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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB

    INSTITUTO DE ARTES IDA / DEPARTAMENTO DE MSICA

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE ARTES / DEPARTAMENTO DE MSICA

    O CHORO DOS CHORES DE BRASLIA

    Ivaldo Gadelha de Lara Filho

    Orientador: Ricardo Jos Dourado Freire

    Dissertao de Mestrado

    Braslia-DF: Outubro/ 2009

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    INSTITUTO DE ARTES IDA / DEPARTAMENTO DE MSICA

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE ARTES / DEPARTAMENTO DE MSICA

    O CHORO DOS CHORES DE BRASLIA

    Ivaldo Gadelha de Lara Filho

    Dissertao de mestrado submetida ao Departamento de Msica da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de Mestre em Msica e Contexto, rea de concentrao em processos e produtos na criao e interpretao musical.

    Aprovado por:

    Ricardo Jos Dourado Freire, Doutor, UnB (Orientador)

    Beatriz Duarte P. de Magalhes Castro, Doutor, UnB (Examinador Interno)

    Joo Gabriel Lima Cruz Teixeira, Doutor, UNB - Sociologia (Examinador Externo)

    Braslia-DF, 27 de outubro de 2009.

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB

    INSTITUTO DE ARTES IDA / DEPARTAMENTO DE MSICA

    LARA FILHO, IVALDO GADELHA DE

    O Choro dos Chores de Braslia, 208 p., (Departamento de Msica-UnB, Mestre, Msica e Contexto, 2009).

    Dissertao de Mestrado Universidade de Braslia. Instituto de Artes. Departamento de Msica.

    1. Choro 2. Braslia

    3. Performance 4. Contexto

    I. UnB-Msica II. Ttulo (srie)

    concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias desta dissertao e emprestar ou vender tais cpias somente para propsitos acadmicos e cientficos. O autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte desta dissertao de mestrado pode ser reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.

    ________________________

    Ivaldo Gadelha de Lara Filho

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB

    INSTITUTO DE ARTES IDA / DEPARTAMENTO DE MSICA

    Para Maria, Gabi e Titi.

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB

    INSTITUTO DE ARTES IDA / DEPARTAMENTO DE MSICA

    Agradecimentos

    Gabi, minha esposa, pelo seu amor e amparo, pela sua generosidade e extraordinria capacidade de reflexo. Sem a sua presena na minha vida eu no conseguiria realizar este trabalho.

    Ao Tiago, Titi do Bandola, bandolinistinha danado, pela inspirao e pureza na relao com a msica.

    minha querida me Violeta e meus irmos T, Nen, Flvia e Paulo, pelo amor e lealdade.

    Beth Tunes, minha sogra, pelas discusses e incrveis sugestes de leituras.

    Ao Bob, meu sogro, pela humildade e leveza com que trata a vida.

    Aos entrevistados: Augusto, Marcelo, Dudu Maia, Dudu 7 Cordas, Leo Benon, Paulo, Gordinho, Fabinho, Tonho, Henriquinho, Rafa, Frango, Lal, Csar e Reco, meus amigos das Rodas e da vida, pela boa vontade e por compartilhar os conhecimentos e os ensinamentos que so a essncia desse trabalho.

    Ao Pedrinho Vasconcelos, a quem entrevistei, mas, trado pelos aparatos tecnolgicos, perdi o registro. Suas reflexes e palavras, contudo, estiveram comigo e, de algum modo, esto no trabalho.

    Aos chores que no pude entrevistar, por simples falta de tempo, pelas amizades, pelo acolhimento.

    Aos amigos de todas as horas, Cacai Nunes e George Lacerda.

    Ao Clube do Choro e Escola de Choro Raphael Rabello, pelo irrestrito apoio.

    Tartaruga Lanches, ao Paulo e Gordinho, pelas sextas-feiras extasiantes, pelas pizzas margueritas, pelas cachaas de bananinha.

    Ao Servio Social do Comrcio SESC, pelas horas semanais de dispensa para a realizao do trabalho.

    A Wagner Campos, o primeiro a abrir os meus olhos para a musicologia brasileira.

    Ao orientador, Ricardo Dourado Freire, pela ajuda e liberdade concedida para a realizao deste trabalho.

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    INSTITUTO DE ARTES IDA / DEPARTAMENTO DE MSICA

    Resumo

    O Choro gnero instrumental brasileiro, surgido no Rio de Janeiro no final do

    sculo XIX. Desde a criao de Braslia, a cidade abriga chores. Neste trabalho,

    msicos chores de Braslia foram entrevistados, com vistas a identificar e analisar

    conhecimentos e percepes acerca de sua prtica musical. Tambm foram analisados,

    por meio de observao em campo, dois contextos de performance tpicos do gnero: a

    Roda de Choro e a apresentao formal. Foram observadas as Rodas de Choro que

    ocorrem semanalmente no Tartaruga Lanches, lanchonete localizada no final da Asa

    Norte em Braslia, ao longo de um ano; foram tambm observadas apresentaes de

    artistas no Clube do Choro, tradicional casa totalmente dedicada ao gnero. A partir das

    entrevistas e das observaes, os seguintes aspectos relacionados ao Choro foram

    analisados: modos de aprendizagem, contextos de performance, critrios de

    performance, relao entre manuteno da tradio e insero de inovaes. Os

    discursos dos chores demonstraram que existe vasto conhecimento sobre o gnero

    transmitido oralmente, e compartilhado por aqueles que a ele se dedicam.

    Abstract

    Choro is a Brazilian music instrumental genre, wich was born in Rio de Janeiro

    at the second half of the nineteenth century. This work will discuss the Choro

    performance and Choro musicians who live in Brasilia and their vision about their art

    form. The research was based on interviews with musicians about their musical

    knowledge and their perception about their musical practices. There were also a critical

    observation of the fields where the Choro is played in Braslia, formal presentations that

    occur mainly at the Clube do Choro and a more informal setting of Roda de Choro at

    Tartaruga Lanches. The etnografic work took special attention at the modes of learning

    by the musicians, the musical and social contexts, the relationship between tradition and

    innovation. The musicians discourse showed that there is a deep knowledge about

    happen musically and socially in the Choro field in Braslia, which is transmitted

    basically by oral tradition, and shared by the ones who choosed to belong to the Choro

    genre.

  • SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................................... 1

    METODOLOGIA .................................................................................................................................. 4

    PARTE A HISTRIAS ......................................................................................................................... 7

    A1. REVENDO O PASSADO ......................................................................................................................... 7 A2. DA LAPA AO PLANALTO CENTRAL ................................................................................................... 27

    PARTE B CONTEXTOS ...................................................................................................................... 44

    B1. NA RODA DE CHORO ........................................................................................................................ 44 B2. NO PALCO DO CHORO ....................................................................................................................... 71

    PARTE C MSICA ............................................................................................................................. 88

    C1. NINGUM APRENDE CHORO NO COLGIO .......................................................................................... 88 C2. MSICA DAS NUVENS E DO CHO .................................................................................................. 104 C3. SALVE-SE QUEM SOUBER ............................................................................................................... 132 C4. I, MANDINGUEIRO, CAMAR! ..................................................................................................... 145 C5. MODERNO TRADIO .................................................................................................................. 154

    CONCLUSO .................................................................................................................................... 180

    REFERNCIAS .................................................................................................................................. 185

    ANEXO I FICHAS DOS MSICOS ENTREVISTADOS .......................................................................... 189

    ANEXO II ROTEIRO DAS ENTREVISTAS ........................................................................................... 191

    ANEXO III CONHECIMENTO BSICO DO CHORO ............................................................................. 192

  • 1

    INTRODUO

    Independentemente da abordagem e do ponto de vista do pesquisador, a melhor

    maneira de entender qualquer msica estando dentro dela, e assim que me lano

    nessa empreitada. Cabe ressaltar que no nasci no bero do Choro mas, de algum modo,

    minhas razes voltaram-se para essa tradio, e hoje nutrem-se dela. Os caminhos que

    me levaram ao seu encontro foram conjunturais, felizes e fortuitas coincidncias. Por

    acaso, ou destino, tanto faz, estive em Rodas, fui apresentado a determinadas msicas,

    fiz determinados amigos, resolvi tocar clarineta. Fui criando profunda identidade com o

    universo do Choro, que passou a ser o meu prprio, o lugar onde me sinto

    verdadeiramente em casa. Se no nasci na tradio, vim morar nela e fui por ela

    acolhido de braos abertos. Impossvel ser imparcial. Portanto, devo buscar ser justo.

    Por isso, a referncia fundante das reflexes do meu trabalho ser o discurso dos

    chores, independentemente se concordo ou no com suas opinies. Por isso, devo

    postar-me com humildade perante as palavras desses que so os verdadeiros

    conhecedores dessa msica, entendendo que nenhum estudo ou ttulo acadmico me

    tornaro jamais melhor do que eles. Ao dar voz a eles, no lhes fao nenhum favor. Pelo

    contrrio: eles, ao me revelarem o sentido que essa msica tem para suas vidas, ajudam-

    me a compreender o sentido da minha prpria existncia.

    Este trabalho trata do gnero musical Choro e tem como objeto principal de

    pesquisa a comunidade dos chores de Braslia. Considerando que essa comunidade

    formada por pessoas conscientes do que fazem, e cujo conhecimento deve ser

    valorizado pois, de algum modo, reflete as dcadas de tradio que nos antecederam.

    Optou-se por realizar um levantamento acerca dos elementos essenciais para o Choro a

    partir do discurso dos prprios chores de Braslia. Em outras palavras, busco, nas

    pginas que seguem, descrever e analisar como os chores entendem a msica que

    fazem, quais elementos valorizam, como a produzem, como interpretam, como

    aprendem,etc.

    So objetivos do trabalho identificar conceitos, modos de pensar, de tocar, de

    criar e de agir prprios dos ambientes do Choro, bem como descrever e analisar

  • 2

    elementos musicais caractersticos do gnero. Desse modo, pretende-se contribuir para

    ampliao do conhecimento acerca dessa manifestao musical brasileira.

    Um sistema musical pode no se basear em uma teoria musical, mas, de acordo com

    John Blacking (1973), ele se apia em uma ordem sonora, em uma organizao que

    orienta o som. Supomos que possvel identificar uma ordem sonora subjacente ao Choro; supomos, ainda, que os chores tm conscincia dessa ordem.Desse modo, se a

    pesquisa investigar a percepo da ordem musical dos msicos que fazem parte do

    universo do Choro, poder identificar elementos dessa ordem. Uma forma de ter acesso

    a esses conhecimentos permitindo que os prprios msicos verbalizem seus conceitos

    e suas percepes. Tais conceitos podem, ento, ser organizados de acordo com temas,

    que refletem justamente a ordem sonora do sistema musical a que dizem respeito. Foi

    seguindo essa lgica que a estrutura desse trabalho foi elaborada.

