimitada de comunicação, que surge como critério supremo de

valorização da hermenêutica, do acordo intersubjetivo e das ciências sociais críticas.

A Ética do Discurso, de acordo com Apel, situa-se em contexto histórico marcado

por profundas transformações do mundo atual: de um lado, refere-se ao desenvolvimento da

ciência e da tecnologia; de outro, refere-se à necessidade de uma ética responsável e de

alcance universal. Surge, então, a necessidade de um novo marco teórico capaz de pensar

comunitariamente os problemas éticos globais. Este marco tornou-se possível com a evolução

da filosofia da linguagem na metade do século XX. Com isso, considerada como medium

indisponível de toda reflexão, a linguagem “tornou-se conhecida como ‘linguistic turn’ e

forçou um pensamento de todos os problemas filosóficos”.6 Com Karl Otto Apel, a linguistc

turn atinge o ápice: “em seu pensamento, em primeiro lugar, vai-se esclarecer o caráter

propriamente filosófico desse movimento reflexivo em sua distinção com considerações da

ordem das ciências empíricas a respeito da linguagem humana”;7 em segundo, mostrará que a

linguagem não se constitui como objeto na reflexão filosófica, mas sim como o veículo de

transformação da própria filosofia.8 E é neste horizonte que Apel fundará a Ética do Discurso,

como uma ética intersubjetiva portadora de linguagem (como medium de todo entendimento),

5 Cf. CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel. Verdad y Responsabilidad, p. 11-16. Este é o período de 1940 que

marca uma frustrante experiência do jovem Apel (com 18 anos), quando serviu o exército nazista como

voluntário, o que fará dele, segundo Dussel, um racionalista decidido, um ético sensível e com alta

responsabilidade histórica. Cf. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, p. 182. 6 HERRERO, Javier. Ética do Discurso. In OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Correntes fundamentais da ética

contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 163. 7 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática. São Paulo: Loyola, 1996, p. 249.

8 Cf. Ibid., p. 249.

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solidária e universal, capaz de pensar os desafios da humanidade e dar uma resposta plausível

para o mundo da ciência e da técnica.

Ainda mais, a Ética de Karl Otto Apel está fundada em um momento em que o

positivismo fracassa diante de problemas axiológicos e a filosofia analítica, ao desconsiderar a

ética tradicional, inaugura uma metaética de descrições das regras do discurso moral. Assim, a

neutralidade axiológica da ciência, associada à filosofia analítica e ao subjetivismo existencial

se completam, sem oferecer qualquer possibilidade de uma fundamentação última para a

filosofia e, dessa forma, postular uma ética capaz de refletir e orientar o homem diante dos

graves problemas do mundo atual, como o risco de colapso do universo e da destruição das

espécies. Diante de toda essa situação, Apel lança alguns questionamentos, considerados por

ele de extrema relevância: e se a comunidade que forma o horizonte da ciência pressupusesse

uma ética de alcance universal? Com isso, como não enfocar a necessidade de uma

fundamentação racional da ética? É possível fundar um imperativo moral a partir de uma

comunidade de comunicação?

Nesta perspectiva, em busca de conhecer os fundamentos da Ética do Discurso, a

presente dissertação, de caráter bibliográfico-analítico e crítico, tem o objetivo de identificar e

analisar o itinerário formativo da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. E, para isso, irá se

nortear pela seguinte questão: qual o caminho percorrido por Apel no propósito de arquitetar a

Ética do Discurso para o mundo da técnica e da ciência? Esta indagação acompanhará toda

reflexão da dissertação, seja para situar o problema de uma fundamentação ética na era da

ciência e, com isso, explicitar a discussão de Apel com a filosofia moderna e contemporânea,

seja para demonstrar as bases sólidas de fundamentação da ética discursiva, que também está

caracterizada por um exercício de superação das filosofias em diálogos com Apel, e, até

mesmo, para apresentar a arquitetura da Ética do Discurso que, embora represente o

específico do pensamento apeliano, expressa as perspectivas filosóficas incorporadas por Apel

no conjunto de sua proposta filosófica.

Para tanto, a pesquisa tem o compromisso de identificar, explicitar e analisar

criticamente os elementos envolvidos no itinerário formativo da Ética do Discurso. Mesmo

sabendo do desafio proposto, o texto tentará apresentar as principais questões, análises e

respostas apelianas acerca de suas discussões filosóficas. Esta dissertação, portanto, tem como

centro de toda a sua especulação refletir o itinerário filosófico de Apel em busca de uma ética

racional. Por isso, toda análise apresentada, embora faça parte do todo do pensamento de

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Apel, está, particularmente, direcionada para a construção da ética discursiva de Apel. Assim,

o itinerário é a “espinha dorsal” desta dissertação; a ética, o seu fim.

O primeiro capítulo abordará os problemas que comprometem a fundamentação da

Ética do Discurso na era da ciência e da técnica. Seu objetivo é explicitar e analisar o giro que

Apel faz pela filosofia moderna, porém com alto grau de profundidade, e sua eficaz discussão

com os principais modelos filosóficos deste período histórico. A reflexão parte da

apresentação da situação do ser humano como problema ético para a humanidade, o

desenvolvimento da concepção moral do homem, e, com isso, do seu presumido poder de

destruição e desintegração social pelo uso da razão técnica. Após, procura mostrar a

paradoxalidade da situação ética do mundo contemporâneo, ora carente de uma ética universal

em prol da sobrevivência de todos, ora desprovida de fundamentação. O texto segue

apresentando as correntes filosóficas que desmobilizam a fundamentação última de uma ética

racional, a saber: a moderna filosofia analítica, a lógica da ciência de Wittgenstein, o

decisionismo de Hans Albert, as racionalidades e os postulados éticos de Max Weber e, por

fim, o solipsismo metódico. O objetivo é demonstrar como Apel considerou a fragilidade e a

irracionalidade dessas teorias, como incapazes de fundamentar uma ética para a sociedade na

era científica.

O segundo capítulo discutirá, por meio de uma análise crítica, a transformação

hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental. Reflete os fundamentos da filosofia

apeliana e a base do seu legado ético-filosófico, as concepções filosóficas que nortearam seu

pensamento ao encontro de sua proposta filosófica. A análise começa por destacar a

perspectiva crítica de Apel acerca do factum kantiano da razão, ao identificar os elementos

kantianos superados e absorvidos por ele; após, apresenta a perspectiva hermenêutica de

transformação da filosofia transcendental, realizada por Heidegger e Gadamer e a perspectiva

crítica de Apel à filosofia hermenêutica desses dois filósofos; a reflexão segue com a análise

da transformação semiótica da filosofia transcendental instaurada por Peirce, que será

incorporada e assumida por Apel como o ponto mais relevante de toda virada kantiana. Nesta

tentativa de superação, apresenta-se o postulado da comunidade de experimentação e

interpretação, como também a crítica de Apel ao suposto cientificismo de Peirce. E, por fim,

apresenta o conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel, que é,

particularmente, o pensamento próprio do Autor, já consolidado, após ter transitado e

superado as perspectivas filosóficas desses expoentes pensadores da filosofia.

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O terceiro capítulo apresenta a arquitetura da Ética do Discurso de Karl Otto Apel.

Inicia pela análise e compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso; segue ao

apresentar a estrutura da ética discursiva, caracterizada pelas partes “A” (ideal, de

fundamentação) e “B” (real, de responsabilidade) e, com isso, a dialogicidade e coerência

lógica entre elas, como também a possibilidade de aplicação das normas ao mundo histórico.

E, com o propósito de demonstrar o ponto alto do pensamento apeliano – e em referência à

ética – a dissertação ambiciona explicitar a reflexão transcendental como fundamentação

última da filosofia, e a contribuição de Kohlberg para a consolidação desta perspectiva. Por

fim, o capítulo analisa alguns elementos que evidenciam a relevância da Ética do Discurso

para o mundo contemporâneo.

Em suma, a presente dissertação, de maneira sistemática, quer mostrar e analisar

criticamente o itinerário percorrido por Apel em busca dos fundamentos e da estrutura da

Ética do Discurso. Sistemática porque procura, a partir das principais obras de Apel e de

comentadores de sua proposta filosófica, identificar, explicitar e analisar o ponto central de

sua discussão, em referência a pensadores e correntes filosóficas: concentrar a discussão que

Apel realiza com seus principais adversários e colaboradores da sua proposta ética. Tarefa,

esta, não fácil, uma vez que Apel, em seus textos, procura abordar os problemas e discuti-los

com vários pensadores e perspectivas filosóficas, ao mesmo tempo.

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I CAPÍTULO

PROBLEMA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA

NA ERA DA CIÊNCIA

Segundo Karl Otto Apel, a fundamentação de uma ética racional para o mundo

contemporâneo tornou-se tarefa urgente para a filosofia. Trata-se não somente de construir um

postulado ético de responsabilidade global, mas de criar novas bases de fundamentação

filosófica capazes de pensar o agir humano, os seus desafios e a construção de uma sociedade

solidária. Para alcançar tal propósito, Apel percorre um longo caminho de discussões

filosóficas com a finalidade de, ao demonstrar a fragilidade e os limites da filosofia

tradicional (moderna), fundar uma moral consistente e aplicável ao mundo histórico. Com

isso, Apel trava uma discussão com a moderna filosofia analítica; com a lógica da ciência de

Wittgenstein; com o decisionismo de Hans Albert; com as racionalidades e postulados éticos

de Max Weber; e com o solipsismo metódico. Nesta perspectiva, o presente capítulo quer

mostrar, de acordo com Apel, a problematização para a constituição de uma ética filosófica na

era da ciência e da tecnologia, caracterizada pela atual situação de crise e paradoxalidade.

1.1 A situação do ser humano como problema ético

Segundo Karl-Otto Apel, o mundo atual enfrenta uma crise da razão moral,

evidenciada pelo perigo constante do extermínio da humanidade e da biosfera: a destruição

em massa da sobrevivência planetária. Com isso, Apel afirma que a situação humana é um

problema ético para o ser humano:9 a situação de colapso, provocada pelo homem, atinge a

humanidade como um todo. Diante desta realidade, a humanidade é convocada a pensar os

problemas comuns que atingem sua sobrevivência e, com isso, desafiada a construir,

coletivamente, uma ética de responsabilidade moral em âmbito geral. Não há dúvida, segundo

Apel, que esta situação necessita de uma macroética capaz de “organizar a responsabilidade

da humanidade ante os efeitos principais e colaterais de suas ações coletivas em medida

planetária”.10

Não obstante, conforme Apel, a situação do homem como problema ético para a

humanidade não é singular ao atual mundo da técnica e da ciência.11

Desde a Bíblia, em sua

9 Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna. Trad. Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 188.

10 Ibid., p. 188.

11 Cf. Ibid., p. 188.

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linguagem mítica, já se relatava a queda pecaminosa do primeiro homem e, posteriormente,

sua sabedoria em poder distinguir o bem do mal. Esta realidade, como entende Apel,12

fora

interpretada por Kant de forma teórico-evolutiva, da passagem de uma natureza animal para a

humanidade; do instinto para a razão; da tutela da natureza para a liberdade.13

Para Apel, esta interpretação teórico-evolutiva pode ser compreendida da seguinte

maneira: “pela invenção de ferramentas e armas o homem suspendeu a correspondência,

organicamente condicionada, entre o ‘mundo sensível’ de sua percepção sensitiva e o ‘mundo

causal’ dos possíveis efeitos de sua ação”.14

Isso quer dizer: “o possível efeito de suas ações

ultrapassa fundamentalmente o possível controle da conduta por desencadeadores do

comportamento, de natureza especificamente sensitivo-emotiva. Isto vale, sobretudo, para o

desrecalque de inibições instintivo-residuais de homicídio”.15

Procede que o homem ao

assustar-se diante das consequências de sua ação (como o homicídio de Abel por Caim),

encontra a consciência de pecado ético-religiosa, que também pode ser identificada na relação

do caçador ante a caça abatida, do agricultor ante a fertilidade da terra explorada.16

Com isso,

Apel quer dizer: o homo faber, ao superar suas barreiras sensitivas e ao intervir no meio

natural pelas ferramentas criadas (contra animais e contra o próximo), parece ter atingido a

consciência moral, no sentido de reparação, retribuição e reconciliação. Esta condição, de

criação de uma consciência moral, resultou (nas altas culturas euro-asiáticas) na concepção de

uma consciência ética, no sentido das grandes religiões e da filosofia.17

Na era posterior da técnica e da ciência, a diferença entre o “mundo causal” do

homem e seu mundo perceptível sensitivo-emotivo, desponta para um novo significado

daquele empregado na história mítica religiosa. Se antes os efeitos da ação humana eram

acionados por uma consciência de pecado (instintivo-emocional), de maneira imediata, agora

sua ação está referida à responsabilidade da razão, não tão imediata devido à amplitude

espacial e temporal das ações coletivas dos homens.18

Pois a técnica, produtora de armas

12

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 188. 13

Cf. KANT, Immanuel. Começo conjectural da história humana. Trad. Edmilson Menezes. São Paulo:

UNESP, 2010, p. 24. 14

APEL, op. cit., p. 188. 15

Ibid., p. 188. 16

Cf. Ibid., p. 188-189. 17

Cf. Ibid., p. 189. 18

“O ‘pecado original’ que acompanha o desenvolvimento humano, quer dizer, a quebra dos limites animais

instintivos, pode ser concebido como o começo de um permanente desafio à ‘razão’ compensadora do ‘homo

sapiens’ à razão prática, por parte dos resultados da ‘razão’ técnica do ‘homo faber’. Desde a invenção da pedra

e do fogo até a técnica nuclear, a razão técnica, que tem aumentado o alcance e o risco das consequências da

ação humana, avançou-se à razão prática,como instância do controle moral da ação e da responsabilidade, e tem

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humanas, aumentou, cada vez mais, seu potencial de domínio e destruição da natureza; a força

de produção alargou os problemas dos recursos naturais; a força econômica produziu um

maior potencial de guerra entre as nações; o progresso das civilizações provocou o

desequilíbrio da natureza.19

“E é justamente o enorme desenvolvimento atual das ciências e da

técnica que nos leva a colocar, de modo mais urgente do que nunca, o problema da

responsabilidade da razão”,20

que consiste na razão prática.

Diante dessa situação, segundo Apel, “com a ajuda da ‘razão prática’, [o homem

pode] dar uma resposta para uma situação que ele mesmo criou, em sua essência, com base na

ratio técnica”.21

A razão prática, segundo Apel, é capaz de superar a razão técnica22

e

postular normas universais para a humanidade e, com isso, inibir a razão técnica do homo

faber em favor de uma razão mediada, portadora de responsabilidade, do homo sapiens.23

Pois

este, embora esteja temporalmente distante do homo faber, carrega consigo os problemas da

moralidade pelo uso da técnica (por sua vez, ambos superaram o condicionamento histórico-

genealógico, pois adquiriram a liberdade diante do determinismo e alcançaram a moralidade,

à luz de princípios éticos da razão).

Com esta ilustração, Apel apresenta a situação do homem na história atual, como

também sua própria condição natural. Surge, portanto, a seguinte questão: como é possível, a

partir da real situação histórica do homem e de sua genealogia moral, deduzir a necessidade

de uma responsabilidade ética? Para situar tal questão, Apel lança a tese que todo aquele que

filosofa deve reconhecer uma norma ética fundamental:24

reconhecer que o indivíduo, com

possibilidade de sentido de linguagem e de verdade, só pode alcançar as pretensões humanas

de sentido e de verdade se sustentado pela argumentação numa comunidade ilimitada de

enfrentado tarefas totalmente novas. E aqui o aumento das distâncias e a mediação técnico-instrumental dos

efeitos da ação teve como conseqüência que a responsabilidade moral baseou-se cada vez menos em sentimentos

espontâneos instintivo-residuais e, em crescente medida, tem sido assumida por uma consequência obtida através

da mediação da racionalidade”. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos. Trad. Carlos de Santiago. México, D. F.:

Ediciones Coyocán, S. A., 2004, p. 109. 19

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 108. 20

HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 164. 21

APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 189. Ao contrário, segundo Adela Cortina ao referir-se a

Erich F. Schumacher, o problema instaurado na história, do perigo de morte de todo o planeta, não se deve à

ciência e nem à técnica, pois elas são meios. O problema está na razão prática, nos fins que ela procura atingir:

os problemas são de fins e não de meios. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad

solidária – Etica y política em K.O Apel. 2 Ed. Trad. Salamanca-Espanha: Sígueme, 1988, p. 26. 22

A razão técnica consiste na ação do indivíduo, particular, em criar soluções para seu proveito e habitat

circunstancial, sem responsabilidade efetiva dos seus feitos. Ao contrário, a razão prática é pautada, por

natureza, pela ação comunicativa, na tentativa de criar soluções em âmbito comunitário global, de

responsabilidade social e com validade universal. 23

Cf. CORTTINA, op. cit., p. 27. 24

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 191.

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comunicação; reconhecer também que ele, como argumentante e na qualidade de igualdade

perante os outros, já pressupõe uma comunidade ideal de comunicação cuja ação prescreve a

resolução das diferentes opiniões pelo consenso. A norma ética fundamental consiste,

portanto, “no estar obrigado à metanorma da argumentativa formação de consenso sobre

normas situacionalmente relacionadas”.25

Com isso, Apel pretende afirmar que o discurso é a

instância ideal de fundamentação e validação de normas éticas problematizadas: “foi

reconhecida a assimetria na relação do discurso argumentativo com todas as demais formas de

comunicação e de vida. Somente no âmbito e com base nas regras de jogo do discurso podem

ser fundamentados juízos válidos”.26

1.2 A paradoxalidade da situação problema: exigência de uma ética

racional de responsabilidade solidária

Nos tempos atuais, segundo Karl Otto Apel, a reflexão acerca da fundamentação

ética nunca foi tão complexa e, ao mesmo tempo, paradoxal. Por um lado, evidencia-se a

carência de uma ética universal, fruto das consequências da ciência tecnológica em larga

escala; por outro, a abnegação de uma fundamentação filosófica para a ética racional, dada

pela relativização e neutralidade axiológica da técnica, assim como pela renúncia da

intersubjetividade nos procedimentos científicos.27

Segue-se que, com Apel, a carência de uma ética universal evidencia-se pelas

consequências que a tecnologia e a ciência trouxeram ao planeta e às relações humanas, ao

colocar em risco a sobrevivência das espécies. Diante desta situação de colapso, notou-se que

os problemas morais não mais se referem aos pequenos grupos, pois eles não conseguem

regulamentar a convivência humana, nem manter-se isolados na luta pela sobrevivência. Não

obstante, ao observar a microesfera (família, vizinhança etc.), a mesoesfera (política nacional)

e a macroesfera (destino da humanidade), nota-se que as normas ainda estão regidas pelas

duas primeiras esferas: uma, pelo caráter íntimo de regulamentação, outra pela ganância de

grupos de poder. No entanto, ao analisar os efeitos da ação humana, na eminente sociedade

industrial, a ameaça que contagia a biosfera pelo uso da técnica, como a fabricação da bomba

atômica; o desequilíbrio provocado pelo mercado internacional, a poluição ambiental e a

degradação dos recursos naturais, convém afirmar, segundo Apel, que tais perigos não se

25

APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 192. 26

Ibid., p. 192. 27

Cf. Ibid., p. 69.

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restringem à micro ou mesoesfera, mas à humanidade no seu todo, à macroesfera. Portanto,

“essas poucas indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência

representam um desafio moral para a humanidade”.28

Pela primeira vez na história, diante do

perigo em massa, os homens são forçados a pensar, em conjunto, os efeitos da sua ação e a

postular uma normatização ética relevante para todos, de responsabilidade solidária, em busca

da sobrevivência global.29

Neste sentido, é possível deduzir a necessidade, urgente, da

fundamentação e aplicabilidade de uma ética de caráter intersubjetivo-consensual-universal.

A abnegação de uma ética racional defronta-se diante da relação entre ciência e

ética. A cientificidade, em grande parte, reduz a validade e normatização ética a parâmetros

subjetivos ou fundamentados em grupos particulares, em que prevalece a arbitrariedade e a

irracionalidade, a quase isenção de valoração moral. As ciências técnicas – como também a

história, a antropologia cultural, a sociologia e a psicologia – asseguradas de suas verdades

pelos juízos de fato (circunstanciais), postulam que as normas morais são relativamente

culturais ou epocais ou até mesmas subjetivas.30

Para Apel, cabe à filosofia superar este

estatuto de neutralidade axiológica das ciências empíricas (também presente na filosofia

analítica, de descrição científico-teorética), pois elas estão direcionadas para o dogmatismo,

ideologia e autoritarismo.31

Portanto, “uma ética universal, isto é, em intersubjetivamente

válida, de responsabilidade solidária, parece, de acordo com isso, ser ao mesmo tempo

necessária e impossível”:32

necessária porque se apresenta como alternativa mais viável de

tratar os problemas da humanidade, no diálogo e efetivação de normas para todos; impossível

porque se defronta, muitas vezes, com a neutralidade e particularismos da técnica e da ciência.

Caso a razão técnica, aquela singular ao homo faber, regesse a ação humana, a

macroesfera estaria comprometida pelo perigo constante de destruição. Neste caso,

sobressairiam a microesfera e a mesoesfera, como portadoras de normas morais particulares,

28

APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 71. 29

Cf. Ibid., p. 69-72. “Há dois caminhos para minimizar ou evitar esses efeitos colaterais. Um deles consiste em

desenvolver a tecnologia num sentido que poupe a natureza ao máximo (através da economia de energia, por

exemplo). O outro caminho sugere a renúncia parcial e até total, em alguns casos, das tecnologias com alto

potencial de risco”. GRONKE, Horst. Deveres de responsabilidade para com a natureza? Uma nova tentativa

de fundamentar uma ética da natureza da perspectiva da Ética do Discurso. In HERRERO, Francisco Javier e

NIQUET, Marciel. Ética do Discurso: novos desenvolvimentos e aplicações. Belo Horizonte, S/E, 2000, p. 226. 30

Cf. APEL, op. cit., p. 72-73. 31

Cf. Ibid., p. 73-74. 32

Ibid., p. 74. Sua impossibilidade, como logo será apresentada, deve-se à irracionalidade de algumas

perspectivas filosóficas que desmobilizam (ou negam) uma fundamentação última da ética na era da ciência e da

tecnologia.

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mas sem responsabilidade universal, portanto, restrita às suas particularidades.33

Ora, as crises

ecológicas, financeiras, armamentistas e políticas estão referidas à macroestrutura, porque

vinculadas a rede global. Neste sentido, é possível conferir à micro e à mesoesfera

responsabilidade pelos danos em escala planetária? Perante o assustador cenário de

degradação do universo, é quase impossível dar uma resposta moral para esses problemas

quando algumas racionalidades interceptam a razão prática, quando “com seus devaneios

teórico-práticos impedem que a razão prática se responsabilize da ameaça universal em que

estamos submetidos. O denominador comum a essas correntes consiste, pois, em privar de

responsabilidade a razão prática”.34

Diante desta situação-problema (de carência e abnegação de uma ética racional) não

há como negar a tendência de universalização da história, porque toda a sociedade, com seu

modo de produção e tecnologia, se universalizou; a humanidade vive hoje sua terceira

revolução industrial, com o sistema de informatização e comunicação mundial. E todo este

avanço foi possibilitado pelo desenvolvimento da técnica e da ciência, que tornou a sociedade

em constante relação planetária. Acreditou-se que a técnica e a ciência, desde o

Renascimento, iriam revolucionar o mundo e as relações humanas, como também possibilitar

o progresso moral e material da humanidade. Todavia, provocaram uma profunda decepção

para humanidade, principalmente para as civilizações desenvolvidas (europeias), aumentando

o potencial de destruição da vida,35

ainda que também se reconheça suas relevâncias para o

homem: no campo da medicina, da tecnologia e informatização. Por isso, os desafios dos

homens não pertencem a grupos minoritários, mas a toda sociedade mundial, capaz de

responder pela sua ação.36

Assim, a humanidade está diante de um problema ético comum, o

que isenta qualquer tentativa de postulado moral de fundamentação subjetiva ou relativista.

Também a globalização, regida pelo neoliberalismo, impôs um desafio ético em

âmbito político, no que se refere à competitividade desleal, à hegemonia de países sobre

aqueles subdesenvolvidos, à coação nas relações financeiras e culturais, como também à

imposição (ou condicionamento) de direitos em Estados independentes, embora também a

globalização tenha proporcionado o desenvolvimento da democracia e das questões sobre os

direitos humanos e, fundamentalmente, da liberdade de expressão e da tecnologia. Ora, este

novo fenômeno mudou as relações do mercado e do capital, assim como a natureza do

33

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 30-31. 34

Ibid., p. 31. 35

Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel ao borde de la modernidad. ANTHROPOS 183 (1999), p. 35. 36

Cf. Ibid., p. 35.

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trabalho e suas novas exigências, como também o papel do Estado, inserindo a humanidade

em uma rede de comunicação internacional. O fato, no que se pode presumir, é que “o homem

tornou-se refém da técnica e, ao mesmo tempo, produto dela”,37

refém da produção, da

economia e do capital: é o homem que, constantemente, procura adequar-se à tecnologia e não

o contrário.38

Todo este investimento, em grande escala, gerou um vazio ético na sociedade

industrial e a corrupção dos valores, que sustentavam a vida das espécies.39

Em suma, com a

universalização da história e da sociedade e com o avanço da ciência e da tecnologia –

embora provedora de bens para a sociedade, como o avanço das ciências químico-biológicas,

físicas, computacionais, energéticas e mecânicas – não há como negar a necessidade de uma

ética racional de responsabilidade solidária, capaz de responder aos problemas mais urgentes

da humanidade.

Esta nova urgência, de uma ética solidária e global, não pode fundamentar-se,

segundo Apel, nos parâmetros das éticas tradicionais ou historicamente hegemônicas, pois

elas não oferecem um suporte necessário para pensar a civilização planetária. Ao contrário,

ficam reduzidas às relações privadas e de poder. Apel propõe uma macroética da

solidariedade histórica “que seja capaz de produzir uma consciência cosmopolita de

solidariedade e de recuperar a primazia do político no contexto de um mundo globalizado e

ameaçado por um colapso ecológico e social”.40

Segundo Apel, a ética solidária consiste num postulado moral que, fundado na razão

prática, prescreve uma atitude comunitária aos indivíduos e, por isso, isenta o indivíduo de

postular qualquer normativa em benefício próprio, a não ser referida à comunidade humana.

Somente uma moral transubjetiva pode trazer respostas factíveis para o mundo

37

MAIA, Nayala. Papel da filosofia no mundo contemporâneo: filosofia x tecnologia. SYMPOSIUM (1998), p.

51. 38

“A ética do discurso considera a racionalidade técnico-científica e a civilização que daí provém uma grande

conquista para a humanidade, porém inadequada, para responder às questões básicas que dizem respeito à

responsabilidade do ser humano precisamente em face dos novos problemas gerados por esta civilização. O

homem contemporâneo é fascinado pelas novas possibilidades abertas por essa racionalidade do sucesso e da

eficácia, mas tornou-se muitas vezes cético perante a exigência de responder racionalmente aos desafios

normativos que emergem, hoje, no plano de sua vida planetária e, portanto, tende a reduzir a racionalidade

humana à racionalidade instrumental, atualmente hegemônica. A ética do discurso emerge nesse contexto como

um momento forte de autoreflexão crítica da civilização técnico-científica e, enquanto tal, como uma energia

intelectual e espiritual fundamental nesse contexto societário relativista e cético”. OLIVEIRA, Manfredo Araújo

de. Desafios Éticos da Globalização, p. 201. 39

Cf. HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 164-165. 40

OLIVEIRA, op. cit., p. 176.

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contemporâneo. Ao contrário de um ethos contratual, o ethos comunicativo consensual,

solidário, evidencia-se como um ethos verdadeiramente moral.41

A ética solidária, contra o episódio da descarga da bomba atômica sobre Hiroshima –

que atingiu a população em grande massa, com minúsculo remorso de problema moral –,

“deve estar em condições de universalizar o amor ao próximo, no sentido do amor aos mais

distantes”,42

como afirma Apel. Por isso, como apresentado, a situação-problema poderia

aproximar os homens, no sentido de criar uma solidariedade entre eles, já que todos estão

atingidos pela mesma situação. Com isso, poder-se-ia reduzir os conflitos entre os homens,

abandonar os interesses particulares e garantir a sobrevivência de todos, que é o interesse

comum da humanidade.

Nesta perspectiva, a Ética do Discurso, como ética da responsabilidade, tem a

finalidade dupla de pensar os problemas de uma implementação moral sob as condições de

coerções objetivas sistêmicas e de propor respostas éticas ao desafio das coerções objetivas.

Cabe, então, arquitetar uma ética de corresponsabilidade global onde todos os seres humanos

possam responder, coletivamente, pela ação do homem no universo. Esta empreitada requer

um sistema ético-filosófico que esteja acima das instituições ou dos subsistemas da sociedade

e, por isso, contrária às morais de responsabilidade individual ou institucional: a consolidação

de uma corresponsabilidade em detrimento de uma responsabilidade individual.43

1.3 Posições teóricas que desafiam a fundamentação de uma ética racional

Apresentada a situação do ser humano como problema ético, referido à sua real

situação histórica e natural, como também a paradoxalidade da situação ética, marcada pela

exigência e abnegação de sua efetivação no mundo da ciência e da tecnologia, Apel mostra a

necessidade de uma ética racional de caráter intersubjetivo e universal. Não obstante, na

tentativa de elaborar uma fundamentação filosófica para a Ética do Discurso, identifica reais

perspectivas filosóficas que desmobilizam seu projeto arquitetônico filosófico. Por isso,

explicita, analisa e ataca tais perspectivas na tentativa de mostrar suas “irracionalidades” e,

41

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 20. 42

APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 162. 43

Cf. Id., Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia: uma reflexão

filosófica sobre o processo de globalização. In HERRERO, Francisco Javier e NIQUET, Marciel. Ética do

Discurso: novos desenvolvimentos e aplicações. S/E. Belo Horizonte, 2000, p. 201-202.

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com isso, isentá-las de qualquer possibilidade de fundamentação última de uma ética

responsável e solidária.

1.3.1 A moderna filosofia analítica

Segundo Apel, Aristóteles constatou que a linguagem não constava apenas de

orações enunciativas, mas também de orações imperativas.44

Com as teorias dos atos de falas

esta concepção adquiriu um desenvolvimento ainda mais amplo. As orações enunciativas não

constam somente de uma parte proposicional (que representa estados de coisas), mas também

de uma parte performativa (que determina a força ilocucionária). Deve-se a Austin e Searle,45

como observa Apel, o desenvolvimento desta concepção, cujas orações contêm a dupla

estrutura performativo-proposicional.46

Para Apel, isto possibilita afirmar que “toda

proposição implica, ao menos implicitamente, uma atitude comunicativa, que nos relaciona

com os outros, e uma atitude semântico-referencial, que nos relaciona com algo do mundo”.47

Esta concepção é de suma importância porque considera que é pela dupla estrutura

performativo-proposicional “que podemos perceber os pressupostos pragmáticos implicados

em toda proposição semântica”.48

Assim, a linguagem adquire uma auto-reflexividade cuja

ação se prescreve pela mediatização proposicional de todo sentido, “sendo performativamente

44

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 233. 45

Para Austin, a ação linguística é composta de atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Searle

procurou desenvolver as ideias de Austin ao pressupor que toda aprendizagem de uma língua implica na

aprendizagem das regras de comportamento. Dessa forma, toda língua está caracterizada por um conjunto de

convenções que prescreve, por conseguinte, seu sistema de regras. E são essas regras que ditam a similaridade

entre o fazer e o dizer. Portanto, todo ato de fala pressupõe uma instituição social de linguagem. Cf. OLIVEIRA,

Manfredo Araújo de. Sobre fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 47. Para Apel, a famosa

metacrítica de Searle à crítica da filosofia analítica e à falácia naturalista contém alguns erros: Searle aceita a

independência entre o uso dos enunciados e seu significado. Com isso, Apel entende que Searle aceita a dedução

lógica de proposições a partir de proposições: chega-se a enunciados valorativos a partir de enunciados

descritivos. Para Apel, a tese da independência soa muito estranha pelo fato de Searle conceber reciprocidade

entre os enunciados e os atos de fala. Também, para Apel, é confuso deduzir enunciados normativos a partir da

descrição de feitos institucionais, como propõe Searle. Pois ele não percebe que há uma dupla opção diante de

tais normas constituídas empiricamente: pode haver aceitação pelo seu caráter obrigatório (por emitirem valor

para alguns) e também não aceitabilidade (por não representarem valor para outros. Neste caso, algumas pessoas

somente poderão identificar tais normas, ou seja, algumas pessoas podem descrever e identificar tais normas,

mas não sentir-se obrigados a observância). Apel nota não haver distinção, em Searle, entre dedução de

enunciados normativos e dedução de enunciados de dever hermenêutico e, por isso, comente erros ao apresentar

sua metacrítica. Entretanto, para Apel, a tese de Searle em afirmar que a derivação das consequências normativas

dos atos de fala consiste na linguagem, que é a condição de possibilidade de toda descrição de feitos e normas

lógicas, é positiva. Há, então, para Apel, a necessidade de uma interpretação filosófica transcendental dos atos de

fala, de possibilidade de normatização. Como propõe Searle, a linguagem está em referência aos atos de fala. Cf.

CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 116-118. 46

Cf. APEL, Karl Otto. Semiótica filosofica. Trad. J. de Zan. Buenos Aires: Editorial Almagesto, 1995, p. 100. 47

HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 167. 48

Ibid., p. 168.

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sua condição transcendental de possibilidade, e que o logos da linguagem natural só pode ser

adequadamente definido por ambos os significados: o performativo e o proposicional em

unidade”.49

Não obstante, para Apel, a parte performativa não pode referir-se somente às

condições de verdade, mas às condições de validade, enquanto tiver regida pela condição de

aceitabilidade. E não somente a parte performativa, mas as duas devem pressupor as

condições de validade e aceitabilidade. Caso a dupla estrutura performativo-proposicional se

referisse apenas à condição de verdade, nada mais estaria que submersa numa falácia

abstrativa. É neste sentido, de modo geral, que Apel trava uma discussão com a filosofia

analítica, na tentativa de especular o problema do significado das orações. Pois, para ele, a

filosofia analítica reduziu-se em explicar somente as condições de verdade das proposições e

esqueceu-se das condições de validação e aceitabilidade.50

Nesta perspectiva, segundo Apel, a filosofia analítica traz, dentro do seu estatuto

epistemológico, uma ambiguidade: de um lado, ela considera “científico” somente os

pressupostos que obedecem a seu estatuto de averiguação e verdade, que é próprio da ciência,

sob seu método objetivo-elucidativo, por um método objetivo que exclui a visão de mundo.

Identificada pelos alemães como positivismo lógico, devido o Círculo de Viena,51

a filosofia

analítica – que hoje predomina em grande parte do mundo ocidental – orienta-se, pelo modo

próprio de ciência, pela elucidação do universo humano e sua cultura sob forma matemática

ou enquadrada dentro dos pressupostos matemáticos possíveis; de outro lado, o método

utilizado pela filosofia analítica concentrou-se na “análise” da verdade, não do estado das

coisas objetivas, como postulado pelas ciências, mas à linguagem da qual se fala dessas

coisas.52

Portanto a filosofia analítica não fala das coisas objetivas, mas da linguagem (no seu

49

HERRERO, Javier. Ética do Discurso, p. 168. 50

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 233-235. 51

A vida intelectual de Viena se caracterizava, em grande parte, pelos seus vários Kreise ou círculos: grupos de

discussão que debatiam as teorias dos principais pensadores da cidade. Somente pessoas convidadas poderiam

participar das reuniões, o que nunca aconteceu com Karl Popper. Muitos foram os personagens famosos do

Círculo, como Moritz Schlick, Carnap, Otto Neurath, Olga Neurath, Hans Hahn, Russel. O positivismo lógico

foi um movimento pautado pela rigidez lógica e pelo progresso da ciência em detrimento das idéias antigas da

filosofia, de caráter metafísico. Para os positivistas, a matemática, assim como a lógica, destruía todo e qualquer

conteúdo descritivo. O personagem mais influente do Círculo fora um pensador que não se tornara membro do

grupo, o filósofo Ludwig Wittgenstein. Kurt Reidemeister (1924 ou 1925), ao ler o Tractatus, propõe ao Círculo

um profundo estudo e comentário acerca da obra. Dessa maneira, o Tractatus passou a ser estudado entre os

positivistas vienenses, que encontraram nesta obra os argumentos sólidos sobre as questões procuradas. Esses

positivistas também acreditavam que Wittgenstein tivesse explicado as verdades da lógica e da matemática,

reduzindo-as a tautologias, destituídas de qualquer conteúdo descritivo. Cf. GOLDSTEIN, Rebecca.

Incompletude: a prova e o paradoxo de Kurt Gödel. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo: Companhia das Letras,

2008, p. 62-86. 52

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação. Trad. Paulo

Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 33-35.

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sentido lógico-semântico) das coisas objetivas: ela se prende à estrutura lógica da linguagem

para, daí, atribuir sentença acerca das coisas, em detrimento da coisa em si mesma, no seu

estado real.

Por isso, a filosofia analítica (regida pelos recursos da palavra) constituiu-se, na

perspectiva do pensamento de Apel, como uma filosofia da mente humana: o homem tem

segurança de descrever o mundo e suas situações possíveis pelo uso estrito da palavra, pelo

uso da linguagem. Dessa forma, é conferida à mente humana, pelo uso dos conceitos e

pensamento, a tarefa de falar das coisas a tal ponto de afirmar que a intencionalidade da

mente é originária.53

Assim, a filosofia analítica, por meio das palavras, procura tornar

público o que advém da mente, externar o que procede de atos internos e, dessa maneira,

ordenar, duvidar, perguntar etc. Isso nada mais é, segundo Apel, que uma falácia abstrativa:

“ao assinalar a semelhante concepção das relações entre linguagem e pensamento, a conclusão

é inequívoca: a filosofia da linguagem é um capítulo da filosofia da mente”.54

Dessa forma, para Apel, é impossível fundamentar uma ética racional sob o estatuto

da filosofia analítica. Esta tarefa é inviabilizada, particularmente, por três premissas

(reciprocamente independentes) da filosofia analítica, que precisam ser combatidas. Essas três

premissas caracterizam a argumentação da meta-ética linguístico-analítica, a saber: a) a partir

de feitos não é possível derivar nenhuma norma; b) normas objetivas podem derivar de

constatações empíricas ou de inferências lógicas; c) a validade precisa equiparar-se à

dedução lógica de proposições a partir de proposições.55

A primeira sustenta a

impossibilidade de garantir prescrições a partir da descrição de algo, ou se seja, do que é para

o dever ser. Qualquer tentativa contra este argumento conduz a uma falácia naturalista; a

segunda confere validade às normas somente a partir de juízos fáticos examináveis e juízos

normativos mais complexos; a terceira atribui validade somente a partir de um cálculo

proposicional semanticamente interpretado (de linguagem formal).

Estas premissas, segundo Apel, corroboram com duas teses de impossibilidade de

fundamentação ética: a primeira refere-se ao positivismo cientificista; a segunda, ao

racionalismo crítico de Karl Popper.56

A primeira tese resulta das duas primeiras premissas

(contra a falácia naturalista e igualdade da validade intersubjetiva com a objetividade

53

Cf. ACERO, Juan José. La recepción de la filosofía analítica por Apel: El significado y su validez. In

FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 115. 54

Ibid., p. 115. 55

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 127. 56

Cf. Ibid., 128.

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empírica) e, por isso, jamais poderá pressupor uma ética racional de fundamentação última se

a ética somente puder configurar-se, por um lado, de constatações empíricas neutras de valor

e de proposições lógicas e, por outro, não ser possível a derivação lógica de normas

exclusivamente a partir de constatações empíricas. A segunda tese deriva da terceira premissa

(da igualdade da ideia de fundamentação filosófica e científica com os procedimentos de

dedução lógica de proposições a partir de proposições). Aqui, nem mesmo as proposições

normativas ou descritivas podem fundamentar a ética. Ao contrário, somente a lógica

dedutiva pode garantir tal fundamentação.57

Para Apel, Popper pretendia extrapolar o paradigma normativo do método científico

ao tentar construir uma ética relevante. Com isso, destruiu a reflexão sobre os pressupostos

transcendentais do conhecimento. Popper rejeitava a ideia de que uma filosofia crítica da

sociedade estivesse fundada somente nos ditames do ideal metódico das ciências naturais.

