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Jó – o homem que colocou Deus sob suspeita Publicado por meio digital nos anais do 2º Congresso da ANPTECRE – BH, 24-27/08/2009 Tema: Fenomenologia e Hermenêutica do Religioso ISSN 2175-9685 Jó: o homem que colocou Deus sob suspeita Jaldemir Vitório SJ. Introdução. Os discursos religiosos eivados de piedade podem, ao serem analisados detidamente, revelar uma total inconsistência. Falam de Deus a partir de chavões, slogans, discursos de segunda mão, sem se darem ao trabalho de verificar a veracidade das afirmações, confrontando-as com a vida real. Se “na prática, a teoria é outra”, urge refazer a teoria, de modo a se adequar à prática. Insistir numa teologia pouco aderente à realidade, por incapacidade ou medo de questioná-la, revela-se uma atitude inadequada para quem almeja ter uma fé adulta. Jó teve a ousadia de se insubordinar contra as certezas religiosas de seu tempo, por julgar a doutrina da retribuição incapaz de oferecer uma luz para ajudá-lo a superar sua dramática situação de inocente punido por Deus. A doutrina da retribuição era taxativa ao explicar a situação em que se encontrava. Se fora acometido por males tão terríveis, só havia uma explicação: tratava-se de castigos por pecados atuais ou passados, embora desconhecidos ou imemoráveis. Recusando aceitar essa explicação simplista, Jó é desafiado a pensar Deus para além das relações interesseiras promovidas pela teologia da retribuição. O caminho consistirá em estabelecer com Deus relações de pura gratuidade, sem esperar nada em troca. E, até mesmo, sendo vítima da pobreza, ser acometido por doenças e perdendo a inteira prole. 1

Jaldemir Vitorio, Jo, o Homem Que Colocou Deus Sob Suspeita

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Jaldemir Vitorio

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J: da desgraa beleza do mundo

117J o homem que colocou Deus sob suspeita

Publicado por meio digital nos anais do

2 Congresso da ANPTECRE BH, 24-27/08/2009

Tema: Fenomenologia e Hermenutica do Religioso

ISSN 2175-9685

J: o homem que colocou Deus sob suspeita

Jaldemir Vitrio SJ.Introduo.Os discursos religiosos eivados de piedade podem, ao serem analisados detidamente, revelar uma total inconsistncia. Falam de Deus a partir de chaves, slogans, discursos de segunda mo, sem se darem ao trabalho de verificar a veracidade das afirmaes, confrontando-as com a vida real. Se na prtica, a teoria outra, urge refazer a teoria, de modo a se adequar prtica. Insistir numa teologia pouco aderente realidade, por incapacidade ou medo de question-la, revela-se uma atitude inadequada para quem almeja ter uma f adulta.J teve a ousadia de se insubordinar contra as certezas religiosas de seu tempo, por julgar a doutrina da retribuio incapaz de oferecer uma luz para ajud-lo a superar sua dramtica situao de inocente punido por Deus. A doutrina da retribuio era taxativa ao explicar a situao em que se encontrava. Se fora acometido por males to terrveis, s havia uma explicao: tratava-se de castigos por pecados atuais ou passados, embora desconhecidos ou imemorveis.

Recusando aceitar essa explicao simplista, J desafiado a pensar Deus para alm das relaes interesseiras promovidas pela teologia da retribuio. O caminho consistir em estabelecer com Deus relaes de pura gratuidade, sem esperar nada em troca. E, at mesmo, sendo vtima da pobreza, ser acometido por doenas e perdendo a inteira prole.

J compreende que a relao com Deus dever ser a mais profunda possvel. Entretanto, nada de barganhar com ele, transformando a relao numa espcie de comrcio. Nada se deve esperar de material, seno a conscincia de ser amado e valorizado por ele. A relao de total gratuidade com Deus previne o fiel de viver agitado por crises de dvidas, ao lhe garantir certa distncia em relao dor e ao sofrimento. J foi capaz de por em xeque as imagens pr-fabricadas e facilitadas de Deus e, assim, abriu caminho para uma maneira diferente de fazer teologia.A postura do autor de J abre espao para a abordagem da fenomenologia e da hermenutica do religioso, numa vertente bem peculiar. Trata-se, afinal de contas, de confrontar as variadas imagens de Deus, disponveis no amplo mercado religioso, com a vivncia real do ser humano, visando a desmascarar as falsas imagens de Deus. Ou seja, aquelas que mantm o ser humano cativo de um destino cruel, sempre em dvida com divindades caprichosas, s quais jamais ser capaz de agradar. Ou, ento, as que estabelecem com o ser humano uma relao de toma l d c, em que o ser humano, quase sempre leva a pior. A teologia veiculada no livro de J segue a direo contrria: a verdadeira religio consiste em amar a Deus sem esperar nada em troca, nem riqueza, nem prole e nem vida longa. A Deus se ama porque amvel! Olvidar esta teologia fundamental ter como efeito fazer a religio, qualquer que seja, enveredar-se por caminhos perigosos. 1. Observaes preliminares.1 J o personagem central de uma obra annima. No o autor do livro. No fala sobre a prpria experincia. Outros falam a respeito dele. O livro uma teologia narrativo-potica sobre o tema do sofrimento desgraa do justo. Subjacente est a questo da verdadeira religio. Como explicar o sofrimento do justo que teve conduta ilibada no trato com Deus? J no israelita. Logo, no professa a f no Deus de Israel. De igual modo, os demais personagens so todos estrangeiros. Frisa-se, assim, o aspecto humano e universal da experincia de J. Apesar de estar na Bblia, o livro no trata de algo exclusivo dos israelitas, mas da humanidade enquanto tal. Por outro lado, na literatura extrabblica encontram-se personagens semelhantes a J. possvel que a tradio bblica tenha se inspirado em tais personagens largamente conhecidos.

