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Jabutis na poltrona Ariádiny Rinaldi

Jabutis na poltrona

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"Jabutis na poltrona" traz perfis de quatro escritores paranaenses contemplados com o prêmio Jabuti de Literatura, na categoria romance: Domingos Pellegrini, José Castello, Oscar Nakasato e Cristovão Tezza. O livro é resultado do trabalho de conclusão da autora para o curso de Jornalismo do Unicesumar.

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© 2013, Ariádiny Rinaldi--------------------------------------------------------------------------

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Isabela MouraILUSTRAÇÕES: Sérgio Augusto

DIREÇÃO DO PROJETO: Rosane Verdegay BarrosIMPRESSÃO E ACABAMENTO: Gráfi ca Canadá

---------------------------------------------------------------------------Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rinaldi, Ariádiny, 1992Jabutis na poltrona/ Ariádiny Rinaldi – Maringá, 3012

Bibliografi a

1.Prêmio Jabuti de literatura. 2. Escritores do Paraná. 3. Perfi s jor-nalísticos. I. Título

Gráfi ca CanadáRua José Bulla, 1075 - Jd Internorte

Maringá – PR – CEP 87045-280Telefone: (44) 3025-3535

Reprodução proibida Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998

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Agradeço a Rosane Verdegay Barros e Jary Mércio Almeida Pádua, que me ensinaram a reescrever

a Clóvis Augusto Melo, que apostou em mime a Ademir Demarchi pela atenciosa revisão e pelas

palavras generosas.Minha gratidão a Alexandre Gaioto, que me mostrou o que

é literatura e me amparou na escrita deste livro.

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Para Irene e Andrielly

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“Só o talento não pode fazer um escritor. Por trás do livro deve haver um homem.”

Ralph Waldo Emerson

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ESTÁ ABERTA A TEMPORADA DE CAÇA AOS JABUTIS

Ariádiny faz neste livro um delicioso enfrentamento com quatro escritores escolhidos por dois motivos: por serem escritores atuantes no Paraná e por terem ganho o Prêmio Jabuti na categoria romance. Diante do prazer que ela nos dá com esses diálogos, logo nos pegamos nos perguntando: por que apenas quatro? A resposta, claro, está naquele critério dos que ganharam Jabuti com romance, ou seja, apenas quatro...

É de se lamentar, mas, quanto a isso, não podemos esquecer uma curiosa observação de Paulo Leminski: num debate, no Nicolau n.o 4, ele dizia que “o Paraná é Estado recente. Estamos fundando uma tradição, um passado, um repertório coletivo”, sendo ele mesmo um dos que se empenharam em atingir uma alta consciência crítica nesse cenário. Daí que nesses quatro ótimos escritores temos uma interessante síntese da rica literatura que tem sido feita no Estado e que tem conseguido marca própria e destaque que a tem levado aos prêmios.

Quanto à autora, seu interesse maior está em ouvir os escritores, conhecer o espaço onde vivem, fl agrar suas idiossincrasias, manias, humores. Isso depois de ter percorrido o caminho de leitora admirada que, preparada como jornalista, agora vai à cata do que está fora dos livros. E é assim que ela desperta nossa curiosidade e vai nos levando, identifi cados com ela, ao habitat desses escritores.

Domingos Pellegrini é ouvido e observado em detalhes em sua chácara na região de Londrina, descrita a ponto de sabermos que ela já é bem urbana e o escritor, nessa descrição, deixando de ser esse que conhecemos como autor, se transforma num morador que incomoda muita gente...

José Castello é exposto em sua intimidade e em suas fantasias, como a de querer alcançar um diálogo impossível com o pai e o desejo de ser ele mesmo um pai que, sendo gay, adotasse alguma criança, tudo resultando em literatura já que a vida real é sempre bem mais complicada.

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Oscar Nakasato é visto na casa de sua mãe, no bar e num debate e o leitor vem a saber, através da entrevista, que esse notável autor de descendência nipônica, tema que lhe rendeu o prêmio, um dia não quis ser japonês...

Cristovão Tezza, contrariando sua fama de acessível e agradável aparece como um intratável e inacessível chato que é perseguido até ceder e se tornar ele mesmo ao voltar ao chão ao permitir um diálogo que resulta num retrato em que o leitor o verá de forma inabitual.

Está aí uma das virtudes dessa jornalista que é Ariádiny, de buscar expor as contradições ou o que mais incomoda nos autores, enfrentando-os com habilidade até chegar ao ponto, como se pega um peixe, para fazê-los falar do que mais os incomoda ou os marca para além de suas obras publicadas.

A jornalista se alterna com a leitora, esta em geral discreta, mas que se manifesta em momentos que dão um tom colorido aos relatos, como quando ela descobre que nunca houve um assalto à chácara de Pellegrini. Disso resulta este livro, de leitura agradável, que nos incita a querer ler mais sobre os premiados do clã Jabuti e que prenuncia uma afi ada escritora, ela mesma provável futura caçadora de jabutis...

Ademir Demarchi

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SúmarioAPRESENTAÇÃO ................................................................................... 13

CUIDADO, UM ICEBERG ................................................................... 19

POETA POR ACASO ............................................................................. 39

UM NIHONJIN NA VASTIDÃO ........................................................ 57

UM ERRO EMOCIONAL ..................................................................... 77

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APRESENTAÇÃO

Depois de ler um livro instigante, sempre tenho vontade de conhecer mais sobre o autor. As informações básicas contidas na orelha do livro não são o bastante para matar minha curiosidade. Acredito que uma das principais razões pelas quais se é jornalista é pelo prazer de conhecer pessoas diferentes e interessantes. Poucas profi ssões me dariam a oportunidade de conversar com Cristovão Tezza, Domingos Pellegrini, José Castello e Oscar Nakasato, escritores tão talentosos e com histórias de vidas tão díspares.

Para dividir a experiência do meu encontro com esses grandes nomes da literatura e saciar a curiosidade de outros leitores, estão aqui, enfi m reunidos, quatro perfi s. Tezza, Pellegrini, Castelo e Nakasato foram selecionados pelo fato de serem escritores nascidos ou que hoje vivem no Paraná e tiveram suas obras contempladas com o Jabuti, um dos prêmios mais importantes da literatura do país.

O perfi l é um texto biográfi co, que, diferentemente da biografi a, não precisa narrar com minúcia todo o percurso da vida de uma pessoa. Tem a liberdade de contar apenas os episódios e circunstâncias mais signifi cantes e referentes à sua trajetória.

Nos quatro perfi s, aqui destacados, o processo de criação das obras agraciadas com o prêmio Jabuti é tido como um dos momentos mais marcantes na vida desses escritores. Isso porque, de certa forma, em seus livros, esses quatro autores utilizaram suas próprias vivências para criar as narrativas. O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, é um livro descaradamente autobiográfi co, no qual o autor reconstitui seu relacionamento com o fi lho Felipe, que tem Síndrome de Down. Ribamar, de José Castello, é uma tentativa de reconciliação póstuma entre o autor e o pai, José Ribamar. A narrativa de O Caso da Chácara Chão, de Domingos Pellegrini, é ambientada no local onde o autor reside. Nihonjin, de Oscar Nakasato, foi escrito com base em pesquisas sobre a imigração japonesa em livros de História e Antropologia, mas também no relato que o autor recolheu de seus antepassados.

A intenção deste livro é apresentar não apenas os bastidores do

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processo da escrita, mas também o homem que há por trás de cada uma dessas obras.

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Abro aqui um breve parêntese para contextualizar o Prêmio Jabuti. Uma das razões pelo qual o Jabuti é considerado um dos prêmios literários nacionais mais relevantes é a sua tradição. O Prêmio Jabuti começou a ser idealizado há 56 anos pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade formada por editores e livreiros sem fi ns lucrativos, então presidida por Edgar Cavalheiro, biógrafo de Monteiro Lobato. Mas foi na gestão posterior, do editor Diaulas Riedel, que foi feita a escolha da fi gura do jabuti para representar o prêmio tanto na imagem quanto na expressão que o intitularia.

O nome do prêmio foi baseado no personagem de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, tartaruga vagarosa, mas obstinada e esperta, capaz de vencer os obstáculos e chegar à frente dos concorrentes no fi m da jornada. A fi gura do jabuti também era uma tentativa de resgate de elementos locais, já que o modernismo e o nacionalismo - duas fortes correntes entre os intelectuais da época - pregavam a valorização da cultura popular brasileira. Foi também elaborada uma competição para a escolha da estatueta que seria entregue como troféu. A vencedora foi confeccionada pelo artista Bernardo Cid de Souza Pinto.

Em 1959 aconteceu a primeira edição do prêmio, numa cerimônia singela realizada no auditório da antiga sede da CBL, na avenida Ipiranga, em São Paulo. Havia apenas sete categorias: Literatura, Capa, Ilustração, Gráfi co do Ano, Editor do Ano, Livreiro do Ano e Personalidade Literária. Na ocasião, o escritor Jorge Amado foi agraciado pela obra Gabriela, Cravo e Canela e a Saraiva recebeu o prêmio na categoria Editora do Ano.

No início, as cerimônias eram realizadas no auditório da CBL ou em auditórios de outras entidades, como a Biblioteca Mário de Andrade, no Teatro Cultura Artística e até em restaurantes do centro da cidade. Mesmo encarando as mais variadas adversidades, como o regime militar (1964-

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1985) e as crises econômicas, a premiação aconteceu sem interrupções. Quando a CBL criou a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 1970, a entrega do Prêmio Jabuti passou a ser realizada durante o evento e, por isso, ganhou mais visibilidade. Nas primeiras décadas, a média de livros inscritos era de 400 a 500 títulos.

O grande salto aconteceu na década de 1990, quando a CBL instituiu uma curadoria específi ca para o planejamento e execução da agenda do prêmio, comanda até hoje por José Luiz Goldfarb, físico formado pela Universidade de São Paulo (USP). Goldfarb é mestre em Filosofi a e História da Ciência pela McGill University, do Canadá, doutor em História da Ciência, também pela USP, e acompanha os passos do Jabuti há mais de vinte anos.

Quando a CBL o chamou para comandar a curadoria, ele era um livreiro mais voltado para a vertente do varejo do que com a própria edição de livros. O convite veio num momento em que o prêmio já tinha certa representatividade e respeitabilidade, mas faltava maior presença na mídia e o retorno das livrarias em relação à disponibilização das obras. Para promover a divulgação dos livros vencedores do prêmio, Goldfarb precisou que a CBL fi zesse investimentos. Foi criado um corpo de jurados composto por profi ssionais, não mais voluntários. Outra mudança signifi cativa foi atribuir valor fi nanceiro ao prêmio. Deu certo. O Jabuti alcançou credibilidade junto ao mercado editorial e à sociedade. De, 2003 para cá, recebe em média duas mil inscrições.

A premiação, que começou com apenas sete categorias, atualmente contempla todas as esferas envolvidas na criação e produção de um livro, em um total de 27 categorias. O curador diz preferir menos categorias. “Sou aquele que puxa para diminuir porque, claro, menos categorias, mais fácil de divulgar e mais fácil de a imprensa analisar. Só que é preciso entender que o Jabuti foi instituído pela Câmara Brasileira do Livro para premiar o mercado editorial em todas suas facetas. Por isso, oferece o prêmio desde o melhor romance até a melhor capa, ilustração e projeto gráfi co”, diz. Periodicamente é feita uma avaliação dessas categorias.

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A cada ano, a busca é por adequar as classifi cações, a fi m de cobrir o mercado editorial como um todo.

O Conselho Curador, formado por José Luiz Goldfarb, Antonio Carlos Sartini, Frederico Barbosa, Luis Carlos Menezes e Márcia Ligia Guidin, é responsável pelo acompanhamento de todas as etapas do prêmio e cuida da formação do corpo de jurados. O júri conta com uma equipe de três especialistas em cada categoria, responsáveis por analisar as obras inscritas e selecionar, em duas fases, os vencedores.

Na primeira fase, cada jurado pode escolher dez livros entre todos os concorrentes em cada categoria. Na segunda, os jurados avaliam e atribuem notas a todas as obras fi nalistas selecionadas. As três obras que recebem a maior pontuação são consideradas vencedoras do Prêmio Jabuti em sua categoria. Os nomes dos jurados são divulgados em ordem alfabética, somente na cerimônia de premiação, que acontece na Sala São Paulo, localizada na antiga Estação Júlio Prestes. Até essa ocasião, os jurados igualmente desconhecem a identidade uns dos outros. A obra vencedora em primeiro lugar de cada categoria recebe, além do troféu, um prêmio no atual valor bruto de R$ 3,5 mil. Os segundos e terceiros colocados recebem menção honrosa.

Durante muito tempo, o Jabuti foi a única premiação do gênero. Havia poucos eventos literários pelo Brasil. Mas há dez anos esse panorama mudou. Surgiram o Prêmio São Paulo de Literatura, o Passo Fundo Zaff ari & Bourdon de Literatura, Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), além de várias festas e eventos literários. Goldfarb não considera esse cenário como uma competição, pelo contrário. Para ele, o Jabuti é o responsável por expandir o interesse das pessoas, empresas, governos e fundações pelo livro. “Esse movimento mostra que o Jabuti sempre esteve no caminho certo. Só que, agora divide todo esse esforço com outras iniciativas igualmente importantes.”

Em comparação, essas outras premiações passaram a dar aos vencedores uma recompensa maior em dinheiro do que a oferecida pelo Jabuti. Mesmo se considerando “suspeito” para avaliar essa questão,

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o curador acredita que essa diferença não desvaloriza o prêmio, que já tem história e tradição consolidadas. “Em compensação, outros fatores contribuem, como o fato de manter os jurados no anonimato até o dia da cerimônia e o nosso sistema informatizado de apuração dos resultados, no qual a abertura de votos é feita publicamente e os dados são lançados em uma planilha. Isso diminui a chance de alguém mudar o resultado em uma reunião fechada, lobbie ou qualquer outra pressão que possa ocorrer. O Jabuti tem essa vantagem: oferece prêmio menor em dinheiro, mas em compensação carrega o valor imaterial da credibilidade”, diz. Mas essa credibilidade já foi posta em xeque algumas vezes.

Em 2011, o livro Leite Derramado, de Chico Buarque, ganhou menção honrosa pelo terceiro lugar na categoria Romance, perdendo para Se Eu Fechar Os Olhos Agora, de Edney Silvestre. No entanto, foi eleita como obra vencedora do Livro do Ano de Ficção. Pareceu um contrassenso uma obra que levou o terceiro lugar na sua categoria ser considerada o melhor livro do ano. Goldbarb, na época, justifi cou em nota à imprensa que os vencedores das categorias eram escolhidos somente pelos jurados, enquanto, os que concorriam ao Livro do Ano recebiam também votos do mercado editorial. Sendo assim, o grande vencedor não precisaria ser, necessariamente, o primeiro colocado de uma categoria.

A premiação de Leite Derramado gerou muitos protestos, inclusive uma petição online intitulada “Chico, devolve o Jabuti!”. A Record, editora do livro de Edney Silvestre, acusou o Jabuti de escolher os vencedores segundo critérios políticos e ameaçou romper com a premiação. “Na minha opinião, seria melhor se só o primeiro colocado concorresse como Livro do Ano, mas eu não decido sozinho. A equipe considerava mais democrático que os três concorressem, por considerá-los igualmente importantes. Isso já havia sido objeto de discussão e de votação antes. Com a polêmica do Chico, percebemos que fi cou muito complicado explicar para as pessoas como o terceiro colocado virou o primeiro, principalmente com o Twitter, Facebook e as redes sociais. Em um país onde tudo cheira à malandragem, maracutaia, isso acabou gerando certa

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falta de credibilidade”, reconhece o curador. Dadas às circunstâncias, a CBL se viu obrigada a mudar o regulamento. Desde 2011, apenas os primeiros colocados em cada categoria podem concorrer pelo título de Livro do Ano.

Neste ano, a CBL fez alterações no regulamento mais uma vez, a fi m de evitar novas polêmicas. A controvérsia se deu na premiação do ano passado, quando um dos jurados, que pelo anonimato fi cou conhecido como Jurado C, deu nota 10 para o romance de estreia do escritor maringaense Oscar Nakasato, Nihonjin, e distribuiu notas mínimas, de 0 a 1,5, para seus concorrentes. Segundo Goldfarb, o regulamento permitia que os jurados dessem notas de 0 a 10 para evitar casos de empate. “Quando fui fazer a leitura dos votos e li ‘dez’, ‘um e meio’ e ‘zero’, quase desmaiei. Percebi que havíamos colocado nas mãos dele uma ferramenta muito poderosa, com a qual poderia mudar o resultado.” A discrepância das notas atribuídas pelo Jurado C rendeu a vitória à obra do novato Oscar Nakasato, que concorria com escritores consagrados, como Ana Maria Machado (Infâmia) e Wilson Bueno (Mano, A Noite Está Velha).

No regulamento da 55a edição deste ano foi estabelecido um limite às notas que os jurados podem atribuir às obras fi nalistas. Agora, podem variar de 8 a 10. Sem a possibilidade de dar um zero, um jurado sozinho não pode desequilibrar tanto a disputa. Mas os empates voltaram a ocorrer. “Colocar notas de 0 a 10 tem defeitos e qualidades. Colocar de 8 a 10, também. Fórmula ideal não existe. Tudo o que é complexo enfrenta difi culdades”, diz. Apesar da polêmica, ele não esconde o fato de ter fi cado feliz pela vitória de Oscar Nakasato. “Por incrível coincidência, eu tinha participado do prêmio Benvirá, no qual a obra dele também foi vencedora”, conta. E até isso foi questionado pela imprensa. “Me perguntaram: ‘não é estranho você ser curador dos dois prêmios?’. Eu disse: ‘não. Isso só mostra que os dois prêmios têm muita confi abilidade no curador’.”

Para Goldfarb, o Jabuti está em constante processo de aprimoramento. “Enquanto eu for curador, não vou fi car sentado, considerando que o prêmio atingiu a forma ideal”.

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CUIDADO, UM ICEBERG

Domingos Pellegrini é um iceberg, assim como sua literatura. Em seus livros, uma parte é o que se lê e outra o que está sendo dita. O leitor precisa estar atento às ações, deduções e sugestões que surgem nas entrelinhas. O mesmo acontece com o caráter do escritor. À superfície, afl ora um Pellegrini de temperamento forte, personalidade infl exível e atitudes politicamente corretas. Mas, no caminho entre Maringá e Londrina, não é a ponta visível do iceberg que me instiga. É a porção que está submersa, oculta. Esse Pellegrini, sim, uma incógnita.

Lembro da história que um amigo londrinense me contou em mesa do bar. Entre goles de cerveja e gargalhadas disse-me que Pellegrini deu voz de prisão a um gerente de banco só porque teve de esperar mais de quinze minutos na fi la. Olho no relógio e vejo que estou atrasada para o nosso encontro. Deve ser exagero, penso comigo, tentando me acalmar. O problema é que não encontrava a bendita chácara. Nas instruções que havia me passado por telefone, Pellegrini não tinha sido muito claro. Onde estava a placa indicando o conjunto Eucalipto? Já tinha virado à direita no viaduto, havia uns cinco minutos...

De boca em boca, fui parar numa rua pacata. A chácara tem dois portões: um grande, por onde entra o carro; e o portãozinho, uma porta de ferro encravada no muro, com arco coberto de primavera-rosa e sansão, que formam teias e ramas de galhos espinhentos. Toco a campainha. Passo o olho, rapidamente, no letreiro que alerta: “Cuidado, dono bravo”. Domingos Pellegrini abre o portãozinho e me recebe com um aperto de mão e um sorriso simpático. Ouço latidos de cachorros, são três, que logo se aproximam para me cheirar.

*

“Sou bravo e impulsivo. Perco a calma muitas vezes”, diz Pellegrini, sentado à larga mesa de madeira na sala de jantar, misturando açúcar

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mascavo no café. Na sala ao lado, um homem magricelo aguarda alguém no sofá de couro e passa o tempo se distraindo no celular. Aos fundos, a empregada lava o chão do terraço, cantarolando uma canção qualquer. “Minha mulher, Dalva, procura me disciplinar, mas, às vezes, acho que ser assim é bom”, retoma Pellegrini. “Se não houvesse a ira santa, muita coisa ruim estaria funcionando ainda. Jesus também perdeu a calma quando expulsou os vendilhões do templo a relhadas e pontapés”, brinca.