Não obstante, sua tentativa de extrapolação, segundo Apel, produziu dois tipos de falácias

abstrativas: a primeira, cientificista-tecnicista, consiste no fato de Popper considerar a ciência

unitária e a tecnologia social, ao mesmo tempo, como fundamentos da racionalidade crítica

na política social de uma “sociedade aberta”. Para Apel, a tecnologia social não pode

fundamentar uma “sociedade aberta”, mas uma sociedade formada por sujeitos e objetos da

ciência, de cientistas manipuladores e indivíduos manipulados, em que a tecnologia social

alcançará seu estágio último de funcionamento ao manipular as experiências repetíveis, de

acordo com os fins estabelecidos. Ao contrário, a tecnologia social não pressupõe que suas

experimentações estejam abertas a um conjunto de sujeitos, responsáveis, capazes de

participar do processo e da discussão das normas possíveis.58

“A tecnologia social trata dos

cidadãos como objeto e não como sujeitos ativos, participantes do diálogo e da decisão, ao

converter ‘os sujeitos dos acordos em objetos da explicação empírico-analítica de conduta”’.59

Nesta perspectiva, questiona-se a tecnologia social como fundamento da “sociedade aberta”.

Surge, então, a dificuldade de organizar uma comunidade de sujeitos, como protagonistas do

57

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 128-129. Segundo Popper, como entende Apel, as orações dadas nas

operações lógicas podem estar motivadas por um sentido sociológico que, por sua vez, precisa distinguir-se do

contexto de justificação, o que implicaria num conceito causal de explicação. Esta ideia de fundamentação

popperiana induz a uma tríade positiva, ainda que fraca: a derivação de orações a partir de derivações conduz a

um regresso infinito; as orações precisam estar pressupostas num círculo lógico; algumas premissas precisam

ser adaptadas como um dogma. Esta tríade é de interesse para Apel. Ainda mais basilar para Apel é a concepção

filosófica de Popper segundo a qual toda teoria ou hipótese não pode ser totalmente verificada se antes não for

falseável. Cf. Ibid., p. 129. 58

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I – Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Trad.

Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 16-17. 59

AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?

ANTHROPOS 183 (1999), p. 46.

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progresso, rumo à “sociedade aberta”. Para Apel, somente os sujeitos, pelo acordo mútuo e de

responsabilidade participativa, podem garantir tal tarefa, no sentido de discutir as medidas

sociotecnológicas necessárias; a segunda, método de argumentação crítica, consiste na

elevação dos cientistas como paradigmas de uma “sociedade aberta”. Para Apel, aqui já se

elege os interesses cognitivos estabelecidos, assim como os fins propostos e, com isso, se

ignora qualquer tentativa de discussão intersubjetiva, que esteja além da comunidade dos

cientistas. Como postulado por Popper, na interpretação de Apel, a sociedade nada mais seria

que objeto da ciência, sem qualquer participação nos processos de investigação científica.

Esta concepção encerra-se, particularmente, em um cientificismo tecnocrático: “se converte

em outra forma de cientificismo referente a uma figura de falácia abstrativa quando estabelece

como cânone da argumentação crítica um interesse cognoscitivo com seu correspondente

objetivo prático”.60

Ao contrário, “importaria, portanto, tratar a própria sociedade real –

sujeitos das necessidades e interesses materiais – ao mesmo tempo como sujeito ideal do

conhecimento e da argumentação (do ponto de vista normativo)”,61

como membros ativos de

investigação científica, e não meros expectadores ou objetos das ciências. Embora a sociedade

não seja sujeito efetivo da ciência, também não está reduzida a objeto, deve apresentar-se

como sujeito virtual da ciência, participante de todo processo do conhecimento.62

Jamais os

problemas de uma “sociedade aberta” podem ser resolvidos com base nas disposições

científicas e tecnológicas, como requerido por Popper.63

Com esta concepção, segundo Apel,

a filosofia popperiana se reduz a um cientificismo.

Quanto ao positivismo cientificista (ou positivismo lógico), segundo Apel, sua

fundamentação está instaurada num mundo factual de linguagem descritiva e construtiva, de

uma linguagem de cálculo científico objetiva, no qual pretende dizer das ciências e da

sociedade.64

Pois, para Carnap,65

a linguagem deve pautar toda reflexão filosófica acerca das

coisas e não pertence a ela a preocupação de comprovar ou não suas proposições. Para Apel,

60

AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?, p. 46. 61

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 21. 62

Cf. Ibid., p. 18-23. 63

Para Apel, a “sociedade aberta” está além de uma comunidade científica argumentativa. Com isso quer-se

isentar a sociedade de mero objeto, fixada nos moldes e pretensões dos métodos científicos. Em nenhum

momento os interesses de uma comunidade científica podem garantir os mesmos interesses da sociedade ou

pressupor que esta está representada por aquela. 64

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 51. 65

“Carnap reconstrói, em um primeiro momento, os objetos ‘autopsicológicos’ (que constituem a subjetividade),

e depois, em um segundo momento, os objetivos físicos, resultantes da combinação lógica dos dados sensíveis.

Em um terceiro momento, vêm os objetos ‘heteropsicológicos’ (as outras pessoas, isto é, o mundo intersubjetivo)

e, em um quarto, os objetivos culturais (éticos, estéticos, políticos etc.).” DELACAMPANGE, Christian.

História da Filosofia no século XX. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 107.

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esta concepção bloqueia a relação entre a semântica lógica e a histórico-hermenêutica das

ciências humanas, o que também impossibilita o acordo mútuo entre os sujeitos: “isso ocorre

porque ele [Carnap] com Russel e com o Wittgenstein da fase inicial, tornou sua ideia

metodológica de ciência dependente do pressuposto de uma linguagem unificada objetivista já

produzida”.66

O positivismo mantém todo e qualquer controle da sua análise por uma

linguagem de descrição objetivista. Assim Carnap procura fundamentar a ciência empirista e,

com isso, dizer do comportamento humano, que está referido ao caráter da linguagem.67

Assim, como entende Apel, o positivismo, de acordo com sua epistemologia, substitui os

modos conteudísticos pelos modos formais, de proposições analíticas; substitui o naturalismo

pela linguagem-coisa universal. Com isso, obstrui as implicações metafísicas, como pretende

Carnap.

No entanto, segundo Apel, não há como assegurar uma total isenção dos

pressupostos metafísicos.68

Carnap “procurou inicialmente validar os critérios da ‘sintaxe

lógica’ e do princípio verificativo, cada um para si e até certo ponto em virtude própria”.69

Mas, com isso, mostrou que a “sintaxe lógica” pressupõe uma semântica e que os fatos

pressupõem uma convenção linguística. Abre-se um questionamento sobre o critério de

sentido, que não se encerra em uma linguagem lógica formal. Não obstante, Carnap (em

Testability and Meaning, 1936/37) havia proposto “como critério de sentido a tradutibilidade

em uma linguagem artificial empirista, ou seja, uma linguagem na qual se pudessem formar

[...] apenas as proposições das ciências naturais, e exatamente elas”.70

Para Apel, Carnap

introduz uma pergunta acerca do critério de sentido ao pressupor a verificação das

proposições científicas e, com isso, uma decisão convencionalista: “dessa forma, pode-se

dizer que o fundamento da crítica teórica feita à metafísica perdeu-se em meio à passagem do

problema da verificação para a semântica construtiva”.71

Esse reconhecimento, pelo uso

semântico, aconteceu quando Carnap, envolto pelo behaviorismo, questionou a verificação da

linguagem científica por meio de observações. Após, tal convencimento fora alcançado com o

66

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 53. 67

Cf. Ibid., p. 51-54. 68

Cf. Id., Transformação da Filosofia I, p. 363. 69

Ibid., p. 364. 70

Ibid., p. 367. 71

Ibid., p. 367.

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trabalho de Tarski, sobre o conceito de verdade.72

Carnap, então, convence-se que a

linguagem científica estava estruturada pela sintaxe, assim como pela semântica.73

Ao aderir à semântica, Carnap construiu “uma metalinguagem semântico-referencial

que permite às ciências empírico-behavioristas fazer do sentido pragmático objeto de uma

referência semântica de proposições”.74

Segundo Apel, Carnap titulou esta retomada como

pragmática formal, que tem a finalidade de evitar a auto-reflexão das proposições e de

conferir validade a intersubjetividade. Para Apel, esta estratégia procura superar a lógica

matemática pela linguagem semântico-pragmática. Não obstante, o conceito pragmático

instaurado por Carnap, como entende Apel, nada mais se transformou que um indicador de

problemas psicológicos subjetivos da lógica semântica, não podendo referir-se à justificação

lógica ou à dimensão intersubjetiva da linguagem.75

1.3.2 A lógica da ciência de Wittgenstein

Segundo Karl Otto Apel, o primeiro Wittgenstein, como apresentado no Tractatus

lógico-filosophicus, compreende as orações como funções de verdade de proposições

72

Para Apel, Tarski criou uma teoria da verdade como correspondência que postulava isentar-se do caráter

ontológico-metafísico e epistemológico. Com isso, Tarski pressupõe uma interpretação lingüística dos

fenômenos. Tarski evita as teorias da filosofia tradicional, como também os problemas da linguagem ordinária

relacionadas com a indeterminação do significado. Tarski prescreve uma definição formal da verdade

proposicional por meio da semântica. Para Apel, esta definição serviria somente para um conceito de dedução da

lógica semântica e, por isso, acaba por pressupor uma teoria epistemológica da verdade. Para Apel, portanto, é

problemático supor que a linguagem artificial tenha sentido e que possa ser aplicada a fenômenos, pelo simples

uso da linguagem científica. Também para Apel, é profundamente inconcebível o conceito de cumprimento da

semântico-lógica, de proposições gerais existentes. Segundo este conceito, pressupõe-se que objetos abstratos

(como unicórnios) possam ser identificados no mundo real. Segundo Apel, aqui, volta-se ao problema da teoria

fenomenológica da verdade, pois esta abstração sintático-semântica de Tarski nada mais implica que uma falácia

abstrativa. Para Apel, se a mera referência semântica sustentasse uma teoria da verdade, a dimensão pragmático-

interpretativa do conhecimento (do acordo intersubjetivo) estaria isenta de qualquer possibilidade. Nesse sentido,

para Apel, não pode a concepção sintático-semântico de Tarski obstruir a dimensão pragmático-transcendental

da linguagem, uma vez que ela é a condição constitutiva da possibilidade e validade do conhecimento

intersubjetivo. A teoria da verdade de Tarski também encontra outro problema, segundo Apel, ao pressupor uma

interpretação pragmático-semântica pela aplicação da teoria científica de linguagem artificial, ao tentar eliminar

a linguagem natural: ao recusar a linguagem natural, a verdade estaria fundada puramente pela via a priori, de

proposições semânticas. Ora, é impossível conceber tal concepção, uma vez que a linguagem lógico-semântica,

artificial, dependa da linguagem natural para sua compreensão e aplicabilidade interpretativa no mundo. Assim,

torna-se necessário um acordo entre os cientistas a fim de interpretar, com a linguagem natural, a linguagem

artificial. Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 351-356. 73

“A ‘sintaxe’, como doutrina da formação dos signos e da relação que estabelecem entre si, e a ‘semântica’,

como doutrina da relação dos signos com os objetos, foi então complementada – pela invocação de Ch. S. Peirce

– por uma ‘pragmática’, que tem como tema o uso dos signos pelas pessoas na situação da práxis vital (ou seja,

na situação de emissores ou de receptores de mensagens)”. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p.

370. 74

COSTA, op. cit., p. 293. 75

Cf. Ibid., p. 294.

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elementares ou, de outra forma, como proposições que representam estados de coisas: “a

proposição mostra como as coisas se passam se é verdadeira”;76

assim como ela “mostra a

forma lógica da realidade”.77

Neste sentido, conforme Apel, “o primeiro Wittgenstein só

compreendeu as proposições da linguagem em uma ótica lógico-matemática da linguagem e

com referência a objetos ou estados de coisas”.78

As proposições têm a função de reproduzir

as relações dos objetos externos (estados de coisas), fundadas pelas relações internas dadas

pela linguagem. Dessa forma, “a comunicação somente poderia ser entendida como

codificação, transmissão e decodificação das intenções de sentido privadas, pré-linguísticas,

sobre a base de uma estrutura profunda totalmente independente”.79

Não há, neste modelo,

como entende Apel, lugar para a reconstrução da história da linguagem e compreensão do

mundo fundada pela comunicação entre os sujeitos, uma vez que a comunicação torna-se

desnecessária para a compreensão do sujeito e do mundo. Ao contrário, a linguagem somente

reproduz mundo.80

Já o segundo Wittgenstein,81

para Apel, transita da filosofia analítica da linguagem

da metafísica do atomismo lógico para o convencionalismo, que não se prescreve num

sistema ontossemântico da linguagem ideal, mas, ao menos, pelo uso de sinais empregado

pelas pessoas: as regras dependem da convencionalidade dada entre as pessoas, e tais regras

são pensadas pelo uso que os homens fazem delas.82

Nesse sentido, “para cada palavra, como

para cada ferramenta, podemos dizer que conhecemos a sua significação quando conhecemos

o seu uso. Em outras palavras, quando conhecemos o conjunto das regras que regem esse

uso”.83

O segundo Wittgenstein, portanto, abandona o atomismo lógico do primeiro, assim

76

WITTGENSTEIN, Luidwig. Tratado Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas. Trad. M. S. Lourenço.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, n. 4.022. 77

Ibid., n. 4.121. 78

COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 288. 79

Ibid., p. 289. 80

Cf. Ibid., 289. 81

“Em lugar da lógica da linguagem monolítica inicial, o segundo Wittgenstein fala de muitos ‘jogos de

linguagem’ diferentes, cada um com suas regras próprias. No primeiro Wittgenstein, o contra senso (por assim

dizer) interessante, característico da filosofia, deriva da violação das regras que ditam os limites de toda

significabilidade; no segundo Wittgenstein, o contra-senso interessante resulta de confundir as regras de um jogo

de linguagem com as de outro. (Comum aos dois Wittgenstein é a crença que todos os problemas filosóficos

emergem de confusões sobre sintaxe). A visão homogênea de uma só linguagem, com um conjunto de regras,

que confortou os positivistas, deu lugar a um pluralismo, com tintura pós-moderna, de jogos de linguagem. O

segundo Wittgenstein passou a enfatizar muito mais os aspectos sociais do cumprimento das regras. As regras

estão corporificadas em formas sociais de comportamento (também atraente à sensibilidade pós-moderna).”

GOLDSTEIN, Rebecca. Incompletude, p. 85. 82

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 45-46. 83

DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no século XX, p. 64.

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como procura distanciar-se do solipsismo metódico da filosofia tradicional, ao tentar romper

com uma linguagem privada.84

Ora, ao recusar os critérios da metafísica, como as condições subjetivas de

possibilidades objetivas, para os sinais linguísticos, Wittgenstein funda os jogos de linguagem

como respectivas formas de vida. Os jogos de linguagem têm a função de ser elo entre a

linguagem e a realidade. Pois Wittgenstein havia descoberto que as relações estabelecidas

pela semântica não poderiam representar a realidade e que o jogo de linguagem como

mediação entre semântica e realidade também continuaria sem qualquer representabilidade.

Por isso, os jogos de linguagem, na concepção de linguagem como veículo universal,

adquirem “características não-semânticas como as ligações entre diferentes atos de

linguagem, a relação de tais atos com o seu contexto etc.”85

Para Apel, nesta concepção filosófica do segundo Wittgenstein, de não fundar-se no

postulado metafísico – seja para o significado dos sinais ou para a validade das regras – “o

‘jogo de linguagem’, como horizonte de todos os critérios de sentido e validade, deve possuir

uma posição de valor transcendental”.86

E, por isso, é possível dizer que os indivíduos, como

seres de linguagem, estão condenados ao entendimento e conhecimento das coisas, e tomam a

convenção como pressuposto necessário de todo entendimento linguístico e validação

normativa. Por sua vez, como entende Apel, todas as formas de linguagens e de vida somente

poderão alcançar entendimento se as meta-regras ou linguagens pertencerem a um jogo de

linguagem transcendental da ilimitada comunidade de comunicação.

Não obstante, sem entrar no mérito de conceber a dimensão transcendental como

doutrina de Wittgenstein, Apel aponta algumas dificuldades que podem ser encontradas no

interior da ideia de jogos de linguagens, caso ela cumpra a função transcendental: ao entender

que os jogos de linguagens dados devam apenas ser descritos e não modificados pelo

84

Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 84. 85

HINTIKKA, Merrill B. e HINTIKKA, Jaakko. Uma investigação sobre Wittgenstein. Trad. Enid Abreu

Dobránszky. Campinas: Papirus, 1994, p. 282. “Wittgenstein defende no Tractatus que todas as regras da lógica

devem ser formuladas de modo puramente formal (sintático), porque essas propriedades formais das nossas

sentenças constituem tudo o que é imprimível na linguagem. De um modo semelhante, nas Investigações

Filosóficas ele se atém à ‘gramática’ externa dos jogos de linguagem porque este é o único aspecto desses jogos

que pode ser expresso na linguagem. Todo uso da linguagem pressupõe certos jogos de linguagem e constitui um

lance em algum jogo de linguagem. Esses jogos são pressupostos quando se faz algum uso da linguagem. Por

conseguinte, não podemos na nossa linguagem expor teoricamente os jogos de linguagem que essa linguagem

pressupõe, ou dizer o que aconteceria se, e.g., suas regras fossem alteradas. A semântica é inefável na filosofia

tardia de Wittgenstein tanto quanto na inicial”. Ibid., p. 282. 86

APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 48.

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filósofo,87

permanece a mesma convicção da filosofia analítica, próprio do empirismo lógico

e, por isso, estaria isenta da dimensão transcendental. Neste sentido, a observação e descrição

dos jogos de linguagem estariam refém de outro jogo de linguagem (objetivo) e “se esse

último jogo de linguagem tivesse que ser descrito, ele pressuporia novamente um jogo de

linguagem (ainda) não dado, e assim por diante, ad infinitum”.88

Este problema estaria

corroborado caso se entendesse os jogos de linguagem como condições subjetivas de

possibilidade da descrição do mundo. Em síntese, para Apel, não é possível pensar os jogos

de linguagem de Wittgenstein isentos de contradições.89

Essa observação é sustentada no paradoxo identificado na filosofia de Wittgenstein:

se os jogos de linguagens e respectivas formas de vidas, como fatos dados, devem ser os

últimos horizontes reguladores quase-transcendentais da compreensão de sentido, como

entender que eles podem ser dados como jogos de linguagens, ou seja, ser identificados como

algo?90

Observa-se, então, que os diversos jogos de linguagens e formas de vida necessitam

de um jogo de linguagem transcendental, que não somente observam os seus fenômenos, mas

possibilitam a participação e o entendimento entre eles. Dessa forma, segundo Apel, “já

resulta com forçosa necessidade a questão por uma unidade transcendental dos diversos

horizontes reguladores, que não pode ser dada, mas ao mesmo tempo produz a priori uma

conexão comunicativa entre os quase-empíricos jogos de linguagem dados”.91

Para Apel, o

filósofo, assim como o cientista social, deve participar de todos os jogos de linguagem e, ao

mesmo tempo, distanciar-se de tais jogos, a fim de garantir uma avaliação crítica das formas

de vida (por esse motivo, Wittgenstein se afasta de uma auto-reflexividade da linguagem.

Ainda que ele postule tal condição, ao prescrever que o filósofo deva compreender os vários

jogos de linguagem e compará-los ente si com a sua compreensão de mundo, nada mais

realiza que uma descrição dos jogos92

). Portanto, segundo Apel, há a necessidade de um jogo

de linguagem transcendental para todos os jogos de linguagem. Somente neste caso poder-se-

ia superar o reducionismo ou o relativismo dos jogos de linguagem de Wittgenstein.

87

“O filósofo como crítico da linguagem tem que prevenir-se de que, ao descrever um jogo lingüístico, ele

mesmo utiliza um jogo lingüístico, específico que está ligado reflexiva e criticamente a todos os possíveis jogos

lingüísticos e, deste modo, prevenir-se de que o filósofo também pressupõe que pode entrar em comunicação

com todos os jogos linguísticos ou com as correspondentes comunidades lingüísticas, e isto de forma reflexiva e

crítica”. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 85. 88

APEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna, p. 49. 89

Cf. Ibid., p. 50. 90

Cf. Ibid., p. 57. 91

Ibid., p. 58. 92

Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 260.

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Ora, não há dúvida, para Apel, que a filosofia de Wittgenstein nada mais prescreve

que um relativismo pragmático. Suas teses subsistem sem qualquer relação entre si, mas

fundadas em suas verdades particulares, como últimas instâncias do pensamento humano.

Também, não há qualquer tentativa de averiguação (justificativa) de tais teses. Elas se

encerram em si, sem critérios para sua validade. Wittgenstein simplesmente as denomina

como “formas de vida”, o que nada pode dizer de algo. Para Apel, a sentença filosófica de

Wittgenstein a filosofia surge quando a linguagem não mais consegue entender-se em sua

função, adquire um caráter extremamente ambíguo: por um lado, percebe-se que a filosofia

(metafísica) compreende um jogo de linguagem que não pode funcionar, ou seja, a linguagem

perde sentido e, por isso, não concede verificabilidade do seu uso; por outro, nota-se a

necessidade da filosofia, o que provoca um auto-entendimento da linguagem, mas que

continua presa aos sistemas de proposições sobre o mundo e sobre as perguntas mais

profundas da existência humana.93

A partir daí, surge, então, um questionamento: pode a filosofia, segundo a tarefa

estipulada por Wittgenstein, ser cumprida como mera descrição de jogos de linguagem?

Mesmo admitindo a verdade de tal concepção, o que é excêntrico, não há como entender a

maneira como se chega a um jogo de linguagem sobre os jogos de linguagem, pois os jogos

continuariam independentes, sem comunicação entre eles. Ora, como entende Apel, o jogo de

linguagem filosófico não surge apenas paralelamente ordenado no mundo, mas efetivamente

em confronto com os jogos de linguagens, onde se mantém em constante diálogo com eles.

Por isso, não se deve entender que os jogos de linguagens possam ser compreendidos a partir

deles mesmos.94

Segundo Apel, a filosofia de Wittgenstein chegou ao extremo quando ele “acreditou

ser preciso suprimir também a unidade consciente do problema do sentido e do significado,

em favor da mera descrição do comportamento factual da utilização da palavra”,95

como

descrito na sentença: “quando tudo se passa como se um sinal tivesse denotação, então ele

tem mesmo denotação”.96

Esta sentença, já apontada no Tractatus e depois assegurada na obra

seguinte, não pode ser suficiente como princípio metódico para a linguagem, a não ser, de

forma absurda, para o comportamento dos animais que, em geral, não comporta interligação

93

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 205-206. 94

Cf. Ibid., p. 207. 95

Ibid., p. 208. 96

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico, n. 3.328.

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entre seus signos. Ao contrário, o ser humano é um ser todo interligado.97

Portando, a

tentativa de Wittgenstein, em postular signos isolados, nada mais expressa que um mero

isolamento abstrativo ou jogos regidos por uma sintaxe lógica, que nada diz dos participantes

(humanos) desse mesmo jogo de linguagem. Não é possível reduzir a linguagem ao

significado da palavra, da situação factual da linguagem, pois seria “impossível compreender

de que forma o ser humano é capaz de mediatizar não apenas o significado das palavras a

partir do contexto situacional, mas de mediatizar também uma nova situação, utilizando-se

para isso do significado da palavra ‘como algo’”.98

Segundo Apel, a sentença um mesmo corpo não pode estar em diferentes lugares ao

mesmo tempo está baseada numa análise tautológica das definições de “corpo”. Cabe

perguntar como a linguagem adquiriu tal conceito de corpo. Não pode vir de uma convenção

arbitrária, assim como não pode surgir da junção interna de signos. Ora, a convenção carece

da experiência empírica que, por sua vez, pressupõe as convenções já existentes na

linguagem. O contrário seria a sentença existem corpos e espíritos. Esta, como diria

Wittgenstein na interpretação de Apel, não corresponde a fatos objetivos, mas à convenções

gramaticais já existentes. Das sentenças, a primeira tem aplicação legítima na experiência; a

segunda, num possível erro categorial, apoiada num jogo de linguagem. Desta análise, advém

o questionamento: quais os critérios utilizados pelos analistas para o julgamento do uso da

linguagem? Para os discípulos de Wittgenstein, a própria análise do uso da linguagem “nos

remete, no fim das contas, ao ponto em que brota o mal-entendido que a função linguística

tem de si mesma”.99

Para Apel, “fica fortalecida a tese da escola de Wittgenstein, segundo a

qual o antídoto contra as possibilidades de sedução exercidas pela forma externa da

linguagem pode ser encontrado no próprio uso da linguagem, ou seja, em sua regra lúcida, se

bem entendida”.100

Daí, conclui-se que os fatos observados não devem ser simplesmente

descritos, e que o conteúdo dado pelas palavras não podem isentar-se de uma ordem

ontológica possível. Com isso, não se quer reduzir as coisas a uma ordem objetiva conhecido

de maneira pré-linguística e nem à descrição de situações linguísticas, nem tampouco à

descrição do comportamento do mundo. Todavia, a escola linguístico-analítica de

Wittgenstein ignora a concepção que a linguagem não pode deduzir consequências

97

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 208. 98

Ibid., p. 209. 99

Ibid., p. 211. 100

Ibid., p. 213.

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ontológicas de suas análises, nem mesmo em sentido crítico ou especulativo. Ao contrário,

suas verdades derivam de um auto-entendimento, como postulado pela ciência particular.101

Para Apel, ainda que Wittgenstein tenha substituído as regras semânticas pelos jogos

de linguagem, nada mais incorporou que uma linguagem empirista, uma vez que a descrição

do jogo de linguagem não pressupõe a participação daquele que a descreve. E ao descrever os

jogos de linguagem não se pode assegurar que as regras utilizadas por tal descrição

identifiquem-se com as regras do jogo em si, internamente. Ainda mais veraz é a crítica de

Apel à tese de Wittgenstein de que não há nenhuma semelhança entre os jogos de linguagem.

Para Apel, ao contrário, cada jogo de linguagem proporciona uma aprendizagem que

possibilita a competência para refletir sobre a própria linguagem e a comunicação com os

demais jogos de linguagem.102

Neste sentido, ao invés de “linguagens”, postula-se um jogo de

linguagem ideal, uma comunidade ideal de comunicação: “todos que cumprem uma regra

pressupõem este jogo linguístico ideal como condição de possibilidade e validade de seu agir

e pensar, enquanto agir e pensar com sentido”.103

Ao tecer tais considerações críticas sobre a filosofia analítica de Wittgenstein, Apel

chega a algumas conclusões: a lógica da linguagem, desde Aristóteles, é um fracasso por

induzir uma ordem universal única, como projetada pela lógica formal. Esta aporia provocou

a “impossibilidade da tentativa de uma ordenação ontológica da linguagem e do mundo a

partir de um terceiro local, externo à linguagem”.104

Este problema fomentou novas reflexões

pela necessidade de considerar a ordem efetiva do mundo somente no pressuposto de uma

pragmática de um jogo de linguagem corrente. Por isso, para Apel, os problemas ou

representação do mundo não podem reduzir-se aos jogos de linguagem; não pode o filósofo se

prender à análise particular da linguagem, sem requerer uma ontologia do ser, pois a ontologia

não pode ser substituída por uma análise da linguagem. Em suma, “a ontologia precisa hoje

em dia mediatizar-se por uma filosofia da linguagem, tal como precisou, após o surgimento de

Kant, mediatizar-se pela epistemologia transcendental”.105

Essa mediação consiste num

veículo de cognição crítica, capaz de, com a hermenêutica histórica, fundamentar a verdade

das coisas, sua verificação e aceitabilidade. Portanto, como entende Apel, a filosofia analítica

da linguagem de Wittgenstein reduz todos os problemas ontológicos a uma descrição do uso

101

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia I, p. 210-214. 102

Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 84-85. 103

Ibid., p. 85. 104

APEL, op. cit., p. 215. 105

Ibid., p. 217.

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factual da linguagem. E, por isso, desmobiliza qualquer tentativa de fundamentação de uma

ética linguística intersubjetiva para as sociedades contemporâneas.

1.3.3 O decisionismo de Hans Albert

Segundo Karl Otto Apel, na mesma direção do racionalismo crítico, também Hans

Albert, insigne discípulo de Popper, desmobiliza uma possível fundamentação racional da

ética na era da ciência. Para Albert, como entende Apel, a teoria ética deve ser representada e

fundada em hipóteses, assim como nas ciências empíricas, pois a sustentabilidade da ética

depende da sua veracidade na experiência.106

Dessa forma, as hipóteses morais apresentadas

devem ser comparadas segundo sua capacidade de rendimento, comprovação ou falsidade: a

capacidade ética tem, na experiência, a sua prova, assim como os cientistas testam suas

teorias. Ora, segundo Apel, esta proposta ética, aparentemente, soa como necessária, uma vez

que rompe com os dogmatismos morais e religiosos em busca de um constante diálogo com

as ciências modernas, porém o desenvolvimento de tal princípio ético aponta para um

irracionalismo. Não obstante, Apel reconhece, como pressupõe Albert, que da distinção entre

ser e dever-ser os feitos empíricos são relevantes para fundar normas, mas, diferente de

Albert, Apel acredita que esta relevância só pode sustentar-se, e não de maneira exclusiva, se

advinda de uma situação ética como tal e não simplesmente provocada por feitos empíricos.107

Para Apel, é enganoso pensar a analogia entre a condição hipotética das ciências com

os sistemas morais. O homem pode deixar a hipótese morrer (como pressupõe Popper), se ela

não se adapta na experiência (como acontece na teoria darwinista). Ao contrário, para Apel, o

homem não deve prever a morte dos sistemas morais. É necessário, então, notar “que até o

critério de não realização [da ética] não constitui em todo sentido um critério de exclusão

obrigatório para as normas éticas”.108

Por isso, não é possível fundamentar uma ética por meio

da estratégia de seleção e falsificação de postulados morais, como requerido por Albert. Pois

os indivíduos, por motivos estratégicos ou de sobrevivência, podem negligenciar ou falsificar

princípios éticos, mas isso não quer dizer que tais princípios devam ser sufocados (mortos).

Nesta perspectiva, o decisionismo consiste em assegurar a opção entre uma norma e

outra e que tal opção não pode ser argumentável e, por isso, a vontade não tem razão para

106

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 130. 107

Cf. Ibid., p. 131. 108

Ibid., p. 132.

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preferir algo, como também não pode convencer alguém (argumentativamente) que tenha

tomado uma decisão contrária. Tão grave como esta perspectiva é o fato de Albert e Popper

pressuporem a separação entre conhecimento e decisão, o que reforça a separação entre

cientificismo e moral, como também a isenção da razão crítica para o mundo prático, nas suas

diversas esferas, econômica, religiosa, política etc.109

Isso nada mais provoca que um

irracionalismo ético por obstruir a vida social da reflexão moral. Por conseguinte, para

Albert, somente com a aplicação da razão no mundo prático poder-se-á vencer o

obscurantismo e para isso é necessário a admissão da lógica para a argumentação ética. Dessa

forma, a moralidade caracterizar-se-á por uma racionalidade crítica.110

A aplicação da racionalidade crítica, para uma filosofia moral, pressupõe o seguinte

processo: a) propor diversos sistemas éticos, e todos eles falíveis (falibilismo), de tal forma

que toda proposta ética esteja destinada a combater qualquer dogmatismo (por um processo de

revisão constante dos pressupostos morais). O desenvolvimento ético requer diversas

propostas hipotéticas, revisáveis; b) revisar se as propostas éticas são coerentes, se não entram

em contradição lógica. Este passo está regido pelo princípio de não-contradição; c) sustentar a

existência não apenas de revisão contra uma possível contradição interna de um sistema ético,

109

Para Hans Albert, é impossível fundamentar o conhecimento, assim como a decisão. Tal impossibilidade

surge como crítica ao racionalismo clássico que tem a razão como princípio metodológico suficiente, uma vez

que ela se intitula capaz de alcançar a verdade, a certeza e o fundamento. Para Albert, a pretensão pelo

fundamento do conhecimento encontra um problema frente ao subjetivismo, de supor o verdadeiro como fruto de

decisões subjetivas e, por essa via, alcançar a certeza e segurança das coisas. Mais do que verdade, esta medida

procura segurança e certeza das suas convicções. Para Albert, a pergunta pelo conhecimento implica na reflexão

pela lógica, pela ciência que se ocupa dos argumentos e da sua validade. No interior desta ciência reside a

consequência lógica, que é o ponto seguro de qualquer fundamentação. Não obstante, para Albert, através das

consequências lógicas: não se ganha conteúdo; não se diz nada da verdade pelo argumento dedutivo; o

argumento inválido constitui uma falácia. Ora, o problema ainda maior consiste quando se pressupõe a

universalidade do princípio da razão suficiente, isto porque ao pressupor uma fundamentação universal, também

se pensa na universalidade do conhecimento. Albert considera ser impossível tal pretensão por três razões,

chamadas de trilema de Münchhausen: isso conduz a um regresso infinito; a um círculo vicioso lógico na

dedução; e interrupção do processo em um ponto determinado (suspensão arbitrária do princípio). Para Albert, a

busca de fundamento seguro conduz ao dogmatismo, uma prática humana e social que se justifica pela vontade

de chegar à certeza das coisas. Ao contrário do racionalismo clássico (que pressupõe a verdade e a certeza das

coisas), para Albert, faz-se necessário substituir o princípio da razão suficiente pelo princípio da prova crítica

(na tentativa de questionar todos os enunciados com o suporte de argumentos racionais). A prova crítica

pressupõe a não certeza das coisas e, por isso, o erro, isto é, todo enunciado é falível, assim todas as hipóteses

precisam confrontar-se. Ora, também a ética está isenta de qualquer fundamentação, pois ela também busca

segurança naquilo que se refere aos valores e às normas. As teorias que sucedem os postulados éticos

dogmatizam as normas morais e inviabilizam que a decisão seja criticada pelo conhecimento. Portanto, qualquer

tentativa de fundamentação última deve ser substituída pela crítica racional ilimitada: de submeter alternativas

éticas à prova crítica. Como é propósito de Apel refletir uma fundamentação última, toda esta abordagem de

Albert será combatida e recusada. Pois não é possível, segundo Apel, solidificar a fundamentação no princípio

lógico-sintático-semântico, como pressupõe Albert. Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y

responsabilidad solidária, p. 149-152. 110

Cf. CORTTINA, op. cit., p. 44-45.

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mas à submissão de princípios-pontes “que possibilitam o trânsito entre a ética e a ciência a

fim de que a primeira não seja imunizada”.111

O primeiro de tais princípios é o postulado da realizabilidade. Ele prescreve à

ciência a primazia da moralidade, ou seja, as ciências ditam as normas morais. Dessa forma, a

ciência deve determinar o que deve ser feito, pois a moral está submetida à crítica científica,

de tal forma que o que não se pode não se deve. Como notado, este princípio prescreve limites

ao campo moral e submete-o à avaliação científica: as hipóteses morais, constantemente,

estão sob avaliação do conhecimento crítico científico. O segundo princípio prescreve o

postulado da congruência, pois exige a concordância dos postulados morais com os resultados

da ciência. Como afirma Apel,112

esses dois princípios prescritos por Albert se propõem evitar

a ficção do vazio, quer dizer, a decisão ética está isenta de uma representação imaginativa,

supersticiosa. O terceiro princípio consiste em extrair, com a ajuda das ciências, as

consequências dos sistemas morais (coerentes e congruentes) e compará-las entre si, pois o

critério que sustenta uma decisão moral (conduta) não se refere às fontes dos princípios

morais, mas a sua repercussão na vida social. Para Albert, o critério para julgar as

consequências dos sistemas éticos consiste em medir a satisfação das necessidades humanas, a

eliminação do sofrimento humano, o cumprimento dos desejos humanos, como também as

aspirações humanas intersubjetivas, dadas pela experiência. Com a aplicação desse critério

meta-ético, a ética é submetida a uma prova crítica, onde evita qualquer pretensão ao

dogmatismo e, com isso, encerra-se o processo completo de submissão da moral à prova

crítica.113

Portanto, o racionalismo crítico tem sua fundamentação no decisionismo e exprimi-

se pela tentativa de o homem optar por um critério ético, de tal forma que o seu contrário seja

irracional. Ora, o homem ao optar pelo obscurantismo ou pela racionalidade crítica, já está

submetido numa decisão injustificável. Ao tomar a decisão pela razão, o homem estará

optando pela moral: “esta decisão última [pela razão] denomina Popper moral, precisamente

porque não é justificável mediante argumentos e H. Albert aceita semelhante

denominação”,114

isto é, a deliberação pela racionalidade é uma decisão moral, que constitui a

base da ciência e da ética.

111

CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 45. 112

Cf. Ibid., 46. 113

Cf. Ibid., 46-47. 114

Ibid., p. 47.

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Como apresentado, a fundamentação última da ética consiste na decisão última,

como aponta Albert.115

Todavia, na avaliação de Apel,116

é impossível fundamentar uma ética

a partir de postulados morais hipotéticos. A fundamentação de argumentos não pode consistir

na arbitrariedade de princípios e, ainda mais, não demonstráveis; não pode haver

fundamentação a partir da dedução de proposições. Pois o princípio de prova crítica pressupõe

a validade e legitimidade de qualquer postulado ético, desde que não seja sufocado. Ainda

mais, o exame crítico de Popper e Albert, na tentativa de recusar um fundamento último e

depositar a possibilidade do conhecimento no falibilismo, nada mais acentuou que um

dogmatismo com suas postulações (por acreditar no possível fracasso de todas as vias de

fundamentação do conhecimento), uma vez que não conseguem fundamentar nem

provisoriamente o conhecimento.117

Ao contrário, somente uma autorreflexão é capaz de

fundamentar argumentos éticos. Com isso, há necessidade de considerar as condições

transcendentais de validade intersubjetiva da argumentação, que podem pressupor a lógica, a

coerência, a semântica e a pragmática. Seguramente, há a necessidade de uma comunidade de

argumentação intersubjetiva capaz de legitimar normas universais para a humanidade.118

115

Para Apel, a decisão última (pela razão) condiz com os critérios legítimos da moral, não porque tal decisão

não seja argumentável, mas porque necessita do crivo da vontade: “a inserção de argumentos, por contundentes

que sejam, não pode obrigar a nada a aceitar necessariamente uma opção, porque a negativa é sempre possível; a

vontade tem sempre a última palavra”. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p.

48. 116

Cf. CORTTINA, op. cit., p. 153. 117

Cf. DOMINGUES, Ivan. A questão da fundamentação última na filosofia. KRITERION 91 (1995), p. 38.

Para Apel, a filosofia, hoje, considera uma situação paradoxal a tentativa de defender uma filosofia pós-

metafísica e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma fundamentação última. Ora, é notório para Apel que essas

duas tentativas estão em íntima relação: ao tentar-se uma fundamentação pós-metafísica, necessita-se de uma

fundamentação última. Pois a metafísica, como apresentada pela filosofia tradicional, restringiu-se a uma

fundamentação dogmática, como um saber solidificado na doutrina de Deus. Aqui, Apel compartilha com Albert

no sentido de afirmar que a metafísica racional está presa ao trilema de Münchhausiano, pois ela leva a um

regresso infinito, ao círculo lógico e à crença da evidência das verdades, pela via da razão última. Não obstante,

contesta Apel que a tentativa de uma fundamentação última somente pode inclinar-se se radicada em hipóteses

científicas. Para Popper, assim como para Peirce, tanto a metafísica racionalista (das hipóteses globais), como a

ciência da experiência, não pode alcançar uma fundamentação última. Apel vê-se de acordo em tal crítica, porém

não concorda com a impossibilidade de uma fundamentação última. Ao contrário, segundo Apel, há, de fato,

necessidade de uma filosofia pós-metafísica de fundamentação última e que não esteja radicada na metafísica

tradicional e nem na lógica das ciências. Dessa forma, segundo Apel, contata-se a necessidade de uma

fundamentação última que não seja vítima do trilema Münchhausiano. Cf. APEL, Karl Otto. Fundamentação

última não metafísica? In STEIN, E. e DE BONI, L. A. (Org.). Dialética e Liberdade. Petrópolis: Vozes; Porto

Alegre: Editora da Universitária Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 305-308. 118

Cf. CORTTINA, op. cit., p. 153-154.

