13
ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - AMB ANO XIV NÚMERO 72 BRASÍLIA, DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 MAGISTRADO J O R N A L D O Profissão perigo O enfrentamento ao crime organizado torna a carreira da magistratura um desafio de alto risco CORREIOS

J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

ÓRG

ÃO

OFI

CIA

L D

A A

SSO

CIA

ÇÃ

O D

OS

MA

GIS

TRA

DO

S BR

ASI

LEIR

OS

- AM

B

A

NO

XIV

MER

O 7

2

B

RASÍ

LIA

, DEZ

EMBR

O D

E 20

03 A

JAN

EIRO

DE

2004

MAGISTRADOJ O R N A L D O

Profissão perigoO enfrentamento ao crime organizado torna a carreira da magistratura um desafio de alto risco

CORREIOS

Page 2: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO2 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 3

Quantos de nós já não foram procurados em plena Noite de Natal por advogados em busca de uma assinatura capaz de tirar alguém de dentro de um presídio? Ninguém gosta de ser privado de sua liberdade, muito menos no final do ano, época propícia a balanços, quando nos propomos novos desafios e confraternizamos com os amigos e a família.

Enquanto isso, tem gente que está na prisão e, na maioria das vezes, em condições subhumanas, vivendo na própria pele o caos do sistema prisional de nosso País.

Esta edição do Jornal do Magistrado toca neste assunto delicado, tentando mostrar um pouco do lado humano destes homens e mulheres que não terão uma ceia de Natal nem a companhia da família.

E por falar em balanço, o ano que se encerra nos trouxe uma grave constatação: a luta contra o crime organizado tornou a nossa atividade uma espécie de profissão de risco. Temos vários colegas ameaçados e sofremos com a perda de dois deles em 2003. São tentativas de intimidação como tantas pelas quais já passamos. Entre elas, a longa noite de mais de dez anos imposta pelo famigerado Ato Institucional número 5, cuja edição completa 35 anos neste dezembro.

Ainda assim, exemplos como o do juiz federal Lafredo Lisboa, do Rio de Janeiro, mostram que os magistrados não se deixarão intimidar e que são capazes de agir com a agilidade e o rigor necessários. Outros exemplos, como as iniciativas extra-oficiais que buscam solucionar conflitos com base no diálogo, têm muito a nos ensinar. Por um lado, são projetos capazes de colaborar para desafogar a Justiça. Por outro, são importantes instrumentos de disseminação de uma nova cultura, onde as soluções para as disputas não são impostas, mas conquistadas pelas partes.

Uma nova visão é também o que nos mostra o jornalista e bacharel em Direito Washington Novaes, o entrevistado desta edição. Novaes é um dos profissionais de comunicação que mais conhecem a área de meio ambiente no País, tendo recebido vários prêmios no Brasil e no exterior. Aliando esta experiência a seu conhecimento na área jurídica, ele avalia a atuação dos juízes nas questões relacionadas a este assunto e alerta para as controvérsias legais que nos esperam neste terreno.

Para fechar a edição, uma homenagem a outro homem que fez da Natureza de nosso País a sua nova pátria: o polonês naturalizado brasileiro Frans Krajcberg, o artista plástico que depois de perder a família durante a Segunda Guerra manteve acesa a chama da revolta contra as injustiças.

Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano, com nossos votos de que juntos possamos prosseguir na luta pela construção de um mundo mais justo, mais democrático, mais pacífico, mais tolerante e mais equilibrado. Ou, em uma única palavra, um mundo mais belo. Boa leitura.

Cláudio Baldino MacielPresidente

Prezados colegas:

MAGISTRADOJ O R N A L D O

Especiais

Há uma inquietação nacional com os recentes crimes cometidos por jovens. É de estarrecer ver jovens que matam jovens, jovens que matam os pais. O que era rotineiro nas classes baixas, e causava medo, agora perpassa as classes média e alta e causa horror. Indagamos como isso é possível, aonde isso vai nos levar, qual será o futuro dos nossos filhos. O medo que foi angústia, agora é estupor.

A dor ingente de pais e parentes e amigos das vítimas, e a idade dos que matam ou perdem a vida, mobilizam, pela impotência, a nossa compaixão, solidariedade e até revolta. Não se pode esperar de pessoas dilaceradas pela perda nada além de desespero e perplexidade.

Quem, por provisória sorte, ainda não foi diretamente atingido pela tragédia, que, ainda, pode manter alguma serenidade, deveria contribuir para aclarar o diagnóstico. Condenar uma etnia, uma classe social, uma faixa etária ou uma geografia é lavrar em erro. A rotina de episódios violentos e crimes sem motivação desenha não um quadro de criminalidade adstrita, mas a moldura de uma sociedade em crise. Há sinais de que a violência entranhou-se no tecido social e tornou-se cultura. É o limiar da barbárie. Um fenômeno psicossocial.

O clamor de queixas, acusações, imprecações e explicações afoitas parece um debate sobre o tema, mas é apenas a catarsis que, desde os gregos, está associada às tragédias. Eles ensinaram também que pode-se aprender com a dor, mas, na dor, não se deve ensinar. Nas trevas do dilaceramento não há luz. Após a tragédia vem a compaixão e, por último, a lucidez. É hora de tentar entender o que está acontecendo, pois somos, todos e ao mesmo tempo, vítimas e algozes. Ao anunciar as palavras do oráculo, Creonte diz a Edipo, rei de Tebas: “Existe um mal, aqui nascido e aqui agasalhado, que torna impura e corrompe esta cidade. O grande Zeus ordena expressamente: Extirpá-lo.” Édipo conduz a investigação que o vai condenar. Sugere que é preciso expiar a tragédia para extirpar o trágico.

Sob o impacto do horror, vozes sugeriram a redução da maioridade penal. Acolhida a idéia, aos 16 anos de idade, delinqüentes poderão ser condenados. Sem querer aliviar a culpa de criminosos, pergunto se crianças que crescem sem família, sem escola, sem emprego e sem assistência social têm noção do que seja certo e errado, justo e injusto.Cadáveres são parte do seu trajeto, roubos são parte do seu entretenimento, drogas são parte da sua aventura, armas são parte da sua emoção, miséria e abandono são parte do seu cenário, fome e doença são parte do seu cotidiano, crime e morte são parte do seu futuro. Quem se chocaria com a violência? Por que escandalizar-se com o assassinato? Da espantosa promiscuidade, sem referências nem valores, restam cinismo e frieza. Para esses jovens assassinos o Estado, que se resume à Polícia e ao Juiz, só surge em suas vidas para apontar o crime e lavrar a pena. Não tem sido diferente com jovens de classe média e alta. Também eles ficam pasmos ao se defrontarem com a gravidade dos próprios atos. Aqui, o Estado não é o único responsável. Sem referências nem modelos, parte da juventude patina às cegas.

Impor a eles o braço duro da Polícia e a crueldade do Judiciário, é açular um à barbárie, o outro ao genocídio. Conscientes desse quadro social, poderão os magistrados aplicar a letra fria da lei, como se houvesse eqüidade e equanimidade, como se esses pequenos homens fossem nossos iguais perante a lei?

Em vinte anos teremos cadeias entupidas: hordas de menores se somarão às de maiores. E, ainda assim, sairemos das grades que cercam nossas casas para os carros blindados que nos levarão para trás das grades que cercam nossos trabalhos. E não teremos entendido que estamos diante de um fenômeno sobre o qual é preciso se debruçar sem paixões nem ressentimentos, sem assistencialismos nem demagogia. Precisamos entender que leis não podem ser feitas com espírito de vingança, nem repressão é o único antídoto apenas porque está à mão e já acumulamos vasta e tétrica experiência. Esse tipo de facilidade e costume é mais vício que virtude. Precisamos de soluções novas, de estudos e ciências, para tratar uma peste que também é nova e afeta toda a sociedade.

Professor Emérito da UFRJ e referência em Filosofia, Emmanuel Carneiro Leão dá uma pista em artigo na Revista Ítaca, do IFCS: “Por toda parte se esboroou a força do direito e só restou mesmo o direito da força, tanto na tecnologia como na ideologia. No lugar da ética, entrou a economia, ocupando todos os postos e funções e substituindo qualquer valor. E não apenas a ética foi tragada pela economia. A política também, a religião também, a arte também, a filosofia também o foram. Os valores humanos e o homem, como princípio e fim de toda ordem, foram afundando e se rendendo aos poderes do mercado. Só há censores para o lucro, só se busca globalizar investimentos só preocupam rendimentos em expansão.” Intuo que esta pista pode levar à luz.

O saber jurídico é construção da racionalidade humana, um esforço intelectual para balizar a convivência entre homens frágeis e erráticos. Se existem corruptos entre os magistrados, e pesquisas apontam a perda de credibilidade da Justiça, comparado com o Executivo e o Legislativo, o Judiciário é, de longe, o menos corrupto dos poderes e seus membros são escolhidos pelo saber específico. Desqualificar o Judiciário pela compreensível, mas insensata sede de vingança só prejudica a busca de referências. No pântano da degradação, há mais forças puxando para o fundo do que cipós da salvação.

* Romancista, dramaturgo, cronista, roteirista de cinema e tv,autor de “ Nem mesmo todo o oceano”

O Natal atrás das grades Página 4

Catarse e Justiça Alcione Araújo*

SCN Quadra 02, bloco D, torre B, sala 1302Shopping center Liberty Mall

Brasília – DFCEP 70712-903

Tel.: 61 328 0166Fax: 61 328 9790

Internet: http://www.amb.com.bre-mail: [email protected]

PresidenteCláudio Baldino Maciel – Ajuris (RS)

Secretário-geralGuinther Spode – Ajuris (RS)

Secretário-geral adjuntoAlexandre Aronne de Abreu

Diretor-tesoureiroRonaldo Adi Castro da Silva – Ajuris (RS)

Assessores:Nelo Ricardo Presser – Ajuris (RS)Ricardo Gehling – Amatra IV (RS)

Vice-presidentesCláudio Augusto Montalvão das Neves – Amepa (PA)

Douglas Alencar Rodrigues – Amatra X (DF)Guilherme Newton do Monte Pinto – Amam (RN)

Gustavo Tadeu Alkmim – Amatra I (RJ)Heraldo de Oliveira Silva – Apamagis (MG)

Joaquim Herculano Rodrigues – Amagis (MG)Jorge Wagih Massad – Amapar (PR)

Luiz Gonzaga Mendes Marques – Amamsul (MS)Roberto Lemos dos Santos Filho – Ajufesp (SP)

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro – Amma (MA)Thiago Ribas Filho – Amaerj (RJ)

Coordenador da Justiça EstadualRodrigo Tolentino de Carvalho Collaço – AMC (SC)

Coordenador da Justiça FederalJosé Paulo Baltazar Júnior – Justiça Federal (RS)

Coordenador da Justiça do TrabalhoHugo Cavalcanti. - (Amatra VI)

Coordenador da Justiça Militar Carlos Augusto C. de Moraes Rego – Amajum (DF)

Coordenador dos AposentadosCássio Gonçalves – Amatra III (RJ)

Conselho FiscalJoão Pinheiro de Souza – Amab (BA)

Jomar Ricardo Saunders Fernandes – Amazon (AM)Wellington da Costa Citty – Amages (ES)

É uma publicação da Diretoria de Comunicação Social da AMB

EdiçãoWarner Bento Filho – Assessoria de Comunicação da AMB

Tel: 61 328 0166e-mail: [email protected]

Colaboraram nesta ediçãoAntonio Matiello, Letícia Capobianco, Rossana Alves, Taís Mendes, Vasconcelo Quadros, Lourenço Flores, Davi Brasil

Simões Pires e Graça Ramos

DiagramaçãoTODA Desenho & Arte . www.tdabrasil.com.br

Tiragem16 mil

Ilustração capa:Aline Pereira e Fábio Brumana

As matérias assinadas são de responsabilidade dos seus autores. A reprodução é permitida desde que citada a fonte.

Seções

Magistrados arriscam a vida no combate ao crime organizado

Série: Experiências de sucesso em mediação de conflitos

Estante: Balzac e a Costureirinha Chinesa, Dai Sijie

Memória: o AI-5 completa 35 anos

Perfil: Lafredo Lisboa

Entrevista: Washington Novaes

Sessão Especial: O Juri, Gary Fleder

Artes: Frans Krajcberg

Página 12

Página 16

Página 7

Página 8

Página 10

Página 18

Página 21

Página 22

Page 3: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO4 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 5

E s p e c i a l

O Natal aprisionadoA proximidade das festas de fim de

ano tem um significado diferente

para quem está na prisão. Longe

das famílias e das comemorações,

os apenados inventam sua própria

maneira de disfarçar a dor

Letícia Capobianco (Brasília)Rossana Alves (Salvador)

Taís Mendes (Rio de Janeiro)

Uma vez por ano, em dezembro, a presidiária Miralva Sá Teles Trindade e suas companheiras de cela fazem uma vaquinha. Juntam os trocados que conseguem com os trabalhos desenvolvidos na penitenciária feminina de Brasília e passam o dinheiro

para policiais de confiança, com uma lista de encomendas, escrita a mão num pedacinho de papel.

O pedido é entregue religiosamente no dia marcado: 24 de dezembro, na própria cela. Então elas improvisam uma mesa com toalha, onde dispõem a ceia: frango assado, farofa, salada de maionese e refrigerantes. Elas rezam, pedem paz e liberdade, desejam-se feliz Natal. Depois de comer, beber e sorrirem por alguns instantes, choram como crianças. “É muito difícil passar o final de ano aqui. Sinto muita falta dos filhos e me lembro de como era bom passar a data com eles lá fora”, conta Miralva, 37 anos, mãe de dois filhos que moram em Redenção, na Bahia, com os avós.

O marido de Miralva também está preso. Os dois saíram de Redenção há oito anos. Migraram para o Distrito Federal em busca de uma vida melhor. Passaram um tempo procurando emprego. Quando acabou o pouco dinheiro que levavam, acabaram caindo no crime. Vontade de trabalhar não falta a Miralva, que tem origem na zona rural. De manhã cedo é possível vê-la capinando o pátio do presídio, cuidando das plantas, plantando flores. Mais tarde, quando o sol está mais forte, ela se dedica a fabricar bijuterias utilizando sementes de açaí e de pau-brasil.

Mas não é só na cela da camponesa Miralva, na Penitenciária Feminina de Brasília, que a noite de Natal é comemorada. As mais de 300 presas percebem um toque de carinho e solidariedade nas refeições do dia, quando aparece alguma farofa com passas ou arroz à grega.

É assim também em outro presídio de Brasília, o Centro de Internação e Reeducação (CIR). O diretor da prisão, Márcio Márquez de Freitas, garante que não há “quebra de

rotina”, mas o almoço é especial, supervisionado de perto por nutricionistas. Neste dia, além dos tradicionais arroz e feijão, aparecem frango frito, pernil assado, batata chips (um sucesso entre os presidiários), tutu de feijão, arroz à grega e até sobremesa. Além disso, permite-se que os presos organizem pequenas festas e confraternizem com a família.