O gênio forte acredita que herdou, não do pai, que era italiano, e sim da mãe, mineira, fi lha de trineto de índio bugre com português e espanhol. Quando Pellegrini nasceu, em 1949, o pai era dono de uma barbearia em Londrina e a mãe cuidava da pensão, que fi cava do outro lado da rua. Acompanhando o trabalho dos pais, Dinho, como os mais próximos o chamavam, passou a infância ouvindo histórias contadas por gente com sotaque de todos os cantos do Brasil e do exterior, que frequentavam o comércio de seus pais. Muitos vinham com os bolsos estufados de dinheiro em busca de um pedaço de terra na capital do café. Em volta deles, os vigaristas zanzavam, as putas desfi lavam de charrete e os mascates disputavam espaço nas calçadas embarreadas com os agenciadores que descarregavam as malas das famílias recém-chegadas. Muitos dos livros de Pellegrini são ambientados nesse cenário do passado. Foi resgatando da memória os diálogos sobre incautos e malandros, amantes e cornos, geadas e secas, que o escritor teceu as narrativas de romances como No Coração das Perobas (2002) e Terra Vermelha (2003), que foi relançado este ano pela editora Leya.

Depois que os pais se separaram, Dinho foi viver com a mãe e a irmã em Assis, interior de São Paulo. Ao garoto de sete anos, os únicos amigos que restaram foi Perigo, um pastor alemão que de perigoso tinha só o nome, e a leitura. A casa alugada precisava de reformas e a mãe decidiu começar trocando a cor das paredes. Ansioso, Dinho passava horas observando o trabalho do pintor. Quando este ia embora, o garoto corria para salvar

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publicações de O Cruzeiro e Manchete da pilha de revistas que, no outro dia, serviriam para livrar o rodapé dos respingos de tinta. Com medo de que o pintor desse pela falta das edições, escondia os exemplares dentro do guarda-roupa. “Li e reli aquelas revistas inúmeras vezes, até decorei as reportagens de Davi Nasser. Também achava maravilhosas as crônicas de Rachel de Queiroz”, lembra Pellegrini. Aquele foi um dos primeiros contatos que teve com a literatura. A partir de então, virou um típico rato de biblioteca. Entre as prateleiras encontrou As Aventuras de Gulliver, de Jonathan Swift , Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, e as fábulas de Esopo.

- Esopo parece ter determinado a oralidade e a orientação moral da minha literatura. Escrevo como quem fala, assim como eram transmitidas as fábulas naquele tempo, e toda minha obra é pautada pela ética, tentando visar a construção de um homem melhor. Mas meu grande ídolo foi Ernest Hemingway. Em seus textos ele utiliza o chamado estilo de iceberg em que uma parte é aquilo que você lê e outra é o que está sendo dito. O leitor precisa estar atento às ações, deduções e sugestões que surgem nas entrelinhas. Também faço isso em meus livros. No Brasil, Graciliano Ramos foi quem mais me infl uenciou no sentido de linguagem clara, precisa e, no entanto, poética.

- Não acredita que a linguagem simples desvaloriza o texto como obra literária?, pergunto.

- Pelo contrário. Sou um contador de histórias. Escrevo com linguagem simples, não porque seja mais fácil do que escrever difícil. Ferreira Gullar tem uma frase de que gosto muito: “quem sabe, é claro”. A questão é que a minha literatura é destinada a um público muito amplo. Tenho várias quizilas com a língua. Vou deixar de usar “emcima” quando alguém me explicar por que existe “embaixo” e “abaixo”, existe “acima” e só o “emcima” é separado. “Por que” separado e “porque” junto, também não tem nenhuma serventia, só serve para complicar. Isso aí é puro lusitanismo burro. Se dependesse de mim a língua eliminaria uma série de

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excrecências. A questão é que faço o que se chama de arte de agregação. Não gosto de quem escreve para a elite, para teóricos ou para pequenos grupos – o que também tem o seu valor. Prefi ro ser entendido por todos.

Sem entender nada, fi cou Dinho naquele fi m de tarde de 1963 ao ver um escravo sendo açoitado no pelourinho, durante um fi lme de Mazzaropi. O amigo Álvaro Cesar Mesquita Servo lhe fez uma pergunta logo depois que os dois saíram do cinema, mas Dinho estava em estado de choque. “Pô, Dinho, fala comigo. O que houve com você? Cê tá tonto?”. Ele nada respondeu. Deixou Mesquita sozinho e com cara de bobo na calçada. Virou a esquina e seguiu direto para casa. Trancou-se no quarto e, depressa, pegou um pedaço de papel. Não sabia bem o que estava acontecendo, várias palavras se embaralhavam dentro de sua cabeça, mas sentia que precisava fazer algo com aquilo.

Negro velho, cabeça de neve negro novo, coração em fel...

Com esses dois versos inaugurou o primeiro caderno de poesia. Tinha apenas quatorze anos e a certeza do que seria quando crescesse. Não foi preciso acelerar a máquina do tempo e se ver vencedor de seis prêmios Jabutis para perceber que seu sonho tinha se tornado realidade. Cerca de um ano depois de ver o fi lme de Mazzaropi, também numa sala de cinema – desta vez na cidade de Marília (SP), para a qual havia se mudado nesse intervalo – a luz cegou seus olhos. Era o lanterninha dizendo que alguém do colégio o procurava. Saiu da sala e encontrou o zelador encostado na bilheteria. “Vem comigo”, disse, com voz fi rme. Eles caminharam em direção ao Instituto de Educação Monsenhor Bicudo. Estava preocupado, porque tinha inventado uma gripe para não ter de estudar no dia anterior, mas os passos desviaram da sala da diretoria e subiram os degraus rumo ao auditório. Assim que passou pela porta, foi exaustivamente aplaudido.

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Não só havia ganhado o prêmio pela melhor redação da segunda série do ginasial, como também o de melhor redação entre as melhores. Estava determinado a ser um premiado.

- O melhor prêmio que recebi foi o da loteria genética - o dom da escrita. Não é nenhum mérito pessoal, trata-se de uma habilidade transportada por milhares de gerações, passando de uma pessoa para outra, até que um dia afl ora em alguém. Quando você recebe o dom, sua missão é saber usá-lo a favor da humanidade, buscando o aperfeiçoamento com técnicas e treinamento. É possível aprender e praticar a arte sem o dom como imitador, uma espécie de picareta. Muitos artistas fazem autopromoção, começam a se envaidecer e se achar superiores ao próprio talento, mas, aí, o dom seca.

Determinado a aprimorar a dádiva que havia recebido, Pellegrini entrou no curso de letras da Universidade Estadual de Londrina, aos dezoito anos, em 1967. Aquele foi um ano agitado.

*

O Brasil tinha acabado de ganhar uma nova Constituição que legalizava e institucionalizava o regime militar, consequência do Golpe de 1964. Grupos de oposição ao governo e organizações políticas de esquerda brotavam pelo país. Uns defendiam a substituição do sistema capitalista vigente pelo socialismo por meio do caminho mais pacífi co, com implantação de reformas estruturais. Outros, infl uenciados pelo delírio revolucionário, optaram pela luta armada. Em pouco tempo, a sonhada revolução começaria a ganhar adeptos nas universidades. Em Marília, Pellegrini havia ingressado na Dissidência Paulista do Partido Comunista Brasileiro. Lá, o muito que fez para o partido foi datilografar estênceis com os textos de Guevara, Debray e de outros guerrilheiros. Agora, tinha uma missão maior: formar a célula da dissidência londrinense.

Logo que entrou na faculdade, começou a agitar a reabertura do

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diretório acadêmico. Elaborou murais, organizou os jograis, co-dirigiu o Grêmio Estudantil Rocha Pombo, entrou para o teatro universitário e participou da primeira edição do Filo (Festival Internacional de Londrina). Também fumou maconha e experimentou cocaína, mas o sufi ciente para perceber que droga era coisa para otário.

Durante as madrugadas, costumava sair sorrateiramente com alguns secundaristas para pichar frases de contestação. Numa dessas noites, voltou ofegante para casa. Foram surpreendidos pelos guardas noturnos e um dos secundaristas acabou preso. Com os primeiros raios do sol, era possível ler a frase “abaixo a ditadura”, pichada em letras garrafais na parede interna da universidade.

Dias depois, o professor interrompeu a aula e chamou Pellegrini para o canto. “Você sabe que as paredes internas foram recém-pintadas com muito sacrifício?, questionou, autoritário. Pellegrini hesitou. “O dinheiro pago para restaurá-las não veio do Estado, mas das economias da própria faculdade. Tostão por tostão”, frisou. Quando já esperava a sentença de penalidade, o professor perguntou se Pellegrini não preferiria expressar suas ideias de forma limpa e civilizada, por exemplo, escrevendo num jornal.

O desafi o de fazer um jornal na faculdade fez com que Pellegrini se lembrasse do dia em que escreveu sua primeira reportagem. Aproximadamente um ano antes, fi cou revoltado com o atendimento do postinho de saúde no centro de Londrina. O médico examinou oito pacientes de uma só vez e com desdém, “como se todos fossem animais”. Alinhou os pacientes e passou socando a lanterninha em suas goelas, procurando sinais de infl amações.

Embora não tivesse nenhum conhecimento jornalístico, Pellegrini sentiu que poderia escrever algumas palavras denunciando os maus-tratos presenciados. Com o texto em mãos, seguiu para o edifício Júlio Fuganti, onde, no segundo andar, fi cava a sede do jornal Vanguarda. Não conhecia ninguém da redação, mas quis dar a cara a tapa. Quem sabe

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alguém se interessasse pelo assunto. Encontrou a porta fechada. Já passava das seis horas da tarde e o expediente havia se encerrado. Para não perder a viagem, jogou o envelope por debaixo da porta.

Ao passar pela banca de jornal, no dia seguinte, teve a surpresa. Sua reportagem não só havia sido publicada, como também era a manchete do Vanguarda. “Aquela reportagem me deu forças. Fiquei tão entusiasmado que tomei fôlego para pedir emprego na Folha de Londrina. Me contrataram no mesmo dia e me tornei jornalista”, relembra Pellegrini. Trabalhou três anos na Folha de Londrina e ganhou experiências em várias editorias. Lá era responsável por publicar e editar uma página de leitura, intitulada “Espaço para poemas”, fazia reportagens especiais e era o substituto do editor-chefe. Anos depois, atuou também como editor no Novo Jornal, de Londrina, e fez frilas para revistas Playboy e Ícaro, de São Paulo, e atualmente mantém sua coluna no Jornal de Londrina e na Gazeta do Povo.

Pellegrini nem imaginava que teria uma carreira tão sólida no jornalismo, quando começou a organizar o jornalzinho da faculdade. Nos corredores da UEL, ganhou fama de agitador cultural. Título digno de receber um convite para conhecer o professor Samuel Pessoa, um dos fundadores do curso de medicina. No apartamento de Pessoa, no Hotel Coroados, foi apresentado a Luíz Cordoni Junior e José Carlos Lacerda, ambos acadêmicos de medicina. A visita foi rápida. No elevador, quase nenhuma palavra foi dita. Assim que alcançou o térreo, os três se entreolharam e Pellegrini se despediu com um breve aceno de mão. A célula da Dissidência do Partido Comunista de Londrina estava formada.

Todas essas atividades culturais e políticas das quais Pellegrini participava não causariam tanto problema se ele não prestasse, paralelamente, serviço militar no Tiro de Guerra. Mesmo sendo discreto e tomando os devidos cuidados, os atos clandestinos de Pellegrini foram relatados para o SNI (Serviço Nacional de Informações). Ele deveria ser preso naquele ano, mas não foi. Era ateu, não acreditava em Deus muito

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menos em misticismo. Só foi entender o motivo de tanta sorte anos mais tarde, numa conversa com o sargento Cláudio. “Você não enfrentou o xadrez porque o Isidoro se recusou a te prender”, contou, pousando a mão direita sobre o ombro de Pellegrini. Isidoro era o sargento-chefe do Tiro de Guerra e a regra vigente era clara: militares só podiam ser presos por militares, além do que não havia provas cabais do envolvimento de Pellegrini com as atividades ilegais. “Você era um bom soldado e o Exército não é para perseguir ninguém”, concluiu o sargento Cláudio.

- Entre tantos militantes de esquerda, minhas melhores lembranças de hombridade, ética e humanidade são desses sargentos. O que me fez crer que gente boa existe em todos os lugares e o contrário também. Deixei de crer em “ão” (revolução, renovação, ilusão) e me dei conta de que nada funciona sem “ade” (honestidade, bondade, liberdade, criatividade, produtividade). Percebi que quem tem ideologia usa uma camisa de força, se prende tanto naquele ideal e rejeita outras informações. Ter certezas ideológicas é sinônimo de empobrecimento cultural. Tenho amigos de quarenta anos que continuam comunistas até hoje, os caras são uns verdadeiros trogloditas. Ainda creem que Cuba funciona e se recusam a acreditar que o muro de Berlim caiu, entre outras coisas ridículas assim. O sujeito fi ca cego, surdo e só sabe repetir velhas certezas. É muito mais cômodo você ter velhas certezas do que alimentar novas ideias.

- E como você vê a política atual?- A política, a Justiça e todos os órgãos públicos são podres no Brasil.

Nosso país sofre de dois problemas: a corrupção e a omissão. A corrupção é gêmea da omissão, porque só um povo tão omisso permite tanta corrupção. E a corrupção só existe, farta e generalizada, porque estamos vivendo num tempo de omissão. Isso é estimulado pela nossa Justiça lenta e injusta pela própria lerdeza. Os três largos do Brasil são a supertributação, a supercorrupção e a superburocracia.

Dos tempos de esquerda, em que era marxista-leninista de barba e

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coturno, Pellegrini preserva a preferência musical. É fã de Joan Baez, Bob Dylan, Os Mutantes e Raul Seixas. Preserva, também, um retrato em branco e preto pendurado na parede de seu escritório, que fi ca numa edícula do lado de fora da casa. Da porta do puxadinho, a famosa foto de Che Guevara, tirada por Alberto Korda em 5 de março de 1960, chama a atenção. Mas conforme me aproximo, Guevara ganha novos traços e se transforma num Pellegrini em pleno auge da juventude. O mesmo cabelo, a mesma pose e a mesma determinação. O quadro divide o resto da parede com a foto da mãe e vários desenhos carinhosos feitos pelos fi lhos e netos.

No cubículo de aproximadamente 18 m2, a decoração é exagerada por fora - cheio de gaiolas e vasos de fl ores pendurados, como se fosse uma casa de boneca - e simples por dentro. Há apenas a mesa do computador ao lado da janela, que dá vista para os pés de jabuticaba, e uma cadeira confortável. Diferentemente do que se imagina ser o escritório de um escritor, em seu antro sagrado Pellegrini não mantém nenhuma biblioteca gigante. Diz que não tem apego pelos livros. Lê e repassa para os amigos. Numa estante de metal guarda apenas o que é necessário, mais ou menos cinquenta publicações. De lá, ele retira os exemplares de Herança de Maria (2011), romance autobiográfi co no qual o autor traça a trajetória de vida da mãe, Maria Pellegrini, que morreu aos oitenta anos vítima de uma doença terminal, e O Tempero do Tempo (2003), uma coletânea artesanal de poemas notoriamente líricos. Faz uma dedicatória e registra sua marca: um coração por onde nasce um sol.

*

Artesanalmente, Pellegrini publicou o primeiro livro, Conversa Clara, uma reunião de poesias, aos vinte e três anos, em 1972. Mas foi só com o lançamento de O Homem Vermelho, em 1977, que seu nome alçou o panteão dos escritores canônicos. Os textos são radiografi as estéticas

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da vida de personagens marginalizados, como posseiros, fugitivos, caminhoneiros e camelôs. Nos contos, os protagonistas assumem a posição de anti-heróis e apresentam uma forma peculiar de ver o mundo. O Homem Vermelho foi contemplado com o Jabuti na categoria de Melhor Livro de Contos, prêmio que na época era, e continua sendo, um dos mais importantes da literatura nacional.

Depois da estreia triunfal, Pellegrini publicou mais trinta livros, entre contos, poesias, romances e obras voltadas para o público infantil. Outro gênero sobre o qual Pellegrini investiu foi o da literatura empresarial. Ramo lucrativo e que vem sendo explorado por outros autores de prestígio junto à crítica e ao público, como Fernando Moraes e Ignácio de Loyola Brandão. É autor de Luta sem Fim (história da Unimed de Londrina); Plantando na Tempestade (história da Milenia, empresa que atua no setor da agrociência); Teodoro, Um Ídolo Sertanejo (biografi a sobre Aldair Teodoro da Silva, mentor, cantor e empresário da dupla Teodoro & Sampaio); Seo Elias e a A Mão Estendida, biografi a do empresário Elias Montosa, A Arte de Bem Viver, em memória de Florindo Fabian, entre outros. Em 2001, escreveu a quatro mãos, junto com o jornalista Paulo Briguet, o livro corporativo A Construção do Sonho, que traz uma retrospectiva dos quarenta anos da construtora Plaenge. Antes, havia trabalhado, também sob encomenda, na biografi a do espanhol Celso Garcia Cid, um dos fundadores da empresa de transportes Viação Garcia e, segundo Pellegrini, um gênio que renovou a pecuária brasileira.

- Considero O Tempo de Seo Celso [1990] meu segundo melhor livro. O primeiro é Terra Vermelha [1998]. Havia entrevistado Seo Celso vivo, mas não dei a mínima importância. Era um repórter comunistinha e tinha preconceito por ele ser um grande empresário. Levei dois anos para escrever a biografi a e conversei com mais de setenta pessoas. Aprendi muito sobre zootecnia, fi losofi as da Índia, imigração e do passado de

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Londrina. Espero que um dia esse livro seja publicado por uma grande editora com distribuição nacional.

A maioria das obras do autor londrinense ultrapassou a casa de 50 edições vendidas. Algumas ganharam direito à tradução e publicação em países como Estados Unidos, Itália e França. Pellegrini ganhou a estatueta do Prêmio Jabuti outras cinco vezes com o romance O Caso da Chácara Chão (2001)- 3.º lugar da categoria de Melhor Romance; No Coração das Perobas (2003) - 2.º lugar da categoria Melhor Romance; Gaiola Aberta (2006) - 3.º lugar em Poesia; Meninos no Poder (2006) - 2.º lugar em Melhor Romance; Mestres da Paixão (2008) – 3.º lugar da categoria Livro Juvenil. “As pessoas brincam dizendo que criamos jabutis aqui na chácara”, diz o escritor, apontando o dedo em direção a outra ponta da mesa da sala de jantar, onde, em cima de uma estante, estão seis estatuetas de tartarugas de bronze.

Toda essa produtividade é o refl exo da paixão de Pellegrini pela escrita. Para ele, escrever é sinônimo de condição de vida. “Não saberia viver sem escrever. Se for preso, suponhamos, e for cerceado de escrever, acho que morreria de depressão. O que mais iria fazer da minha vida? Para mim, escrever é uma segunda natureza, é algo que vem de dentro”, afi rma, batendo com dignidade a mão no peito.

Sobre o método de trabalho, Pellegrini diz que não há segredos. Meticulosamente escreve todos os dias na parte da manhã. Os poemas surgem da inspiração, momentos em que se sente tomado por uma forte emoção. Surgem tão rápidos que é questão de anotar. Por isso, segue o conselho de Maiakovski: sempre anda com papel e caneta. Os romances não. Esses, segundo Pellegrini, exigem do escritor muito mais do que inspiração. É preciso pesquisa, método, disciplina e foco.

- Quando tentei escrever meu primeiro romance e não consegui, descobri que era autor de livros juvenis. A Árvore Que Dava Dinheiro

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[1981] era para ser um romance adulto, mas conforme fui desenvolvendo a história, notei que era muito ingênua e fantástica. Depois que me tornei pai e avô, dediquei mais tempo aos livros infanto-juvenis, que são hoje minha principal fonte de renda.

Ao todo, Pellegrini tem quatro fi lhos. Três do primeiro casamento (Jerônimo, Leonidas e Rita) e uma menina do segundo casamento (Ana Luiza). Contando com os fi lhos da atual mulher, Dalva Pellegrini, a soma fecha em seis (Ana Paula e Patrícia).