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1.3.4 Max Weber: racionalidades e postulados éticos

Para Karl Otto Apel, Max Weber, ao conceber uma “sociologia compreensiva”,

questionou-se sobre possíveis racionalidades que fundavam a ação social, ao saber que tais

racionalidades regiam o modo de pensar e agir do indivíduo. Para Weber, a questão da

racionalidade permitia averiguar o processo de racionalização do Ocidente. Segundo Apel, o

paradigma da racionalidade de Weber estava baseado na racionalidade teleológica, que

compreende a “racionalidade meio-fim”: diante de um ato, o autor, ao visar os fins desejáveis

em torno de um horizonte valorativo, elege meios adequados para alcançá-los e se

responsabiliza pelos efeitos secundários de sua ação.119

Para Apel, tal racionalidade representa o grau supremo da racionalização120

em

Weber que, por sua vez, serve-se da racionalidade valorativa, como pressuposto para a

seleção dos fins. Para a racionalidade valorativa a eleição dos fins e dos meios acontece sem

qualquer preocupação com as consequências secundárias da ação, pois o autor entende que

tais valores são supremos e devem nortear a realização dos atos e, por isso,

independentemente dos efeitos que eles produzem.121

Conforme Apel, a racionalidade valorativa se prescreve, e fundamenta-se, na

concepção kantiana de um dever inevitável, que conduz o indivíduo a praticá-lo de maneira

incondicional, no sentido próprio do imperativo categórico. Esses valores fundam o agir ético

e estão relacionados com o sentido religioso e estético.122

Ora, para Apel, Weber considera

esta racionalidade inferior à racionalidade teleológica pelo fato daquela estar sujeita ao

estatuto de fé pré-racional ou irracional. Neste sentido, as concepções sobre os valores

internos (racionalidade valorativa) se convertem na ética da convicção. Ao contrário, a

racionalidade teleológica, ao pensar os efeitos secundários da ação, converte-se na ética da

responsabilidade. “E é evidente que Max Weber concede à ética da responsabilidade um

119

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 32-33. 120

“A racionalização [...] é o resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à

civilização ocidental. Consiste na organização da vida, por divisão e coordenação das diversas atitudes, com base

em um estudo preciso das relações entre os homens, com seus instrumentos e seu meio, com vistas à maior

eficácia e rendimento. Trata-se, pois, de um puro desenvolvimento prático operado pelo gênio técnico do

homem”. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany S. da Mota.

São Paulo: Cultrix, 2002, p. 121. 121

Cf. APEL, op. cit., p. 33. 122

Cf. Ibid., p. 33.

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maior grau de racionalização que a ética da convicção, embora considere esta última também

como indispensável”.123

Na sua obra A política como vocação, Weber distingue a ética da convicção

(também chamada “ética absoluta”, “ética incondicionada”, “ética cósmica” ou “ética da

intenção”) da ética da responsabilidade.124

E inicia esta distinção ao analisar o papel do

político no meio social. Para Weber, o político necessita de três qualidades para exercer o

cargo confiado pelos seus cidadãos, a saber: paixão pela causa, responsabilidade e

serenidade.125

Essas qualidades legitimam o político a exercer o seu ofício com soberania. E

ao se interrogar sobre qual racionalidade o político deveria agir, Weber responde que somente

poderá ser pela racionalidade estratégica. Pois o político ao crer em uma causa, entrega-se

totalmente a ela e procura agir com responsabilidade, quanto aos efeitos da sua ação. O fato é

que o político precisa estabelecer a relação com a ética. E, por isso, precisa definir, como

afirma Weber, qual ação correta e estratégica deve ser executada.126

Ora, na ética da convicção as ações em si mesmas são boas ou más. Para o autor agir

corretamente, deve evitar qualquer dependência às situações ou circunstâncias, por isso, ele

está desprovido de responsabilidade. Esta racionalidade ética, como analisa Weber, está

estruturada por ordens comuns para todos os homens e para todo lugar ou situação. Weber

inclui nesta racionalidade a ética kantiana e o pacifismo cristão, que interpreta como absoluto

os ditos do Sermão da Montanha (Mt 5,1-12).

Para Weber, quatro dos ensinamentos do Sermão da Montanha apresentam-se como

problemáticos para o político: abandonar tudo, dar a outra face, não resistir ao mal com a

força, e dizer a verdade. Caso estes valores forem assegurados como incondicionais, o político

irá conservar a violência e a decepção diplomática.127

Pois muitas guerras, potenciais ou

efetivas, foram geradas dessa racionalidade.

Não há dúvida que a ética da convicção visa uma humanidade moralmente boa,

inclinada a agir segundo o bem. Todavia, não pressupõe a vontade do sujeito, o que pode

123

APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 34. Grifo nosso. 124

Para Apel, esta distinção é de suma importância para saber qual delas convém à ética argumentativa. 125

Cf. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, p. 106. 126

Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 187-188. Segundo Weber, há duas

maneiras de fazer política: ou o homem vive “para” a política ou vive “da” política. O primeiro coloca-se

totalmente a serviço do bem público, encontra equilíbrio e valor diante do poder, como também tem capacidade

de dar significado às suas ações; o segundo, busca vantagens econômicas e prestígio social. Por isso, sustenta

Weber, o político deve ter uma vida econômica independente de qualquer atividade política ou social, para não

usufruir do bem público. Cf. WEBER, op. cit., p. 64-67. 127

Cf. Ibid., p. 189.

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obstruir a qualidade da ação. Eis então um grave problema para a ética. Pois a qualidade

moral de uma ação depende da vontade do sujeito, e não em atender normativas absolutas,

pela simples execução de normas. Como se observa, então, o ato da vontade do sujeito

imprime o limite entre esses dois postulados éticos. Portanto, “a ética da intenção não

experimenta hesitação alguma, senão que condena toda ação que utilize meios moralmente

perigosos, enquanto que a ética da responsabilidade permite utilizar meios duvidosos, sempre

que com isso se persiga consequências boas”.128

Neste sentido, o político, como representante e responsável pelo povo, tem o

compromisso de pensar as consequências de suas ações. E para isso, poderá utilizar-se de

ações não morais ou de pessoas como meio para atingir o bem comum, pautado em valores

últimos. O problema consiste, na interpretação de Apel, em saber o limite de suas ações ou

estratégias. E, por isso, a ética da responsabilidade corre o risco de reduzir-se a um “puro

pragmatismo”.129

Portanto, Weber, ao optar pela ética da responsabilidade, deixa claro seu

descontentamento com a ética da convicção. Esta é irracional (por prescrever respeito cego às

leis); àquela, racional (por prescrever responsabilidade aos atos assumidos).130

E, por isso,

critica o cristianismo por imprimir e sustentar tal racionalidade: o cristão age segundo o bem e

tudo responsabiliza a Deus, assim como prescrito na obra A política como vocação: “o cristão

cumpre o seu dever e, quanto aos resultados da ação, confia em Deus”.131

Ao contrário, como

afirma Weber na mesma obra (referindo-se à ética da responsabilidade), “devemos responder

pelas previsíveis consequências de nossos atos”.132

Como se observa, a ética da convicção

não se questiona pelas consequências da ação do sujeito.133

Como afirma Weber: nela “há

128

CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 194. (Grifo nosso). Segundo Weber, o

Cristianismo, no seu estatuto ético, primou pela intenção do indivíduo, deixando as consequências de tal ação

nas mãos de Deus. Dessa forma, o Cristianismo (como também a ética kantiana) recorre para a providência como

garantia de manter a racionalidade moral. O homem justo, atribuído de sensibilidade, confia no prêmio diante do

sofrimento. Por isso, a ética da intenção está conjugada por um sentimento moral e razão prática, que pode ser

entendida como um racionalismo cósmico-ético. Cf. Ibid., 194-197. 129

Ibid., p. 198. 130

Cf. FREUD, Julien. Sociologia de Max Weber. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p. 27. Para

Apel, “o conflito entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade (pelas consequências) surge sempre

quando não estão dadas ainda as condições sociais de aplicação para um determinado grau da competência da

sentença moral”. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona:

Paidos, 1998, p. 172. 131

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, p. 113. 132

Ibid., p. 113. 133

Cf. HINKELAMMERT, Franz. Ética de Discurso e Ética de Responsabilidade: uma tomada de posição

crítica. In SIDEKUM, Antonio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação – Modelos complementares. São

Leopoldo: UNISINOS, 1994, p. 93-94. O fato é que Apel assume o modelo da ética da responsabilidade, como

postulado por Weber. No entanto, numa tentativa de superação.

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risco de provocar danos grandes e descrédito, cujas repercussões se farão sentir durante

gerações várias, porque não existe responsabilidade pelas consequências”.134

Para Weber, segundo Apel, o processo de racionalização do ocidente tende para que

a racionalidade teleológica resida com maior ênfase no campo da cultura e da sociedade, em

detrimento dos pressupostos da racionalidade valorativa, que se prende na concepção

subjetiva do indivíduo. Neste processo de racionalização ocidental Weber identifica o

“desencantamento do mundo”. Weber, então, “opôs à moral de princípios a ética da

responsabilidade. A passagem para a sociedade moderna, com o ‘desencantamento do mundo’

exigiria o abandono da moral de princípios em favor de uma ética da responsabilidade

política”.135

Segundo Apel, a análise de Weber sobre as racionalidades é de extrema importância

e relevante porque procura investigar as “ações sociais”.136

Ação social significa, por um lado,

toda e qualquer ação que tem o outro como referência de comportamento. Com isso, se

prescreve uma interação social; por outro, refere-se à racionalidade teleológica, como grau

supremo de racionalização, por referenciar-se aos objetos do mundo exterior. Nesta

perspectiva, para Apel, observa-se que Weber “entende a racionalidade da interação social

como ampliação da racionalidade teleológica técnico-instrumental no sentido da

reciprocidade de ações teleológico-racionais”.137

Assim a ação social, até os dias de hoje, é

desenvolvida, por exemplo, pela teoria matemática e teoria estratégica de jogos, que pode ser

nomeada de racionalidade estratégica.

A racionalidade estratégica é aquela na qual os autores, sustentados pela

racionalidade teleológica, utilizam-se de meios-fins para atender suas próprias finalidades.

Particularmente ela está sustentada por uma reciprocidade da interação estratégica que, por

sua vez, reforça-se pela teoria dos jogos estratégicos. Esta pressupõe uma interação com os

134

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, p. 121. Para Weber, ao distinguir essa duas racionalidades,

não significa que uma isente a outra. Mas há uma larga diferença entre a atitude daquele que se conforma com a

ética da convicção daquele que age segundo a ética da responsabilidade: “quando as consequências de um ato

praticado por pura convicção se revelam desagradáveis, o partidário de tal ética não atribuirá responsabilidade ao

agente, mas ao mundo, à tolice dos homens ou à vontade de Deus, que assim criou os homens. O partidário da

ética da responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do homem [...] e entenderá que não

pode lançar a ombros alheios as consequências previsíveis de sua própria ação”. Ibid., p. 113. Não obstante, para

Weber, o encontro ou harmonia entre essas duas racionalidades confere verdadeira vocação política ao homem:

“Vemos assim que a ética da convicção e a ética da responsabilidade não se contrapõem, mas se completam e,

em conjunto, formam o homem autêntico, isto é, um homem que pode aspirar à ‘vocação política’”. Ibid., p. 122. 135

HERRERO, F. Javier. Ética do Discurso, p. 177. 136

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 35. 137

Ibid., p. 36.

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outros autores de decisão e, por isso, deve “tomar em conta os cálculos de benefícios dos

outros jogadores como condições e como meios dos próprios cálculos de benefícios”.138

Nesta

relação, os controles sobre o resultado de uma ação está em referência aos auto-interesses

competitivos dos outros agentes (estabelecida por uma relação ambivalente). O êxito de uma

ação dependerá da ação esperada pelos outros agentes que, neste sentido, pode reforçar ou

enfraquecer a ação postulada por um autor.

A teoria dos jogos estratégicos, por um lado, prescreve jogos competitivos,

provocados por uma situação de conflito; por outro, jogos não competitivos, onde se

identifica cooperação entre os autores. Para Apel, no contexto dos jogos estratégicos podem-

se presumir elementos comunicativos que agem como veículos de acordos e ajustes entre os

autores, como também, todavia, de interesse e dominação. Por isso, na racionalidade

estratégica de interação social o consenso assume um caráter, na maioria das vezes,

instrumental: “os sócios da interação, na relação recíproca, são sempre somente meios e

condições limites das finalidades solitárias e dos esforços de êxito dos atores

particulares”.139

Segundo Apel, a teoria da interação estratégica, embora não esteja fundada em

princípios éticos, apresenta um sério problema de caráter estrutural e valorativo, que pode ser

contestada com a segunda versão do imperativo categórico de Kant: “Age de tal maneira que

uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e

simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.140

Para Apel, caso se aprove a racionalidade estratégica, não seria possível

fundamentar uma ética de responsabilidade e formação de consenso em prol dos interesses

comuns. Talvez, devido ao perigo em massa que atinge o planeta, fosse relevante uma ética

fundada pela racionalidade estratégica. Assim seria cabível pensar um acordo sobre o

consumo de energia, utilização da matéria prima, combate à poluição, etc. Porém, não seria

possível fundar uma ética racional. Pois, inferir soluções pelas graves consequências ou pelo

medo (de destruição) é irracional.141

A ética seria sempre fruto (provocada) dos problemas

sociais, e não reflexão do agir humano, o que faria da ética objeto dos problemas urgentes do

homem e coagida e resolver problemas, e não geradora de reflexão profunda e regulativa.

138

APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 36. 139

Ibid., p. 38. 140

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.

299. (Coleção Os Pensadores) 141

Cf. APEL, op. cit., p. 38.

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Somente aumentariam as desigualdades e formas de hegemonia dos países industrializados e,

consequentemente, a repressão sobre os países de terceiro mundo. Com isso, não haveria

igualdade e nem responsabilidade no cumprimento de normas e tal ética funcionaria somente

enquanto o perigo não encontrasse equilíbrio. Por sua vez, com o equilíbrio, a ética poderia

perder seu valor, já que ela não responderia mais aos problemas da humanidade. Também, ao

pensar a comunicação linguística e a interação comunicativa mediada, suspende-se qualquer

tentativa de fundamentação de uma ética racional pela racionalidade estratégica: é impossível

referir o intencionado de algo à intenções extralinguísticas; como também não é possível

referir a comunicação linguística à interação teleológico-racional, e nem mesmo referir o fim

e os efeitos de uma ação aos fins possíveis. Nada mais haveria que locuções pré-linguísticas

da ação teleológica.142

Portanto, a racionalidade estratégia “é inteiramente inadequada para a

compreensão dos pressupostos e para as estruturas básicas da comunicação linguística e para a

construção de uma teoria do significado das expressões da linguagem”,143

que deem suporte e

fundamento para uma ética intersubjetiva, consensual e solidária.

1.3.5 O solipsismo metódico

Segundo Karl Otto Apel, o solipsismo metódico foi introduzido por Wittgenstein na

filosofia analítica, como pressuposto transcendental, mas que depois fora superado com o

auxílio da linguagem.144

Fundamentalmente, o solipsismo encontra sua fonte e

desenvolvimento no Tractatus. Não obstante, antes de tal investigação, adverte Apel, é

necessário considerar que toda e qualquer análise de cálculo não possibilita acordo mútuo: a

análise hermenêutica, de linguagem intersubjetiva, é substituída pela linguagem científica

formalizada, desprovida de sentido e interação entre os interlocutores de linguagem. Dessa

forma, afirma Apel: “então se podem expressar nessa linguagem raciocínios lógicos e

proposições sobre estados de coisas (nada de asserções de fatos), mas não ‘declarações’ ou

‘atos de fala’”.145

E tal linguagem em nenhum momento pode expressar “declarações que

142

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 40-43. 143

Id. Semiotica Filosófica, p. 25. 144

Cf. Id. Transformação da Filosofia II, p. 265-266. 145

Ibid., p. 268. O empirismo lógico procurou superar a metafísica por meio da análise lógica da linguagem. No

entanto, para Apel, esta tentativa fundada numa semântica construtivista, tornou-se fraca e, por isso, radicada

num solipsismo cego: a linguagem formal não pressupõe o acordo intersubjetivo, pois a linguagem do cálculo-

formal negligencia a problemática transcendental da compreensão para somente tratar de estado de coisas, como

conteúdo de proposição. Neste sentido, as proposições somente dizem de estados de coisas e consequências

lógicas, mas não atos de fala. Portanto, a linguagem científica desconsidera a análise hermenêutica

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contenham identificadores pessoais como ‘eu’, você’, ‘nós’, ‘vocês’ etc. e que expressem

com isso a situação da comunicação intersubjetiva”.146

Neste sentido, atos de fala não

encontram espaço na linguagem formal porque não pertencem à análise formal objetiva e

sintático-semântica, mas à dimensão subjetiva e pragmática. Abnega-se a condição de uma

metaproblemátia da interpretação, o que também negligencia a tentativa de formulação da

pragmática transcendental da comunidade de comunicação dos cientistas, como postula

Charles S. Peirce.

Para Apel, o Tractatus do jovem Wittgenstein procura defender, e aqui consiste a

ideia central de sua obra, que “a forma lógica da linguagem ideal retratadora do mundo não

pode ser construída de forma arbitrária, mas reside oculta, na linguagem corrente, como

condição de possibilidade de toda construção”.147

Ora, como a lógica da linguagem é

condição transcendental de toda retratação linguística do mundo, não pode haver

metalinguagem na relação entre linguagem e mundo. Pois o eu transcendental reside na

linguagem transcendental, como condição de possibilidade e validade das ciências. Dessa

forma, como o eu transcendental traduz a forma linguística do mundo, não há possibilidade de

comunicação intersubjetiva sobre a interpretação do mundo. O cientista solitário atua de

maneira auto-suficiente acerca da descrição de mundo e, com isso, utiliza-se de uma

linguagem formal-objetiva que se caracteriza por ser “coisa” e “estado de coisa”.148

Para Apel, o ponto alto do solipsismo metódico na filosofia analítica consiste na

proposição a seguir, de Wittgenstein no Tractatus: “aqui se vê que o Solipsismo, quando lhe

rigorosamente são extraídas todas as suas consequências, coincide com o puro realismo. O eu

do Solipsismo contrai-se e fica um ponto sem extensão, fica a realidade coordenada com

ele”.149

O fato é que o solipsismo metódico, como apresentado no Tractatus, parte do

transcendental da comunidade de comunicação e, por isso, está radicada no solipsismo metódico. Cf. COSTA,

Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 123. 146

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 268. “Que a ideia de uma linguagem-cálculo impede a

auto-reflexão se vê com clareza pelo fato de na linguagem-cálculo não ser possível uma ‘comunicação’ humana,

ou seja, a troca de puras informações sobre estado-de-coisa, sem a co-expressão de uma tomada de posição

subjetiva [...] Precisamente o afastamento da pré-compreensão sobre o uso da linguagem e, com isso, de

qualquer tomada de posição reflexiva sobre a linguagem é que garante a eficácia da linguagem artificial”.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 259. 147

APEL, op. cit., p. 270. 148

Ibid., p. 270-272. 149

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico, n. 5.64.

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pressuposto que todo cientista deva reduzir os demais cientistas a objetos de descrição. Este

pressuposto tornou-se basilar para o neopositivismo150

de uma ciência unificadora objetivista.

Fundamentalmente, o solipsismo constitui o principal adversário de Apel na tentativa

de fundamentar uma ética racional, portadora de linguagem.151

Segundo Apel, a filosofia

ocidental (em grande parte da sua história, particularmente na modernidade) esteve

impregnada do modo de pensar monológico (ou individualismo metódico): para Descartes, no

seu racionalismo extremo, o pensamento está isento da linguagem e da tradição; para J.

Locke, no seu empirismo radical, as palavras nada mais significam que ideia na mente,

embora admita o uso do senso comum como regente das regras das palavras;152

para os

racionalistas platônicos, a validade dos significados independe da forma linguística do

consenso; para a filosofia clássica de Kant a Husserl, a intersubjetividade do conhecimento,

através da consciência transcendental, independe da comunicação linguística; para o

behaviorismo, a compreensão comunicativa é substituída pela observação externa e pela

descrição das coisas.153

Conforme Apel, a ideia da lógica da linguagem e a concepção behaviorista

expressam a máxima do solipsismo metódico na filosofia moderna.154

Problema que somente

depois, no segundo Wittgenstein, fora superado, ao recusar a possibilidade de uma linguagem

privada, mas, como entende Apel, sem êxito. Pois, ao postular os jogos de linguagem,

Wittgenstein não pressupôs a inter-relação entre eles. Ao contrário, apenas acenou a

semelhanças de família entre eles, mas não a participação do filósofo em ambos. Para Apel, o

elemento comum entre os jogos de linguagem consiste, como já acenado nesta dissertação, na

existência de um jogo de linguagem (capacidade de reflexão sobre a própria linguagem e

modos de vida), que vem a ser um jogo transcendental de linguagem.155

Com isso, recusa-se o

reducionismo e o relativismo.156

150

“O neopositivismo parte do pressuposto de que, em princípio, um só indivíduo seria capaz de reconhecer algo

como algo e, portanto, de cultivar a ciência; isto ocorre por causa da ignorância, comum à metafísica tradicional

do sujeito, de que o conhecimento baseado na observação, e que se produz na relação sujeito-objeto, pressupõe

sempre o acordo sobre o sentido, que se produz na relação sujeito-sujeito”. COSTA, Regenaldo da. Ética do

Discurso e Verdade em Apel, p. 118. 151

Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 52. 152

Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 270. 153

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 66-67. 154

Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 273. 155

Cf. Ibid., p. 273-274. 156

AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?, p. 47.

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Sustenta Apel que o solipsismo metódico não se reduz, simplesmente, ao

individualismo ontológico, que ignora a dimensão social do indivíduo, nem mesmo ao

individualismo possessivo, pautado pela utilização de todos os meios para alcance dos fins

(lógica da economia liberal). Mas prescreve-se como uma instituição portadora de

neutralidade axiológica, na qual impede o confronto dos indivíduos com possíveis alternativas

e eleição de normas. Neste sentido, o solipsismo entende-se como um método, mas isento de

valoração moral. Para Apel, o solipsismo consiste na forma monológica de pensar, fazer juízo

e validar normas de maneira solitária (consciência individual), por isso, sem pressupor uma

comunidade de comunicação.157

Segundo Apel, não há dúvida que o solipsismo metódico reconhece a dimensão

social do indivíduo, como também a possibilidade de valorização do social ante ao individual.

Todavia, sua fragilidade versa, e aqui consiste a crítica veraz de Apel, em não pressupor a

tríplice dimensão dos signos (sintático, semântico e pragmático). Assim, tanto a filosofia da

consciência, como a análise linguística sintática e semântica “incorrem no erro de crer que um

homem pode forjar seu pensar e atuar sem estar ‘já sempre’ inserido em uma comunidade

linguística”,158

como condição de possibilidade, verdade e validade das normas tomadas em

consenso.

Conforme Apel, o solipsismo, então, é produto de uma falácia abstrativa.159

Somente

a tríplice relação dos signos pode combater o pensar monológico e atribuir sentido e validada

à linguagem (pois o homem é um ser dialógico!). Ao isentar tal relação, ascende-se a

gravidade (em larga escala) do solipsismo metódico, nas suas consequências práticas: o

indivíduo atua com sentido e pensa com validez sem pressupor uma comunidade dos falantes;

age segundo uma consciência em detrimento dos dialogantes; e procura atender seus

interesses de maneira isolada. Dessa forma, “tanto no campo teórico como no prático o

indivíduo é realmente ‘anterior’ à constituição da sociedade e apela a ela, em último termo,

para satisfazer suas necessidades, interesses e desejos”.160

Nesse sentido, a moral, a política, a sociedade, bem como a religião estão sujeitas aos

interesses individuais e movidas pelas racionalidades instrumental e estratégica, que

representam o cerne do solipsismo metódico. Na lógica do racionalismo instrumental,

157

Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 52-53. 158

Ibid., p. 54. 159

Cf. Ibid., p. 54. 160

Ibid., p. 55.

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disseminado pelo Ocidente, por um lado, impera o politeísmo axiológico, pois o mundo não

mais se identifica por uma imagem unitária de valores, por outro, impera o monoteísmo

teleológico, que representa o único modelo de racionalidade das sociedades. Nesta

perspectiva, o mundo ocidental está regido por um politeísmo axiológico e um monoteísmo

racional, duas colunas de um mesmo processo de racionalização do Ocidente e que

representam o desencantamento do mundo, como já apresentado segundo a concepção de Max

Weber. Assim, o solipsismo metódico ascende e legitima o egoísmo social e, por isso,

negligencia a fundamentação de uma ética racional, dialógica e consensual, para o mundo

contemporâneo.161

Portanto, para Apel, o solipsismo metódico é estratégico, calculista e irracional por

induzir que o discurso público conforme-se com as crenças particulares. Somente os fiéis

cristãos, como se presume, podem assegurar tal irracionalidade, pois depositam sua fé no seu

deus e agem segundo um estatuto dogmático e não se importam sobre a razoabilidade de sua

fé. Por isso, é impossível que tal racionalização (irracional) possa fundamentar uma ética

dialógica e responsável.162

Ao atacar o solipsismo metódico, Apel procura reconstruir uma “filosofia do sujeito”

(profundamente transformada) no interior de uma filosofia da linguagem. Para isso, postula a

superação: de um conceito de experiência, reduzido num horizonte transcendental ou na

indução da logic of science, para um conceito de experiência de caráter transcendental, capaz

de revisão qualitativa das próprias premissas e fundada na auto-reflexão; de uma filosofia

neutra para a concepção de uma filosofia onde homem e sociedade estão implicados como

sujeitos na ciência e onde o horizonte valorativo ganha sentido; de uma filosofia que distingue

teoria e prática, sujeito e objeto (como em Kant) para uma filosofia fundada na relação

161

Cf. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 56. Segundo Apel, o

contratualismo liberal é expressão de um jogo cooperativo que prescreve um monólogo estratégico a fim de

legitimar as ações, por meio do consenso, de indivíduos solidários. Este modelo de racionalidade, de pacto

interessado, vigora desde Hobbes até Rawls. Na concepção do contratualismo, o indivíduo, munido dos seus

interesses, procura alcançar vantagens no diálogo com os outros, o que lhe pode garantir uma convivência

pacífica. Este acordo é realizado por todos, por meio do diálogo, mas extremamente estratégico. Isto porque o

diálogo não é o meio necessário para a aquisição do verdadeiro e do bom, mas um instrumento de manipulação e

via para se alcançar os interesses particulares, como também o acordo não constitui o fim último do diálogo, mas

o meio para satisfazer os interesses solitários. Não obstante, não se quer dizer que o caráter monológico do

contratualismo reduza-se ao egoísmo, pois poderá haver identificação de interesses entre os indivíduos, porém os

indivíduos não tomam o diálogo como meio necessário para o acordo. Talvez o contratualismo represente a

máxima da moralidade para as civilizações democráticas liberais, por garantirem a cooperação e participação,

mas, segundo Apel, é deficiente por não garantir a razão dialógica e, por isso, reduz-se ao solipsismo metódico.

Cf. Ibid., p. 56-61. 162

Cf. Ibid., p. 64.

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sujeito-sujeito (em contraposição a Descartes, Locke até Husserl, às filosofias neopositivista e

analítica).163

Em suma, este capítulo procurou demonstrar os principais problemas que

negligenciam a fundamentação científica de uma ética racional para o mundo contemporâneo,

a saber: a moderna filosofia analítica, a lógica da ciência de Wittgenstein, o decisionismo de

Hans Albert, as racionalidades e postulados éticos em Max Weber e o solipsismo metódico.

Como pontuado, tais problemas expressam um mesmo desafio para Apel: arquitetar uma

filosofia dialógica fundada na dimensão pragmático-transcendental-hermenêutica, uma vez

que o pensar monológico, racionalista, cientificista e positivista surgem como os principais

inimigos da Ética do Discurso. Apel, então, lança-se em busca de uma nova filosofia, capaz

de fundar uma ética racional para o mundo da técnica e da ciência. E, para isso, continuará a

investigar os expoentes e tendências da tradição filosófica. Mas aqueles que podem lhe

oferecer o alicerce da sua longa empreitada filosófica e elaboração de uma filosofia moral.

163

Cf. AMENGUAL, Gabriel. Filosofía de la subjetividad y filosofia de la comunicación una disyuntiva?, p. 46-

47.

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II CAPÍTULO

TRANSFORMAÇÃO HERMENÊUTICO-SEMIÓTICA

DA FILOSOFIA TRANSCENDENTAL

Já apontado o problema consubstancial da filosofia moderna, fundada num sujeito de

consciência e por uma linguagem técnico-científica, Apel procura superar o caráter

monológico da verdade e de sua validade, uma vez que tal perspectiva não consegue

fundamentar uma ética racional para a comunidade planetária. Apel, agora, lança-se em busca

de reais fundamentos filosóficos capazes de sustentar uma ética relevante para o atual mundo

caótico, desprovido de parâmetros filosóficos para sustentar suas normas morais e sua

aplicabilidade no mundo real. Seu itinerário formativo filosófico é, fundamentalmente,

caracterizado por uma postura de assimilação e superação de diversos postulados filosóficos.

Apel parte de Kant, e dele absorve elementos fundamentais para sua ética, mas logo, a partir

da análise de Heidegger e Gadamer, e, particularmente, com a transformação da filosofia

transcendental pela semiótica-pragmática de Peirce, o revisa, assim como revisa estes

expoentes críticos da filosofia kantiana. Nesta perspectiva, o presente capítulo quer

demonstrar o caminho percorrido por Apel em busca dos fundamentos da Ética do Discurso.

2.1 A perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão

Segundo Karl Otto Apel, não é possível pensar a superação do solipsismo metódico

com o pensamento filosófico kantiano, pois ele, ao recorrer ao sujeito de consciência,

sustentou o pensar monológico. Kant, na elaboração da sua filosofia prática, considera que o

sujeito autônomo e de boa vontade é capaz de postular um princípio universal de validade da

legislação moral e que as máximas da ação podem ser válidas para todos como normas,164

164

Cf. APEL, Karl Otto. Las aspiraciones del comunitarismo anglo-americano desde el punto de vista de la

ética discursiva. In FERNÁNDES, Domingo Blanco. Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 21.

Para Apel, tal perspectiva kantiana desconsidera a mediação comunicativa de sentido e validade das normas,

particularmente por não pressupor o uso da linguagem, o que impossibilita qualquer tentativa de validade das

máximas ou normas. Ao contrário, toda decisão requer uma compreensão prévia do mundo, como também de

normas convencionais dadas por uma cultura de máximas. Também, não observa que o sujeito autônomo não

consegue sustentar a legislação moral para todos, pois carece de um imperativo de caráter comunitário, de

interesse de todos e de correção moral para todos. Cf. Ibid., p. 21-22. “Nesta advertência residiria, sempre

segundo a interpretação apeliana, o que Kant se tenha visto obrigado a recorrer ao conceito metafísico de um

‘reino dos fins’ para pensar a autonomia da vontade como ‘ratio essendi’ da lei moral. A ‘transformação pós-

metafísica’ proposta por Apel, tendo em conta a mudança para dimensão pragmática, consiste em advertir que

cada vez que alguém argumenta já tem pressuposto também condições normativas de possibilidade da

argumentação, e, entre elas, precisamente o princípio da ética discursiva”. MALIANDI, Ricardo. Semiotica

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como prescrito na Crítica da Razão Prática: “age de tal modo que a máxima de tua vontade

possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”.165

No entanto, como afirma Apel,166

ainda que Kant não tenha superado o pensar

solitário, abriu caminhos para uma razão moral não estratégica, fundada no método

transcendental,167

que confere ao homem a possibilidade de descobrir a autêntica natureza da

razão e de todo princípio racional. Com isso, Kant lançou-se em comprovar como seria

possível a aplicação dos princípios racionais na vida prática do homem. Esta empreitada levou

Apel a tornar-se discípulo de Kant, como ele mesmo confessa ao longo do seu

amadurecimento filosófico. Apel, ao admitir a racionalidade prática kantiana (pelo uso da

reflexão transcendental), em busca de fundamentar sua ética universal, fundamenta a “parte

A” da Ética do Discurso; e ao conceber a aplicação deste princípio na espécie humana,

realizada na história, fundamenta a “parte B” da Ética do Discurso.168

Ora, na interpretação de Apel, Kant procurou uma fundamentação da ética

transcendental na Metafísica dos costumes, mas abandonou tal empreitada na Crítica da razão

prática, ao substituí-la pela referência à lei moral como factum da razão:169

“ela se impõe por

filosófica y ética discursiva. In APEL, Karl Otto. Semiótica filosofica. Buenos Aires: Editorial Almagesto, 1995,

p. 52. 165

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 51. 166

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 66. 167

“Na presunção de que haja porventura conceitos que se possam referir a priori a objetos, não como intuições

puras ou sensíveis, mas apenas como actos do pensamento puro, e que são, por conseguinte, conceitos, mas cuja

origem não é empírica nem estética, concebemos antecipadamente a ideia de uma ciência do entendimento puro

e do conhecimento de razão pela qual pensamos objectos absolutamente a priori. Uma tal ciência, que

determinaria a origem, o âmbito e o valor objectivo desses conhecimentos, deveria chamar-se lógica

transcendental, porque trata das leis do entendimento e da razão, mas só na medida em que se refere a objetos a

priori e não, como a lógica vulgar, indistintamente aos conhecimentos da razão, quer empíricos quer puros”.

KANT, Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, B 82. 168

Cf. CORTTINA, op. cit., p. 66-67. 169

Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 52. “Kant expôs sua ética geral (em que

consiste o bem moral) nos Fundamentos da metafísica de 1785 e na Crítica da razão prática de 1788, e sua ética

especial (quais são as ações boas) na segunda parte (Doutrina da virtude) da Metafísica dos costumes, de 1797.”

ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. Trad. Marcos Bagno e

Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2002, p. 577. O ponto de partida da ética kantiana encontra-se no

factum (fato), em que se preconiza um sujeito individual, livre e autônomo. Pois é fato que o homem,

indiscutivelmente, sinta-se responsável pelos seus atos e consciente do seu dever. Ora, tal consciência pressupõe

a liberdade do homem. Prossegue que do problema da moral se ponha em questão o fundamento da bondade dos

atos. Para Kant, o bom em si mesmo só pode ser a boa vontade. A bondade do ato não está fundada em si

mesma, mas na vontade daquela que a praticou. Uma vontade boa se prescreve pelo respeito ao dever ou à

sujeição da lei moral e tal mandamento é incondicionado e absoluto (universal). A ordem, fruto da boa vontade,

tem caráter de ser universal e, por isso, refere-se a todos os homens, em todos os tempos e circunstâncias. Esse

mandamento Kant chama de imperativo categórico (age de tal forma que tua ação possa ser válida para todos).

Uma vez que o homem procura agir por dever e obediente à lei ditada na sua consciência moral, torna-se

legislador de si mesmo. Assim o homem é fim em si mesmo e forma parte do mundo da liberdade ou do reino

dos fins. Em suma, a ética kantiana é formal porque aplicada a todos os homens, independentemente da sua

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si mesma a nós como uma proposição sintética a priori, que não é fundada sobre nenhuma

intuição, seja pura ou empírica”.170

Para Kant, segundo Apel, o “feito da razão” consiste na

consciência do imperativo categórico, capaz de manter coerência lógica nos ditames de uma

filosofia da consciência. O termo “feito da razão” significa “que a razão se converte em um

feito para si mesma; que através da consciência do imperativo se revela a si mesma sua

natureza, sabe que existe e como existe”.171

A razão tem a propriedade de ser legisladora e o

homem pode afirmar tal condição, o que o faz peculiar e diferente dos outros animais: “a

razão em seu uso teórico não ostenta capacidade maior que a de sintetizar e unificar as leis

empíricas, porém como faculdade prática tem poder legislador, poder para criar um mundo

indicando o que deve ser, embora os feitos confirmem que não é”.172

Não obstante, como observa Apel,173

quanto ao objeto ocupado pela razão, Kant

distingue a aplicação teórica da aplicação prática, de tal forma que uma das partes aponta para

a filosofia da natureza (por conter princípios empíricos) e outra para os costumes (regida

pelos princípios puros a priori). Numa perspectiva crítica, esta separação imbricou no

dualismo ser e dever-ser, da exterioridade e interioridade, o que leva a entender que o homem

kantiano é um “cidadão de dois mundos”: empírico e inteligível. E como não é possível

acessar a exterioridade dos pressupostos do agir, não se sabe, com precisão, se o indivíduo

está agindo moralmente ou de maneira estratégica, ou seja, regido pela vontade boa ou

motivado por algum propósito: “a vontade livre como parte do eu inteligível é acessível à

consciência, mas está separada do mundo no qual só se pode fazer experiência e, portanto,

não pode ser conhecida”.174

Apel, nesta perspectiva, tem o propósito de superar este dualismo

entre a razão teórica e a razão prática e demonstrar que não há separação entre os eventos

naturais e a liberdade de ação, mas que se pressupõem mutuamente. Tal tarefa o leva a

superar o naturalismo epistemológico de Kant.

No entanto, considera Apel, da mesma forma como sustenta Kant, que a razão

humana se revela a si mesma e conhece sua própria natureza através de feitos. Porém, Apel

acredita que tais feitos devem estar amparados pela linguagem intersubjetiva, uma vez que

situação, e autônoma porque regida pelo próprio sujeito, na sua consciência moral. Cf. VAZQUEZ, Adolfo

Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. 23. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 282-283. 170

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, p. 52. 171

CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 67. 172

Ibid., p. 67. 173

Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade. Tese (Doutorado em

Filosofia) - Programa de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 19. 174

Ibid., p. 20.

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ela, e somente ela, é capaz de falar dos limites do mundo. Pois para Apel, o factum da razão

no sentido kantiano, como algo dado, pode somente levantar uma suspeita que a razão nada

mais é que “uma faculdade de cálculo do auto-interesse: justamente uma faculdade da

racionalidade técnica, quer dizer, estratégica, valorativamente neutra”.175

Neste sentido, o feito ao qual Apel se refere deve estar fundado na linguagem,

compreendido, então, como factum da argumentação. O feito linguístico é eminentemente

intersubjetivo. Para Apel, o factum da argumentação é incontestável e inultrapassável. A partir

deste factum, a reflexão transcendental possibilita averiguar suas condições de sentido: do

procedimento kantiano de indagar as condições de possibilidades do conhecimento, busca-se

as condições de sentido pela argumentação. “Tais condições se identificarão, ao fio da

reflexão, com as condições da racionalidade porque a argumentação é, em nosso caso, o

‘factum der Vernunft’, e uma análise de suas condições de sentido se identifica com uma

análise da racionalidade”.176

Uma argumentação com sentido consistirá na utilização de uma razão dialógica, que

conhece a si mesma e sabe de sua existência. O princípio da ética de Apel, portanto, consistirá

na concretização dialógica do imperativo categórico, embasado pelo caráter transcendental

kantiano e de caráter intersubjetivo, em busca de consenso (“tampouco esta tem sido prevista

por Kant, na filosofia teórica ou na prática, em sua função transcendental, quer dizer, como

condição da constituição de validade intersubjetiva”177

). Com isso, Apel supera a filosofia da

consciência e adentra-se no plano da hermenêutica e da pragmática: da consciência para a

unidade da interpretação; do eu da percepção transcendental para o nós transcendental; do

eu penso para o nós argumentamos.178

Somente neste aspecto se fundará a racionalidade, o

princípio moral e a reciprocidade entre os interlocutores. Este esquema transcendental, que

busca condições de sentido e que parte de um feito linguístico, “aplica a tal feito a reflexão

transcendental a fim de detectar as condições de seu sentido, descobre um princípio moral

fundamental no conjunto de tais condições, e chega a um ponto supremo – o ‘nós’ – sem o

qual o resto carece de sentido”.179

175

APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 43. 176

CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 68. 177

APEL, Karl Otto. Las aspiraciones del comunitarismo anglo-americano desde el punto de vista de la ética

discursiva, p. 22. 178

Cf. CORTTINA, op. cit., p. 69. 179

Ibid., p. 69.

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Por isso, conforme Apel, embora a fundamentação da ética kantiana proponha um

desafio para o decisionismo ético, uma vez que procura demonstrar que a razão é prática, não

se distancia de um “sujeito de consciência”.180

Pois Kant, ao tentar o conhecimento objetivo,

pela consciência geral, recorre à lógica transcendental, pautada pela unidade da consciência

do objeto e da autoconsciência, o que torna impossível a superação do solipsismo metódico.