2 Existem dois Js: o da seco narrativa (J 1-2; 42,7-17) e o da seco potica (J 3,1-42,6) (WESTERMANN, 1983, p. 19-31). O primeiro paciente e conformado; o segundo inquieto e questionador. Um no se rebela contra o enigma do sofrimento do justo; o outro exige explicaes vindas de Deus. Um enfrenta calado o sofrimento; o outro se envolve num bate-boca interminvel com quem insiste em faz-lo confessar pecados no cometidos. Ambos, porm, so exemplos de homens sbios e de f comprovada. O J crtico fala de si mesmo nestes termos: Se recusei respeitar o direito de meu servo e de minha serva, quando reclamavam contra mim, que farei quando Deus se levantar para o julgamento, e que vou responder-lhe quando me interrogar?... Se neguei aos pobres o que eles queriam e fiz desfalecerem os olhos da viva; se comi meu bocado de po sozinho sem reparti-lo com o rfo... se desprezei a quem perecia por no ter roupa, e a um pobre sem cobertor; se no me agradeceram os seus ombros, por serem aquecidos com a l de minhas ovelhas; se levantei a mo contra o rfo, ao ver que eu tinha apoio no tribunal... ento, que meu ombro se desloque da clavcula e meu brao se desconjunte! Sim, porque o castigo de Deus seria o terror para mim, e eu nada poderia fazer diante da sua grandeza (J 31,12-23). a descrio do ser humano plenamente fiel (CAESAR, 1999, p. 435-447).3 A teologia da poca tinha a justia de Deus como um dado inquestionvel. A fidelidade a Deus era penhor de graa. A infidelidade era causa de desgraa. Por isso, os sbios insistiam na necessidade de ser justo e piedoso, como forma de garantir o beneplcito divino. Evitava-se, assim, que o ser humano estivesse submetido arbitrariedade da natureza. A graa era assegurada pela lei moral, garantida por Deus. Na direo contrria, qualquer deslize era suficiente para atrair o castigo divino. As opes morais funcionavam como instrumento para controlar e prever a histria. A correlao entre tica e teologia era estreita: a ao de Deus, de certo modo, estava na dependncia da ao humana. Resultava da a teologia do Deus previsvel, sempre pronto a dar s aes humanas a devida retribuio (OLIVEIRA, 2006; HAINEN, 1982).4 Colocar Deus sob suspeita significa questionar as imagens que se fazem de Deus. Afinal, ningum se relaciona com Deus em si mesmo, de forma imediata, mas com as maneiras como a divindade imaginada. Decorre, da, a relao do ser humano com Deus. Uma imagem de Deus marcada pelo amor, pela misericrdia e pelo perdo nutrir no corao humano uma postura de acolhida amorosa de Deus e disposio para ser caridoso, misericordioso e disposto a perdoar o semelhante. Na direo contrria, uma imagem de Deus fundada na punio e na vingana, mas, tambm, na retribuio, levar o ser humano a nutrir pavor em relao a Deus, a esperar retribuio pelo que faz de bem ou de mal e a agir da mesma forma na relao com o prximo. Pode-se, ento, falar da converso de Deus como transformao da imagem de Deus cultivada no corao humano.2. J s voltas com uma questo teolgica.O autor de J pe em xeque a teologia do Deus previsvel, mostrando que a justia retributiva a doutrina da retribuio no o melhor caminho para se estabelecer uma relao saudvel e autntica com Deus. O motivo principal de sua inconvenincia deve-se ao fato de pensar Deus na dependncia do ser humano. Deus estaria cerceado e limitado em sua ao, impedido de agir para alm dos limites estabelecidos pela ao humana, boa ou m.

A questo subjacente ao livro do J pode ser formulada de variadas maneiras: possvel o ser humano amar a Deus por ele mesmo, sem visar a interesses? possvel uma piedade totalmente desinteressada? possvel estabelecer um vnculo com Deus sem nada esperar dele? possvel uma religio de pura gratuidade, onde seja banida a idia de retribuio? Se a vida piedosa uma postura interesseira, qualquer experincia de desgraa ser suficiente para tornar insensata a vida humana, para quem no conseguiu responder a contento a questo levantada por J. A correo tica bastaria para prevenir toda sorte de sofrimento? possvel ao ser humano tornar-se imune a qualquer experincia de luto, de dor e de perda? A piedade um antdoto suficientemente forte para mant-los distantes?A mentalidade popular no questiona o sofrimento do mpio, do malvado, do marginal, do facnora, mesmo imposto ao arrepio da Lei. comum ouvir imprecaes contra os grupos de Direitos Humanos, acusados de defender bandidos, como se os bandidos no fossem seres humanos. Para muita gente, bandido bom bandido morto. Ditos populares reforam esta mentalidade: Quem com ferro fere, com ferro ser ferido; A justia de Deus tarda, mas no falha; Quem planta vento, colhe tempestade. Tudo diferente quando a desgraa se abate sobre uma pessoa de f, algum que se destaca por sua religiosidade e temor a Deus. Ento, surgem interrogaes deste tipo: Por que eu? Eu no mereo isto. O que fiz de mal para que esta desgraa se abatesse sobre mim e sobre a minha famlia?Estas interrogaes tm um claro pressuposto teolgico. A pessoa suspeita de desinformao de Deus a seu respeito. Se Deus, deveras, soubesse quem sou eu, com toda certeza no permitiria que isto acontecesse comigo! Ou, ento, de que Deus quer prov-la. Num grau radical, h quem chegue a acusar Deus de injusto, vingativo, perseguidor. Por que faz isto comigo e no com os outros?