    A primeira parte do trabalho Histrias (Parte A, tonalidade menor) - dividida

    em dois captulos. No primeiro, Revendo o Passado, apresentamos um pouco sobre a

    trajetria histrica do Choro desde sua fase inicial, ainda no sculo XIX no Rio de

    Janeiro, passando pela sua profissionalizao no comeo do sculo XX, seu aparente

    declnio a partir dos anos 40 do sculo passado, seu renascimento nos anos de 1970,

    passando por novo declnio nos anos 80 e seu fortalecimento no incio do sculo XXI.

    Essa incurso ao passado permite-nos compreender melhor o contexto histrico-social

    em que essa msica foi sendo construda. Em Da Lapa ao Planalto Central,

    apresentamos um histrico do desenvolvimento do Choro na cidade de Braslia, que

    comea nos anos sessenta com a chegada dos pioneiros do Choro na nova capital,

    passando pela fundao do Clube do Choro de Braslia em 1977, pela fundao da

    Escola de Choro Raphael Rabello em 1998 e culminando na expanso do Choro em

    Braslia nos dias atuais. A partir dessa descrio, compreendemos melhor algumas

    particularidades do ambiente do Choro na capital do Brasil.

    A segunda parte - Contextos (Parte B, tonalidade maior) - divide-se em dois

    captulos: Na Roda de Choro e No Palco do Choro. Trata da anlise, a partir de

    observaes de campo, de dois contextos de performance comuns no Choro, quais

    sejam, a Roda de Choro e a Apresentao Formal. So analisadas as caractersticas

    ambientais, sociais, e musicais de cada um deles. Discutimos, ainda, de que forma o

    contexto interfere na msica, bem como apontamos para as diferenas de

  • 3

    comportamento dos msicos em cada um dos contextos analisados. Mostramos que a

    vitalidade do Choro depende da existncia das Rodas, pois nela ele foi criado e

    continuamente recriado. Mas os palcos do Choro so essenciais para sua sobrevivncia,

    na medida em que funcionam como vitrines para a sociedade e para o Estado, de cujo

    apoio e valorizao o Choro no pode prescindir.

    A terceira parte Msica (Parte C, tema aberto a improvisaes na tonalidade da

    Subdominante) - dividida em cinco captulos. O primeiro, Ningum Aprende Choro

    no Colgio trata sobre os modos de aprendizagem do Choro, ou seja, como os chores

    aprendem e transmitem essa msica, e quais os elementos que valorizam para o

    aprendizado do Choro. Em Msica das Nuvens e do Cho, tratamos dos critrios para

    avaliao de desempenho (performance) dos chores, com nfase em dois aspectos

    marcantes, o virtuosismo versus a expressividade, e a construo da identidade musical

    do choro. Salve-se Quem Souber trata de um importante critrio de peformance,

    considerado por muitos a marca registrada do Choro: a improvisao. Investigamos os

    tipos de improvisao mais utilizados, bem como as formas como os chores o realizam

    e aprendem. Analisamos ainda, os conceitos estticos adotados pelos chores para a

    avaliao dos improvisos. Em I, Mandigueiro Camar!, ousamos discutir um

    assunto tambm associado performance, e bastante citado nas entrevistas: a potica da

    malandragem. Investigamos de que forma esse esprito malandro se expressa

    musicalmente no Choro. Por fim, Moderno Tradio trata das polmicas e

    discusses no meio dos chores sobre a tradio e as inseres de inovaes ao gnero.

  • 4

    METODOLOGIA

    Foram entrevistados 15 msicos que fazem parte da comunidade de chores de

    Braslia. Entre eles, esto professores da Escola de Choro Raphael Rabello, integrantes

    do grupo Choro Livre e outros msicos atuantes em Braslia. Uma pequena ficha de

    cada entrevistado encontra-se no Anexo I. As entrevistas foram aplicadas

    individualmente ou aos pares ao grupo amostral. As perguntas feitas tratavam sobre

    diversos aspectos relacionados s suas prticas musicais. Por meio dos relatos dos

    chores, buscou-se identificar e analisar conhecimentos e percepes acerca de sua

    prtica musical.

    Tunes e Simo (1998) discorrem sobre as anlises do relato verbal para a

    realizao de pesquisa na rea de psicologia. Algumas de suas consideraes so

    importantes para esse trabalho. As autoras concebem o relato verbal no como uma

    superestrutura da coleta de dados da pesquisa, mas como parte orgnica e integrante da

    mesma (Tunes e Simo, 1998, p. 1). Todavia, os relatos utilizados em pesquisas diferem

    dos informes cotidianos, na medida em que o pesquisador tem uma meta a ser

    alcanada, e para tanto, orienta os relatos por meio de perguntas planejadas. Justamente

    para que os relatos dos chores contemplassem os objetivos da pesquisa, de acessar

    conhecimentos e percepes de msicos sobre o Choro, foram utilizadas entrevistas

    semi-estruturadas.

    O roteiro das entrevistas encontra-se no Anexo II. Utilizou-se o mesmo roteiro

    para todos os entrevistados, mas optou-se por ampliar a liberdade dos entrevistados para

    versarem sobre os assuntos que mais lhes apraziam. O modelo de entrevistas semi-

    estruturadas foi escolhido por ser mais adequado a esse tipo de abordagem, em que se

    deseja conhecer como o entrevistado conceitua e pensa o seu fazer musical. Este modelo

    metodolgico, de acordo com Laville & Dionne (1999), consiste na elaborao de uma

    srie de perguntas abertas, feitas verbalmente em uma ordem prevista, mas na qual o

    entrevistador pode acrescentar perguntas de esclarecimento (p. 188). Para eles, a

    flexibilidade dessa metodologia permite obter informaes mais ricas e fecundas. Para

    Tunes e Simo (1998, p.1), importante a possibilidade de alterao do roteiro pr-

    estabelecido, pois ao pesquisador cabe organizar, inferencialmente, o contedo das

  • 5

    falas do sujeito, atribuindo-lhes significado, de modo a estabelecer condies para a

    emergncia de novos relatos. Desse modo, as entrevistas semi-estruturadas abrem

    espao para o aparecimento de elementos no previstos pelo pesquisador, enfatizando e

    fortalecendo, portanto, a voz dos entrevistados.

    Os relatos foram registrados em um gravador digital, e posteriormente,

    transcritos. Conforme os dados coletados foram sendo analisados, constatou-se que

    alguns assuntos e discusses eram citados com freqncia pelos entrevistados. A partir

    da, foram definidos eixos temticos que orientaram as anlises posteriores. Tais eixos

    deram origem aos captulos da dissertao. De fato, Tunes e Simo (1998) afirmam que

    o relato verbal , ele prprio, utilizado pelo pesquisador para dar prosseguimento

    pesquisa. Tal foi o procedimento adotado neste trabalho. O relato dos chores conduziu

    a definio dos temas que seriam abordados, e, a partir deles, foi sendo definida a

    estrutura da dissertao.

    A partir dos discursos, para cada eixo de anlise, foram identificados e

    analisados as convergncias, divergncias, conceitos, percepes, crticas, conflitos,

    contradies, e uma srie de outros aspectos considerados importantes para o

    entendimento do Choro e de sua comunidade.

    Paralelamente s entrevistas, foram realizadas observaes in loco de uma Roda

    de Choro, que acontece s sextas-feiras no Tartaruga Lanches, Asa Norte, Braslia,

    durante o perodo de um ano. Foram feitos registros escritos e em vdeos das Rodas de

    Choro. Foram observadas tambm 10 apresentaes musicais no Clube do Choro de

    Braslia.

    Concomitantemente a esses procedimentos, foi realizado um extenso

    levantamento bibliogrfico sobre o Choro, com o objetivo de traar um panorama geral

    dos conhecimentos acerca deste assunto.

    Primeiramente, foram selecionados trabalhos escritos sobre o Choro que

    abordam aspectos do seu desenvolvimento histrico. Tais trabalhos consistem

    basicamente nas biografias de grandes chores, como Ernesto Nazareth, Pixinguinha,

    Jacob do Bandolim, entre outros. Embora tragam elementos acerca da estrutura musical

    do Choro, centram-se na histria de vida dos personagens importantes para seu

    surgimento e desenvolvimento. Por isso, so ricos em registros sobre os contextos

  • 6

    sociais em que o Choro aconteceu. Em segundo lugar, foram analisadas publicaes

    sobre o samba e outros gneros da msica brasileira, que, por comparao, podem servir

    como modelo analtico para o estudo do Choro. Tais trabalhos tambm contribuem para

    anlise dos contextos sociais em que o Choro se inseriu, porque Choro e samba, ao

    longo da histria, esto musical e geograficamente prximos. comum, tambm, a

    presena de intrpretes e compositores que transitam entre os dois gneros. Por ltimo,

    algumas teses, dissertaes e artigos recentes trazem contribuies importantes para a

    bibliografia do Choro. Esses trabalhos possuem anlises mais detalhadas e

    especializadas sobre aspectos musicais do gnero.

    Os registros histricos forneceram informaes e anlises sobre os contextos em

    que o Choro ocorre, cujo entendimento de crucial importncia para que se compreenda

    com profundidade o universo do gnero; por serem ricos em registros de episdios e

    fatos, esses trabalhos serviram como referncias factuais. As anlises sobre o samba,

    tema cuja tradio de estudo consideravelmente maior, trazem anlises scio-

    antropolgicas e musicais densas, e serviram como referncias terico-musicais para os

    estudos sobre o Choro, pois samba e Choro so gneros musicais aparentados. Por fim,

    os trabalhos acadmicos recentes, notadamente as dissertaes de mestrado e teses de

    doutorado, so contribuies importantes para a consolidao de um conhecimento

    acadmico sobre o Choro; todavia, por serem (como no poderiam deixar de ser)

    altamente especializadas, foram utilizadas como referncias pontuais.

    Semelhantemente aos procedimentos para a definio dos eixos temticos, as

    teorias e os tericos que serviram de base para nossas argumentaes foram escolhidos

    aps definidos os eixos temticos. Essa escolha foi estabelecida de acordo com as

    abordagens dadas para cada eixo de anlise. Foram utilizados tericos no apenas da

    musicologia, mas tambm de outras reas do conhecimento como filosofia,

    antropologia, sociologia e histria.

    Alm das fontes de pesquisa citadas, foram utilizadas tambm fotografias,

    partituras e registros de imagens.

  • 7

    PARTE A HISTRIAS

    A1. Revendo o Passado

    A realizao de um trabalho acadmico requer a definio precisa dos termos

    utilizados e de seu objeto de estudo. Deste modo, em um texto sobre o Choro, espera-se

    que, logo primeira vista, seja encontrada uma definio clara e breve desse gnero

    musical. Todavia, impossvel responder em poucas palavras pergunta: o que o

    Choro1? Historicamente, tratado como uma manifestao de msica instrumental

    brasileira que surgiu no final do sculo XIX no Rio de janeiro (Livingston e Garcia,

    2005). A definio do termo refere-se a um estilo de tocar, a um gnero musical, e

    tambm a uma formao instrumental especfica. Esses trs elementos fazem parte do

    seu universo, mas no so suficientes para explic-lo. Portanto, o entendimento de seu

    significado depende de uma srie de outros fatores. Diante disso, com vistas a situar o

    leitor dentro do assunto, ser apresentado um breve panorama do estado de

    conhecimento atual sobre a histria e tradio desse gnero musical.

    possvel encontrar uma quantidade relativamente grande de escritos que

    abordam aspectos do desenvolvimento histrico do Choro. Tais trabalhos consistem

    basicamente nas biografias de grandes chores, como Ernesto Nazareth, Pixinguinha,

    Jacob do Bandolim, entre outros. Embora tragam elementos acerca da estrutura musical,

    centram-se na histria de vida dos personagens importantes para o surgimento e

    desenvolvimento do gnero; todavia so bases importantes para qualquer trabalho

    acadmico sobre o assunto. Dentro desta variedade de fontes que tratam da histria do

    gnero, destaca-se a obra Choro: A Social History of a Brazilian Popular Music

    (Livingston e Garcia, 2005), por ser a mais completa em termos de traar um panorama

    histrico geral para o gnero.