Ao contrário, Apel procurará demonstrar que somente com o auxílio da linguagem se pode

ascender à dimensão comunitária, como possibilidade de sentido.181

Como também observa Apel, a diferença metodológica entre a razão kantiana (como

prescrita na Crítica da Razão Pura182

) e a lógica científica, consiste que esta deposita sua

análise na linguagem; aquela, na consciência geral. Kant, a fim de validar objetivamente a

ciência, substitui a psicologia cognitiva empirista (como de Locke e Hume) pela lógica

cognitiva transcendental; as leis associativas psicológicas de Hume pelas regras a priori.183

A logic of science moderna, ao contrário, eliminou quase por completo o sujeito

transcendental kantiano para sustentar sua análise na sintaxe e na semântica, instâncias

capazes de imprimir descrição e elucidação possível das coisas. Para Apel, esta perspectiva

crítica, embora relevante (por fazer notar que a consciência geral não é mais necessária),

trouxe consigo outros problemas: por um lado, o sujeito humano da ciência é reduzido a um

180

CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 70. 181

Cf. Ibid., p. 70. 182

“Um dos fios que guiam a construção da Crítica da Razão Pura é o modelo de uma ciência que reúna as

condições necessárias e suficientes para apresentar-se como ciência objetiva, ou seja, aquela em que o uso lógico

de nosso Entendimento finito (ou intellectus ectypus) possa aplicar-se legitimamente às ‘representações’

(Vorstellungen) que nos vêm pela sensibilidade, dando origem a juízos sintéticos (ou que fazem avançar o

conhecimento) a priori (ou seja, necessários), capazes de assegurar-nos o conhecimento científico do mundo

real.” VAZ, Henrique C. De Lima. Escritos de Filosofia IV – Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola,

1999, p. 328. 183

O problema acerca da validade do conhecimento teve seu ponto de partida, de maneira mais sistemática, com

Descartes e sua formulação mais acabada com Kant. Na obra de Kant a questão sobre a validade do

conhecimento ocupa um lugar central, problema que fora despertado por David Hume, que Kant nomeia como o

despertar do “sono dogmático”. Segundo Hume, a experiência não pode ser a fonte do conhecimento humano,

pois os fatos não trazem qualquer normatividade quanto a seu comportamento. Ainda mais, como os fatos são

singulares, não é possível extrair deles conhecimento necessário e universal. Por isso, que o conhecimento está

fundado na condição psicológica do espírito humano, desprovido de qualquer base racional. A partir desta

concepção, Kant radicaliza o problema sobre a validade do conhecimento para além da causalidade, apontada

por Hume. Kant diferencia as formas de conhecimento em a posteriori e a priori: a primeira parte da

experiência; a segunda independe da experiência e possibilita toda e qualquer condição da experiência. Portanto,

para Kant, o conhecimento advindo da experiência não era fruto de uma atividade psicológica do sujeito, mas

sustentado por uma base objetiva. A tarefa, então, da Crítica da razão pura consiste em examinar as condições a

priori da validade do conhecimento. Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a

Factibilidade, p. 9-12.

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objeto da ciência (problema do sujeito);184

por outro, a função transcendental da ciência é

substituída pela lógica das ciências da linguagem (problema da condição lógica): “lógica da

linguagem e testabilidade de proposições ou de sistemas proposicionais entram juntos em

cena, em substituição à lógica transcendental kantiana da experiência objetiva”,185

mas sem

qualquer relevância.

Para Apel, este esforço de superação da lógica transcendental kantiana não foi capaz

de sustentar-se, o que demonstra o fracasso do programa original da logic of science, do

empirismo lógico.186

Ora, para a lógica da ciência moderna, somente uma lógica única da

linguagem científica, estruturada pela sintaxe e pela semântica, poderia conceder

intersubjetividade da validação possível. Foi esta a leitura que possibilitou Wittgenstein, no

Tractatus, “chamar de ‘transcendental’ a ‘lógica da linguagem’, em uma alusão a Kant, e a

igualar o sujeito da ciência (como algo que ‘não existe’) à função delimitadora do mundo”.187

Mas logo se evidenciou, como assegura Apel,188

que a sintaxe e a semântica não tinham

consistência lógica e nem condições intersubjetivas para assegurar os procedimentos

científicos em busca da verdade. Assim, pareceu necessário a constituição de uma lógica

científica capaz de, a partir da expressão convenções práticas, conferir validação à dimensão

pragmática da interpretação: a) ao verificar a necessidade de vincular os “fatos” à linguagem

logicamente construída, uma vez que a linguagem analítica apenas confrontava suas leis

científicas, mas sem referência aos fatos “crus”, criou-se o problema da verificação. Ao

contrário, somente pelo acordo mútuo poder-se-ia pressupor a validação das teorias, onde os

intérpretes seriam sujeitos da ciência e não objetos; b) ao verificar que a linguagem científica

formalizada não fazia uso da linguagem de mundo, pareceu necessário uma linguagem

aplicada pelos cientistas, interpretada pragmaticamente em uma metalinguagem.189

Por isso, na interpretação de Apel, assim como Kant em sua crítica cognitiva

procurou vincular a consciência ao objeto e que tal vinculação alcançaria uma unidade,

também a moderna lógica da ciência deveria vincular as teorias aos fatos em base a

interpretação do mundo, intersubjetivamente unificada.190

Este problema vem comprovar,

184

“Objetivar o sujeito implica uma nova forma de cientificismo que, em boa lei, unicamente conduz a um

regressus ad infinitum na série de objetivações e, por último, a sua eliminação enquanto sujeito”. CORTTINA,

Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 71. 185

APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia II, p. 180. 186

Cf. Ibid., 180-182. 187

Ibid., p. 181. 188

Cf. Ibid., p.181. 189

Cf. Ibid., p. 182. 190

Cf. Ibid., p. 183.

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conforme Apel, que somente uma reviravolta do pensamento kantiano, no sentido de uma

transformação pragmático-transcendental, poderia proporcionar uma crítica de sentido,

enquanto análise dos signos. Pois, não há dúvida, como atesta Apel, que o problema da

validade objetiva da ciência só pode ser resolvido no sentido kantiano do método

transcendental, mas não reduzido ao sujeito de consciência, ao contrário, mediado

significativamente pela dialogicidade. Portanto, “a lógica transcendental da consciência se ver

obrigada a converter-se em pragmática transcendental da linguagem. Neste jogo de

transformações Apel confessa reiteradamente sua dívida com o ‘Kant da filosofia americana’,

Ch. S. Peirce”.191

2.2 A perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia

transcendental

Karl Otto Apel, com a pretensão de fazer uma análise da filosofia moderna e, com

isso, “arquitetar” uma proposta filosófica capaz de pensar uma ética solidária e de alcance

universal, trilha um caminho filosófico, segundo ele, de transformação da filosofia

transcendental. Apel reconhece a contribuição kantiana para a filosofia, a saber: o valor

absoluto da pessoa; a universalidade dos princípios éticos e gnosiológicos; a dimensão

teórico-prática da razão humana e sua estrutura transcendental; o caráter universal do logos

humano, entre outros. No entanto, procurará fazer uma síntese do pensamento kantiano e

superá-lo à luz de outros pensadores, que lhe darão um arcabouço sólido para o seu pensar

ético filosófico.192

Para Apel, o pensamento filosófico de Heidegger causou uma ruptura com a tradição

moderna, fundamentalmente por instalar na filosofia o desprezo metodológico pela

universalidade e conhecimento por meio da relação teórico-prático, e, em troca, assentar um

novo campo conceitual – contingência, temporalidade, corporalidade, individualidade –

capaz de melhor analisar a verdade das coisas.193

Heidegger, então, é considerado por Apel

como um filósofo hábil a pensar a transformação kantiana, como ele próprio intenta na obra

Ser e Tempo,194

porém em nenhum momento vem representar, e depois dele Gadamer, a

última palavra sobre este ofício.

191

CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 72. 192

Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 36. 193

Cf. Ibid., p. 36. 194

Heidegger, na obra Ser e Tempo, procura corrigir a doutrina kantiana do tempo. Com isso, irá mostrar que

Kant errou ao falar da temporalidade: por um lado, ele não enfrentou a questão sobre o ser, por outro, não

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Apel parte de Heidegger para pensar uma hermenêutica transcendental, que depois

será consolidada com a contribuição de Gadamer. Porém, numa postura crítica, Apel

questiona o aceno ao relativismo da interpretação deixado por Heidegger e Gadamer, como

também, contra Kant, o transcendentalismo a-histórico. Todavia, ao pensar que da conexão

entre o transcendentalismo kantiano e a condição hermenêutica é possível abandonar a crise

filosófica da modernidade, adota essas duas tendências como vias plausíveis de pensar a

relação entre a constituição de sentido e a justificação da validade.195

Segundo Apel, a transformação da filosofia transcendental pela hermenêutica

heideggeriana só pode ser entendida pelo interesse do filósofo em responder a pergunta pelas

condições de possibilidades da compreensão do mundo e de sua constituição de sentido,

questionamento tal comum entre Kant e Heidegger. Ora, a indagação de Kant refere-se à

pergunta pela validade objetiva da experiência, que confere verdade (centro de toda lógica

transcendental kantiana), pois o conhecimento verdadeiro é aquele que pode ser válido para

todo indivíduo racional. Assim, Kant consegue distinguir uma mera crença de um

conhecimento verdadeiro: quando consegue comunicar e validar o conhecimento para toda a

razão humana. Nesta perspectiva, Kant procura identificar a constituição de sentido com a

validade intersubjetiva. Por sua vez, Heidegger separa essas duas instâncias. A validade estará

constituída por vários sentidos, pelo caráter próprio do juízo e do contexto do enunciado; a

interpretação deverá estar inserida na “situação hermenêutica”, onde se evoca uma “maneira

prévia” de falar das coisas.196

Ao prosseguir com sua análise sobre a perspectiva hermenêutica de transformação da

filosofia transcendental, Apel aponta que todo dado da sensibilidade em Kant está já mediado

pelo a priori e, por isso, não se pode entender que o indivíduo seja capaz de apropriar-se das

coisas como elas são em si, mas somente como elas se apresentam para ele.197

Não obstante,

para Kant é possível falar com exatidão da estrutura do plano transcendental a priori. Desta

alusão, Heidegger diferencia-se de Kant em dois principais sentidos: na condição

hermenêutica, por entender que nunca um conteúdo pode ser totalmente alcançado, pois

desenvolveu uma ontologia explícita da presença. Kant simplesmente adota as ideias cartesianas,

dogmaticamente. Ainda segundo Heidegger, Kant atribui a noção de tempo ao sujeito assim como assimila a

vulgar compreensão de tempo advindo pela tradição. Fundamentalmente, “a conexão decisiva entre o ‘tempo’ e o

“eu penso” permaneceu envolta na mais completa escuridão, não chegando sequer uma vez a ser

problematizada”. HEIDDEGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes,

2006, p. 62. 195

Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 36-37. 196

Cf. Ibid., 37-38. 197

Cf. Ibid., 38.

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sempre existirá um grau de opacidade na sua apresentação; e por não ser possível conferir à

constituição de sentido as características de universalidade e necessidade, como abordadas por

Kant. Para Heidegger, toda e qualquer situação hermenêutica prescreve a singularidade de

algo, como não repetível (que se deve ao Dasein, por referir-se à história, ao caráter temporal.

Assim, o ente enquanto tal, assim como o pré-compreender, é de caráter temporal e o sentido

do ser está instaurado no horizonte do tempo, ou melhor: “não somente o ser é tempo, senão

também a razão é tempo”198

), e não considerado como algo comum para todo ser racional,

como prescrito por Kant. Eis, portanto, a reviravolta do pensamento heideggeriano quanto à

filosofia transcendental de Kant, caracterizada pelos ditames de uma consciência pura,

universal, comum e necessária.199

Ainda analisa Apel que na hermenêutica da facticidade em Heidegger,200

Gadamer

aprofundou uma hermenêutica do sentido, embasada na experiência: “a facticidade da pre-

sença, a existência, que não pode ser fundamentada nem deduzida, deveria representar a base

ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro ‘cogito’”.201

Gadamer atestou

que Heidegger, ao transformar a fenomenologia em ontologia, desenvolveu a questão sobre o

fundamento. A razão experiencial ganha estatuto de ser real e histórica e os resultados que

procedem da experiência histórica alcançam a verdade racional. Nesta perspectiva, Gadamer

lançou-se em “exceder os limites da filosofia formal da reflexão e acentuar especialmente o

momento referido à realidade no pensamento hermenêutico, assim como reintroduzir na

vertente prática da razão o âmbito experiencial”.202

Neste horizonte, Apel procurará a partir de Heidegger e Gadamer fazer uma leitura

da filosofia kantiana na perspectiva de transformação da filosofia transcendental, o que o

levará a perceber que “a compreensão do mundo está já sempre linguisticamente mediada,

quer dizer, publicamente interpretada”.203

Pois, como atesta Gadamer, em Verdade e Método,

198

CONILL, Jesús. Tras la hermenéutica transcendental. ANTHROPOS 183 (1999), p. 53. 199

Cf. NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 38-39. 200

Segundo Heidegger, facticidade significa “o caráter de fatualidade do fato da presença em que, como tal, cada

presença sempre é. Na facticidade está implicado o ser-no-mundo de um ente intramundando. HEIDEGGER,

Martin. Ser e Tempo, p. 102. 201

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7 Ed.

Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 341. 202

CONILL, op. cit., p. 53. “Gadamer quer prosseguir o caminho empreendido por Heidegger, porém sem

abandonar do todo a abordagem transcendental. O compreender é para Gadamer a forma originária de realização

do está-aí. O conceito do compreender não é o conceito de um método, senão o da experiência. O compreender

constitui o modo de ser do está-aí, algo originário na vida humana”. CONILL, Jesús. Hermenêutica

antropológica da razão experiencial. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y realidad. Madrid:

Trotta, S. A., 1994, p. 132. 203

NICOLÁS, op. cit., p. 38.

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“a linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo,

mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se representa mundo”.204

A “mediação” é o ponto fundamental desta nova abordagem filosófica de

transformação transcendental, que constituirá toda pretensão de validade de sentido para todos

os dialogantes de uma comunidade ilimitada de comunicação, e com pretensões de ideia

regulativa para todos os indivíduos (universalidade). Apel, de Kant irá absorver,

fundamentalmente, o caráter transcendental (contrafático); de Heidegger e Gadamer, a

condição fática do compreender. Disto resulta que do “elemento contrafático (ideal de

justificação consensual da validade) constitui o elemento complementário-alternativo da

historicidade radical da história do ser heideggeriano”.205

Apel poderá, então, percorrer um

caminho de complementaridade entre essas duas tendências e sem “abandonar o problema da

fundamentação ou justificação racional, mantendo as exigências próprias de uma razão

crítica”.206

2.2.1 O novo paradigma da filosofia: a fenomenologia-hermenêutica de

Heidegger e Gadamer

Já apresentado a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia

transcendental por Heidegger e Gadamer, cabe agora, segundo Apel, explicitar,

particularmente, a contribuição que esses dois pensadores deram para a nova filosofia. Apel

irá apontar os elementos de transformação aplicados e desenvolvidos por Heidegger e

Gadamer e, com isso, se apoiar no modo de pensar hermenêutico-fenomenológico, pautado

pela experiência pré-científica da vida e do mundo, para superar a filosofia científica,

sustentada pela racionalidade metódica.207

Para Apel, a fenomenologia-hermenêutica tem seu ponto de partida em Heidegger, e

depois desenvolvida por Gadamer, particularmente na obra Verdade e método. Ao tentar

superar a racionalidade metódica, a fenomenologia-hermenêutica procurou estabelecer a

emancipação da experiência da metafísica dogmática, da filosofia das visões de mundo e das

restrições científicas. Heidegger, na sua crítica à filosofia ocidental, recusa a racionalidade da

lógica científica e da técnica moderna. Ao invés de recorrer às categorias de pensamento e à

204

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 571. 205

NICOLÁS, Juan A. Con Apel al borde de la modernidad, p. 39. 206

CONILL, Jesús. Tras la hermenéutica transcendental, p. 51. 207

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 23.

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técnica científica – a fim de fundar uma investigação sobre o conhecimento – recorre ao

desvendamento da experiência cotidiana.208

“Ao descobrir primeiro a experiência cotidiana,

se enfrenta com as coações categoriais do pensamento e, portanto, da conduta, que partem da

estrutura científico-técnica”.209

Já na filosofia hermenêutica de Gadamer, como afirma Apel,

“o pensamento fenomenológico ingressa em uma relação crítica mais estreita com a ideia do

método”.210

A experiência está referida às condições existenciais, fenomênicas, de

possibilidades do “compreender”, que fora esquecida pelas metodologias histórico-

hermenêuticas.

Em geral, conforme Apel, a fenomenologia hermenêutica (e aqui consiste uma das

suas principais relevâncias) resiste ao modelo científico da teoria e da crítica do conhecimento

instaurado pela filosofia moderna, particularmente de procedência kantiana. Ela descobriu

(pelo “compreender”) as estruturas semitranscendentais que superam a relação sujeito-objeto

fundada desde Descartes. Dentre elas, destacam-se as “pré-estruturas existenciais”

descobertas por Heidegger: ser-no-mundo, que supera o idealismo epistemológico; ser-com

(com o outro), que ultrapassa o solipsismo metódico; ser-que-se-antecipa do ser-aí, que

implica no questionamento da ideia do conhecimento livre de interesse de algo como algo.211

E, com a estrutura da pré-compreensão212

(dada pela linguagem e a história), a fenomenologia

hermenêutica colocou em questão, por meio do círculo hermenêutico,213

a apriorismo e o

empirismo.214

Como afirma Gadamer, “Heidegger fez uma descrição fenomenológica perfeita

ao descobrir a pré-estrutura da compreensão no suposto ‘ler’ o que ‘está lá’”,215

quer dizer,

208

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 27-28. 209

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 24. O pensamento de Heidegger, ao procurar

associar a questão da filosofia e da verdade com a definição de homem, enquanto Dasein (ser-no-mundo), rompe

com toda tradição metafísica, uma vez que coloca a questão da filosofia e da verdade em outro plano,

diferentemente de uma abordagem subjetivista. Pois em Heidegger a questão sobre a verdade não mais se limita

às “aspirações” do sujeito, mas seu fundamento pertence às condições históricas do modo de ser-no-mundo

(Dasein). Heidegger apresenta um novo paradigma na história da filosofia, a hermenêutica do eis-aí-ser, como

ser no mundo. Dessa forma, para Heidegger, a ciência deve sempre partir do Dasein, como um modo de ser do

ser-aí, que está presente no mundo. Cf. Ibid., p. 24. 210

APEL, op. cit., p. 28. 211

Cf. Ibid., 29. 212

O conceito da pré-compreensão deve seu ponto de partida em Heidegger. Este mesmo conceito, para

Gadamer, adquiriu o sentido de pré-juízo. Cf. COSTA, op. cit., p. 25. 213

Heidegger, em Ser e Tempo, pode ser considerado o primeiro pensador a abordar a ideia de “círculo

hermenêutico” como elemento fundamental para a compreensão. Até então, a estrutura da compreensão estava

consolidada na relação entre o particular e o todo, dado pelo conteúdo objetivo. Assim, o particular era entendido

no geral e o geral no particular. Com Heidegger, a compreensão realiza-se pelo sujeito mesmo que compreende,

pois este abarca o todo do seu mundo, aberto ao conteúdo individual de sentido. Gadamer, a partir do “círculo

hermenêutico”, aborda a historicidade da compreensão e a inserção do sujeito no seu contexto histórico,

necessários para o compreender e que ditam toda compreensão histórica. Cf. COSTA, op. cit., p. 26. 214

Cf. APEL, op. cit., p. 29. 215

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 359.

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“trata-se de manter afastado tudo que possa impedir alguém de compreendê-la [a tradição] a

partir da própria coisa em questão”.216

Neste sentido, segundo Apel, com a descoberta da pré-estrutura do compreender,

surgiu a possibilidade de desenvolvimento dos pressupostos quase transcendentais, que

implicam “a possibilidade de fundar a verdade dos enunciados na descoberta do sentido que

eles encobrem”.217

Nota-se que no horizonte da radicalização existencial-ontológica, a partir

da ideia hermenêutica de Heidegger, sobretudo pelo “compreender”, foi possível uma nova

investigação sobre o conhecimento das coisas. Pois, como sustenta Heidegger, em Ser e

Tempo, “a abertura do compreender diz respeito, de maneira igualmente originária, a todo ser-

no-mundo”.218

Aquilo que se compreende é o ser mesmo que existe, porque “no compreender

subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença enquanto poder-ser”219

(por não ser

algo dado, a presença é possibilidade de ser).

Enquanto a lógica científica utilizava o “compreender” como método do processo

investigativo, a “nova ‘hermenêutica’ pôde demonstrar que o ‘Compreender’, como maneira

de ser-no-mundo peculiar ao homem, já é pressuposta, na epistemologia, na constituição dos

dados da experiência”.220

Dessa forma, segundo Apel, o problema que envolvia o

“compreender”, na sua dimensão transcendental, se junta à problemática empregada por

Heidegger acerca do sentido da verdade. Depois, verificou-se que a ideia do “Compreender”

não mais poderia subordinar-se à problemática da elucidação científica, mas assumida numa

dimensão comunitária, do acordo mútuo pelo uso da linguagem. O acordo, pela via da

linguagem, deve sempre estar pressuposto em toda e qualquer tentativa de explicação.221

Também, afirma Apel, o desenvolvimento da fenomenologia-hermenêutica contou,

substancialmente, com a séria investigação filosófica de Gadamer. Pois ele, criteriosamente,

radicalizou a ideia hermenêutica como autocompreensão filosófica das ciências humanas;

colocou em xeque a objetividade científica do compreender, ao sustentar que tal perspectiva

imprimia uma deformação abstrativa do problema hermenêutico do acordo mútuo. Para

Gadamer, como sustenta Apel, “o problema hermenêutico original é o acordo com os outros

216

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 359. 217

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 26. 218

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 203. 219

Ibid., p. 203. 220

APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 30. 221

Cf. Ibid., p. 30.

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acerca do sentido e da verdade linguística de algo enquanto algo”.222

Assim atesta Gadamer

em verdade e Método: “o problema hermenêutico não é, pois, um problema de domínio

correto da língua, mas de correto acordo sobre um assunto, que se dá no medium da

linguagem”.223

Dessa forma, o “compreender” hermenêutico se prescreve por uma relação

sujeito-sujeito, pela condição do acordo mútuo sobre algo (assim uma hermenêutica entendida

como arte de interpretação),224

em detrimento de uma objetivação descrita ou explanativa de

atos psíquicos. Gadamer, então, questiona a abstração metódica sobre a pergunta pela verdade

e sua validação e procura pensar uma hermenêutica filosófica onde a “fusão de horizontes”

(da mediação do presente com seu passado) possa ser examinada em qualquer caso do

“compreender”.225

Segundo Apel, a descoberta desses pressupostos da fenomenologia hermenêutica,

depois desenvolvida pela filosofia do século XX, instaurou a superação do idealismo

epistemológico e do solipsismo metódico, assim como do conceito do espírito e da

consciência transcendental, já apontado por Gadamer (por mérito de Heidegger) na obra

Verdade e Método.226

Esta tarefa fora também executada, de maneira aguda, com a filosofia

semiótico-pragmática de Charles S. Peirce (na ideia de uma comunidade interpretativa de

comunicação) e, despertada, com a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein.

À medida que se supera a filosofia analítica, na sua condição sintático-semântica –

quando sentido e verdade são reconhecidos como declarações assertivas, e não por sentenças,

e quando tais asserções passam representar respostas aos problemas mais instigantes – pode-

se apostar numa filosofia hermenêutica portadora de linguagem, na condição do acordo mútuo

entre os interlocutores de uma comunidade. Também, neste mesmo sentido, pode-se pensar na

superação da abstração lógico-científica, na medida em que a sintaxe e a semântica são

substituídas por uma teoria científica transcendental-pragmática. Esta atua na tentativa de

banir o sujeito cognoscente em busca de uma transformação da problemática kantiana do

sujeito transcendental.227

222

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 28. 223

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 376. 224

Para Gadamer, como apresentado em Verdade e Método, a compreensão sempre implica acordo, pois toda e

qualquer compreensão e consenso estão fundados na concepção do acordo. E sempre foi papel da hermenêutica

garantir este pressuposto. Neste sentido, a hermenêutica se propõe explicar a compreensão a partir de uma

comunidade linguística, onde cada indivíduo está sempre em entendimento com os outros. Cf. COSTA, op. cit.,

p. 28. 225

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 31-33. 226

Cf. GADAMER, op. cit., p. 346. 227

Cf. APEL, op. cit., p. 33-34.

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56

Portanto, como afirma Apel, o novo contexto da fenomenologia hermenêutica

desqualifica e, por isso, rejeita a concepção empírico-psicológica de uma ciência particular,

como também a condição de não justificação metacientífica para consolidar-se como uma

filosofia transcendental-hermenêutica, ou horizonte de sentido, capaz de pensar os problemas

referentes à constituição dos novos jogos de linguagem.228

Por isso, a fenomenologia-

hermenêutica, fundada na dimensão histórica da epistemologia, demonstra ser “capaz de

cumprir uma função corretiva diante do estreitamento científico-metodológico da

problemática acerca da verdade”.229

Essa nova perspectiva filosófica se efetiva ao perceber

que as descrições empíricas e elucidações são irrelevantes para fundar o conhecimento e a

compreensão da filosofia da ciência; e ao perceber que descrições de coisas, sem juízo de

valor, não possibilitam a cognição da história. Como afirma Gadamer, a partir de Heidegger,

o “compreender” não pertence à lógica do sujeito, ou seja, não se limita às maneiras de se

comportar do sujeito, mas à maneira de ser do próprio ser-aí. Como afirma Gadamer na obra

verdade e Método, ao fazer menção à crítica de Heidegger ao rigorismo metodológico e à

idealidade: “compreender é o caráter ontológico original da própria vida humana”.230

Assim, a

dimensão hermenêutica, fundada no ser-aí, atua na história e envolve o todo da experiência do

mundo.

2.2.2 A perspectiva crítica de Apel à filosofia hermenêutica de Heidegger e

Gadamer

Após explicitar a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia

transcendental por Heidegger e Gadamer e, com isso, apontar, particularmente, a contribuição

que eles deram para a nova filosofia, Apel, a partir de uma perspectiva crítica, procura apontar

o erro cometido por Heidegger e Gadamer, no âmbito da filosofia hermenêutica, apesar de

reconhecer a extraordinária contribuição que eles deram para a filosofia hermenêutico-

pragmático-transcendental.

228

É importante notar a menção que Gadamer faz a Apel na obra Verdade e Método. Para Gadamer, Apel

corretamente percebeu que os “jogos de linguagem” apenas descrevem a continuidade da tradição e de maneira

descontínua. A hermenêutica, então, tem o ofício de atuar criticamente contra o positivismo e, com isso, superar

a ingenuidade positivista. No entanto, Apel, ao postular que a hermenêutica direciona-se a uma teoria

transcendental, parece controverso. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II – Complementos e

índice. 7 Ed. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 133. 229

APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 37. 230

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 348.

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Segundo Apel, embora Gadamer e Heidegger tenham contribuído para o novo pensar

filosófico – em detrimento da racionalidade científica – ainda não conseguiram estruturar uma

filosofia de fundamentação última, na perspectiva da transformação da filosofia

transcendental. Apel, então, apresenta três argumentos que atestam sua crítica a esses

pensadores.

a) Gadamer refere-se erroneamente a Kant e à ideia da filosofia transcendental. Na

questão sobre a justificação da validação do conhecimento (questio juri) é incorreto

simplesmente presumir que Kant não pretendia impor qualquer prescrição às ciências naturais

e que recusasse a pretensão (quanto à descoberta de princípios metódicos) de justificação de

uma validação normativamente relevante (pois sem tal pretensão seria impossível diferenciar

o válido do elucidável). É impossível recorrer à Crítica da razão pura sem pressupor a

pergunta pelas condições de validade da ciência e pelas condições de sua possibilidade. Por

isso, Kant diferencia-se dos representantes da filosofia metodológica pelo fato de pretender

fundamentar a justificação da validação em base à dedução transcendental das condições de

possibilidade e de validade do conhecimento em geral. Com essas observações, sustenta

Apel, não se quer tirar o mérito da reviravolta hermenêutico-fenomenológica, ao apresentar as

condições de possibilidades do conhecimento e, com isso, recusar os princípios normativos do

cientificismo,231

mas postular uma hermenêutica-transcendental capaz de corrigir o modo de

“compreender” no âmbito científico e pré-científico.232

b) Gadamer faz uma leitura historicamente correta dos conceitos “compreender”,

“verdade” e “abertura” do ser aí heideggerianos. Fundamentalmente, trata-se de assegurar o

“compreender” como modo de ser do próprio ser-aí, e não simplesmente um dos modos de

agir do sujeito: “compreender como tal não é um modo de comportar-se do sujeito, senão um

modo de ser do ser-aí”.233

Essa, que é a tese central da filosofia de Heidegger, assemelha-se à

ideia da pré-estrutura do compreender, que reagiu fugazmente contra a atrofia do processo de

conhecimento de origem kantiana. Foi Heidegger quem possibilitou a reflexão sobre as

estruturas humanas fundamentais, em decorrência das estruturas semitranscendentais. A

figura de pensamento, estruturada nos conceitos como “ser-que-se-antecipa”, “ser-aí como

ser-no-mundo”, marca uma nova maneira de reflexão transcendental. Com ela fora substituída

231

A fim de demonstrar a relevância do pensar hermenêutico-fenomenológico, enquanto fator corretivo do

cientificismo, Apel a compara com a fase tardia de Wittgenstein. Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da

filosofia I, p. 44. 232

Cf. APEL, op. cit., p. 41-44. 233

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 33.

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a forma de explicar o problema da “constituição” transcendental (como em Husserl) a partir

de uma consciência pura, subjetiva. Ao contrário, as coisas do mundo estão constituídas e se

apresentam desde sempre para o homem; a resposta do homem é sempre uma maneira de falar

do mundo constituído. O ser-que-se-antecipa, onde se inscrevem os fatores

semitranscendentais da “pré-estrutura” do compreender, é iniludível (como o a priori

linguístico).234

Não obstante, questiona Apel, o desde sempre, nas condições de possibilidades

do compreender, não afirma carecer de justificação enquanto condições de validação do

compreender?235

c) Heidegger, de um lado, trouxe uma excelente contribuição para o problema

transcendental-hermenêutico da constituição de sentido, de outro, não conseguiu avançar na

reflexão quanto ao problema da verdade e sua validação. Pois, como afirma na sua obra Ser e

tempo, “a verdade não se deixa provar em sua necessidade, porque a presença não pode ser

colocada para si mesma à prova”.236

Por isso, segundo Apel, a filosofia deve retornar à Kant,

mas na tentativa de transformação da filosofia transcendental, a partir de Heidegger e de

Gadamer, na perspectiva de uma filosofia transcendental-hermenêutica. Ainda, em ser-que-

se-antecipa (de Heidegger), não foi possível abandonar por completo uma filosofia

transcendental da subjetividade de procedência kantiana. Pois Heidegger aproximou o caráter

projetivo do “compreender – que “constitui o ser-no-mundo no tocante à abertura do seu pre,

enquanto pre de um poder ser”237

– com a “espontaneidade” da “imaginação” transcendental,

no sentido kantiano. Também, Heidegger não estabeleceu nenhuma relação entre a “pré-

estrutura do compreender” e uma subjetividade “pré-consciente”. Ora, a virada heideggeriana

consiste no factum apriorístico do “estar-aberto do ser-aí”: da análise semitranscendental do

ser-aí se busca um pensamento que provém do fato de pertencer à história do ser, isento de

234

Heidegger procura mostrar que o método fenomenológico tem parentesco com o método transcendental, mas

que há uma diferença singular entre eles. Na obra Ser e Tempo, Heidegger faz notar que os enunciados emanados

do método fenomenológico advêm do Dasein (na sua condição de ser-no-mundo) e não da subjetividade. A

verdade em Heidegger, como verdade transcendental, não se confunde como o “eu de consciência” kantiano,

mas fundamenta-se no Dasein, onde se dá o velamento e o desvelamento e onde se apresenta a questão sobre a

verdade. Com isso, Heidegger pretende instaurar uma filosofia que se apropria da questão sobre a verdade além

do a priori da subjetividade kantiana, uma vez que tal perspectiva (kantiana) rompe com a verdade sobre o ser

do ser-aí. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 33-34. 235

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 44-46. Apel, então, distingue (em contraposição à

filosofia hermenêutica) as questões sobre a constituição do sentido e sua justificação, questões que para ele não

se excluem, mas que também não se confundem. Eis uma das grandes contribuições de Apel para a filosofia

hermenêutica. 236

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 300. 237

Ibid., p. 205. No caráter da projeção do compreender, a presença já sempre se projetou e determina-se (é) no

ato de estar se projetando. Ao ser, a presença se compreende e permanece a se compreender na possibilidade.

Quer dizer, não há um plano previamente concebido sobre os atributos do ser.

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qualquer normatividade metodológica. Para Apel, o “estar-aberto do ser-aí” pode ser

interpretado como “um acontecimento anônimo da ‘clareação’; e tal acontecimento poderia

não ter qualquer relação com um ‘ser-que-se-antecipa’, passível de reflexão face a sua

validação conceitual, e pertinente à ‘intelecção pré-ontológica do ser’”.238

Tal concepção

caracteriza a virada de Heidegger ao pensamento kantiano, denominada transcendental-

filosófica de sentido. Entretanto, Heidegger desenvolveu uma virada que, em certo sentido,

apenas averiguou a problemática da constituição do sentido do mundo, dada na “pré-

estrutura” do compreender. E, não menos redutível, apenas transmitiu o problema da

validação do sentido a uma filosofia transcendental subjetiva, concernente à metafísica.239

Por

isso, conforme Apel, Heidegger se equivocou ao indagar que a abertura de sentido pudesse

preceder a conformidade dos enunciados, como prescrita pela hermenêutica do ser-aí: o

problema está em entender a abertura do sentido com a verdade no sentido de

desocultamento.240

Como afirma Heidegger, “o sentido deve ser concebido como o aparelhamento

existencial-formal de abertura pertencente ao compreender”.241

Ora, o sentido não pode ser

definido no ato de julgar, ao contrário, ele é um existencial da presença. E o enunciado (que

por muito tempo fora compreendido como o lugar próprio da verdade), ao mostrar algo a

partir de si mesmo e por si mesmo se comunicar, dá-se somente na abertura do compreender.

Assim, “o enunciado necessita de uma posição prévia do que se abriu, a fim de mostrá-lo a

partir de si mesmo e por si mesmo segundo os modos de determinação”.242

Para Apel, Heidegger não percebeu que a abertura de sentido possibilita a verdade do

enunciado em certo sentido, mas se distingue da verdade porque somente esta está fundada no

ser do ente, mostrado e enunciado: “a constituição do sentido é uma condição da verdade,

porém não a verdade mesma; prejulga o espaço da possível verdade ou não verdade dos

enunciados, porém é no discurso argumentativo que se pode avaliar a justeza desses através

238

APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 47. 239

Apel, ao se referir a “virada” heideggeriana, comenta: “e se essa filosofia (tal como a ontologia do ‘estar-

presente’, fundamentada anteriormente por Aristóteles) pensa ser capaz de superar ou ‘suplantar’ a metafísica da

Era Moderna, fundamenta sobre a autonomia do sujeito que pensa, quer e age, então se deve pelo menos

suspeitar de que aqui ‘auto-nomia’ – que o ser humano conquistou por meio do ‘Esclarecimento’ [Aufklärung],

sob o signo da autonomia da razão – pode vir a ser dissipada sob a forma de uma nova credulidade no destino,

em benefício de uma nova ‘alienação’ (tal como disse J. P. Sartre sobre o Heidegger da fase tardia).” APEL, op.

cit., p. 48. 240

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 34-36. 241

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, p. 213. 242

Ibid., p. 219.

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da justificação de pretensões de validade”.243

A constituição de sentido só poderá encontrar

lugar próprio e justificação da validade no acordo, como a priori dialético. Ainda, para Apel,

Heidegger “não se deu conta de que unicamente no caso dos enunciados há uma diferença

entre a instância subjetiva e a objetiva, diferença que possibilita comprovar ou justificar o

quanto temos da coisa”.244

Heidegger, portanto, ao separar o problema da constituição de

sentido do compreender com a problemática da validade de sentido, deixa em dúvida sua

pretensão de uma nova filosofia, de virada do pensamento kantiano.245

Ao prosseguir com sua análise crítica sobre a transformação da filosofia

transcendental pela filosofia hermenêutica, Apel observa que a pergunta gadameriana como é

possível compreender? deve ser proposta ao todo da experiência do mundo e da vida do

homem. Pois este enfoque hermenêutico “supera tanto a epistemologia como a filosofia da

reflexão, ao propor uma ‘teoria da experiência real’, na qual a compreensão se entende como

um acontecer experiencial, pertencente à história”.246

Para Apel, este questionamento é

fundamental para a hermenêutica transcendental, “de uma filosofia transcendental que reflita

a pré-estrutura do Compreender para todas as formas de cognição científica e pré-

243

RUEDA, Luis Sáez. Facticidade y excentricidad de la razón. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii).

Discurso y realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 237. Para Apel, não há dúvida que a averiguação sobre a

constituição de sentido pode lhe trazer um avanço para a filosofia: a pertença à história e à finitude da existência

(Heidegger e gadamer); o a priori corporal, como pontos de vista da posse do mundo (Merleau-Ponty); os

interesses do conhecimento; formas de vida associadas com a compreensão linguística ordinária (Wittgenstein).

Cf. Ibid., p. 237. 244

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 36. 245

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 46-48. Segundo Apel, as investigações de E.

Tugendhat trouxeram excelentes contribuições sobre o conceito de verdade em Heidegger: a concepção de

verdade em Heidegger (herdada por Husserl), entendida como verdade declarativa – verdade enquanto des-

cobrimento do ente tal como ele é – foi ampliada e entendida no sentido do seu conceito do estar-aberto do ser-aí

(ou “clareação” do ser). Heidegger compreendeu que uma declaração é verdadeira quanto ela des-cobre. Não

obstante, Heidegger comparou a verdade à eletheia (no seu sentido próprio de desocultação). E como o

descerramento de sentido sempre se refere ao ocultamento de sentido, Heidegger não percebeu a distinção entre

ele e a verdade declarativa. Pois somente essa se refere ao ser-em-si do ente, como também somente nela

encontra-se o diferencial entre as instâncias subjetiva e objetiva. E é nessa condição que se tornará possível

averiguar ou justificar nossas asserções. Ora, no caso da clareação (ao mesmo tempo desocultamento e

ocultamento) não há diferença entre sujeito e objeto, como também não existe possibilidade de justificação

imediata. Assim, a verdade, na concepção de clareação, não pressupõe qualquer ato de responsabilidade. Dessa

concepção acerca da verdade, Apel extrai as seguintes consequências: a) Heidegger não desenvolveu um novo

conceito de verdade, mas apenas o desvelamento da pré-estrutura da problemática da verdade. A pré-estrutura

assemelha-se ao “compreender”, enquanto estar-aberto do ser aí, que já precedente toda compreensão da

subjetividade; b) o estar-aberto do ser aí, que precede toda subjetividade, não imprime verdade em si mesmo e,

por isso, não há qualquer motivo para consentir a “virada” de Heidegger e nem para pensar na resolução da

problemática da constituição e justificação em sentido kantiano. A filosofia do ser ainda não conseguiu superar a

filosofia transcendental. Deve, também, ser extinto a separação, imposta por Gadamer, entre a possibilidade do

compreender e a justificação dos resultados do compreender. A filosofia, então, roga por uma reviravolta de

caráter pragmático-transcendental-hermenêutico; c) na historicidade da pré-estrutura hermenêutica do

compreender é apresentado o particular desafio para a transformação de uma filosofia transcendental. Cf. Ibid.,

p. 49-51. 246

CONILL, Jesús. Tras la hermenéutica transcendental, p. 52.

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61

científica”.247

Mas esta pergunta não pode ser realizada sem a pergunta sobre a validade do

compreender. Ora, como propõe Gadamer, tal questionamento deve ser respondido pela fusão

de horizontes ou mediação do presente com o passado. Ao contrário, segundo Apel, para

responder tal pergunta é necessário estabelecer um critério de diferenciação entre o

“compreender” adequado e o “compreender” inadequado (ou seja, distinguir o “compreender”

do “mal entendido”). Neste sentido, a exigência de uma hermenêutica filosófica normativo-

metodologicamente deve ser garantida independentemente da demonstração dos limites da

possibilidade do compreender. Sem uma criteriologia relevante, o discernimento

transcendental-hermenêutico não pode se diferenciar da “elucidação” empírico-analítica.