Sensibilidade

A lembrança de pessoas queridas, a saudade e a vontade de passar o fim de ano em casa mergulham os internos numa confusão de sentimentos que torna os dias que antecedem o Natal um período difícil e delicado dentro do sistema penal. “Os presos ficam muito ansiosos, abalados emocionalmente e com muito mais sensibilidade”, relata o superintendente de Assuntos Penais da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Virdal Antônio Mattos de Senna.

A conseqüência é o agravamento do clima de tensão e expectativa nas prisões, que se traduz no aumento das tentativas de fuga e em rebeliões, em especial entre a população carcerária masculina. Em Salvador, somente na terceira semana de novembro houve duas tentativas frustradas de fuga nas duas maiores prisões da cidade - a Penitenciária Lemos de Brito, que abriga 1.300 detentos, e no Presídio Salvador, onde estão 1 mil internos.

Para tentar evitar novas tentativas, a direção das unidades reforçou o sistema de vigilância. São feitas revistas diárias para detectar a existência de buracos e túneis e para a retirada de armas. À noite, quando os presos já estão trancados em suas celas, são feitas visitas às galerias para averiguações. Além disso, foi instalado um sistema de segurança eletrônica no Presídio Salvador, que abriga homens que aguardam julgamento.

As revistas nos visitantes são intensificadas nesta época em presídios de todo o País. “Se o interno ingere algum alimento estragado ou muito gorduroso, mesmo que preparado

por algum membro da família, e passa mal, a responsabilidade é nossa”, justifica o diretor da Subsecretaria do Sistema Penitenciário do DF, Watson Warmling.

Tristeza e esperança

A tensão existente entre a população carcerária masculina contrasta com o clima de tristeza e esperança entre as presidiárias. Na Penitenciária Feminina de Salvador, que abriga 130 mulheres já condenadas ou esperando pronunciamento da Justiça, o espírito natalino, com sua mensagem de paz e amor, parece impregnar a maioria das detentas, envolvidas principalmente com tráfico de drogas, roubos e homicídios. “Dezembro é um mês espiritual, de pensar em Deus e de perdoar. Elas falam muito em amor e confraternização. E quando lembram da família, quase sempre choram”, conta a professora Kátia Bianca Silva Oliveira, que tem uma turma de alfabetização na penitenciária.

Também contribui para elevar a ansiedade entre os presos a expectativa em relação à saída temporária e ao tão cobiçado indulto de Natal. Durante a saída temporária, o detento tem que andar na linha. Não pode brigar com a família, está proibido de beber e de freqüentar bares ou andar em companhia de outros internos ou ex-presidiários.

Ao indulto, têm direito os presos condenados a até seis anos que já tenham cumprido um terço da pena e não tenham registro de problemas disciplinares. O indulto tampouco beneficia condenados por tráfico e outros crimes considerados hediondos.

O decreto do indulto de Natal de 2002 causou polêmica no Rio de Janeiro, ao por em liberdade autores de crimes hediondos. Cerca de cinco mil internos dos presídios do Rio ganharam a liberdade.

A Vara de Execuções Penais identificou na época 3.652 presos aptos ao indulto, assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. O indulto foi o mais abrangente já concedido por um presidente. Até 2000, o benefício era concedido apenas a presos de bom comportamento condenados a até quatro anos de prisão. A nova medida ampliou o benefício para condenados a até seis anos de cadeia e para os presos que já completaram 60 anos de idade. Até mesmo os presos que cometeram crimes sob grave ameaça, que antes ficavam fora do indulto, foram beneficiados.

Os presos não são libertados imediatamente porque o indulto só é concedido depois de análise da folha penal dos detentos. A pesquisa é feita até em outros estados. A ampliação do leque de benefícios do indulto surpreendeu os magistrados. Nos últimos anos, o número de beneficiados no Rio vinha caindo: em 1999, 359 presos foram atendidos. Em 2000, 174 e, em 2001, 22.

Josileide Bezerra Lopes, de 31 anos, que cumpre pena de 1 ano e 8 meses por furto em Salvador, foi beneficiada com a saída temporária. Vai para casa antes do Natal e só volta depois do Ano Novo. “Vou até comprar um presente para o meu filho”, diz, com lágrimas nos olhos.

Frenesi

Fora dos presídios há nesta época um vaivém de advogados em busca de habeas corpus, alvarás de soltura e outros papéis. Juízes são procurados de madrugada, nos fins de semana e até na própria noite de Natal para assinarem o documento capaz de colocar uma pessoa em liberdade.

Quem fica lá dentro tenta disfarçar a dor. Em Brasília, Hermes Henrique de Sousa, de 25 anos, que cumpre pena de sete anos e dois meses, é um dos organizadores da festa de Natal na penitenciária, que acontece dia 23 de dezembro. “Vamos decorar todo o pátio do presídio para tentar transmitir alegria aos visitantes. Há familiares de presos que nunca tiveram a oportunidade de passar um Natal digno e esperamos que eles nunca se esqueçam desse”, diz.

Cerca de mil balões vão colorir o pátio. E os detentos ainda encomendaram um bolo de 50 quilos, refrigerantes, pipocas e doces, que serão distribuídos aos filhos dos presos por um palhaço e um interno fantasiado de Papai Noel. Também haverá gincana, sorteio e até torneio de futebol, com medalha e tudo.

Hermes é casado e pai de três filhos. Conta que passar alguns anos em uma penitenciária foi importante para que ele tivesse a certeza de que nunca mais voltará a cometer crimes. “O tempo que passei aqui não foi perdido. Ao contrário, o presídio me proporcionou um grande aprendizado. Aqui também tenho a oportunidade de trabalhar, e quando estiver livre quero me ocupar para ajudar minha família e aumentar a auto-estima”, diz.

O final do ano é propício para um balanço e para novas promessas. Entre os presidiários não é diferente. Ermeci Alves dos Reis, de 44 anos, condenada em Brasília a

três anos e cinco meses e já no fim da pena, conta os dias para estar de volta à casa entre os filhos e netos. “Sempre no Natal, depois da meia-noite, as colegas de cela se cumprimentam e se desejam felicidades. Depois eu peço a Deus que me dê logo a liberdade e um bom emprego, prometendo nunca mais fazer nada de errado”, conta.

Longe dos olhos Os detentos que cumprem pena longe dos familiares são os que mais sofrem nesta

época, já que dificilmente recebem visita dos parentes. É o caso da paulista Adriana Barbosa Batista, de 22 anos. Presa no início de 2003 no Aeroporto de Salvador por portar droga que levaria de São Paulo para o exterior, Adriana terá que cumprir 4 anos e dois meses de prisão. Em dez meses de cadeia, nunca recebeu qualquer visita. “Minha mãe é faxineira, ganha pouco e ainda cuida do meu filho de cinco anos lá em São Paulo. Ela está juntando com sacrifício o 13o salário para vir aqui no ano que vem”, conta.

Adriana acredita que seu primeiro Natal na cadeia não será tão difícil quanto seu primeiro aniversário lá, dia 14 de março. “Foi meu pior momento aqui, um dia depois da audiência em que fui condenada. Chorei muito, porque até então eu achava que ia embora por ser ré primária”, conta. Adriana diz que só aceitou transportar a droga por estar desempregada e cheia de dívidas. “Precisava do dinheiro. Foi um momento de desespero”.

A situação da professora de karatê Eva Ferreira Rocha Leite, 32 anos, é muito parecida. Jovem e bonita, ela foi presa em maio de 2002 em Itabuna, no interior da Bahia, trazendo droga de Rondônia. Apesar de jurar que não sabia o teor da carga que transportava, Eva pegou três anos de prisão. “Se soubesse, jamais traria, porque tenho duas filhas menores.

Foto

: Eug

ênio

Nov

aes

Foto

: Eug

ênio

Nov

aes

A camponesa Miralva cuida das plantas no Presídio Feminino de Brasília. “É muito difícil passar o final de ano aqui. Sinto muita falta dos filhos e me lembro de como era bom passar a data com eles lá fora”

As detentas do Presídio Feminino de Brasília complemantam renda com a produção de artesanato usando materiais da natureza

Page 4: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO6 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 7

E s p e c i a l

Estou presa, mas não sou do mundo do crime”, garante Eva, outra que nunca recebeu qualquer visita. A família mora em Ariquemes, em Rondônia. “Dia de visita é triste”, diz.

No Natal de 2002 ela era uma recém-chegada à penitenciária, tinha medo de tudo e de todos. Mantinha num caderno uma espécie de diário, onde anotava as dificuldades da vida na cadeia – o sofrimento, as chantagens, a perda do pai. Passado o período mais difícil, foi se acostumando à nova realidade e acabou fazendo amizades entre as presas. As cartas e os telefonemas das filhas Suzimeire, de 18 anos, e Maura Valéria, de 16, minoravam o sofrimento. Agora tudo o que queria era ir a Ariquemes para assistir à formatura de 2o grau da filha mais velha. “Meu sonho era poder estar em liberdade para ver minhas filhas”, diz Eva, que espera conseguir a liberdade condicional em maio de 2004 por ter cumprido dois terços da pena e ter bom comportamento.

Trabalho tem um significado importante para as detentas na Bahia. Além de ganharem um pequeno salário, elas fazem uma poupança, reduzem a pena e ainda facilitam sua ressocialização.

Na Penitenciária Feminina de Salvador existem hoje duas empresas que utilizam a mão-de-obra de 40 das 130 detentas. Por uma jornada de oito horas de trabalho, elas ganham 75% do salário mínimo, o equivalente a R$ 180. Desse total, elas recebem R$ 140. Os R$ 40 restantes são depositados numa poupança, que poderá ser sacada quando elas deixarem a cadeia. Além disso, para cada três dias de trabalho, reduzem um dia no cumprimento da pena.

A empresa Wilker Print funciona exclusivamente na penitenciária e emprega 10 internas na fabricação diária de 2 mil fitas para impressoras matriciais. “Já ganhamos até prêmios de qualidade na Itália”, conta com orgulho a supervisora de produção, Rita Teles. Três ex-detentas que trabalhavam na linha de montagem foram aproveitadas pela Wilker Print quando deixaram a penitenciária. Uma delas virou representante comercial da empresa na cidade de Natal.

Segundo a supervisora, os internos têm alto nível de produção e baixo custo operacional, pois não têm direito a férias, 13o salário nem aviso prévio. Além disso, as empresas não arcam com despesas com aluguel, água e luz, que são bancados pelo próprio sistema penal.

Outra empresa instalada na penitenciária é a Trapos Du Carro, que já existe há oito anos e optou por montar uma nova unidade na penitenciária no início de novembro. A empresa utiliza sobras de tecidos das confecções baianas para montar trapos que são utilizados principalmente nas empresas do Pólo Petroquímico de Camaçari. De início foram absorvidas 30 detentas, que produzem 150 quilos de trapos durante um dia. Mas a intenção da empresa é chegar a 500 quilos por dia, utilizando 50 internas. “No início, elas têm um pouco de dificuldade, mas depois de alguns dias já pegam o ritmo”, afirma Aline Menezes Esquivel, supervisora de produção.

E s t a n t eFo

to: M

árci

o Li

ma

Foto

: Már

cio

Lim

aNo Rio de Janeiro, Gracinda Pacheco da Silva passará o Natal sem o marido pela

primeira vez em cinco anos. Ele está preso há três meses, acusado de tráfico de drogas. “O aniversário dele é na véspera do Natal, que será dia de visita. Vou trazer uma ceia e comemorar com ele”, conta Gracinda.

O filho da evangélica Maria da Luz, também condenado por tráfico de drogas, recebe a visita da mãe todo o Natal no Complexo de Bangu. Ela assiste ao culto com o filho e depois almoçam juntos. “Eu sempre trago um bolo, que ele divide com os companheiros de cela”, conta.

No Centro de Internação e Reeducação de Brasília, final de ano tem detento fantasiado de papai noel, balões e festa para os filhos dos presidiários

Na Penitenciária Feminina de Salvador, que abriga 130 mulheres já condenadas ou esperando pronunciamento da Justiça, o trabalho ajuda as detentas a manterem a serenidade

Duas empresa utilizam o trabalho das detentas na Penitenciária Feminina de Salvador. Elas recebem 75% do salário mínimo, por uma jornada de oito horas. Parte do salário vai para uma poupança para quando estiverem em liberdade

Trabalho e poupança para esperar a liberdadeProfessor de Direito Penal e presidente da 2ª Turma do TRF da 3ª Região, o autor analisa na obra a origem e os princípios básicos do Direito Penal, além da aplicação da lei penal. Da Rosa utiliza uma linguagem acessível, no decorrer de todo o trabalho, destinado, principalmente, aos estudantes de Direito. Para ele, o uso de uma linguagem mais simples faz com que o dialeto técnico e rebuscado, utilizado no Direito, não seja um entrave à assimilação dos conceitos.

DIREITO PENAL – PARTE GERAL Fábio Bittencourt da RosaEditora Impetus

COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL Carlos Valder do NascimentoEditora América Jurídica

A terceira edição da obra, coordenada pelo professor Carlos Valder do Nascimento, conta com a colaboração de estudiosos do Direito para tratar minuciosamente de questões como o controle dos atos do Poder Público, o princípio da segurança jurídica e a medida provisória nº 2.180-35/2001, que erigiu, em plano normativo, a tese da coisa julgada inconstitucional. Também são tratados outros temas, como o justo preço e a moralidade dos princípios juridicamente impossíveis.

Ensinar os estudantes de direito a desenvolver o raciocínio jurídico e a utilizar seu conhecimento para analisar situações do ambiente em que vivem é um dos principais objetivos desse manual. A partir de um estudo sistemático do Direito Processual Civil, o autor propõe que os leitores registrem em sua memória tudo o que aprenderam, já que, segundo ele mesmo afirma, “o fundamental não é estudar muito, mas fixar o que se estuda”. Cármine é Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professor de Direito Processual.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL RESUMIDO Cármine Antônio Savino FilhoEditora América Jurídica

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL COMENTADO – ARTS. 1º A 1.220 Sergio Sahione Fadel Atualizador: J. E. Carreira Alvim

Editora Forense

A obra, que já alcançou sete edições, foi a primeira editada logo após a promulgação da Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973, que institui o novo Código de Processo Civil. Por isso, é considerado um dos mais importantes materiais de Direito Processual Civil no Brasil. Sergio Sahione Fadel é advogado no Rio de Janeiro e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.

A primeira obra do desembargador Newton de Lucca publicada na editora Saraiva enfoca, principalmente, as características e os aspectos fundamentais dos contratos informáticos e telemáticos. O autor também faz algumas explanações sobre os contratos de venda, locação e leasing de hardware e sobre os contratos de software, que abrangem licença de uso, venda, leasing e desenvolvimento de novos programas. Newton de Lucca é magistrado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e professor.