    1 Encontra-se, no Anexo III, pequeno texto explicativo dos conhecimentos bsicos sobre o Choro, que dever ser consultado pelo leitor que no tem familiaridade com o gnero.

  • 8

    Segundo seus autores, no final do sculo XIX, no Rio de Janeiro, a modinha e o

    lund representavam apenas uma parcela da diversidade de msicas que se expandiam

    no contexto urbano carioca. Nele surgiam tambm os chamados ternos, nome usado

    para definir os primeiros grupos instrumentais nos quais o Choro se desenvolveu. Um

    dos ternos mais importantes desse perodo o de Joaquim Antonio Callado, chamado

    Choro Carioca. No mbito desse pequeno grupo instrumental, alguns elementos do

    estilo foram sendo definidos e algumas msicas comearam a ser conhecidas como

    parte do Choro. Aps Callado, trs instrumentistas foram de crucial importncia para

    o surgimento do Choro. Livingston e Garcia (2005) afirmam que os quatro pilares da

    tradio so os compositores Joaquim Antonio Callado (1848-1880), Anacleto de

    Medeiros (1866-1907), Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-

    1934).

    Livingston e Garcia (2005) apontam outras duas importantes tradies musicais

    cariocas importantes para o surgimento e desenvolvimento do Choro: a msica dos

    barbeiros e as bandas de fazenda. Os ternos de barbeiros eram formados basicamente

    por negros forros, que animavam festas populares. A formao instrumental consistia

    basicamente de violo, cavaquinho, flauta e, dependendo da ocasio, juntavam-se a eles

    trompetes, trompas e tambores de balde. Os repertrios variavam tambm conforme a

    ocasio e a audincia, e constituam-se basicamente de modinhas, lundus e fados. A

    dana costumava estar presente, sendo comuns a quadrilha, a marcha dobrada, e as

    verses brasileiras das danas ibricas, como a tirana e o fandango. A msica e a dana

    foram sendo transformadas, dentre outras coisas, pelo gosto e costume local e

    principalmente pela influncia da rtmica africana. Ao mesmo tempo acontecia um tipo

    de msica muito semelhante dos barbeiros no meio rural, denominada banda da

    fazenda. Esses grupos eram formados por negros escravos que, influenciados pelas

    tendncias urbanas, tentavam reproduzir aquela msica com formao instrumental e

    repertrio similar msica dos barbeiros. Segundo Livingston e Garcia (2005), a

    histria da formao instrumental e dos grupos de Choro foram diretamente

    influenciadas pelos choromeleiros, pelos barbeiros e pelas bandas de fazenda.

    No final do sculo XIX, com a mudana da capital de Salvador para o Rio de

    Janeiro, desencadeou-se um processo migratrio de negros recm libertos, de

    nordestinos e de imigrantes portugueses e italianos. Essas comunidades amontoavam-se

  • 9

    em cortios no centro da cidade onde mantinham e misturavam suas prticas culturais.

    Nesse perodo, o Rio de Janeiro passa por profundas transformaes urbanas: os

    cortios so destrudos e surgem as favelas. Surgem, ento, novas oportunidades de

    trabalho no setor industrial e no funcionalismo pblico, e a classe mdia se fortalece.

    Livingston e Garcia (2005) afirmam que o Choro foi a primeira expresso musical da

    classe mdia carioca. O ambiente da classe mdia acolhia a musica da elite, dos

    imigrantes e dos negros. Personagens importantes desse perodo foram as figuras das

    Tias (senhoras negras com certa ascenso social), que promoviam em suas casas

    verdadeiras festas, onde se reuniam polticos, msicos, malandros, negros, nordestinos,

    imigrantes, enfim toda sorte de gente.

    Importante contribuio para o estudo da histria do Choro foi dado por Jos

    Ramos Tinhoro (1999), na obra Histria Social da Msica Brasileira. O autor, assim

    como Livingston e Garcia (2005), aponta a importncia da msica dos barbeiros para o

    desenvolvimento do Choro. Afirma ele que, naquele perodo, era comum a existncia de

    negros livres nas camadas de baixa renda da populao, que se ocupavam das mais

    diversas atividades, dentre as quais, a de barbeiro. Nos momentos de cio, que eram

    freqentes neste oficio, se dedicavam tambm a outras atividades que exigiam

    habilidades manuais, entre elas, a prtica musical. Os barbeiros animavam festas

    populares e religiosas, e como eram muito solicitados comearam a montar seus

    prprios ternos (pequenos grupos instrumentais). Com a possibilidade de ganharem

    algum dinheiro com a nova atividade, aqueles grupos de instrumentistas negros eram

    praticamente os nicos fornecedores de msica de entretenimento para a populao dos

    centros urbanos do Rio de Janeiro e de Salvador. Nos registros estudados por Tinhoro

    (1999) no faltam aluses ao carter alegre da msica produzida pelos barbeiros. As

    festas religiosas eram palco por excelncia desses msicos citadinos. Segundo esse

    autor, a segunda metade do sculo XIX assistiu ao virtual desaparecimento da msica de

    barbeiros, eminentemente negra, concomitantemente ao surgimento de uma classe

    mdia baixa, mestia, operria e assalariada. A herana da msica instrumental negra

    dos barbeiros foi passada para essa nova classe urbana que surgia no Rio de Janeiro pr-

    industrial. De posse dessa tradio, os novos instrumentistas iriam, a partir dela e com

    outras influncias, criar o Choro (Tinhoro, 1999).

  • 10

    Livingston e Garcia (2005) afirmam que os principais gneros precursores do

    Choro foram a modinha e o lundu. O termo modinha o diminutivo de moda, termo

    portugus que significa melodia. As modas eram populares em Portugal, e, trazidas ao

    Brasil, faziam sucesso entre as camadas mais baixas da populao. Eram parte do

    repertrio popular, tocadas e cantadas luz da lua em serenatas nas pequenas vilas do

    interior, ou nos bairros suburbanos das cidades maiores. A instrumentao da modinha

    influenciou os conjuntos de Choro que posteriormente surgiram, pois eram comuns os

    ternos formados por flauta, violo e cavaquinho. O lundu surgiu no incio do sculo

    XVIII a partir da tradio musical dos escravos bantos. Foi o primeiro gnero brasileiro

    que combinou ritmos africanos com harmonia, melodia e instrumentao europias.

    Tanto a modinha quanto o lundu se apresentavam em duas formas: uma popular e

    informal, freqente nas classes baixas, e outra, mais formal e com melodias mais

    elaboradas, apresentadas nos sales das classes mais altas. O lundu era um gnero vocal,

    mas Livingston e Garcia (2005) apontam para uma forma instrumental do lundu, em

    que uma flauta ou clarineta eram responsveis por tocar a melodia, acompanhados pela

    viola (espcie de violo de cinco cordas) ou pelo violo de seis cordas. O lundu

    instrumental, de acordo com esses autores, foi o precursor do maxixe e do Choro.

    O maxixe emergiu no final da dcada de 1870, associado a uma dana sensual

    que criou bastante polmica. Apesar disso, o maxixe fez grande sucesso no Rio de

    Janeiro, e chegou a ser apresentado em Paris. De acordo com Livingston e Garcia

    (2005), o maxixe surgiu quando um grupo de danantes do carnaval comeou a

    adicionar passos do lundu polca. Para acomodar a msica aos novos passos, a polca

    era tocada em andamentos mais rpidos. Tinhoro (1999) afirma que o maxixe nasceu

    conforme os msicos que acompanhavam os danarinos naturalmente foram

    aproximando a polca dos ritmos afrobrasileiros, a fim de facilitar os movimentos da

    dana. A estrutura musical do maxixe semelhante da polca, com a melodia

    construda em frases de oito compassos em uma forma rond (ABACA); a diferena em

    relao polca est no andamento mais rpido e no ritmo tipicamente afrobrasileiro. O

    maxixe instrumental desde seu nascimento, e as melodias so construdas em escalas,

    executadas com rapidez, e arpejos. O maxixe estava associado s classes baixas, e pela

    sensualidade da dana, era considerado vulgar. Por isso, compositores de maxixes

    (dentre os quais o prprio Ernesto Nazareth) no utilizavam esse termo para caracterizar

    suas composies. Assim, era comum a existncia de maxixes compostos sob a

  • 11

    designao de tango ou tango brasileiro. Na dcada de 1930, o maxixe foi perdendo

    popularidade para o novo ritmo local o samba e para gneros importados, como o

    foxtrot. Apesar disso, o maxixe permaneceu no repertrio do Choro, estando presente

    em composies contemporneas.

    Foi tambm a dcada de 1870 que Jos Ramos Tinhoro (1999) aponta como a

    do surgimento do Choro. Ele toma por base o primeiro registro escrito sobre o Choro

    (Choro: Reminiscncias dos Chores), datado de 1936, e escrito por Alexandre

    Gonalves Pinto, este registro foi reeditado pela FUNARTE em 1978. Alexandre Pinto

    era funcionrio dos correios, violonista e freqentador das Rodas de Choro na virada do

    sculo XIX para o XX. Seu relato traz biografias dos msicos mais destacados do incio

    do sculo XX, e descries do ambiente dos chores. A leitura do livro nos permite

    perceber que seu autor no era escritor, tampouco tinha grandes conhecimentos

    musicais, pois o texto apresenta erros de grafia e gramtica, e no traz anlises

    aprofundadas sobre o Choro naquele perodo. Todavia, seu valor reside em registrar,

    pela primeira vez, nomes e caractersticas de instrumentistas que, no fosse esse

    esforo, estariam para sempre esquecidos.

    Cazes (2005) tambm faz referncia dcada de 1870 como sendo o perodo em

    que a nomenclatura chorinho comeou a ser utilizada para designar o Choro. Mas ele

    afirma que, se for para determinar uma data para o surgimento do Choro, seria 1845,

    quando pela primeira vez a polca foi danada no Brasil. Livingston e Garcia (2005)

    referem-se ao perodo de 1870 a 1920 como o de intensa mudana no Rio de Janeiro,

    que passou de vila provinciana a cidade industrializada. Como conseqncia da

    industrializao, surgiu uma classe mdia urbana, formada por profissionais liberais e

    pequenos funcionrios da indstria que no se identificavam nem com a elite, muito rica

    e poderosa, nem com os descendentes diretos dos escravos, extremamente pobres e

    carentes. O Choro era a expresso musical dessa nova classe mdia. Livingston e Garcia

    (2005) afirmam que so muitos os aspectos do Choro que o caracterizam como

    manifestao de classe mdia: primeiramente, preciso uma renda razovel para

    obteno dos instrumentos tpicos do gnero (flauta, cavaquinho e violo); em segundo

    lugar, os locais onde o Choro acontecia quintais e casas eram moradias de classe

    mdia, diferentes dos cortios e das favelas onde viviam as classes mais baixas.