Para Gadamer, os pré-juízos e opiniões dados na consciência do interpretante não

estão à disposição dele (do interpretante). Ainda mais, como ele não está em condições de

distinguir os pré-juízos que possibilitam a compreensão daqueles que obstruem a

compreensão, “se faz necessária mediação entre o presente e o passado para que aconteça o

discernimento acerca da validade dos pré-juízos”.248

Segundo Apel, este critério é irrelevante

para discernir a validade dos pré-juízos, uma vez que seria necessária uma distância temporal

como também reflexiva e crítica para avaliar os pré-juízos e, dessa maneira, possibilitar o

julgar da compreensão e dos pré-juízos pela dimensão crítico-normativa, capaz de validar seu

julgamento e de se auto-avaliar como instância crítica. Também, para Apel, é impossível

considerar a fusão de horizontes como critério relevante para validação: ainda que seja

necessária a fusão de horizontes para a compreensão, ela, por si só, não possibilita reflexão

crítico-reflexiva, pois somente possibilitará o compreender diferente, e não ao compreender

melhor. 249

Segundo Gadamer, na obra verdade e Método, o sentido de um texto sempre estará

superior ao seu autor. O ato de compreender nunca se tornará uma reprodução, mas sempre

produção. No entanto, como afirma Gadamer, a compreensão não pode pautar-se por um

compreender melhor, mas sempre de forma diferente: “quanto se logra compreender,

compreende-se de um modo diferente”.250

Gadamer sustenta sua proposição com a sentença:

247

APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 52. 248

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 39. 249

Cf. Ibid., p. 39-40. 250

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 392. Gadamer, com esta proposição, está fazendo uma

crítica ao Historicismo, que acredita na objetividade da verdade, ou seja, que toda análise deveria retornar ao

espírito da época e utilizar-se dos conceitos e representações próprios daquele momento histórico, em detrimento

da originalidade do pensar de um intérprete. Dessa maneira, poder-se-ia alcançar a objetividade histórica. Cf.

Ibid., p. 393.

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“o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um

determinado ponto final, visto ser um processo infinito”.251

Para Apel, se o compreender

simplesmente resulta no compreender diferente, porque está condenado à infinitude da

interpretação (pois, segundo Gadamer, “não pode haver uma interpretação correta ‘em si’,

justamente porque em cada um está em questão o próprio texto”252

), toda situação histórica

somente suscita mais uma compreensão (diferente), porém não capaz de sustentar uma

argumentação entre os dialogantes, que seja sustentável ou incontestável.

Neste sentido, como afirma Apel, a máxima gadameriana entender um autor melhor

do que ele mesmo compreende a si parece apenas apontar outra maneira de entender, e nada

mais. Este cânon “somente pode entender-se desde a radical finitude que reivindica a

hermenêutica experiencial e o enfrentamento não menos contundente contra a filosofia do

espírito que se impute o protagonismo da história universal”.253

Pois Gadamer entende que a

hermenêutica, ao romper com o saber absoluto e admitir que cada interpretante tem

legitimidade no ato de interpretação referente à história, pode atribuir superioridade a um

intérprete, a capacidade de “compreender melhor” (como entende Gadamer, a hermenêutica

caracteriza-se por ser uma “hermenêutica da finitude”: a consciência humana é determinada

pela história254

), e que, portanto, “haveria um progresso e consequente superioridade das

interpretações tardias sobre as precedentes, sendo capazes de entender as gerações anteriores

melhor do que estas entenderam a si mesmas”.255

Sobre essa sentença, para Apel, apenas é possível considerar, como relevante, a

possibilidade de verdade do interpretando, uma vez que tal possibilidade compõe o elenco dos

pressupostos constitutivos da hermenêutica. No entanto, “deduzir a inferioridade de quem

compreende acaba por cair na legitimação conservadora da tradição através da reabilitação do

argumento de autoridade anterior ao Iluminismo europeu”.256

Nesta perspectiva, para Apel,

além da superioridade do interpretando, há necessidade de um autoprevalecimento reflexivo

do espírito (no sentido hegeliano), que derive em um primado judicativo do intérprete. Este,

por sua vez, caso não atribua a si mesmo um julgamento crítico e verdadeiro, não passará de

um instrumento eficaz a serviço do dogmatismo (segundo alguns “racionalistas críticos”, a

251

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 395. 252

Ibid., p. 514. 253

MORATALLA, Agustín Domingo. Gadamer y Apel: hermenéutica experiencial o hermenética

trancendental? ANTHROPOS 183 (1999), p. 74. 254

Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-pragmática, p. 227. 255

SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 61. 256

Ibid., p. 61.

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63

hermenêutica deve fundar-se numa dimensão dogmática e distanciar-se de qualquer reflexão

crítica).257

Dessa forma, a contradição entre o racionalismo crítico e a ideia hermenêutica

pode ser superada caso entenda a hermenêutica como princípio normativo, sustentada pela

ideia transcendental-filosófica do compreender. Somente dessa maneira será possível postular

resposta ao problema da possibilidade do compreender.258

“O que Apel propõe é uma

dialética em que identidade e alteridade possam compor a um só tempo a síntese do

compreender”.259

Mas uma dialética que supere o idealismo metafísico e o materialismo, a

saber, uma dialética mediada entre hermenêutica e a crítica da ideologia, em constante busca

pelo progresso do acordo mútuo entre os indivíduos, como tentativa de correção por meio da

crítica.260

Conforme Apel, não é necessário abandonar a perspectiva alemã do Compreender,

como autoprevalecimento do Espírito e autoconhecimento por meio do outro, para assegurar

a historicidade e superioridade do interpretando.261

Todavia, tal perspectiva requer a

introdução do princípio regulativo em sentido kantiano. Como afirma Apel, “trata-se hoje,

primeiro, de fixar a concepção do Idealismo alemão do saber-se do Espírito a si mesmo na

alteridade como condição de possibilidade para algo próximo do Compreender-o-sentido; e,

segundo, de conferir a tal concepção uma validação teórico-científica e metodológica”.262

Conforme Apel, a máxima compreender melhor um autor do que ele compreende a

si mesmo parece relevante e inevitável e pode até ser interpretada como princípio normativo.

O compreender um autor melhor que ele mesmo não quer dizer que o autor esteja

257

No sentido hermenêutico de Gadamer, a verdade não é refletida de uma maneira crítica. Pois não há

averiguação sobre a veracidade ou falsidade da compreensão. Dessa forma, não há questionamento pela

objetividade da verdade, mas somente pela efetivação histórica, pelo fato da verdade consolidar-se como um

acontecer efetivo-histórico. Gadamer, então, funda um dogmatismo acrítico, que se expressa na sua própria

expressão “antecipação da perfeição” ou “pré-juízo da perfeição”, que é o pressuposto formal que guia toda

compreensão. Tal pressuposto sustenta que o compreensível representa uma unidade perfeita e que o dito pelo

texto é uma perfeita verdade: um texto é aquilo o que exatamente diz o “pré-juízo” e, por isso, este só pode falar

de uma perfeita verdade. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 42. 258

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 54-57. 259

SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 62. 260

Cf. Ibid., p. 62-63. Segundo Apel, o progresso do acordo mútuo pode ser admissível a partir de uma crítica

transcendental do sentido. Assim, a pré-estrutura transcendental hermenêutica considera que os indivíduos estão

inclinados (ou “condenados”), na dimensão a priori, ao acordo intersubjetivo, condição de todo entendimento e

conhecimento válido sobre as coisas e o mundo social. Somente nesta perspectiva se poderá superar o solipsismo

metódico, instaurado desde Descartes. Cf. Ibid., p. 63. Não há dúvida que esta concepção de Apel, ao pressupor

que os homens estão “condenados” ao entendimento, seja assunto para divergências e longas discussões no seio

da Ética do Discurso. Pois a condição transcendental, ainda que ancorada na hermenêutica e na interação entre

sujeitos, é um ponto de extrema aproximação entre Apel e Kant e que, por isso, assegura Apel como portador de

uma ética universal, o que para muitos vem a ser mais um representante do nominalismo, já instaurado por Kant. 261

Este foi o ponto de partida da discordância de Apel com Gadamer. Cf. MORATALLA, Agustín Domingo.

Gadamer y Apel, p. 74. 262

APEL, op. cit., p. 57.

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desqualificado de compreensão, mas que a tarefa da hermenêutica estará sempre radicada na

superioridade de um autor (outro), enquanto a tarefa do compreender for possível, quer dizer,

compreender sempre um autor melhor do que ele compreende a si mesmo. Eis, então, um

postulado necessário para a filosofia hermenêutica.263

No entanto, como analisa Apel a partir

de uma perspectiva crítica, tal postulado está comprometido devido à distância temporal,

prescrito por Gadamer em Verdade e Método: a distância temporal permite “distinguir os

verdadeiros preconceitos, sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que

produzem os mal-entendidos” (fusão de horizontes).264

Pois ao pressupor uma identificação

com o autor, Gadamer reduz o entendimento a um campo ilusório, uma vez que a

identificação com o autor esteja pautada por mecanismos cognitivos no sentido psicológico.

Para Apel, uma mediação só pode ocorrer nos atos intencionais separados espaço-

temporalmente no “pensamento”, em detrimento de conceitos temporais de ocorrência.265

Resulta, então, que Gadamer, ao garantir que a compreensão consista no

compreender melhor um autor do que ele compreende a si mesmo, apenas confere

superioridade à compreensão por pautar-se de modo diferente, como também reduz a

automediação progressiva da compreensão, assim como impossibilita o questionamento sobre

a objetivação da verdade pela efetivação histórica. Neste sentido, não é possível afirmar que o

modo de compreender diferente encerre a compreensão para a hermenêutica filosófica, que

ela baste em dizer que se compreende de maneira diferente. Mas somente no caso e na medida

do compreender melhor se pode dar segurança da compreensão:266

no âmbito da

263

Segundo Apel, “é possível aplicar esse postulado até mesmo no caso-limite da compreensão [Verstehen] de

teorias matemáticas. Pois à medida que esse Compreender, como Compreender histórico, pertence à história

espiritual, então o pensamento matemático não é apenas reconstruído de forma idêntica, mas sim inserido em um

contexto mais abrangente da Matemática. Sob esse ponto de vista, talvez se possa afirmar que a geometria

euclidiana não tenha sido entendida por completo pelos muitos matemáticos que se limitaram a reproduzi-la;

entenderam-na, sim, e melhor do que o próprio Euclides, os que mais tarde vieram a relativizá-la. Einstein, nesse

sentido, afirmou de modo sagaz só ter realmente entendido, em Física, as coisas que tinha sido capaz de

aprimorar.” APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia I, p. 58. 264

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, p. 395. Gadamer está preocupado em garantir a

“originalidade” do intérprete ao compreender um texto e, para isso, ele deve livrar-se de todo preconceito, de

requisitos pré-estabelecidos para sua análise. Por isso, a distância temporal pode ser necessária para uma crítica

da hermenêutica. Também atesta Gadamer (em Verdade e Método) que alguns críticos atacam a hermenêutica

filosófica por ela não referir-se à universalidade científica das coisas (e, por isso, ser a-científica) e por atacar a

tradição (pelo fato dela imprimir preconceitos acerca da verdade), reduzindo-a simplesmente como algo

secundário. Neste sentido, Gadamer afirma que Apel, ao fazer a crítica à hermenêutica, não conseguiu entender a

hermenêutica filosófica na sua dimensão de aplicação, ou seja, ao criticar a tradição, a hermenêutica combate

toda “aplicação consciente” que determine o compreender e que favoreça a corrupção ideológica do

conhecimento. Apel e todos os outros críticos, segundo Gadamer, deveriam considera seriamente esse princípio

da hermenêutica filosófica. Cf. Ibid., p. 303. O texto segue com uma plausível análise de Gadamer (a favor e

contra) sobre o pensamento crítico de Apel, particularmente nas páginas 304-309 da mesma obra. 265

Cf. APEL, op. cit., p. 60. 266

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 41.

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hermenêutica transcendental deve-se postular que “a razão humana não somente se pensa

como finita e empiricamente condicionada, senão que pode adotar, não sem um disciplinado

esforço, a perspectiva da universalidade”.267

Por isso, torna-se necessário uma mediação por meio daquilo que é idêntico ao

pensamento, a linguagem (que alcança o mérito de instrumento de identificação). Ao

conceber que identidade e alteridade estejam sempre pressupostas no compreender, deve-se

pensar, então, numa fundamentação a partir do pensamento e mediada com a natureza: uma

fenomenologia dialética iniciada “no ponto da mediação dos momentos de espírito e matéria,

que são para nós ‘equiprimordiais’. Tal fenomenologia corresponderia à ‘pré-estrutura do

Compreender’ descoberta por Heidegger”.268

Fundamentalmente, para Apel, a filosofia hermenêutica deve-se pautar por uma

dimensão crítica, fundada no questionamento kantiano pelas condições de possibilidade e

validade do conhecimento, que se traduz como critério de toda validade e fundamento do

conhecimento, pressupostos tais de toda interpretação com sentido269

e, com tudo isso, guiada

por um princípio regulativo.270

Por isso, Apel procura construir uma filosofia capaz de pensar

o problema hermenêutico da constituição do sentido, via à reflexão transcendental,

interpretado pela linguagem. Apel, portanto, identifica a contribuição de Heidegger e

Gadamer ao problema da constituição do sentido, mas também procura superá-los, por meio

de uma análise crítica, pelo fato de eles não conseguirem dar uma resposta plausível ao

problema da verdade e de sua validade.

267

MORATALLA, Agustín Domingo. Gadamer y Apel, p. 74. Ainda sustenta Apel que a “produtividade do

distanciamento temporal” (do entender de outra maneira) parece “ser possível de concretização através do

momento materialista da motivação de interesses de todos os atos humanos, insondada tanto pelo autor como

pelo intérprete [...] uma dialética situada aquém do idealismo metafísico e do materialismo”. APEL, Karl Otto.

Transformação da filosofia I, p. 61. 268

APEL, op. cit., p. 61. 269

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 43. Dessa forma, segundo Apel, a filosofia

transcendental deve tratar das condições de possibilidades e validade do conhecimento. Essa condição permite à

filosofia transcendental assegurar-se da dimensão crítica, ao estabelecer critérios para distinguir o verdadeiro do

falso. Ao contrário, Gadamer reduz a hermenêutica à pergunta pelas condições de possibilidade. E, ainda que ele

(em Verdade e Método) utilize termos como adequação, interpretação correta, validade de opiniões prévias,

pré-juízos legítimos, exame de opiniões, legitimidade dos pré-juízos, não consegue desenvolver satisfatoriamente

a problemática da validade da compreensão, a problemática da verdade. Cf. Ibid., p. 32. 270

Cf. MORATALLA, op. cit., p. 74.

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2.3 A transformação semiótica da lógica transcendental kantiana

Segundo Apel, Charles S. Peirce instaurou a transformação da filosofia

transcendental kantiana ao postular uma semiótica tridimensional.271

Esta empreitada (já

acenada por Charles Morris na logic of science moderna) consolidou-se como reconstrução

crítica da Crítica da Razão Pura. Na interpretação de Apel, de um lado, em Peirce encontram-

se as principais características da lógica da ciência analítica, por tratar do problema de

validação ou justificação e por substituir a crítica cognitiva pela crítica de sentido; de outro,

nota-se em Peirce uma contraposição à logic of science, ao renunciar a sintática e a semântica

como condições de possibilidade e validade de conhecimento em favor de uma dimensão

pragmática trivalente de interpretação de signos. Uma vez que o conhecimento agora deve

está mediado pelos signos, a crítica da metafísica não se limita à crítica do conhecimento, mas

à crítica de sentido, por descobrir a falácia do conhecimento pré-semiótico (na sua relação

diádica) e a limitação da lógica científica (sintático-semântico).272

Peirce desconsidera a

relação bivalente entre teoria e fatos e, ao contrário, funda uma base trivalente ancorada numa

lógica científica semiótica. Peirce, então, inaugura uma lógica triádica da interpretação dos

signos,273

o que permite, para Apel, “recorrer a um elemento intersubjetivo análogo à unidade

transcendental da consciência kantiana”.274

Fundamentalmente, para Apel, este esforço peirceano remete a uma transformação

semiótica da “lógica transcendental” kantiana, que consiste no fato de Peirce deduzir, a partir

da semiose, “os três tipos de conclusão de sua lógica da pesquisa, bem como os três tipos de

signos, como ilustrações de suas três categorias fundamentais”.275

A semiose, como afirma

Peirce, pode ser explicada como: “um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo

271

Charles Sanders Peirce (1839-1914) é conhecido como o pai do pragmatismo, pensador de aguda capacidade

intelectual e escritor de uma vasta obra filosófica. No entanto, alguns de seus discípulos como Willian James e

John Dewey ficaram mais conhecidos que o próprio mestre. Peirce, por muito tempo em vida, permaneceu

isolado e sem muito prestígio acadêmico e grande parte da sua obra fora reconhecida somente entre 1931 e 1935,

quando ordenada sistematicamente e, depois em 1958, com a publicação dos oito volumes do Collected Papers.

Apel foi um grande estudioso da obra de Peirce e dele absorveu os fundamentos para o seu pensamento e

estruturação da Ética do Discurso. Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a

Factibilidade, p. 78-79. Como entende Apel, Peirce, no seu itinerário filosófico, obteve quatro períodos

fundamentais: 1) da crítica do conhecimento à crítica do sentido (1855-1871); 2) o surgimento do pragmatismo

da crítica de sentido (1871-1878); 3) do pragmatismo à metafísica da evolução (1885-1898); 4) do pragmatismo

ao pragmaticismo (1898-1914). Cf. APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce. Madrid:

Gráficas Rogar, S. A., 1997. 272

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 72. 273

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 187. 274

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 50. 275

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 194.

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aspecto ou modo, representa algo para alguém”.276

Eis as três categorias postuladas por Peirce

e interpretadas por Apel: na qualidade (primeiridade) algo como algo é expresso em seu ser-

assim, por meio de um signo. O “ícone” (signo que não tem conexão com o objeto que

representa. Suas qualidades somente se assemelham a do objeto277

) é próprio desta categoria e

deve estar explícito “em todo predicado de um juízo experiencial, a fim de que se integre à

síntese da representação o teor imagético de uma qualidade universal”;278

na relação diádica

(segundidade) há uma interação entre o signo e o objeto. Nesta categoria o “índice” (signo

que está fisicamente conectado com o seu objeto, que independe de uma mente

interpretante279

) “deve estar representado em todo juízo experiencial, a fim de garantir a

identificação espaço-temporal dos objetos a serem determinados por predicados”;280

na

relação triádica (terceiridade) há uma mediação de algo para um interpretante. O “símbolo”

(signo que mantém uma relação com o objeto por força de um interpretante, sem a qual essa

conexão não existiria281

) corresponde a esta categoria “e tem a principal função da síntese

como ‘representação’ em conceitos de algo como algo”.282

Tais conceitos dependem da

função do ícone e do índice. E esses, sem a função da representação, tornam-se cegos. Pois

somente a interpretação pode atribuir sentido à função do índice e do ícone.

Segundo Apel, para entender como estas três categorias e signos contribuem para o

esclarecimento de condição de possibilidade e validade da experiência é necessário, como

sustenta Peirce, ordenar os três tipos de conclusão às três categorias ou signos: “à terceiridade

corresponde à dedução, como mediatização racionalmente necessária; à secundidade, a

indução, como confirmação do que é geral pelos fatos representáveis aqui e agora; e à

primeiridade, a abdução, como cognição de novas qualidades do ser-assim”.283

Conforme

Apel, a descoberta da abdução (hipótese) possibilitou reais efeitos para a lógica pragmática de

Peirce, “pois a hipótese, segundo Peirce, é a conclusão que amplia nossa cognição, em sentido

kantiano, e que já está inconscientemente presente no juízo perceptivo”.284

Ora, a abdução

pressupõe uma premissa geral e necessidade de ser provada empiricamente com o apoio da

indução. Com isso, abdução e indução possibilitam responder a pergunta kantiana sobre a

276

PEIRCE. Charles S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 46. 277

Cf. Ibid., p. 73. 278

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 194. 279

Cf. PEIRCE, Charles S. Semiótica, p. 73. 280

APEL, op. cit., p. 194. 281

Cf. PEIRCE, op. cit., p. 73. 282

APEL, op. cit., p. 195. 283

Ibid., p. 195. 284

Ibid., p. 196.

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possibilidade e validade da experiência. Nesta perspectiva, a abdução tem a função de

possibilitar a experiência (“aqui é preciso que se mediatize, em primeira linha, a função de

ícone dos predicados proposicionais com o significado intencional dos predicados como

símbolos”285

); e a indução, de elucidar a validação empírica dos pressupostos universais,

sejam eles explícitos nos juízos perceptivos ou nas hipóteses normativas (“aqui é preciso que

se mediatize, em primeira linha, a função de índice da linguagem como identificação dos

objetos apresentáveis aqui e agora como significado extensional dos predicados como

símbolos de classe”286

).

Uma vez que a hipótese, dada em um juízo, possa ser testada empiricamente (por

indução), tal constatação empírica pode ser realizada mesmo antes da validação empírica do

juízo questionável, por meio da dedução. Neste procedimento, conforme Apel, Peirce

explicita seu método do aclaramento de sentido e da crítica de sentido, que consiste em sua

máxima pragmática. Para Peirce, na concepção de Apel, esse método é aplicado ao conceito

de real, sob a sentença: o objeto de minha experiência é real, e não mera ilusão.287

Com isso,

Peirce chega ao “ponto mais alto” de uma unidade da consistência possível da cognição:288

o

real é aquilo que os raciocínios, mais cedo ou mais tarde, explicitam o que ele é e, por isso,

não depende de caprichos individuais. Ao contrário, a concepção de realidade envolve a

noção de uma comunidade ilimitada de investigação. Fundamentalmente, nisso consiste a

máxima de transformação peirceana da lógica transcendental kantiana: na concepção de uma

comunidade ilimitada “convergem o postulado semiótico de uma unidade supra-individual da

interpretação, de um lado, e o postulado próprio à lógica da pesquisa de um asseguramento

experiencial da experiência ‘in the long run’, de outro”.289

Com isso, como entende Apel, Peirce distancia-se de toda dedução transcendental,

no sentido kantiano. No lugar dos princípios constitutivos da experiência, como requerido por

Kant, postula os princípios regulativos, “o que faz com que ele desloque a universalidade e

validade das proposições científicas para a meta do processo de investigação”,290

apoiado pelo

285

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 196. 286

Ibid., p. 196. 287

Cf. Ibid., 197. 288

Segundo Apel, a unity of consistency, que representa o ponto mais alto da transformação semiótica da

filosofia transcendental kantiana, não consiste na unidade objetiva das representações de um sujeito de

“consciência”, mas nas representações dos objetos semioticamente validadas por uma comunidade de

interlocutores, que somente pode ser alcançada pela interpretação dos signos. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do

Discurso e Verdade em Apel, p. 51. 289

APEL, op. cit., p. 197. 290

COSTA, op. cit., p. 51.

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caráter falibilista de toda proposição.291

Ainda mais veraz, segundo Apel, é a crítica de Peirce

à concepção kantiana de “coisas em si” incognoscível, e mais ainda contundente é a inversão

de Peirce sobre esta questão: “ao invés de distinguir entre objetos cognoscíveis e

incognoscíveis, Peirce distingue, sim, entre reais cognoscíveis ao longo do tempo e o já

factualmente conhecido, sob a ressalva de falibilidade”.292

Segundo Apel, o “idealismo transcendental”, compreendido pela distinção entre

coisas em si incognoscível e cognoscível, é o pressuposto basilar para a transformação da

filosofia kantiana por Peirce, o que representa uma nova “reviravolta copernicana” na

filosofia ocidental.293

Peirce, ao conferir fusão dos princípios da ciência à prática, aponta sua

definitiva transformação da filosofia kantiana, pois tal condição rejeita a distinção kantiana

entre razão teórica e prática, entre princípios regulativos e postulados morais. Esta acepção

permite entender que “o próprio processo cognitivo ilimitado, como processo social real, cuja

saída factual é incerta, constitui-se ao mesmo tempo em objeto da lógica e da ética”.294

Com

isso, Peirce chega ao cume de sua transformação da filosofia transcendental kantiana: aquele

que almeja se comportar de maneira lógica deve sacrificar todos os seus interesses

particulares em prol de uma comunidade ilimitada de comunicação, onde somente nela poder-

se-á alcançar a verdade das coisas.295

O interlocutor, no estado de consciência finita e de suas

convicções subjetivas, deve adotar as atitudes da auto-renúncia (frente aos próprios

291

Segundo Apel, Peirce fundamentou o princípio falibilista da ciência empírica ao mesmo tempo em que

fundamentou uma teoria da verdade como consenso, assegurada por este mesmo princípio. Importa, para Apel,

pensar o falibilismo de Peirce numa profunda relação ao falibilismo de Popper: para Peirce e Popper o

falibilismo corresponde a uma teoria evolutiva do saber, quer dizer, uma teoria do melhoramento do saber, a

longo prazo (mas sem qualquer proximidade com o ceticismo); também tem o caráter de, numa única

experimentação, refutar uma hipótese por mais importante que ela represente. No entanto, diferente de Popper, o

falibilismo peirceano acende, além de pressupor a validade das hipóteses, uma teoria normativa e está

referenciada ao consenso. E isto ocorre porque em Peirce o falseamento está associado, diferente de Popper,

dentro de um contexto mais amplo de verificação, estruturado pelos raciocínios abdutivos, dedutivos e indutivos.

Assim, em Peirce o falibilismo do conhecimento sintético se apóia nos raciocínios abdutivos que, por sua vez,

têm sua confirmação empírica nos raciocínios indutivos. E pelo fato desses raciocínios não pretenderem uma

conclusão obrigatória, é possível postular que todo conhecimento sintético deve ser falível. Para Apel, esta teoria

falibilista em Peirce leva a entender que toda convicção, particularmente aquelas advindas de raciocínios

sintéticos, deve estar assegurada por uma reserva falibilista. Neste sentido, ao incluir o princípio falibilista nos

raciocínios sintéticos, Apel considera que o princípio peirceano está referido a priori a certas ideias reguladoras.

Peirce, então, reconhece uma dedução transcendental de validade in the long run, diferente da dedução

transcendental kantiana, de todos os raciocínios sintéticos. Assim, interpreta Apel, que a convergência dos

raciocínios sintéticos, numa comunidade de comunicação, possibilita não somente o conhecimento progressivo,

mas um conhecimento profundo do real, e tal conhecimento, dado pelo falibilismo, implica numa teoria realista

da correspondência para a verdade dos enunciados. O falibilismo tem o caráter de oferecer o conhecimento sobre

o real. Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 340-344. 292

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 200. 293

Cf. Ibid., 200. 294

Ibid. p. 201. 295

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 76-77.

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interesses), do reconhecimento (de todos os direitos dos demais interlocutores de uma

comunidade real de investigação), do compromisso (na busca da verdade) e da esperança (por

um consenso definitivo). Este, que é o ponto supremo da transformação semiótica da filosofia

transcendental kantiana, foi chamado (um pouco mais tarde) de “socialismo lógico”.296

Dessa

forma, segundo Apel, Peirce superou definitivamente o solipsismo metódico, ao considerar

que o indivíduo não pode servir-se a si mesmo ou servi-se de uma comunidade em benefício

próprio, mas somente a uma comunidade de interlocutores, em busca da verdade e do

consenso.297

Apel, na construção da Ética do Discurso, irá absorver este legado do socialismo

lógico por entender não ser possível estruturar uma ética solidária sem considerar as atitudes

da auto-renúncia, do reconhecimento, do compromisso e da esperança. Não obstante,

procurará superar este legado, “porque a comunidade de investigadores será estendida para

alcançar a humanidade em seu conjunto e porque o socialismo lógico científico se converterá

em socialismo pragmático e hermenêutico”.298

Portanto, a transformação semiótica da lógica

transcendental, já criticamente reestruturada por Apel, substitui o eu penso kantiano pelo nós

argumentamos; a comunidade dos investigadores peirceana pela pragmática transcendental

em uma comunidade ideal de comunicação;299

o princípio de universalização do imperativo

categórico e o “reino dos fins” pela ideia consensual regulativa da comunidade interpretativa;

o factum kantiano da razão pela argumentação entre os dialogantes.300

2.3.1 O postulado da comunidade de experimentação e interpretação

Para Peirce, como afirma Apel, a cognição de algo só pode acontecer em uma

relação trivalente. A essencialidade da cognição consistirá na interpretação de algo como

algo, mediatizado pelos signos (terceiridade). “O essencial do conhecimento não é a relação

fática de um objeto intramundano frente a outro (categoria da segundidade), mas a

interpretação de algo como algo, a qual deve estar mediada por signos (categoria da

terceiridade).”301

Neste processo cognitivo não pode faltar nenhum dos elementos da relação

296

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 201. 297

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 77. 298

Ibid., p. 77. 299

Cf. Id. La transformación de la filosofía transcendental kantiana. In APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y

ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona: Paidos, 1998, p. 20. 300

Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiotica filosófica y ética discursiva, p. 53. 301

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 53.

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triádica caso se postule a cognição das coisas. Com isso, Peirce rejeita, como já mencionado,

toda e qualquer cognição baseada na relação bivalente sujeito-objeto, teorias-fatos, como

também advinda de meros dados sensoriais ou de conceitos puros, no sentido da síntese

transcendental da apercepção kantiana. Tal perspectiva alcança o ponto mais radical da

transformação semiótica da filosofia kantiana.

Os signos, como entende Apel a partir de Peirce, no processo de entendimento e

conhecimento entre os dialogantes, não somente determinam a linguagem falada ou escrita,

mas ditam os dados da experiência exterior e interior, pois os conteúdos individuais da

consciência como também os elementos do mundo exterior são veículos de signos. Como

afirma Peirce, “o ser humano deve conceber-se como um pensamento-signo”.302

Segundo a interpretação de Apel, três elementos decorrem da relação trivalente dos

signos, fundada por Peirce, e que são fundamentais para a constituição da ética do discurso:303

a) não há nenhuma cognição de algo como algo sem uma mediatização sígnica real com base

em veículos sígnicos materiais. Os símbolos, índices e ícones estão inclusos aqui. Esses dois

garantem a referência situacional do discurso e sua estrutura e expressão, bem como também

possibilitam ao indivíduo integrar a natureza e a técnica à função sígnica da linguagem e, com

isso, alcançar a cognição. A linguagem convencional dos símbolos está em estreita relação

com os objetos identificáveis. Nesta primeira dimensão ocorre, segundo Apel, a

transformação semiótica da epistemologia em sentido estrito; b) não há qualquer função de

representação do signo para a consciência sem um mundo real, que em princípio precisa ser

pensado como representável em aspectos, isto é, cognoscível em aspecto. Para Peirce, a

suposição kantiana da coisa-em-si incognoscível é um absurdo, pois já concebe como

incognoscível aquilo que pode ser cognoscível. Ora, para ele todas as “qualidades” da coisa

incognoscível já pressupõem a existência de um real cognoscível. Uma sensata distinção

somente pode acontecer, como já explicitado, entre as coisas que ainda podem ser

cognoscíveis daquelas já cognoscíveis faticamente (o que torna possível Apel entender que

cognoscibilidade e ser são a mesma coisa). Essa distinção corresponde ao falibilismo e ao

convencionalismo crítico, que regulam a validação do conhecimento dos indivíduos.304

Nesta

segunda dimensão ocorre, segundo Apel, a transformação semiótica da crítica cognitiva; c)

302

APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 70. 303

Cf. CORTTINA, Adela. Razon Comunicativa y responsabilidad solidária, p. 72. 304

Uma vez que distingue aquilo já conhecido por uma comunidade finita de investigadores e aquilo que pode

ser conhecido por uma comunidade ilimitada de comunicação, tal distinção, juntamente com o terceiro elemento

da relação trivalente, representa o ponto decisivo para a ética apeliana. Cf. CORTTINA, op. cit., p. 73.

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não há nenhuma representação de algo como algo por meio de um signo sem que haja

interpretação por um intérprete real. O processo de cognição, por um lado, imprime a

invalidade da consciência pura por um sujeito real portador de signos; por outro, promove a

substituição da consciência objetual pela interpretação dos signos, que confere transcendência

a toda subjetividade finita pelo processo de cognição como processo de interpretação. Nesta

terceira dimensão ocorre, segundo Apel, a transformação semiótica da crítica de sentido do

real.305

Nesta perspectiva, a pergunta pelo sujeito da cognição só pode ser respondida no

sentido peirceano de uma comunidade ilimitada de comunicação, promotora de um

crescimento definitivo da cognição (como desenvolvida por Peirce em 1868). Tal comunidade

apropria-se de uma interpretação ilimitada (não é refém de um sujeito isolado ou de uma

consciência finita) “e tem como consequência que não podemos conhecer o real

definitivamente, pois isto implicaria reduzir a categoria de terceiridade, que refere o universal

do conceito ou da lei ao processo ilimitado de interpretação, à categoria de segundidade”.306

Peirce, então, substitui a síntese transcendental kantiana pelo postulado de uma

convicção última, que somente pode se sustentar em uma comunidade de comunicação,

contrária ao sujeito (solitário) do conhecimento. A comunidade real de comunicação não está

fadada a uma função factual e a uma descrição meramente empírica, mas à criticidade da

realidade e validação das verdades alcançadas a partir de um processo interpretativo da

comunidade dos cientistas, e com inclinação normativa das suas proposições validadas: “o

consenso postulado de maneira senso-crítica é a garantia da objetividade da cognição que

surge em lugar da ‘consciência geral’ kantiana”.307

Tal objetividade tem caráter de ser normativo e postula ser ideal numa comunidade

real de comunicação. A comunidade tem o dever de converter sua compreensão dos símbolos

em regras de comprometimento realmente eficazes. Esta condição real de possibilidade de

sentido será admissível na medida em que as “condições materiais do conhecimento” forem

pressupostos reais de definição de sentido.308

Como entendido por Apel, este postulado de

305

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 213-117. Fundamentalmente, “a crítica de sentido

exige supor uma comunidade ilimitada de investigadores, que dará conta do cognoscível num processo

indefinido de conhecimento, e que garanta a objetividade e verdade do acordo nos consensos fáticos mediante

um consenso ideal, que funciona como ideia regulativa”. CORTINA, Adela. La transformación de la filosofía

transcendental kantiana, p. 20. 306

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 55. 307

APEL, op. cit., p. 218. 308

Cf. Id., El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 53.

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uma comunidade científica (peirciana) rompe com os pressuposto de uma filosofia

transcendental da consciência pura para admitir o reconhecimento do a priori do

conhecimento comprometido, que pressupõe uma mediação com o real.309

E sua possibilidade

de aplicação das normas alcançadas só pode acontecer por um postulado ético de engajamento

e de esperança, que se sustenta no princípio peirciano do socialismo lógico. É neste horizonte

que Peirce, segundo Apel, mediatiza o problema das razões prática e teórica, ao ponto de não

cogitar qualquer possibilidade de não relação necessária entre o caráter transcendental e o

normativo; de não possibilidade de mediatização entre o ideal e o real.310

Não obstante, segundo Apel, tal perspectiva veio alterar-se com a fundação do

pragmatismo, particularmente a partir da divulgação das obras The Fixation of Belief e How

to Make Our Ideas Clear (1877/78), de Peirce. O processo cognitivo dado pela interpretação e

mediação dos signos fora substituído pelo comportamento das coisas, o que provocou a

substituição do consenso alcançado pelos cientistas pela “fixação de uma convicção”,

confirmada pelo estabelecimento de um hábito comportamental, identificado na experiência.

Pois como afirma Peirce em The Fixation of Belief, “o sentimento de acreditar é mais ou

menos uma indicação certa de se haver estabelecido em nossa natureza algum hábito que

determinará nossas ações”,311

perspectiva tal acentuada em How to Make Our Ideas Clear, ao

considerar que “a essência da crença é o estabelecimento de um hábito, e diferentes crenças

distinguem-se pelos diferentes modos de ação a que dão origem”.312

Conclui Peirce, ainda

nesta obra que “a realidade do real depende do fato de que a investigação, se prolongada

suficientemente, está destinada a finalmente levar a uma crença nela”.313

Diante desta nova abordagem peirciana, Apel observa, entretanto, que a linguagem

também tem competência para ler os significados dos símbolos a partir do comportamento

dos interlocutores que estão se comunicando em uma comunidade interpretativa. E tal

interpretação não pode estar fundada em descrições vindas da observação. Por isso, requer

algumas pressuposições necessárias para assegurar seu estatuto hermenêutico: os

interlocutores devem estar em condições de entender o uso correto das regras da linguagem e

utilizá-las na comunidade de comunicação como meio de entendimento com os demais. E,

junto a isto, renunciar “que a regra atribuída de fora aos dados da observação a fim de

309

Cf. APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 53. 310

Cf. Id., Transformação da Filosofia II, p. 218-219. 311

PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da Lógica da Ciência. Trad. Renato Rodrigues Kinouchi. Aparecida:

Ideias e Letras, 2008, p. 43. 312

Ibid., p. 70. 313

Ibid., p. 85.

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‘elucidá-los’ linguisticamente, nesse caso, seja a mesma pela qual se orientam os objetos

comunicantes”.314

Mas, para Apel, o aclaramento de sentido peirciano não está referido à constituição

linguística do uso de linguagem e, por isso, torna impossível um aclaramento pelo uso factual

da linguagem, justamente por entender que a linguagem pode estar baseada sobre mal

entendidos.315

Isto vem sinalizar, para Apel, que a máxima pragmática do aclaramento de

sentido parece não se distanciar muito de uma possível substituição da compreensão do

sentido das ideias pela descrição de consequências dessas ideias, dadas factualmente. Assim

como também sinaliza que os hábitos (disposições comportamentais) não podem ser

identificados e entendidos simplesmente a partir da observação empírica, “mas como regras

que – no sentido da ‘terceiridade’ – podem mediatizar nosso agir subjetivo autocontrolado

com fatos da observação possíveis”.316

Entende-se, portanto, como interpreta Apel, que no

pragmatismo semiótico de Peirce (particularmente desenvolvido por volta de 1903) “não se

substitui aqui intelecção de sentido por observação de dados experimentais, mas trata-se de

referenciá-la, no experimento intelectual, à experiência experimental possível”.317

Não

obstante, para Apel, esta máxima pragmática-semiótica de Peirce (do aclaramento de sentido)

enfrenta um sério problema, pois ao tentar determinar as disposições comportamentais

(hábitos) para explicar o sentido de um pensamento, já pressupõe (o que leva a entender) o

entendimento do pensamento a ser explicado, e isso somente gera um círculo lógico.318

Em

todo caso, como entende Apel, a máxima pragmática do aclaramento aborda o esclarecimento

conceitual a partir da experiência experimental possível.

Já na sua fase tardia (1905 em diante), como entende Apel, Peirce distingue três tipos

de interpretantes de símbolos: emocional, energético e lógico.319

Os dois primeiros

interpretantes correspondem aos efeitos empiricamente constatáveis dos símbolos sobre o

intérprete, ao passo que o terceiro corresponde à própria tradução aplicável ao comportamento

humano. Ora, ao visar sempre o autocontrole em direção a um fim possível, o pragmatismo

está sempre direcionado para o futuro, porque lança sentido para o futuro, prescrito num

autocontrole. E, por isso, “é ao ‘ultimate logical interpretant’ que cabe concluir o processo

314

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 220. 315

Cf. Ibid., p. 220-221. 316

Ibid., p. 222. 317

Ibid., p. 222. 318

Cf. Ibid., p. 222. 319

Cf. Ibid., p. 224.

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interminável de interpretação, praticamente em favor de uma conclusão real viva’”.320

E essa

conclusão, para Peirce, está fundada numa disposição comportamental (hábito).321

Para Apel, todo este processo explorativo em busca da cognição demonstra como

Peirce desenvolveu sua teoria pragmático-semiótica ao longo do tempo: ele constrói uma

filosofia de mediatização normativa entre teoria e praxis, direcionada para uma filosofia de

caráter transcendental,322

em busca do consenso em uma comunidade ilimitada de

interpretação (como entendido no Peirce de 1968); e mais adiante, ao desenvolver a ideia do

pragmatismo, apropria-se de uma nova perspectiva de racionalização empregada na ideia do

autocontrole dos hábitos. É relevante constatar aqui, como concebe Apel, que em nenhum

momento o “sujeito” do conhecimento está reduzido à observação e descrição empírica, como

também não está em referência a uma consciência pura e transcendental. Ao contrário, ele

está em referência a uma comunidade real de interpretação, que pressupõe, como telos, uma

comunidade ideal ilimitada de comunicação. Nesta perspectiva, para Apel, “essa comunidade

é experienciável, mas não como um objeto da ciência, e sim como um meio intersubjetivo de

320

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 224. 321

Cf. Ibid., p. 224. 322

Para Apel, Peirce, ao recusar uma consciência geral e fundamentar a objetividade das ciências no processo de

acordo mútuo entre os cientistas, inaugura o consensus ominium que, semioticamente, corresponde à

“consciência transcendental” e garantia da objetividade. Dessa forma, a partir do acordo mútuo (dado por uma

comunidade) toda compreensão de sentido (realizada pela via dos signos) alcançaria a verdade intersubjetiva

possível. Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 234. E naquilo que se refere aos signos, “deve-

se notar, antes de tudo, que o fato de que Peirce conceba a relação sígnica ao mesmo tempo como relação do

conhecimento mediado por signos remete à necessidade de uma interpretação semiótico-transcendental”. APEL,

Karl Otto. Semiótica filosofica, p. 165. No prefácio da obra El camino del pensamiento de Charles S. Peirce

(tradução espanhola de 1997, depois de duas décadas da publicação do texto original Der Denkweg von Charles

S. Peirce), Apel faz algumas importantes considerações sobre sua análise e interpretação acerca do pensamento

de Peirce. Como ele mesmo afirma: “no caso de Peirce quero negar mesmo que ele tenha posto em juízo o

suposto fundamento de toda filosofia transcendental: o suposto das condições de possibilidade necessárias e

universalmente válidas da validade intersubjetiva do conhecimento” (p. 13). Segundo Apel, Peirce distancia-se

de uma possível fixação de princípios sintéticos a priori da ciência, como em Kant. Porém, “confia a

fundamentação da validade das ‘inferências sintéticas’ com base à investigação em uma sorte da ‘lógica

transcendental’, que é também uma lógica normativa da interpretação dos signos”. APEL, Karl Otto. El camino

del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 13. Entretanto, esta interpretação de Apel é combatida pelos peircianos,

por entenderem que Apel equivocamente entendeu o pragmatismo de Peirce como um princípio transcendental.