Conheci Dalva, depois que já havia se passado mais de uma hora de entrevista. Uma mulher jovial, de cabelos curtos e loiros, entrou pela porta quando o choro estridente de uma criança soou pela casa. O homem magricelo, que continuava sentado distraído com o celular, deu um pulo do sofá e se apressou em sentido aos quartos. Voltou de lá junto com um menino de uns quatro anos de idade. Fomos apresentados. Descubro que o homem magricelo é Bruno, marido da Ana Paula, e a criança neto de Pellegrini. “Ele é tão bonitinho”, diz Pellegrini, eufórico, já de braços abertos esperando um afago do garoto, que se despede. “Está com uma sinusite tadinho, dá uma dó”, me conta Dalva.

Dalva se junta à mesa conosco e retomamos o bate-papo, agora, em três. Ela mais observa do que participa, mas acha graça do semblante do marido, quando retomo a polêmica em torno do prêmio Jabuti de 2001. Naquele ano os prêmios da categoria de melhor romance para primeiro, segundo e terceiro lugares foram, respectivamente, para O Caso da Chácara Chão, de Domingos Pellegrini; Dois Irmãos, do escritor alagoense Milton Hatoum e Inferno, da paulista Patrícia Melo.

Em 2011, Pellegrini publicou o texto “Carta a Milton Hatoum”, na edição do mês de março do Rascunho, no qual diz “[...] depois de várias vezes sair a mesma informação incorreta na imprensa, o que fi ca evidente é que ou o Sr. ou a Companhia das Letras é que a fornecem, enganando assim a imprensa e os leitores, o que me motivará a, na próxima vez em

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que for interpelado por isso, responder que isso é coisa da Companhia das Tretas e/ou do Sr. Milton Um-Sete-Um, porque isso é estelionato cultural.”

- Só fui entender o que aconteceu depois que recebi um livro vermelho que conta a história do Jabuti. Os três colocados eram considerados vencedores, mas na verdade era um primeiro vencedor, um segundo e o outro terceiro vencedor. E o seu Milton Hatoum e a editora dele passaram a colocar nas orelhas e nas capas do livro a frase “o vencedor do prêmio Jabuti”. Ele não foi “o” vencedor, foi um dos vencedores. Isso não me incomodaria se não tivesse de passar pelo constrangimento de ser interpelado como mentiroso. Num programa de rádio, Darci Machado me perguntou por que eu havia noticiado que era o vencedor do prêmio Jabuti se o vencedor havia sido o Hatoum. Essa confusão aconteceu em várias outras vezes. Por isso, fi z questão de colocar no Rascunho aquela nota - que não foi respondida nem pelo Hatoum, nem pela editora dele - dizendo que era antiético o que eles estavam fazendo. No ano seguinte, em 2002, a Câmara Brasileira do Livro fez alterações no regulamento do prêmio e passou a conceder premiação exclusiva para os primeiros colocados e a conceder menção honrosa à segunda e terceira colocações de cada categoria.

Pergunto o que ele acha da literatura do Hatoum. Dalva solta uma gargalhada e diz, olhando para o marido, “é melhor nem responder”. Mas Pellegrini não pensa duas vezes. “Não li. Li só aquele livro Dois Irmãos até a metade. Achei muito chato e parei.”

- Você é um escritor que escreve para ganhar prêmios ou ganha prêmios porque escreve?

- Ganho prêmios porque escrevo - tanto que dá medo. Às vezes, enquanto estou escrevendo um romance tenho a perspectiva tática de, quando terminá-lo, inscrever num concurso, mas não que isso seja o objetivo. Inscrever no concurso é uma tática, não uma estratégia.

Gentilmente, Dalva me oferece algumas frutas que acabaram de ser colhidas na chácara. Caju, jabuticaba, mexerica. Pellegrini levanta-se e vai

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até a cozinha e de lá traz um peixe fresco de 40 cm, que havia pescado no dia anterior e exibe com orgulho. Como um exemplar chefe-de-cozinha me ensina a receita do assado ao molho de maracujá. “Assado, em geral, é fácil de fazer. Se me der qualquer carne na mão eu sei fazer. Cheirando, pegando e vendo a coloração, dá para perceber se é uma carne de caça”, diz. O peixe ao molho de maracujá preparou, especialmente, para comemorar o aniversário da sogra. Já estava na hora de levar ao forno. Também já estava na hora de conhecer a chácara.

*

Quando morava no apartamento na Praça Gabriel Martins, as poucas vezes que Domingos Pellegrini conseguiu ver o céu era como retalho, recortado pelas janelas e pelas silhuetas dos outros prédios. Não via as estrelas. Não sentia o vento e muito menos a brisa. Mas o principal motivo que o fez mudar do centro da cidade para a chácara no dia 16 de dezembro de 1996, foi recuperar o silêncio.

Vivia atormentado por sindicalistas que falavam no calçadão durante horas, numa indignação que também se expressava no volume de som. Aos sábados, tinha a zoeira fanática dos evangélicos, um gritando ao microfone e os outros em volta, bradando. E tinha ainda os caminhões de som anunciando liquidações no dia das mães, dos pais, da pátria, da árvore, do índio, do bombeiro... e a algaravia dos ambulantes vestidos de palhaço com apitos e buzinas. “O palhaço chegava sempre às nove da manhã. Uma hora antes, eu já começava a sofrer. Para escrever precisava colocar o algodão no ouvido. Aquela praça era uma verdadeira caixa de ressonância. Cheguei a ganhar o apelido de ‘ouvidor do barulho’”, conta Pellegrini. Se mudar era o melhor a fazer antes de fi car louco ou sair para o calçadão com um bastão de beisebol - Jesus contra os vendilhões. Como um clínico, Pellegrini justifi ca que a sua neurose com o barulho é advinda

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de uma hipersensibilidade auditiva e, como especialista, discorre sobre a perturbação do sossego público.

-Som alto me incomoda muito. É horrível saber que um direito seu está sendo quebrado, tripudiado constantemente. A cada vez que você ouve aquele som, vai se emocionando e, no fi nal, não consegue mais trabalhar, não consegue fazer nada. A perturbação do sossego público é o principal atentado à cidadania do país. Corresponde a 70 % das queixas no plantão da PM nas noites do fi nal de semana. No entanto, a PM não faz nada, a Policia Civil não faz nada, a prefeitura não faz nada, ninguém faz nada. É um problema complexo que exige QI (quociente intelectual) QE (quociente emocional) e QA (quociente de autoridade) para resolver, mas as autoridades do Brasil querem agradar gregos e troianos, os cidadãos e os infratores. Estes dormem ao lado de um trem, de uma marreta batendo. O problema do som alto atinge todo mundo de tudo quanto é classe e de tudo quanto é canto – diz, enquanto caminhamos para o pomar, pisando sobre folhas de bananeiras.

Na memória, me vem a recordação de um vídeo postado no YouTube, em que Pellegrini divaga sobre a geração de bananas e de como cuidar de um bananal, acariciando a fruta. Bruscamente lasca o fação no pé e com força o derruba no chão, soltando um grunhido. Para fi nalizar, declama um poema e se despede fazendo sinal de “corta” com os dedos. Assim como este há uma sequência de dez vídeos, gravados para o programa do publicitário Waurides Brevilheri Jr, entre 2002 e 2002, para a TV Record em Londrina, em que o escritor ora aparece descalço, ora se deliciando com um maracujá. Em cada cena, registra um pouco de sua rotina morando na chácara. Sossego que muitas pessoas gostariam de ter.

Pellegrini acorda cedo e faz comida para os cachorros. Arroz, meia dúzia de legumes picados misturados na carne moída. Depois, no terraço, toma iogurte com granola, café e vai para o escritório. Escreve até meio-dia. Almoça, tira a sesta e à tarde lida com a chácara. Planta, aduba e colhe.

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Às vezes, sai para pescar ou vai até o centro da cidade pagar contas no banco e fazer compras. À noite, assiste a um fi lme.

- Tive uma experiência interessante quando fui repórter agrícola na Folha de Londrina. Viver aqui é um sonho, mesmo descobrindo que dá muito trabalho lidar com facão, enxada, picareta, e enxadão. Hoje, lido cada vez menos, até porque a idade vai chegando. Tem um jardineiro que vem uma vez por mês, mas, volta e meia, a Dalva e eu colocamos nossos macacões e saímos lidando com a plantação. Mesmo depois que você se for, se houver tempo ainda, vou varrer a rua, porque o asfalto do conjunto está bem erodido. Com a chuva, os pedriscos descem e fi cam parados tudo aqui na rua de baixo. Se eu não tirar, ninguém tira – comenta, frustrado.

Na chácara, o clima é alguns graus mais fresco do que na rua. A casa fi ca no meio do terreno grande, levemente inclinado, e é cercada por um jardim de violetas, roseiras e damas-da noite. Esse declive foi aproveitado para fazer metade da casa em dois pisos. Em cima a sala, os quartos, a cozinha, a varanda e o terraço. Embaixo, mais um quarto e a garagem. O ambiente é idêntico ao descrito em O Caso da Chácara Chão (2001). A impressão que se tem ao percorrer a chácara é de estar passeando pelas páginas do livro.

A obra, em parte autobiográfi ca, conta a história de um assalto à residência da família de Malfredini, um escritor de livros juvenis, que decide largar o alvoroço do centro da cidade pela calmaria da chácara. Além de ter o nome com a grafi a e a sonoridade parecida com o de Pellegrini, o protagonista tem o mesmo temperamento do escritor e viveu situações parecidas no passado, foi revolucionário e jornalista. Outros personagens também foram inspirados em pessoas reais. É o caso da Verali, baseada na fi lha de Pellegrini, Ana Luiza; Olga, em Marta, segunda mulher de Pellegrini e Fábio, fi lho de Marta.

- Para a literatura o que é mais interessante, fi cção ou realidade?- As duas. Não adianta você apenas observar os fatos, isso é jornalismo.

Você tem que colocar fi cção, inventar, aumentar, caricaturar, maximizar,

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monumentalizar. Toda obra de arte é compósita de fi cção e observação, racionalidade e emoção. Na vida, também, uma não existe sem a outra. A fi cção está na base de todas as utopias. É o que faz o homem projetar invenções, novas formas de vida, ter ideias políticas, fazer guerras.

- E o assalto. Como realmente aconteceu? pergunto, curiosa.- Não sei por que alguém botou isso na internet. Nunca houve assalto

aqui, mas eu precisava de um elemento confl itante, desencadeador da ação. Todo o enredo se passa durante ou depois do assalto. Faz quinze anos que moro aqui e nós nunca tivemos qualquer problema com segurança. A única situação parecida foi quando dois guris invadiram a casa para pegar uma pipa. Quando cheguei sete e meia da noite, tinha umas cinquenta pessoas aqui na frente, aquele alvoroço danado. Um dos meninos estava preso em cima da árvore, com medo de descer por causa dos cachorros.

- Nem na rua você foi assaltado? insisto, decepcionada.- Não. Tenho fama de mau aqui, sabe? A fama é um bom preventivo

para assalto. Mau no sentido de que, se for preciso, chamo a polícia mesmo. Quando tem som alto ou vizinho barulhento faço questão de que a polícia venha. Se não vir, ligo para corregedoria do Estado, gabinete do governador, coronel, comandante, para quem for. Essa fama de ser amigo dos “homi” me defende muito aqui.

Pellegrini levou seis meses para concluir a narrativa de O Caso da Chácara Chão. O autor explica que a mensagem que quis passar com o livro é a de que o entendimento, a convivência e a ação comunitária podem resolver muitos problemas brasileiros, entre os quais, o da violência. O romance termina com uma bela cena entre Manfredini e os vizinhos, Arcanjo e Otoniel. “[...] depois de mais uma cerveja, andando com os pés meio redondos, por entre os olhares e cochichos do povo, fomos abraçados para a Chácara Chão. Na calçada, apontei o portão e disse que é o ponto fraco na defesa da chácara, qualquer um pode pular por cima do portão, apesar do muro bem defendido com os espinheiros. Ora, disse Arcanjo,

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não é isso que defende a gente não; e Otoniel concordou: exatamente, não é arma nem espinho que defende a gente, vizinho.”

Apesar de no livro pregar a união entre moradores de bairro, Pellegrini não parece ser o vizinho dos sonhos.

- Não tenho uma relação muito boa com a vizinhança. Tem alguns que, de vez em quando, insistem em entupir bueiros e ligar o som alto. Digamos que os vizinhos bons se dão muito bem comigo e os vizinhos do mau se dão muito mal comigo. Quando chego ao boteco para tomar cerveja, tem os que me olham torto, mas também os que me cumprimentam com respeito.

Mesmo sem participar da Associação dos Moradores do conjunto Eucalipto, Pellegrini se diz responsável pela reforma da creche do bairro e pelo fechamento de três recicladores irregulares que funcionavam na área, “fazendo barulho, queimando plástico e contaminando o lençol freático”. Organizou uma manifestação contra a Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná) por causa do mau cheiro causado por uma das estações de tratamento da empresa.

Para o município, foi presidente fundador do Comitê pela Anistia entre 1977 e 1979. Transformou o Departamento de Cultura em Secretaria, na gestão do prefeito Antônio Belinati – para quem trabalhou durante a campanha política - no período de 1982 a 1992, e, em 2002, foi presidente da Cantar (Comunidade de Amigos e Trabalhadores da Rádio Universitária), da UEL. “Nunca quis saber de cargo público a não ser nessa ocasião e nem de me candidatar a nada. Como dizia seu Celso Garcia, ‘para fazer bem público, não é preciso cargo público’”.

Além de alertar para o problema da violência, O Caso da Chácara Chão faz crítica à corrupção policial e ao jornalismo sensacionalista. Questionado sobre a medida que retira do Ministério Público a atribuição de realizar investigações criminais, o escritor se posiciona:

- Totalmente contra a PEC 37. Esse projeto de lei está sendo feito para silenciar os promotores que estão cumprindo com o seu dever. Se não

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fosse a capacidade de investigação das promotorias, nós não teríamos o mensalão e outra porção de investigações acontecendo. A polícia sozinha não tem nem condições e nem autoridade de exercer esse trabalho porque para diante de gravata, diante de riqueza, político e cargo público.

Sobre o comportamento da mídia, o que mais aborrece Pellegrini, atualmente, mais ainda do que as reportagens sensacionalistas, é o humorismo fantasiado de jornalismo.

- O que me incomoda muito são os programas de televisão que misturam jornalismo com entretenimento de deboche, como o CQC e o Pânico na TV. Os apresentadores ultrapassam a linha entre a dignidade e a diversão. Ninguém pode debochar, tripudiar, com o pretexto de informar. São programas perniciosos, porque ao mesmo tempo em que corroem o jornalismo, corroem a diversão. O humor tem que ter limite.

Estamos agora no alto do terraço. Daqui se avista todo o vale, a rodovia lá longe e os telhados de outras casas. Permanecemos ali por um instante, em silêncio, observando o alaranjado do céu.

*

Na saída da casa do escritor, os cachorros endoidam a latir novamente. Pellegrini manda fi carem quietos, batendo o pé no chão. Na rua, nos despedimos. O escritor me dá um abraço caloroso e me deseja sucesso na profi ssão. Minha teoria de que Domingos Pellegrini é um iceberg volta à tona. À superfície, afl ora um Pellegrini de temperamento forte, personalidade infl exível e de atitudes politicamente corretas. Submerso está um Pellegrini mutante, com todas as suas neuroses e preferências, que conseguiu reconhecimento graças à sua persistência e determinação. Lá no fundo, todos nós somos uma incógnita. Assim que ele fecha o portãozinho de ferro, dou de cara com o letreiro, que alerta “Cuidado, cão bravo”. Sabia que tinha lido errado.

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POETA POR ACASO

“Você está esquisito. O que está acontecendo?”, pergunta o médico. José Castello andava mesmo perturbado. A toda hora lhe vinham muitas e muitas ideias na cabeça e ele bestava a rasgar rascunhos, fazer gráfi cos, desenhar projeções, anotar resumos, deletar parágrafos inteiros, cortar palavras e recomeçar tudo de novo. A cada passo, um novo fracasso. Não conseguia pensar em mais nada - estava obcecado. Não queria falar sobre aquilo com o homeopata, mesmo sendo um médico confi ável, com quem já havia se tratado durante tantos anos, mas precisava botar tudo para fora. “Olha, na verdade, estou muito tenso porque estou escrevendo um livro, bem pessoal, que está me confundindo muito”, revela. “Me fale sobre o livro”, teima o médico.

A princípio era para ser um ensaio sobre a relação de grandes escritores da literatura, como Virginia Wolf, Marcel Proust, James Joyce e Fiódor Dostoiévski, com seus próprios pais. Conforme avançava nas pesquisas, ele percebeu que não tinha material sufi ciente. Mesmo assim, não conseguia abandonar o tema. Afi nal, como dizia Clarice Lispector: não é o escritor que escolhe o livro que vai escrever – é o livro que escolhe o escritor. O acaso, na literatura de José Castello, tem papel decisivo na criação.

A insensatez começou quando o telefone tocou naquela calorosa tarde de 2005. Era o escritor Rubens Figueiredo, seu grande amigo, do outro lado da linha. “Zé, você deu para o seu pai, no Dia dos Pais de 1975, um exemplar do Carta ao Pai, do Kafk a?”, perguntou. Castello lembrava-se perfeitamente disso. Para ele, foi muito marcante ter entregado aquele livro de presente. “Eu dei, mas como é que você sabe?”, perguntou, pasmado. “É o seguinte. O livro que está aqui na minha mão tem a dedicatória: ‘para o pai, com um beijo do fi lho José’, e a letra é sua”, contou. “É uma edição da Civilização Brasileira de capa preta?”, questionou, incrédulo. Figueiredo confi rmou. Acabara de encontrar o livro abandonado entre as prateleiras dum sebo no Rio de

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Janeiro. “Já mandei embrulhar. Daqui, vou direto para o correio e te mando”, disse o amigo.

José Castello estava procurando havia anos aquele livro. Depois que o pai, José Ribamar Martins Castello Branco morreu em 1982, vitima de uma doença cardíaca crônica, ele ajudou a mãe organizar a única estante de livros da casa. Procurou desesperado pelo Carta ao Pai. Não encontrou nada. Na estante, apenas alguns livros didáticos de inglês, idioma cujo pai nunca conseguiu aprender – nem ele próprio; meia dúzia de livros com dedicatórias de amigos, que, certamente, nunca haviam sido abertos; além de outras coletâneas de discursos publicadas pela editora do Senado Federal, onde Ribamar passou horas trabalhando como repórter de política, para o jornal O Globo, até 1960, quando a capital do país mudou-se para Brasília. Sem ter com quem fi car, José acompanhava o pai no trabalho durante os fi ns de semana. Nos corredores do Senado, lá estava o pequeno, de calças curtas, correndo de um lado para o outro.

A estante de livros sempre foi assim, pequena, na casa dos Castello Branco. A mãe tinha só curso primário. O pai, que a duras penas partiu de Parnaíba, do interior do Piauí, para o Rio de Janeiro, era advogado, mas atuava como jornalista e, na agenda pesada, não sobrava tempo para a leitura. Sem incentivo, Castello descobriu o mundo da literatura, aos onze anos de idade. Certo dia, entre as prateleiras de papéis, cadernos e lápis duma papelaria em Copacabana, avistou o cantinho dos livros. Desde então, não parou mais de frequentá-la. Como não conhecia os autores, escolhia pela capa. No colégio Santo Inácio, comandado por jesuítas, os professores só trabalhavam com antologias. Enquanto os coleguinhas de classe liam Anchieta e Camões, ele se debruçava sobre os poemas de Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto.

Um dos primeiros romances que leu foi Robinson Crusoé, de

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Daniel Defoe, exemplar que a tia havia esquecido, durante uma visita, sobre a mesinha da sala. Ele leu e releu aquela história várias vezes seguidas durante o ano. Identifi cou-se com o protagonista. O sujeito absolutamente sozinho, sem recursos e preso numa ilha, era igual a ele, garoto solitário, tímido e incompreendido. A literatura em sua vida surgiu, antes de tudo, como lugar de refúgio e liberdade. Abrigo sem regras ou mandamentos, onde poderia ser o que imaginasse: José ou Robinson Crusoé.