  • 12

    Observamos que, pela falta de registros precisos, no se pode identificar com

    exatido o momento do surgimento do Choro. Porm, principalmente pela contribuio

    de Alexandre Gonalves Pinto, podemos afirmar que a segunda metade do sculo XIX

    foi de fundamental importncia. Tambm outros indcios histricos, conforme j

    explicitado, apontam esse perodo como o de consolidao do Choro como gnero

    musical.

    Sobre a origem do termo Choro existem inmeras hipteses. Uma atribui o

    nome forma melanclica com que os chores executavam as modinhas e as serestas;

    outra, a dois gneros populares de msica de salo portuguesa denominadas Doce

    Lundu Chorado e Chorar no Pinho. Outra hiptese mencionada por Livingston e Garcia

    (2005) faz a conexo do termo com um tipo de dana afro-brasileira chamada Xolo.

    Baptista Siqueira (1967) afirma que o termo surgiu a partir de frases que se referiam a

    gneros portugueses, principalmente o lundu chorado. Grard Bhague (1966) afirma

    tambm existir uma ligao entre os termos Choro e xolo, dana afrobrasileira. Ary

    Vasconcelos (1984, apud Livingston e Garcia, 2005) afirma que o termo originou-se de

    choromeleiro, o tocador de choromela. A choromela, instrumento similar a clarineta e

    obo era um instrumento de sopro popular na Europa, e, trazido ao Brasil, era tocado em

    Minas Gerais. Na dcada de 1830, muitos choromeleiros se mudaram para o Rio de

    Janeiro, e esse instrumento tornou-se comum na cidade, e passou a fazer parte de sua

    vida cultural. Aos conjuntos instrumentais que possuam a choromela, dava-se o nome

    de choromelos, e de choromeleiros a todos os que dele faziam parte (sendo ou no

    tocadores de choromela). Quando a choromela foi substituda pela flauta, o nome foi

    mantido como designao desses conjuntos instrumentais.

    A partir do final do sculo XIX e incio do sculo XX, grandes nomes do Choro

    comearam a ter maior projeo. Eram compositores e msicos virtuoses. Em geral, a

    histria do Choro se conta a partir das proezas musicais desses notveis chores. Por

    isso, um grande nmero de biografias de chores esto disponveis. A partir das

    histrias pessoais dos chores, possvel se conhecer a histria e o desenvolvimento do

    gnero. A seguir, so citadas algumas dessas biografias.

    Considerado o pai dos chores, Joaquim Callado viveu entre 1848 e 1880. Em

    sua biografia, Andr Diniz (2002), narra a trajetria do flautista de fundamental

  • 13

    importncia para a histria do Choro, por ter criado, em 1875, o primeiro conjunto de

    Choro que se tem registro, formado por flauta, cavaquinho e violo.

    Em 1979, Marlia Trindade Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho

    publicaram a primeira biografia daquele que sem dvida considerado o maior

    expoente do Choro. Filho de Ogum Bexiguento (Silva e Oliveira Filho, 1979) traa a

    histria de Alfredo da Rocha Vianna, o Pixinguinha, do nascimento at sua morte, em

    1973. Pixinguinha, nascido em 1898 no Rio de Janeiro, esteve presente nos momentos e

    lugares mais importantes da histria do samba e do Choro. Desde a Casa da Tia Ciata,

    que freqentava desde menino, bero do samba, onde foi composta a famosa Pelo

    Telefone, passando pelos Oito Batutas, at a inaugurao do rdio, Pixinguinha

    esteve presente. Teve igual e impressionante vulto em trs campos da msica brasileira,

    principalmente o Choro: interpretao (como exmio flautista), composio e

    orquestrao. Na segunda metade do sculo XX, quando Pixinguinha se encontrava em

    situao financeira difcil, foi convidado pelo flautista Benedito Lacerda a realizar uma

    srie de gravaes de seus choros. Como condio, as composies deveriam ser

    registradas como de autoria de Pixinguinha e Benedito Lacerda; alm disso, Benedito

    Lacerda tocaria os solos na flauta, e Pixinguinha faria os contrapontos no saxofone.

    Devido a esse contexto peculiar, Pixinguinha deixou, nos contrapontos de seu saxofone,

    uma de suas contribuies mais geniais para o Choro. Outra biografia de Pixinguinha

    foi posteriormente publicada em 1997, por Srgio Cabral (1997). O livro consiste em

    monografia vencedora de concurso promovido pela Funarte. Editado por Almir

    Chediak, o livro abarca os 62 anos de atividade artstica do msico e compe um dos

    melhores retratos de sua personalidade. Um apndice traz a discografia completa de

    Pixinguinha.

    Em 2005, foi publicada importante biografia de Ernesto Nazareth (Ernesto

    Nazareth, Pianeiro do Brasil; Costa, 2005), um dos pilares do Choro, cuja histria

    permanece ainda repleta de mistrios. Ernesto Jlio Nazareth nasceu no Morro do

    Nheco (hoje Morro do Pinto) em 20 de maro de 1863. Aprendeu a tocar piano com a

    me, morta quando ele tinha dez anos. Ainda na infncia, sofreu uma queda que lhe

    trouxe complicaes auditivas. A primeira msica, uma polca-lundu chamada Voc

    Bem Sabe, foi escrita aos 14 anos. Autor de peas essencialmente instrumentais, fazia

    canes para serem escutadas, no danadas, como afirmou certa vez. Se o pblico no

  • 14

    prestasse ateno, parava de tocar. Em 1902, no mesmo ano em que foi feito o primeiro

    registro fonogrfico no Pas, teve sua composio Est Chumbado gravada pela

    Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, sob regncia de Anacleto de

    Medeiros. Anos mais tarde ganharia fama ao piano da sala de espera do cinema Odeon

    para o qual rendeu uma homenagem no tango que leva o nome da sala. Por toda a

    vida renegou o maxixe, dizendo que era ritmo menor, embora sua msica contivesse

    muitos elementos desse ritmo. Em fevereiro de 1934, Ernesto Nazareth saiu escondido

    da colnia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Estava internado para tratar-se de um

    distrbio nervoso causado pela sfilis. Foi encontrado trs dias depois, morto, na

    Cachoeira dos Ciganos, localizada em uma floresta prxima. Os jornais da poca,

    romanticamente, noticiaram que estava sentado com os braos estendidos, como se

    tocasse piano.

    Outra obra de extrema importncia foi publicada anteriormente, em 1967

    (Baptista Siqueira, 1967). Com o ttulo Ernesto Nazareth na Msica Brasileira, trata-

    se da primeira biografia desse compositor. Os captulos finais do livro trazem

    interessantes anlises musicais de algumas peas de Nazareth, alm de consideraes

    acerca de questes polmicas, tais como Opinies falsas sobre a msica de Nazareth e

    Crticas s deturpaes de toda a natureza. Antes disso, em 1963, Aloysio de Alencar

    Pinto publicou dois ensaios na Revista Brasileira de Msica (Pinto, 1963, a e b), em que

    relata passagens importantes da vida de Ernesto Nazareth, relacionados principalmente

    sua atuao como pianista e compositor.

    Interessante obra sobre Ernesto Nazareth, publicada tambm em 1963, por Jaime

    C. Diniz (1963), cujo ttulo Nazareth: estudos analticos, traz a tentativa de analisar

    quatro peas de Ernesto Nazareth. Segundo o autor, na anlise da msica de Nazareth

    estariam presentes os aspectos esttico, histrico, crtico ou at polmico. As peas

    analisadas so: Voc Bem Sabe, Celestial, Favorito e Marcha Fnebre. Nas anlises de

    cada pea, o autor faz comparaes com outras peas do prprio Nazareth, e com

    composies de outros autores. O autor analisa minuciosamente as peas trecho a

    trecho, oferecendo inclusive transcries daqueles mais importantes. No rol de obras

    que se limitam a tratar da biografia dos grandes chores, a obra de Jaime Diniz (1963)

    se destaca por trazer anlises musicais.

  • 15

    A vida de Chiquinha Gonzaga foi relatada tambm em duas biografias (uma

    delas deu origem a uma minissrie televisiva): Chiquinha Gonzaga: Uma Histria de

    Vida (Edinha Diniz, 1999) e A Memria Social de Chiquinha Gonzaga (Milan, 2000).

    Maior personalidade feminina da histria da msica popular brasileira e uma das

    expresses maiores da luta pelas liberdades no pas, promotora da nacionalizao

    musical, primeira maestrina, autora da primeira cano carnavalesca, primeira pianista

    de Choro, introdutora da msica popular nos sales elegantes, fundadora da primeira

    sociedade protetora dos direitos autorais, Chiquinha Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro,

    em 1847. A estria como compositora se deu em 1877, com a polca Atraente,

    composta de improviso durante Roda de Choro em casa do compositor Henrique Alves

    de Mesquita. Por desafiar os padres familiares da poca, sofreu fortes preconceitos. J

    era uma artista consagrada quando comps, em 1899, a primeira marcha-rancho,

    Abre Alas, verdadeiro hino do carnaval brasileiro. Sua obra rene dezenas de partituras

    para peas teatrais e centenas de msicas nos mais variados gneros: polca, tango

    brasileiro, valsa, habanera, schottisch, mazurca, modinha etc. Chiquinha Gonzaga

    faleceu aos 87 anos de idade, no dia 28 de fevereiro de 1935, no Rio de Janeiro.

    Andr Diniz (2007) publicou a biografia de Anacleto de Medeiros, maestro,

    compositor e arranjador de grande importncia nos primrdios da histria do Choro no

    livro O Rio Musical de Anacleto de Medeiros, a vida, a obra e o tempo de um mestre do

    choro. Para resgatar a trajetria musical de Anacleto, o autor analisa as transformaes

    urbanas, sociais e culturais do Rio de Janeiro na virada do sculo XIX para o XX.

    Anacleto de Medeiros um nome fundamental na histria da msica brasileira, e seu

    trabalho como maestro e fundador de bandas tornou-se um marco. Anacleto rompeu

    com a forma dura com que as bandas marciais tocavam, imprimindo a elas suavidade e

    delicadeza na interpretao. Atribui-se a ele a iniciao de muitos chores, em sua

    grande maioria msicos amadores, na atividade profissional, incorporando-os s bandas

    de sua criao. Suas composies influenciaram grandes nomes como Villa-Lobos,

    Pixinguinha, Jacob do bandolim e Radams Gnatalli, e so tocadas nas Rodas de Choro

    at os dias de hoje.