Dessa forma, Apel, assim como Habermas, parte do pressuposto que a relação necessária entre o geral e o

particular, prescrita na máxima do pragmatismo, só pode ser justificada a priori, o que não representa a

perspectiva semiótica de Peirce, uma vez que esta relação não é necessária, mas necessariamente modal:

“admitindo-se que ser é ser cognoscível, segue-se que um geral, seja possível ou necessário, deve ter o seu ser

dado fenomenologicamente, conforme explicita a máxima do Pragmatismo na sua versão metafísica. O núcleo

da Metafísica, a Cosmologia de Peirce, mostrou, por sua vez, como evolucionariamente se urdem as relações

entre o particular e o geral”. IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce.

São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 132.

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acordo mútuo quanto às condições de possibilidade e de validade conceituais próprios às

descrições dos dados da observação”.323

2.3.2 A crítica de Apel ao cientificismo de Peirce

Karl Otto Apel está convicto de que uma teoria pré-semiótica somente pode pensar o

processo de cognição numa relação sujeito-objeto. Os signos, neste horizonte, nada mais

representam que um instrumento de comunicação, daquilo que já está conhecido, o que

implica na desconsideração de toda ação intersubjetiva da linguagem e na negação de que

todo processo de cognição sujeito-objeto está mediado por signos e, portanto, pela relação

sujeito-sujeito no processo de cognição.324

Por sua vez, esta visão instrumental da linguagem

postula, como se auto-compreende, uma intervenção convencional (agregada à dimensão

sensorial e racional) no processo de cognição de algo como algo. Para Apel, tal convenção

nada mais representa que uma decisão efetiva do sujeito isolado sem qualquer relação de

acordo com os interlocutores, pois ignora uma comunidade hermenêutica transcendental de

validade de todo conhecimento objetivo. Com isso, observa Apel, uma teoria pré-semiótica

apenas pode propor uma explicação científica dos dados observáveis.325

Conforme Apel, em nenhum momento uma concepção semiótica pode substituir o

acordo intersubjetivo, mediado pelos signos, pela observação do comportamento (observação

objetiva). Torna claro, então, que somente a semiótica-transcendental pode assegurar o acordo

de uma comunidade linguística interpretativa e superar a tradição pré-semiótica solipsista.326

Neste sentido, como afirma Apel, ainda que Peirce tenha contribuído para a superação do

pensamento transcendental kantiano e solipsista, não é possível encontrar nele uma

transformação profunda pelo fato de ainda ficar preso num cientificismo objetivo. Pois, não

parece haver em Peirce “qualquer diferença entre o processo de pesquisa experimental em

ciências naturais e o processo de acordo mútuo na comunidade interpretativa dos seres

323

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 225. 324

Segundo Apel, a desconsideração da linguagem como medium de todo entendimento e possibilidade de

cognição intersubjetiva, dado pelo consenso numa comunidade de comunicação, corresponde ao chamado

nominalismo, próprio das filosofias pré-semióticas, daquelas que se utilizam dos signos apenas como

instrumentos para conhecer o já conhecido, numa linguagem lógica e solipsista. Por isso, nega que a linguagem

intersubjetiva em prol do acordo mútuo é condição de possibilidade e validade transcendental hermenêutica de

toda cognição. Cf. APEL, Ibid., p. 226-227. 325

Cf. COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 57-58. 326

Cf. Ibid., 59-60.

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77

humanos”.327

Para Peirce o consenso está ancorado no estado de coisas, mediado pela

experiência.

Ainda que a pragmática arquitetada por Peirce, enquanto lógica normativa, não esteja

reduzida à “elucidação” das ciências empíricas, ainda está referenciada à experiência

experimental, o que faz do método pragmático “refém” da experiência possível. Neste

sentido, só pode haver semiose via experiência; só há comprovação e sentido dos símbolos na

experiência. Portanto, o sentido dos símbolos depende da experiência experimental, o que

implica afirmar que o acordo mútuo só pode ser alcançado ao longo do tempo. Dificulta, com

isso, a distinção entre o processo de pesquisa experimental e o acordo mútuo da comunidade

interpretativa. Também, ao referir-se exclusivamente à experiência, o sujeito corre o perigo de

isolar-se (no sentido solipsista) e negar a intersubjetividade de uma comunicação, assim como

a relação com a história. Por isso, a máxima pragmática do aclaramento de sentido não

consegue fundamentar uma hermenêutica orientada para as ciências humanas e mediadora de

sentido entre a tradição e a comunidade de interlocutores.328

Ora, como analisa Apel, Royce abandona esta perspectiva de um “acordo” fundado

na observação dos fatos e sob os dados da experimentação ou comprováveis

experimentalmente (elucidação). Ao contrário, para Royce o acordo deve estar ancorado

numa comunidade de comunicação, usuária da linguagem como medium de todo

entendimento e interpretação. Enquanto Peirce criou o paradigma da interpretação na

terceiridade, Royce aplicou este horizonte no processo da história do espírito.329

Segundo

Apel, também é possível identificar em Gadamer uma contraposição ao cientificismo de

Peirce: não tem sentido postular a verdade nas ciências do espírito referindo-se à objetividade

científica. Para Gadamer, o sujeito da compreensão está edificado na abertura de sentido do

ser-aí histórico e, por isso, não concebe a verdade a partir de uma aproximação metódica ao

ideal de objetividade. Ao contrário, como interpreta Apel, Peirce entende que o consenso da

comunidade científica é a garantia da objetividade. Assim, “graças à relação que todo acordo

de sentido guarda com a possível experiência, toda a compreensão, enquanto interpretação de

327

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 231. Não obstante, para Apel, o aclaramento de sentido –

em seu estado bem sucedido – surge como “transição histórica que parte da mediatização histórica da tradição,

feita pela comunidade interpretativa atenta à interação, rumo à clareza dos conceitos relacionados à experiência

experimental, que são indiferentes à história”. Ibid., p. 240. 328

Cf. Ibid., p. 230-231. 329

Cf. Ibid., p. 231-232.

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signos, alcança também a verdade intersubjetiva que é acessível mediante o consenso dos

cientistas referido a sua matéria”.330

Apel critica o cientificismo peirciano na tentativa de também superá-lo em busca de

uma filosofia transcendental-linguístico-pragmática. Segundo ele, o cientificismo já parte do

pressuposto que o acordo é sempre uma auto-afirmação de algo já dado, o que pode levar ao

perigo de manipulação empírica e auto-afirmação de um “eu” em busca de seus fins. Por isso,

a linguagem, que numa comunidade de comunicação é medium de todo entendimento e

acordo entre os dialogantes, não pode ser considerada apenas a instituição das instituições,

mas a meta-instituição, ou seja, “a instância crítica de todas as normas sociais refletidas; e

também [...] uma instância normativa obrigatória que não abandona os indivíduos ao arbítrio

dos seus próprios pensamentos, mas os abriga [...] a um acordo mútuo intersubjetivo sobre as

normas sociais”.331

A linguagem tem a função fundamental de romper com os raciocínios subjetivos dos

indivíduos e integrá-los num diálogo em busca de um consenso e, por isso, possibilitar um

acordo intersubjetivo. Ao contrário, “o método pragmático para aclarar o sentido se apresenta

com a intenção de relacionar todo o sentido com operações e experiências que qualquer

sujeito isolado pode levar a cabo em qualquer momento independente da sua interação

histórica com outros”.332

Esta perspectiva, segundo Apel, rompe com o papel fundamental do

diálogo e do acordo, pois não pressupõe uma pré-compreensão intersubjetiva da linguagem, o

que dificultaria qualquer explicação sobre a experiência. Para Apel, “esta pré-compreensão

intersubjetiva pressuposta em toda interpretação é uma lei fundamental que rege a operação

pragmática operacionalista do sentido e a linguagem ordinária histórica”.333

Neste horizonte, a

linguagem deve ser interpretada como constituída de linguagem científica e relacionada com a

experiência experimental, condição básica para conferir sentido a conceitos como “verdade”,

“justiça”, “dignidade humana” etc.

Para Apel, é possível, junto com Peirce, postular uma comunidade ilimitada de

interpretação em busca do acordo e, contra Peirce, recusar o reducionismo cientificista da

experiência, uma vez que se almeja o relacionamento com o mundo histórico, mediado pelo

330

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 61. 331

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 238. E, por isso, a linguagem não pode ser considerada

como mera disciplina especial da semiótica, com instrumento de interpretação dos signos, mas via necessária de

interpretação simbólica no processo cognitivo válido em busca do consenso. Somente ela pode possibilitar tal

alcance. Cf. APEL, Karl Otto. Semiótica Filosófica, p. 166. 332

COSTA, op. cit., p. 63. 333

Ibid., p. 63.

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79

sujeito de interpretação sígnica. Conforme Apel, a superação da proposta pragmática

peirciana só pode ser alcançada na conjugação complementar da hermenêutica gadameriana

com a semiótica de Peirce: “a partir da hermenêutica inspirada na análise existencial, fazer

frente à redução cientificista da mediação histórica da tradição distinguindo entre a práxis e a

experiência científico-técnica e a práxis e a experiência da interação”.334

Este legado

possibilita a superação da abstração hermenêutica, assim como do cientificismo experimental.

E, fundamentalmente, rompe com o rigorismo científico ao pressupor a mediação da pré-

compreensão hermenêutica como critério normativo relevante para a comunidade dos

interlocutores e para toda compreensão humana.

Por isso, ao invés da comunidade dos experimentadores (no sentido peirciano,

limitada cientificamente) Apel propõe a comunidade histórica de interação, que surge como

possibilidade última de realização do princípio regulativo do processo ilimitado. Nesta

comunidade, o sujeito de interpretação sígnica é histórico. Ela tem a natureza de conjugar-se à

historicidade (mundo real) em uma praxis engajada e unida à comunidade dos investigadores,

a fim de transformar o mundo social por meio de um princípio regulativo. Caso o ideal do

acordo mútuo seja assumido como método da hermenêutica, poder-se-á eliminar qualquer

problema de conjugação entre o compreender subjetivo e o compreender histórico-objetivo.

Portanto, o acordo mútuo deve pressupor e garantir a fundação da verdade e da ética.335

Para Apel, a comunidade peirciana de investigadores, no seu processo de

investigação, não somente está constituída pela opinião teórica verdadeira in the long run,

mas também pela concretização prática da razão nos hábitos de conduta que correspondem à

crença verdadeira, ao entender que toda regulação lógica converte-se em correção moral, que

todos os postulados da investigação devam se converter numa crítica de sentido com garantia

do agir ético. No entanto, conforme Apel, este processo de investigação não consegue garantir

e estender seus postulados normativos para o mundo enquanto tal e, por isso, não consegue ter

êxito para todos os humanos. Pois a realidade, como entende Apel, só pode definir-se meio a

um consenso realizado pela comunidade ilimitada de comunicação, o que pode garantir um

ideal eticamente relevante para os investigadores: “a ideia do caráter fundamental social do

conhecimento possível do real, força a solidariedade ética entre os investigadores particulares

e a comunidade, pois somente nela pode alcançar-se o fim da sua investigação,”336

como

334

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 64. 335

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 245. 336

Id., El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 149.

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pensada por Peirce na perspectiva do socialismo lógico. Segundo Apel, a ética de Peirce,

então, deveria definir-se em termos da seguinte regra hipotética: “todos os membros da

comunidade dos investigadores devem fazer da ‘necessidade lógica da completa auto-

identificação do próprio interesse com o interesse da comunidade’ máxima de sua ação”.337

Na compreensão de Apel, o modelo cientificista impossibilita uma interação entre a

comunidade real de comunicação (limitada) e a comunidade ideal de interpretação (ilimitada):

a primeira está sujeita, devido seu reducionismo à experiência, aos interesses dos cientistas e

jogos de poder. Portanto, segundo Apel, a comunidade ilimitada de comunicação, além de

tornar-se condição de sentido e interpretação, “é também condição de possibilidade e validade

não só da interpretação auto-reflexiva (filosófica), mas das explicativa (ciências da natureza) e

hermenêutica (ciências do espírito)”.338

2.4 O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel

Segundo Karl Otto Apel, o jogo de linguagem transcendental de Wittgenstein

caracteriza a concepção fundamental, por um lado, da filosofia linguístico-analítica e da

crítica à metafísica e, por outro, da transformação da filosofia transcendental clássica,

ocorrida pela inserção da linguagem ordinária no mundo. Como crítica à metafísica, a

filosofia de Wittgenstein, ao postular-se pela concepção normativa do jogo de linguagem,

junto à comunidade ilimitada de comunicação, supera a concepção platônica da unidade ideal

dos significados das palavras dados num mundo supraceleste (sustentado pela essencialidade

das coisas). Esta reviravolta acontece em Wittgenstein pela descrição do uso da linguagem.

Todavia, para Apel, ainda que seja justo substituir a concepção ontológica platônica pelo

método do uso das palavras (pela descrição do uso factual da linguagem), não é possível,

satisfatoriamente, entender termos como verdade e justiça. Ao contrário, somente pode ser

possível uma solução – em detrimento da milenar tradição filosófica do uso de essências,

conceitos, ideia, definição, significado – caso se considere o “postulado de um consenso

intersubjetivo de todos os virtuais participantes do jogo de linguagem quanto à regra ideal do

uso da palavra – postulado normativo, presente, a propósito, em todo e qualquer uso de

palavras”.339

Neste sentido, uma definição filosoficamente relevante, não arbitrária, só pode

ocorrer se relacionada ao uso da linguagem ordinária e, por isso, deve “incluir o novo estado

337

APEL, Karl Otto. El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, p. 150. 338

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 66. 339

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 396.

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da experiência e da discussão especializadas, e antecipar, no âmbito de um determinado jogo

de linguagem, a estrutura do jogo de linguagem ideal, que todos os seres racionais pudessem e

devessem jogar”.340

Como registra Apel, o problema da essencialidade das coisas é substituído pelo uso

do pluralismo dos jogos de linguagem.341

Pois, para Wittgenstein, a essência não reside no

uso da linguagem, mas na gramática dos jogos. Não obstante, segundo Apel, como conceber

que este pluralismo dos significados linguísticos pode alcançar um consenso referido aos

jogos de linguagem transcendental? Neste caso, pelo fato de não estruturar-se numa instância

a priori de uma comunidade ilimitada de comunicação, o pluralismo somente pode alcançar

consensos particulares ou caminhos diversos para a formação do consenso sem qualquer

possibilidade de universalidade? A tendência relativista destas questões, como entende Apel,

é reforçada pela reconstrução da perspectiva sintático-semântica (de fins científicos) que, ao

invés de postular uma linguagem filosófica universal, somente concebe uma pluralidade de

estruturas semânticas.342

Como resolver, então, tais questionamentos? Apel parte de uma observação

histórico-antropológica ao constatar que, independentemente das diferentes formas de vida,

estruturadas pela dimensão sintático-semântica, não se conservou nas sociedades modernas

um caráter quase monádico das linguagens antigas.343

Ora, a diferença entre os jogos de

linguagens não desapareceu, mas ela foi superada pelo jogo de linguagem científico, capaz de

criar uma unidade comunicativa entre os diversos jogos. Nota-se, neste contexto, que os

componentes semânticos não permaneceram intocáveis com a unificação relativa dos jogos de

linguagens, mas interpretáveis e compreensíveis (de significação prática equivalente).344

Para

Apel, estas considerações apontam para a distinção e dialética “dos sistemas linguísticos

sintático-semânticos, de um lado, e dos jogos de linguagens semântico-pragmáticos, de

outro”.345

No entanto, ainda que admissível os sistemas linguísticos, no plano da competência

linguística (como denominada por Chomsky346

), não é possível esperar uma síntese das

diferentes formas de comportamento. Ao contrário, somente no plano da competência

comunicativa (dada pelas línguas particulares, mas na perspectiva de uma linguagem ideal)

340

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 397. 341

Cf. Ibid., 397. 342

Cf. Ibid., 397. 343

Cf. Ibid., 398. 344

Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 275-276. 345

APEL, op. cit., p. 399. 346

Cf. Ibid., p. 399.

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poder-se-á garantir o acordo mútuo, através da linguagem, pelos participantes de várias

comunidades linguísticas.347

Com isso, segundo Apel,348

em nenhum momento se quer contestar a relevância dos

diferentes sistemas linguísticos, até porque eles permitem criar um mundo de acordo com o

“espírito” de uma comunidade. Mas, fazer notar que a competência comunicativa dá

possibilidades aos indivíduos de superar sua estrutura linguística particular em prol de toda

comunidade, numa relação que envolve os diferentes sistemas (formas de vida) em busca da

universalidade. Apel aponta que entre as condições empíricas da competência comunicativa

“devem incluir-se principalmente certos ‘universais’ inatos da ‘capacidade linguística’ que

representam o ‘instinto linguístico’”.349

Junto a isto, deve-se também incluir um inventário

análogo de traços semânticos combináveis (de validade que ultrapasse as línguas

particulares).350

Dados esses elementos, Apel acredita ter mencionado os principais pressupostos do

conceito transcendental hermenêutico de linguagem. Agora, cabe elencar a função do conceito

de linguagem, como tentativa de transformação da filosofia transcendental clássica. Para ele,

não se pode tomar a linguagem como “cosmovisões” e, com isso, integrá-la na relação

sujeito-objeto da epistemologia transcendental; e nem reduzi-la a uma consciência geral, no

sentido transcendental kantiano; e muito menos identificar o sujeito transcendental da

cognição com a limitação do mundo pela linguagem; ou também fazer desaparecer o sujeito

em prol da semantical frameworks. “Não é satisfatório perder a problemática do sujeito,

própria da filosofia moderna, em prol da redução cientificista da teoria do conhecimento e da

ciência a uma lógica diática (sintático-semântica) das teorias científicas”.351

Para Apel, estas

abordagens, que representam a tentativa de superação da prima philosophia, não alcançaram o

estatuto de uma filosofia intersubjetiva, mediada pela linguagem e, portanto, dependente dela

347

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 398-399. 348

Cf. Ibid., p. 400. 349

Ibid., p. 400. 350

Apel recorda que os gregos deram este passo ao direcionarem-se para o “pensar conceitual, pelo qual fundou-

se o anseio por uma condição eidética pura e simples, intersubjetivamente válida. Desde então, formou-se em

todas as línguas de cultura a dimensão amplamente comum da linguagem conceitual. Ao meu ver, ela faz surgir

como sensata a espera pelo cumprimento da exigência de definições eidéticas intersubjetivamente válidas – se

não através de uma redução eidética monológica e, se possível, não-verbal, então ao menos, a longo prazo,

através do acordo mútuo em linguagem conceitual, que se dá em meio à comunidade ilimitada de comunicação”.

APEL, op. cit., p. 400. 351

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 89.

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e da comunicação. Ao contrário, ficaram presas numa filosofia solipsista: da “consciência”,

cartesiano-kantiana, e bivalente (sintático-semântica), de Wittgenstein e Carnap.352

Segundo Apel, a filosofia clássica somente pode ser superada à luz do conceito

transcendental-hermenêutico da linguagem, que implica na substituição do “ponto mais alto”

da filosofia kantiana pela linguagem intersubjetiva: “da ‘síntese transcendental da apercepção’

enquanto unidade da consciência objetual, pela [e nisso consiste o seu conceito] síntese

transcendental da interpretação mediatizada pela linguagem – constituinte da validação

pública da cognição – enquanto unidade do acordo mútuo quanto a alguma coisa em uma

comunidade de comunicação”.353

Esta tarefa substitui a “consciência geral” kantiana pelo

“princípio regulador” de formação crítica e consensual, mediado pela linguagem, numa

comunidade ilimitada de comunicação. Tal tentativa de transformação da filosofia

transcendental encontra em Ch. S. Peirce duas de suas mais importantes implicações, a saber:

a) se o conhecimento é hipotético, mediatizado pela linguagem, é inválido o princípio

kantiano da coisa-em-si “incognoscível”, bem como a “consciência isolada” (do mundo

exterior) cartesiana. Ora, a noção da coisa-em-si é uma hipótese mediada pela linguagem e,

por isso, já prescreve um conhecimento.354

Para Apel, esta empreitada também aponta para a

superação do nominalismo dos universais por um realismo crítico dos universais, “pois com a

ajuda da linguagem é provável que se possa, em cada caso, argumentar de maneira contrária à

validação dos conceitos linguísticos universais, mas não contra a validação ontológica deles,

em princípio”.355

Com isso, Apel afirma que “uma transformação transcendental-

hermenêutica da ‘prima philosophia’ logra superar a diferenciação recíproca entre a ontologia

clássica e a moderna filosofia da consciência, sem abrir mão do anseio cognitivo-crítico desta

última”.356

Ou, ainda melhor, tal anseio alcança o ponto mais alto de superação numa “crítica

de sentido”, sustentada na sua estrutura semântico-pragmática do jogo de linguagem, que

jamais pode ser abalada por uma dúvida cognitivo-crítica. Para Apel, esta abordagem leva a

afirmar que a transformação da filosofia transcendental não pode descartar o anseio reflexivo

352

Cf. APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 401-402. 353

Ibid., p. 402. 354

“A mediação da filosofia transcendental como a reviravolta linguístico-pragmática e hermenêutica da

filosofia do século XX permite superar o dualismo entre coisas em si e fenômeno existente na filosofia

transcendental clássica da consciência. Deste modo, embora Apel faça uso do método transcendental, da reflexão

transcendental, por considerá-lo o método próprio da filosofia, o expediente para evitar a aporia da dualidade

kantiana (fenômeno/coisa-em-si) consistirá em recorrer não a uma filosofia da consciência, senão a uma filosofia

da linguagem que assumiu o giro pragmático, na linha da semiótica de C. S. Peirce”. COSTA, Regenaldo. Ética

do Discurso e Verdade em Apel, p. 90. 355

APEL, op. cit., p. 403. 356

Ibid., p. 403.

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da filosofia moderna da consciência, mas considerá-la mediada pela linguagem, numa

comunidade ideal de comunicação, sob a concepção de uma autocrítica; b) na superação da

distinção entre filosofia teórica e prática: por um lado, as normas consensuais alcançadas pela

comunidade de comunicação devem substituir a necessidade da “consciência geral” kantiana

(que garantia a objetividade das normas). Neste processo de conhecimento, pela comunidade

linguística, deve-se sempre pressupor uma “ética mínima” e tal condição deve oferecer a

fundamentação racional única e última da ética; por outro lado, corresponde à “superação da

distinção de princípio em relação à filosofia teórica, também por parte da filosofia prática”,357

pois como apresentado pela ética da filosofia analítica, a filosofia prática está destinada a

mediar sua justificação pela via do discurso teórico (da comunidade argumentativa) e

valorativamente neutra dessa comunidade. Por sua vez, ao refletir a instância ética, o discurso

prático retrocede, sem qualquer intervenção de uma decisão discricionária de uma ética

normativa.358

Por isso, a partir dessas objeções, é possível concluir: “a reflexão

transcendental-hermenêutica sobre as condições de possibilidade do acordo mútuo linguístico

em uma comunidade ilimitada de comunicação parece fundamentar a unidade da prima

philosophia como unidade da razão prática e teórica”.359

Neste horizonte, a partir de uma perspectiva transcendental-hermenêutica de

linguagem, que implica o caráter pragmático, Apel irá arquitetar a Ética do Discurso. Ora, a

perspectiva da pragmática transcendental, como concebido por Apel, está fundamentada na

lógica transcendental kantiana e na semiótica tridimensional de C. S. Peirce: do primeiro,

Apel absorve o método filosófico transcendental, o caráter crítico em busca da verdade e

validade das coisas e a reflexão filosófica do sujeito do conhecimento; do segundo, a

compreensão de que o logos não está referido a um monológico e nem é a-histórico no âmbito

do sujeito transcendental. Ao contrário, o logos está referido a um sujeito histórico em

constante diálogo com a realidade e sustentado por uma comunidade de comunicação.

Decorre, então, que a metafísica crítica do conhecimento deve converter-se em crítica do

sentido dos signos (em semiótica), já pressuposta por uma comunidade ilimitada de

comunicação dos sujeitos do conhecimento e com a pretensão de consenso sobre a verdade

dos conhecimentos. Tal pressuposto “deriva necessariamente desse realismo crítico do

sentido, que vem substituir o idealismo transcendental, e em virtude do qual se identificam o

357

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 405. 358

Cf. Ibid., p. 402-405. 359

Ibid., p. 405.

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real e o cognoscível”.360

Com isso, na perspectiva de Apel, é possível afirmar que “a

necessidade do acordo sobre o sentido dos termos e o consenso da verdade nos situa já em

âmbito pragmático, e a adaptação do método kantiano justifica a pretensão transcendental”, de

universalidade das proposições morais, de caráter a priori, mas alcançada por uma

comunidade de comunicação, usuária de linguagem como medium de todo entendimento.361

Em suma, este capítulo procurou explicitar e analisar a transformação hermenêutico-

semiótica da filosofia transcendental, tal como compreendida por Apel. Neste sentido, o texto

partiu da perspectiva crítica de Apel sobre o factum kantiano da razão; depois, apresentou a

perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental, ao explicitar e criticar

a fenomenologia hermenêutica de Heidegger e Gadamer; em seguida, discorreu sobre a

transformação semiótica da filosofia transcendental instaurada por Peirce (o que representa o

ponto basilar de fundamentação da Ética do Discurso), o postulado da comunidade de

experimentação e interpretação e a crítica de Apel ao cientificismo de Peirce; e, por fim, o

conceito transcendental-hermenêutico de linguagem segundo Apel. Ao explicitar e analisar

este itinerário de transformação, o presente capítulo procurou sistematicamente demonstrar os

fundamentos do pensamento moral de Apel, que tem a peculiaridade de construir-se num

profundo diálogo (e crítica) com os principais pensadores da filosofia moderna e

contemporânea. Por isso, Apel absorve das filosofias em discussão os elementos necessários,

numa atitude de transformação, para construir o seu legado ético e, com isso, arquitetar sua

proposta filosófica (com originalidade). Já superado os problemas que comprometem a

fundamentação de uma ética racional na era da ciência e da tecnologia (primeiro capítulo); e

postulado os fundamentos do seu pensamento ético, em uma atitude de assimilação, crítica e

transformação (segundo capítulo); o texto agora (em seu terceiro capítulo) procurará

demonstrar a arquitetura da Ética do Discurso de Karl Otto Apel, sua fundamentação última e

sua aplicação e relevância no mundo contemporâneo.

360

CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 113. 361

Ibid., p. 113. Como prescrito por Peirce, sobre a máxima do pragmatismo: “a fim de determinar o significado

de uma concepção intelectual, dever-se-ia considerar quais conseqüências práticas poderiam concebivelmente

resultar, necessariamente, da verdade dessa concepção; e a soma dessas conseqüências constituirá todo o

significado da concepção”. PEIRCE, Charles S. Semiótica, p. 195.

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III CAPÍTULO

ARQUITETURA DA ÉTICA DO DISCURSO

Apresentado e analisado o percurso de construção da Ética do Discurso, o que ainda

não representa o fim da empreitada, a saber, explicitar o problema de uma fundamentação

ética na era da ciência – dado, particularmente, pela discussão apeliana com o pensar

monológico e científico (primeiro capítulo); e ao expor as bases da transformação

hermenêutico-semiótica da filosofia transcendental, de onde Apel absorve, numa perspectiva

de superação, os elementos fundamentais para a elaboração do seu postulado ético racional

(segundo capítulo), pretende-se, agora (no terceiro capítulo), apresentar a arquitetura da Ética

do Discurso: a sua compreensão pragmático-transcendental; a parte “A” e a parte “B”, que

constituem sua estrutura, e a dialogicidade entre elas; a fundamentação última da filosofia,

onde Apel demonstra a peculiaridade do seu pensamento ético-filosófico e, com isso, a

contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva; e, por fim, a relevância

da proposta ética apeliana para o mundo globalizado. Portanto, este terceiro capítulo

explicitará o “projeto arquitetônico” de Apel, enquanto uma ética racional para o mundo

contemporâneo, demonstrando, com isso, o ponto de chegada do esforço de Apel ao

perscrutar e propor uma ética pós-convencional.

3.1 A compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso

Karl Otto Apel está convencido que sua proposta moral, embora inicialmente

nomeada como “ética da comunicação” e “ética da comunidade ideal de comunicação”,

alcança maior significatividade e relevância no termo “Ética do Discurso”, particularmente

por dois motivos: o primeiro, porque tal nomeação explicita o caráter próprio da ética,

sustentado por uma forma especial de comunicação, que é o meio de fundamentação de todo

postulado ético; o segundo, porque remete o discurso argumentativo a uma dimensão a priori

racional de fundamentação para a ética.362

Do primeiro aspecto, Apel afirma não ser mais possível uma moral dos costumes,

onde as normas são praticamente evidentes para todos os indivíduos. Este modelo não

consegue mais se sustentar no mundo atual. Trata-se, agora, da necessidade de um novo

362

Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 147.

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postulado ético capaz de responsabilizar o homem pelas consequências das suas atividades

coletivas, em âmbito mundial. Nada que esteja ao alcance de uma ética convencional. Por

isso, como atesta Apel,363

somente uma ética discursiva pode resolver o problema de uma

ética pós-convencional da responsabilidade. Uma ética pautada pela cooperação solidária

entre os indivíduos e sustentada pelo discurso argumentativo em prol do consenso normativo.

Segundo Apel, esta perspectiva de uma ética da corresponsabilidade solidária parece já

acenada pelas inúmeras tentativas de conferências nacionais e internacionais em discutir os

problemas éticos da humanidade e prescrever normas para todos os indivíduos. Para Apel,

esta tendência vem afirmar “que os discursos de uma macroética contemporânea se

caracterizam como meio de organização cooperativa da responsabilidade solidária, e, assim,

também da fundamentação ou justificação das normas jurídicas e morais”.364

Do segundo aspecto (que Apel considera esotérico, propriamente filosófico, sendo o

primeiro exotérico), procede que o discurso argumentativo deva possibilitar a fundamentação

última do princípio ético. Tal empreitada tem o dever de conduzir todos os discursos

argumentativos, particularmente os discursos práticos de fundamentação de normas. Ora, para

os representantes da ética de princípio (como Kant, por exemplo) os discursos práticos já

pressupõem por si mesmos um princípio ético, que serve como critério formal para tais

discursos.365

Por sua vez, este modelo ético não pressupõe convenções éticas, próprias da

tendência do mundo atual, e muito menos o diálogo com os interlocutores e afetados numa

comunidade de comunicação. Ao contrário, apoia-se em propostas vantajosas e, por isso,

perigosas para o grupo social. No entanto, adverte Apel, não basta apenas garantir o consenso

para fundamentar normas eticamente relevantes para a sociedade global. Pois o consenso pode

estar sustentado por ideologias e desejo de manipulação. Por isso, todo discurso mediador de

fundamentação das normas tomadas em consenso deve, necessariamente, estar assegurado por

um princípio ético criteriológico: “um princípio que permite diferenças a priori entre seus

procedimentos e os resultados aos que se aspira, por um lado, e as práticas discursivas e os

resultados que são eticamente questionáveis, por outro”.366

Caso a Ética do Discurso estivesse

fundamentada na mesma lógica da ética de princípios, afirmar-se-ia que a pergunta pelo seu

princípio criteriológico dos discursos práticos estaria fundada no próprio princípio do

discurso. Diferentemente, para Apel, a Ética do Discurso “merece seu nome somente porque

363

Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 148. 364

Ibid., p. 149. 365

Cf. Ibid., p. 150. 366

Ibid., p. 151.

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pode pretender descobrir, mediante o ‘discurso reflexivo-argumentativo’ no próprio discurso,

um a priori inultrapassável para todo pensamento filosófico, que inclui também o

reconhecimento de um princípio criteriológico da ética”.367

Para Apel, este princípio é

estritamente filosófico-transcendental, caracterizado pela pragmática-linguística.

Neste horizonte, a ética discursiva, fundamentada na transformação pragmático-

linguística da ética transcendental, vem demonstrar dois principais elementos: todo aquele que

argumenta deve, em qualquer ocasião, pressupor as condições normativas do discurso ideal,

como única possibilidade de validade e realização das normas tomadas em consenso; e, por

isso, o reconhecimento do princípio da ética discursiva.

Dado esses pressupostos básicos, Apel apresenta as teses fundamentais da ética

discursiva, compreendida na sua dimensão pragmático-transcendental: a) “a argumentação –

como o pensamento com pretensão de validade que se expressa nela – é inultrapassável”;368

b)

o discurso filosófico é rigorosamente ilimitado. Cabe ao indivíduo, portador de discurso, levar

em conta todas as possibilidades de entendimento numa comunidade de comunicação e, com

isso, as soluções dos mais variados problemas do mundo histórico. No entanto, o discurso não

pode ser resultado de um jogo, de uma estratégia política, mas meio de resolução dos conflitos

e de validade das normas tomadas em consenso; c) os indivíduos devem estar realmente

interessados em resolver todas as questões apresentadas numa comunidade ilimitada, sem

qualquer instrumentalização da linguagem (de uma linguagem estratégica) para alcançar seus

próprios fins; d) os interlocutores devem compartilhar das situações suscitadas numa

comunidade e, com isso, estarem motivados para alcançar, a priori, as soluções necessárias e

susceptíveis ao consenso.369

Apresentada as teses fundamentais da ética discursiva, Apel elenca os pressupostos

eticamente relevantes para aqueles que procuram argumentar seriamente, a saber: a)

reconhecer, desde sempre, sua participação numa comunidade real de comunicação; b) com

isso, pressupor o uso da hermenêutica e da pragmática linguística acerca da pré-compreensão

do mundo e do acordo entre os dialogantes (essas são as condições iniciais para todo discurso

concreto); c) como também, reconhecer sua participação numa comunidade ideal de

comunicação, onde é necessário observar os pressupostos ideais e universalmente válidos

(moralmente relevantes, ou seja, normas ideais válidas) da comunidade de comunicação; d) e,

367

APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 151. 368

Ibid., p. 154. 369

Cf. Ibid., p. 154-155.

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na tentativa de pressupor normas universalmente válidas, pressupor também a

corresponsabilidade no discurso e na pretensão de resolução dos problemas apresentados; e) e,

junto à responsabilidade, pressupor ainda a igualdade de direito de todos os participantes.370

Segundo Apel, nestes pressupostos já está implicado um princípio ético-discursivo,

compreendido, então, como transformação pós-metafísica371

do princípio de universalização

da ética: no lugar da máxima da ação no sentido kantiano “aparece agora a ideia reguladora

da capacidade de ser consensuadas todas as normas válidas por parte de todos os

afetados”.372

Neste sentido, “se encontra a implementação de sentido e a concretização da

determinação kantiana da adequação como lei no plano da intersubjetividade,”373

como

também, “a interpretação (Dechiffrierung) pós-metafísica, porém fundamental pragmático-

transcendental, do ‘reino dos fins’ no sentido de uma ideia reguladora da comunicação

humana.”374

Ainda mais, para Apel, a tentativa de uma fundamentação última do princípio de

universalização da ética leva a constatar que o factum da razão, no sentido de um perfeito

apriorístico, postula, na perspectiva de uma razão comunicativa, o reconhecimento (desde

sempre) da validade da lei moral, como princípio necessário da Ética do Discurso. Junto ao

princípio de universalização, como regra de argumentação, a Ética do Discurso caracteriza-se

pelo seu legado de “corresponsabilidade pela aplicação do princípio ideal da formação

discursiva do consenso ao mundo da vida, dito mais exatamente, pela aplicação deste

princípio ideal em todos aqueles casos em que nossa ‘responsabilidade de reciprocidade’

como responsabilidade de risco permita a aplicação”.375

370

Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 156-158. 371

“A transformação pós-metafísica proposta por Apel, tendo em conta a dimensão pragmática, consiste em

advertir que cada vez que alguém argumenta já tem pressuposto também condições normativas de possibilidade

da argumentação, e, entre elas, precisamente o princípio da ética discursiva. Outra de tais condições é [...] o

reconhecimento de uma comunidade real e uma ‘ideal’ de comunicação”. MALIANDI, Ricardo. Semiótica

filosófica y ética discursiva. In APEL, Karl Otto. Semiótica filosófica, p. 52. 372

APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 158. 373

Ibid., p. 158. 374

Ibid., p. 159. 375

Id. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 204. É importante

notar que a ética discursiva, caracterizada pela lógica da responsabilidade da reciprocidade, tem implicações

efetivas no campo da ética prática. Assim, uma teoria moral a partir do discurso, de uma reconstrução do agir

moral deontológico, não se configura como uma moral antropocêntrica (embora este seja um ponto de muitas

discussões e críticas acerca do legal moral apeliano). Ainda que construída por uma comunidade de dialogantes,

este caráter da reciprocidade, de uma ética discursiva, está ancorado pelo viés lógico (com total profundidade),

que meras convicções ou orientações humanas. Neste horizonte, a ética discursiva é “uma ética realista – realista

porque a consideração em princípio (a principiis) do parâmetro interno da reciprocidade pode (e tem) que levar a

divergência entre o agir moral válido para o seguimento e normas meramente válidas do agir moral; por

exemplo, em sociedades nas quais não são estabelecidas condições jurídicas ou naquelas em que a percepção de

um monopólio geral da violência ruiu por um Estado juridicamente constituído”. NIQUET, Marcel. Teoria

realista da moral. Trad. F. Javier Herrero e Nélio Schneider. São Leopoldo: UNISINOS, 2003, p. 20. Portanto, a

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3.2 A estrutura da Ética do Discurso

Apresentado o caráter pragmático-transcendental do seu projeto arquitetônico

filosófico, em busca de uma filosofia moral, Apel, agora, explicita a estrutura da Ética do

Discurso, formada pela parte “A” (de fundamentação ética) e pela parte “B” (de

fundamentação referida à história).376

Na parte “A”, Apel propõe uma distinção entre o plano

de fundamentação pragmático-transcendental de princípio das normas e o plano de

fundamentação das normas situacionais nos discursos práticos. Na primeira parte, da parte

“A”, realiza-se, como apresenta Apel, a fundamentação de valores que, por sua vez,

fundamentam um discurso sobre a realidade. Para a execução desta tarefa, é necessária a

existência de um princípio-ponte, que é o princípio de universalização. Ele tem a função de

indicar a forma processual de derivação de valores, em discursos sobre a realidade fática. O

princípio-ponte pertence à primeira parte da parte “A”, mas induz os discursos realizados na

segunda parte da parte “A”. Na segunda parte da parte “A”, já está incluso o elemento da

responsabilidade da ética, que prescreve os efeitos de uma ação moral (elemento assumido da

perspectiva ética de Max Weber).377

Segundo Apel, esta distinção é derivada da transformação da filosofia transcendental

kantiana.378

Pois, como o princípio da Ética do Discurso prescreve a formação de discursos

reais para a formação do consenso, “o princípio se tem que determinar a si mesmo como um

puro princípio procedimental discursivo, desde o qual não se podem deduzir normas ou

obrigações situacionais”.379

Com isso, os afetados são os portadores da fundamentação

concreta das normas, o que possibilita a adequação de tais normas com as situações

apresentadas e com o princípio de universalização do discurso. Não obstante, as normas

ética discursiva, neste sentido de uma teoria moral deontológica realista, pode contar não somente com a

validade de suas normas consensuais, mas com a rejeição ou desconforto de suas obrigações morais, o que a faz

distanciar-se, completamente, da teoria deontológica kantiana clássica. Cf. Ibid., p. 22. 376

Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 51. 377

Cf. HINKELAMMERT, Franz. Ética de discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição

crítica. In SIDEKUM, Antonio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação – Modelos complementares. São

Leopoldo: UNISINOS, 1994, p. 89. Diferentemente de Kant, a Ética do Discurso é uma teoria moral

deontológica de segundo tipo porque prescreve, na sua fundamentação, o caráter da responsabilidade,

logicamente originária. Neste sentido, todo agir válido está sob a reserva de uma responsabilidade moral no

mundo histórico, real. Cf. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 18-19. 378

Cf. APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 159-160. Ao contrário de Kant, a ideia

transcendental de Apel se caracteriza por: “primeiramente, trata-se de um princípio normativo fundamentado

reflexivamente, e não pressuposto de maneira não-crítica como o fato da razão; em segundo lugar, esse princípio

explica as reivindicações de validade as quais são inerentes à comunicação; por fim, esse princípio não se

encontra na lógica do imperativo categórico (princípio de contradição lógica), mas na lógica da consistência

pragmática (princípio da contradição performativa). Cf. MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação – Para

uma Crítica da modernidade. Trad. Verrah Chamma. Brasília: Plano Editora, 2002, p. 230. 379

APEL, op. cit., p. 160.