Newton de LuccaEditora Saraiva

José Carlos Moreira AlvesEditora Saraiva

A obra, em sua segunda edição, analisa criticamente o Projeto de Código Civil, de 1975, que deu origem à Lei nº 10.406/2002, a que institui o Código Civil. É uma importante contribuição para operadores do direito privado. O autor examina casos como a tentativa de retirada do Direito das Obrigações do Código Civil e as alterações que o Projeto de 1975 sofreu na Câmara dos Deputados. Alves é ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal e professor Titular aposentado da Universidade de São Paulo.

ASPECTOS JURÍDICOS DA CONTRATAÇÃO INFORMÁTICA E TELEMÁTICA A PARTE GERAL DO PROJETO DE CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Pode a literatura interferir tão profundamente na vida das pessoas a ponto de fazê-las ultrapassar as condições políticas, sociais, ideológicas, materiais do mundo em que vivem? “Balzac e a costureirinha chinesa”, do cineasta francês Dai Sijie, conta a história de três jovens que, apanhados pela tormenta ideológica da chamada Revolução Cultural na China de Mao-Tsé-Tung, encontram nos livros uma força ainda maior. Imaginem aquele mundo virado de cabeça para baixo, com as universidades fechadas, os intelectuais execrados como exemplos cabais da influência quase satânica do poderio ocidental burguês, qualquer mínima luz considerada uma ofensa mortal aos sagrados princípios da revolução do proletariado. É assim que dois jovens, filhos de professores e dentistas (criminosos!), são mandados para a tal “reeducação”. O processo consistia, basicamente, em retirá-los da vida “confortável” a que estavam acostumados e jogá-los em grotões do interior da China para trabalhos exclusivamente braçais. A idéia era fazê-los sentir as agruras da vida dos “verdadeiros trabalhadores”. Pois os dois jovens amigos são enviados para um vilarejo remoto no alto de uma montanha longínqua para sua jornada de expiação (dos “pecados” dos pais, ressalte-se). Lá, conhecem uma menina – a costureirinha do título – linda, simples, analfabeta. Os dois caem de amores pela garota. Leitores vorazes na época pré-Revolução Cultural, têm que se acostumar a um mundo em que todos os livros são proibidos – com exceção do Pequeno Livro Vermelho de Mao. Acabam descobrindo, no entanto, um “tesouro” inimaginável em um vilarejo próximo. Um morador conseguira salvar um baú cheio de obras clássicas, de Balzac a Rosseau, de Stendhal a Shakespeare. Os dois fazem uma expedição ao lugarejo e conseguem “resgatar” um livro do Balzac. É com ele que começam uma belíssima jornada com a costureirinha. Decidem ensiná-la a ler e a escrever utilizando apenas a riquíssima prosa do autor francês. O processo, no entanto, escapa ao controle. O livro vai às alturas à medida que o efeito da palavra, que a força da literatura começa a agir na vida da menina – e na deles, conseqüentemente. O autor, Dai Sijie, vive na França há 15 anos. Ele próprio passou pela chamada “Reeducação”. Não é um livro amargo, cheio de recriminações e queixas pelo que passou. É um testemunho que conta até com um humor muito sutil e uma esperança muito evidente na grandiosidade da literatura como possibilidade de redenção histórica.

Lourenço Flores

Em obra relançada no Brasil, Sijie aborda a “reeducação” dos tempos da

Revolução Cultural chinesa, contrapondo literatura ao totalitarismo

O Balzac e o Mao

Serviço:Balzac e a costureirinha chinesa, de Dai SijieEditora ObjetivaR$ 20,90

Page 5: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO8 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 9

M e m ó r i a

A noite que não se esquece

Vasconcelo Quadros

Há 35 anos, no dia 13 de dezembro, a ditadura

militar consolidava seu plano de poder ao

baixar o famigerado Ato Institucional número 5.

Um dos objetivos dos generais era enfraquecer

o Judiciário e assim abrir caminho para a

arbitrariedade.

“Quando as portas se abriram era noite. Duraria dez anos e dezoito meses”. É com essa sutileza que o jornalista Elio Gaspari - autor de Ditadura Envergonhada, um dos três volumes de Ilusões Armadas, a mais densa referência bibliográfica dos

chamados anos de chumbo - define o desfecho da reunião de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, onde o general Costa e Silva e 12 ministros deram forma ao Ato Institucional número 5, o famoso AI-5. O Ato representaria o golpe de misericórdia na democracia, no estado de direito, nas liberdades individuais e jogaria o país numa sangrenta ditadura militar, iniciada quatro anos antes, em 1964, e que durou 21 anos.

O AI-5 vigorou até 1979, ano da anistia, e tinha 12 artigos, oito dos quais davam ao regime militar poderes tão amplos que a Constituição se transformou em letra morta. O militares podiam tudo: fechar o Congresso, cassar parlamentares, suspender direitos políticos, aposentar compulsoriamente quem não fosse simpático, prender e processar

violando o princípio da defesa, censurar. Enfim, promover a barbárie. O Poder Judiciário, o único que poderia controlar os abusos, não escapou. Um dos artigos permitia que os militares demitissem e removessem juizes ou suspendessem a vitaliciedade, a inamovibilidade e estabilidade dos magistrados.

No artigo 10 do AI-5 havia ainda uma medida mais draconiana - “a pior das marcas ditatoriais”, na visão de Gaspari - que era a suspensão da garantia do habeas corpus nos casos de crime político e contra a segurança nacional, o que atendia plenamente o pleito da máquina repressiva que se instalaria no país e respaldaria o arbítrio. O AI-5 não apenas engessou as atividades do judiciário. Permitiu também que o regime cassasse ministros do Supremo Tribunal Federal e dezenas de juizes de primeira e segunda instâncias país afora.

“A lembrança do que aconteceu naqueles dias foi marcante”, conta o ministro Sepúlveda Pertence, do STF, que na época era secretário jurídico do ex-ministro Evandro Lins e Silva - falecido no ano passado, um dos símbolos da resistência - a primeira vítima da ditadura no judiciário, aposentado compulsoriamente logo após o anúncio do AI-5. Um dia antes, lembra Pertence, durante a posse do presidente do Supremo, Gonçalves Dias, o advogado Sobral Pinto arrancara aplausos da platéia ao interromper seu discurso para anunciar que a Câmara dos Deputados havia negado a licença para processar o ex-deputado Márcio Moreira Alves, o Marcito, autor do pronunciamento que criticava as Forças Armadas e que os militares usaram como argumento para o AI-5.

Tratou-se, na verdade, de um mero pretexto, segundo confessaria mais tarde o ex-ministro da Fazenda e atual deputado Delfim Neto. Nas palavras de Delfim, a reunião do Conselho de Segurança Nacional em que o ato foi lido e discutido pelo general-presidente Costa e Silva e seus 12 ministros, os argumentos sobre descontentamentos na área militar eram mero teatro para estabelecer a ditadura. “Aquela reunião foi pura encenação (...). O discurso de Marcito não tinha importância nenhuma para os militares. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo”, diz Delfim, desmentindo a crise numa entrevista, 20 anos depois, reproduzida por Gaspari em Ditadura Envergonhada.

A solenidade do Supremo, segundo a memória do ministro Pertence, ocorria no Brasília Palace e ficaria apelidada como o Baile da Ilha Fiscal, uma referência jocosa à última festa da corte, no Rio, antes do golpe que derrubaria a monarquia no Brasil e instalaria a República. No dia seguinte, viria o anúncio do ato e a lista dos caçados e aposentados no

Passados 35 anos do AI-5, as circunstâncias políticas são completamente diferentes. Há um claro avanço no campo da democracia, a sociedade respira liberdade, um metalúrgico governa o país sem ter que prestar contas aos quartéis, mas o judiciário ainda enfrenta resistências sempre que se opõe - como é seu dever constitucional - aos atos do Executivo. É o que se viu, recentemente, no confronto entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do STF, ministro Maurício Corrêa. Na troca de tiros, foi Lula quem abriu fogo, afirmando que era preciso abrir a caixa preta do judiciário. Depois vieram as discussões em torno da Previdência e a proposta do governo, de fazer a reforma do judiciário, especulando com o controle externo.

“Não se pode comparar a natureza dos governos das duas épocas. O atual é democrático, saiu das urnas. O legislativo funciona plenamente. Já o governo do AI-5 é resultado da ruptura do estado de direito. O que não se pode negar, entretanto, é que o atual governo, por impulsos autoritários, tem criado tensão entre os dois poderes, tentando debilitar o judiciário, com atitudes de descortesia. Deveria prestigiá-lo como poder independente, compreendendo que o judiciário é o parâmetro do regime democrático”, diz o presidente da AMB, desembargador Cláudio Maciel.

O presidente lembra que o judiciário sempre funcionou como o poder que impõe os limites aos atos do Executivo e, por essa razão, incomoda quem está no poder. “As ditaduras têm dificuldades extremas de conviver com o judiciário, que faz a contenção dos atos dos governantes e os coloca no limite da Constituição”, afirma Cláudio Maciel.

“O propósito do governo foi fragilizar o judiciário porque, em tese, diminuiria o poder de fiscalização”, avalia o juiz Grijalbo Fernandes Coutinho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Na avaliação de Coutinho, as raízes políticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - forjadas na luta entre o sindicalismo do ABC paulista do final dos anos 70 e o regime militar - justificaria a reação do governo ao judiciário.

“É um governo que tem origem no movimento social, que vem de uma época em que havia muita decepção quanto à atuação do judiciário”, diz Grijalbo. Naquele período, lembra ele, qualquer greve era considerada ilegal e isso acabou provocando descontentamento com a atuação do judiciário. “Acho que é necessário corrigir o que há de errado no judiciário, mas ao fragilizá-lo o próprio governo perderá os freios”, alerta.

A difícil convivência

Supremo. Dos 16 ministros, cinco saíram em decorrência do AI-5. Hermes Lima e Victor Leal foram cassados, Evandro Lins e Silva aposentado compulsoriamente 13 anos antes do prazo, Lafayette de Andrada e Gonçalves de Oliveira, descontentes com a “camisa de força” que se colocaria no STF, pediram suas aposentadorias.

O Supremo Tribunal Federal, que era formado por 16 ministros, ficaria reduzido a 11, como é até hoje. A degola no judiciário se processaria país a fora, de Norte a Sul, enquanto os porões do regime militar se enchiam de presos políticos, mantidos em regime incomunicável e sem direito a qualquer defesa, já que o ato anulou o instituto do habeas corpus.

Testemunha ocular de todo o clima que envolvia a mais alta corte do país, Sepúlveda Pertence lembra em detalhes a expectativa em torno do “momento soturno” em que se transformou a leitura do AI-5 na Voz do Brasil, e a fase de caça às bruxas - ele mesmo demitido da Universidade de Brasília (UNB). “O ministro Evandro Lins e Silva temia ser preso e viveu momentos de muita tensão. Vinham muitos boatos do Rio de Janeiro nesse sentido. Ele dizia que não admitiria ser carregado por alguém rumo à prisão”, revela Pertence. As ameaças só cessaram depois que o presidente do STF interferiu junto ao governo. Lins e Silva pode então retornar ao Rio com tranqüilidade.

Com o judiciário amordaçado, a imprensa censurada e o parlamento fechado - e depois sob controle dos militares - as grandes tribunas contra a ditadura foram a Ordem

Foto

: AM

B

dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). “Participei da luta contra a ditadura no limite do que as minhas forças permitiam”, diz Pertence, que na época foi para o Ministério Público. Hoje, a 35 anos daquele período sombrio, acha que é necessário avançar ainda mais para consolidar a democracia.

“Minha geração é de gato escaldado. Nunca se pode dar por absolutamente consolidada. Há que se preocupar diariamente com a democracia”, sugere o ministro do STF. Segundo ele, os riscos hoje estão nas variáveis internacionais - o processo de globalização - que têm prejudicado os países periféricos e dependentes do capital internacional, embora o Brasil, segundo ele, tenha avançado no campo democrático e se distanciado das crises que atingiram outros países do continente.

O vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - próximo presidente da Corte - Edson Vidigal, na época vereador em São Luiz, saído do movimento estudantil, foi o primeiro cassado pela ditadura no Maranhão e ouviu a notícia sobre a edição do AI-5 dentro da redação do Jornal do Dia, onde era repórter e redator. Vidigal diz que o AI-5 foi uma medida brutal contra as liberdades. “O regime enfraqueceu o judiciário. A magistratura passou por um processo de intimidação e foi perdendo sua competência. A maioria de suas ações passou a ser tipificada dentro da Lei de Segurança Nacional e transferidas para a Justiça Militar. Lá, nenhum dos membros civis ousava divergir. Fizeram atrocidades em nome do combate à subversão”, afirma o ministro.

Costa e Silva e seus ministros na noite de 13 de dezembro: 12 artigos que transformaram a Constituição em letra morta

O AI-5 abriu espaço para a repressão e a arbitrariedade, numa época em que falar em democracia dava cadeia

Cláudio Maciel: “Não se pode negar que o atual governo, por impulsos autoritários, tem criado tensão entre os poderes, tentando debilitar o Judiciário, com atitudes de descortesia.”

Foto

s: A

gênc

ia E

stad

o/AE

Page 6: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO10 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 11

Tais Mendes

Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Risonho e silencioso, o juiz Lafredo Lisboa virou um exemplo ao mostrar que a Justiça pode agir com agilidade e firmeza contra o crime organizado

P e r f i l Lafredo Lisboa

Lafredo Lisboa ganhou notoriedade

depois de condenar os 17 fiscais

envolvidos no escândalo do

propinoduto. Mas ele diz que não

fez nada de mais.

“Só cumpri o meu dever”

Mineiro, de voz mansa, ele não gosta muito de falar da notoriedade que ganhou, mas não esconde a satisfação do dever cumprido. “Não fiz nada de extraordinário. Só meu dever”. A frase vem sendo repetida pelo Juiz Lafredo Lisboa Vieira Lopes à imprensa,

aos vizinhos, aos amigos e a todos que, nas ruas ou nos corredores do Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro, param para cumprimentar o homem que condenou 22 pessoas envolvidas no o envio ilegal de US$ 33,4 milhões para a Suíça, no escândalo que ficou conhecido por propinoduto. Aos 61 anos, 40 deles dedicados à Justiça como promotor e juiz, ele não só virou celebridade como também um exemplo a ser seguido, num país que reclama de um Judiciário lento e nem sempre justo.

A popularidade começou quando ele mandou para a prisão, na caçamba de camburões, 17 fiscais envolvidos no crime, uma ironia do acaso para o ex-fiscal de impostos de consumo. Os fiscais tiveram os bens bloqueados e seus sigilos fiscal e bancário quebrados.