Surgem da no poucas crises de f que, na pior das hipteses, leva negao de Deus, ao atesmo. Alis, a desgraa do mundo tem levado muitos a negar a existncia de Deus, pois a misericrdia divina seria incompatvel com a desgraa avassaladora, espalhada pela face da terra.

O livro de J no resolveu o problema que enfrentou, mas, pelo menos, insinuou a possibilidade de fazer teologia com senso crtico, sem se dar por seguro, simplesmente, pela repetio dos dados da tradio, tidos como inquestionveis. 3. A graa na vida de J.A graa manifestou-se na vida de J como experincia da posse de bens, prole e sade, sinais da benevolncia divina.

Havia na terra de Us um homem chamado J: era ntegro e reto, temia a Deus e mantinha-se afastado do mal. Tinha sete filhos e trs filhas. Possua tambm sete mil ovelhas, trs mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas, e servos em grande quantidade. Era, pois, o mais rico entre todos os habitantes do Oriente (J 1,1-3).

O personagem J identificado pelo vis teolgico: temente a Deus e afastado do mal. Nisto consistia sua integridade e retido. Tudo mais decorria desta raiz. A retribuio divina era visvel na prole e na riqueza invejvel. Tanto o aspecto social quanto o econmico era regido pela f. Porque temia a Deus, tinha uma bela famlia e era rico. S faltou a referncia idade avanada, como se dir no final, para termos os trs indicadores da bno divina: riqueza, prole e idade avanada.A piedade paterna foi herdada pelos filhos. J 1,4-5 alude vida dos filhos vivida na alegria e na felicidade, em perfeita comunho e na celebrao de contnuas festas. O pai, por precauo, todos os dias oferecia holocausto na inteno de cada um dos filhos, para reparar possveis pecados cometidos por eles, eventuais ofensas a Deus.

A narrao apresenta J de maneira a impossibilitar qualquer acusao de impiedade. Ningum conseguir apontar-lhe malfeitos ou desvios de conduta. Prepara-se, assim, a etapa seguinte, quando os amigos pression-lo-o a rebuscar na memria traos de eventuais faltas que, embora olvidadas ou imperceptveis, acabaro por gerar-lhe os mais atrozes sofrimentos. J, pelo contrrio, tem a ntida conscincia de estar em dia com Deus. No dava para pensar diferentemente.4. A desgraa na vida de J.Se a graa representada por riqueza e prole, a desgraa vai na contramo, privando J de ambos os sinais da benevolncia divina. A narrao segue, passo a passo, a desgraa recaindo sobre J, como numa tomada cinematogrfica.

A experincia de perda descrita em trs momentos: perda dos bens, dos filhos e da sade. o castigo divino abatendo-se sobre o justo J. A narrao insere um novo personagem Satans o inimigo, que levanta suspeitas sobre a consistncia da piedade de J, nos seguintes termos: J justo e temente a Deus para ser agraciado com as bnos divinas (piedade interesseira) ou agraciado por ser temente a Deus (piedade gratuita)? Satans suspeita que a primeira alternativa a verdadeira, enquanto Deus aposta na segunda. Por isto, entrega seu servo nas mos de Satans, para que verifique a pureza de inteno de J. Na primeira cena celeste (J 1,6-12), Satans levanta uma suspeita a respeito da observao de Deus sobre J: Reparaste no meu servo J? Na terra no h outro igual: um homem ntegro e reto, teme a Deus e afasta-se do mal. Deus mesmo testemunha a favor da sinceridade de seu servo.

Satans suspeita que a fidelidade de J deve-se proteo retribuio/ graa recebida de Deus. Da ter declarado: sem motivo que J teme a Deus? No levantaste um muro de proteo ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abenoaste as obras de suas mos, e seus bens cresceram na terra. Porm, estende um pouco a tua mo e toca em todos os seus bens, para ver se no te lanar maldies na cara! (J 1,9-10).

Deus, ento, d a Satans a permisso para submeter J prova, privando-o de todos os seus bens. E a desgraa comea a entrar na vida dele: seus bois e mulas so roubados e seus servos assassinados; suas ovelhas, juntamente com os pastores, so queimadas com fogo cado do cu; seus camelos so roubados por bandos de caldeus, que eliminam os servos que os guardavam. O terror vem de todas as partes: do norte e do sul, do cu e da terra, sem escapatria. No havia como proteger os bens do rico J. Num piscar de olhos, foram reduzidos a nada!E, agora, como reconhec-lo abenoado, diante do claro sinal de castigo divino? Entretanto, este era apenas o incio das dores.

A desgraa continua na perda dos filhos, esmagados sob os escombros da casa onde faziam festa, sobre a qual se abateu um terrvel furaco. Perde-se mais um sinal da benevolncia divina: a prole. Portanto, J no ter mais quem lhe conserve a memria. Est fadado a ser esquecido. Quem querer falar de um justo privado dos sinais exteriores de bno e reduzido pobreza e sem descendncia? Em suma, um homem castigado por Deus.Ambas as cenas aludem a experincias exteriores, tendo J permanecido inclume. O fato de ter se mantido firme, sem se revoltar contra Deus, d motivo a Satans para atac-lo por um novo flanco. Se J for tocado na prpria carne, haver de conservar a fidelidade? Ter incio uma segunda rodada de provaes.