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situacionais estão regidas pelo procedimento de fundamentação falibilista. Em síntese: o

princípio procedimental, ancorado pela dimensão pragmático-transcendental, conserva sua

validade incondicional e a pretensão normativa permanente, como máxima necessária para a

garantia de institucionalização dos discursos práticos de fundamentação das normas. “Neste

princípio procedimental da Ética do Discurso, que entra no lugar do princípio de

universalização kantiano, estão igualmente fundamentados os ‘deveres imprescindíveis’ – as

normas fundamentais da moral ideal do discurso”.380

A parte “A” da Ética do Discurso se ocupa da fundamentação racional da correção

das normas.381

Tem a finalidade de fundamentar a ética e, por isso, parte do pressuposto que é

possível a fundamentação de uma ética para o mundo real. Na parte “A”, contrafaticamente

antecipada, se pressupõe que todo aquele que dialoga precisa submeter suas pretensões

argumentativas à validade universal; pressupõe também a responsabilidade do argumentante e

do seu interlocutor em busca de possíveis soluções para as situações apresentadas no mundo

histórico, a fim de que as normas tomadas em consenso sejam aplicadas no mundo real; assim

como pressupõe a igualdade de direito de todos os falantes e a formação de consenso entre

todos.382

Neste horizonte, a parte “A” está regida por um princípio que exige o consenso

mediante discursos práticos. Este princípio, então, confere ao discurso a legitimidade das

normas destinadas ao mundo da vida e tem um caráter procedimental, que “indica a

obrigatoriedade de um procedimento para fundamentar normas situacionais, e põe em

destaque que essa obrigatoriedade está automaticamente reconhecida com todo ato de

argumentar”.383

Diferente de outras propostas éticas, a Ética do Discurso não parte de um

princípio que postula a inferência de normas, mas confere aos interlocutores, pelo discurso

prático, a fundamentação de tais normas. Por isso, não concebe a ética como portadora de

uma abstração dedutiva da consciência geral, mas como uma ação reflexiva do pensar

intersubjetivo. A fundamentação ou legitimação das normas requer a consideração de suas

consequências diretas e indiretas. Por sua vez, a fundamentação será sempre falível, revisável.

“O princípio do discurso, ao contrário, pode considerar-se ‘infalível’, porém é meramente

380

APEL, Karl Otto. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 203.

(grifo do autor). 381

Cf. CORTINA, Adela. Ética del discurso y bioética. In FERNÁNDES, Domingo Blanco (et alii). Discurso y

realidad. Madrid: Trotta, S. A., 1994, p. 76. 382

Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 52. 383

Ibid., p. 54.

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procedimental e constitui uma ideia regulativa para a institucionalização dos discursos

práticos”.384

Fundamentalmente, a parte “A” da ética apeliana está assegurada pelo seu caráter a

priori, de fundamentação última pragmático-transcendental, de uma comunidade ideal

contrafática.385

Ora, se o a priori da comunidade de comunicação estivesse embasado no

sentido metafísico, como em Kant – ao apelar para o “reino dos fins”386

– nada mais seria que

uma utopia. Trata-se, ao contrário, “de um a priori dialético, em que se incorpora a

‘facticidade’ ou ‘historicidade’, embora a subordinando ao a priori não contingente,

‘universal’, próprio dos pressupostos racionais do discurso argumentativo”.387

Não obstante,

ainda que não contingente, este a priori, como sustenta Apel, é histórico, uma vez que

constitui a evolução cultural. Nesta perspectiva, a comunidade ideal não está desconectada da

realidade histórica, mas ancorada pelos acontecimentos do mundo da vida e, por isso, não

pode partir de um “ponto cego”. Este aspecto, uma vez por todas, supera o universalismo

apontado por Kant.388

Uma vez que a parte “A” da Ética do Discurso está regida pelo princípio da

universalidade e nele impresso o elemento da responsabilidade, não consegue resolver o

problema completo de uma ética da responsabilidade, por não ser possível, na fundamentação

das normas, averiguar todas as suas consequências, mesmo que de maneira provisória, o que

permite pensar na aplicação das normas tomadas em consenso. Por isso, como observa Apel,

surge a parte “B” da Ética do Discurso, como aquela capaz de responder pela

responsabilidade e aplicação das normas consensuais, sob o princípio da universalidade

presente na parte “A”.389

A parte “B” da Ética do Discurso examina e entende as dificuldades da situação

histórica e seus desafios para a aplicação sistemática das resoluções tomadas pela parte “A”.

384

MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 54. 385

Cf. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 88. 386

Cf. MALIANDI, op. cit., p. 57. 387

Ibid., p. 57. 388

Interessa à ética apeliana os discursos reais, como capazes de cooperação entre a filosofia e a ética: por

avaliar as consequências diretas e indiretas das decisões morais e, com isso, a reconstrução da história, e por

ativar o campo institucional do Direito e da consciência moral. MALIANDI, op. cit., p. 58. “Segundo Apel,

assim como a parte A da ética se orienta pela ideia de fundamentação, a parte B se orienta pela de

responsabilidade e a razão disso radica na tentativa de evitar cair no utopismo que sua ética poderia acusar-se

por ser uma ‘ética kantiana’. De fato, o imperativo categórico exige cumprimento incondicionado, quer dizer,

sem atender nem as consequências nem as circunstâncias da ação.” CORTINA, Adela. Ética del discurso y

bioética, p. 77. 389

HINKELAMMERT, Franz. Ética de discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição crítica, p.

89-90.

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93

Na comunidade real, as condições históricas e contingentes são apresentas.390

A parte “B”,

neste sentido, representa a ética da responsabilidade, referida à história.391

Esta perspectiva

possibilita a transformação do princípio kantiano da moral (chamada por Apel de pós-

metafísica) por garantir responsabilidade ao princípio de universalização. Ao postular a

correspondência com as formas de vida, assim como da tradição moral e jurídica, embora

estas estejam regidas pelo princípio de validade universal (parte “A”), a parte “B” cumpre um

princípio teleológico de complementação:392

por completar a parte “A” (ideal de

fundamentação). Este princípio é “de significado decisivo para a preparação de uma possível

resposta ao problema [...] das coerções objetivas, restritivas da moral das instituições ou

subsistemas da sociedade”.393

Nesta perspectiva, a reflexão pragmático-transcendental “descobre não somente o

princípio da universalidade da ética pura, senão também um princípio estratégico-moral394

de

complementação, para fundamentar uma ética da responsabilidade, que constitui a ‘parte B’

da ética discursiva”.395

Assim, enquanto as condições normativas ainda não estão dadas na

história, a parte “B” exige a conciliação da disponibilidade para a solução de conflitos com a

disponibilidade da ação estratégica; e procura eliminar a diferença entre a comunidade real e

ideal (contrafaticamente antecipada).396

Da diferença entre a parte “A” e a parte “B” surge um duplo princípio regulativo para

a ética da responsabilidade,397

a saber: em qualquer situação, é necessário assegurar a

sobrevivência da humanidade; e realizar os postulados da comunidade ideal de comunicação.

390

Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 51-53. 391

A parte “B” da Ética do Discurso se fortalece, em particular, com a proposta de H. Jonas, ao substituir o

princípio da esperança pelo princípio da responsabilidade. Cf. CORTINA, Adela. Ética del discurso y bioética,

p. 77. 392

“Tal aproximação não pretende realizar a pretensão hegeliana de uma substituição da ‘eticidade social’

(Sittlichkeit) concreta pela ‘moral formal’ (Moralität), mas buscar mediações históricas de superação de

obstáculos à realização de uma ética universal, o que corresponde a uma ética da responsabilidade ou parte B da

ética do discurso.” SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 145. 393

APEL, Karl Otto. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p. 205.

(grifos do autor). Sem esta complementação da parte “B”, segundo Apel, seria impossível a fundamentação

última pragmático-transcendental da Ética do Discurso. Ibid., p. 205. 394

“O princípio estratégico moral não é um agir maximizador de utilidade (ou otimizante) – como que

classificamente auto-interessado –, nem está submetido às condições de uma teleologia de auto-realização

individual de atores ou de uma teleologia coletiva, normativamente compromissiva da boa vida. O agir

estratégico-moral é agir racional final situado sob as condições da escolha de fins e meios limitados normativo-

moralmente”. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 93. 395

MALIANDI, op. cit., p. 56. 396

Cf. Ibid., p. 59-61. 397

Cf. Ibid., p. 56.

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94

A comunidade ideal é a condição necessária da comunidade real. Esta, por sua vez, dá sentido

à comunidade ideal, o sentido que já é antecipado em cada argumento.398

Mas a Ética do Discurso, como adverte Apel, não está isenta de um possível dilema,

naquilo que se refere à participação do indivíduo em uma comunidade de comunicação: como

o consenso real dos afetados tem caráter normativo, referido à sua facticidade e validade das

normas, o indivíduo não pode substituir (e, com isso, questionar) tal princípio simplesmente

pelas suas representações mentais, assim como não pode questionar sua autonomia de

consciência ao buscar o consenso. Diante deste aparente dilema, Apel responde que a

formação do consenso encontra sua solução procedimental entre o coletivismo e a autonomia

de consciência do sujeito: o coletivismo dá sustentabilidade e validade às normas tomadas em

consenso; e a autonomia, compreendida no interior da intersubjetividade, sustenta e visa um

consenso definitivo na comunidade de comunicação. “O procedimento recomendado pela

ética do discurso se move entre a posição dialógica e a posição monológica da

consciência”.399

Neste sentido, “o indivíduo pode e deve comparar e, possivelmente

questionar no experimento mental, cada resultado fático de uma formação real do consenso

com respeito a sua concepção de um consenso ideal”.400

Porém, em nenhum momento ele

deve negligenciar a linguagem para a formação de consenso, como também interrompê-la em

troca de suas convicções de consciência.

3.2.1 A dialogicidade entre a comunidade ideal (parte “A”) e a comunidade

real (parte “B”) da Ética do Discurso

Já apresentados os princípios reguladores da Ética do Discurso, que são os

pressupostos básicos da sua fundamentação e estrutura, Apel sublinha, e com isso intensifica,

três elementos básicos que norteiam a existência e pretensão de uma ética para o mundo

contemporâneo: a) promover uma fundamentação racional da sua universalidade por meio da

racionalidade reflexivo-transcendental-comunicativa; b) proporcionar uma ética da

corresponsabilidade, assegurada por uma comunidade de comunicação portadora de uma

398

Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 145. 399

MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 55. 400

APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 162. “Isso não significa a negação de nenhum

direito ou interesse individual, apenas que as carências e anseios vitais devem ‘se transformar em uma aspiração

da comunidade de comunicação, de modo que sejam conciliáveis com as carências de todos os demais, pela via

da argumentação”. SILVA, op. cit., p. 143.

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95

meta-instituição; c) e proporcionar um princípio regulador capaz de mediar entre a

racionalidade ética e a estratégica (que consiste na parte “B” da Ética do Discurso).401

A fundamentação da parte “A” e da parte “B” da Ética do Discurso está alicerçada na

argumentação, entendida na sua dimensão pragmático-transcendental.402

Com isso, Apel

apresenta a máxima de superação da filosofia da consciência, ao substituir o eu penso pelo eu

argumento, tarefa esta que permite alcançar uma fundamentação última da ética. Surge,

entretanto, o questionamento sobre o porquê pressupor uma comunidade de comunicação

ideal (parte “A”) e uma real (parte “B”). Apel responde que o indivíduo é um ser empírico

que, ao fazer uso de uma linguagem, apresenta-se como sujeito de uma comunidade

particular, mas também, ao usar argumentos com pretensões universais, está obrigado a

transcender seu ambiente particular e pressupor uma comunidade ideal, como via segura de

validação das pretensões universais de validade. Como afirma Apel: “eu sou obrigado a me

referir à audiência real de um modo como se ela já representasse a ideal”.403

Segundo Apel,

esta dupla estrutura dialética da comunidade de comunicação, levada seriamente por qualquer

indivíduo, supera o problema do comunitarismo e da hermenêutica relativista.

Nesta perspectiva, todo aquele que argumenta pressupõe uma comunidade de

comunicação real (atingida pelo processo de socialização) e uma comunidade de comunicação

ideal (portadora de sentido e veracidade). A dialética consiste “em que a pessoa que

argumenta de certa maneira já pressupõe a comunidade ideal na comunidade real, ou seja,

401

Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso. In VILLLA, Mariano Moreno. Dicionário de pensamento

contemporâneo. Trad. Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2000, p. 282. “A única forma de falar de uma

mediação entre interações comunicativas e estratégicas e, ao mesmo tempo, responder negativamente a estas

perguntas, radica em afirmar que esta mediação deve ser capaz de consenso moral. Desta maneira, a ética

discursiva adquire uma configuração arquitetônica: à parte A de fundamentação do princípio básico, devemos

adicionar uma parte B de fundamentação dedicada a sua aplicação em situações históricas onde, precisamente,

não se dão as condições próprias para tal aplicação. A pergunta é agora se ambas as partes podem manter a

mesma incondicionalidade e, portanto, normatividade. Apel pensa que sim. A seu juízo, a norma básica ética não

somente deve oferecer um critério intersubjetivo de validade moral, senão também uma estratégia moral dirigida

a estabelecer uma reconciliação entre racionalidade comunicativa e estratégica. A metodologia para explicar esta

estratégia em forma de princípio moral reside de novo na reflexão transcendental sobre as condições de sentido

de nosso atuar e argumentar.” MARZÁ, Domingo Garcia. Ética de la democracia en K.-O. Apel: la arquitectura

de la ética discursiva y su contribución a la teoria democrática. ANTHROPOS 183 (1999), p. 97. 402

“A tese da pragmática transcendental da linguagem [...] significa a obrigação de mediar as condições da

comunidade de comunicação real e ideal, justamente porque assim, como aqueles que argumentam

significamente, sempre pressupomos a comunidade de comunicação real (a qual pertencemos enquanto

membros), mas também antecipamos a comunidade ideal, que talvez tenha a possibilidade de julgar melhor a

reivindicação de validade já estipulada.” MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação – Para uma Crítica da

modernidade, p. 231. 403

APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 282.

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como possibilidade real da sociedade real”.404

Por um lado, o indivíduo pode e deve aceitar os

argumentos de cunho linguístico-hermenêutico-pragmático de sua comunidade particular,

assim como uma pré-compreensão histórica de mundo; por outro lado, deve não somente

aceitar as situações de contingência, mas também recorrer a uma meta-instituição que

ultrapassa o caráter contingente das situações apresentadas. E é por isso, pela meta-instituição,

que as situações contingentes (do mundo da vida, das tradições, etc.) podem ser questionadas.

Caso isso não fosse possível, não haveria qualquer desenvolvimento crítico e reflexivo sobre

os perigos do relativismo e do historicismo.405

Cabe, então, elencar os pressupostos não-contingentes que dão sustentabilidade à

argumentação da ética discursiva em prol do consenso: a) o compartilhamento de um

significado intersubjetivamente válido entre todos; b) alcance da verdade universal,

validamente aceita; c) pretensão de veracidade (ou sinceridade) dos atos de fala; d) e de

correção moralmente relevante dos atos de fala, por meio do diálogo entre os interlocutores.

Esta quarta pretensão implica na condição de uma comunidade ideal de comunicação (parte

“A”) e que representa a transformação pós-metafísica da ética kantiana, da comunidade dos

seres racionais puros. Ora, a comunidade ideal não existe no mundo real. Ela é uma

antecipação contrafática e princípio regulador do mundo histórico. Tal comunidade requer o

direito de fala de todos os participantes, assim como a corresponsabilidade de todas as

resoluções e possíveis problemas propostos pelo mundo histórico à comunidade discursiva.406

Um indivíduo, ao perguntar pela fundamentação racional que o justifica ser moral ou

corresponsável pelos seus atos, já pressupõe – se pergunta seriamente – uma resposta: “pois

tu deves averiguar, por meio da reflexão radical sobre os pressupostos daquilo que fazes, que

já assumiste corresponsabilidade no nível do discurso argumentativo e, assim, reconheceste

as normas fundamentais da comunidade ideal de comunicação que tracei”,407

afirma Apel.

Entretanto, reconhecer as normas fundamentais de uma comunidade ideal de comunicação

“significa, precisamente, que as soluções concretas dos problemas morais referidos à situação

não deveriam ser antecipadas ao nível da fundamentação pragmático transcendental”.408

Caso contrário, a Ética do Discurso estaria fadada aos princípios do racionalismo metafísico

clássico, ao deduzir soluções concretas de princípios axiomáticos. Por isso, como postulado

404

APEL, Karl Otto. Transformação da Filosofia II, p. 487. 405

Cf. Id. Ética do Discurso, p. 282-283. 406

Cf. Ibid., p. 283. 407

Ibid., p. 283. 408

Ibid., p. 283.

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97

por Apel, as soluções morais devem, e somente, ser delegadas ao discurso prático, onde os

afetados ou seus representantes podem, numa comunidade de comunicação, estabelecer

racionalmente normas valorativas para o mundo real. Neste horizonte, há necessidade de

institucionalização do discurso prático, o que garantirá a resolução dos problemas práticos e a

responsabilidade em âmbito global.409

Segundo Apel, esses pressupostos da Ética do Discurso sinalizam sua natureza

própria: uma ética inicialmente formal e procedimental, mas portadora de conteúdos

substancias. Pois os princípios reguladores da Ética do Discurso favorecem a realização do

discurso prático e institucionalização das normas. Por um lado, as normas fundamentais da

ética discursiva propõem a tolerância e a proteção da pluralidade das formas de vida; por

outro, a Ética do Discurso, pelo seu princípio regulador, prescreve que todos os indivíduos e

formas de vida particular submetam suas decisões morais em função de normas

universalmente válidas da justiça e de corresponsabilidade, naquilo que se refere aos

problemas comuns da humanidade.410

Para Apel, no nível da racionalidade discursiva, que é meta-institucional, cada

membro de uma comunidade de comunicação reconhece sua responsabilidade, o que vem a

ser uma corresponsabilidade, uma vez que o indivíduo assume, como todos os demais

integrantes de uma comunidade linguística, a responsabilidade pela validade das normas

tomadas em consenso, “pois a corresponsabilidade estritamente simétrica já está inclusa em

todo discurso que delibera sobre a responsabilidade da aplicação, das consequências ou do

futuro de um modo geral do agir”.411

O sentido desta corresponsabilidade funda uma

solidariedade original, capaz de aliviar a sobrecarga do indivíduo, mas sem deixar que ele se

isente de qualquer ação moral responsável. Para alcançar tal corresponsabilidade e requerer a

resolução dos problemas concretos do mundo hoje é necessário, segundo Apel, criar e apostar

nos diálogos e conferências, comissões em âmbito nacional e internacional, na sua dimensão

política, econômica, etc.412

409

Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 283. 410

Cf. Ibid., p. 283-284. 411

NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p.13. 412

Cf. APEL, op. cit., p. 284. Segundo Apel, diante dos problemas do mundo hoje e das tendências político-

democráticas, esta via é a mais possível e aceitável para a resolução dos problemas e transferência da

corresponsabilidade em âmbito global. No entanto, sabe-se que muitas conferências ou debates parlamentares

nem sempre visam discursos práticos ideais, mas discursos estratégicos de negociação e defesa de interesses

particulares. “Entretanto, é interessante observar que, à luz da publicidade, todas estas conferências e debates são

obrigados, ao menos, a pretender que estão tratando os seus problemas com argumentos razoáveis, e

representando com eles os interesses de todas as pessoas às quais concernem. Este fenômeno é, evidentemente,

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Não obstante, a Ética do Discurso não está isenta de um problema que assola sua

relevância: quais as condições que permitem sua aplicabilidade no mundo real? Ou melhor,

como o indivíduo pode agir, se as condições morais ainda não foram apresentadas a ele, ainda

mais quando o estado de direito não funciona ou ainda não estabeleceu normas morais para

toda a comunidade? Neste caso, como responde Apel, a parte “A” “agora tem que ser suprida

pela parte B, que explicitamente se refere ao fato de que, dentro da comunidade real humana

as condições da ideal não estão (ou ainda não estão) realizadas, mas unicamente – de fato –

antecipadas pela razão ética”.413

Apel, então, elenca duas principais características desta

suplementação, realizada pela parte “B”: como não há possibilidade de manter total distância

entre a racionalidade dialógica e a racionalidade estratégica na parte “B”, é necessário um

método de mediação414

entre elas, que pode ser alcançado pelo avanço do discurso e

observação do grau de responsabilidade que ele imprime. “Enquanto este primeiro princípio

da parte B equivale a uma derivação do princípio da parte A, o segundo princípio, de algum

modo, tem que compensar pelas implicações problemáticas do primeiro”.415

Agora, a

mediação entre essas duas racionalidades deve não somente se pôr a serviço do problema,

mas deve “orientar-se para a realização das condições de aplicabilidade para a ética do

discurso; ou, em outras palavras, para a realização da comunidade ideal de comunicação,

dentro da real”.416

E em nenhum momento a parte “B” deve isentar-se de desenvolver o

diálogo em busca do entendimento, mas – como na parte “A”, em certa medida – fazer atuar

uma ocasião para a investigação e a análise à luz da teoria discursiva; e sim, sugiro que não é somente uma

ocasião para sorriso irônico, mas também para certo sentimento de satisfação, pois não há outro modo de

organizar a responsabilidade coletiva pelos efeitos de nossas ações coletivas, por não ser por meio da rede de

diálogos e conferências em escala mundial.” APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 285. 413

APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 285. 414

Sobre a mediação entre a comunidade ideal e a comunidade real, Apel afirma: “Eu considero o termo

emancipação melhor definido como a realização da comunidade de comunicação ideal [...] na comunidade

real.” Apud. MÍLOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação – Para uma Crítica da modernidade, p. 251.

Porém, recentemente, Apel convenceu-se que este princípio conduzia a uma proposta extremamente utópica,

substituindo-a pelo princípio de complementação. Cf. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética

discursiva, p. 56. 415

APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 285. 416

Ibid., p. 285. “O princípio básico da ética discursiva não exige, como confunde por exemplo A. Pieper, ‘atuar

como se fosse membro de uma comunidade ideal de comunicação’. Se assim fosse, de nada adiantaria termos

abandonado as consequências do rigorismo kantiano, pois no âmbito privado das máximas não podemos contar

com contextos ‘descarregados’ dos problemas de ação. Dito de outra forma, não podemos confiar que estão

garantidas as condições de reciprocidade e simetria que subjazem à exigência de participação. Nas palavras de

Apel, não somente não seria exigível senão imoralmente irresponsável aturar na situação real como si

estivéssemos na ideal. Em suma, utilizar como único critério de orientação a incondicionalidade do princípio

moral.” MARZÁ, Domingo Garcia. Ética de la democracia en K.-O. Apel: la arquitectura de la ética discursiva

y su contribución a la teoria democrática. ANTHROPOS 183 (1999), p. 97.

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este princípio regulativo como uma estratégia moral a longo prazo.417

“As partes A e B da

ética pragmático-transcendental do discurso formam uma unidade. A ética do discurso assim

concebida possui estrutura holística – e é esta estrutura holística do dever ideal-moral e

estratégico moral que representa e marca o passo decisivo”418

da ética apeliana.

Fundamentalmente, a parte “B” da Ética do Discurso prescreve a corresponsabilidade

entre os dialogantes, que se dá na pertença de cada indivíduo a uma comunidade de

comunicação real e antecipadamente ideal.419

E em nenhum momento se pode separar

inteiramente, o que seria um regresso moral, os problemas da parte “B” da moral pessoal.

Dessa forma, a ideia de corresponsabilidade apresentada pela Ética do Discurso vai muito

além da compreensão de responsabilidade, que pode ser atribuída individualmente por uma

instituição, como acentuado pelas éticas tradicionais.

3.3 A reflexão transcendental como fundamentação última da filosofia

Segundo Karl Otto Apel, desde o início da história da filosofia há uma confusão

quanto ao paradigma propriamente salutar da racionalidade filosófica: um paradigma consiste

na prova lógico-formal, particularmente exposto por Aristóteles. Desde então este paradigma,

de Frege a Russell, com o desenvolvimento da lógica-simbólica-matemática, alcançou uma

validade quase que inquestionável, o que representou o suporte substancial da filosofia

analítica do Ocidente. Ora, segundo Apel, este paradigma, embora apontado como

racionalidade filosófica, não foi senão o da racionalidade matemática, principal adversário de

uma fundamentação última para uma ética racional. A racionalidade matemática se

caracteriza pela pretensão (e natureza) de alcançar a objetividade das coisas mediante as

estruturas da razão e controle dos argumentos, “já que faz estritamente abstração da

possibilidade de autorreflexão do pensamento real na realização da autoreflexão do sujeito

responsável do pensamento”.420

Este paradigma da filosofia analítica e de abstração autorreflexivo pode ser

compreendido por três fatores, a saber: a) a admissão da autorreflexão como produto do

pensamento humano, estruturado pela lógica proposicional e, por isso, caracterizada pela

417

Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso e as coerções sistêmicas da Política, do Direito e da Economia, p.

207. 418

NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 95. 419

Cf. APEL, Karl Otto. Ética do Discurso, p. 286. 420

Id. Estudios Éticos, p. 142. (grifo do autor).

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introspecção empírica dos indivíduos, o que revela seu viés estritamente psicológico. Assim,

desde Agostinho, Descartes até Husserl e ao passar por Kant e Hegel, esta perspectiva de

autorreflexão foi entendida como fundamento da argumentação; b) o acento na perspectiva

lógico-metodológica, de caráter fundamentalmente lógico, em prol de uma racionalidade

técnico-metemática, que pode ser caracterizada como objetivação da moderna semântica

lógica. Esta segunda perspectiva de autorreflexão é um complemento da primeira, aqui

apresentada; c) dessas duas compreensões negativas, sobre a autorreflexão, Apel aponta uma

terceira, porém positiva, ainda que limitada: a autorreflexão admite um logos ou a “razão

humana” e, por isso, admite a possibilidade de uma validade universal das proposições, além

de postular um discurso performativo e de possibilidades infinitas de metalinguagens.421

Dessas considerações, que isentam uma real fundamentação última da filosofia, mas

que sugerem tal fundamentação, Apel conclui que somente uma “autorreflexão realizada de

maneira linguisticamente responsável – quer dizer – em enunciados performativos e

proposicionais implicitamente autorreferenciais – do pensamento e de sua pretensão de

verdade, apresenta o paradigma genuíno da racionalidade filosófica”.422

Pois a tentativa de

fundamentar a argumentação pelos jogos de linguagem do pensamento, como prescrito pela

perspectiva psicológica pós-cartesiana do conhecimento, nada mais acentuou que o caráter

introspectivo e solipsista do conhecimento, o que pouco vem representar para a racionalidade

propriamente filosófica.423

Nesta perspectiva, como afirma Apel, ao recorrer à dimensão pragmática da

linguagem e, com isso, considerar sua dimensão interpretativa e performativa pelo sujeito

responsável do pensamento e do conhecimento, o que caracteriza a dimensão própria da

autorreflexão transcendental – na sua peculiaridade de conceber que “uma demonstração

filosófica se faz enquanto explicitação das condições de possibilidade e validade daquilo que

421

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 142-147. “A primeira dificuldade, que se explicita hoje, sobretudo

nas objeções do racionalismo crítico, é a concepção vigente de que toda fundamentação é uma dedução no

quadro de um sistema axiomático no modelo articulador da lógica formal. Aqui está para Apel o cerne das

dificuldades: a lógica formal, como Fichte já percebera, fundamenta ‘a partir de’ princípios e, portanto, não pode

ser uma demonstração ‘de’ princípios”. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p.

280. Ao contrário, “o discurso argumentativo, medium linguístico intranscendível, pressupõe uma racionalidade

do entendimento que precede, porque é ela que possibilita, a validação de todo tipo de racionalidade, de toda

teoria científica e de toda fundamentação científica ou filosófica”. HERRERO, Javier. O problema da

fundamentação última. KRITERION 91 (1995), p. 13. 422

APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 148. 423

Ao contrário, “só por estrita autorreflexão [no âmbito da argumentação, constitutiva de toda fundamentação

filosófica e científica] podemos tomar consciência da relação necessária que existe entre o conteúdo afirmado e

fundamentado pela argumentação e as condições transcendentais de possibilidade dessa mesma argumentação, e

perceber assim porque ela não pode, por sua vez, ser fundamentada de modo lógico-dedutivo.” HERRERO, op.

cit., p. 13.

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o homem faz, quando ele age linguisticamente”424

– se pode falar, com precisão, “de uma

reflexão pragmático-transcendental como método da filosofia. Nela é possível sustentar o

paradigma propriamente dito da racionalidade filosófica no sentido da fundamentação última

de validade”.425

Ora, como entende Apel, se a racionalidade matemática é a forma legítima de pensar

filosoficamente, então se pode afirmar que a racionalidade pragmático-transcendental, a partir

do viés matemático, só venha ser coerente se concebida como estrutura de demonstração

dedutiva. Dessa maneira, deveria a racionalidade pragmático-transcendental sustentar suas

sentenças propositivas pelo viés lógico-semântico de validade intersubjetiva, em detrimento

da não-contradição performativa, que é um pressuposto básico da sua estrutura argumentativa.

Neste sentido, é impossível sustentar a racionalidade pragmático-transcendental nos moldes

da racionalidade lógico-proposicional.426

Ao contrário, todo discurso que pressupõe uma

contradição performativa e que não se pauta pela demonstração lógica de suas sentenças, no

sentido da lógica matemática, e, com isso, postule a pretensão de verdade pelo diálogo,

caracteriza a fundamentação última da filosofia, que vem a ser a racionalidade pragmático-

transcendental.427

Segundo Apel, “a contradição não se dá em nível semântico [...] mas entre o que é

afirmado e as condições necessárias de possibilidade dessa afirmação, ou seja, entre o

conteúdo e o ato de afirmar: o ato implica e pressupõe verdade, enquanto o conteúdo afirma

não haver verdade”.428

Daí, pode-se presumir que o ato tem o caráter de desmentir e destruir o

conteúdo. Este só adquire sentido se a verdade for pressuposta. A natureza da demonstração

filosófica consiste, então, numa prova indireta, sendo que o contrário (numa prova direta) só

pode desembocar num regresso infinito. Ela é indireta porque transita pela demonstração de

falsidade do seu contraditório. Assim, a dúvida se apresenta como instância substancial para

sua própria saída: ela, radicalmente exposta, se converte em certeza. Segundo Apel, este

424

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 280. 425

APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 153. 426

Cf. Ibid., p. 154-155. 427

Cf. Ibid., p. 156-157. 428

OLIVEIRA, op. cit., p. 282. “O ser-com os outros no mundo enquanto seres humanos e a sua estrutura de

reciprocidade se mostram como autêntico transcendental de todas as atividades e funções humanas, por isso,

quem negasse ou tentasse negar, em princípio, esta estrutura, de reciprocidade de todo sentido e de toda

validade, estaria se autodestruindo. É por isso que o critério da autocontradição performativa é último, porque

ninguém pode negar explicitamente em alguma atividade teórica ou prática com sentido que ele é ser humano,

i.é, ser-com os outros no mundo na reciprocidade dialógica, ética e discursiva, sem auto-contradizer-se no ato

mesmo de sua expressão humana com pretensão de sentido.” HERRERO, Javier. O problema da fundamentação

última. KRITERION 91 (1995), p. 13.

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102

argumento constitui a peculiaridade da reflexão filosófica, pois é o caminho que dá

possibilidades à fundamentação última da filosofia. Portanto, a filosofia só pode perscrutar

uma fundamentação última por meio da forma da negação, revelada na contradição

performativa.429

Para Apel, o ponto máximo de fundamentação última da filosofia, na sua perspectiva

pragmático-transcendental, consiste no a priori situacional, de explicação do “feito da razão”,

como postulado por Kant.430

Porém, este “feito”, além de Kant, só adquire relevância se

derivado de “uma condição normativa da possibilidade da argumentação que, ao mesmo

tempo, é fundamento normativo da derivação de todas as normas éticas”.431

A partir dessa

observação basilar, Apel explicita os principais elementos do discurso normativo, enquanto

ética da responsabilidade: todo aquele que argumenta deve pressupor, através da

autorreflexão, uma norma ética básica, que a razão é prática. Ela deriva da atuação humana e

se propõe, pelos argumentos, postular a pretensão de verdade e validade. Neste horizonte, as

regras ideais numa comunidade ilimitada de comunicação – reciprocamente comungadas

entre os interlocutores de direitos iguais – representam as condições normativas de toda

validade ética, com pretensão de consenso432

em referência a qualquer questão eticamente

sugerida.

Dessa forma, a comunidade humana de argumentação parte do pressuposto que

“estão eliminadas a priori todas as limitações concebíveis à competência de conteúdo e da

validade intersubjetiva. Pois qualquer que seja o conteúdo de interesse que possa ser

analisado [...] só pode fazer-se sob o pressuposto do reconhecimento prévio da norma ética

básica já pressuposta no discurso argumentativo”.433

Este legado confere obrigatoriedade à

validade da norma básica para todo aquele que argumenta com pretensões de verdade e

validade na comunidade de comunicação. Ao contrário, sem o respeito à norma básica, não há

qualquer possibilidade de pretensão à verdade ética.434

Essencialmente, segundo Apel, a

429

Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 282-283. 430

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 162. 431

Ibid., p. 162. (grifo do autor). 432

Para Apel, “a possibilidade de entendimento e acordo excede toda fronteira de tradição e contexto e alcança

todos aqueles que possuem competência comunicativa”. CORTINA, Adela. Karl-Otto Apel. Verdad y

Responsabilidad, p. 25. 433

APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 168. (grifo do autor). 434

Nesta perspectiva, Apel assinala a diferença entre seu postulado ético com o de Peirce. Ao contrário do que a

ética discursiva pragmático-transcendental propõe, como que exposto no parágrafo acima, “a ética da

comunidade de investigadores de Peirce trata efetivamente de uma ética especial para pessoas que, enquanto

membros de uma comunidade de investigadores da verdade, têm, segundo Peirce, que realizar um ‘self-

surrender’ no sentido da subordinação de todos os interesses individuais ao interesse na formação de um

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103

norma ética básica tem o caráter de um princípio metódico, o que permite a realização de sua

potência normativa.435

Nesta empreitada em discorrer sobre a fundamentação última da filosofia, o que dá

fundamento a uma ética racional para o mundo contemporâneo, Apel afirma que o discurso

argumentativo representa, sobretudo, uma meta-instituição, cuja tarefa é a de agir reflexiva e

criticamente sobre toda e qualquer instituição humana. No jogo de linguagem “tem que estar

dado a priori o passo possível ao discurso argumentativo, especialmente ao discurso prático,

como instância possível da fundamentação crítica das normas, quer dizer, da sua

legitimação”.436

Enfatiza Apel que os pressupostos normativos do discurso argumentativo não

pertencem somente às condições ideais, já antecipados, da comunicação e da formação de

consenso, mas à pressuposição que os problemas, de fato, devem ser resolvidos pelo consenso

entre os interlocutores de uma comunidade. Sem esta pressuposição, o discurso entre os

indivíduos perde seriedade.437

Ainda que um indivíduo tente negar tais pressupostos, ele já

estará no âmbito do argumento. E isso já o coloca incluso nos pressupostos requeridos.438

O discurso prático, de fundamentação e legitimação de normas, está regido pelo

princípio de universalização. Pois toda pretensão de validade normativa e verdade

argumentativa deve obedecer a este legado, uma vez que se busca o consenso na comunidade

ilimitada de comunicação. Portanto, segundo Apel, o discurso prático deve realizar-se sob o

princípio da universalização “através da via de interpretação e mediação das pretensões de

todos os afetados, representadas mútua e reciprocamente no discurso”.439

consenso acerca da verdade no sentido da ciência, que somente é realizável ‘in the long run’ na ‘indefinite

community’. Neste sentido, é possível reduzir aqui com razão a validade intersubjetiva da norma básica àqueles

que se tenham decidido expressamente pelo ‘self-surrender’ que exige Peirce. Também materialmente esta ética

está limitada à comunidade de investigadores na medida em que não fundamenta nenhuma norma para a defesa e

mediação dos interesses e necessidades individuais sob a forma de pretensões éticas ou jurídicas. APEL, Karl

Otto. Estudios Éticos, p. 167. Segundo Apel, a reciprocidade entre os dois postulados éticos consiste no

pressuposto de que o conhecimento científico só pode ser alcançado numa comunidade de comunicação, em

detrimento de um sujeito isolado do conhecimento ou de uma “consciência geral”. Cf. Ibid., p. 166. 435

Cf. APEL, Karl Otto. Estudios Éticos, p. 163. 436

Ibid., p. 169. 437

Cf. Ibid., p. 169-171. 438

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática, p. 281. 439

APEL, op. cit., p. 163, p. 174. Para Apel, não há dúvida que aqui surge a dificuldade de adequadamente

realizar o discurso, com todas as suas pressuposições e pretensões, em vista das pretensões dos não participantes

numa comunidade, mas afetados, como, por exemplo, dos marginalizados sem chances de voz, de menores

indefesos, como no aborto, ou também diante da situação ecológica, até mesmo das futuras gerações. Essas são

algumas dificuldades que surgem na realização do discurso prático. Não obstante, é possível identificar sua

relevância nas inúmeras tentativas públicas deste princípio regulativo na realização de fóruns, conferências,

como já apontado, que se propõem em discutir os problemas reais da humanidade. Cf. Ibid., p. 175.

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104

Ainda, na tentativa de atender seu propósito, sobre as bases sólidas da

fundamentação última filosófica, Apel aponta a compatibilidade entre a fundamentação última

e a teoria consensual da verdade. Segundo Apel, o conhecimento não pode ser fruto de uma

evidência privada, mas de um “a priori público, quer dizer, tem que estar impregnado de

linguagem. Aí está já implicada a necessidade de uma capacidade de consenso ilimitada por

parte de qualquer pretensão válida de conhecimento”.440

Com isso, Apel acredita ser

necessário o consenso para o alcance e validade do conhecimento. Mas como, no ato do

conhecimento, postular se as proposições são verdadeiras ou não? Mas elas também não

podem ser negadas se advindas de uma autocontradição performativa? Diante de tais questões

Apel responde que, embora elas postulem sentido e verdade, precisam de consenso. Dessa

forma, estão impregnadas de linguagem e, por isso, podem ser explicadas pela linguagem.

Portanto, “na medida em que o conhecimento é impregnado linguisticamente e, por

conseguinte, é intersubjetivo, temos como implicação a necessidade de uma capacidade

ilimitada de consenso como critério normativo de validade”.441

3.3.1 A contribuição de Kohlberg para a fundamentação da ética discursiva

Em busca de uma fundamentação pragmático-transcendental da Ética do Discurso,

como fundamentação última da filosofia, Apel analisa “a reconstrução, empreendida por

Kohlberg, da ontogênese da competência do juízo moral, no sentido de uma correspondente

reconstrução da filogênese, isto é, da evolução sociocultural da consciência moral”.442

Kohlberg estabelece uma hierarquia de seis estágios (pré-convencional 1; pré-convencional 2;

convencional 3; convencional 4; pós-convencional 5; pós-convencional 6) “partindo de uma

moral heterônoma e egocentrada na direção de uma maior autonomia e universalização do

juízo moral, correspondentes ao desenvolvimento da autonomia intelectual das crianças e

jovens”.443

Com isso, Apel estuda o princípio pragmático-transcendental com referência aos

estágios da compreensão do juízo moral (nas suas dimensões psicológico-descritivo-

explicativa e de fundamentação filosófica), desenvolvido por Lawrence Kohlberg.444

440

APEL, Karl Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 137. (grifo do autor). 441

COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel, p. 400. 442

APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 217. 443

SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade, p. 151. 444

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 228.