O fato teve grande repercussão e Lafredo Lisboa ganhou fama. – Não fiz nada de extraordinário. Só cumpri meu dever – repetiu a frase – Um fato

natural. As pessoas é que estão exagerando – diz.O caso ficou conhecido quando o Ministério Público federal e a Polícia Federal

investigavam quatro funcionários da Secretaria de Fazenda do Rio de Janeiro e quatro auditores da Receita Federal suspeitos de extorsão, lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas para o exterior. Os oito funcionários teriam depositado US$ 33,4 milhões em contas no Discount Bank and Trust Company, na Suíça. Com as investigações, outros nomes foram surgindo. Ao todo, 24 pessoas foram denunciadas à Justiça. A investigação começou porque,

em novembro do ano passado, o Ministério Público da Suíça enviou relatório confidencial ao então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, comunicando a existência de contas milionárias no país, abertas por funcionários públicos brasileiros. Brindeiro determinou então que o caso fosse apurado.

Na realidade, o caso propinoduto só trouxe à tona o perfil de um juiz de casos polêmicos e decisões firmes. Em 1994, quando a seleção brasileira desembarcou no Rio com o tetracampeonato mundial, Lafredo Lisboa exigiu que toda a delegação pagasse imposto sobre tudo o que trouxe e não passou pela alfândega, como a churrasqueira a gás de Zagalo e a chopeira do presidente da CBF, Ricardo Teixeira. A liberação da malas representaria prejuízo de US$ 1 milhão para a Receita Federal.

– Primeiro me criticaram. Depois a população aplaudiu. A lei é para todos ou não é para ninguém – defende.

Pai de quatro filhos, um deles também juiz, Lafredo Lisboa é um homem simples. Tricolor, gosta de ver seu time pela TV, ler e ouvir música. Acorda diariamente às 5h da manhã para trabalhar e termina o dia caminhando na Praia de Copacabana, bairro onde mora há 30 anos. Depois de sua sentença, numa dessas caminhadas, foi aplaudido. Algumas pessoas chegaram a cumprimentá-lo pela decisão:

– A população há muito não via o Judiciário agir com presteza e quando isso acontece torna-se um fato fora da rotina – comenta.

O assédio da imprensa obrigou Lafredo Lisboa a buscar ajuda num manual sobre a relação da imprensa com o Judiciário, que traz uma coletânea sobre o que dizer e o que não dizer a jornalistas. Ajudou. Jornalistas que cobriram o caso do propinoduto contam que o juiz se esforçou para bloquear a timidez e estabelecer uma relação de confiança com os repórteres.

– No início do caso, nós acreditávamos que a relação com o juiz seria a parte mais difícil da cobertura, porque o judiciário tem a tradição de ser encastelado. O próprio Lafredo confessou que também já foi assim, mas venceu a timidez, ainda que, em determinados momentos, patrulhasse os jornalistas perguntando se havia um gravador ou uma câmara escondidos – conta o jornalista Alan Gripp, do jornal O Globo.

Raphael Gomide, repórter do jornal O Dia, considera que o juiz Lafredo Lisboa foi o melhor parceiro da imprensa durante o caso do propinoduto.

– Ele disponibilizava aos repórteres os documentos que não estavam em segredo de Justiça e nos atendia em seu gabinete diariamente, com a maior paciência e atenção, para conversar sobre o caso. Forneceu informações relevantes e estabeleceu uma saudável relação de respeito e cordialidade com todos os jornalistas que cobriam o processo. Sempre amável e solícito, difere-se da imagem distante e pomposa que muitos têm dos juízes – assegura.

O cerco ao juiz não veio só da imprensa. Os inúmeros advogados que defendem os réus também transformaram a rotina do juiz nos dez meses de processo.

– Só de habeas-corpus respondi mais de 30. A pressão é grande. Não é qualquer um que consegue fazer cumprir a lei – diz, deixando a modéstia de lado.

Mas logo em seguida o juiz faz questão de dividir os louros. – A condenação não foi só mérito meu. Deve-se também ao Ministério Público. O

processo tinha 233 volumes e juntar tantas provas não foi tarefa fácil. A mim coube apenas a sentença.

Amigo pessoal do juiz há cinco anos, o procurador da República Gino Liccione conta que ele é um homem duro de se convencer:

– É uma pessoa justa e muito técnico. Conhece o Direito e não se esconde atrás do cargo, mas é preciso muito esforço para convencê-lo. No início do caso, ele chegou a indeferir tudo – lembra o promotor.

Lafredo e Gino acabaram formando uma dupla imbatível que lembra o procurador do Estado Antônio Carlos Biscaia e a juíza estadual Denise Frossard. Eles também atuaram

juntos na condenação, na década de 90, de catorze banqueiros do jogo do bicho que agiam no estado. Depois de se aposentarem em suas carreiras no judiciário, Biscaia e Frossard acabaram se encontrando novamente, agora como deputados federais em Brasília. Amiga de longa data de Lafredo Lisboa, a deputada conta que quando jovem o juiz lembrava o galã francês Jacques Dutronc.

– Conheci o Lafredo quando ele era um jovem promotor, um dos homens mais bonitos que já conheci. Sempre foi muito elegante, detalhista e belíssimo – afirma Frossard.

A deputada ressalta, ainda, o lado pessoal do juiz tímido e de poucas palavras:– Mas tem uma ironia fina, a marca de inteligência – comenta.Denise vê semelhanças entre sua história e a do juiz:– São dois processos sobre organizações criminosas e esquemas de corrupção que

movimentam um enorme volume de dinheiro – compara.Os olhos azuis, sem dúvida, chamam a atenção, assim como a maneira risonha com

que fala e lembra dos tempos de sua juventude. Os quilos a mais já não permitem que pratique seus dois esportes favoritos: mergulho e esqui:

– Atualmente só caminho na orla. Às vezes encontro o Gino, mas vejo só o vulto dele correndo – brinca, diante do amigo mais jovem.

Os anos podem ter levado a agilidade do jovem que gostava de esportes radicais, mas não fez desaparecer o homem de bom papo que, como todo mineiro legítimo, gosta de contar causos. Amigo pessoal do juiz, o procurador-geral de Justiça, Antônio Vicente da Costa Junior, lembra do amigo de poucas palavras, mas muito divertido:

– Ele gosta de um papo, mas prefere ouvir do que falar. É um homem discreto no convívio pessoal e profissional – conta o promotor-geral.

Antônio Vicente e Lafredo Lisboa se conheceram nos corredores do Ministério Público, onde o juiz trabalhou 27 anos, sempre conciliando a função de promotor com um escritório de advocacia para dar mais conforto a família:

– Considero o Lafredo uma das pessoas mais eficientes na aplicação do Direito. Nunca foi exibicionista. Pelo contrário. É recatado e com ações de um autentico jurista – elogia.

Entre os advogados de defesa dos fiscais acusados, Lafredo pode até não gozar da mesma popularidade, mas é admirado profissionalmente. Clóvis Sahione, advogado de oito dos fiscais envolvidos no caso, todos condenados, considera o juiz um homem de muita dignidade e que às vezes se deixa

embalar pela emoção, o que faria com que suas sentenças fossem mais rigorosas do que o esperado:

– Um homem que não tem medo de advogados. Recebe, conversa e dá as explicações que acha importante. Isso é fundamental para demonstrar o gabarito de um juiz. Além disso, é um homem profundamente sensível, mas esconde essa sensibilidade atrás da ojeriza que tem pelo ato criminoso, talvez fruto da sua passagem pelo Ministério Público. Eu o admiro e o respeito muito – afirma Sahione.

Admiração que todos que trabalham com ele não cansam de propagar. Sua chefe de gabinete, Luciana Simões, conta que ele é uma pessoa simples e com senso de humor.

– Trabalhamos juntos há cinco anos e ele está sempre disposto a ouvir. Alguns juízes criam obstáculos e ele é bastante acessível. É uma pessoa justa.

A assistente Éster dos Santos Antunes Mattos conta que Lafredo Lisboa é exigente, mas compreensivo:

– Está sempre disposto a ajudar quem precisa. E nos dias de festa ele participa e é um dos mais animados.

Amigo pessoal do juiz, com que estudou até a universidade, o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, conta que a simpatia e simplicidade de Lafredo Lisboa são características que vêm desde a juventude:

– Ele sempre foi muito alegre, simples e correto, um perfil com o equilíbrio necessário para ser juiz. Fico feliz com o sucesso dele e com a maneira dele ser. Ele foi correto no caso e tem todo o meu apoio.

“A população há

muito não via o

Judiciário agir com

presteza e quando

isso acontece

torna-se um fato

fora da rotina”

Page 7: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO12 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 13

Estado desorganizado

Os dois assassinatos deixaram claro que o aparato do Estado está defasado diante da proliferação da delinqüência e das novas atividades com os quais o judiciário é obrigado a lidar. “Mudou o cenário do crime. Onde antes se combatia o jogo do bicho, hoje se combate o tráfico de drogas. O crime vem se aprimorando e percebe a fragilidade das instituições”, afirma Jorge Massad. Para ele, apesar das proporções que tomou, as estruturas criminosas do país talvez não estejam tão sofisticadas quanto alguns avaliam. “Não é o crime que é organizado. É o estado que está desorganizado”, cutuca Massad.

O que determina se o crime deve ser considerado organizado é poder de cooptação, corrupção e de infiltração nas instituições, planejamento, domínio de território e controle social - o que não é uma regra na realidade brasileira, mas está presente em alguns grupos, perfeitamente identificáveis quando o aparelho do Estado funciona.

Essas características, segundo especialistas, são encontradas em atividades como a corrupção em órgãos públicos, tráfico de drogas, assalto a bancos ou carro-forte e, por mais incrível que possa parecer, nas quadrilhas que já estão presas, mas que controlam o crime de dentro dos presídios, num escancarado desafio ao Estado.

Foi a omissão ou o pouco caso do Executivo que permitiu, por exemplo, o surgimento do Primeiro Comando da Capital (PCC), a organização criminosa paulista que promoveu o levante de 29 presídios em fevereiro de 2001, executou uma série de atentados contra autoridades dirigentes de presídios, comandou vários assaltos e, por último, teria encomendado o assassinato do juiz Machado, de Presidente Prudente.

Pré-máfia

O assassinato, segundo a polícia, foi uma em represália ao duro regime a que foi submetido um de seus fundadores, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como mentor do crime. Instruído e temido entre os criminosos, Marcola construiu em silêncio uma organização que hoje, pelas dimensões que alcançou, surpreende o Estado a cada ação. Sua arma é mais a audácia do que o planejamento.

“O Brasil tem uma estrutura criminosa pré-mafiosa. Alguns grupos têm controle de território e social e querem mostrar que são mais fortes que o Estado. Precisam do poder de intimidação e fazem com que ele seja difundido. É uma necessidade de desmoralizar o Estado, como se verifica nos ataques do PCC, em São Paulo, e do Comando Vermelho, no Rio. São grupos que precisam de vítimas anônimas e de cadáveres excelentes”, aponta o juiz Walter Fanganiello Maierovitch, ex-secretário Nacional Anti-Drogas no governo Fernando Henrique Cardoso e estudioso dos chamados crimes transnacionais - em cuja rota, seja no tráfico internacional ou na lavagem de dinheiro sujo, o Brasil está sempre presente.

Maierovitch prefere não comentar as inúmeras ameaças que já recebeu, mas sua folha de serviços no judiciário de São Paulo antes de assumir um cargo de confiança no governo federal é bastante ilustrativa: chefe do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), corregedor da Polícia Judiciária e juiz criminal numa infinidade de processos relacionados ao crime organizado. No governo, mexeu em vespeiros, como o envolvimento de agentes públicos em atividades suspeitas e as estruturas do tráfico internacional de drogas.

Quinze dias depois de deixar o governo em 2000, estava sozinho e sem nenhuma escolta. “Medo de ser surpreendido por um ato covarde todo mundo tem. Quem disser que não, provavelmente tenha problemas”, desconversa. Atualmente, Maierovitch dirige o Instituto de Ciências Criminais Giovanne Falcone, uma ONG que ele mesmo fundou, em homenagem ao mártir da luta contra a máfia e onde divulga, pela Internet, trabalhos que ajudam a entender a evolução do crime no Brasil e suas conexões com outros países.

Curso de tiros

Num país de desigualdades sociais tão grandes como o Brasil, não são apenas os juizes criminais que correm risco. Enquanto permanecia confinada nos gabinetes, tomando decisões distantes dos acontecimentos, a preocupação dos juizes do trabalho se resumia aos autos do processo. Mas foi só deixar o gabinete para coordenar algumas operações nas fazendas que as reações não tardaram.

“Perdi a conta de quantas ameaças já recebi”, diz o juiz Jorge Antônio Ramos Vieira, titular de Vara do Trabalho de Parauapebas, no Sul do Pará, uma região tradicionalmente dominada pelo latifúndio e onde, até bem pouco tempo atrás, o trabalho escravo era uma rotina banal na cultura local. O juiz chegou à região - da qual fazem parte os municípios

C a p a

Vasconcelo Quadros

O ano de 2003 ficou

marcado de exemplos

de juízes que colocaram

em risco a própria vida

no combate ao crime

organizado. A escalada

da violência transforma

a busca por justiça numa

atividade de alto risco.

Uma das figuras símbolo no combate à máfia italiana, o juiz Giovanne Falcone, pouco tempo antes de morrer num atentado a bomba, em 23 de maio de 1992, profetizou sua própria tragédia: “A minha conta com a máfia está em aberto e somente com

a minha morte será saldada”, disse ele, num depoimento à jornalista francesa Marcelli Padovani, autora de um belo livro sobre a Cosa Nostra. Falcone tinha noção clara de que o preço que ele e outros juizes “sem rosto” corriam era o eterno risco de vida. Um mês e meio depois, outro mártir na luta contra a organização criminosa, o juiz Paolo Borsellino, teria o mesmo destino. Foi uma seqüência de execuções anunciadas.

O que torna a Itália do final do século passado parecida com o Brasil do século XXI - resguardadas as proporções dos níveis de organização das quadrilhas de cada país - é a reação do crime sempre que a magistratura, em nome da sociedade, decide enfrentá-lo. O assassinato dos juizes das varas de execuções penais de Presidente Prudente (SP), Antônio José Machado Dias, e de Vitória (ES), Alexandre Martins de Castro Filho, em março deste ano, no estrito cumprimento de suas funções, seguiu essa mesma lógica.

A motivação das duas execuções, embora os casos tenham características diferentes, foi uma vingança de criminosos contra profissionais indefesos, utilizando a mais covarde e desleal das armas - a emboscada de surpresa, sem chances de reação.