    Anacleto Augusto de Medeiros, nasceu na ilha de Paquet no estado do Rio de

    Janeiro em 1886. Filho de uma escrava liberta, iniciou seus estudos musicais na banda

    de Msica do Arsenal de Guerra da Corte aos nove anos, e posteriormente no

  • 16

    Conservatrio de Msica do Rio de Janeiro. Anacleto trabalhou como regente e

    instrumentista em teatros, grupos de Choro, festas familiares e religiosas, clubes e

    sociedades musicais. Mas foi na Banda do Corpo de Bombeiros, organizada por ele, que

    sua ao de educador, compositor e regente influenciou profundamente os rumos da

    msica popular e fez com que ele, definitivamente, entrasse para a histria. O maestro

    Anacleto, ao lado de Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, tambm

    foi um dos pilares do Choro.

    Jacob do Bandolim, um dos mais importante bandolinistas do Choro, teve sua

    biografia escrita por Ermelinda A. Paz, em 1997. O livro descreve diversas passagens da

    vida profissional e pessoal do bandolinista, e fornece vasta iconografia, partituras,

    discografia e depoimentos. Jacob Pick Bittencourt nasceu em 14 de fevereiro de 1918,

    no Rio de Janeiro. Despertou para a msica por volta dos 12 anos de idade, poca em

    que tocava gaita para os colegas da escola. Seu primeiro instrumento foi um violino,

    que pediu me ao ouvir um vizinho francs que executava o instrumento. No se

    adaptando ao uso do arco, passou a toc-lo com o auxlio de grampos de cabelo. Foi

    ento, que uma amiga de sua me explicou que havia um instrumento prprio para esse

    tipo de execuo, e assim o bandolim entrou em sua vida. Durante toda a dcada de

    1930, se dividiu entre a msica e diversos trabalhos: foi vendedor, prtico de farmcia,

    corretor de seguros, comerciante e escrivo de polcia, cargo que ocupou at morrer. Por

    no depender financeiramente da msica, pde tocar e compor com mais liberdade, sem

    sofrer presses de gravadoras ou editoras.

    Sua primeira grande chance aconteceu quando o flautista Benedito Lacerda o

    convidou a participar do "Programa dos Novos - Grande Concurso dos Novos Artistas",

    da Rdio Guanabara. Como intrprete, possua no s estilo, fraseado, toque

    extremamente personalizado, mas um vasto repertrio que em um caderno de notas sob

    o ttulo de "repertrio trivial" contava com 329 ttulos. Msico extremamente exigente e

    perfeccionista, era muito rgido na sua vida pessoal e musical. Por meio das

    apresentaes no rdio, firmou-se na msica. Tocou nas mais importantes rdios da

    poca, desde a Rdio Guanabara, at na Rdio Nacional. A partir de 1951, e pelo

    perodo de 10 anos, foi acompanhado pelo Regional do Canhoto. Em 1966, organizou o

    conjunto Regional poca de Ouro, integrado inicialmente por Dino Sete Cordas no

    violo de 7 cordas, Csar Faria, no violo, Carlos Leite, tambm no violo, Jonas da

  • 17

    Silva no cavaquinho, e Jorginho no pandeiro. O poca de Ouro , at os dias atuais,

    considerado um dos melhores regionais de Choro j existentes. As composies de

    Jacob, como "Noites cariocas", "Receita de Samba", "A Ginga do Man", "Doce de

    Cco", "Assanhado", "Treme-treme", "Vibraes" e "O Vo da Mosca" tornaram-se

    verdadeiros clssicos do repertrio de Choro. Jacob faleceu em 13/08/1969, de infarto

    do corao, quando retornava da casa de Pixinguinha.

    Outra contribuio importante para o estudo do Choro foi dada por Silva (2004),

    que apresenta um estudo biogrfico sobre o bandolinista Luperce Miranda. Barbosa

    (2004) faz um estudo da presena dos instrumentistas de cordas pinadas no Choro e na

    msica brasileira. Alm disso, a autora faz uma interessante anlise dos elementos

    contextuais que influenciaram os modos de tocar e compor dos trs msicos que se

    destacaram como solistas de instrumentos de cordas pinadas no decorrer do sculo

    XX: Luperce Miranda, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo (cavaquinho).

    O mais importante cavaquinista da histria do Choro, Waldir Azevedo, teve sua

    biografia escrita por Marco Antnio Bernardo (2004). Waldir Azevedo nasceu em 27 de

    janeiro de 1923, no Rio de Janeiro. Seu primeiro instrumento, uma flauta, adquiriu

    quando tinha sete anos de idade. Pouco depois, trocou a flauta por um bandolim e

    comeou a se reunir com amigos para tocar msica, aos sbados. Do bandolim foi para

    o cavaquinho, instrumento com o qual se tornaria conhecido nacionalmente anos mais

    tarde. Sua primeira apresentao foi como flautista, no Carnaval de 1933, quando tocou

    "Trem Blindado". At meados da dcada de 1940, a msica era para ele uma atividade

    de amador. Iniciou a carreira profissional em 1940 quando montou um Conjunto

    Regional e comeou a se apresentar em diversos programas de calouros. Em 1945,

    entrou para o Regional de Dilermando Reis, que, posteriormente, passou o grupo para

    seu comando. No final da dcada de 1940, comps e gravou o Brasileirinho, sem

    dvida um dos Choros mais conhecidos e tocados. Waldir reconhecido por ter trazido

    o cavaquinho, instrumento sempre usado para acompanhamentos, para o solo,

    explorando novas potencialidades para o instrumento. Gravou mais de cinqenta discos,

    e excursionou por diversos pases. Em 1980, faleceu na cidade de Braslia.

    Dilermando Reis, violonista, teve biografia escrita por Gensio Nogueira (2002).

    Um dos mais importantes violonistas brasileiros, atuou como instrumentista, professor

    de violo, compositor, arranjador, tendo deixado uma obra vultuosa e verstil, composta

  • 18

    de guarnias, boleros, toadas, maxixes, sambas-cano e, principalmente, valsas e

    choros. Iniciou sua vida profissional aos 18 anos de idade. Em 1956, por interferncia

    do recm-empossado presidente Juscelino Kubitschek, assinou contrato com a Rdio

    Nacional, para estrelar o programa "Sua majestade, o violo", nos primeiros anos

    apresentado por Oswaldo Sargentelli e, posteriormente, por Csar Ladeira. Foi professor

    de violo do ento Presidente da Repblica Juscelino Kubitschek e de sua filha. De

    1941 a 1962, lanou 34 discos de duas faces com 68 msicas em 78 rpm. Dentre essas,

    43 de sua autoria. Gravou tambm um total de 35 LPs. Em alguns de seus LPs foi

    acompanhado pelos grandes violonistas Horondino Silva, o Dino Sete Cordas, e Jaime

    Florence, o Meira. Alm de sua vasta obra, deixou muitos arranjos editados.

    Recentemente, grande contribuio para o bibliografia do Choro foi dada por

    Cazes (2005) que tenta refazer a trajetria histrica do Choro. Em seu livro Do Quintal

    ao Municipal, Cazes (2005) apresenta pequenas biografias de compositores, intrpretes

    e arranjadores que foram importantes para a histria do Choro. A importncia do livro

    reside em ter sido o nico, at ento, a conseguir reunir os principais fatos e

    personagens do Choro em um volume.

    Sem reduzir o valor do livro de Henrique Cazes (2005), a publicao Choro: A

    Social History of a Brazilian Popular Music (Livingston e Garcia, 2005) a mais

    completa que trata de toda a histria do gnero. Os autores realizaram extensa pesquisa

    nas publicaes de autores brasileiros que continham aluses ao Choro e sua histria.

    As informaes foram, ento, reunidas em um livro que conta, com a maior riqueza de

    detalhes e preciso possveis, a histria e o desenvolvimento do gnero at os dias

    atuais.

    A partir de sua consolidao como gnero instrumental brasileiro, que ocorreu

    nas primeiras dcadas do sculo XX, o Choro viveu perodos de esplendor e de declnio.

    Livingston e Garcia (2005) identificaram 5 perodos para a histria do Choro a partir de

    1920: o da profissionalizao do Choro (1920-1950); o do declnio do gnero (dcadas

    de 1950 a 1970); o do seu renascimento (dcada de 1970); o de um novo declnio

    (dcada de 1980), e o perodo contemporneo.

    O perodo descrito como o da profissionalizao do choro inicia-se na dcada de

    1920 a partir de um processo, apontado por Hermano Vianna (1995), como crucial para

  • 19

    a consolidao do Choro e do samba como gneros tipicamente brasileiros. Trata-se da

    tomada de conscincia, por parte dos msicos e dos intelectuais da poca, de que aquela

    msica produzida nos subrbios cariocas poderia ser considerada uma autntica

    expresso da cultura brasileira. importante ressaltar que a condio colonial do pas

    tornava-o um importador cultural por natureza; a subvalorizao da colnia incentivava

    a imitao daquilo que era considerado civilizado e nobre: a cultura e a sociedade

    europias. Esse pensamento, contudo, gerava respostas no seio da sociedade brasileira,

    notadamente entre os intelectuais, que buscavam encontrar, criar, enaltecer e fortalecer

    uma cultura que fosse genuinamente brasileira. Conforme a mistura de raas deu origem

    a um povo mestio, esses intelectuais entendiam que uma cultura mestia seria ento a

    genuna expresso de um povo mestio. O Choro, assim como o samba, encaixou-se

    perfeitamente nessa teoria.

    Hermano Vianna (2005) mostra que foi com inteno deliberada de msicos e

    intelectuais que o Choro e o samba passaram a ser considerados gneros brasileiros,

    expresses culturais genunas de seu povo. Ele inclusive cita uma data como incio

    desse processo: precisamente em 18/09/1926. Nessa noite, ocorreu um inusitado

    encontro entre intelectuais e msicos, em alguma birosca dos subrbios cariocas. Nele

    estavam presentes o socilogo Gilberto Freyre, o jornalista Prudente de Moraes Neto, o

    historiador Srgio Buarque de Holanda, Heitor Villa-Lobos, o msico francs Luciano

    Gallet, o sambista Patrcio Teixeira e os chores Pixinguinha e Donga. Sobre esse

    encontro, o humor cido no relato de Gilberto Freyre torna claro sua forma de pensar o

    Brasil e a cultura brasileira, e evidencia o projeto de criao e enaltecimento de uma

    msica e uma cultura brasileiras, a ser empreendido pelo povo filho da mestiagem:

    Ontem, com alguns amigos Prudente, Srgio passei uma noite que quase ficou de manh a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta coisas suas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violo, e o preto bem preto Patrcio a cantar. Grande noite cariocamente brasileira. Ouvindo os trs sentimos o grande Brasil que cresce meio tapado pelo Brasil oficial e postio e ridculo de mulatos a quererem ser helenos (...) e de caboclos interessados (...) em parecer europeus e norte-americanos; e todos bestamente a ver as coisas do Brasil (...) atravs do pince-nez de bacharis afrancesados (Freyre, 1979, p. 303 apud Vianna, 2005, p. 27).