O problema é que o pai não gostava da mania do fi lho de viver quieto pelos cantos com um livro nas mãos. Tinha medo de que o garoto, preso à fi cção, se esquecesse da realidade. Acreditava que o jeito desengonçado do fi lho, de cabelos compridos, pensativo e desorganizado, era culpa da literatura. Vivia alertando: “Você pensa demais e isso te afasta do mundo”; “Você precisa parar de sonhar e começar a viver, senão vai se dar muito mal na vida”, praguejava. Mas Castello continuou à deriva, ao lado de Borges, Rimbaud, Paul Verlaine e Fernando Pessoa.

A relação entre o pai e o fi lho já não era muito boa e fi cou pior ainda depois que Castello resolveu contar que queria ser escritor. Ribamar começou fazer campanha contra: “É um absurdo, escritor não vive de direito autoral. Segue outra carreira e escreve nas horas vagas”, perseverava. Primeiro, desejou que o fi lho fosse arquiteto. Mas as péssimas notas dele em matemática convenceram o pai de que insistir naquela ideia seria um erro: todas as casas que construísse iriam desmoronar. Quis, então, que fi zesse faculdade de direito e passasse no concurso do Itamaraty para ser um grande diplomata. Ambições bem distintas das do fi lho.

Ao contrário do que muitos pensam, Castello optou pelo jornalismo, não para seguir a profi ssão do pai, mas por orientação do professor de literatura do Colégio Santo Inácio, José Rodrigues. Às vésperas da

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matrícula para os vestibulares, Rodrigues lhe chamou no canto para conversar. “Qual curso você pretende prestar?”. “Vou fazer faculdade de letras porque quero ser escritor”, respondeu, convicto. “Se você quer ser mesmo escritor, letras é o último curso que deve fazer”, aconselhou. “Na Faculdade de letras, você vai se entupir de teorias literárias, linguística, semiologia, críticas, será massacrado com tanta informação que irá te bloquear na hora de escrever e irá te impedir de se sentir livre para tratar sobre temas que tem vontade”, continuou. “Por que não faz jornalismo?”, sugeriu o professor. “O jornalismo vai te obrigar a escrever diariamente e, o mais importante, vai te dar experiência. Você vai viver situações que jamais viveria e conhecer pessoas com quem nunca conversaria se não fosse jornalista.”

Assim que entrou para a faculdade de jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na década de 1970, Castello começou a fazer estágio no Correio da Manhã e decidiu sair de casa. Já não aguentava mais as brigas com o pai. Não conseguiam sequer dialogar sobre o tempo. Sempre que um dos dois tentava puxar assunto, terminavam em xingamentos. Único tema, em que, por incrível que pareça, eles se entendiam, era o futebol. Embora Castello fosse fl uminense e Ribamar fl amenguista, eles se divertiam assistindo aos jogos no Maracanã. Na mesma arquibancada, pai e fi lho, lado a lado, acompanhavam as partidas. Um vestindo a camisa rosa e verde; outro, a vermelha e preta. Também não perdiam as partidas do Santos. Ribamar era padrinho de batismo do segundo maior artilheiro da história do Santos, Pepe, atacante que, ao lado de Pelé, fez muitos gols para o Peixe e para a Seleção Brasileira.

Durante um bom tempo, José Castello conseguiu se virar sozinho. Foi contratado no O Diário de Notícias, atuou como redator no semanário Opinião e trabalhou como repórter na revista Veja, veículos de grande repercussão no cenário nacional. Mas, naquele ano de

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1975, as contas apertaram e ele precisou voltar para a casa dos pais. O clima entre ele e o pai já não era mais de torcida. Voltando a ter contato diário com Ribamar, ele percebeu o quanto era fria a recepção paterna. Por isso, decidiu dar-lhe de presente no Dia dos Pais a Carta ao Pai. Trata-se de uma publicação póstuma da carta que Franz Kafk a escreveu para o pai, Hermann Kafk a, mas que nunca foi entregue. Nela, o escritor alemão discorre sobre a relação conturbada com o pai, um comerciante judeu, autoritário e de personalidade forte, que impôs aos fi lhos sua visão de mundo e que despertava em Kafk a um conjunto de emoções confl itantes, ora de ódio pungente, ora de profunda admiração. Ao terminar de ler, Castello fi cou tão impressionado com o esforço de Kafk a ao tentar se aproximar do pai escrevendo aquela carta, que pensou: “Já que o meu pai não consegue me ouvir, quem sabe se o Kafk a falar por mim, ele me entenda melhor”. O presente era simples, mas envolto de signifi cados.

Quando o livro fi nalmente retornou às suas mãos, Castello, angustiado, folheou a obra, examinando cada página, uma a uma, em busca de anotações, frases sublinhadas ou qualquer outra marca e... nada. Nem sequer uma ponta dobrada. O livro estava intacto, totalmente virgem. É bem possível que tenha ido direto da estante para o sebo, e lá permaneceu. O destino não lhe pregaria uma peça dessas, se não houvesse propósito. Quais as probabilidades dum livro sumir e, trinta anos depois, reaparecer? Durante semanas, ele fi cou olhado para o livro – ou foi o contrário, o livro que o fi cou encarando? - como se questionasse: e agora, José? De tão óbvia a resposta, demorou a encontrá-la. O livro pedia outra obra. Castello havia sido escolhido, naquele momento por um livro e tinha dever de escrevê-lo. Com a caneta vermelha, selecionou uma frase, a grifou com vontade e determinou que Ribamar era quem havia frisado aquelas palavras.

O seu livro, assim como o de Kafk a, também seria uma espécie de

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“carta ao pai”, mas, no caso, ao pai morto. Viajou para Parnaíba a fi m de resgatar as raízes familiares e começou a registrar, não o passado do pai, e sim, a própria experiência pessoal, como quem escrever um diário de viagem. Trabalhava de forma caótica. Escrevia tudo e em todos os lugares. Enquanto estava no aeroporto, rodoviária, fi la de espera do INSS. Anotava ideias soltas, sonhos, frases entreouvidas, histórias sem ordem cronológica e incoerentes entre si, em cadernos, blocos de papeis e folhas avulsas. Já fazia mais de dois anos desde que Rubens Figueiredo havia lhe telefonado, que estava escrevendo sobre vários assuntos diferentes e não conseguia encontrar o fi o que unifi casse todas as narrativas. Essa dispersão o deixava afl ito, tenso.

Depois de ouvir o desabafo de Castello, o médico, então, lhe dá um diagnóstico que parece defi nitivo: “Pare imediatamente de escrever esse livro”, diz, de forma fria e ríspida. “Mas por quê?”, indaga. “Você está escrevendo esse livro por vingança, por ressentimento do seu pai”, afi rma o médico. “Acredito que não, mas talvez possa ser. O sentimento que nós, humanos, temos é muito complexo. Também sentimos ódio, raiva, rancor. Mas estou fazendo esse livro, sobretudo, como tentativa de reaproximação póstuma com meu pai. É uma declaração de amor para ele, que nunca fi z em vida, através de uma fi cção”, justifi ca. “Você está se iludindo. Pare imediatamente de escrevê-lo ou você vai morrer. Ouça o que estou lhe dizendo, você vai cair doente e vai morrer sem conseguir terminar esse livro”, arremata. “Está bom”, murmura Castello, encerrando o assunto que nem devia ter começado. Enrola o resto da consulta e, no ponto de ônibus, decide: “nunca mais volto nesse cara”.

*

“A verdade é que ele não soube acolher a minha angústia”, conta José Castello, não deitado no divã, mas sentado na poltrona de seu

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apartamento, em Curitiba. Talvez a forma intimista e sincera com que me contava os detalhes da sua história foi o que deu a impressão de que, naquele momento, eu não era mais uma acadêmica de jornalismo entrevistando um grande escritor. Conforme a conversa passava, eu assumia o papel, ora de psicanalista, ora de amiga próxima.

Ao contrário do que previu o homeopata, Castello não morreu ao tentar escrever Ribamar. A obra foi lançada pela editora Bertrand Brasil, em 2010. No ano seguinte, o livro venceu o Prêmio Jabuti, na categoria de melhor romance. Quando recebeu a notícia, Castello estava em Portugal, participando da reunião anual do prêmio Leya de Literatura, do qual faz parte da comissão julgadora. “Tinha plena consciência de que havia escrito um livro muito esquisito e que isso poderia ser considerado tanto um fator positivo quanto poderia causar repulsa aos jurados. Nesses casos, sou sempre pessimista para evitar fi car me iludindo e não sofrer depois. Para mim, o prêmio foi um sinal de reconhecimento da imensa aventura existencial que foi escrever esse livro”, diz.

O escritor acredita que o fato dos personagens do romance terem os mesmos nomes dele e do pai foi o que acirrou a ideia de que Ribamar é uma biografi a disfarçada de romance. “Nunca tive dúvida de que estava escrevendo um romance e não tenho dúvida de que é. Talvez tenha um fundo biográfi co um pouco maior do que a maioria dos romances. O José, narrador, além do nome tem algumas semelhanças comigo, mas não sou eu. O Ribamar, que está no livro, também se parece com meu pai. É um pai difícil, duro e inacessível, mas não é o meu pai de verdade. Cheguei a pensar em usar outros nomes. A maioria das histórias contadas ali é falsa. Primeiro, fi z os paralelos e, depois, comecei a inventar”, explica.

É transitando entre as fronteiras dos gêneros que Castello gosta de se aventurar. Vários outros livros do autor foram escritos ignorando

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os moldes dos gêneros literários. O livro As Melhores Crônicas de José Castello (Global Editora 2003), organizado pela Leyla Perrone-Moisés, demandou que fosse feita uma reunião na editora, para decidir se entraria na coleção “Melhores Crônicas” ou “Melhores Contos”. Ninguém soube defi nir. Optaram por crônicas simplesmente pelo fato de os textos da coletânea terem sido divulgados na seção “Crônicas”, do jornal O Estado de S. Paulo. A confusão entre esses dois gêneros é comum. A linha tênue que separa o conto da crônica ainda vem sendo discutida na academia, sem que haja um conceito universal e indiscutível. Fernando Sabino já disse que “crônica é o que o autor chama de crônica”.

Mas Castello também é conhecido por romper os parâmetros das biografi as tradicionais, ao imprimir a própria subjetividade na trama. Há quem defenda que a biografi a João Cabral de Melo Neto: O Homem Sem Alma (Editora Rocco, 1996) não passa de um romance envergonhado. O autor, no entanto, prefere defi nir como “ensaio biográfi co”. No texto, Castello faz um retrato do poeta pernambucano sem se camufl ar no mito da objetividade. A biografi a é o resultado de mais de trinta horas de entrevistas, realizadas no período de um ano, com João Cabral. Velho e solitário, o poeta pediu para que Castello o visitasse regularmente e aceitou que ele gravasse os diálogos, desde que não conversassem sobre a sua vida pessoal. Os assuntos seriam somente sobre literatura, a vida diplomática e as amizades. Depois que João Cabral morreu em 1999, vítima de um ataque cardíaco, Castello adicionou na nova edição do livro a parte Diário de Tudo, que traz os bastidores das visitas, quando o gravador era desligado.

Além da biografi a de João Cabral de Melo Neto, Castello registrou as vidas do jogador de futebol Edson Arantes do Nascimento, em Pelé: Os Dez Corações do Rei (Ediouro/Sinergia, 2004) e do cronista Rubem Braga, em Na Cobertura de Rubem Braga (José Olympio, 1996).

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Mas foi há vinte anos, com Vinícius de Moraes: O Poeta da Paixão (Companhia das Letras, 1993), que estreou no campo da biografi a e foi nacionalmente reconhecido como biógrafo.

O convite para escrever sobre a vida do poeta e letrista Vinícius de Moraes surgiu na época em que Castello era editor do suplemento Ideias/Livros e do Ideias/Ensaios, do Jornal do Brasil (JB). A editora Companhia das Letras havia comprado os direitos de republicar toda obra de Vinícius de Moraes e o editor Luiz Schwarcz chamou Castello para ser o organizador. Os vinte anos de carreira como jornalista lhe haviam sugado todo o tempo. Trabalhava das nove da manhã às oito da noite e, em casa, exausto, não tinha ânimo para faze mais nada. Mesmo sem ser um leitor ávido de biografi as e nunca ter pensado em escrever sobre os passos de alguém, ele já havia alcançado a casa dos quarenta e o sonho de ser escritor parecia estar cada vez mais distante. “Era pegar ou largar”.

Para escrever a biografi a de Vinicius de Moraes, ele ganharia uma bolsa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no valor de menos de um décimo do que recebia como editor no JB. Em compensação, o jornal fez uma oferta irrecusável: a vaga de correspondente em Paris, com dois salários, um em franco, outro em cruzados. Castello teve de juntar toda a coragem do mundo e dizer não. Aceitar a proposta da editora era uma loucura, mas necessária.

A bolsa da Unicamp só durou dois anos e Castello levou mais outros dois para terminar a obra. Endividou-se completamente. Pediu ajuda fi nanceira para a irmã mais velha, para amigos e, mesmo assim, perdeu o talão de cheques, cartão de crédito e fi cou com o nome sujo no Serasa. “Isso meu pai jamais teria entendido. Mas, se eu não enlouqueço, se não resolvo chutar o balde e tomar essa decisão radical, estaria até hoje muito infeliz dentro da redação de um jornal. A loucura sempre foi elemento importante na minha vida”, acredita.

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Ainda hoje, Castello colhe os frutos da biografi a do poetinha. “Não aguento mais falar sobre o Vinícius”, desabafa, ao desligar o celular que interrompeu nossa conversa. Ele acaba de receber mais um convite para participar de palestras e eventos literários.

Diz que se sente grato a todos os convites que recebe até porque os escritores conseguem sobreviver fi nanceiramente muito mais das palestras que fazem e das feiras literárias das quais participam do que de direitos autorais das obras lançadas. Mas ele, cansado da agitação das programações do mercado literário, diz que prefere a solidão. “Me estresso nas viagens que faço. Todos os lugares são muito cheios e as pessoas querem ser gentis com você, então, te levam para almoçar, para jantar, para conhecer tal lugar ou fulano. Por isso, sempre digo que estou muito ocupado e que vou fi car no hotel, trabalhando no meu laptop, mas é mentira. Fico no quarto lendo, dormindo, vendo televisão ou espero todos irem embora e saio pela cidade, sozinho. O escritor contemporâneo é um andarilho, ser perdido no mundo, carregado por forças que desconhece. Anda sem saber o que esperam dele, se o que está dizendo é interessante ou se está repetindo-se. Dá uma angustia quando você começa a perceber que está falando sempre a mesma coisa. Ninguém tem tantos assuntos originais para contar”, diz.

Além dos já citados, Castello é autor de outros seis livros: O Inventário das Sombras (Record, 1999), no qual descreve encontros com os escritores José Saramago, Clarice Lispector, Alain Robbe-Grillet, Adolfo Bioy Casares, Manoel de Barros e Nelson Rodrigues, além do jornalista João Rath e do artista plástico Arthur Bispo do Rosário; Fantasma (Record, 2001), obra que marcou a estreia do escritor na fi cção e que conta a história de um arquiteto que fracassa na tentativa de escrever um livro sobre a cidade de Curitiba; As melhores crônicas de José Castello (Global Editora, 2003), coletânea de textos que versam

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sobre linguagem, literatura e crítica; A Literatura na Poltrona (Record, 2007), que traz artigos e ensaios que investigam o fazer literário; As Feridas de um Leitor, que refl ete a maneira como o autor encara seu trabalho crítico; e do recente Sábados Inquietos (Leya, 2013), no qual reúne cem das mais de 250 colunas publicadas todos os sábados, entre janeiro de 2007 a março de 2012, no suplemento Prosa&Verso, do jornal O Globo.

“Estou rascunhando de forma bem louca, há vários anos, um novo romance. Mas tenho me perguntado se esse romance que estou rascunhando não é um poema. Ainda não tenho certeza”, revela. O escritor adianta que o título provisório do livro é O Jardim das Amoreiras, praça em Lisboa, onde surgiu a ideia da trama. “Num dia em que estava triste, por uma série de motivos, andando pela cidade encontrei esse jardim. Uma praça perto do lago, muito bonitinha, simpática, fi ca perto de um aqueduto que passa do lado e tem um bar no meio. Me sentei num banco velho, ruído, que fi ca ali, e o chamei de ‘meu banco’. Essa história que estou escrevendo é sobre um crítico que fez uma crítica muito dura sobre a obra de um jovem autor, que, desesperado, cometeu suicídio. Esse crítico está sentado nesse banco do jardim das amoreiras, sem coragem de voltar para o Brasil e sem saber o que fazer da vida”, conta.

Para desenvolver os capítulos dessa história, Castello pretende voltar a Lisboa. “Quero passar uns três dias sentado nesse banco, o que pode parecer total maluquice minha. Espero que não chova.” O ambiente do Jardim das Amoreiras não traz inspiração para o escritor, mas é um lugar onde ele se sente à vontade para “expirar”. “Não acredito em inspiração, porque parece que é algo que vem de fora, que se inspira. Acredito mais em expiração, em botar para fora o que tem dentro. O que leva tempo, exige silêncio e meditação. Por exemplo, algo que está me impressionando muito é que em frente a este banco tem uma

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árvore, onde mora uma família de camundongos. Grande parte da minha observação ali é a vida desses ratos. É ridículo falar disso. Os camundongos estão me inspirando? Não. Tem alguma coisa saindo de mim para esses camundongos. Já pensei que esse crítico é alguém muito miserável, que se sente um rato por ter feito o que fez ou, então, que está muito mal vestido. Talvez ele seja um mendigo”, refl ete.

Atualmente, além de manter a sua coluna no suplemento literário Prosa&Verso do jornal O Globo, Castello alimenta semanalmente o seu blog A Literatura na Poltrona e faz “crítica literária” para a revista Época e para os jornais Valor Econômico e Rascunho, da Gazeta do Povo.

Em seu trabalho como crítico, ele se recusa a fazer julgamentos, aferimentos, aprovações ou reprovações. Admira os amigos do meio, que trabalham com teoria e crítica literária na academia, como Antonio Candido e Silviano Santiago, mas prefere ser um “amador” e partir para a interpretação. Em vez de crítica literária, escreve “relatos íntimos de viagem”, não a esse ou aquele país ou continente, mas a determinado romance ou livro de poemas. Em suas colunas, narra impressões, os pensamentos que a leitura lhe despertou e dos outros livros que lhe levou a reler, como um leitor profi ssional. “Escrevo a respeito do que me bateu, o que foi mais interessante. Por exemplo, agora estou lendo o livro do Luciano Trigo, Motivo. Tem vários poemas que não me interessam, então pulo e não marco nada”, explica. Castello foi criticado por ter essa postura, mas isso não o incomoda. Afi nal, ninguém está isento da crítica.

A primeira crítica que Castello recebeu foi aos vinte e seis anos, quando enviou os originais de um conto para o endereço de Clarice Lispector. Esperava, é claro, que a escritora consagrada o autorizasse a prosseguir na via da fi cção. O tempo passou e a resposta não veio. Já estava conformado, quando o telefone tocou. “José?”, disse ela, com a

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voz lacônica e ríspida. “É ele”, respondeu. “Li seu conto”, disse a mulher do outro lado da linha. Sem se importar com as esperanças do jovem escritor, Clarice disse com aquela ênfase no r, típico da escritora: “Você é muito medrrrrrroso e com medo ninguém escreve. Boa tarde”, e bateu o telefone. Castello conta que nunca se esqueceu dessa frase.

Medo ele ainda sente - não mais para escrever. “Sempre tive medo de não ser compreendido e não ser aceito. Para mim, uma frase chave é a que Leila Diniz disse numa entrevista ao Pasquim e que repito de boca cheia: ‘cafuné na cabeça eu quero até de macaco’. Todo mundo quer ser amado.”

Da literatura contemporânea, Castello cita João Gilberto Noll como o mais importante prosador brasileiro. “Um gênio. Tudo o que ele escreve é visceral. É um cara que faz literatura com sangue, não está de brincadeira. A literatura dele é uma literatura de vida ou de morte. Ele sofre muito preconceito por causa das temáticas gays e por causa da temática sexual. Em defi nitivo, não é o gaúcho típico que escreve sobre os pampas, as famílias ricas e a luta farroupilha.”

A temática homossexual praticada por Noll é um campo em que Castello já pensou em trabalhar, mas não se atreveu. “Às vezes, me passava pela cabeça, mas não sabia muito bem o que escrever. O que pensava, alguém já tinha escrito”, conta.