Alto risco

A tragédia chocou a sociedade, assustou o Estado e seus poderes constituídos e deixou um sério alerta: a escalada sem precedente da criminalidade no país e o despreparo do poder que tem a obrigação constitucional de combatê-la - no caso, o Poder Executivo

- transformaram a ação da magistratura e a busca de justiça numa atividade de alto risco, uma espécie de profissão-perigo, onde os operadores da justiça, sem o amparo do Estado que defendem, se tornaram alvo fácil das quadrilhas.

“O juiz está vulnerável”, resume o vice-presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), membro do Tribunal de Alçada do Paraná e juiz criminal, Jorge Massad, encarregado de acompanhar as investigações sobre o assassinato dos dois colegas.

Os crimes representaram o ponto máximo de audácia e do poder de intimidação de grupos criminosos que já tinham atingido outros segmentos que integram a máquina do judiciário. Eles já haviam matado e praticado vários outros atentados contra dirigentes de presídios, policiais, promotores e até oficiais de justiça - que simplesmente se recusam a entregar intimações em determinados morros do Rio de Janeiro, por exemplo.

Em São Paulo, há poucos dias, o governo do Estado foi surpreendido com uma série de atentados contra delegacias, cuja conseqüência foi a morte de policiais, como já vinha acontecendo no Rio de Janeiro. Não estão contabilizadas aí as inúmeras ameaças que os magistrados têm recebido país afora. “Não há estatísticas, mas são muitas”, confirma Massad.

Citando o desabafo do pai de uma das vítimas, o juiz afirma que as balas que acertaram os magistrados “atingiram também a sociedade brasileira”. É uma referência à perigosa circunstância em que, quando os alvos da covardia são magistrados no exercício das funções - “homens que têm apenas a caneta como arma” - o estado de direito e a democracia também correm risco.

“As mortes provocaram uma tremenda angústia em quem está agindo com transparência para combater o crime, a corrupção e tem a atribuição de tomar decisões que afetam a liberdade e patrimônios enormes”, lembra Massad.

de Marabá, Redenção e Eldorado dos Carajás, conhecida como palco do massacre de 19 agricultores sem-terra em 1996 - há dois anos e não vacilou em aplicar a lei.

Bastou Vieira comandar algumas incursões em fazendas para libertar trabalhadores, obrigar proprietários rurais a pagar os direitos trabalhistas, para se tornar alvo de graves ameaças. Nos últimos dois anos foram mais de 20, a última delas descoberta por acaso durante a prisão de um pistoleiro: seu nome integrava a lista negra das futuras vítimas, que seriam eliminadas por contrariar o poder econômico de uma região onde a noção de justiça e de cidadania ainda é tão distante quanto as ações do Executivo contra o poder econômico.

O clima de ameaças se acentuou depois do assassinatos dos dois juizes, episódios que, na visão de Vieira, sinalizaram a quem se sentia incomodado com a ação, que a magistratura é frágil. Para tentar se proteger, ele e outros alvos dos pistoleiros fizeram uma denúncia pública e tomaram algumas medidas de segurança.

Vieira fez curso de tiro, andou com uma escolta formada por agentes da Polícia Federal e deixou de sair à noite ou freqüentar locais públicos. Mesmo assim, percebeu que seria difícil impedir um atentado e que o aparato só lhe dava uma sensação psicológica de segurança. Além disso, a escolta designada para sua segurança desfalcaria a delegacia da PF em Marabá, que conta, no total, com 12 homens. “Para uma escolta eficiente era preciso oito homens. Não seria sensato que eu utilizasse quase toda a estrutura da delegacia”, pondera.

Removido

Diante das probabilidades de se tornar vítima, o juiz Jorge Vieira decidiu aceitar a sugestão do Tribunal de Justiça do Pará. Foi removido para Belém e o tribunal, na tentativa de diminuir os riscos aos magistrados que seriam deslocados para Parauapebas, adotou um sistema de rodízio. A cada 15 dias um novo juiz assume, despacha nos processos concentrados na comarca e depois vai embora. É uma forma de diluir a responsabilidade dos magistrados.

Vida em perigo

Violência crescente levou a Escola Nacional de Magistratura a criar curso de segurança pessoal, que incluiu noções de direção defensiva e ofensiva

Juiz Jorge Massad, vice-presidente da AMB: “As mortes provocaram uma tremenda angústia em quem está agindo com transparência para combater o crime, a corrupção e tem a atribuição de tomar decisões que afetam a liberdade e patrimônios enormes.”os PDFs como combinado.

Foto

s: E

ugên

io N

ovae

s

Page 8: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO14 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 15

C a p a

Defensor do “ativismo judiciário”, o juiz acha que uma das poucas armas que o Estado dispõe para erradicar o trabalho escravo - um paradoxo vergonhoso num mundo moderno e globalizado - é a criação de uma força-tarefa que vá ao “olho do furacão” e enfrente o problema. Nesse cenário, caberia à justiça trabalhista a aplicação da lei diante de todos os crimes praticados pelos fazendeiros.

Planos abortados

No Rio de Janeiro, uma denúncia feita no início de dezembro por um criminoso, o programador digital Fabiano de Oliveira Costa, de 28 anos, condenado a 14 anos de reclusão por tráfico de drogas e roubo, deixou a justiça em novo estado de alerta. Recolhido há até pouco tempo no Presídio Ary Franco - onde teria testemunhado o assassinado do chinês Chan Kin Chang - Costa revelou à Polícia Federal de Brasília planos para assassinar outros dois juizes que atuam no Rio, Maria Angélica Guerra Guedes, do Tribunal de Justiça, e Lafredo Lisboa, da 3a Vara da Justiça Federal.

Transferido para Brasília, onde está sob a custódia da Polícia Federal, Costa poderá passar de testemunha principal do assassinato do chinês a personagem que terá ajudado a polícia a abortar o plano de execução dos dois juizes. A história contada pelo criminoso é farta em detalhes, que podem ser comprovados ou descartados pelas investigações. Os supostos mandantes estão recolhidos no mesmo Presídio Ary Franco, onde Costa também cumpria pena.

No caso da juíza Maria Angélica Guerra Guedes, segundo ele, o mandante seria o bicheiro Rogério de Andrade, condenado por ela a 19 anos de reclusão por ter encomendado a morte de seu próprio primo, o também contraventor Paulo Andrade, filho de Castor de Andrade, o lendário bicheiro já falecido. Costa forneceu inclusive os nomes de policiais que teriam feito o levantamento da rotina da juíza.

A encomenda da morte da juíza incluiria requintes doentios: a juíza Guedes deveria ser morta com apenas um tiro, disparado por um revólver 38, cujo calibre deveria representar o dobro da pena imposta por ela ao bicheiro.

A morte do juiz Lafredo Lisboa, segundo o criminoso, teria sido encomendada pelos empresários Alexandre Martins e Reinaldo Pitta, ambos envolvidos com a quadrilha de fiscais da Secretaria Estadual de Fazenda do Rio de Janeiro, condenados a 11 anos de reclusão. Os

dois são acusados de envolvimento com a quadrilha que extorquia dinheiro e remetia para fora do país, dentro do esquema que ficou conhecido como propinoduto (veja matéria na página 10). O juiz pediu à Polícia Federal que abra um inquérito para apurar as denúncias de Fabiano de Oliveira Costa e atribuiu aos dois empresários a responsabilidade sobre um eventual atentado contra ele.

Boi de piranha

Quem conhece o mundo do crime sabe que um depoimento como esse deve sempre ser visto com reservas, mas também é necessário não desprezar a possibilidade de haver fundamento no relato do rapaz. “O Tribunal (de Justiça) tomou todas as providências que o caso exige. O que nós não podemos fazer é entrar em paranóia. O juiz é um cidadão como outro qualquer e corre os mesmos riscos”, ensina, com equilíbrio, a juíza Maria Angélica Guedes, sem deixar, no entanto, de considerar que a hipótese requer cautela de quem atua numa vara de crimes dolosos.

Maria Angélica também acha que a insegurança dos magistrados aumentaram, mas atribuiu a responsabilidade à inércia do Poder Executivo que, segundo ela, não cumpre seu papel no aparelhamento do judiciário e muito menos combate aos bolsões de miséria que se esparramam por centros como São Paulo e Rio de Janeiro. A conseqüência lógica, segundo lembra, é o aumento do crime e a equivocada atribuição de culpa ao poder judiciário. “O juiz acaba virando o boi de piranha dessa história e a magistratura mal interpretada. A toga não é capa de super homem”, alerta.

Se forem confirmadas pela polícia, as informações prestadas pelo criminoso, segundo o juiz Jorge Massad, representam mais uma prova de que os magistrados não têm segurança no exercício de suas funções.

Conceitos mudaram

O assassinato dos juizes de Presidente Prudente e de Vitória, embora tenham ocorrido num espaço de apenas dez dias, em março deste ano, são fatos isolados. Mas a tragédia despertou a magistratura brasileira para os riscos inerentes àqueles que têm a atribuição legal de aplicar a lei. Mudaram as noções de segurança. Muitos tribunais instalaram detector

de metais na entrada dos prédios e, em alguns casos, se tornou obrigatória a presença de policiais militares nas sessões de depoimentos ou julgamento singular.

Em Brasília, a Polícia Federal passou a ministrar cursos de defesa pessoal aos magistrados. Eles têm aulas de tiro, direção preventiva e recebem noções básicas de como se proteger diante de um atentado ou identificar quando determinada circunstância - às vezes interpretada como uma ameaça banal - representa um risco concreto de atentado.

“Não existe 100% de segurança, mas as cúpulas diretivas dos tribunais estão adotando medidas que ajudem a diminuir o risco de vida dos magistrados”, afirma Jorge Massad. Para reforçar os aspectos legais de combate aos criminosos, a AMB apresentou projeto ao Congresso Nacional propondo a adoção de leis mais duras, aumentando as penas para autores de crime contra magistrados e outros agentes do Estado no exercício da atividade.

O juiz Walter Maierovitch adverte, no entanto, que as providências “ordinárias” são importantes mas insuficientes para levar tranqüilidade aos magistrados que lidam com o crime. Ele critica a falta de uma polícia nacional de segurança que, entre outras providências, garanta um sistema de segurança aos juizes. Mas também chama a atenção da própria categoria. “O Brasil e a magistratura não se prepararam para enfrentar o avanço do crime organizado. Alguém, por acaso, pensou que os assassinatos poderiam ocorrer?”, pergunta. Ele acha que, nos dois casos, a hipótese de atentados era considerável.

Maierovitch defende, como primeira providência, uma mudança de abordagem em relação ao fenômeno criminal. No seu entendimento, se alguns grupos no Brasil podem ser considerados pré-mafiosos, então é necessário que a magistratura a legislação sejam adequadas para aplicar a lei de acordo com o grau de cada criminoso.

Fenômeno e pool

“É preciso em primeiro lugar estudar o fenômeno para depois adotar as chamadas medidas de contraste”, afirma o juiz. Ele acha que em casos em que se verifique que os réus possuam níveis de organização criminal e periculosidade mais elevadas que os tradicionais enquadráveis em “quadrilha ou bando”, as sentenças deveriam ser de responsabilidade de um pool de juizes e que as assinaturas ficassem guardadas no cofre do tribunal.

Para evitar o cerceamento do direito de defesa, a justiça criaria mecanismos próprios que, na sua opinião, poderiam ser administrados por um conselho. Da mesma forma que se

dá no rodízio de juizes do trabalho, em Parauapebas, a responsabilidade pelas decisões seria diluída, de forma que o criminoso não saiba quem a proferiu.

Maierovitch também sugere a instituição dos depoimentos através de vídeo-conferência como outra forma de distanciar o criminoso de quem vai dar a sentença e, ao mesmo tempo, evitar as inúmeras operações de resgate de presos, que já viraram uma rotina no trajeto entre o presídio e os tribunais onde o réu, muitas vezes, vai prestar um simples depoimento.

Ele acha que um dos grandes equívocos da justiça brasileira é tratar como criminosos comuns chefes de grupos que já pertencem a um estágio mais avançado de organização. Quando a ação da justiça pode alcançar criminosos com potencial e poder de retaliação, ele sugere que o Estado também se prepare para garantir uma proteção pessoal adequada. “Nem a magistratura tem uma administração que pense nessas providências”, afirma.

Maierovitch lembra que o crescimento e o poder de fogo de grupos como o PCC é uma demonstração clara de que o sistema de segurança do país é desarticulado e, em algumas circunstâncias, ridículo. Cita como exemplo o caso de Marcola, o chefão do PCC, que as autoridades prisionais garantiam estar sob rígido controle, trancafiado na prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes, considerada pelo governo paulista como um presídio inviolável.

“Que sistema inviolável é esse, se foi de lá que saiu o plano para matar o juiz Machado? Na verdade é uma imitação mal feita do sistema italiano”, critica. São exemplos como esse que demonstram, segundo ele, que as autoridades brasileiras não sabem diferenciar os níveis de criminosos.

O ex-secretário Anti-Drogas diz que outro equívoco das autoridades brasileiras é não investir num sistema de segurança preventivo, que se antecipe às ações dos criminosos para evitar a surpresas muitas vezes previsíveis, desde que o fenômeno criminal seja devidamente analisado. Maierovitch lamenta que o país não tenha uma política permanente de segurança e, por essa razão, seja obrigado a voltar ao mesmo ponto das discussões sempre que a sociedade é sacudida por uma nova tragédia.

“Força-tarefa é para situações de emergência e não uma providência permanente. As precauções contra o crime organizado devem ser pensadas dentro de um arco de providências que vá da simples necessidade de fiscalizar um prédio do judiciário até numa medida de emergência constitucional”, sugere.

O juiz Jorge Vieira, da Justiça do

Trabalho de Parauapebas, no Pará,

sofre ameaça de morte por enfrentar

o trabalho escravo, que ainda persiste

no interior. A ausência do Estado

na região permitiu o massacre de

Eldorado dos Carajás e uma série

de assassinatos no garimpo de Serra

Pelada.

Walter Maierovitch: “O Brasil tem uma

estrutura criminosa pré-mafiosa. Alguns

grupos têm controle de território

e social e querem mostrar que são

mais fortes que o Estado. Precisam do

poder de intimidação e fazem com

que ele seja difundido. São grupos que

precisam de vítimas anônimas e de

cadáveres excelentes”.Foto: Márcio Lima Foto: Agência Estado/AE

Page 9: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO16 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 17

S é r i e

Experiências extra-oficiais

mostram como é possível

resolver conflitos de maneira

democrática e participativa, com

base no diálogo

Warner Bento Filho

Roberta Cândido de Araújo, moradora da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, tem 24 anos e o dia cheio: pela manhã, assiste às aulas do curso de Psicologia da PUC. De tarde, faz estágio na própria universidade. À noite, trabalha num restaurante na Gávea,

onde faz reservas, recebe os clientes, cuida para que tudo funcione bem. Sai de lá perto das duas da madrugada. Quando chega em casa, quase uma hora depois, o filho de dois anos já dorme.