  • 20

    Hermano Vianna (2005) defende a idia de que, ao mesmo tempo em que

    polticas e aes eram empreendidas no sentido de coibir e impedir que manifestaes

    culturais e religiosas afrobrasileiras e mestias tomavam lugar no pas, grupos de

    intelectuais e artistas militavam pela aceitao delas, sob o argumento de que eram

    autenticamente brasileiras. Esses grupos visavam implementar um projeto nacionalista,

    que rechaava as meras imitaes da vida e da cultura europias e norte-americanas. A

    msica principalmente o samba e o Choro por serem mestios, populares e, por que

    no dizer, altamente sofisticados, eram importantes exemplos de confirmao desse

    projeto, e de afirmao da capacidade do povo brasileiro de produzir sua prpria

    cultura. Cabe aqui citar que, em 1922, a Semana de Arte Moderna, realizada cem anos

    depois da independncia formal do Brasil, amplificou as vozes nacionalistas, pois tinha

    como objetivo declarado a valorizao e o desenvolvimento de uma cultura brasileira

    autntica. Foi, ento, de acordo com Vianna (1995), no mbito desse projeto

    nacionalista que se inventou a tradio nacional-popular brasileira, em que a msica

    desempenhou papel fundamental.

    A partir desse encontro, e por tudo o que ele representou, o Choro passou a ser

    apoiado e incentivado por importantes grupos da elite brasileira. O caldeiro fervilhante

    de ideais nacionalistas induziu mudanas no prprio Choro, sendo importante a

    emergncia dos chamados conjuntos regionais. At a dcada de 1920, o Choro era

    msica de amadores, pois, embora muitos chores fossem exmios instrumentistas, a

    maioria deles necessitava desempenhar outras ocupaes para garantir o sustento. A

    partir dessa data, apresentaes de Choro comearam a ser realizadas principalmente no

    cinema mudo. Juntamente com isso, surgia a incipiente indstria da gravao. Esses

    novos contextos alteraram os conjuntos de Choro, que incorporaram o pandeiro como

    instrumento de percusso e o violo de sete cordas em praticamente todas as

    apresentaes; com essas novas exigncias, surge a possibilidade de chores se

    dedicarem msica como profisso. Fator de vital importncia para a profissionalizao

    do Choro foi o surgimento da gravao e do rdio. Em 1902, a Casa Edison iniciou a

    realizao de gravaes mecnicas no Brasil. Todavia, essas gravaes eram feitas

    somente com instrumentos de sopro, que atingiam volume suficiente para serem

    gravados com essa tecnologia. Mas, a partir de 1920, o advento do microfone eltrico

    mudou isso, e os conjuntos regionais podiam ser gravados. A primeira transmisso de

    rdio brasileira se deu em 7 de setembro de 1922, na comemorao do centenrio da

  • 21

    independncia. Influenciada pela atmosfera nacionalista da Semana de Arte Moderna, a

    transmisso incluiu O Guarani, de Antnio Carlos Gomes, e alguns choros tocados por

    Pixinguinha e os Oito Batutas. Os conjuntos regionais surgiram pela alterao desses

    primeiros grupos de chores que se apresentavam ao vivo nos rdios. Nas dcadas de

    1930 e 1940 os regionais eram os carros-chefe da indstria do Rdio, sendo esse o

    perodo mais glorioso do Choro. Pelo rdio, os regionais alcanavam as partes mais

    remotas do pas. Assim, o Choro ficou conhecido no somente como msica carioca,

    mas como msica nacional.

    Nas rdios, os regionais desempenhavam inmeras funes, sendo exigido de

    seus msicos grande versatilidade e amplo conhecimento musical. Aos regionais cabia

    acompanhar os cantores, fazer a msica de fundo e preencher as lacunas dos programas

    de rdio, momentos em que executavam o Choro. Esses conjuntos acompanhavam todo

    o tipo de msica, incluindo sambas, modinhas e msicas norte-americanas.

    Normalmente, faziam uma introduo improvisada, para que o cantor comeasse sua

    performance. Nos sambas, a introduo era feita pelo bandolim, flauta ou outro

    instrumento meldico. Esses instrumentos tambm improvisavam contrapontos

    melodia ao longo da msica. As baixarias do violo de sete cordas tambm eram

    improvisadas. Em geral, horas antes do Regional entrar no ar, os msicos se

    encontravam e decidiam o qu iriam tocar, os tons, e outros detalhes musicais; apesar

    disso, a performance era repleta de improvisos, no s dos violes e dos instrumentos

    meldicos, pois o pandeiro e o cavaquinho criavam tambm variaes no ritmo e no

    centro.

    As principais rdios atuantes nas dcadas de 1930 e 1940 possuam seus

    prprios regionais. Eram elas: Rdio Guanabara (Gente do Morro e Jacob e sua gente);

    Rdio Transmissora (O Regional de Claudionor Cruz); Rdio Clube (Waldir Azevedo e

    Seu Regional); Rdio Tupi (Regional de Benedito Lacerda e Regional de Rogrio

    Guimares); Rdio Mayrink Veiga (Regional do Canhoto); Rdio Nacional (Regional

    de Csar Moreno e Regional de Dante Santoro); Rdio Mau (Jacob e Seu Regional,

    Regional de Darly do Pandeiro e Regional de Pernambuco do Pandeiro).

    A partir do final da dcada de 1940, um conjunto de fatores contribuiu para o

    declnio dos regionais das rdios. Primeiramente, a sada de Getlio Vargas do poder,

    em 1945, fez diminuir o teor altamente nacionalista do Estado brasileiro, que protegia

  • 22

    deliberadamente a cultura do pas da entrada de culturas estrangeiras, notadamente a

    norte-americana, que, com fora total, j se fazia presente em outros pases do planeta.

    Com a sada de Getlio do poder, as rdios, antes controladas pelo governo, tornaram-se

    majoritariamente privadas, podendo incluir na programao elementos que antes no

    eram permitidos. Sendo privadas e livres, as rdios estavam, ento, merc das foras

    do mercado. Na prtica, isso significou a ampliao da influncia da msica norte-

    americana, e a reduo do espao para os gneros brasileiros. Os regionais foram sendo

    substitudos por conjuntos semelhantes s bandas e orquestras de jazz. Mas isso durou

    pouco, pois, na medida em que as rdios reduziam a programao ao vivo e utilizavam

    gravaes, a presena cara e desgastante de conjuntos de msicos foi se tornando

    desnecessria. Os chores ficaram desempregados. Alguns deles foram tocar em bandas

    de jazz e outros simulacros da msica norte-americana; outros, simplesmente

    desapareceram da cena da msica profissional. Nessa poca, o Choro era executado em

    orquestras. Apesar disso, o Choro continuava recrutando jovens msicos que, embora

    no fossem muitos, eram suficientemente bons para serem notveis. o caso de Garoto,

    violonista e compositor que marcou a histria do Choro. Ele participou de regionais de

    rdio mas, em 1939, foi aos Estados Unidos como parte do Bando da Lua, grupo que

    acompanhava Carmem Miranda. Garoto se aproximou do jazz, o que evidente em suas

    composies, que traziam inovaes em relao ao Choro convencional. Tais

    inovaes foram o primeiro passo para um novo caminho que se abria na msica

    brasileira: o da bossa-nova.

    A emergncia da bossa-nova, gnero brasileiro, em vez de reafirmar cultura e a

    msica brasileiras em geral, o que poderia fortalecer o Choro, acabou por marginaliz-lo

    de vez. Isso porque a bossa-nova, juntamente com o rocknroll da Jovem Guarda, eram

    considerados brasileiros e modernos. Juntamente com isso, a msica norte-americana

    era ouvida nos quatro cantos do pas. O Choro, nos anos 60, sofreu forte retrao, no

    sendo mais visto como a msica nacional, mas como uma msica antiga, velha, que

    nada tinha a ver com o Brasil moderno que parecia surgir. Apesar disso, alguns exmios

    msicos mantiveram a tradio, ainda que recolhida aos quintais, e ainda trouxeram

    importantssimas contribuies para o desenvolvimento e histria do gnero. Nesse

    perodo, o esforo e o empenho individuais foram de enorme serventia. Dentre esses,

    destacam-se: Garoto, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Dilermando Reis e Altamiro

    Carrilho.

  • 23

    A segunda metade da dcada de 1970 assistiu ao que Livingston e Garcia (2005)

    denominaram renascimento do Choro. Eles citam um evento, produzido por Srgio

    Cabral em 1973, denominado Sarau, em que se apresentaram Paulinho da Viola

    acompanhado do conjunto poca de Ouro, como o incio desse ressurgimento. Para

    eles, esse evento foi o pice de um processo, iniciado ainda na dcada de 60, de

    aproximao do Choro e do samba das classes mdias cariocas. Tal processo foi

    empreendido por um pequeno grupo de pessoas, do qual Srgio Cabral, eminente

    jornalista e crtico musical, fazia parte. O movimento de ressurgimento do Choro

    concedia aos jovens chores grande importncia, porque aos jovens caberia manter a

    tradio e a continuidade do gnero. De fato, eram poucos, pois a juventude nesses

    tempos ocupava-se do rock. Apesar disso, entre eles havia grandes instrumentistas, com

    destaque para Raphael Rabello, um dos maiores violonistas que o Choro j viu. Em sua

    juventude, na dcada de 70, Raphael conhecia o Choro por meio de Rodas e pequenos

    eventos freqentados por amigos e parentes, a maioria mais velhos do que ele.

    Livingston e Garcia (2005, p.136) transcrevem interessante relato desse notvel

    violonista acerca de seus incios no Choro:

    O que eu sei que as pessoas realmente gostam quando ouvem Choro. As pessoas da minha idade acham estranho eu tocar essa msica, mas ficam loucas com ela. simplesmente porque nunca ouviram no rdio ou na televiso, e no tm nenhum preconceito contra ela. (Relato de Rapahel Rabello, apud Livingston e Garcia, 2005, p. 136)

    Esses jovens chores da dcada de 70 eram, em geral, da classe mdia e homens,

    embora houvesse mulheres envolvidas, como Luciana Rabello, Dolores Tom, Beth

    Ernest Dias (Livingston e Garcia, 2005). interessante notar que todas as mulheres

    citadas por Livingston e Garcia (2005) so parentes de instrumentistas (Luciana irm

    de Raphael, Dolores filha do flautista Jos Tom e Beth filha de Odette Ernest Dias,

    renomada flautista envolvida com o Choro, e matriarca de uma enorme famlia de

    msicos). Na dcada de 70, Rodas de Choro ressurgiram e tornaram-se badaladas, sendo

    freqentadas pela alta classe mdia carioca. o caso do Sovaco de Cobra, boteco em

    que acontecia uma Roda freqentada pelos mestres Altamiro Carrilho, Abel Ferreira,

    Paulo Moura, Dino 7 Cordas, e por jovens instrumentistas que com eles queriam

    aprender mais sobre o gnero.