Castello está num relacionamento de vinte anos com o companheiro Joaquim de Carvalho, agente de turismo. Pelo apartamento, estão espalhadas várias preciosidades que Joaquim traz de suas viagens, desde uma mascará vienense a quadros de arte. O escritor acredita que os gays nunca tiveram tanta aceitação na sociedade como nos dias atuais e critica as religiões por pregarem o rancor contra a liberdade de opção sexual. “Vivemos num momento que é ao mesmo tempo bom e ruim. Se nunca a abertura para a variedade de opções sexuais foi tão grande - em relação ao avanço nas legislações, da união civil, do casamento

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gay, dos gays em novelas, não só como pessoas perversas, mas como pessoas comuns - o ódio das pessoas pelos gays também nunca foi tão grande. Ódio que está, sobretudo, nas religiões. Eu não tenho religião. O principal tema dos evangélicos mais do que a fome, violência, mais do que tudo, virou o problema gay. Estou preocupado também com esses movimentos sociais que estão acontecendo no Brasil, não sei se são bons. Apoio a Dilma, sempre votei no PT, mas acho que o governo está errando a mão ao lidar com isso. Esses movimentos são bem direcionados por grupos anarquistas e homofóbicos da internet. O governo está sendo muito benevolente, tinha que jogar mais duro. Fico com temor da violência contra os gays aumentar mais ainda”, diz Castello, em referência à série de protestos que tomaram as ruas do Brasil em junho deste ano.

O escritor conta que já teve vontade de adotar uma criança, mas que o companheiro não quis levar a proposta adiante. “Agora já estou velho, não sei se teria forças. Na época, fi quei frustrado porque é algo que eu gostaria muito. Claro que cria problema social para as crianças, com os coleguinhas, com vizinhança, mas faria com a maior alegria”. Como pai, o escritor se imagina o contrário de Ribamar: carinhoso, presente e generoso. “No sentido ortodoxo seria um péssimo pai, porque sou liberal demais, não sei dar ordem. Provavelmente iria deseducar meus fi lhos. Mas sei que daria muito amor, porque sou apaixonado por criança. O Joaquim tem dois sobrinhos órfãos de pai, um de nove e outro de cinco anos que vivem aqui em casa. O que eu procuro, na minha relação com eles, é estimular a liberdade. Vivem dizendo que o ‘tio Castello é palhaço de circo’, porque faço muitas brincadeiras. Sempre que acentuo esse meu lado trapalhão, acredito que estou mostrando para eles que o adulto tem limites e erra muito, estou quebrando a ideia de que é preciso ser perfeito. A ideia de que não se pode vacilar é desumana.”

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Revisar o relacionamento com o pai provou ser mais doloroso e desestabilizador do que José Castello esperava. Ele, que não queria mais deitar no divã para falar sobre a sua vida - depois de ter encerrado os mais de dezesseis anos de análise - sentiu que precisava, novamente, de ajuda de um profi ssional. Dessa vez, não para dizer tudo o que lhe vinha à mente, angústias, sonhos e fantasias, mas para conversar sobre o livro que estava escrevendo. Uma amiga lhe indicou o Romildo do Rego Barros, e o psicanalista aceitou a proposta inesperada. Sempre que ia ao Rio visitar a mãe, que sofria com mal de parkinson, José tinha sessão marcada com Romildo. Em pauta as páginas de Ribamar.

Por causa da doença, a mãe pouco se comunicava. Ficava feliz de ver o fi lho, respondia as suas indagações com monossílabos e, logo em seguida, fi xava o olhar para a parede. Com a boca entreaberta, mergulhava em grandes silêncios. Para tentar romper com este estado, Castello começou a ler contos de fada para ela. Foram quase todas as histórias dos Irmãos Grimm, até o dia em que escolheu O Barba Azul, clássico de Charles Perrault. A mãe fi cou apavorada, tremia e mandou Castello parar e continuar a leitura várias vezes. Aos oitenta e quatro anos, a mãe estava tento a experiência que o fi lho teve aos onze anos de idade. Absolutamente sozinha, morrendo na incompreensão, também era Robinson Crusoé. “José, posso te interromper para te fazer um pedido?”, disse, com difi culdade. “Pode mãe.” “Você pode nunca mais ler contos de fada para mim?”, pediu. “Posso, mas não te ajuda? Por que você não quer que eu leia mais?”. “Está me dando muito medo”, revelou.

Conforme a debilidade da mãe foi aumentando, durante as visitas, ele fi cava apenas de mãos dadas com ela, também em silêncio, a fi m

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de que sentisse sua presença. Então o acaso agiu mais uma vez. “Ô seu Zuza/ seu Cazuza/ que chorar tanto assim não se usa/ friolioli/ friolioli/frioliolé/ cala boca mimoso José”, foram os versos que a mãe começou a cantarolar. Curioso, o fi lho perguntou o que era. Era a canção de ninar que o pai costumava cantar para ele dormir. Era também uma adaptação da música que o avô cantava para o pai dormir, que era inspirada na música que o bisavó cantarolava para o avô. José pediu para que a mãe repetisse, anotou a letra maluca, decorou a melodia e ligou para o seu irmão Marcos - que apensar de ser engenheiro, sabe tudo sobre música - pedindo para que ele transcrevesse a partitura.

Ficou semanas olhado para a partitura, sem saber o que fazer. Sabia que a canção tinha de estar no livro, mas como? Entre devaneios, percebeu que o material que estava escrevendo tinha oito direções diferentes e se deu conta de que as notas musicais são sete, mas contando com a pausa, somam oito.

Utilizando a partitura como estrutura, José Castello, fi nalmente, conseguiu organizar o caos. Cada um dos 98 capítulos de Ribamar corresponde a uma das notas da canção e a uma temática (dó – nada; ré – família; mi – Kafk a; fá - infância; sol – viagem à Parnaíba; lá – angústia; si- bichos; pausa- aves). Estabeleceu também coerência entre a extensão da nota e o tamanho de cada capítulo (mínima – quatro páginas; semínima – em torno de duas; colcheia – um pouco menos do que isso). Colocou na abertura de cada capítulo, além do número sequencial, o nome da nota, a sílaba do verso, o assunto, a posição que ocupa e a quantidade de capítulos em sua série temática e o valor da nota ou pausa. Toda a rigidez da partitura é respeitada.

Aprendeu a ser sucinto com João Cabral de Melo. “Ele dizia sempre: ‘escrever é a arte de cortar’. O grande erro que os escritores cometem é quando o texto não está bom e fi cam acrescentando adjetivos, divagações, comentários, nova cenas e isso só estraga o texto. O que

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você tem que fazer é cortar, até ser impossível parar de cortar. Foi o que fi z. Isso teve um efeito poético na linguagem do livro. Parágrafos curtos, frases curtas e muitos substantivos. Não foi uma decisão minha, mas acabou tendo esse efeito. Na verdade, faltam dois agradecimentos, nesse livro, que me arrependo de não ter feito. Um ao meu irmão Marcos, pela partitura, e outro a João Cabral de Melo Neto.”

Recorda-se muito bem da sua última sessão com Romildo. Castello num momento de epifania se deu conta de todos os acasos que resultaram em Ribamar: “Se Figueiredo não tivesse achado o Carta ao Pai no sebo; se não tivesse enviado para mim; se eu não vou visitar a minha mãe naquele dia; se não fi co em silêncio ao lado dela o tempo longo que fi quei – eu bem que poderia ter me cansado e ido embora, sei lá; se minha mãe não tira essa canção de um pedaço da sua memória; se não lembra a letra ou a música inteira; se eu não dou a mínima importância para a música; se eu não descubro que era a música que meu pai cantava para eu dormir; se não escrevo a letra, decoro a melodia e passo para o meu irmão; se ele não me entrega a partitura; se essa partitura não fi ca semanas dependurada no meu escritório, até que um dia eu tenha esse clique; talvez eu não tivesse conseguido terminar Ribamar e estaria escrevendo-o até hoje”, refl etiu.

Castello ainda estava deitado no divã quando o psicanalista virou para ele e avisou: “Encerramos nosso trabalho por aqui. Caso precise de algo mais, me procure.” Castello pagou a consulta e já estava de costas, rumo à saída, na hora em que Romildo o chamou. “José, só tenho mais uma coisa para lhe dizer.” “Sim”, respondeu o escritor, atento. Romildo reparou naquele homem de ombros largos, sobrancelhas espessas e olhar caído, triste e lânguido, e expressou sua admiração: “Você é um poeta”. José Castello nada lhe disse com palavras. Esboçou um sorriso com o canto da boca e foi embora.

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UM NIHONJIN NA VASTIDÃO

Maringá, 10 de setembro de 2012. Sei pouco de Oscar. Há uma fotografi a dele trajando camisa preta social, de cabelos lisos, negros e curtos, repartidos ao meio e escondendo, por trás dos óculos de grau, os olhos puxados, estampada na orelha do seu livro Nihonjin, que seguro em uma das mãos. Na outra mão, tenho o número do seu telefone celular. Constrangida, ligo para ele sem nem sequer saber pronunciar corretamente o seu nome (se puxado para o inglês, como acento agudo no “o”, como o prêmio de cinema americano, ou se aportuguesado, com tônica na última sílaba, como o do arquiteto Oscar Niemeyer). Na primeira vez, arrisco o tom inglês: “Olá, o ‘Óscar’, por favor?”. “É o Oscar quem está falando” – me corrige, discretamente. Me apresento como estudante de jornalismo e pergunto se concederia uma entrevista para o programa Prefácio, da Rádio Universitária Cesumar (94,3 FM). Explico que se trata de um projeto de rádio laboratorial que eu e uns amigos havíamos desenvolvido para a disciplina de radiojornalismo do curso, totalmente voltado para a literatura. A cada edição, na editoria Eu Te Conto Um Conto, divulgamos o trabalho de autores locais. Simpático, ele topa dar a entrevista, mas pede para eu ligar dali 15 minutos, pois acabara de dar uma aula e estava saindo da faculdade. Mais tarde, em casa, poderia conversar comigo, com mais calma.

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Maringá, 26 de setembro de 2012. A mesma foto de Oscar Nakasato está na capa do caderno D+, suplemento de Cultura do jornal O Diário do Norte do Paraná, de Maringá. “Pela primeira vez em 54 edições do Prêmio Jabuti de Literatura, um maringaense poderá vencer em uma das principais categorias de fi cção. O professor e escritor Oscar Fussato Nakasato, 49 anos, atualmente mora na Vila Agari, em Paranavaí, mas nasceu e morou por muitos anos em Maringá, chegando a se formar no

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curso de letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Nihonjin (Editora Benvirá, 2011, R$ 19,90), seu primeiro livro publicado, é um dos dez fi nalistas na categoria Romance”, anuncia a reportagem assinada pelo jornalista Wilame Prado.

O nome do estreante está na lista da categoria de melhor romance ao lado de escritores consagrados como Ana Maria Machado (Infâmia), Wilson Bueno (Mano, A Noite Está Velha) e Domingos Pellegrini (Herança de Maria). No texto, o jornalista vibra com os indícios: Nihonjin já havia nocauteado Herança de Maria e outros quase dois mil romances ao ganhar a primeira edição do Prêmio Benvirá. Oscar, por outro lado, transpassa não estar muito confi ante com a vitória. Desconfi a da subjetividade dos prêmios de literatura. O livro de Pellegrini havia sido um dos fi nalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, do qual o romance do maringaense também havia participado, só que sem grandes resultados. O certo era que, só pelo fato de estar entre os fi nalistas do Jabuti, o maringaense já dava provas de que não é preciso estar no eixo Rio – São Paulo, para ser considerado um grande escritor.

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Maringá, 20 de outubro de 2012. É sábado à noite. Reunidos na mesa do Saleros, boteco na Zona 7 da cidade, um bairro de grande movimentação de universitários, artistas e intelectuais, estamos eu, o jornalista Alexandre Gaioto, o escritor maringaense Luigi Ricciardi e sua amiga, todos ansiosos à espera de Oscar Nakasato. O encontro tem tudo para ser uma comemoração, afi nal há apenas dois dias Nihonjin havia sido anunciada como a obra vencedora do Prêmio Jabuti. Mas sabemos que a polêmica gerada em torno da premiação pode acabar com qualquer festa.

Àquela altura, toda a imprensa estava repercutindo sobre a atitude do

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jurado C, que deu nota máxima para o romance do novato Oscar Nakasato e distribuiu notas baixíssimas aos seus concorrentes, contemplados com uma série de zeros. Brincou com as regras do jogo e colocou em xeque, não só o modo de avaliação do Prêmio Jabuti, mas também as qualidades literárias do maringaense.

Na postagem “Jabuti, o que será de ti”, no blog Todaprosa, da revista Veja, o escritor e crítico literário Sérgio Rodrigues afi rmou que a postura do jurado C não foi bonita nem estimulante ao novo autor, e sim de “má fé”, de “manipulação de resultado”. Criticou ainda o Jabuti, dizendo que o prêmio vem se “avacalhando” nos últimos anos por causa do “emaranhado em escolhas discutíveis, regulamento trapalhão e uma incontrolável metástase de categorias”.

Famoso encrenqueiro, o escritor Marcelo Mirisola pôs mais lenha na fogueira, insinuando no Facebook que Oscar Nakasato teria um caso amoroso com o escritor Marcelino Freire, que segundo ele, era o tal do jurado C. “Precisa ver se o estreante não é amante do jurado, e se o livro presta... Acabei de ler a notícia sobre a confusão no Jabuti. Teve uma época que eu fi cava indignado. Depois passei ao desprezo, e agora trato o assunto como piada. Não dá para levar a sério um concurso em que Marcelino Freire, o rei da vaselinagem e do tapinha nas costas, é jurado. Vai chegar uma hora que as pessoas vão ter vergonha de ganhar esse treco.”

Também contra a estratégia do jurado C, a jornalista Raquel Cozer, da Folha de S. Paulo, publicou o texto “O que podemos aprender com o jurado C”, em seu blog A Biblioteca de Raquel. “Não defendo o que ele [jurado C] fez, só acho que sua atitude radical trouxe questões pertinentes à tona. Entre os méritos de um prêmio, está o de levantar debate, dar voz ao autor, apontar o diferente. Enfi m, tirar as coisas do lugar. Ninguém tem dúvida de que Ana Maria Machado é uma excelente escritora. Ou tem? Eu não tenho. Não fosse o jurado C, ela acrescentaria à sua prateleira

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mais um merecido Jabuti. Querendo ou não, o jurado C pôs no topo um estreante, alguém que não teve destaque ao ser publicado e que, no entanto, foi merecedor de fi gurar entre os fi nalistas, tendo concorrido com mais de cem títulos. Em última instância, é melhor que estejamos sendo apresentados a Oscar Nakasato do que venham nos repetir que Ana Maria Machado é uma excelente escritora.”

Em declaração à imprensa, o curador do Jabuti, José Luiz Goldfarb se comprometeu a alterar o regulamento do prêmio nas próximas edições, a fi m de que não apareça outro jurado C. “[...] a gente não previu essa situação e não imaginou que ele colocaria a obra em uma categoria tão baixa. Estamos pensando em novos mecanismos, de colocar mais jurados ou restringir a nota de cinco a dez. Como curador, não fi co contente que o voto de um jurado tenha um peso maior. Mas o cara foi esperto, inteligente, fez uso dos cálculos e benefi ciou as obras que ele queria.”

Goldfarb, também fez parte da comissão julgadora que elegeu Nihonjin para Benvirá, ao lado de Ana Maria Martins e Nelson de Oliveira. O Jabuti de Oscar também poderia soar como uma estratégia de marketing para dar relevância ao prêmio da editora Saraiva, que estava apenas em sua segunda edição.

Depois de umas quatro cervejas, há um alvoroço da mesa. Oscar Nakasato chega ao bar, de mão dadas com uma bela mulher, típica brasileira, de quadril largo, pele morena e cabelos encaracolados. Com farto sorriso, Oscar recebe as congratulações e os elogios de todos e nos apresenta sua mulher. Acanhado, puxa uma cadeira à mesa. Luigi enche o copo de Oscar de cerveja em sinal de reconhecimento. “Será que ganhei mesmo?”, brinca, dizendo, em seguida, que a fi cha ainda não caiu. “Não recebi nenhum comunicado ofi cial do Jabuti, por e-mail ou por telefone, confi rmando que ganhei”, comenta.

Oscar conta que recebeu a notícia por meio de sua casa editorial, a Saraiva, com quem tem contrato por mais cinco anos. Fazia compras no

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supermercado de Apucarana, no fi m da tarde, quando a funcionária da editora ligou. “Estava passando pelo caixa na hora que o telefone tocou. Eu realmente, não tinha muitas expectativas. A primeira coisa que fi z foi abraçar a minha esposa”, diz, abraçando-a novamente. Chegou em casa e abriu algumas latinhas de cerveja para celebrar e acompanhar o jantar em família, junto da mulher e dos dois fi lhos adolescentes. No outro dia, como de praxe, se levantou cedinho e seguiu para a universidade.

“Como será que é a cerimônia de premiação do Jabuti, hein?”, questiona Oscar, ingênuo, como se mais alguém ali pudesse responder àquela pergunta, senão ele. Estava ansioso. Na entrega do prêmio Benvirá, pode levar toda a família e não precisou desembolsar a grana para a passagem área ou para a hospedagem dos acompanhantes. Teve à sua disposição durante toda a tarde um motorista para poder passear por São Paulo. Foi muito bem recebido, além do que saiu de lá com R$ 30 mil na conta. Em comparação, a premiação em dinheiro do Jabuti é irrisória, algo entorno de R$ 3,5 mil. Mas ter o troféu do prêmio organizado pela Câmara Brasileira do Livro é receber a faixa de escritor consagrado e o passaporte para ser publicado em toda e qualquer editora nacional.

Quando a descontração baixou, tomou conta um silêncio embaraçoso. Nós quatro nos entreolhamos, em busca de quem seria o primeiro a tocar naquele assunto chato e indelicado. A pergunta era a granada, que a qualquer momento poderia explodir, e, por debaixo da mesa, passávamos a bomba de um para o outro. “O que vamos comer?”, diz Oscar, sereno, segurando o cardápio. “Oscar, o que você está achando da tal polêmica envolvendo o seu romance e o jurado C?”, arremata Alexandre. Oscar franze as sobrancelhas. Nitidamente surpreso, não esperava por aquela intromissão. Sem se mexer da cadeira, com o braço direito estendido no carinho à mulher, fi ca pensativo durante um instante e, em seguida, diz: “Não estou sabendo de nada”. A resposta inesperada soa engraçada e caímos juntos em gargalhadas. “Porra, Oscar, está todo mundo

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comentando na internet”, insiste Alexandre. “Nem acessei a internet. Vocês estão curtindo esse prêmio mais do que eu. Tem mesmo alguma polêmica?”, pergunta ele, tranquilo.

Pedimos uma porção de tilápia e entre um belisco e outro enumeramos as várias opiniões que estavam correndo nas redes sociais, na imprensa e nos blogs, sobre a história para ele. “Não faço ideia de quem possa ser esse jurado C”, disse. Os nomes dos jurados só vão ser divulgados daqui uma semana. Até essa ocasião, o mistério permanece. Surpreso com o barulho causado pela sua premiação, Oscar prefere se apegar ao aspecto positivo da polêmica. “Se isso está chamando atenção para o meu romance, ótimo. Tudo o que quero é ser lido”. Sabia que era merecedor do Jabuti. Ninguém ali duvidava. O nome de Oscar Nakasato estava em destaque nos maiores veículos de cultura do país. Oscar estava sob os holofotes, conquistando leitores e recebendo o feedback de importantes críticos literários. Não era um boato que retiraria aquele sorriso farto do seu rosto. Logo, mudamos de assunto.

Oscar tinha outras preocupações em mente. Havia terminado de construir sua casa nova e estava num período de mudanças. Tarefa árdua para alguém com pouco talento para lidar com questões práticas como ele. Estava também trabalhando em um novo romance. “O livro é sobre dois irmãos. Serão dois narradores, já senhores, rememorando suas trajetórias em diferentes perspectivas dos episódios que contam. A ideia é fazer com que o leitor decida quem tem razão”, adianta. Pergunto se ele vai continuar trabalhando com personagens japoneses. “A princípio era para serem dois irmãos nipo-brasileiros, mas estou percebendo que conforme a história vem se desenvolvendo, eles estão perdendo os traços japoneses. Não sei se vou conseguir manter essa descendência”, lamenta. Comento que a trama se parece com os Dois Irmãos, do escritor amazonense Milton Hatoum. Oscar se revela fã de Hatoum. “Gosto também dos clássicos de Machado de Assis e Guimarães Rosa. Acabei de ler Eles Eram Muitos

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Cavalos, de Luiz Rufatto, e fi quei perplexo. Conhece?”. E passamos noite adentro discutindo preferências literárias.