Ela e o marido viveram juntos por dois anos. Quando engravidou, resolveram casar no cartório. Dez dias depois do nascimento da criança, ele saiu de casa par não voltar. Ela foi morar com a mãe. Dois anos mais tarde, Roberta quis legalizar a separação. Procurou um lugar na própria favela, sobre o qual alguns conhecidos já haviam comentado: o “Balcão de Direitos”, que funciona num prédio como tantos na favela, um sobrado de escadas labirínticas cuja porta da rua dá para um dos milhares de becos que conformam a teia por onde circulam centenas de milhares de pessoas todos os dias.

O Balcão de Direitos é um projeto da organização não-governamental Viva Rio que preenche uma lacuna deixada pelo Estado: resolve, com mediação, na própria favela, as disputas mais comuns, como casos de pensão de alimentos, questões de vizinhança e do mercado informal de trabalho.

No balcão, Roberta ficou sabendo que teria direito a receber pensão do ex-marido. “Aqui me conscientizei. Fizemos o acordo em menos de um mês. No começo, ele cumpriu direitinho, mas agora deixou de pagar e por isso voltei”, conta.

Casos como o de Roberta são comuns nas estatísticas do projeto, que faz, em média, de 200 a 250 atendimentos por mês e é a expressão do fosso existente entre o Poder Judiciário e uma significativa parcela da população: a dos favelados. A Rocinha chegou a contar com um juizado especial, que começou a funcionar em 1996, mas fechou as portas logo depois, em função da baixa demanda. Para quem mora na favela resulta muito complicado contratar advogado, pagar custas, entender a linguagem estranha dos tribunais. Além disso, muitos dos casos emperravam no juizado instalado no morro pela falta de documentos que legitimassem uma demanda. Era uma justiça que não estava preparada para lidar com o morro.

Outras instituições do estado, como as defensorias públicas, oferecem ainda mais dificuldades: estão longe da população. É preciso pagar ônibus, chegar de madrugada, retirar ficha e esperar pelo atendimento. Depois, ninguém na favela acredita que seus problemas possam ser resolvidos assim. Até porque é quase impossível que um oficial de justiça consiga subir o morro para fazer uma intimação. Seja por questões de segurança ou por motivos prosaicos como a dificuldade de encontrar um endereço no sem-fim de becos, ruelas, escadinhas, ladeiras e barracos que se amontoam em cinco ou seis andares.

“O Judiciário é algo muito distante na favela. A Justiça é tão formal que não consegue lidar com os favelados”, constata o coordenador do projeto na Rocinha, o advogado Gustavo Sá. “O morro tem uma cultura própria, um código próprio com que a Justiça não consegue lidar”, diz.

Sem burocracia

O funcionamento do balcão é o menos burocrático possível. A pessoa é atendida na hora. Conta seu problema e ouve esclarecimentos sobre seus direitos, sobre a legislação e as possíveis formas de se resolver o caso. Se opta por resolver o caso com base na mediação, o passo seguinte é citar a pessoa demandada. Em geral, o próprio reclamante se encarrega de entregar um convite para que a outra parte venha para uma negociação. “Muitas vezes, nesta mesma oportunidade as partes já conversam e se entendem lá mesmo”, conta Gustavo. O segundo encontro, agora com as duas partes presentes, se dá no prazo máximo de uma semana. Na maioria das vezes, o caso é resolvido já nesta primeira audiência.

“O Balcão tem se mostrado uma ferramenta de paz muito forte”, comemora Gustavo. “As pessoas incorporam este procedimento de diálogo em suas próprias vidas. Elas aprendem que conversar é bom para resolver os problemas”, completa.

Exemplo disso é o caso dos vizinhos José Edivaldo e dona Augusta. Suas casas têm uma parede comum no alto do morro. Do lado da casa dele, a parede dá para uma sala. Do lado dela, uma área de serviço. Apareceu um vazamento na sala de Edivaldo, que manchou a pintura e estragou o reboco. O vizinho desconfiava que o problema estava do lado da casa de dona Augusta, mas ela dizia ter certeza que lá funcionava tudo em perfeito estado. Edivaldo procurou o balcão. Lá eles conversaram e chegaram a um acordo: chamariam um profissional para dar uma olhada no vazamento. Ele constatou que o problema vinha mesmo do chuveiro e da lavadora de roupas de dona Augusta. Convencida, ela se comprometeu a reparar o dano e arcar com o prejuízo. E lá mesmo no balcão assinaram um documento selando o acordo.

Tentativas de resolução de conflitos de maneira mais democrática, com base no diálogo e no entendimento, passam a ser incorporadas inclusive dentro do próprio poder judiciário. O Tribunal de Justiça de São Paulo iniciou experiência neste sentido em março de 2003, com um projeto piloto de conciliação. Era uma idéia para diminuir um pouco a fila de processos que aguardam distribuição, o que pode demorar três anos ou mais.

O setor de conciliação é formado por magistrados aposentados, membros do Ministério Público, advogados e professores universitários. No total, 54 conciliadores, todos trabalhando voluntariamente, sem remuneração.

Fila

São encaminhados para lá os processos que estão há pelo menos um ano e meio na fila da distribuição. Os advogados das partes são contatados por telefone e convidados a tentarem uma solução negociada. A conciliação trata de casos de direito privado, que se referem a locação, condomínio, pensão de alimentos, investigação de paternidade e cobrança, entre outros.

O desembargador Hamilton Elliot Akel, um dos integrantes deste trabalho no Tribunal, explica que o objetivo não é apenas resolver o acúmulo de processos, mas criar uma cultura. “Acho que estamos conseguindo isso. A resistência que havia no começo vai cedendo. Hoje os advogados se antecipam e pedem que o processo seja levado para a conciliação”, conta o desembargador.

Os conciliadores trabalham, segundo Akel, com grande entusiasmo. “Eles reclamam que têm pouco serviço, mas é porque a nossa estrutura ainda é pequena”, conta. Atualmente, o Tribunal faz, em média, dez sessões de conciliação por dia.

De acordo com o desembargador, em geral os acordos são feitos já na segunda audiência, mas existem casos em que a questão é resolvida ainda na primeira sessão. E com um nível de satisfação inexistente na Justiça formal. “A conciliação, ao contrário da decisão da câmara, não coloca fim ao processo, mas ao litígio. É muito comum que fazendo a conciliação no processo consiga-se o acordo em vários outros casos envolvendo as mesmas partes”, conta o desembargador. “As partes se sentem mais satisfeitas, porque a solução não é imposta, mas é uma saída a que elas chegaram”, diz.

Toda esta estrutura não representou nem um centavo a mais de custo para o Tribunal. Para montá-la, foram utilizados quatro funcionários que já faziam parte do quadro. Os meios para o funcionamento são os mais informais possíveis. Os convites aos advogados são feitos por telefone e as confirmações para as audiências, por fax ou e-mail.

“Fico muito feliz com o funcionamento da conciliação. Os advogados que trabalham voluntariamente lá são todos muito antigos. Um deles me disse que já havia recebido muito da justiça e que esta é uma oportunidade para retribuir. E olha que às vezes eles gastam uma tarde inteira no trabalho. Mas vale a pena. Tenho recebido telefonemas do Brasil inteiro de gente interessada no funcionamento do projeto. É uma experiência que deu certo”, entusiasma-se o desembargador.

Cidadania

Outra experiência de êxito nasceu entre um grupo de professores da faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Começou com a intenção de trabalhar em situações de exclusão social e de risco. O projeto cresceu e se transformou no que foi batizado de “Pólos Reprodutores de Cidadania”. Aqui, os núcleos de conciliação são apenas parte do trabalho, que inclui ainda a formação de cooperativas e outras iniciativas para a geração de renda, regularização fundiária e formação.

O trabalho é desenvolvido interdisciplinarmente, incluindo profissionais e estagiários de psicologia, ação social e jornalismo, além de gente da área do Direito. Os projetos

funcionam como uma via de duas mãos: ao mesmo tempo em que prestam serviço à população, aproveitam a experiência para desenvolver pesquisas acadêmicas. Por exemplo, no estudo da violência. “Ao mesmo tempo em que atuamos, estamos diagnosticando e pesquisando novas formas de relacionamento”, conta uma das responsáveis pelo trabalho, a professora Miraci Barbosa de Sousa Gustin. “Vimos, por exemplo, que para combater a violência é preciso atuar na regularização fundiária nas favelas. Para fazer isso, temos que constituir capital social. Significa que vamos estimular a intercompreensão, trabalhar com solidariedade, ajuda mútua e a reorganização das comunidades. Vamos reivindicar acesso a políticas públicas mais efetivas, saneamento, acesso à saúde e à educação. Sem isso, não vamos minimizar a violência. Ela só diminui com a participação da sociedade”, avalia a professora.

Outra particularidade do trabalho dos núcleos de mediação de conflitos de Belo Horizonte é que o processo de resolução dos conflitos obedece a um ritmo próprio. “Não resolvemos o caso no primeiro encontro. Prolongamos os encontros até que as partes tenham consciência do que é o conflito que elas estão vivendo. Quando elas estão conscientes disso e de quais caminhos elas podem percorrer para resolver o problema, aí tentamos encaminhar para um acordo”, conta a professora.

Referência

O projeto virou referência em Belo Horizonte. A Polícia Militar pediu um treinamento para um grupo de policiais para iniciar um trabalho conjunto, na linha da polícia comunitária. A capacitação foi feita e hoje a PM atua com novos conceitos nas favelas atendidas pelo projeto. A idéia é que a Polícia tenha uma atuação mais preventiva e de parceria com a comunidade. O trabalho começou há seis meses e, segundo a professora Miraci, conseguiu reduzir a criminalidade.

No morro Santa Lúcia, a ação conseguiu algumas façanhas. Uma delas foi por fim ao constante tiroteio entre gangues rivais, numa articulação que incluiu inclusive o padre da comunidade. Integrantes das gangues foram contatados e convidados a conversar com representantes do núcleo de mediação de conflitos. Segundo o advogado Ronaldo Pedron, um dos envolvidos no projeto, todos estavam convencidos de que a permanente troca de tiros não interessava a ninguém. E se comprometeram a suspender as hostilidades. “Antes era uma guerra diária. Agora, há mais de dois meses que não acontece nada”, conta o PM Oswaldo Moreira Tavares, um dos policiais que atuam no morro. “Antigamente, os moradores não conversavam com a gente, com medo de o traficante não gostar. Hoje não tem isso. Conseguimos fazer uma parceria com a comunidade”, diz o colega Celso Silvestre Chagas. Além do trabalho de patrulhamento, a PM comunitária tem ainda uma atuação social no morro. Distribui sopa para as crianças e fez doação de mais de dois mil volumes para a biblioteca do núcleo. “Menino começa a vender droga porque falta quadra de esporte, biblioteca, lazer”, avalia o PM José Mena Chagas.

Os núcleos de mediação de conflitos e outros projetos do grupo de professores recebem patrocínios de empresas estatais, que bancam a remuneração dos estagiários e dos profissionais, além de custos com equipamentos. Agora, alguns juizados ofereceram repassar para o projeto parte do dinheiro arrecadado com multas, para financiar a publicação da experiência. “É o Judiciário financiando o extra-judiciário”, comemora a professora Miraci.

Conversando a gente se entende

Foto

s: W

arne

r Be

nto

Filh

o

Roberta e o filho: solução negociada para receber pensão de alimentos, em acordo que passou ao largo do Poder Judiciário

O emaranhado de barracos da favela da Rocinha, onde vivem centenas de milhares de pessoas: inacessível à formalidade da Justiça oficial

José Edivaldo e dona Augusta: acordo no papel para resolver problema de vazamento.

Page 10: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO18 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 19

E n t r e v i s t a

“O Judiciário vai sofrer com os transgênicos”Washington Novaes é bacharel em Direito formado pela Universidade de São

Paulo em 1957. Mas foi jornalista a vida inteira. Com 46 anos de profissão, é uma espécie de consciência ecológica do País. Não faz parte da chamada comunidade científica, mas foi chamado pela ONU para ser consultor na elaboração de documentos para a Convenção da Diversidade Biológica e para sistematizar a Agenda 21 Brasileira – Bases para a Discussão.

Como jornalista, passou pelas principais publicações brasileiras: Folha, Estadão, Jornal do Brasil, Última Hora, Correio da Manhã, Veja e Visão. Foi editor-chefe do Globo Repórter e editor do Jornal Nacional, da TV Globo, e comentarista da Bandeirantes e da Manchete, além do programa Globo Ecologia.

Produtor independente de televisão, dirigiu as séries “Xingu”, “Kuarup” e “Pantanal”. Ganhou vários prêmios internacionais e nacionais de jornalismo e televisão em festivais mundiais em Nova York, Havana, Seul e Portugal, o Prêmio de Jornalismo Rei de Espanha e o Prêmio Esso Especial de Meio Ambiente, entre outros.

Tem vários livros publicados, entre eles “Xingu” (Brasiliense), “A quem pertence a informação” (Vozes), “A Terra pede água” (Sematec/BSB) e “A Década do Impasse” (Editora Estação Liberdade).

Atualmente é colunista dos jornais “O Estado de S. Paulo” e “O Popular” (de Goiânia, onde vive). É consultor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, supervisor e comentarista do programa “Repórter Eco” e do “Biodiversidade Debate”.

Nesta entrevista, Novaes fala do problema da água, da exploração da Amazônia, da questão dos transgênicos e da relação do Judiciário com estes assuntos.

Warner Bento Filho

Jornal do Magistrado - Na sua opinião, a eventual liberação da soja transgênica traria vantagens para o País?

Washington Novaes - Comecei a escrever sobre o assunto em 1995 ou 1996, quando a Monsanto (fabricante da soja transgênica Roundup Ready) começou com os pedidos de registros e patentes. Neste sete ou oito anos que se passaram estes estudos podiam ter sido feitos. E não foram feitos, porque há uma oposição da própria empresa.

Tentou-se colocar a discussão como se os que questionam isso fossem fundamentalistas, ideológicos, contra a ciência. Não é isso. A primeira questão é: tem segurança em relação aos efeitos ambientais e aos efeitos na saúde? Não tem. Não tem estudos de impacto ambiental e nem estudos epidemiológicos que dêem esta segurança. Então, trata-se de fazer estes estudos para ter segurança.

E é gente muito importante na área da ciência que tem esta posição. Por exemplo, a professora Glaci Zancan, que foi presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), pediu moratória para que houvesse tempo de fazer os estudos. O professor Enio Candotti, atual presidente da SBPC, recomendou que se tenha cautela. O professor Silvio Valle, do Departamento de Biossegurança da fundação Oswaldo Cruz, tem defendido esta posição. O professor Rubens Nodari, da Universidade de Santa Catarina, que hoje está no ministério do Meio Ambiente (na Secretaria de Biodiversidade e Florestas), também.