  • 24

    Foi tambm na dcada de 70 que surgiram os Clubes do Choro, primeiramente

    no Rio, em 1975, e, depois, em Braslia, em 1977. Os Clubes do Choro foram,

    posteriormente, instituies importantes para a manuteno do gnero. Nesse perodo, o

    Choro recebeu apoio governamental por meio da Fundao Nacional de Arte

    (FUNARTE) e do Museu Nacional da Imagem e do Som (MIS). Gravadoras nacionais

    (Marcus Pereira, CID, Eldorado, Copacabana e Continental) e transnacionais (RCA,

    CBS, Warner, EMI e Polygram) lanavam gravaes de Choro. Algumas dessas

    gravaes eram novas produes, mas a maioria eram relanamentos das gravaes dos

    regionais das rdios das dcadas de 40 e 50. Por isso, Livingston e Garcia (2005)

    caracterizam esse perodo como sendo o do renascimento do Choro tradicional. Com

    isso, querem dizer que poucas inovaes foram introduzidas no gnero. Os autores

    destacam a gravadora Marcus Pereira pelo importante trabalho de gravar discos com

    msica popular brasileira, projeto em que o Choro foi agraciado com o lanamento de

    18 discos (entre os 144 lanados pela gravadora em 10 anos).

    No ano de 1977, dois festivais de Choro aconteceram em So Paulo. No

    primeiro deles, apresentou-se o Regional do Canhoto. Um ms depois, o segundo

    festival (Encontro Nacional dos Chores), produzido pela Marcus Pereira e pela Rede

    Bandeirantes de televiso, incluiu Waldir Azevedo e Pernambuco do Pandeiro, Paulinho

    da Viola e Chico Buarque. Nesse mesmo ano, foram realizadas as primeiras

    competies de Choro. Essas competies consistiam em eventos em que um grande

    nmero de instrumentistas se inscrevia, e os melhores eram escolhidos por um conjunto

    de jurados. Nesses eventos, interpretaes e instrumentaes inovadoras eram trazidas

    ao Choro. Foi em um desses que o conjunto A Cor do Som, liderado pelo bandolinista

    Armandinho, chocou pblico e audincia com o uso de guitarra eltrica e arranjos no-

    convencionais. Alm de chocar, Armandinho levantou a discusso, que dormia em

    funo do frenesi gerado pela redescoberta do Choro, sobre a modernizao do

    gnero, sobre tradio e modernidade, sobre inovao e autenticidade.

    O renascimento do Choro da dcada de 1970 durou to pouco que praticamente

    no passou de um suspiro. Os anos 80 trouxeram outro golpe duro para nosso gnero

    instrumental. Os anos 80 foram de uma grave crise poltico-econmico-social no Brasil.

    A transio para o regime democrtico se deu em meio a uma inflao galopante,

    somada a uma enorme dvida externa cujos juros eram pesados para o Estado brasileiro.

  • 25

    Nesse cenrio, foram diminudos os apoios produo cultural. O Ministrio da Cultura

    foi reduzido a uma secretaria, e a FUNARTE foi extinta, sendo substituda pelo Instituto

    Brasileiro de Arte e Cultura IBAC. Com isso, o oramento para a cultura caiu

    drasticamente. Tambm foram eliminados os incentivos fiscais para investimentos do

    setor privado nas artes e na msica. O Choro sentiu o baque: no havia mais festivais de

    Choro, e muitos grupos desapareceram. At as Rodas nos quintais, redutos ltimos da

    resistncia do gnero, ficaram comprometidas pelo enorme avano da violncia urbana.

    Os Clubes do Choro desapareceram. Concomitantemente, as gravadoras transnacionais

    atingiam seu apogeu. Foi a era dos grandes nomes da msica pop, como Michael

    Jackson e Madonna, que representaram o maior monoplio musical desde os Beatles.

    No Brasil, bandas de rock como Paralamas do Sucesso, Tits e Legio Urbana faziam

    sucesso nas rdios e na televiso. Da dcada de 80 at final da dcada de 90, ningum

    ouvia falar de Choro (com exceo do Clube do Choro de Braslia, que retomou as

    atividades em 1993).

    No final da dcada de 90, contudo, acontece uma forte retomada do Choro

    (juntamente com a de outros gneros da tradio popular). Essa retomada coincide com

    a crise da indstria fonogrfica, que, durante a dcada de 80, funcionava a partir do

    monoplio das grandes gravadoras. Estas, trabalhando de forma verticalizada e

    centralizada, dominavam todas as etapas da produo fonogrfica: desde a gravao em

    estdios prprios, passando pela prensagem e pela distribuio, e apoiando-se na

    divulgao nas grandes emissoras de rdios e televises por meio do pagamento do

    jab. Assim, as gravadoras conseguiam vender poucos produtos culturais em grande

    quantidade. Com o advento das novas tecnologias de comunicao e de reproduo

    digital de udio, foi forada uma reconfigurao na indstria fonogrfica, que gerou

    uma forte crise nas gravadoras transnacionais. Pierre Lvy (1999) afirma que a Internet

    balanou os pilares do modo de comunicao um-todos, tpica do modelo implantado

    pela cultura de massa, dando lugar ao modelo todos-todos, que resulta da conexo

    generalizada em rede, onde emissores e receptores, ou, no caso da produo artstica,

    artista e pblico se confundem ou alternam papis. Desse modo, a partir do

    enfraquecimento do monoplio musical empreendido pelas transnacionais fonogrficas,

    no somente o Choro, mas muitas outras manifestaes tradicionais/populares foram

    sendo retomadas a partir do final da dcada de 1990.

  • 26

    No caso do Choro, a primeira dcada do terceiro milnio foi de grande

    crescimento e enriquecimento do gnero. Novas tendncias surgem a todo o momento,

    juntamente com jovens instrumentistas que criam novas abordagens para o gnero.

    Pelas caractersticas da comunicao contempornea, possvel ter acesso a vasto

    material sobre o Choro de qualquer lugar do mundo; por isso, em locais inusitados,

    podem ser encontrados entusiasmados amantes do gnero. , tambm, cada vez maior o

    nmero de instrumentistas estrangeiros mergulhados no Choro. No Brasil, sua audincia

    voltou a ter muitos e muitos jovens. Devido complexidade e grande variedade e

    riqueza de formas de tocar o Choro presentes atualmente, no possvel, em poucas

    linhas, desenhar o cenrio geral do Choro contemporneo. Mas possvel discorrer

    sobre recortes desse cenrio que so, sem dvida, de extrema importncia. A seguir,

    neste trabalho, abordaremos aspectos musicais e extra-musicais relacionados ao Choro

    na cidade de Braslia, Distrito Federal.

  • 27

    A2. Da Lapa ao Planalto Central

    Braslia no surgiu, foi surgida, no meio de um lugar que se acreditava ser o

    nada. A capital do pas foi erguida em poucos anos, a partir do esprito faranico de

    Juscelino Kubitschek. Nas palavras de Lcio Costa (1962, apud Nunes, 1999, p.1),

    idealizador do plano urbanstico da cidade, Braslia nasceu de um gesto primrio de

    quem assinala um lugar e dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ngulo reto, ou

    seja, o prprio sinal da cruz.

    Nunes (2003) afirma que Braslia, construda para ser a capital do pas, recebeu,

    pouco a pouco, a partir da dcada de 1960, a burocracia do Estado oriunda,

    principalmente, do Rio de Janeiro. Note que essa simples afirmao, para quem conhece

    a histria social do Choro, j indica a possibilidade desse gnero musical desenvolver-se

    na nova capital, uma vez que, nascido no Rio de Janeiro, era praticado pelas classes

    mdias associadas ao funcionalismo pblico. O funcionalismo pblico, de acordo com

    Nunes (2003) o grupo scio-profissional que at os dias atuais d sustentao

    cidade, tanto em termos econmicos, quanto culturais e comportamentais. o aparelho

    do Estado (federal e distrital) que injeta o dinheiro que circula no Distrito Federal. Os

    setores da economia do DF construo civil, comrcio, servios, entre outros giram

    em torno da massa monetria provida pelo Estado. At os dias de hoje, mesmo com o

    desenvolvimento do DF como plo comercial, mdico-hospitalar e turstico, o setor

    pblico mantm a hegemonia de grande empregador local.

    Com a vinda de funcionrios pblicos do Rio de Janeiro para a nova capital,

    vieram tambm msicos ligados ao Choro. So eles os pioneiros do Choro no planalto

    central. Alguns deles eram militares e funcionrios pblicos, e outros vieram pelos mais

    diversos motivos. Dentre eles, podemos destacar: Pernambuco do Pandeiro, Avena de

    Castro, Raimundo Brito, Hamilton Costa, Ely do Cavaco, Bide da Flauta, Waldir

    Azevedo, Neusa Frana, Francisco de Assis Carvalho, Celso Cruz, Joo Tom e,

    Cicinato Simes dos Santos. Fornecendo uma contribuio que ultrapassa os requisitos

    de uma monografia de final de curso, a antroploga Luciana Portela (2003) apresenta

    breves histricos acerca de algumas dessas pessoas.

  • 28

    Incio Pinheiro Sobrinho, o Pernambuco do Pandeiro, veio para Braslia em

    1959, a convite de Juscelino Kubitscheck para tocar na Rdio Nacional, juntamente com

    seu Regional. Este era formado por Manuel Gomes na flauta, Hermeto Paschoal no

    acordeom, Jorge Charuto no sete cordas e Ubiratan no cavaquinho. Luciana Portela

    (2003) conta que problemas entre o Regional de Pernambuco do Pandeiro e o presidente

    da Rdio Nacional foraram a dissoluo do grupo. Somente Pernambuco ficou em

    Braslia, e os demais msicos voltaram para o Rio de Janeiro. JK ofereceu, ento, um

    emprego na Novacap para Pernambuco, que o manteve na nova capital por longos anos.

    Hamilton Costa era inspetor de segurana da Cmara Federal no Rio de Janeiro,

    e, em Braslia, foi oficial de gabinete do Presidente da Cmara. Alm disso, Hamilton

    abriu a primeira barbearia da cidade, na Novacap, e sua vinda para a nova capital se deu

    precisamente por ocasio da inaugurao da Boate do Braslia Palace Hotel.

    Avena de Castro nasceu em 1919 no Rio de Janeiro. Teve formao musical

    erudita, e tocou ctara at o fim de sua vida, em 1981. Na dcada de 50, teve seu

    primeiro contato com o Choro, ao transcrever peas de Ernesto Nazareth. Da em diante,

    envolveu-se intensamente com a msica popular. Veio para Braslia no final da dcada

    de 1960, e foi fundador do Clube do Choro. Foi tambm presidente da Ordem dos

    Msicos do Brasil. Comandou um Regional que recebeu seu nome, e que participou da

    ltima gravao de Jacob do Bandolim, feita em Braslia.

    Bide da Flauta era funcionrio da Justia Militar, e veio para Braslia em 1970.

    Como flautista, j havia tocado com grandes nomes, como Carmem Miranda, Benedito

    Lacerda, Jacob do Bandolim e Donga. Neusa Frana, pianista erudita, chegou em

    Braslia em 1959; trabalhava na Orquestra do Teatro Nacional Claudio Santoro.