Novamente, num dilogo com Satans, Deus faz uma observao elogiosa a respeito de J: Reparaste no meu servo J? Na terra no h outro igual: um homem ntegro e reto, que teme a Deus e se mantm afastado do mal. Ele persevera em sua integridade. Tu, porm, me atiaste contra ele, para eu o afligir sem motivo. quanto Satans lana a Deus um segundo repto: Pele por pele! Para salvar a vida, o homem d tudo o que tem. Mas estende a tua mo e fere-o na carne e nos ossos, e ento vers se ele no vai maldizer-te na cara! (J 2,3-6).Satans, ento, recebe a permisso de tocar na sade de J, contanto que lhe poupe a vida. J ferido com chagas malignas, desde a planta dos ps at o alto da cabea (J 2,7).O J desgraado est desprovido no s dos bens e dos filhos, mas, tambm da sade. O mais rico dentre todos os habitantes do Oriente foi reduzindo mais total misria. Numa leitura teolgica, J fora colocado na condio de amaldioado por Deus, passando a integrar a categoria dos mpios. Sua vida reta e ntegra foi posta em xeque. Teria a vida de J, at ento, sido pura aparncia e falsidade? No fundo, teria levado uma vida inconfessvel? impossvel pensar situao mais terrvel para quem buscou pautar a vida pelo temor de Deus e se v reduzido a uma situao incompreensvel de perda, como se fora um morto vivo, desenraizado da vida. O preconceito teolgico reduziu-o a um nada, ao interpretar a situao em que se encontrava como punio divina por faltas passadas. Da seu duplo sentimento: de perda dos bens, dos filhos e da sade e da perda da dignidade religiosa, ele que se pautara pela mais estrita fidelidade a Deus. A imagem de Deus em voga no dava margem para dvida. A adeso a ela exigia confessar-se como pecador. Haveria outra para substitu-la?J confronta-se com um n difcil de ser desatado. A questo de fundo pode ser formulada assim: possvel falar de Deus a partir do sofrimento do inocente? Que imagem de Deus seria necessria para dar sustentao a tal teologia? Uma teologia da surgida pode ter a pretenso de ser honesta, no fazendo concesses a Deus em detrimento do ser humano? J ser capaz de se desvencilhar, quando procura compreender a justia de Deus em relao pessoa que sofre, por isto no aceita a camisa de fora da teologia que lhe proposta... o rechao de uma maneira de fazer teologia que no leva em conta as situaes concretas, o sofrimento e as esperanas do ser humano. E que, ao mesmo tempo, esquece o amor gratuito e a compreenso sem limites de Deus (GUTIRREZ, 1986, p. 83.85).

5. A reao de J na desgraa.A reao de J na seco narrativa bem distinta da reao na seo potica.

O J da seco narrativa assume uma atitude da mais total conformidade. Tendo perdido os bens e os filhos, no amaldioa Deus, conforme a expectativa de Satans. Dirigindo-se a Deus, Satans levanta a suspeita de que J nutria uma religio interesseira. Por ser abenoado por Deus, de quem recebia proteo, dava mostras de religiosidade. Bastaria uma pequena provao para fazer desmoronar essa piedade inconsistente. Satans teve a petulncia de desafiar Deus ao lhe dizer: Estende, porm, um pouco a tua mo e toca em todos os seus bens, para ver se no te lanar maldies na cara! (J 1,11). O leitor conhece muito bem a confiana depositada por Deus na sinceridade da religio de seu servo.As palavras de J revelam a inconsistncia da suspeita levantava por Satans. Ele no tem razo e, sim, Deus. Este havia confiado em J. E no se decepcionou So comoventes as palavras de J: Nu, sa do ventre de minha me e nu, voltarei para l. O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi do agrado do Senhor, assim aconteceu. Seja bendito o nome do Senhor! (J 1,11). Reconhecia-se indigno do que possua, pois fora tudo dom divino, sem que merecesse. Com a liberdade que havia concedido, Deus tinha o direito de tirar, sem necessitar de permisses. J colocava-se diante da liberdade divina sem protestar, apelando para a vida escrupulosamente justa que levara. Uma interveno do narrador sublinha a resignao de J: Apesar de tudo, J no pecou com seus lbios, nem disse coisa alguma insensata contra Deus (J 1,22).

Idntica reao repete-se na segunda investida de Satans, quando lhe dada a permisso de submeter J provao de priv-lo da sade. Sem reclamar, J repleto de chagas sentado no meio do lixo, raspava o pus com um caco de telha (J 2,8). Instigado por sua mulher a amaldioar a Deus e morrer de uma vez (J 2,9), repreende-a: Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, no deveramos receber tambm os males? (J 2,10). Constata, novamente, o narrador: E apesar de tudo, J no pecou com seus lbios (J 2,10b).