E há, ainda, questionamentos de ordem legal, não é?

Sim, vários. Primeiro: o artigo 225 da Constituição diz que tem que fazer estudo de impacto ambiental sempre que houver dúvida sobre o potencial danoso de qualquer produto ou ação. Segundo: o Brasil é signatário de convenções internacionais que contém o princípio da precaução, entre elas a Convenção da Biodiversidade (de 1992), que está homologada pelo Congresso Nacional e, portanto, tem força de lei. Terceiro: tem resolução do Conama, de 2002, que determina a realização de estudo de impacto ambiental específico para o caso dos transgênicos. Quarto: está em vigor sentença judicial de primeira instância da Justiça Federal exigindo que se façam os estudos de impacto ambiental e que se criem normas para rotular o produto. Quinto: atropelou-se também o código penal, porque são

Washington Novaes

Eles estão tentando obter a autorização agora.

Discute-se se os transgênicos fazem mal à saúde. Mas o que já se sabe há muito tempo é que os agrotóxicos sim fazem mal. Agora, para justificar o uso dos transgênicos, aceitaria-se envenenar a população.

O Roundup (herbicida fabricado pela Monsanto e ao qual a soja transgênica é resistente) já é a terceira maior causa de intoxicação de agricultores no Brasil e no exterior. Mas não há um só estudo epidemiológico feito no mundo, porque isso exige tempo, exige confronto de populações grandes. Há um cientista americano que diz que a ausência de evidências de danos para a saúde não quer dizer evidência de ausências. E ele diz ainda que é preciso que alguém explique os 90 milhões de casos de alergia que o sistema de saúde dos estados unidos recebe por ano.

São muitas as questões. E eu repito: acho que o Judiciário vai sofrer muito.

Como você vê o problema da Amazônia?

Faz 500 anos que ela é tratada de acordo com visões de fora e interesses de fora. Não são as questões amazônicas que estão em pauta. São políticas ou ausência de políticas que levam a satisfazer a outros interesses. Nas últimas décadas já houve políticas de incentivos fiscais para desmatamento e para reflorestamento na Amazônia. Já houve políticas de incentivo fiscal para geração de alumínio e de ferro gusa para exportação. O Brasil subsidia a exportação de alumínio. Alumínio e ferro gusa são produtos que países industrializados não querem mais produzir por causa dos seus custos energéticos. A energia representa 45% do custo da produção de alumínio. Além disso, há o custo social. O Brasil não só absorve todos estes custos sem compensação como ainda subsidia. Tucuruí já representou mais de dois bilhões de dólares em subsídios para a exportação de alumínio.

O preço dos produtos primários ou semi-elaborados exportados pelo Brasil tem queda constante. A soja, por exemplo, tem hoje preço inferior ao de 1988. O preço da carne, durante a década de 90, caiu 17 por cento. O Brasil em 1964 tinha um por cento do comércio internacional. Em 1985, chegou a quase um e meio por cento. Hoje tem 0,8 por cento, com todos os subsídios, todos os custos financeiros, aumentando a sua dívida externa, pagando juros. O Brasil tinha que mudar essa postura.

Há vários relatórios internacionais que mostram que a grande questão hoje é a insustentabilidade dos padrões de produção e consumo no mundo. Nós já estamos consumindo mais de 20 por cento além da capacidade de reposição da biosfera. E isso aumenta 2,5 por cento ao ano.

Se é assim, um país como o Brasil, que tem a maior biodiversidade do mundo, com disponibilidade dos recursos hídricos, com insolação o ano inteiro, que não tem fenômenos climáticos muito adversos, o Brasil devia fazer disso o centro de sua estratégia. É isso que vai determinar o rumo do mundo. Mas isso não está em consideração. O que está em consideração é avançar com a soja pela Amazônia. Planejam-se 80 mil quilômetros quadrados a mais de soja na Amazônia. Todos os estudos mostram que mais de 83 por cento do solo da Amazônia são inadequados para a cultura de grãos. E o que pode servir é a faixa que já está desmatada. No entanto, está se planejando um avanço para Rondônia, para noroeste do Mato Grosso, Acre, ao longo da hidrovia Araguaia-Tocantins, ao longo da BR 163, ao longo da hidrovia do Tapajós, em Santarém.

Porque isso é feito sempre pela ótica do capital financeiro. Pega-se um lote de terra e faz-se a conta: quanto custa comprar ou arrendar e - ainda que vá durar quatro ou cinco anos, que é o que acontece – compara-se quanto é preciso investir neste período e quanto de receita pode-se gerar. É a lógica do capital financeiro. O que fica para trás depois não tem importância. Isso é uma insanidade.

Você acha que o resultado desta conta é o empobrecimento do País?

É um empobrecimento, você perde o que tem de melhor. Enquanto isso, não se aplica nada em ciência e tecnologia em relação à biodiversidade amazônica. O Instituto de Pesquisa da Amazônia, o Inpa, está morrendo a mingua. Não tem dinheiro para pagar conta de energia e papel para impressora.

Por outro lado, a Amazônia tem imensas possibilidades. Vamos pegar o caso da pupunha, uma variedade nativa de palmito que não era utilizável por causa dos espinhos. Ela

tem muito espinho. O Inpa domesticou uma espécie de pupunha e ela hoje responde por dez por cento da exportação de palmito do País.

Pegue o açaí. O açaí hoje é um mercado enorme. Mas não há políticas voltadas para as especificidades da Amazônia e para as necessidades da população. Enquanto isso, faz-se o que? A Amazônia é o substitutivo para a ausência de políticas de renda no País. Então o Nordeste migra para a Amazônia, para fazer garimpo, para liquidar com a floresta. Dá-se incentivo fiscal, desmata-se para criar gado e exportar carne, faz-se hidrelétrica para exportar alumínio. Está na hora de mudar um pouco. Isso tudo é muito velho, muito anacrônico, muito antigo.

Repete-se, 500 anos depois, o que a Europa fez com o litoral do Brasil.

Continua a mesma coisa. Só que agora não precisa vir aqui, não precisa vir navio pirata. Você exporta.

Os agricultores do Sul do País migram para a Amazônia e repetem lá o que faziam no sul: plantam soja, criam gado.

A terra é barata. Eles já estão chegando ao Piauí, ao Maranhão, a Rondônia, noroeste do Mato Grosso, todos estes lugares.

Você acha que a Amazônia resiste a esta pressão?

A Amazônia é frágil, ao contrário do que se pensa. O processo de regeneração e de manutenção da floresta depende de ela continuar de pé. O solo amazônico é pobre em nutrientes. A floresta alimenta-se da camada superior do solo, permanentemente fertilizada pelas próprias folhas, pelos próprios galhos. Então quando se retira a vegetação, os riscos são graves.

Existe estudo mostrando que a Amazônia vai virar savana em 40 anos. Estudo do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostra que o aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera pode ter conseqüências terríveis na Amazônia. Cerca de dois terços dos gases responsáveis pelo efeito estufa no Brasil são provocados pelas queimadas na região.

sementes contrabandeadas, sementes ilegais. Portanto, a legalização da lavoura de soja transgênica, do ponto de vista legal, foi um

arraso. Passou-se por cima de tudo, da Constituição ao Código Penal, inclusive do Código de Defesa do Consumidor.

E com o projeto de biossegurança que foi para o Congresso a confusão pode aumentar mais ainda. Primeiro porque ninguém sabe o que vai acontecer lá e já há questões que estão ficando bastante complicadas do ponto de vista jurídico. Por exemplo, os conflitos federativos. Estados e municípios que não querem os transgênicos. Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso não querem. Aqui em Goiás tem projeto de lei na Assembléia Legislativa proibindo e há vários municípios que já votaram contra, como Belo Horizonte, Juiz de Fora, Ribeirão preto.

Este assunto está se transformando numa imensa confusão científica, política, jurídica, econômica, estratégica e nós estamos ficando com todos os prejuízos e com nenhuma das vantagens.

Por outro lado, há outras questões delicadas envolvidas nessa história. Uma é a padronização de alimentos. Perder a biodiversidade alimentar tem conseqüências, tem um preço. A outra é que estamos caminhando para ter um cartel que controla os alimentos no mundo. E ainda há a questão do patenteamento da vida.

A questão dos transgênicos foi muito mal discutida no Brasil, os veículos de comunicação a trataram muito mal. A ignoraram durante muito tempo e depois, quando entraram no assunto, foi com uma posição maniqueísta, tentando desqualificar as pessoas que queriam discutir.

Acho que o Judiciário vai sofrer muito com este assunto, porque o imbróglio jurídico já é enorme e será muito maior ainda. Imagine quanta coisa vai surgir desse conflito federativo, desse conflito legislativo, do conflito entre legislação e sentenças judiciais.

O Congresso discute inclusive mudança na Lei dos Agrotóxicos para permitir que a soja transgênica tenha resíduo de herbicida acima do permitido.

E, além disso, não há autorização para usar este herbicida como pós-emergente, ou seja, depois que a planta nasce. E esta é exatamente a grande vantagem da soja transgênica.

Foto

s: W

arne

r Be

nto

Filh

o

Page 11: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO20 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 21

O intrusoE n t r e v i s t a Washington Novaes

O Brasil precisa ter mais juízo com a Amazônia. É possível ter atividades geradoras de renda para a população que não degradem a floresta. Os sistemas agro-florestais, por exemplo, ou os planos de manejo florestais certificados, que permitem a exploração de madeira sem prejudicar a floresta.

Mas a omissão do poder público é gigantesca. Sabe-se que 80 por cento da madeira que sai da Amazônia é ilegal. O Ibama não tem estrutura para cuidar da floresta. Mas e se em vez de dar os dois bilhões de dólares para subsidiar exportação de alumínio se usasse esse dinheiro para a população amazônida guardar e fiscalizar a região?

As políticas inadequadas para a Amazônia também ficaram evidentes em estudo do ex-deputado Gilney Viana. Ele mostrou que mais de 50% dos desmatamentos na Amazônia se devem aos projetos de reforma agrária, porque joga o sujeito na terra sem financiamento, sem tecnologia, sem nada. A primeira coisa que ele faz é chamar a madeireira para levar a madeira que haja na área. Converte tudo em áreas de plantio ou de pasto. Com o tempo, acaba vendendo esse lote e procurando outra área da reforma agrária.

E ainda tem o problema da legislação. Até hoje, uma área que tem a vegetação nativa preservada é considerada improdutiva. E pode, portanto, ser desapropriada para fins de reforma agrária.

A água é hoje talvez o maior problema ambiental no mundo. Os recursos hídricos estão sendo degradados. Por outro lado, nota-se um movimento de apropriação destes recursos, com a privatização dos serviços de fornecimento de água, por exemplo. Como você avalia esta questão?

Há estudo da Agência Nacional de Águas mostrando que todas as bacias hidrográficas da Bahia até o Rio Grande do Sul estão em situação crítica ou muito crítica. Ao mesmo tempo, não se tem legislação eficiente, nem políticas apropriadas. A agricultura é responsável por 80 por cento do consumo de água no Brasil. E o desperdício é gigantesco. O pivô central de irrigação desperdiça mais de 50% da água que passa por ele. A vazão de um pivô central é de aproximadamente um litro de água por segundo por hectare irrigado. Um pivô de 100 hectares consome tanto quanto uma cidade de 30 mil habitantes. Além do mais, esta prática implica em efeitos muito nocivos ao meio ambiente. Por exemplo, contribui poderosamente para agravar o problema de erosão de solo. A erosão nas lavouras de grãos é de dez quilos de solo por quilo produzido. Segundo estudo do Ministério da Agricultura, a erosão causada pelas lavouras no País é responsável pela perda de um bilhão de toneladas de solo por ano. E esse solo vai parar nas bacias hidrográficas, causando assoreamento e poluindo a água com resíduos de agrotóxicos e fertilizantes químicos.

De outro lado, há um gigantesco desperdício das redes de abastecimento. Calcula-se que 50 por cento da água tratada se perde em vazamentos, furtos e outros problemas. E não se tem linha de financiamento para manutenção das redes de abastecimento. O País poderia gastar de cinco a sete vezes menos do que gasta com o abastecimento de água se em lugar de construir novas captações fizesse a correta manutenção das redes existentes.

Temos, ainda, o problema da coleta de esgoto. Hoje se coleta, em todo o Brasil, apenas 50 por cento do esgoto produzido. Deste total, apenas 10 por cento são tratados. Ou seja que cerca de 90 por cento do esgoto é descarregado na natureza, nos rios, nos córregos sem qualquer tratamento. E sabe-se que o esgoto é poderosa causa de degradação das bacias hidrográficas e uma das principais causas de internações e consultas na rede pública de saúde. Gasta-se menos implantando redes de esgoto do que tratando doenças decorrentes da falta de saneamento básico. Cerca de 50% das internações hospitalares pediátricas são causadas pelo inadequado tratamento da água. Além disso, 80 por cento das consultas pediátricas também estão relacionadas a problemas com a água.

Mas não se consegue avançar nesta área por vários motivos. Há uma discussão de titularidade das concessões dos serviços de abastecimento, entre estados e municípios. A discussão ganha importância porque a titularidade representaria muita renda na privatização.

Depois, se privatizar, quem vai construir redes de esgotos para a parcela mais pobre da população, que não pode pagar este custo? O governo vai subsidiar a empresa privada? Essa questão certamente vai parar no Judiciário.

E ainda há o fato de que o ajuste fiscal acertado com o FMI não permite que haja financiamento para prefeituras ou estados para esta área, porque estes empreendimentos são considerados despesas e não investimentos, o que aumentaria a dívida pública e prejudicaria o ajuste.

Como você vê a atuação da Justiça em casos relacionados ao meio ambiente?

Tenho a impressão de que a Justiça ainda enfrenta muitos problemas nesta área. Um é de ordem geral, não é apenas a questão do meio ambiente, mas do acúmulo de trabalho. A justiça tem um acúmulo de processos, o que provoca lentidão. O segundo problema é de outra natureza. É o fato de que como as chamadas questões ambientais são relativamente novas, uma grande parte dos juízes não teve formação específica nesta área. E estas questões são sempre muito complicadas. Eu até tenho uma certa implicância de chamá-las de ambientais, porque dá a impressão de que é uma coisa isolada, setorializada, quando na verdade estas questões são das mais abrangentes.

Em geral, quando se mexe numa questão dita ambiental é muito difícil não se chegar ao econômico, ao político, ao social, ao cultural. Tudo está envolvido, na medida em que todas as ações humanas têm uma repercussão no concreto, no solo, no ar, na água, entre os seres vivos, entre os seres humanos. Essa dificuldade, por sua vez, tem outra questão relacionada a ela, que é a falta de meios para analisar isso tudo. Falta de informações, de estudo, de perícias capazes de habilitar um juiz a ter todo o quadro diante dele. Isso tudo resulta em muita dificuldade na justiça. Mas esta dificuldade não está só lá. Está no jornalismo, em todos os lugares.