    Organizava saraus em sua casa, onde era comum a presena de grandes chores (como

    Jacob do Bandolim e o poca de Ouro). Waldir Azevedo veio para Braslia acompanhar

    a filha que, por sua vez, veio acompanhar o marido, funcionrio do Banco Central, em

    1971. Nilo Costa, o Tio Nilo, era saxofonista, e veio para Braslia em 1972 como

    ferrovirio aposentado. Odette Ernest Dias chegou em 1974, para assumir o cargo de

    professor de Flauta da Universidade de Braslia; durante muito tempo, os chores se

    reuniram em seu apartamento, na 311 sul, aos sbados tarde.

  • 29

    O violonista Joo Tom chegou em Braslia na dcada de 1960, vindo de

    Uberaba. Atuou na Rdio Nacional, lecionou na Fundao Educacional do Distrito

    Federal.

    De acordo com Clmaco (2008), o bandolinista Cicinato Simes dos Santos era

    funcionrio do Itamaraty, e chegou em Braslia em 1970. No Rio de Janeiro, chegou a

    ter aulas com Villa-Lobos, e era amigo pessoal de Jacob do Bandolim. Segundo

    Henrique Cazes (2005), suas composies influenciaram Jacob do Bandolim, pois ele

    identificou, em Prolas e O Vo da Mosca, trechos de msicas de Cicinato.

    Uma das personalidades mais interessantes do Choro de Braslia Francisco de

    Assis Carvalho da Silva, o Six, que recebeu esse apelido por possuir seis dedos nas

    mos. Era maranhense, mas morou no Rio de Janeiro na dcada de 50, onde conheceu

    os grandes nomes do Choro. Na dcada de 1960, veio para Braslia, trabalhando como

    funcionrio de alto escalo do Banco do Brasil. Juntou seu cavaquinho aos chores de

    Braslia, e era conhecido por promover festas, encontros e toda a sorte de festejos

    envolvendo a gente do Choro em Braslia.

    Clmaco (2008) alude, tambm, vinda de msicos das bandas militares para

    Braslia. Mantinham relaes com o Choro, pois seus nomes constam da ata de

    fundao do Clube do Choro. So eles: Joo Batista de Moraes (chegou em Braslia em

    1973, e assumiu a Banda do Comando Naval de Braslia), Francisco de Almeida

    Gomes, da aeronutica, e Manoel Vasconcelos, do Corpo de Bombeiros. Clmaco

    (2008) destaca o nome do militar da marinha Jos Amrico de Oliveira Mendes, que

    veio para Braslia em 1977, e chegou a assumir a presidncia do Clube em 1985, aps a

    sada do Six. Jos Amrico pai de dois grandes nomes do Choro contemporneo: o

    bandolinista Hamilton de Holanda e o violonista Fernando Csar Mendes.

    A tirar pelos primeiros chores do planalto central, o Choro aporta aqui muito

    bem representado. Embora no tenha havido nenhum esforo oficial (apesar de JK ser

    apreciador de serestas, e fizesse questo da presena de bons msicos nas festas que

    promovia) para implantar uma tradio musical, a vinda de funcionrios pblicos trouxe

    importantes pedaos do Choro carioca para Braslia. Como ms que se atraem, esses

    msicos, com distintas origens, formaes e histrias de vida, comearam a realizar

    encontros musicais. O Choro em Braslia surge, ento, como uma colcha de retalhos;

  • 30

    no com um Regional consolidado, como os que j existiam no Rio de Janeiro, mas a

    partir da reunio dos msicos disponveis. S que eram retalhos dos mais finos tecidos,

    que deram origem a uma colcha bela e resistente.

    Nos primeiros anos da dcada de 1970, de acordo com Clmaco (2008), os

    chores se encontravam para tocar em locais como o Braslia Palace, Hotel Aracoara, a

    prpria Rdio Nacional. Alguns bares eram tambm palco do Choro: o caso do

    Amarelinho, no Gilberto Salomo, do Xadrezinho, na 407 norte, do Bar Choro, na 302

    norte, do Bar do Dizinho, na 314 sul, do Bar Macambira, na 408 sul, e do Bar Fina Flor

    do Samba.

    Os encontros dos nossos pioneiros aconteciam, tambm, na casa do jornalista

    Raimundo Brito, na 105 Sul. Eram freqentados por Waldir Azevedo, Avena de Castro,

    Pernambuco do Pandeiro, Ely do Cavaco, Celso Cruz, Odette Ernest Dias, Bide da

    Flauta e Cicinato (Portela, 2003). Em 1974, com a morte de Raimundo Brito, as

    reunies passaram a ser realizadas no apartamento de Odette, na 311 Sul. Nesse mesmo

    ano, chegaram a Braslia rumores de que um Clube do Choro seria fundado no Rio de

    Janeiro; o valente grupo iniciou, ento, a movimentar-se no sentido de fazer o mesmo

    no cerrado. Em 1975, de fato, foi inaugurado o Clube do Choro do Rio de Janeiro.

    Nesse ano, as reunies de chores permaneciam na casa de Odette. A partir de ento,

    mesmo sem sede, sem estatuto e sem existncia oficial, o grupo de chores de Braslia

    j recebia o nome de Clube do Choro. Nesse perodo, apresentaes eram realizadas em

    alguns espaos de Braslia, dos quais podemos citar o Teatro da Escola Parque, a Sala

    de Concertos da Escola de Msica de Braslia, diversos pontos no campus da

    Universidade de Braslia, entre outros. Zlio Zapata, em matria publicada em 1976 no

    jornal Correio Braziliense, utiliza o termo Clube do Choro para designar o grupo de

    msicos:

    E quem quiser terminar o domingo s voltas com algumas msicas gostosas e bem brasileiras, s ir ao Teatro da Escola Parque, partir das 21 horas e assistir a mais uma apresentao do conhecido Clube do Choro, onde esto Pernambuco do Pandeiro, Celso Cruz e Avena de Castro, entre outros msicos da velha e da nova guarda. (...) O grupo recebeu apoio da Fundao Cultural do Distrito Federal, que cedeu o auditrio da Escola Parque e ainda auxiliou na divulgao (Zapata, 1976).

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    Clmaco (2008) menciona que a prpria ata de fundao do Clube do Choro

    aludia existncia prvia de um Clube do Choro, em funo da reunio constante de

    seus elementos e da realizao de apresentaes pblicas.

    No perodo que antecedeu a criao oficial do Clube do Choro, alguns novos

    chores haviam se juntado ao grupo. Dentre eles podemos destacar o violonista Alencar

    7 Cordas. Magda Clmaco (2008) conta que Jos Alencar Soares natural de Ipu, no

    Cear; ainda jovem, teve interesse pela msica, tocando banjo, violo e guitarra em

    bailes em Fortaleza. Chegou a Braslia em 1971, e, alguns anos depois, juntou-se aos

    chores de Braslia tocando violo de 7 cordas. Aprofundou-se nos estudos de harmonia

    e desenvolveu impressionante habilidade no violo. Alencar o grande professor de

    violo e de harmonia dos chores brasilienses contemporneos. Desenvolveu uma

    metodologia para o ensino do acompanhamento do violo no Choro e em outros

    gneros, ao qual denomina rvores harmnicas. Conhecendo as famosas rvores

    harmnicas do Alencar, violonistas e cavaquinistas adquirem desenvoltura para

    acompanhar msicas que no conhecem. Posteriormente, na dcada de 1990, integrou o

    Choro Livre, grupo instrumental responsvel por acompanhar os solistas convidados a

    tocar no Clube do Choro. Atualmente, Alencar d aulas particulares, tendo uma

    quantidade enorme de alunos, integra alguns grupos de Choro com instrumentistas

    jovens e aparece nas Rodas por a, de vez em quando, sempre para nossa alegria.

    Outros ento jovens, que se uniram ao grupo de chores de Braslia em meados

    da dcada de 1970, foram Antnio Lcio, flautista aluno de Odette Ernest Dias, Jaime

    Ernest Dias, violonista filho de Odette, o prprio Reco do Bandolim, o violonista

    Augusto Contreiras, o cavaquinista Evandro Barcellos, entre outros.

    Mas a sala de visitas do apartamento de Odette foi se tornando por demais

    apertada para abrigar a quantidade de pessoas reunidas. Em 1976, nesse mesmo

    apartamento, o grupo decidiu solicitar ao governador do DF, Elmo Serejo (de quem o

    clarinetista Valci Tavares era assessor de gabinete), um espao para a instalao de um

    Clube do Choro em Braslia.

    Em 1977, Elmo Serejo destinou ao Clube o local de sua sede at os dias de hoje:

    entre a Torre de TV e o Centro de Convenes Ulysses Guimares. O espao fsico foi

    inaugurado juntamente com a edio de seu Estatuto, em 1977. A edificao havia sido

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    construda para servir de vestirio do Centro de Convenes, mas nunca teve essa

    utilizao. As instalaes eram precrias, mas, a partir de esforos e doaes de seus

    membros, os encontros dos chores passaram a ser realizados ali. Conta Portela (2003)

    que Pernambuco do Pandeiro vendeu uma coleo de passarinhos para comprar

    geladeira e fogo para o Clube.

    Reco do Bandolim, em entrevista, fala sobre os problemas que o espao do

    Clube do Choro, ainda em 1977, oferecia para seus freqentadores, e sobre o carter

    domstico das primeiras Rodas de Choro do Clube:

    Reco do Bandolim: Aquele espao era cheio de pia, de banheiro, era cheio de ... Era um lugar quente para burro, tinha uma lage, e ferro ali dentro. Porque hoje tem ar condicionado. Aquilo era uma sauna, porque o sol batia de dia, os ferros seguravam aquele calor, e de noite transmitiam aquilo para baixo. Era um negcio insuportvel, mas era ali que a gente se encontrava. Ento, como mandava a tradio, cada semana uma famlia preparava uma feijoada, um cozido. S amos ns, era s famlia, e a gente ia pra l para tocar, tomar cerveja. Todo mundo meio que descobrindo aquele negcio, encantado com aquilo, sobretudo o pessoal de Braslia. Algumas pessoas mais jovens comearam a se aproximar, o Carlinhos Gifoni, Paulinho do Cavaquinho, Flavinho do Bandolim, como eu tambm. Ns fomos nos aproximando dali, aquilo era uma novidade, era uma beleza. Aquilo nos deixava em xtase. Era msica brasileira que a gente no conhecia. Aquilo falava de perto com a gente, era uma loucura, rapaz! Bom, ento, esses encontros se davam sempre de uma maneira informal.

    Na primeira fase do Clube do Choro, eram realizadas Rodas de Choro. No

    havia nenhuma programao, nem ensaios, nem compromisso formal de nenhum

    msico estar l para tocar. Reco afirma que:

    Reco do Bandolim: Tocava quem queria tocar, subia quem queria subir. No tinha problema nenhum, qualquer pessoa que chegasse com seu instrumento podia subir. Tinha gente que dava show e tinha gente que dava vexame. Tinha gente que no sabia tocar... Era Roda, todo mundo tocava. E a era gente para caramba, er