Deus tinha razo. A piedade de J no era interesseira, pois, tanto na sade quanto na doena, manteve a postura de reverncia a Deus. Sem fazer exigncias, reconheceu ter Deus o direito de dar e de tirar, de conceder e de privar, de tornar rico e de tornar pobre, sem consultar o ser humano. Deste exige-se, apenas, conservar a atitude de temor respeitoso a Deus, embora sem conhecer-lhe os desgnios misteriosos. O J da seco potica, pelo contrrio, um inconformado com a desgraa. No monlogo introdutrio desta seco, quando abre a boca, amaldioa o dia de seu nascimento, com expresses duras. Em ltima anlise, Deus o destinatrio de sua lamentao. Uma leitura superficial de J 3 suficiente para respigar afirmaes cortantes de maldio contra o ter vindo existncia. como se o nascimento houvera sido um equvoco de Deus e pudesse ser, pura e simplesmente, cancelado, sem nenhuma considerao. Perea o dia em que nasci e a noite em que anunciaram: Nasceu um menino! Esse dia, que se torne em trevas; Deus, do alto, no se lembre dele, e sobre ele no brilhe a luz! (J 3,3-4). como se J postulasse a reverso da criao, desejando que passe do ser ao no-ser. muito mais do que passar da vida morte, pois a existncia, enquanto tal, que est em jogo. A lamentao encerra-se revelando a deciso de J: No dissimulo, no me calo, no me aquieto: a ira de Deus veio sobre mim! (J 3,26).J entra numa intensa crise e mergulha numa profunda escurido: falta-lhe inteligibilidade para compreender a gama de sofrimentos que se abatera sobre ele. Uma crise de sentido! Parecia-lhe impossvel conciliar a bondade de Deus com o seu sofrimento. A teologia da retribuio era incapaz de explicar o que est acontecendo. Tendo sido um homem reto e ntegro, no merecia desgraas deste calibre. Sem alternativas teolgicas, fica sem cho, reduzido mais total perplexidade. Haveria a possibilidade de rebelar-se contra Deus, como sugerira sua mulher Amaldioa a Deus e morre de uma vez! (J 1,9) , mas seria indigno para quem se pautou por uma piedade sincera. Revoltar-se contra o sem sentido da vida, em longo prazo, seria insuportvel. O J da seco potica, porm, no est disposto a resignar-se. Os trs amigos Elifaz de Tem, Baldad de Sus e Sofar de Naamat , ento, entram em cena. A seco narrativa fizera referncia a eles, como vindos de longe para consolar o amigo J, afligido pela desgraa. Naquela ocasio, em alta voz comearam a chorar, rasgaram suas vestes e lanaram poeira para o cu, sobre as cabeas. Sentaram-se no cho ao lado dele por sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua dor (J 2,11-13).

Estes amigos silenciosos, solidrios, compassivos tornam-se, agora, intransigentes defensores da teologia popular tradicional, a teologia oficial, excelente instrumento para acobertar injustias. J colocado sob suspeita. Elifaz lana um repto a J: Lembra-te, por favor: acaso j pereceu algum inocente? Ou quando que os retos foram destrudos? Ao contrrio, tenho visto os que praticam a iniquidade, os que semeiam dores e as colhem: esses pereceram ao sopro de Deus e foram consumidos ao mpeto de sua ira (J 4,7-8). E questiona a piedade de J: Acaso (o Poderoso) te repreender pela tua piedade ou entrar contigo em juzo? No antes, por causa da tua mltipla maldade e das tuas infinitas iniqidades? (J 22,4-5). Baldad segue na mesma direo: De fato, Deus no rejeita quem ntegro, como tampouco no estende a mo aos malvados (J 8,20). Da seu conselho a J: Feliz o homem a quem Deus corrige! No rejeites, pois, a repreenso do Poderoso (J 5,17). Sofar indica a J a conduta correta: Se colocares em ordem o corao e estenderes as mos para Deus, se afastares das mos a maldade e no alojares a injustia em tua tenda, poders levantar o rosto sem mcula, sers inabalvel e nada temers (J 11,13-15).Entretanto, J recusa-se terminantemente a admitir ter cometido qualquer pecado digno do castigo. As trs sries de dilogo so um combate entre o J ctico diante da teologia tradicional e seus amigos, seguros de que todo pecador castigado. As dolorosas provaes de J, para eles, so um sinal inequvoco de que havia pecado. Neg-lo seria fechar-se diante da evidncia.A postura de J firme no sentido de recusar as imagens de Deus no sintonizadas com a experincia. A contradio exige questionar a imagem de Deus, mais que se submeter de maneira irracional, embora, esta possa parecer a atitude mais respeitosa para com Deus. Neste sentido, J pode ser considerado um desmantelador de Deus, pois despedaa as imagens religiosas de Deus, a imagem do Deus justo e bom, mas que viola o direito, um Deus perverso e sdico, cuja imagem negativa e radicalmente destrutiva (ASURMENDI, 1999, p. 77-81, cf. p. 104-108). Sua conscincia ntida: Dos mandamentos de seus lbios nunca me afastei e no meu ntimo guardei as palavras de sua boca (J 23,12). Por isto, no pode aceitar o que as doutrinas e teologias correntes querem lhe impor. Longe de mim dar-vos razo: enquanto eu respirar, no me apartarei da minha inocncia. No largarei a minha defesa, que comecei a fazer, pois meu corao nada me reprova em toda a minha vida (J 27,5-6) a postura firme diante da insistncia dos amigos. A postura dogmtica e intransigente da religio que tenta abafar seu grito de justo sofredor -lhe insuportvel. Ele tem a ousadia de dizer para Deus: Tu te transformaste em meu carrasco e me atacas com a brutalidade de tua mo (J 30,21), coisa impensvel e com cheiro de blasfmia para seus amigos, que se consideravam defensores de Deus e da verdadeira religio. Tal religio, fundada numa experincia superficial de Deus, que exige conformismo, imobilismo, silncio e frmulas prontas est fora do horizonte de J. Pelo contrrio, interessa-lhe a religio onde o ser humano, sem faltar de respeito a Deus nem, tampouco, cair na impiedade, pode abrir o corao e dizer a Deus o que sente no ntimo.Como a conversa se prolonga sem nenhum resultado, J decide dar-lhe um basta e desafia o prprio Deus a lhe dar uma resposta: Quem me apresentaria algum que me escutasse? isso que assino. Que me responda o Poderoso! Quanto acusao, redigida por meu adversrio, eu a carregaria sobre os ombros e a cingiria como um diadema. A ele eu daria conta de meus passos e dele me aproximaria, como de um prncipe! (J 31,35-37).