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Maringá, 14 de dezembro de 2012. Em um dia comum, a Livrarias Curitiba, do Shopping Maringá Park, não estaria tão abarrotada de gente como naquela sexta-feira, em plena sete e meia da noite. Pelo menos 60 curiosos se estreitavam pelos nichos de obras espalhadas pelas estantes que vão até a altura do teto. Alguns pisavam ali como se fosse a primeira vez. Dentre as inúmeras opções, todos faziam uma escolha em comum: levam nas mãos o livro ilustrado pela foto de uma criança perdida, confusa, em meio à multidão da rua. Um nihonjin assustado. Naquele dia Oscar Nakasato era como essa criança.

Estava agitado com a multidão. Não sabia quem cumprimentava primeiro, se os familiares, amigos de trabalho, aos alunos ou os desconhecidos. Por sorte, a memória estava a seu favor. Dentre tantos rostos estavam os de vizinhos de infância, seus professores do primário e de pessoas com quem só tinha trocado uma ou duas palavras. Se esforçava para não deixar ninguém passar despercebido. Do seu lado estava a mulher, e do outro, um grisalho alto com sobrancelhas de taturanas, que depois, fui saber se tratar de José Flauzino Alves, lendário crítico literário de Maringá e uma das únicas pessoas que chegou a ler o manuscrito de Nihonjin, ainda quente, antes de ser publicado. Flauzino é considerado crítico, não pelo diploma acadêmico - que não tem-, mas por ser um ávido leitor, que pega pesado nas sugestões.

Para a noite do lançamento de seu livro, Oscar vestiu um suéter preto sobre a camisa laranja. Aquela era uma noite fria nos parâmetros dos maringaenses, mesmo assim, as gotas de suor rolavam pela sua testa. Devia estar nervoso, faltavam apenas alguns minutos para começar

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o bate-papo com os leitores. O Chandon já estava sendo servido em pequenas taças de plástico. Os mais espertos se adiantavam para pegar o melhor assento entre o espaço improvisado pela livraria.

O mediador da conversa, mais parecia um apresentador de TV. Trajando terno e gravata, fi cou em pé, andando de um lado para o outro, gesticulando com as mãos. Do centro, sentado à mesa de vidro, Oscar respondia as perguntas com franqueza. Medindo cada palavra, ia e vinha nos raciocínios.

Nihonjin, em japonês, signifi ca “japonês”. No livro, o narrador, neto do protagonista Hideo Inabata, se dedica a recontar a vida de seus parentes, que vieram do Japão para ganhar a vida no Brasil, trabalhando como colonos nas fazendas de café do interior de São Paulo, na segunda década do século XX. Com delicadeza e precisão, o romance trata das difi culdades que os japoneses enfrentaram durante o processo de imigração, ao tentarem se adaptar à língua, aos comportamentos e valores da cultura brasileira.

No estilo machadiano, Oscar desenvolveu um narrador pouco ou nada confi ável. “Minha opção do neto para narrar a história, se deve ao fato de que eu, primeiramente, gosto de narrador em primeira pessoa. Esse narrador é mais subjetivo do que o de terceira pessoa. As principais fontes do narrador de Nihonjin são as lembranças do avô e do tio e essas recordações são frágeis, fragmentadas. Entre o tempo da narrativa e o tempo da narração há uma distância temporal de mais de cinquenta anos. Por isso, o narrador precisa usar a imaginação para criar contornos para os episódios que conta, precisa rechear a sua história. Além disso, também há um envolvimento emocional dele com os personagens”, explica.

A construção dos personagens é o que mais intriga a plateia. Difícil não se identifi car e se apegar a um deles. Oscar conta que os personagens são frutos de pesquisas sobre a imigração japonesa para

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o Brasil, no início do século XX, em livros de história, sociologia e antropologia, mas diz que consegue ver, em alguns deles, traços de seus próprios familiares, como no caso de Hideo, que tem características semelhantes as do seu tio.

A comissão julgadora do prêmio Benvirá, composta por Goldfarb, Ana Maria Machado, e Nelson de Oliveira elogiaram Nihonjin dizendo que a força literária do romance “[...] não está apenas na linguagem direta e sem fi rulas, nos personagens e nos confl itos marcantes, mas também no poder de comover o leitor”. Em 2011, o romance de Oscar também dividiu o Prêmio Bunkyô de Literatura em língua portuguesa com Contos do Sol Nascente, de André Kondo, e Retratos Japoneses no Brasil, organizado por Marília Kubota.

Antes de sua estreia no romance, Oscar não se considerava autor desse gênero literário. Apostava mesmo nos contos. Infl uência esta, que é revelada no livro. Os capítulos, concisos, ganham força própria e o livro pode ser lido como se fosse uma compilação de breves narrativas.

A passos de tartaruga, Oscar precisou de quatro anos para escrever Nihonjin. Diferentemente de outros escritores, ele não é metódico. Tentou estabelecer uma rotina para escrever, mas a indisciplina, não deixou. Por não encarar o ato de escrever como trabalho, não se prende a horários ou metas. Às vezes, passa um mês inteiro sem escrever, o que contraditoriamente, o enche de culpa. Volta, então, correndo para o computador e procura se redimir, teclando algumas linhas.

O maringaense chegou a enviar o livro para doze das principais editoras do país, como a Companhia das Letras e a Editora Record. O romance foi recusado e passou quatro anos engavetado. “As editoras são empresas e as empresas almejam lucro. Talvez, elas acharam que meu livro não tinha potencial de venda. Creio que o melhor caminho para um escritor desconhecido ser publicado são os prêmios literários”, conclui.

A escrita para ele é prazerosa. Trabalho mesmo desenvolve na

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Universidade Tecnológica Federal do Paraná, onde leciona aulas de literatura e linguagem para o ensino médio e para os cursos superiores de engenharia, tecnologia e licenciatura. “Nunca vou deixar de ser professor. Não sou um escritor que dá aulas para ganhar dinheiro. Sou um professor que escreve”, defi ne-se.

O bate-papo foi terminar quase às onze horas da noite. As portas de metais que separavam as portas de vidro da livraria do shopping começaram a descer e pararam na metade do caminho. Modo cortês de expulsar os clientes. Mas na loja, as pessoas não aparentavam estar preocupadas com o horário. Duas longas fi las se formavam: a de autógrafos e a do caixa. Depois dali, em vez de curtirem uma balada sertaneja, variadas opções de duplas sertanejas nas casas noturnas da cidade, a preferência era o aconchego da poltrona e a companhia do bom e velho livro.

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Maringá, 7 de setembro de 2013. Ninguém quis fi car em casa, pressuponho. É tarde calorosa de sábado e as janelas da rua Córdoba estão fechadas. O lugar não aparenta ser perigoso, pelo contrário, a calmaria em contraste com a agitação da avenida paralela, soa como convite para as crianças brincarem descalças do lado de fora do portão. Mas não se ouve risos, nem gritos de mães implorando para que os fi lhos não sujem as roupas, só o bater das folhas ao vento. Paro em frente ao segundo sobrado amarelo, cujas janelas, seguindo o padrão, também estão trancadas. Bato palmas, uma, duas, três vezes. Não há sinal de que alguém está em casa, a não ser o carro preto estacionado na garagem. Dentro da bolsa, procuro o celular e ligo para Oscar. “Acho que errei o endereço”. “Não. Estou te vendo, espera aí”, diz ele, ao abrir a porta do sobrado, dando risadas, quebrando o vazio da rua.

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Fazia quase um ano que não nos víamos. Tudo passou muito rápido depois do Jabuti, mas Oscar ainda era o mesmo. Convidou-me para entrar e nos sentamos nos dois sofás espaçosos, um de frente para o outro, que praticamente ocupavam todo o espaço do cômodo. Em um dos extremos da sala fi cava a televisão e no outro uma mesa redonda. Em volta do vaso de fl or no centro, estavam livros, cadernos e folhas. Um símbolo japonês, feito de tiras de tecido vermelho enfeitava a parede. “Você veio para cá por causa da Nipo?”, pergunto, em referência ao tradicional Festival Nipo-Brasileiro da cidade. “Não. Todo fi m de semana venho para Maringá. A casa da minha mãe é o ponto de encontro dos irmãos. Mas acho que vou amanhã. Tem um professor do Japão que está aqui e faz questão de me conhecer. Estou pensando em levar ele e a família para jantar lá”, conta.

Não estávamos sozinhos. Ouvia conversas vindas do interior da casa, mas durante um bom tempo, ninguém apareceu. Com o gravador ligado, Oscar começa a falar sobre a sua família. Diz que nasceu em Maringá, no dia 12 de setembro de 1963, fi lho de Yasuo Nakasato e Emiko Nakasato, que vieram de São Paulo, junto com os irmãos, para o interior do Paraná, trabalhar com cafezais. Arrendaram um pedaço da terra vermelha, na zona rural da cidade de Floresta, dividiram em quatro partes e construíram as casas uma do lado da outra. Foi no sítio, brincando com os primos, que Oscar passou boa parte da infância, até os oito anos de idade. Teve pouco contato com a língua portuguesa antes da escola. Ali, os únicos que não falavam japonês eram os empregados.

Filho caçula, Oscar estudou dois anos no colégio rural, que fi cava próximo da ponte do Rio Ivaí. O acesso à escola era mais difícil para os outros cinco irmãos. Os que já estavam no ginásio, precisavam seguir um longo caminho até o centro de Floresta. Preocupado em proporcionar a melhor educação para os fi lhos, Yasuo abandonou a condição de proprietário, vendeu o sítio e pediu a todos que fi zessem as malas.

O que ele sabia bem era cuidar de horta, era especialista no manejo

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da enxada, com a qual arrancava ervas daninhas e, melhor do que ninguém, separava os grãos de café das impurezas e os classifi cava de acordo com o tamanho. Essas habilidades, porém, não agregavam valor ao seu currículo, quando procurava por emprego na Maringá da década de 1980, que era urbanizada com extrema rapidez. Com a ajuda do primo, um dos proprietários da franquia da Mercedes Benz na cidade, Yasuo começou a trabalhar na concessionária como motorista. Era encarregado, basicamente, de fazer as cobranças e o serviço de banco. Yasuo não teve oportunidade de terminar os estudos, frequentou a escola até a quarta série do primário, mas pode assim, proporcionar a melhor educação para os fi lhos.

Oscar fez o fundamental no Colégio Estadual Santa Maria Goretti. Aluno exemplar, resolvia todos os exercícios de matemática e gramatica da cartilha Caminho Suave. Era também o escolhido pelos professores para recitar poesias no Dia da Independência e em outras datas festivas do calendário. Seu boletim, um motivo de orgulho para o pai: sempre tirou notas altas. Não seria diferente no Jabuti.

Não foi só o crítico literário Rodrigo Gurgel, o misterioso jurado C, que atribuiu notas altas para o romance de Oscar. Nihonjin recebeu duas notas 9,5, três notas 9, e uma nota 8 dos outros dois jurados, nos três quesitos de avaliação ação e enredo, constituição das personagens e técnica narrativa e originalidade. Desconsiderando as três notas 10 que o Jurado C, deu para o livro de Oscar, Infâmia, de Ana Maria Machado, teria vencido. “Essa especulação de que houve manipulação para eu ganhar me incomodou bastante. O prêmio me proporcionou muita alegria, mas teve uma hora que a chateação fi cou maior”, desabafou. Rodrigo Gurgel fugiu da cerimônia de premiação. Oscar também não foi atrás dele. “Não li e nem quero ler o romance da Ana Maria Machado. Vai que eu acho melhor do que o meu”, brinca.

Apesar de ser o romance de estreia, Nihonjin não foi o primeiro livro

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que ele escreveu. Aos onze anos de idade, meteu-se a bater um romance na máquina de datilografar que o pai tinha em casa, uma Olivetti Lettera 82 verde. “Encontrei no banco de imagens do Google a imagem de uma máquina igualzinha. Coloquei até na foto de capa do meu Face”, comenta. Ele recorda de quando os amigos do colégio entraram no curso de datilografi a, na escola do centro da cidade. Oscar quis ir junto, mas Yasuo não deixou. O curso custava caro. “Você tem uma máquina de escrever em casa, pode muito bem treinar em casa. Não precisa pagar curso”, disse o pai, que gastou uns trocados com um manualzinho usado e deu para o fi lho. Quando pegou o jeito, escreveu o romance Alma de Serpente. “Chamava-se assim, porque a protagonista era uma mulher muito ruim”, lembra. O texto era dividido em duas partes: a primeira mais puxada para o drama e a segunda para o suspense. “A personagem principal morria e fi cava no ar aquele mistério de quem matou, sabe? Parecia assim, até duas narrativas bem diferentes. Guardei por muito tempo e quando reli, achei tão ruim, tão ruim, tão ruim, que fi quei com vergonha de ter aquilo e joguei fora”, conta.

O fascínio de Oscar pela literatura surgiu ainda criança, com sete anos de idade, por meio das histórias em quadrinhos. Toda semana, ele ia para a feira livre, junto com a mãe, para comer pastéis e trocar gibis. Lá, havia uma barraca que fazia permuta de livros usados. Na ponta dos pés e o queixo apoiado na bancada, varria com o olho à procura daqueles que ainda não havia lido. O feirante, que já conhecia suas preferências, mostrava as revistas do Mickey Mouse, Pato Donald, Tio Patinhas, Pateta e Zé Carioca - todas do Wall Disney. Na quinta-série, encantou-se com as aventuras de A Ilha Perdida, de Maria José Dupré. Passava as tardes no Sesc (Serviço Social do Comércio), na biblioteca entre clássicos de Machado de Assis, José de Alencar e Eça de Queiroz ou no salão jogando pingue-pongue com os amigos.

No ensino médio, estudando no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal,

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entre os cursos técnicos que a escola oferecia, Oscar optou pelo de redação. A turma do curso de redação era popular no colégio. Eram eles os responsáveis por montar o Fagulha, jornalzinho estudantil que trazia notícias de política e literatura.

Já aos quinze anos, conseguiu o primeiro emprego, na rádio Cidade Canção FM e Difusora AM, então comandada por Nelson Rotary e Divanir Brás Palmas. A rádio fi cava na rua Joubert de Carvalho, ao lado da rodoviária, na sala 623 do Edifício Atalaia, um dos primeiros prédios da cidade, e lá permanece até hoje. Oscar chegava de manhazinha, recolhia na porta do saguão todos os jornais que a emissora assinava e os lia de cabo a rabo. Selecionava as reportagens mais relevantes e fazia um resumo das informações. Era esse texto que os locutores Lindolfo Júnior e Vera Rotary liam quando o noticiário entrava no ar. Quando o estágio terminou, Oscar foi contratado como redator e fi cou mais dois anos trabalhando na rádio. Depois subiu de cargo e passou a fazer a parte mais burocrática do escritório, organizar a grade da programação comercial e resolver as questões de RH. Mas não era o que ele queria.

Quando chegou a época de vestibular, ele e mais um grupo de amigos do curso técnico de redação subiram no ônibus e foram para a Universidade de São Paulo, a fi m de fazer a prova para o curso de jornalismo. Ninguém passou. Alguns insistiram na ideia e conseguiram anos mais tarde. Outros se mudaram para Curitiba. Oscar, indeciso, conseguiu um estágio na agência da Caixa Econômica Federal e foi fazer cursinho no Colégio Paraná. Ele queria fazer jornalismo porque gostava de escrever e a ideia do curso de letras lhe parecia repugnante. Não queria ser professor de jeito nenhum. Dos poucos cursos oferecidos pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) na época, decidiu ver qual era a do direito. Afi nal, esse era um dos cursos mais prestigiados, o mais concorrido, e diziam que o aluno teria de ler bastante. Passou em primeiro lugar geral no vestibular. “Tirei uma nota muito boa na redação.

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Lembro até hoje da descrição que escrevi”, conta, orgulhoso. “Sempre fui bastante disciplinado.”

Disciplinado não era como o governo costumava adjetivar os ativistas do movimento estudantil, do qual Oscar fez parte assim que entrou na faculdade, no início da década de 1980. Associou-se ao diretório acadêmico e andava na cola de Ademir Demarchi e Jairo de Carvalho, dois grandes líderes estudantis da época. Fizeram movimentos fortes e importantes dentro da universidade. “Lutamos para acabar com o ensino pago. Precisávamos pagar uma mensalidade, não lembro quanto, e só depois a UEM se tornou gratuita. Também, por algumas vezes, brigamos pelo preço do ticket do Restaurante Universitário”, recorda, Oscar, que logo tenta encerrar o assunto. “Aos poucos, larguei a militância, não por um motivo especial. Fui meio que desistindo”, diz, enquanto rodopia com o dedo indicador o meu gravador, que está em cima do braço do sofá. Oscar fi cou em silêncio durante um momento de introspeção e não parecia estar consciente de seus movimentos. Fiquei com medo de que ele, sem querer, apertasse algum botão e desligasse a gravação, mas nada disse sobre o devaneio.

Logo quando entrou no curso de direito, não gostou das aulas. Só não desistiu de cara por causa do peso de ter passado em primeiro lugar num curso tão renomado. Durante esse período, chegou a ganhar o concurso de poesia de Paranavaí (66 km de Maringá), promovido pela Faculdade Estadual de Educação, Ciência e Letras. Imitando os autores da “geração mimeógrafo” dos anos 1970, imprimia seu caderninho, grampeava e distribuía seus versos pelos corredores da universidade. Guardou o troféu e o caderno de poesias durante muito tempo, mas acabou perdendo-as nas mudanças.

Oscar aguentou o curso até a metade do segundo ano. Não insistiu. Não era o que ele queria. Sem saber o que fazer da vida e com o fi m do contrato do estágio na Caixa, fi cou angustiado, perambulando

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atrás de uma solução. “Falei para mim mesmo, não vou fi car parado não. A primeira coisa que aparecer, eu pego”. Cheio de convicção, não pensou duas vezes, quando um amigo lhe ofereceu um emprego numa empresa de reforma e vendas de balanças. A ofi cina era pequena, o amigo tomava conta do caixa e precisava de alguém para mexer com a parte fi nanceira e ajudar com as vendas. Oscar fi cou entre os balcões por dois anos. Só saiu de lá para ser professor substituto na UEM.

Meio ano depois de abandonar o curso de direito, ele prestou vestibular para letras. Mesmo assim, não pensava em ser professor. “Resolvi fazer letras porque gostava de literatura.” Mudou de opinião sobre não ser professor, logo nos primeiros anos do curso. Certamente, motivado pelos profi ssionais dos quais foi aluno e hoje cita com admiração: Milton Hermes Rodrigues, Alice Aurea, Marli Furtado, Valter Pelegrine, entre outros.

Ministrou a primeira aula aos vinte e quatro anos, para uma turma do ensino médio do Colégio Estadual Santa Cruz, fundado pela congregação religiosa das Irmãs Carmelitas da Caridade de Vedruna. “Deve ter sido horrível. Fiquei muito nervoso.” Oscar não tinha muito tato e não conseguia lidar com a indisciplina dos alunos, que acabavam tomando conta da sala. A molecada era adolescente e ele também era muito jovem, o que gerava o desacato. “As irmãs viviam reclamando comigo porque eu não tinha domínio da turma. Não tinha voz ativa na sala de aula e, em função disso, perdi o emprego”, lembra. Hoje ele ri das aventuras de iniciante no quadro negro.

Com o diploma na mão, Oscar passou no teste seletivo da universidade e foi, por dois anos, professor substituto. Depois, conseguiu bolsa para o mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, na Universidade Estadual Paulista (UNESP), orientado

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por Luiz Antônio Figueiredo. Passou no concurso do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) e se mudou para Campo Mourão (91 km de Maringá), em 1996, para dar aula de língua espanhola no CELIN, centro de letras da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão. Naquele ano também se casou.