Então na sua avaliação faltam preparação, estrutura e conhecimento?

Faltam. Em geral, o que acontece é que ou os estudos levam muito tempo ou então eles acabam não sendo feitos e não se tem o conhecimento mínimo que se precisaria para adotá-los. E mesmo no Executivo não é diferente. Está aí a ministra do meio ambiente (Marina Silva) a falar em necessidade de transversalidade, de levar esta questão para todas as áreas de governo, para que isso seja uma decisão coletiva de governo e não uma decisão isolada do ministério do meio ambiente. E ainda assim ela está apanhando muito, está sofrendo muito e tem tido várias derrotas.

S e s s ã o E s p e c i a l O júri

História de suspense e temática atual

Não caia no erro de pensar que “O Júri” (Runaway Jury, EUA, 2003) é simplesmente mais um “filme de tribunal”. A maioria das ações se passa dentro de uma sala de sessões de tribunal, é verdade, mas “O Júri” tem mais que isso. Tem uma boa história

de suspense a ser contada e uma temática extremamente atual – especialmente para nós que, provavelmente, votaremos em referendo um “estatuto de desarmamento”.

A ação se inicia quando uma viúva de Nova Orleans resolve processar civilmente, não o assassino de seu marido – mesmo porque este se suicida logo após o crime – mas contra a poderosa corporação de fabricantes de armas. Daí já é possível sentir se tratar de um bom argumento que, no caso, é conduzido por um roteiro criativo e cheio de reviravoltas, envolvendo personagens fortes representados por atuações convincentes. São várias vidas e milhões de dólares em jogo. As cenas rápidas, como em um quebra-cabeças, exigem redobrada atenção do público que, ao se envolver com a história, vai, aos poucos, juntando as peças.

O elenco respeitável, para dizer o mínimo, conta com grande atuação de John Cusack, no papel de um misterioso jurado que tenta, de maneira sutil, assumir a condução dos demais. Dustin Hoffman interpreta um advogado idealista (e a pedido do próprio ator, também um) ativista pró-desarmamento. Gene Hackman – atuando pela primeira vez ao lado de seu amigo Dustin – faz não o advogado oponente, como se poderia supor, mas um tão experiente quanto inescrupuloso “consultor de júri”. Vale abrir um parêntesis: nos Estados Unidos existem profissionais formalmente estabelecidos, especializados em assessorar os advogados, com seus conhecimentos de psicologia, no momento da escolha

dos jurados. O círculo de protagonistas se completa com Rachel Weisz, na pele da misteriosa “vendedora de veredito”.

O filme, a propósito, é baseado em best-seller do advogado e autor John Grisham – especialista em histórias permeadas pela temática jurídica – que já renderam bons filmes como “O Cliente”, “A Firma”, “Tempo de Matar” e “Dossiê Pelicano”.

A direção de Gary Fleder – que alterna sua carreira entre o cinema e a televisão – com uma dose considerável de suspense, a cada cena e a cada virada do roteiro, prende a atenção do espectador do começo ao fim do filme. O diretor já havia mostrado seus dons com histórias tensas em “Coisas para Fazer em Denver Quando Você Está Morto” (1995) e “Refém do Silêncio” (2001).

“O Júri” utiliza-se da ficção para questionar as grandes manipulações que antecedem uma decisão judicial e o verdadeiro abismo cavado pela prática do dia-a-dia dos tribunais entre a representatividade formal e a justiça real, democrática e equânime que se deveria esperar. Neste contexto a frase do personagem de Hackman – “um julgamento é algo importante demais para ser deixado a cargo de um júri” – assume contornos de uma ferina sentença condenatória do sistema judicial norte-americano.

Para aqueles que acreditam que o cinema não se resume ao grande negócio da diversão e da arte, mas é, também, uma forma de suscitar temas importantes e questionar sutilmente (e, às vezes, nem tanto) valores, ética e posturas da sociedade, têm em “O Júri” um prato cheio a ser devorado, servido nos cinemas e, em breve, em DVD. Bom proveito.

Davi Brasil Simões Pires

Page 12: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO22 DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 23

A r t e s

A revoltaO artista plástico

Frans Krajcberg, polonês

naturalizado brasileiro, acaba

de ganhar um museu em Paris.

Perseguido pelo Nazismo,

Krajcberg perdeu a família

no Holocausto. No Brasil,

encontrou uma nova pátria: a

Natureza.

Graça Ramos*

Um homem, o dilaceramento, a natureza e a arte. Palavras que resumem a trajetória de Frans Krajcberg, primeiro artista brasileiro a ganhar um espaço cultural permanente em Paris. Dia 11 de dezembro foi inaugurado o Museu Frans Krajcberg, no coração

da charmosa capital. “Quero tornar minha obra acessível ao público”, disse o artista quando decidiu fundar o instituto que leva seu nome e é responsável, junto com a prefeitura da cidade, pela criação do novo museu.

Homem que fez da natureza brasileira objeto de devoção e matéria da arte, Krajcberg é autor de uma obra dramática, poesia feita com troncos calcinados, galhos tortos, pedras e terras dissimiladas. Obra-denúncia, a apontar que os ferimentos provocados ao meio ambiente são retratos da ignorância e avidez do humano, sua produção é, também, vigoroso exercício estético a produzir comoção e estarrecimento.

Segundo Ricardo Ribenboim, presidente do Instituto Frans Krajcberg de Arte e Meio Ambiente, criado há dois anos no Brasil, o museu francês abrigará 60 obras doadas pelo artista. A base para o novo espaço de exposição é o ateliê que Krajcberg mantém há anos na cidade, acrescido de novas áreas, totalizando 350 metros quadrados. O local de exposições estará vinculado ao Museu Ville de Paris.

A criação do centro na França será o segundo evento grandioso que o artista vivenciou em 2003. Em outubro, o Jardim Botânico de Curitiba começou a abrigar o Espaço Frans Krajcberg, que aloja 114 obras doadas pelo escultor. Elas estão espalhadas em 1,3 mil metros da galeria situada atrás da estufa.

Ali foram construídos também uma sala multimídia e um auditório com 60 lugares para realização de palestras, seminários e programas educativos vinculados à arte e à ecologia. Foi uma exigência de Krajcberg como contrapartida à doação das obras, a maior parte esculturas que poderão ser usufruídas de maneira permanente pelos visitantes do Jardim Botânico.

Dilaceramento

Judeu polonês, Krajcberg chegou ao Brasil em 1948, após lutar na Segunda Guerra Mundial, ter a família dizimada no Holocausto e a casa dos ancestrais queimada. Eterno deslocado, estrangeiro em toda parte, aqui descobriu nova pátria: a natureza. Nela e com ela transformou-se em um dos mais expressivos nomes da arte brasileira a partir da década de 1960. “Nasci outra vez neste país, nesta terra”, costuma explicar aos que lhe entrevistam.

Em uma das convalescenças causadas pelos ferimentos de guerra, começou a pintar, em Minsk, na Bielorússia. Quando estava integrado ao exército russo, foi enviado para a Escola de Belas Artes de Vitebsk, mas, como não havia vagas, se mudou para Leningrado, onde estudou Engenharia Hidráulica e Belas Artes. Finda a guerra, partiu para Stuttgart. Tornou-se aluno de Willy Baumeister, ex-professor da Bauhaus. Aconselhado pelo mestre a mudar-se para Paris, ali permaneceu pouco tempo até decidir comprar uma passagem de navio para um país bem distante, do qual nada conhecia.

Cinqüenta e cinco anos separam a festa da inauguração em Paris dos angustiados dias de desembarque no Rio de Janeiro. Tortuoso foi o caminho de descobertas, construção e rebeldia. Percurso que incluiu várias viagens-expedições ao Mato Grosso e ao Amazonas e até o lançamento, em 1978, do Manifesto do Rio Negro do Naturalismo Integral, elaborado por ele, Pierre Restany e Seep Baendereck. Um grito de resistência à concentração de poder, seja político, seja artístico. Texto em defesa da consciência planetária expressa na arte.

Indagado há alguns anos sobre quando começou seu estado de constante revolta – uma de suas mais belas exposições recebeu este nome em 1995 – Krajcberg não hesitou. Relembrou que, em Mato Grosso, viu seis índios pendurados em uma árvore porque não queriam sair das terras deles. “Aí começou a minha revolta” – disse.

Nos primeiros tempos de Brasil, sentia-se deprimido, mais do que revoltado. Tudo que pintava era cinza, triste e desvitalizado. Em São Paulo, trabalhou na confecção de azulejos encomendados a Cândido Portinari. Em 1951, contratado como funcionário do Museu de Arte Moderna de São Paulo, participou da montagem da I Bienal de São Paulo e expôs duas pinturas. No ano seguinte, com a ajuda de Lasar Segall, foi trabalhar como engenheiro-desenhista em uma fábrica de papel no estado que hoje lhe rende homenagens: Paraná.

Novamente sentiu o horror. Não suportou ver as árvores serem queimadas pela indústria. Dois anos depois, se demitiu, resolveu morar na floresta e pintar. Caminhar pelos bosques, sentir os diferentes estados da natureza o fizeram redescobrir a vida, as pinturas começaram a ganhar cor.

Quando voltou a morar no Rio de Janeiro, trazia na bagagem idéias diferentes sobre a arte. Pintou uma série de samambaias, expostas na Bienal de São Paulo de 1957. Renderam-lhe o prêmio de melhor pintor. Começou a ser reconhecido no cenário cultural e artístico do país. Em 1964 recebeu o prêmio Cidade de Veneza na bienal italiana. Seus relevos feitos com pedras ganhavam a atenção do mundo.

Outra natureza

Nos anos 1960 esteve em Ibiza, na Espanha. De volta ao Brasil, descobriu as montanhas e terras coloridas de Minas Gerais. A alegria da descoberta mudou o rumo do trabalho, que passou a incorporar os pigmentos naturais das Alterosas. A partir de 1972, optou por morar em Nova Viçosa, no Sul da Bahia, onde ergueu a famosa casa em cima de um pequizeiro de sete metros.

Ali, em abril de 2004, quando completar 83 anos, será inaugurado o Museu Ecológico Frans Krajcberg, outra das metas do Instituto. O futuro espaço abrigará a maior parte da obra tridimensional do artista, uma produção que teima em problematizar questões fundamentais, mas pouco debatidas, presentes na identidade dos habitantes da terra dos brasis.

Intricadas são as relações dos brasileiros com a natureza, o meio físico que os acolhe. Ufanam-se da mesma, mas a destroçam. Pouco protegem o vasto manancial de recursos naturais ainda existente. Basta olhar o estado dos materiais recolhidos por Krajcberg para concretizar a violência impingida ao meio físico.

É vigorosa a intensidade com que o artista denuncia – pela estética – esse paradoxo nacional. Ele brada no discurso, mas principalmente nas esculturas, pinturas e gravuras contra a devastação do patrimônio natural. Ao recolher restos da natureza depredada – pelo fogo, pela ação das motoserras ou a fúria das retroescavadeiras –, retrabalha tais dejetos e a eles agrega maior carga de dramaticidade.

São resíduos, não deixam nunca de sê-lo, pois permanecem com o significado original, mas adquirem outra substância: transfiguram-se em poderosa arma, arte a denunciar o homem. Do terror e banalização da destruição à beleza da recriação. O belo a provocar indagações, a deslocar o centramento do humano em direção às diferentes naturezas que o envolvem.

O desvio do olhar provocado pelas criações de Kracjberg é drástico. No lugar do corpo, foca-se a paisagem. Mas, junto com o puro deleite, o espectador sente a impossibilidade de ser complacente diante dessas imagens desarticuladoras dos efeitos da ação dos seus pares. No livro Revolta, patrocinado pela Petrobras, o crítico Frederico Morais resumiu a questão, ao dizer: “sua obra é mais do que um projeto estético, é uma ética”.

Como muitos dos herdeiros da tragédia do Holocausto que insistem em relembrar este momento histórico, Krajcberg, quando fala da arte que desenvolve e do tratamento dado à natureza, regressa de maneira obsessiva à palavra revolta. Como se fosse um refrão a zunir nos ouvidos daqueles menos preocupados ou alienados: “meu trabalho é expressão da minha revolta”, insistiu em dizer quando completou 80 anos. Trabalho? Sim, Krajcberg raramente refere-se às suas criações como obras de arte. Vê no que faz o resultado de áspero labor, intenso e trágico embate.

Talvez seja esta diferença de visão que faça com que se situe em um pólo diferente daqueles que louvam a paisagem brasileira. Ele realça a expressividade da natureza, mas pelo impacto da dilapidação. Foi o filólogo Antonio Houaiss quem melhor definiu o resultado provocado por tais obras. Segundo consta em livro sobre o escultor, lançado no começo dos anos 1990, pelas editoras Index e Libris, Houaiss comentou:

“Em qualquer lugar que ele vá, ele é o artista ecológico. E esta não foi a proposta dele. Ele coincidiu, nesse seu amor, com essa necessidade que o homem está sentindo de salvar a natureza”.Ainda segundo o filólogo: “neste momento, ele passa a ser, além de um mensageiro da beleza, um mensageiro de propostas para a salvação da espécie”.

Quando era apenas pintor e ainda estava inserido nas tradições artísticas européias, a paisagem apresentava-se em suas obras como figuração à maneira expressionista. A mudança para o Brasil ofereceu-lhe outra perspectiva, no sentido literal e artístico. Passou a utilizar a própria materialidade da natureza no fazer da arte.

Desde então um todo orgânico, como a seiva que antes penetrava os troncos e galhos das árvores por ele recolhidas, percorre sua vasta produção. Tão vasta que o Instituto se prepara para começar a organizar o catálogo raisonné – que, segundo Ribenboim deverá ser basicamente virtual – e estima que serão registrados cerca de 2 mil trabalhos.

Sem herdeiros, preocupado com a preservação e divulgação desse acervo, Krajcberg, há uma década, decidiu empenhar-se para facilitar o acesso do público a sua obra. Somente quando completou 80 anos, junto com vários amigos, conseguiu criar o Instituto Frans Krajcberg de Arte e Meio Ambiente, dedicado a implantar a política de preservação aliada às discussões sobre meio ambiente, ecologia e natureza. Poderia simplesmente ter colocado a venda, em lotes, para instituições diferenciadas, o resultado de anos de esforço. Preferiu devolvê-los à sociedade, em radical gesto de doação.

* Graça Ramos é jornalista e doutora em História da Arte pela Universidade de Barcelona.

Divulgação

DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO DEZEMBRO DE 2003 A JANEIRO DE 2004JORNAL DO MAGISTRADO 2322

Page 13: J O R N A L D O MAGISTRADO€¦ · acesa a chama da revolta contra as injustiças. Portanto, colega, receba esta edição do Jornal do Magistrado como um presente de final de ano,