Deus aceita o desafio de J e intervm. Todavia, longe de oferecer-lhe uma explicao fcil, mostra-lhe a real dimenso do problema. Deus mergulha-o nas profundidades do mistrio do universo, com uma imensa quantidade de questes irrespondveis e insolveis, como as quais o ser humano convive. O enigma do sofrimento desgraa do justo uma questo a mais. Para ser feliz no necessrio ter uma resposta cabal para cada enigma da existncia. Compreendendo isto, J estaria no rumo da superao de seu drama interior. A desgraa no deve, necessariamente, ser interpretada como castigo divino. Portanto, o ntegro e reto pode experimentar a dor e a tribulao sem que a relao com Deus seja colocada em xeque. Este um mistrio entre tantos outros nos quais o ser humano est envolvido!

O autor do livro de J no tem a inteno de ridicularizar a teologia tradicional e, sim, mostrar-lhe a insuficincia para resolver a questo do sofrimento do ntegro e reto, a desgraa do justo. A firmeza da teologia tradicional no to firme assim. Foi Deus quem quis Foi Deus quem permitiu so afirmaes correntes diante de situaes inexplicveis. Entretanto, so respostas insatisfatrias, que revelam a incapacidade humana de penetrar os meandros do mistrio da vida, que envolve tanto J quanto seus amigos.

6. A graa recuperada.Cada um dos dois Js recupera a graa a seu modo. O J da seco narrativa, tendo conservado a fidelidade, v a sorte mudar totalmente. Deus restituiu-lhe todos os bens, o dobro do que antes possua... O Senhor abenoou J no fim de sua vida mais do que no princpio: ele possua agora quatorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentas. Teve, tambm, outros sete filhos e trs filhas... Depois desses acontecimentos, J viveu ainda centro e quarenta e quatro anos e viu seus filhos e os filhos de seus filhos at a quarta gerao. E morreu velho e cumulado de dias (J 42,10-17).

Esta soluo confirma a teologia da retribuio. A desgraa foi uma provao na vida de J. A recompensa divina veio em forma de bens multiplicados, prole e idade avanada, como recompensa da fidelidade. um happy end! A lio clara: o sofrimento no tem a ltima palavra na vida do justo, pois a bno divina vir na certa. Vale a pena sofrer, embora sem merecer o sofrimento!

Com grande probabilidade deve ter sido um acrscimo, obra de algum inconformado com a soluo a que J chegou: resignar-se diante do desgnio insondvel de Deus. O Senhor deu, o Senhor tirou... bendito seja o nome do Senhor (J 1,21). O sofrimento do justo s ser compreendido por quem for capaz de compreender que Deus no est obrigado a cumular o justo de bnos, s porque foi justo. E, mais, entender que o sofrimento do justo pode no ser castigo de Deus. E, sim, ter outras causas, por exemplo, a maldade e a injustia alheias. E que Deus se solidarizar com o justo injustiado, sofrendo com ele, sem intervir para priv-lo do sofrimento. A grandeza de Deus consistir, exatamente, em fazer-se solidrio com o justo sofredor, sem criar para ele um tipo de existncia especial, onde a dor no tenha lugar. Em outras palavras, um tipo de vida artificial onde o ser humano est posto margem da tragicidade da vida. O autor de J no caiu nessa armadilha! O acrscimo de J 42,10-17 foi uma traio teologia do narrador. Os sinais hiperblicos de bnos contm uma teologia contrria que foi defendida ao longo de toda a obra. O final feliz tem o efeito de amenizar a crueza do passado. Entretanto, a verdadeira religio consiste em perseverar no amor de Deus, embora os sinais exteriores sejam interpretados pelos falsos telogos como punio divina. A teologia do narrador de J exige, pois, deixar de lado o desfecho entrevisto por quem se recusava a renunciar teologia aprendida da tradio, sem questionar-lhe os fundamentos.O J da seco potica, aps o debate estril com os amigos, recorre a Deus, de quem espera luzes para entender o enigma de sua vida. Os dois longos discursos de Deus (J 38-41) parecem no enfrentar o problema com que J se debatia. Recorrendo a perguntas retricas e bastante irnicas, confronta-o com a multiplicidade de interrogaes, para as quais os seres humanos no possuem resposta, e com os quais devem conviver. O mistrio da natureza e da histria soma-se ao mistrio de cada ser humano como parte de um mistrio muito maior e incontrolvel, que escapa a toda e qualquer compreenso humana, que tenha a pretenso de ser cabal. Ao ser humano so dadas fagulhas de compreenso, com as quais deve se contentar. A religio no oferece ao ser humano uma segurana racional, uma chave de leitura para os mistrios da vida e do cosmos (SNCHEZ, 1991, p. 173-183). A religio parte da. Qualquer teologia muito segura racionalmente pode mostrar-se insuficiente, quando no intil.