Em 1999, foi o premiado com os contos Alô e Olhos de Peri no Festival Universitário de Literatura, promovido pela editora Cone Sul. Em 2003, venceu o Concurso Literário da Secretaria de Cultura do Paraná com o conto Menino na Árvore. No mesmo ano, Oscar entregou sua tese de Doutorado na Unesp. A proposta era pesquisar sobre os personagens japoneses na fi cção brasileira. Escolheu esse tema como uma forma de resgatar a própria identidade. Durante um período da adolescência, foi meio rebelde. Não chegou a negar, mas não gostava de ser descendente de japonês. Achava os brasileiros mais expansivos, alegres, divertidos, soltos e, por isso, procurava a amizade de não nipônicos. “Quando tive de escolher o assunto da minha tese, pensei em resgatar um pouco dessa minha cultura. Era como se estivesse devendo alguma coisa para os meus pais”, revel.

Encontrou personagens japoneses em Amar Verbo Intransitivo, de Carlos Drummond de Andrade; nos contos A Prostituta Japonesa, do escritor curitibano Valêncio Xavier; O Japonês de Olhos Redondos, da Zulmira Ribeiro Tavares e em algumas obras de escritores nipo-brasileiros, a exemplo do livro Sonhos Bloqueados, de Laura Honda Hasegawa. A escassez de material motivou Oscar a escrever Nihonjin. No início, não tinha a intenção de escrever um romance. O desejo veio com o tempo. “Comecei a escrevê-lo antes mesmo de defender a tese”, conta.

O feedback que Oscar vem recebendo sobre o livro tem se mostrado diferente entre os brasileiros e nipo-brasileiros. “A percepção dos nipo-brasileiros é a mesma que tive quando terminei de ler o texto da

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Laura Hasegawa. Tive certeza de que aquele livro só poderia ter sido escrito por alguém muito íntimo da cultura japonesa. O sentimento que perpassa todo o romance é de um descendente, de um indivíduo dividido entre duas culturas.”

Para conseguir transmitir essa sensação, Oscar precisou debruçar-se sobre os livros de história, sociologia e antropologia para contextualizar o romance. O livro Corações Sujos, de Fernando Morais, também serviu como fonte de pesquisa e inspiração. Mas o diferencial do Nihonjin, o que humaniza o texto, é resultado das lembranças de quem realmente passou por aquelas situações: Emiko.

“Usei as lembranças da minha mãe, no segundo capítulo, quando as crianças vão descalças para a escola brasileira. Lembro que ela me contava da difi culdade de ir para a escola. Na chuva, era barro e no sol, o chão fi cava muito quente. Ela dizia que tinha de correr da sombra de um café para o outro. Aproveito também as memórias, no episódio em que Hideo mata o porco. Os personagens saem da condição de colonos e arrendam o sítio, o que foi uma evolução natural. Grande parte dos nipo-brasileiros passou por essa transição de mobilidade social. Os japoneses, acostumados a comer peixe no Japão, quando se mudam para cá são obrigados a comer carne de porco. E matar um porco não é fácil, precisa acertar direto no coração. Lembro quando meu pai tentava matar porco no sítio onde morávamos. Minha mãe e eu fi cávamos ouvindo o bicho esperneando de dor.”

Como se estivesse à espreita, a dona das lembranças entra na sala. Emiko esconde a vitalidade do espírito por baixo da estatura miúda e magrinha. Tem os cabelos curtos, ao pé do pescoço, e carrega nas mãos tremulas uma bandeja de alumínio. A agitação faz as xícaras baterem no pires e o tilintar acompanha seus passos cuidadosos até a mesa redonda no canto da sala. Os inúmeros objetos em cima da mesa, a impedem de descansar os braços. Pousa, então, a ponta da

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bandeja na beirada do móvel e, com voz macia, diz algo para Oscar que não entendo. “Você aceita um café?”, Oscar pergunta, traduzindo as palavras da mãe. Aceito, acenando com a cabeça. Ela, então, ergue novamente a bandeja e caminha cuidadosamente em nossa direção. Senta-se ao meu lado e derrama o café da garrafa na xícara e me oferece o açúcar, apontando para o pote. Serve, depois, o fi lho.

Eles conversam em japonês e eu, inutilmente, me esforço para compreender. Ele se inclina para o lado dela, para falar mais perto do seu rosto, como se lhe confi denciasse algo. Com a cabeça baixa, Emiko presta atenção. Quando Oscar termina de falar, ela ergue os olhos do chão para a minha direção e com um sorriso simpático expõe o segredo do fi lho em voz alta: “Nihonjin”.

O livro está sendo traduzido para o japonês e publicado, por capítulos, numa revista do Japão. “Agora minha mãe está conseguindo ler, né mãe?”, pergunta Oscar para ela, que responde com uma expressão de incompreensão. Oscar faz a pergunta, novamente, em japonês. Ela, orgulhosa diz que sim, apontando para o exemplar que seguro nas mãos. E em seguida me oferece mais açúcar. “Não, muito obrigada.”

*

Maringá, 16 de setembro de 2013. Ao lado de José Castello, Oscar entra timidamente no salão social do Sesc. Os dois escritores são a atração de abertura da Semana Literária. Mas boa parte do público está ali por causa do maringaense. Trazem de casa um exemplar de Nihonjin. Ele parece bem mais à vontade nesta noite do que no lançamento do livro na Livrarias Curitiba. Quando alguém da plateia faz uma pergunta, Oscar saca da manga uma resposta pré-formulada, concisa e vai direto ao ponto. Sei pouco de Oscar; o público, também.

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UM ERRO EMOCIONAL

“Escritores não são pessoas boas”, disse-me Cristovão Tezza, pausadamente duas vezes. A frase não faria sentido no contexto em que estávamos - não fosse aquele telefonema. Eu, assim como vários outros fãs e leitores, estava na fi la de autógrafos, levando entre os braços O Filho Eterno, Um Erro Emocional e O Espírito da Prosa. Ele da mesma forma, como vários outros escritores, participava do evento literário, distribuindo autógrafos e posando para fotos com um largo sorriso no rosto. Quando chega a minha vez, elogio a palestra e estendo um dos livros. “Esse é para o meu namorado, Alexandre Gaioto”. Com cautela, Tezza escreve a dedicatória. Enquanto isso, pouso os outros dois exemplares na mesa e os arrasto para perto dele. “Esses são meus.”

- “Qual seu nome?”, questiona, ainda com a cabeça baixa. - “Ariádiny”, digo.Visivelmente constrangido, Tezza solta uma gargalhada sem

graça e me encara. Com os olhos arregalados, a boca aberta exibindo os dentes amarelados e as sobrancelhas tão erguidas, que pareciam querer saltar da testa, ele diz, surpreso: “Então é você!”

Era a primeira vez que nos encontrávamos.

*

Momentos antes, os ingressos haviam esgotado para a quarta sessão do dia, “Viagens pela leitura: livros importantes e impactantes na formação do leitor”, do Litercultura. Tezza entrava no salão do Palácio Garibaldi, em Curitiba, acompanhado do jornalista e tradutor Christian Schwartz, que organizou a coletânea de crônicas do escritor Um operário em Férias, feitas para o jornal Gazeta do Povo. Schwartz foi aluno de Tezza, na Universidade Federal do Paraná (UTFPR). Como professor Tezza atuou na UTFPR entre 1986 e 2009, quando

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o escritor parou para se dedicar plenamente à literatura. Os dois são vizinhos no bairro Alto da Glória e torcem para o mesmo time, o Atlético Paranaense.

Mesmo já tendo participado de inúmeros outros festivais literários, Tezza parecia desconfortável ao se expor em público. Sentia nos olhos intrigados da primeira fi leira, aquele desespero de encontrar o escritor por trás dos livros. Será que lhes agradaria? Fez um silêncio retórico, depois da primeira pergunta, e bebeu um gole de água no copo de plástico, com uma certa pose, para sentir a temperatura da plateia e ganhar tempo. Para quebrar o gelo, arriscou uma piada: “Saí de casa com esse dia tipicamente curitibano e pensei: ‘não vai ter ninguém lá. Quem vai querer ver o Cristovão com esse frio?’. Chego aqui e está lotado. Curitiba, realmente, tem umas surpresas extraordinárias”. Funcionou. Como um adulto que escolhe suas lembranças ao sabor de suas secretas preferências, começou a contar o desenrolar da sua história como leitor e escritor.

Catarinense de Lages, Cristovão Tezza é um típico exemplar do século vinte que teve a felicidade de viver experiências muito fortes do ponto de vista histórico social brasileiro. Quando menino, acompanhou a passagem do Brasil predominantemente agrário nos anos de 1950, para o Brasil industrial, urbano. “Lembro, de quando criança, a carroça trazendo lenha para o fogão e da primeira geladeira chegando em casa”. Aos sete anos de idade, foi abalado com a morte do pai, causada por um acidente de trânsito, e se mudou com a família para Curitiba. Foi morar num apartamento da rua Mateus Leme, mantido pelo irmão mais velho, que acabara de passar num concurso do Banco do Brasil. “Pela primeira vez na vida, entrei num elevador. Vim para uma cidade fria e onde as pessoas tinham fama de inóspitas e, de repente, estava trancado no quarto, pegando os livros que havia herdado do meu pai.”

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O primeiro gesto literário de Tezza aconteceu em torno dos seus dez anos de idade. Afi cionado por miniaturas, cortava folhas tamanho ofício em quatro ou em oito partes iguais. Cobria as folhinhas com uma capa e costurava com linha e agulha a breve lombada. Em seguida, copiava nos livrinho as histórias dos seriados, que passavam na televisão em preto e branco. Fazia também pequenas câmaras de TV com papelão, cola e caixas de fósforos. Antes mesmo de criar na cabeça, por mais vaga que fosse, uma ideia de literatura, a paixão de Tezza pelos livros começou, assim, pela simples imitação de suas formas.

Dos livros que havia herdado do pai, os que mais chamavam a atenção do garoto eram os da coleção jurídica, que formavam dois metros de lombadas vermelhas, intitulados Revistas dos Tribunais. Daquelas páginas amareladas e manchadas de mofo, lia as súmulas sem entender nada do que estava escrito ali, mas, de algum modo, aquele linguajar se vinculava aos seriados policiais que ele assistia na TV, o que lhe despertava um interesse secreto. Gostava de ler também a coleção portuguesa de poetas românticos brasileiros do século XIX. Exibido, sabia de cor os poemas e declamava, orgulhoso, versos de Castro Alves, Fagundes Varela e Cassimiro de Abreu. “Não sei se a gurizada de hoje tem esse tipo de experiência com a literatura do próprio país, mas eu fi cava imaginando como era o século XIX, todo mundo morrendo tubérculo aos 21 anos. Ficava pensando como seria escrever apenas à luz de vela”, devaneia.

Decorou também muitas frases de efeito de peças, como o monólogo de Pedro Bloch, As Mãos de Eurídice, um dos mais espetaculares sucessos mundiais da década de 1950, com direção de Sean Connery. Um dramalhão cujas críticas de natureza moral e sexual eram inacessíveis a um menino de dez anos. Na garagem de casa e sob os aplausos de vizinhos, adultos e crianças, representou

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esses trechos numa performance de cinco ou dez minutos. Além de ator, também gostava de brincar de ser produtor na infância. Transformou os personagens de A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, em marionetes e montou um teatrinho com a caixa de papelão amarrada sobre a mesa. Gostava ainda do francês Júlio Verne, autor de A Jangada, e o britânico Arthur Conan Doyle. Durante as aulas chatas de latim do ginásio, fi cava com o livro escondido debaixo da carteira, coletando as pistas ao lado de Sherlock Holmes para resolver os mistérios de O Signo dos Quatro. “São três autores iluministas. A obra de Monteiro Lobato é um ataque ao obscurantismo. Nas suas histórias, tudo tem explicação e a magia não passa de puro truque. Júlio Verne é herdeiro do progressismo, do grande cientifi cismo. Seus textos têm uma divisão muito clara entre o bem e o mal e apresentam uma visão eurocêntrica do mundo. E Sherlock Holmes prega o triunfo da razão. O detetive é aquela fi gura que chega ao local e, por meio da pura inteligência, descobre quem é o assassino. Essas leituras formaram em mim uma cabeça dos anos 1950, pós-guerra, com grande crença na ciência, no progresso, na inteligência e na razão.”

Aos quatorze anos de idade, aprendeu a datilografar sem ajuda de um professor. A máquina portátil italiana, também herança do pai, fi cava guardada em cima do guarda-roupa da mãe, como um objeto intocável. Escondido, durante as tardes livres em que não havia ninguém em casa, colocava papel-jornal na máquina e, disciplinado, treinava com um manual velho e sujo, sem olhar para o teclado. Quando se viu expert nas marteladas, decidiu fazer uma exibição. Vedou os olhos e datilografou todas as frases desafi adoras, lançadas pela família. O talento do fi lho impressionou a mãe, que o pegou pelo braço e o levou até um escritório de advocacia. “Ele bate à máquina como gente grande”, ela garantiu. Assim, Tezza arranjou o primeiro

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emprego. Entre as duas e as seis da tarde, sempre sobrava um tempo livre no escritório. Na saleta de paredes verdes, cortinas pesadas e sobre a mesa imensa, leu praticamente toda a obra de Júlio Verne, as obras políticas de Lênin, antologias de clássicos como Tchekhov e Machado de Assis. Sempre autodidata, fazia reforço do francês em um livro escolar mais avançado que o do colégio.

Sem saber, organizava cada passo da sua vida em torno da ideia de ser escritor. Escreveu apenas alguns poemas, que hoje considera ridículos, e uma história policial intitulada Crime na Noite. No colégio, chegou a comercializar algumas histórias datilografadas e grampeadas e vendeu um conto de amor, feito sob encomenda, para um colega que queria presentear a namorada. Do salário que recebia no escritório, metade ia para casa e outra metade gastava na livraria de um comunista histórico da cidade, responsável por indicar as primeiras referências literárias e políticas a Tezza.

Num segundo momento, nos anos de 1950, durante a adolescência, Tezza foi um bicho-grilo da contracultura. Sentiu na pele as profundas transformações culturais, refl exo da polarização do mundo entre capitalismo e comunismo e da revolução dos costumes. “Havia a questão da União Soviética e dos Estados Unidos, a guerra do Vietnã, os Beatles, a pílula anticoncepcional, o desmoronamento das grandes instituições religiosas e também o golpe militar. Eu tinha entre quatorze para dezesseis anos, justamente naquele período em que você está tentando descobrir quem você é.”

Assim como outros jovens da sua época, ele queria mudar o mundo para melhor. Tinha a alma invadida pela ideia da revolução. “O comunismo era uma utopia, espécie de sonho de transformação social, que encontrou na adolescência um território fértil. É a fase em que você quer modifi car o mundo, cheio de idealismos. No ponto de vista político, éramos contra o sistema. Queríamos chutar

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o pau da barraca, destruir os costumes, implodir a família. E o meu projeto de escritor estava inserido dentro desse projeto existencial. A primeira coisa que queria fazer era sair de casa. Casa era um lugar opressivo, você tinha que sair, ser independente. Hoje, ninguém mais quer sair de casa. Todo mundo prefere fi car até os trinta, quarenta anos morando com os pais. Eu não. Com dezesseis anos, queria me mandar.”

Tezza ainda estudava o ensino médio no Colégio Estadual do Paraná, em 1968, quando passou a integrar o Centro Capela de Artes Populares (CECAP) e a conviver com o grupo de teatro numa espécie de sociedade alternativa localizada em Antonina, cidade localizada entre a Baixada Paranaense e a Serra do Mar. Às sete horas da manhã pegava o trem que saía de Curitiba com destino à Morretes. Lá, esperava mais uns quarenta minutos até pegar o segundo trem que desembarcaria em Antonina.

Era comum que os jovens da época tivessem um guru, espécie de mestre que lhes indicassem um caminho alternativo ao do racionalismo ocidental, a exemplo do que foi Ravi Shankar para os Beatles. Tezza também encontrou o dele, o dramaturgo, escritor paranaense e messias sem cunho religioso Wilson Rio Apa. “Ele tinha uma capacidade muito grande de aglutinar pessoas em torno de um projeto. Era uma fi gura muito carismática. Conviver com ele e o grupo de malucos era tudo o que qualquer mochileiro desocupado, que chegava a Curitiba, queria fazer. Viver em comunidade foi um projeto selvagem de levar a minha própria vida. Era legal, a gente fazia teatro e viajava por todo o Brasil. Quer dizer, foi um período bom para mim de experimentos e de leituras.”

Das leituras, as mais marcantes foram As Portas da Percepção e O Céu e o Inferno, de Aldous Huxley. Dos experimentos, a maconha. “Huxley foi um intelectual da mais alta estirpe, bisneto de Th omas

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Huxley, que, junto com Charles Darwin, foi um dos elaboradores da teoria das espécies. Um inglês, daqueles altamente sofi sticados, foi para o México experimentar peyote [cacto que, quando consumido, produz efeitos alucinógenos] e voltou dizendo que a droga era uma via alternativa, que poderia ser um substituto para as religiões ofi ciais. Isso era tudo o que os jovens daquela época queriam ler e ouvir”, brinca.

Sobre a sua passagem pela droga, o escritor a descreve em O Espírito da Prosa (2012), espécie de autobiografi a literária, como algo “felizmente fugaz”. Diz não ter tido interesse em conhecer a pira gerada pelo LSD e que só chegou a ver uma carreira de cocaína nos fi lmes. “Minha desconfi ança veio talvez de um breve trauma adolescente: uma experiência com um amigo de cheirar no lenço uma substância que lembrava lança-perfume e que dava ‘barato’ provocou um efeito violento na minha cabeça que durou mais dois dias, um zunido com dor de cabeça. Praticamente criança, fi quei realmente assustado, quase em pânico, e até hoje me vem a ideia de que talvez aquilo tenha levado para sempre algum estabilizador do meu cérebro...Nunca mais repeti a dose. De qualquer modo, a droga típica do tempo era a inocente maconha, às vezes plantada em vasos, que experimentei algumas poucas vezes, sempre em rituais comunitários, com um certo espírito de laboratório, para conferir ao vivo seus efeitos, que não me impressionaram.[...] Em suma, as drogas ilegais não fi zeram a minha cabeça. Das legais, fui fumante compulsivo até os 45 anos, quando consegui largar completamente o cigarro, graças à própria nicotina, que apliquei em adesivos durante um tempo até me livrar da dependência. Restou o álcool, que uso (apenas na forma de cerveja) em fi ns de semana.”

Incentivado por Rio Apa, Tezza participou como iluminador, contrarregra, sonoplasta, cenógrafo e ator, em vários espetáculos

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teatrais. Entre eles, a primeira peça de Denise Stoklos (hoje conhecida internacionalmente por ter criado o teatro essencial), Círculo na Rua, Lama na Rua, em 1968, e no ano seguinte de duas montagens do grupo XPTO, dirigido por Ari Pára-Raio, ambas em Curitiba. Tentou também seguir carreira como dramaturgo. Uma de suas peças, intitulada o Monólogo do Amanhã, que expunha a fala de um jovem revoltado contra o sistema, foi apresentada em bares de Antonina e Curitiba.

O teatro exerceu forte infl uência na literatura de Tezza. Em seus textos, o lado dramático se sobressai. Há certa intensidade emocional, que parece ter vindo diretamente do palco. Não por acaso, seus livros foram facilmente adaptados para o teatro, como a montagem de O Trapo, com direção de Ariel Coelho; O Filho Eterno, nas mãos de Charles Fricks, e a mais recente montagem de Beatriz, produzida pela companhia Atores de Laura, do Rio de Janeiro.

Em 1970, aos dezessete anos, avesso ao terno e gravata e aos intelectuais acadêmicos, o hippie Cristovão tentou fugir da universidade navegando pelo mar. Por imitação do guru, que havia sido marinheiro, e também pelo fascínio com a imagem do escritor e marinheiro de Joseph Conrad, Tezza se alistou na escola de ofi ciais da Marinha Mercante do Rio de Janeiro. “Para não entrar na academia, surgiu a ideia de ser piloto da Marinha, viajar pelo mundo, olhar o horizonte, o mar e escrever obras-primas. É, no fundo, eu sou um sujeito romântico”, pondera.