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105

Para Kohlberg, na compreensão de Apel, o processo de desenvolvimento da

ontogênese do juízo moral pode ser compreendido a partir da, ou como, “hierarquia” de

formas de integração moral, no sentido da justiça crescente. Quatro teses sustentam tal

empreendimento de Kohlberg: a) o ato de julgar moralmente repousa sobre um processo do

role taking (assumir uma função); b) em cada estágio ele aponta para uma nova estrutura

lógica; c) a estrutura pode ser concebida como estrutura-de-justiça; d) e em cada estágio

seguinte a estrutura é mais abrangente e diferenciada que no estágio anterior. Estas teses estão

comprovadas, segundo Apel, nos seis estágios da competência do juízo moral prescritos por

Kohlberg.445

No estágio pré-convencional 1, o indivíduo (a criança) ainda não está em condições

de realizar uma operação mental concreta, no sentido de reciprocidade lógica, pressuposto

necessário para a reciprocidade do juízo moral. Como também ele não está em condições de

conceber “justiça”, no sentido de uma reciprocidade entre indivíduos ou de relação de troca,

mas somente no sentido de uma “ordem social”, imperativo.446

No estágio pré-convencional

2, o indivíduo (a criança) já atinge condições, ainda que não suficientes, de executar uma

operação mental concreta, de reciprocidade. Como também já consegue definir “justiça”,

como polidez, no sentido de reciprocidade concreta de troca de serviços (agrados ou ofensas).

A criança percebe que não deve agredir a outra e vice-versa.447

No estágio convencional 3, o

indivíduo (criança ou jovem) já se encontra em condições de assumir uma função, no ato de

julgar. Assim ela pode analisar dois diferentes papeis e relacioná-los entre si. Agora o

indivíduo tem consciência de uma reciprocidade ideal, que ordena tratar os outros como ele

gostaria de ser tratado, e não como é tratado pelo outro (o que representa a “regra de outro” da

Bíblia). Ora, a questão o que fazer se um indivíduo bater no outro? suscita as seguintes

respostas: devolver o tapa, pois é necessário fazer com o outro a mesma coisa que ele fez para

mim (estágio 2); relevar o insulto, pois agir com violência, na mesma medida da agressão,

não possibilita uma relação de reciprocidade entre as pessoas. Assim pensaria o indivíduo do

estágio 3. Mas esta condição ainda é muito limitada, pois se certifica particularmente dentro

de relações já estabelecidas, como de família, amizades, etc. Por isso, ainda não há qualquer

possibilidade, no estágio 3, de universalização do role taking, como também ainda não há

possibilidade de formulações mais precisas de deveres e direitos da função.448

Somente no

445

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 229. 446

Cf. Ibid., p. 229. 447

Cf. Ibid., p. 230. 448

Cf. Ibid., p. 230-231.

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estágio convencional 4 é possível tal condição, que é o estágio do law and order (lei e

ordem), estreitamente relacionado com a ordenação estatal, social e jurídica. A relação

recíproca positiva de justiça agora se realiza em função da recompensa entre indivíduos e

sistemas, e não mais na troca interpessoal de bens e serviços. E a relação recíproca negativa

de justiça agora se realiza segundo a medida de igualdade perante a lei, e não mais no

sentimento de vingança ou reparação entre as pessoas.449

No estágio pós-convencional 5,

surge a perspectiva do legislador, de fundamentar a ordem social pela aquisição de contratos.

Este estágio se configura como o de direitos prioritários ou de contrato ou utilidade social.

Utilidade, aqui, significa utilitarismo regulador, que tem o caráter de conferir validade às

regras e leis se consideradas as mais úteis para os indivíduos (ao contrário das leis

pressupostas como sacrossantas, como no estágio 4). Neste estágio, para Apel,450

a moral

interior é superada pela garantia do estado de liberdade de todos os indivíduos e pela tentativa

de contrato entre os cidadãos. Ora, no estágio 4, a justiça é entendida como defesa da ordem

social; no estágio 5, como portadora de legislação em vista do bem-estar de todos e como

mediadora entre os vários interesses (que vem a ser uma democracia constitucional, portadora

de direitos iguais e de formação de consenso). Mas o estágio 5, como observa Apel a partir de

Kohlberg, ainda não pode ser considerado o estágio mais alto de desenvolvimento da

competência de juízo moral, pois nele ainda não está disponível o ponto de vista moral e o

princípio moral que orienta o indivíduo a agir.451

No estágio pós-convencional 6, o indivíduo

alcança a capacidade de agir em consonância com o outro, porque sua decisão, que prima pela

conservação da vida, se baseia na necessidade do outro e, por isso, é universal, válida em

qualquer situação. Neste estágio, a ação do indivíduo não está regida por uma avaliação

utilitarista de vantagens e nem por um acordo social de direito positivo, mas pelo respeito

igualmente legítimo a cada pessoa e em qualquer situação. Por isso, este estágio faz valer dois

princípios morais que definem uma “lei moral maior”: o “princípio kantiano, de que pessoas,

como seres de fim autônomo (Selbstzweckewesen), possuem um valor moral incondicional, e

o princípio, de todo correspondente, da igualdade moral de direito de todas as pretensões

(jurídicas) das pessoas em todas as situações”.452

Esses dois princípios morais estão sempre

vinculados a qualquer indivíduo de razão e, ao mesmo tempo, são universais; também estão

acima de toda lei jurídica e, por isso, devem fundamentar toda e qualquer pretensão de

449

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 231-232. 450

Cf. Ibid., p. 233. 451

Cf. Ibid., p. 232-234. 452

Ibid., p. 240. (grifo do autor).

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validade das leis. Neste horizonte, na interpretação de Apel, os princípios de moral do estágio

6 de Kohlberg não estão regidos apenas por uma condição formal e precedural, quanto à

formulação de normas e leis. Mas por princípios formais e deontológicos que prescrevem os

princípios da universalidade e da validade de deveres a qualquer pessoa e, com isso, a

conservação da vida humana e o tratamento ao outro como fim e não como meio.453

Segundo Kohlberg, na compreensão de Apel, uma possível relação entre o estágio 6

e a teoria de Rawls aponta para uma extraordinária análise: a teoria de Rawls preenche uma

função normativa que a teoria de Kohlberg não consegue alcançar, “a de prescrever a uma

pessoa racional os princípios de seus juízos morais e de, ao mesmo tempo, justificá-los”.454

Por isso, como afirma Kohlberg segundo Apel, a filosofia de Rawls pode demonstrar que os

estágios cada vez mais altos, são moralmente melhores. Neste sentido, como deduz Kohlberg

na interpretação de Apel, a passagem do ponto de vista utilitarista-regulador para o da justiça,

em Rawls, consolida a mudança do estágio 5 para o estágio 6. E isso possibilita Apel fazer

uma relação entre a teoria de Kohlberg e a ética discursiva.455

Nesta perspectiva, percorridos e analisados os seis estágios da competência de juízo

moral em Kohlberg, Apel agora se propõe relacioná-los, e com isso, analisá-los à luz da ética

discursiva. Segundo Apel, o princípio do role taking corresponde, na Ética do Discurso, ao

postulado de que todas as normas morais, asseguradas pelo discurso argumentativo e

discussão entre todos os interlocutores de uma comunidade de comunicação, devem alcançar

um real consenso. Para Apel, tais concepções (da teoria de Kohlberg e da ética discursiva)

podem ser entendidas como transformações do princípio de universalização kantiana.

Fundamentalmente, ambas as concepções estão sustentadas pelo princípio de justiça. Os

princípios do role taking e da compreensão de fala podem ser considerados complementares

porque clareiam outros aspectos de uma só realidade: postulam uma estrutura de

reciprocidade moral, que integra os sujeitos e ascende uma consciência pós-convencional.456

Esta perspectiva rompe com o estágio 4, pois a autoridade normativa da justiça social

particular sede lugar para uma reciprocidade do role taking numa ilimitada comunidade de

comunicação ideal. Dessa forma, se consolidará uma racionalidade ética onde um sujeito

autônomo discutirá com outros membros de uma mesma comunidade o sentido e validade das

normas, sempre sob os princípios do direito de fala entre todos e da formação de consenso.

453

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 238-241. 454

Ibid., p. 245. 455

Cf. Ibid., p. 254. 456

Cf. Ibid., p. 254-255.

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108

Segundo Apel,457

até aqui consiste a contribuição de Kohlberg para a Ética do Discurso,458

de

fazer pensar os pressupostos da Ética do Discurso na relação com os estágios da consciência

moral desenvolvidos por Kohlberg.

Neste horizonte, Apel reforça a tese de que a consciência pós-convencional combate,

na tentativa de extinguir, a possibilidade do mau uso estratégico-egoísta da competência do

role taking. Essa mesma pretensão se encontra na ética discursiva. E ambas estão regidas pelo

princípio da justiça, uma vez que toda ação resultante do experimento mental do role taking

leve à realização de consenso. Segundo Apel, poder-se-ia, a partir desta abordagem, deduzir a

seguinte máxima para a ética discursiva: age de tal forma, como se tu fosses membro de uma

comunidade ideal de comunicação.459

Esta fórmula, aparentemente válida, parece apontar a

resolução de todos os problemas morais, a partir do uso dos princípios reguladores da

formação de consenso. No entanto, ela não oferece qualquer relevância e, por isso, se

legítima, seria no mínimo ingênua e moralmente irresponsável.460

Para Apel,461

tal análise o

leva a seguinte constatação: há necessidade de um estágio superior e mais maduro que o

estágio 6 da competência do juízo moral elaborado por Kohlberg.

Conforme Apel, a teoria de Kohlberg, ainda que relevante, enfrenta o problema de

déficit de concretude metodológica, identificado nos seus estágios pós-convencionais,

problema tal também identificado nas éticas de princípio, de Kant e de Rawls.462

Portanto,

como observa Apel, no estágio 6 não há condições específicas para o emprego da moralidade.

Aí reside o déficit apontado por Apel. “Se isto for entendido, resultará formalmente um

problema especial da competência de adoção da moralidade dos estágios pós-convencionais,

457

Cf. APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 256. 458

Segundo Habermas – na compreensão de Apel – Kohlberg não alcançou um estágio pleno de

desenvolvimento da consciência moral. Por isso, Habermas postulou um novo estágio, o estágio 7, onde se supõe

que o ideal de universalização seja estabelecido como norma não somente pela experiência mental do indivíduo,

mas pela interação entre os interlocutores de um discurso. Não há dúvida, como entende Apel, que esta

empreitada de Habermas venha consolidar a crítica e transformação da máxima de universalização moral

kantiana. O estágio 7 representa o estágio final de uma evolução da competência comunicativa, caracterizado

pela interação real entre os dialogantes de uma comunidade de comunicação. Mas Kohlberg, conforme Apel,

embora tenha aceitado a interpretação e proposta de Habermas sobre a criação do estágio 7, declarou (em Moral

Stages: a Current Formulation and a Response to Critics, 1982), supérfluo tal postulado. Cf. APEL, op. cit., p.

256-257. 459

Cf. APEL, op. cit., p. 272. 460

“Nesse caso [como apresentado na máxima age de tal forma, como se tu fosses membro de uma comunidade

ideal de comunicação], a ética do discurso se tornaria uma ética da convicção como em Kant, em que a correção

da ação do indivíduo está completamente desvinculada dos efeitos da ação. Uma ética da responsabilidade deve

estar atenta às consequências da ação e inclusive fazer uso da ação estratégica em determinadas circunstâncias

em que se torna legítima a transgressão da norma”. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a

Validade e a Factibilidade, p. 163. 461

Cf. APEL, op. cit., p. 273. 462

Cf. Ibid., p. 273.

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109

sobretudo do estágio 6”.463

O problema se intensifica ao se constatar que o estágio 6, ainda

que ancorado no princípio da justiça, se constitui por uma “moral intrínseca” de sistemas de

autoafirmação social.464

Ora, como entende Apel, uma ética responsável exige a garantia de

discursos práticos, onde se pode garantir a responsabilidade coletiva (e não individual)

mediada pelo ato de comunicação entre os indivíduos de uma comunidade. Com isso,

constata-se que em toda comunidade de comunicação ideal, onde são estabelecidos os

pressupostos para a participação do discurso, já se pressupõe a competência formal-abstrata

apontada pelo estágio 6, particularmente pela formação do consenso e princípio de justiça.

Mas não pode, como no estágio 6, ocorrer uma moral isolada, isenta de uma mediação entre

parceiros de comunicação.465

Portanto, o possível estágio 7 (necessário para a fundamentação

última da ética discursiva) consiste no postulado de uma ética de responsabilidade da

consciência moral (de intermediação eticamente responsável da racionalidade ética), onde se

pressupõe a participação dos interlocutores, amparados pelo princípio da justiça e no mesmo

nível de discurso, numa comunidade de comunicação.

3.4 A relevância da Ética do Discurso

Diante dos desafios do mundo globalizado, como a economia excludente, o

darwinismo social, o perigo do desenvolvimento tecnológico e científico em massa, que

atingem toda a humanidade e a biosfera – embora também se reconheça o benefício que a

globalização trouxe para o homem, como a ruptura das fronteiras, em certa medida, o

comprometimento da técnica em função da vida, o progresso do conhecimento,

particularmente das ciências técnicas e sociais – como mensurar a relevância da Ética do

Discurso, enquanto uma proposta democrática de alcance universal? Se a Ética do discurso é

uma proposta ética racional, como, então, pensar as relações humanas a partir da razão? Ou,

de outra forma, o que pressupõe a configuração racional da convivência humana? Ora, estaria

então a Ética do Discurso disposta a combater o mero arbítrio ético ou relativismo moral?

Como também, empenhada a combater a neutralidade axiológica das ciências? O fato é que “a

razão tem a ver com o que é comum, universal; aqui, com o que possibilita a unidade da

convivência na diferença. Assim pode-se dizer que uma sociedade é racional quando resolve

463

APEL, Karl Otto. Estudos de moral moderna, p. 276. 464

Cf. Ibid., p. 276. 465

Cf. Ibid., p. 281-282.

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seus conflitos a partir do reconhecimento de regras comuns, universais”.466

A universalidade

se efetiva quando se opta pela responsabilidade de todos e, por isso, pela negação da

arbitrariedade moral ou de sua privacidade e relativismo.

Neste sentido, a filosofia é convidada a colocar-se no nível do discurso transcultural

(global), numa esfera, como denominada por Apel, da “globalização de segunda ordem”.

“Isso significa fundamentar princípios universais que possibilitem o encontro entre seres

humanos, indivíduos, grupos e instituições, mesmo Estados nacionais, justificado por razões,

por sentido e não pelo arbítrio e pela força”.467

Trata-se, então, de uma ética universal e de

uma teoria normativa das instituições políticas globais, capaz de discutir, em rede

internacional, os problemas da humanidade enquanto um todo; uma ética apta a tratar os

problemas mais urgentes da humanidade e de fundamentar o agir humano, a justiça e o direito

pelo viés do discurso, ao ter como referência a própria humanidade; “uma macroética

universalista da humanidade, ou seja, uma ética política da solidariedade universal, uma

macroética da corresponsabilidade planetária que fundamente uma ordenação jurídica em

nível mundial”.468

E é justamente no contexto de ceticismo, no qual impera o relativismo, onde não é

possível a validade objetiva da ética e, por isso, de uma ética universal capaz de reger as

relações humanas – como também do realismo e do comunitarismo469

implacáveis, ao

desconsiderar uma ética de alcance universal – que a Ética do Discurso revela sua proposta de

uma ética solidária, fundamentada na justiça e guiada por um princípio normativo, dado pelo

consenso entre os interlocutores de uma comunidade de comunicação.470

Não obstante, os

desafios acima apresentados não deixam de oferecer um dilema para a filosofia: ou ela se

estrutura e se desenvolve imersa na historicidade do pensar, nos jogos contingentes de

linguagem e nas formas de vida contextualizadas, cultural e tradicionalmente; ou ela, a partir

da historicidade – ao mostrar que esta não encerra o problema filosófico – procura tematizar

466

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 177. 467

Ibid., p. 178. 468

Ibid., p. 179. 469

Os realistas abnegam uma ética de alcance universal por apontar a injustiça imperante nas relações

internacionais, assim como a fraude e rompimento de acordos. Ao contrário, a política, no seu estado de

liberdade, deve, exclusivamente, buscar o interesse nacional. Dessa forma, o realismo radica sua absolutização

no fático e desqualifica o ético, em âmbito universal. Os comunitaristas afirmam a possibilidade de uma

validade moral somente no seu ambiente social próprio, particularmente determinada pela sua tradição cultural.

Como se observa, ambas as teorias defendem um particularismo normativo, fruto das necessidades de cada lugar.

Dessa forma, negligenciam a existência de uma ética universal, por resistir à observância de normas comuns para

todos os homens e, por isso, sustentar uma ética contextualizada a partir e no regime de cada tradição. Cf.

OLIVEIRA, op. cit., p. 180-183. 470

Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 180.

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111

de maneira reflexiva, as questões contingentes e a validade do conhecimento. Segundo Karl

Otto Apel, não há dúvida de que a filosofia deve percorrer o segundo caminho, o que significa

adotar a linguagem – no sentido da reviravolta linguístico-hermenêutica – como médium

instransponível e irrecusável de todo sentido e validade.471

Uma vez que os indivíduos, nesta perspectiva, reciprocamente se comunicam e, pela

linguagem, alcançam consenso, como via segura de conhecimento e validade das normas,

constituem, então, uma comunicação intersubjetiva mediada. A argumentação (ou discurso),

desenvolvida e significada na reviravolta linguística, adquire o significado de razão e, por

isso, também obtém uma dimensão social: “razão é, então, essencialmente, intersubjetividade,

ou seja, tem a ver com funções e produções que remetem diretamente à interação e à

cooperação,”472

o que leva a concluir que “a razão se efetiva essencialmente na cooperação

entre sujeitos; possui em si mesma um nexo interno à relação sujeito-sujeito”.473

Ora, a linguagem surge como condição necessária para a reflexão transcendental que,

particularmente, se caracteriza pelo questionamento acerca das condições de possibilidade e

validade do conhecimento. E somente por meio de uma autorreflexão se pode alcançar o

consenso, via linguagem. Essas considerações levam a afirmar que a filosofia é reflexão

transcendental, autorreflexão pela linguagem, com pretensão de tematizar as questões

intransponíveis de possibilidade e validade do conhecimento. Neste sentido, a filosofia tem a

tarefa particular de explicitar as condições formais da argumentação e, com isso, alcançar a

universalidade própria da razão, já acenada na sua busca constante pelo entendimento numa

comunidade de interlocutores.474

Em torno dessa tarefa, aparece, como entende Apel, a necessidade de fundamentação

de um princípio de justiça universalmente válido, responsável, dado pelo discurso racional, de

caráter formal-procedimental.475

Esta, que consiste na primeira parte da Ética do Discurso, se

caracteriza pela reciprocidade dialógica universal e pela igualdade básica de direitos na

471

Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 185-186. 472

Ibid., p. 187. 473

Ibid., p. 187. 474

Cf. Ibid., p. 187-188. 475

No legado procedimental da Ética do Discurso se reconhece o acordo entre todos os indivíduos em uma

comunidade de comunicação, vinculados por uma participação simétrica. Assim, se a norma básica da ética

discursiva remete ao consenso, a ética, então, atende um critério de legitimação democrática: “para a ética

discursiva a democracia representa a realização, no âmbito político, da comunidade ideal de comunicação

necessariamente pressuposta em todo atuar com sentido. Desta forma, a democracia deixa de ser uma última e

resignada solução ao problema do poder político para converter-se em uma medida crítica de toda ordem social”.

MARZÁ, Domingo García. Ética de la democracia en K.-O. Apel: la arquitectura de la ética discursiva y su

contribución a la teoria democrática. ANTHROPOS 183 (1999), p. 35.

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argumentação. O que revela a natureza própria da racionalidade discursiva, a capacidade de

estabelecer uma relação dialogal, cooperativa, entre os interlocutores na busca pelo consenso,

em detrimento de qualquer violência ou predomínio de fala. Isto leva a afirmar que “a política

é o esforço de efetivar a razão comunicativa na esfera da solução dos problemas coletivos e

seu sentido é, então, o de instaurar uma comunidade baseada na razão, entendida

discursivamente”.476

No viés da racionalidade (fundamentação) pragmático-transcendental, se

podem discutir os problemas mais agudos do mundo globalizado, como a institucionalização

dos direitos humanos, o ataque aos valores morais circunstanciais, etc. Nisso consiste a

segunda parte da Ética do Discurso: uma ética de responsabilidade coletiva, que percebe a

necessidade de uma fundamentação de normas materiais para o mundo histórico: “quem

argumenta pressupõe, não só, necessariamente, condições ideais de uma comunidade ilimitada

de comunicação, mas também condições históricas e contingentes da situação da comunidade

real de comunicação”.477

Para Apel, somente mediado pela linguagem, onde o discurso alcança sua forma

específica de reflexividade – na pressuposição de institucionalização do discurso real e

mediação do princípio moral e situação real – se pode intervir no atual sistema econômico do

mundo e transformá-lo na direção da justiça social global. Pois, diante do quadro estratégico

das políticas nacionais e internacionais e do uso emergente da força de poder, há necessidade

– na tentativa de uma solução dos conflitos pelo discurso – de um “complemento entre uma

moral deontológica e uma moral teleológica que tem a ver com a mediação necessária entre o

princípio moral [...] e as situações reais, na medida em que o princípio deôntico de

universalização transforma-se em valor-fim”.478

Com isso, nota-se não poder existir uma ética

da responsabilidade, como prescrita pela Ética do Discurso, sem condição teleológica,

particularmente porque o princípio de universalização, já concebido na comunidade ideal,

exige condições históricas de sua aplicação.479

Neste horizonte, surge o direito como esfera de criação das condições históricas para

a efetivação da norma básica fundamental, ao impor leis que sugiram a responsabilidade dos

indivíduos na vida social. Não obstante, “a coerção só se legitima na medida em que está a

serviço da possibilidade de tornar efetiva a liberdade a partir da diferença entre as condições

476

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 191. 477

Ibid., p. 196. 478

Ibid., p. 199. 479

Cf. HERREO, Javier. Ética do Discurso, p. 184.

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ideais e reais do discurso e a obrigação de transformação das condições reais”.480

O direito

tem a função – diferente da política, que confere aos indivíduos a responsabilidade de suas

sentenças – de tornar a moral efetiva, como pressuposta na parte “A” da Ética do Discurso.

Por isso, a Ética do Discurso exige a efetivação de uma ordem de direito global.481

Ora, não

pode a Ética do Discurso isentar-se do direito e da política, como na concepção tradicional da

ética de princípio, “pois isso infligiria claramente o imperativo moral da corresponsabilidade

discursiva pelas consequências de todas as atividades humanas. Esse imperativo exige

justamente a mobilização e a organização da corresponsabilidade em todos os âmbitos do

mundo da vida”.482

Portanto, a relevância da Ética do Discurso consiste no fato de Apel, rigorosamente,

pensar a natureza própria da ética filosófica, como uma ética racional, normativa e

examinadora de suas próprias proposições quanto à verdade; de postular a verdade da

sentença moral não a partir de fatos empíricos, descritivos, mas de princípios de ordem ideal,

a priori; que a filosofia, na sua dimensão a priori, é uma reflexão transcendental e não

dedutiva, como prescreve a lógica matemática; e de sustentar a normatividade ética no

consenso, dado a partir da relação recíproca entre os dialogantes numa comunidade de

comunicação, em detrimento de qualquer pretensão subjetiva ou solitária do pensar moral.483

Em suma, o presente capítulo procurou explicitar e analisar a arquitetura da Ética do

Discurso, o que representa o ponto de chegada de todo percurso apeliano em busca de uma

480

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios Éticos da Globalização, p. 200. 481

Como entende Apel, as instituições se regulam por outras instituições ou por meta-instituições. O Direito

pode ser concebido como uma meta-instituição capaz de regular a ação de várias outras instituições. Neste

sentido, a partir do ideal da Ética do Discurso, o Direito desempenha três funções: “1) Da relação com a moral

ideal do discurso (...) deriva a exigência relevante, em termos de legitimação, de fundar o Direito em

consonância com o princípio da capacidade de consenso das normas a serem genericamente observadas para

todos os afetados, ou seja, no sentido da ideia reguladora da identidade dos legisladores e dos destinatários do

direito, o que significa também: sob a consideração do postulado moral dos Direitos Humanos universalmente

válidos. 2) Da relação com o poder político – portanto, da utilização do monopólio estatal da força para fazer

vigorar as normas jurídicas e impor a sua observância – deriva a exigência de limitar as obrigações jurídicas dos

cidadãos, restringir a arbitrariedade quanto ao comportamento externo e impor a sua observância, nesse sentido,

de modo tão efetivo que se garanta a mais completa desoneração possível, dos cidadãos, da auto-ajuda forçada

no que se refere à responsabilidade recíproca. 3) Da relação com a Economia, por fim – compreendida como

forma de assegurar o provimento material dos seres humanos por meio do concurso entre os comerciantes e os

prestadores de serviços no mercado – deriva a exigência de que o Direito garanta, na forma de uma ordem que

circunscreve a economia de mercado (...), a autonomia (dispor de propriedade), bem como a liberdade, de todos

os participantes do mercado, de negociar e contratar, no sentido de estrategicamente perseguirem o próprio

interesse e coibirem distorções da concorrência livre”. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a

Validade e a Factibilidade, p. 165. (grifo do autor). 482

HERREO, Javier. Ética do Discurso, p. 184. Em contrapartida, não pode a Ética do Discurso aceitar a

independência do direito em relação à moral. Pois o direito deve contar com a racionalidade argumentativa, no

processo de formação de consenso entre indivíduos de direitos iguais e responsáveis, para fundamentar suas

normas. Caso o direito leve em conta tais pressupostos, estará arraigado na moralidade. Cf. Ibid., p. 185. 483

Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 202.

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ética racional para o mundo da ciência e da tecnologia. Verificou-se que Apel, à medida que

vai elaborando seu “projeto arquitetônico”, o faz sempre em uma perspectiva de superação da

filosofia tradicional, particularmente transcendental kantiana, o que revela o “fio condutor” de

toda esta dissertação: o itinerário formativo da ética discursiva de Apel. Por isso, mesmo ao

apresentar os suportes da Ética do Discurso, identificados na parte “A” e “B”, Apel conserva

o seu legado de transformação da filosofia. Neste sentido, foi possível investigar a

compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso, sua estrutura, composta por

uma comunidade ideal (parte “A”) e real (parte “B”) de comunicação e a dialogicidade entre

elas. E, com isso, a peculiaridade da filosofia apeliana, como uma ética filosófica de reflexão

transcendental e de fundamentação última, o que caracteriza a substancialidade do

pensamento de Apel. Também, verificou-se a contribuição de Kohlberg para fundamentação

da Ética do Discurso. E, por fim, a relevância da proposta ética de Apel para o mundo

contemporâneo, enquanto ética de responsabilidade solidária, regida pelo princípio da

universalidade e assegurada pelo princípio de justiça.

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CONCLUSÃO

O objetivo desta dissertação foi explicitar e analisar, por via de uma leitura crítica, o

itinerário formativo da Ética do Discurso de Karl Otto Apel. Com isso, procurou apontar os

elementos principais que nortearam Apel no caminho e elaboração do seu “projeto

arquitetônico”, de uma ética pós-convencional para o mundo contemporâneo. Durante toda

esta empreitada foi possível perceber a grandeza e a nobreza do espírito filosófico de Karl

Otto Apel. Um filósofo de alto nível reflexivo, de pensamento ousado e crítico, capaz de

instaurar uma nova perspectiva do pensar filosófico e, com isso, propor um método de

filosofar, que não se prende a uma “abstração filosófica”, mas que atinge o agir do homem,

enquanto ser social e moral. Ainda que esta dissertação tenha se comprometido a fazer uma

legítima interpretação do pensamento apeliano, ao apresentar seu arcabouço filosófico em

busca de uma ética racional, seu escopo ainda é limitado e, por isso, permanece como um

convite à investigação e conhecimento deste filósofo que, sem dúvida, é um dos maiores

pensadores da filosofia contemporânea.

A grandeza e nobreza de Apel se mensuram não somente pela sua ousadia em

arquitetar uma filosofia ética que, como ele mesmo afirma, é um projeto inacabado. Mas,

fundamentalmente, pela sua astúcia em discutir, o que revela seu profundo conhecimento da

filosofia, com os mais insignes filósofos do mundo Ocidental. Apel não rejeita ou

desconsidera o legado filosófico construído e desenvolvido ao longo da história, mas parte da

história da filosofia, com seus grandes sistemas e questionamentos, para dela absorver, numa

atitude de superação, os elementos principais para o seu pensar filosófico. Por isso, é um

pensador de extrema cultura filosófica, imerso nos grandes dilemas e correntes da filosofia,

atento às mudanças da própria filosofia e do mundo real, histórico.

Esta dissertação de caracterizou por uma perspectiva analítica e crítica, história e

hermenêutica. Essas características, que aos poucos foram se explicitando ao longo de todo

trabalho, nada mais representaram que a própria maneira de pensar de Apel, o que faz de tal

pesquisa uma identificação com o filosófico estudado, que se revela não somente no plano da

pesquisa – na investigação pelo seu método filosófico – mas com a própria proposta apeliana,

de filosofia e ética moral.

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O primeiro capítulo explicitou o problema de uma fundamentação ética na era da

ciência. Partiu da afirmação de Apel que a situação humana é um problema ético para o ser

humano. Com isso, apresentou a gênese da moral, radicada na mitologia bíblica, e seu

desenvolvimento na história, do homo faber ao homo sapiens. Seguiu com a análise sobre a

paradoxalidade da condição ética, ora marcada pela carência de uma ética universal, ora pela

abnegação de uma fundamentação filosófica para a ética. Daí, a pesquisa apresentou o

pertinente diálogo de Apel com as posições teóricas que, segundo ele, desmobilizam a

fundamentação de uma ética racional, a saber: a moderna filosofia analítica (de análise lógico-

semântica, o que corroborou com as teses do positivismo cientificista e do racionalismo

crítico); a lógica da ciência de Wittgenstein (de caráter lógico-propositivo, como no primeiro

Wittgenstein, mas que depois fundou os jogos de linguagens, como perspectivas formas de

vida, como no segundo Wittgenstein); o decisionismo de Hans Albert (ao fundar uma ética

sustentada em hipóteses e, por isso, dependente da experiência para sua veracidade e

efetivação); as racionalidades e postulados éticos de Max Weber (ao pensar as racionalidades

do mundo ocidental e instaurar uma ética da responsabilidade, em detrimento da ética da

convicção); e o solipsismo metódico (de linguagem formal-objetiva, onde revela o modo

solitário, monológico e autossuficiente de atuar do cientista). Nesta perspectiva, o primeiro

capítulo demonstrou que o pensar monológico, racionalista, cientificista e positivista – de

caráter sintático-semântico, lógico-formal-matemático – negligenciam a fundamentação de

uma ética racional. Não obstante, em meios a esses problemas, Apel considera que a ética da

responsabilidade (como acenada por Weber) e os jogos de linguagens (como postulado por

Wittgenstein) adquirem, ainda que limitados, relevância para a fundamentação da Ética do

Discurso.

O segundo capítulo apresentou a transformação hermenêutico-semiótica da filosofia

transcendental, como pressuposto de investigação das bases para a fundamentação da Ética do

Discurso de Karl Otto Apel. Neste sentido, o capítulo analisou a perspectiva crítica de Apel

sobre o factum kantiano da razão, ao mostrar o método transcendental kantiano e sua

relevância, em uma atitude de superação, para a ética discursiva, particularmente de uma

filosofia da consciência para uma unidade da interpretação, linguisticamente mediada;

depois, apresentou a perspectiva hermenêutica de transformação da filosofia transcendental,

instaurada por Heidegger e Gadamer, fundamentalmente pela substituição do método

transcendental pela condição fática do compreender; com isso, abordou o novo paradigma da

filosofia, na sua vertente hermenêutico-fenomenológica, como o modo de pensar pautado pela

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experiência pré-científica da vida e do mundo: no desvelamento da experiência cotidiana em

Heidegger e nas condições existenciais do compreender em Gadamer; e, a partir dessas

considerações, analisou a perspectiva crítica de Apel acerca das filosofias hermenêutica de

Heidegger e Gadamer, ao apontar que Heidegger não atingiu uma relevante transformação da

filosofia kantiana, por separar o problema da constituição do compreender com a

problemática da validade de sentido e, na mesma medida, Gadamer não estabeleceu uma

criteriologia relevante para avaliar as condições do compreender; em seguida, analisou a

transformação semiótica da lógica transcendental kantiana, instaurada por Peirce, ao postular

uma semiótica tridimensional e, com isso, substituir a sintática e a semântica pela dimensão

pragmática trivalente de interpretação de signos; em seguida, apresentou o postulado da

comunidade de experimentação e interpretação, onde a mediação dos signos adquire total

importância para a interpretação de algo como algo, sustentada em uma comunidade ilimitada

de comunicação, como também pelo próprio comportamento das coisas, identificado na

experiência; e, por conseguinte, refletiu a crítica de Apel ao cientificismo de Peirce, ao

perceber que Peirce substitui o acordo intersubjetivo, dado em uma comunidade ilimitada de

comunicação, pela observação do comportamento das coisas, o que representa um

reducionismo cientificista da experiência; e, por fim, demonstrou o conceito transcendental-

hermenêutico de linguagem segundo Apel, que vem a ser o caráter filosófico singular de

Apel, de uma reflexão transcendental da interpretação mediatizada pela linguagem,

portadora de consenso e realizada pelos dialogantes de uma comunidade ilimitada de

comunicação. Neste sentido, o segundo capítulo apresentou os fundamentos da Ética do

Discurso, as bases sólidas que possibilitaram Apel arquitetar sua proposta ética filosófica.

Mas, como observado, Apel procura superar aqueles que representam a base para sua

fundamentação filosófica, o que vem a demonstrar o caráter particular da Ética do Discurso,

uma proposta singular, caracterizada pelo viés transcendental-hermenêutico-linguístico-

pragmático. Não há dúvida que Kant, embora Peirce seja vital para a fundamentação da Ética

do Discurso, seja o pensador mais influente na configuração de todo pensamento de Apel.

O terceiro capítulo apresentou a arquitetura da Ética do Discurso. Partiu da

compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso, enquanto uma proposta ética

argumentativa, que tem a linguagem como medium de toda discussão, de caráter pragmático-

transcendental, portadora de consenso entre os interlocutores de direitos iguais numa

comunidade ilimitada de comunicação, regida pelo princípio de universalização e

corresponsabilidade; depois, explicitou a estrutura da ética apeliana, compreendida por uma

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parte “A” (ideal), contrafaticamente antecipada e de fundamentação racional das normas

éticas, e por uma parte “B” (real), referida à história, de responsabilidade solidária e de

efetivação das normas tomadas em consenso; e com isso, demonstrou a dialogicidade entre a

comunidade ideal e real da Ética do Discurso, ao entender que todo argumentante já

pressupõe a comunidade ideal na comunidade real; depois, apresentou a reflexão

transcendental como fundamentação última da filosofia, o que caracteriza o modo próprio da

racionalidade filosófica, como autorreflexão linguisticamente mediada, dada por enunciados

performativos (contraditórios), de possibilidade e validade de conhecimento e de um a priori

situacional, de explicação do feito da razão, derivado de uma condição normativa da

possibilidade da argumentação, que também é fundamento normativo da derivação de todas as

normas éticas; e, nesta perspectiva, também explicitou a contribuição de Kohlberg para a

fundamentação da ética discursiva, ao apresentar os estágios da compreensão do juízo moral

em Kohlberg e sua correspondência, ainda que limitada, com os pressupostos da Ética do

Discurso; e, por fim, traçou alguns elementos que apontam a relevância da Ética do Discurso,

como uma proposta ética racional, regida pelo princípio de universalidade, capaz de superar o

relativismo, o solipsismo e a neutralidade axiológica das ciências particulares e discutir, na

pretensão de encontrar soluções efetivas, os problemas mais urgentes da humanidade, em

âmbito global.

Fundamentalmente, a Ética do Discurso é uma ética pós-convencional, de caráter a

priori pragmático-transcendental que, pela mediação do discurso – como médium de todo

entendimento – postula normas, a partir do princípio de universalidade, justiça, igualdade de

direito de fala e responsabilidade, para toda a humanidade, na pretensão que essas normas

sejam, de fato, efetivadas no mudo real. Ela, a Ética do Discurso, representa uma autêntica

transformação da ética kantiana, como analisada pelo princípio de universalização, mediado

pela linguagem, na parte “A”, e pelo princípio da corresponsabilidade, referida à história e

concretização das normas consensuais, na parte “B”. E, por isso, a Ética do Discurso é uma

ética pós-convencional, de extrema repugnância ao solipsismo, ao relativismo e ao

deducionismo moral.

Desafios não poucos acompanharam e amedrontaram a elaboração desta dissertação.

O primeiro deles refere-se à compreensão legítima do pensamento de Apel, às vezes colocada

em xeque devido à maneira como o autor apresenta o seu pensamento, nas suas diversas

obras: ora marcado por um diálogo profundo e constante com vários filósofos clássicos, numa

perspectiva histórica; ora pela sua capacidade hermenêutica em adentrar e interpretar tais

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autores; ora pela sua crítica veraz às variadas concepções filosóficas; ora pela sua tentativa de

superar e absorver os elementos filosóficos relevantes para a construção do seu postulado

ético. Junto a este desafio, outro, logo em seguida, se apresentava: o de conhecer, ainda que

parcialmente, os vários pensadores e perspectivas filosóficas que Apel se propõe a discutir, o

que gerou um profundo desconforto, porém, ao mesmo tempo, motivação para investigar os

mais renomados pensadores em discussão nas obras apelianas. Não mais que isso, outro

desafio constantemente se apresentava, como o de, a partir do estilo particular do autor, fazer

uma síntese precisa dos problemas e perspectivas filosóficas assumidas por ele, no interior da

sua proposta ética. Por isso, a presente dissertação contou com inúmeros comentadores, na

tentativa de melhor refletir e interpretar o pensamento filosófico de Apel.

Ora, este trabalho não apresentou nenhuma novidade naquilo que constitui o

pensamento filosófico moral de Apel. Nada mais procurou que, a partir de uma análise crítica,

explicitar os principais elementos do pensamento ético de Apel, o seu itinerário em busca de

uma ética racional. Não obstante, ao tomar em consideração os desafios já apresentados para a

elaboração desta dissertação, é possível aqui, hipoteticamente, afirmar a originalidade desta

dissertação, que se deve ao seu aspecto metodológico. Apel, na maioria das suas obras,

procura desenvolver um assunto ao mesmo tempo em diálogo com vários filósofos e sistemas

filosóficos, o que torna sua obra árdua, porém profunda. Esta dissertação procurou, a partir de

uma síntese precisa dos conteúdos tratados nas obras de Apel – daquilo que se refere ao seu

postulado ético, o que não está em dissonância com qualquer outra questão que ele se propõe

a resolver – apresentar ou crivar o particular de cada discussão. Por isso, percorreu várias

obras de Apel para absorver e registrar, num único tópico, o particular de cada discussão,

aquilo que Apel trata ao mesmo tempo em várias obras e sempre em profundo diálogo com

outros pensadores. Por isso, o caminho aqui traçado para apresentar o itinerário formativo da

ética de Apel é de particular escolha, o que não se encontra em qualquer obra ou comentário

acerca do pensamento moral apeliano.

Não há dúvida que esta dissertação traz muitas lacunas e imprecisões. Mas procurou

atender seu objetivo, de explicitar, por via interpretativa e crítica, o itinerário formativo da

Ética do Discurso de Karl Otto Apel. E, por isso, abre inúmeras questões que merecem

aprofundamento, ou que suscitam novas problemáticas, em trabalhos seguintes, como: a

relevância do segundo Wittgenstein e/ou da ética da responsabilidade de Weber para a Ética

do Discurso; a relação crítica entre o a priori transcendental kantiano e o a priori

transcendental apeliano (fronteiras e simetrias); uma análise crítica sobre a perspectiva crítica

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de Apel ao cientificismo de Peirce; limites da fundamentação última proposta por Apel, assim

como os limites da sua proposta ética e muitas outras questões.

A proposta ética de Apel não está livre de polêmicas e críticas que afligem sua

fundamentação e estrutura. E isso não seria novidade para um autor que ousa mudar os rumos

do pensamento filosófico e, ao mesmo tempo, tecer inúmeras críticas ao pensamento clássico

da filosofia. Por sua vez, em nenhum momento esta dissertação quis desenvolver qualquer

argumentação crítica em relação ao pensamento de Apel, pelo simples fato de não postular tal

objetivo. Por isso, procurou ser fiel ao pensamento de Apel, na tentativa de interpretá-lo e, por

uma análise crítica, explicitar o seu itinerário formativo na construção de uma ética filosófica

para o mundo da ciência e da técnica.

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