O J crtico parece encontrar a paz de esprito. No pela via da razo, no sentido de ter chegado a explicaes apodticas de seu sofrimento, embora fosse inimputvel (LEVORATTI, 1993, p. 1-53). E, sim, pelo caminho da f, no sentido de reconhecer haver um sentido para o sofrimento, conhecido apenas por Deus. Da, dirigindo-se a Deus, ter dito: Fui leviano ao falar. Que que vou responder? Porei minha mo sobre a boca. Disse uma coisa, mas no repetirei; e ainda outra, mas nada acrescentarei (J 40,4-5). J pratica uma espcie de silncio obsequioso diante de Deus, para alm da crtica e da revolta; uma forma de calar respeitoso, contrapondo-se verborria dos amigos e se precavendo contra a tentao de imprecar e blasfemar, pela incapacidade de compaginar amor e sofrimento.J d um passo a mais, colocando-se diante de Deus com reverncia. Reconheo que podes tudo e que para ti nenhum pensamento oculto... Pois eu falei, sem nada entender, de maravilhas que ultrapassam meu conhecimento... Eu te conhecia s por ouvir dizer, mas, agora, vejo-te com meus prprios olhos. Por isso, acuso-me a mim mesmo e me arrependo, no p e na cinza (J 42,2-6). A honestidade de J consistiu em no se contentar com a teologia pr-fabricada, que os amigos queriam faz-lo tragar. Antes, s se contenta quando faz teologia, dispondo-se a falar com Deus face a face. Teologia de primeira mo! Teologia onde o ser humano, mormente o justo sofredor, coloca-se diante de Deus e se predispe a escut-lo e dar-lhe razo, mesmo sem chegar explicao cabal da realidade. De uma coisa J est seguro, de forma alguma est sendo castigado por Deus, por faltas passadas, nem, tampouco, estava alijado das preocupaes divinas. Deus estava atento a ele, mesmo em meio a sofrimentos atrozes.

A concluso narrativa apresenta Deus censurando Elifaz de Tem e seus amigos, por terem sido incapazes de falar corretamente de Deus. J, pelo contrrio, elogiado. Estou indignado contra ti e os teus dois amigos, porque no falastes corretamente de mim, como o fez meu servo J (J 42,7). Portanto, o discurso ortodoxo dos defensores da religio e dos apologetas fanticos, por mais fiis a Deus que queiram ser, padece de um defeito radical: no tem o beneplcito divino. Afinal, Deus no precisa de quem o defenda! Na contramo, o discurso de J, crtico e inconformado, corresponde ao falar bem de Deus. Este no exige de ningum abaixar a cabea diante do que no entende, nem, tampouco, engolir respostas piedosas, mas pouco convincentes ou, at mesmo, inaceitveis. Deus no abafa o grito do justo sofredor, cujo sofrimento no se explica com os argumentos oferecidos pela religio. O protesto do justo sofredor no blasfmia. sinal de reverncia de quem, afinal, compreendeu que, de Deus, nada se deve esperar, pois s vale a pena am-lo por pura gratuidade, sem a mais nfima tentao de contar com recompensa, seja ela qual for. Deus ser amado por ser amvel, no porque possa retribuir com bens, prole e vida longa. O ser humano ser justo, mesmo em meio a sofrimento, pois este o modo de proceder de quem faz a verdadeira experincia de Deus. Da busca de recompensa, passa-se gratuidade e ao amor como postura religiosa verdadeiramente sbia. Agir diferentemente insensatez! Compreende-se que a verdadeira religio no interesseira do ut des e que vale a pena ser temente a Deus, mesmo em meio dor e ao sofrimento. Da teologia da retribuio passa-se teologia do amor e da graa. A pessoa de f autntica ama a Deus com um amor desinteressado, sem nada esperar em troca. A desgraa, ento, deixa de ser desgraa castigo de Deus. A experincia humana de dor e de sofrimento deixa de ser argumento para se duvidar da misericrdia divina. A pessoa de f pode amar a Deus e se sentir amada por ele em meio ao sofrimento. Afinal de contas, trata-se do sentido que damos aos fatos, a partir da relao estabelecida com Deus. O sofrimento s pode ser compreendido diferentemente por quem, de fato, estabelece com Deus uma relao de absoluta gratuidade. J reencontrou o sentido da vida porque recusou as teologias de segunda mo e trilhou um caminho novo, contra tudo e contra todos. J foi aprovado por Deus por ter procurado a verdade com mais coragem e, por conseqncia, ter se aproximado dela mais de perto. Embora sua linguagem possa levar suspeita de blasfmia, foi a que melhor preservou a glria divina; mais que uma linguagem muito certinha, devedora da doutrina da retribuio. Aqui o risco de comprometer a imagem de Deus grande. Pelo contrrio, a gratuidade no trato com Deus e no falar de Deus tem mais chances de originar uma religio verdadeira.

Concluso.A superao das aporias da f e da religio supe estabelecer com Deus uma relao de absoluta gratuidade, amando-o sem nada esperar, a no ser a certeza de am-lo com amor verdadeiro. S assim a pessoa de f capaz de mirar para alm das des-graas da vida, sem se lamentar nem se revoltar contra Deus. J comporta um claro ensinamento: para avanar na direo de Deus, pressupe-se romper com a tradio (ROSSI, 2005a, p. 63). Dito de outro modo, por em xeque as falsas imagens de Deus, de modo especial, as cultivadas por um tipo de religio piedosa, porm, sem consistncia. Sem colocar Deus sob suspeita o Deus de certas teologias ser impossvel falar bem de Deus.J no resolveu o problema em que se encontrava. No! Ele no ofereceu um contedo teologia, mas apontou para um mtodo de fazer teologia, a partir da experincia. S a partir da possvel fazer uma teologia honesta que, talvez, nos colocar a salvo de certas crises de f.