Tezza tentou ser piloto, justamente no pior período, o da ditadura militar comanda por Médici. A Marinha Mercante estava sendo tocada pela Marinha de Guerra, uma das mais reacionárias e terríveis. “O regime era puxadíssimo. Você levantava às cinco horas da manhã e tinha que correr. Eu fi quei forte, fez bem para a saúde em alguns aspectos, mas também precisava dar serviço. Ficava da

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meia-noite às quatro horas, três vezes por semana, de guarda”, conta. Péssimo guarda, passava as madrugadas no alojamento da escola lendo Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Sufocado pelo pesado militarismo da instituição, falsifi cou a assinatura da mãe e pediu dispensa. “Não ia aguentar. O curso tinha mais uns três anos. Sou o único marinheiro que jamais entrou num navio.”

Malogrado o projeto de se tornar ofi cial da Marinha Mercante, Tezza pesquisou sobre a hipótese de ser árbitro de futebol e, por pouco, não entrou em um curso para tirar o brevê de piloto civil. Para ele, nada disso importava. Essas seriam apenas ocupações pragmáticas, meios de ganhar dinheiro. O essencial parecia estar sempre em outra parte, na página em branco. Decidiu então, novamente, refugiar-se na comunidade rio-apiana, longe das obrigações escolares, dono do próprio destino.

Tezza queria escrever um conto qualquer de Machado de Assis, um parágrafo de William Faulkner, um poema com a simplicidade de Carlos Drummond de Andrade, um romance que Mário Vargas Llosa assinasse sem pestanejar. Queria escrever como se já fosse Manuel Bandeira. Pensava no máximo, desejava o máximo. Foi com essa ambição que, metódico, escreveu três calhamaços de duzentas páginas cada. O primeiro, O Papagaio Que Morreu de Câncer, com enredo rocambolesco, contava a história de um grupo de crianças que foge de casa e funda uma comunidade liderada por um papagaio. O segundo romance, intitulado A Máquina Imprestável, relatava a maneira como uma máquina gigantesca destinada a destruir uma cidade, atolada e invadida pelos habitantes, acabou se transformando em uma favela. O terceiro calhamaço, A televida no estilo de José Saramago, narrava os efeitos colaterais fantásticos da televisão sobre os telespectadores, como a cegueira e a surdez. Chegou a enviar os

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originais para o editor Caio Graco, que trabalhava para a Brasiliense, que lhe deu uma resposta encorajadora. Mas em Tezza prevaleceu a angústia literária. Ainda não era um Manuel Bandeira - não precisava ser. Precisava era se desamarrar das infl uências para encontrar autenticidade e renascer como escritor. A primeira amarra da qual se desvencilhou foi a de Rio Apa.

De súbito, ele se viu em Portugal, numa viagem só de ida. Havia conseguido uma matrícula no curso de letras da Universidade de Coimbra, por meio do Convênio Luso-Brasileiro. O cunhado lhe pagou uma passagem pela Varig, uma dura aquisição de 24 prestações. Tinha a mochila nas costas e duzentos dólares no bolso. Quando chegou, a faculdade estava fechada. Era 1974, ano da Revolução dos Cravos. Tudo bem, ele não tinha o menor interesse pelo ensino regular, além da carteira de estudante que lhe garantia refeições baratas. Ir para Coimbra foi apenas um pretexto para sair do Brasil e viajar. Estabeleceu-se na pensão de número 14 da rua Henrique, localizada no alto da cidade. “Era a pensão de um grupo religioso protestante. Eu era tão revoltado que na hora de preencher o formulário, no quesito religião, coloquei ateu. Por alguma misteriosa razão, Deus me protegeu e eu consegui a vaga. Era um lugar de preços módicos e tinha água fi ltrada”, lembra.

Tezza viveu um doloroso ano de solidão. Sua rotina baseava-se em ler, estudar e escrever. Desembarcou três ou quatro vezes na Alemanha, em Frankfurt, onde costumava fazer uns bicos. Trabalhou no Hospital das Clínicas, esticando lençóis e lavando louças. À noite, exausto, dormia nos porões ao lado de inúmeros outros imigrantes. “Nunca vi um alemão na vida. Só árabe, espanhol, português, italiano”, brinca. No exterior, escreveu 15 contos que, juntos, formaram o seu primeiro livro, A Cidade Inventada, publicado cinco anos mais tarde pela Coo Editora. Livro que, atualmente, faz questão de

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recolher dos sebos, quando se depara com uma das edições. “Leiam cuidadosamente A Cidade Inventada e por certo vão constatar a harmonia, a beleza e a cultura criativa que uma obra de arte ensina”, aconselha W. Rio Apa, que assina a orelha do livro.

De volta ao Brasil, aos vinte e quatro anos de idade, Tezza fez um curso de relojoeiro por correspondência e abriu uma relojoaria em Antonina que batizou de Cinco em Ponto, em referência ao poema de Rodrigo Garcia Lorca. Casou-se em 1977 e, no mesmo ano, entrou para a graduação de letras na Universidade Federal do Paraná. “Era estudante tardio, sempre fui meio retardado. Eu era aquele barbado sentado na última fi la, ouvindo aulas sobre teorias literárias. Aliás, era um bom curso. Não vou jogar pedras. Tive uma boa formação, mas eu era arrogante demais para achar isso”, reconhece. Como passatempo, começou a rascunhar nas aulas uma série de poemas em que descrevia os 29 modos de assassinar a poesia. Eram poemas-piadas, à maneira modernista de Oswald de Andrade. Um colega leu e lhe sugeriu: “Por que você não compila isso em um livro e publica?”. “Não vou assinar isso. É apenas uma brincadeira”, respondeu. Mas, a partir de então, passou a imaginar alguém que pudesse se responsabilizar por aqueles versos. Foi assim que surgiu o poeta Trapo, personagem do romance homônimo, que lançou o nome de Cristovão Tezza nacionalmente, em 1988, quando foi publicado. “Isso é típico de um prosador, um covarde que não assina embaixo. O poeta escreve e assina. A afi rmação que o verso faz do poema está intimamente ligada ao que o poeta pensa do mundo, não há divisão. Quando você lê um poema, está lendo o poeta. Já o prosador, não. Ele é um sujeito que se esconde, sempre cria um alguém que diz as coisas que ele quer dizer, para poder se sentir seguro. Ele pode criar narradores canalhas, o que um poeta não pode fazer. O poeta nunca é canalha. O poeta não mente. O bom poeta não faz isso. O prosador

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está distante, tem sempre um passo entre ele e a linguagem dele”, explica.

Nos dez anos seguintes, publicou os romances Aventuras Provisórias (Prêmio Petrobras de Literatura de 1987), Juliano Pavollini (1989), A Suavidade do Vento (1991), Uma Noite em Curitiba (1995), Breve Espaço Entre Cor e Sombra (Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional de melhor romance de 1998), O Fotógrafo (prêmios da Academia Brasileira de Letras e Bravo!, de melhor romance de 2004), entre outros.

Obra-prima do escritor, O Filho Eterno foi lançado em 2007 pela editora Record, e apesar de ter sido classifi cado na categoria romance, é um texto fortemente autobiográfi co. Foi com certa insegurança e até resistência que Tezza decidiu escrever sobre a relação de um pai com um fi lho portador de Síndrome de Down, história que guarda grande semelhança do convívio entre o escritor e seu fi lho, Felipe, nascido em 1980. A ideia era uma espécie de tabu para o escritor, um buraco negro temático na sua literatura. “Antes de 2000, essa hipótese nem passava pela minha cabeça. Aos poucos, veio a vontade de enfrentar o tema. Minha relação com Felipe já não era problemática havia muitos anos. Quer dizer, eu já não tinha problemas com ele - ele nunca teve problemas comigo. O Felipe já tinha me transformado completamente. O único problema que a gente tinha era quando o Atlético perdia o jogo e ele fi cava triste. Então, isso não era mais um problema existencial”, conta. Resistiu durante anos em tratar do tema. Tinha medo, não tanto da exposição pública, mas do peso do assunto. Temia ser mal recebido. Podia escorregar para a autoajuda, a literatura edifi cante ou apenas para o derramamento emocional pela confi ssão. Mas o tema se impôs como inevitável: “Não poderia passar o resto da minha vida sem escrever sobre o fato mais importante que aconteceu na minha vida. Comecei a fi car incomodado. Queria

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enfrentar isso de alguma forma.”Depois de ler Uma Questão Pessoal, do japonês Kenzaburo Oe,

sobre a reação de um pai que recebe a notícia de que seu fi lho nascera com anomalia cerebral, Tezza percebeu que era possível, sim, escrever um bom romance sobre assunto tão delicado. “Primeiramente, quis fazer um ensaio. Fui tateando e escrevendo de várias formas. Percebi que havia criado um personagem, logo nas primeiras páginas, que era descaradamente eu mesmo, mas um outro do ponto de vista narrativo ”, conta. Esse recurso sintático que mostra um narrador que fala de fora, mas ao mesmo tempo, subitamente, está na cabeça do personagem, acabou se tornando uma marca na linguagem de Tezza, em seus livros subsequentes. “De repente, só tinha uma questão literária a resolver, porque o escritor só é livre com a página totalmente em branco. Quando ele escreve, duas, três, cinco, dez palavras, ele já está escravo do que começou a escrever. Isso me deu uma liberdade imensa. Eu consegui me afastar daquele pai, vê-lo de longe, e pude ser cruel e distante, o sufi ciente, para criar o romance. A fi cção me deu essa arma.”

Tezza chegou a hesitar em mudar o nome dos personagens e substituir a cidade, para evitar a aparência biográfi ca. “Mas daí pensei: ‘por que eu vou fazer isso?’ Esses detalhes são golpes de realidade que eu queria ter dentro do livro para manter a dramaticidade que me interessava. Para o texto não escapar e eu não querer mentir demais. Mas do ponto de vista de narrativa é um romance. O livro se estrutura como tal. Fui ver a peça da adaptação e fi quei chocado. Não me reconheço naquele pai. Pensei: ‘eu não escrevi isso aí. Não sou esse mostro’. Claro, o teatro dá uma carnalidade para o texto, que é uma coisa, assim, brutal. A literatura nos defende, tanto que é uma leitura silenciosa. Você se choca, fecha a página, para um pouco, refl ete e continua. Agora, o teatro bota alguém de carne e

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osso dizendo aquelas frases. A literatura pega momentos chaves da vida da pessoa e dá uma superexposição para isso, dá um tipo de foco muito largo. É justamente isso que dá a intensidade literária”, considera.

Assim que o livro foi lançado, Tezza pediu que a sua fi lha mais velha, Ana Rosa Tezza, retirasse todas as fotos de Felipe das redes sociais. Sabia que a imprensa cairia em cima. Numa rara apreciação, o escritor levou o fi lho para o estádio do Atlético Paranaense. Na ocasião, o time fazia uma homenagem à obra.

Aclamado pela crítica, O Filho Eterno teve impacto inédito no panorama fi ccional no país. Abocanhou os mais importantes prêmios literários brasileiros, como o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), em 2007; São Paulo de Literatura, Bravo! e Jabuti, em 2008, e Prêmio Zaff ari & Borbon, em 2009, além de ter sido contemplado com o Prêmio Portugal Telecom. Mereceu reedições e traduções em mais de cinco países. Neste ano o romance saiu em inglês, nos Estados Unidos, pela editora Tagus, e na Inglaterra, pela Scribe.

Do O Filho Eterno para cá, ele lançou Um Erro Emocional (2010), a obra de contos Beatriz (2011), O Espírito da Prosa (2012) e a mais recente coletânea de crônicas Operário de Férias. “Estava sentindo falta de pegar um romance com mais fôlego, como neste que estou trabalhando agora. Vou dizer o título, mas quero dizer claramente que não tem absolutamente nada autobiográfi co desta vez. Se chama O Professor”, revela, arrancando gargalhadas da plateia.

Fazendo uma retrospectiva, o escritor acredita que a vida sempre lhe ofereceu a matéria-prima para a literatura: problemas. “Quando adultos me perguntam o que sugiro para que seus fi lhos se tornem escritores, digo: tranque-o num quarto escuro, tirem sua comida, batam nele, criem problemas densos, dos irreparáveis. Pessoas felizes

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não escrevem, divertem-se, namoram. Não têm traumas, são felizes”, disse e, em seguida, recuou covardemente, com um “claro que isso é apenas uma metáfora. Mas como toda metáfora, tem um fundo de verdade. Escritores têm alguma fi ssura na realidade que precisam resolver e a literatura parece estar ali, à disposição para tentar tapar esse buraco”.

Os que estavam naquela palestra em Curitiba não acreditariam se eu lhes contasse que aquele mesmo Cristovão Tezza, bem humorado, aquele que falava com a mesma leveza com que escrevia, cada vírgula no seu lugar, o ritmo ponderado, os gestos discretos mas efi cientes, era o mesmo que, grosseiro e impaciente, havia se exaltado pelo telefone, semanas antes, com uma de suas leitoras.

*

Todos me disseram que Cristovão Tezza era um escritor acessível e atencioso. Não foi bem assim. Trocamos alguns e-mails em março. Queria uma entrevista, mas ele se dizia atolado em compromissos. “Não estou assumindo mais nada”, escreveu, antes do cordial abraço e dos votos de sucessos para o livro que eu estava desenvolvendo. Quatro meses depois, a fim de aproveitar uma viagem a Curitiba, resolvo tentar novamente. Por telefone, ele me disse que durante o fim de semana estaria na praia junto à família. “Que tal no meio da semana?”, sugiro. “Na quarta-feira vou estar em casa. Quando chegar aqui, me liga que marcamos o horário.” No dia combinado, seu telefone celular só caía na caixa postal. “Ele teve um compromisso de última hora e precisou sair”, justificou a mulher do escritor. Cogitei a possibilidade de transferir minha passagem de volta para outro dia e adiar minha estadia na cidade. Perguntei, então, se poderia entrevistá-lo no

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dia seguinte. “Nem assim. Ele estará ocupado também.” Voltei para Maringá de mãos vazias.

Alguns dias depois, liguei para remarcar nossa entrevista. “Oi, por favor, gostaria de falar com o Tezza”. “Quem é?”, perguntou a voz ríspida do outro lado da linha. Assim que me identifi quei, ele fi cou extremamente irritado. “Não tenho interesse em participar do seu trabalho. Não insista”, disse, aos berros, antes de bater o telefone. Ele devia ter tido um dia ruim. Liguei num péssimo momento, pensei, tentando me tranquilizar. Devia parar por ali. A imagem de escritor brilhante que eu tinha de Tezza estava para se desmanchar e, depois, desiludida, teria de escrever um texto cheio de frustrações. Foi quando soube pela internet que ele participaria de um evento literário em Curitiba. Peguei o primeiro ônibus e, na capital, assisti a palestra da primeira fi leira.

“Então é você”, exclamou ele, surpreso, quando me apresentei na fi la de autógrafos. Estava receosa de que meu nome desencadeasse, novamente, a fúria do escritor. “A gente brigou um pouco por telefone, né?”, disse, depois de soltar um riso constrangido. Soltei apenas um “entendo” magoado, porque nem sequer tive a chance de “brigar” naquele telefonema como ele sugeriu.

“Escritores não são pessoas boas”, disse-me Tezza, pausadamente duas vezes, como se tentasse me alertar sobre algum perigo que eu corria. Vendo minha cara de perplexidade, deixou o enigma no ar: “Essa é a primeira frase do conto Beatriz e o Escritor. Leia e você vai entender o por que agi assim.” Já estava de saída, quando ele perguntou: “A entrevista ainda está de pé?” Sempre esteve.

Comprei o livro Beatriz, ali mesmo, no estande da livraria que comercializava as obras dos autores convocados para o encontro literário. Curiosa, me refugiei em um canto e comecei a leitura do conto. A frase estava lá: “Escritores não são pessoas boas. O que me

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intriga é que os milhares de leitores que ainda restam no mundo, como vocês, essas almas bem-intencionadas aí na plateia me ouvindo, não se apercebam dessa verdade simples e universal. Não satisfeitos em apenas ler os livros que escrevemos, querem também nos ouvir falar, fazem fi las atrás de autógrafos, e alguns nos escutam com a adoração que se tem aos santos e aos sábios.”

Observando aquela fi la gigantesca que ainda se estendia, tive a impressão de que Tezza estava de saco cheio dessa rotina de celebridades literárias. Devia ser um porre mesmo, mas é o preço que se paga pelo prestígio. Quem sabe, ele vire o próximo Vampiro de Curitiba, enclausurado em seu próprio silêncio, penso. Saí do palácio Garibaldi, debaixo do aguaceiro, com a promessa de que Tezza responderia minhas perguntas por e-mail. Parada embaixo do toldo, à espera de um táxi, faço uma breve análise semiótica da situação e rio sozinha: a chuva, caindo aos montes em Curitiba, indica sinal de mudança.

*

Abro o e-mail num sábado à tarde, e levo um susto quando vejo o e-mail de Tezza. Já estava descrente de que ele me responderia. Havia passado quase um mês depois do nosso encontro.

Ariádinydiretamente de Frankfurt pra você.Espero que as respostas sejam úteis.Perdão pela demora - mas estou num período REALMENTE

atropelado...Abraços, e felicidades com o seu trabalho.Cristovão

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- Você já afi rmou no “Espírito da Prosa” que “a felicidade não produz literatura”. Quais sentimentos te levam a escrever?

- É uma longa história, que começa com o sentimento de inadequação. Mas, ao longo da vida, os motivos vão mudando.

- No “Espírito da Prosa”, você disse que o escritor é o seu próprio inimigo e que busca corrigir-se por meio da literatura. Até agora, com tantos livros publicados, o que conseguiu corrigir na sua personalidade?

- A imagem é uma metáfora; penso que sou incorrigível, mas acho que me compreendo mais pela literatura.

- Como você se defi niria para o seu biógrafo?- Eu não me defi niria. - No conto “Beatriz e o Escritor”, você ironiza e critica a rotina do

autor contemporâneo, que tem de participar de eventos literários, enfrentar sessões de autógrafos e, no papel de pessoa pública, tem de parecer constantemente gentil aos seus leitores desconhecidos. Essa crítica condiz com a sua realidade?

- O conto começou como uma brincadeira. Sim, às vezes a chamada “vida literária” é chatíssima, e eu quis dar um formato literário a esse sentimento. Daí nasceu o exagero metafórico deste conto. Que deve ser lido com um toque de humor.

- Quais os aspectos positivos e quais os aspectos negativos de ser uma celebridade literária?

- Eu não sou uma “celebridade literária”, a não ser num círculo relativamente restrito. Mas, pensando dentro desta limitação, ser conhecido é o desejo secreto de todo mundo que escreve. O lado ruim é quando a pessoa passa a ser mais interessante que a obra. Espero que isso não aconteça comigo...

- O assédio constante de jornalistas querendo marcar entrevistas contigo chega a te perturbar em algum momento?

- Não - sempre respeitei o trabalho do jornalista. Mas às vezes eu

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realmente não tenho condições de atender. E há os trabalhos escolares - é impossível atendê-los. E os estudantes têm no meu site um mundo de informação sobre minha obra.

- O que mudou na sua vida depois de receber o prêmio Jabuti com “O Filho Eterno”? Você acredita que foi mais valorizado depois de ter a obra contemplada com o prêmio?

- Para falar a verdade, o Jabuti é o prêmio mais famoso do Brasil, mas não o mais relevante para quem quer viver de escrever, porque o valor é pequeno. O que aconteceu foi que eu recebi os quatro ou cinco prêmios mais importantes do país quase que ao mesmo tempo. Isso, é claro, chamou muita atenção sobre meu livro. E me tornou mais conhecido.

- O sucesso do “O Filho Eterno” fez com que você fi casse mais criterioso com suas novas obras?

- Não - eu sempre fui extremamente exigente com o que escrevo. O sucesso não mudou nada neste quesito.

- Você é um escritor que escreve para ganhar prêmios ou ganha prêmios porque escreve?

- Passei 20 anos escrevendo sem ganhar prêmio nenhum - aliás, sem vender nada também. Isso jamais mudou nada na minha vida. Nunca penso em prêmios ao escrever - penso no que escrevo.

- Qual livro de outro autor lhe causa inveja?- Não sei dizer. Já estou velho para as pequenas mesquinharias -

agora, só as grandes! (risos...)- Você acredita que a sua literatura vai resistir ao tempo?- Não tenho a menor ideia.

Ao terminar de ler o e-mail, fechei o notebook, em êxtase, por ter arrancado 1.616 caracteres do tempo de Tezza. Se escritores não são pessoas boas, jornalistas são piores ainda.

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