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Endereo do autor: Av. Dr. Cristiano Guimares, 2127- Planalto Belo Horizonte-MG CEP 31.720-300 Tel.: (31) 3115-7024 e-mail: [email protected] Um elenco dos precursores de J encontra-se em ALONSO SCHKEL-SICRE DIAZ, 1983, p. 21-36.

Desde o incio, o problema principal do livro de J colocado: o sentido da retribuio e da gratuidade da f em Deus e a ao que, da, decorre... No contexto da doutrina da retribuio, a espera da recompensa falsifica a atitude e exerce, diabolicamente, o papel de um obstculo no caminho para Deus (RADERMAKERS, 1998, p. 62).

Ser que o pobre capaz de fidelidade gratuita, independentemente de qualquer recompensa material? Questo grave, porque da humanidade esto afogados na pobreza. Ser que toda esta gente capaz de uma religio gratuita? E o restante ? Vive de fato uma religio gratuita? (STORNIOLO, 1992, p. 13).

VOGELS (1994, p. 343-359) levanta suspeitas sobre a postura de J. Uma leitura atenta mostra que sua f no to profunda como, primeira vista, pode parecer. Sua resposta parece ser convencional e vazia, embora piedosa, sem nada de pessoal. O J da seco potica, sim, usa a prpria linguagem e rejeita as frmulas decoradas.

J abandonou a lgica do linguajar teolgico, que fala de Deus a partir de premissas eternamente estabelecidas. base de sua experincia emprica, acusa a Deus de persegui-lo sem motivo (PIXLEY, 1984, p. 337).

Deus questionado na sua bondade: por que me tratas de um modo que no te convm, ao invs de me tratar benignamente? (MARTINI, 1990, p. 105).

J rejeita radicalmente a teologia da retribuio: tudo a mesma coisa, ntegro ou mpio, a ambos Deus aniquila (ROSSI, 2005a, p. 63).

J uma espcie de Prometeu bblico. Mas, ao contrrio de Prometeu, que era um deus, J um homem (DIETRICH, 1991, p. 35). Na mitologia grega, Prometeu a divindade que desafia Jpiter, o deus supremo.

O longo discurso do jovem telogo Eli, mas com mentalidade conservadora, foi introduzido posteriormente (cf. J 32,1-37,24), por algum leitor da narrativa inconformado com a incapacidade de os amigos convencerem J. Entretanto, o arroubo juvenil questionando J diretamente no consegue ir alm da teologia j conhecida, que J se recusa a abraar.

J postula uma teologia leiga, feita fora do Templo, a partir da vida quotidiana daqueles que esto em sofrimento, e questiona profundamente a Teologia da Retribuio (DIETRICH, 1996, p. 15).

A teologia existencial de J parte da vida. Se a vida contradiz o dogma, ento o dogma inexato e o crente deve continuar a busca. Uma tal teologia dinmica e permite a evoluo. J, com efeito, luta interiormente, debate-se nas contradies e continua a buscar... Partir de sua experincia, sobretudo se de sofrimento, ao invs de partir de princpios, muda muito as coisas. Muitos princpios que eram importantes e claros se desmoronam e parecem vos (VOGELS, 1995, p. 177-178).

J abandona as regras da linguagem teolgica e ataca a Deus. Sabe muito bem que o risco imenso porque em poder no pode competir com Deus. Porm cr saber o que justo. E a justia no monoplio de Deus (PIXLEY, 1984, p. 338).

No se trata de acusar Deus, mas de pedir-lhe contas, de desafi-lo a provar a culpabilidade de J (RADERMAKERS, 1998, p. 125).

J est confundido no por um inventrio vo e arrogante dos itens criados, mas por sua prpria estreiteza de viso por ter censurado um deus que ele acreditava ser onipotente e cheio de caprichos. J d-se conta que Yhwh est totalmente envolvido pelo sofrimento e luta de suas criaturas (LACOCQUE, 2007, p. 91).

A resposta de Deus a J, em forma de uma srie de questes, devia reportar-se ao comeo do mundo e sua criao, porque o problema de J era fundamentalmente teolgico e cosmolgico. J devia descobrir quem, exatamente, Deus, de maneira a expor e corrigir a louca malcia dos amigos (LECOCQUE, 2007, p. 93).

De fato, a orao de J, a interpelao, ou seja, o ultimatum que dirige a Deus choca-se com um muro: o silncio. Deus parece ausente. Tanto mais se poderia desconfiar de um trao de sua presena na fora do grito de J, na certeza que o anima, e mesmo na f com que clama sua inocncia (RADERMARKERS, 1998, p. 205).

A conversa entre os trs amigos e J comparvel a uma conversa entre um telogo conservador e um telogo liberal, ou entre um cristo cheio de bom senso e um membro fantico de uma seita. Praticar duas teologias equivale a falar duas linguagens diferentes (VOGELS, 1995, p. 178).

RADERMARKERS (1998, p. 261) segue uma posio um pouco diferente. O dobro de bens dado a J no deve ser tomado ao p da letra como um Happy End ou uma contrapartida em recompensa por sua boa conduta; significa a todo-poderosa generosidade de Deus.

Para TERNAY (2001, p. 318), trata-se de uma restaurao e no de uma retribuio: J recebe todos os seus bens novamente e em dobro.

Pode-se dizer que a concluso do livro estraga (gte) o livro, porque volta doutrina da retribuio segundo o princpio de causa-efeito, a teoria que o livro tentou questionar (VOGELS, 1995, p. 254).

A pedagogia utilizada por Deus... permitiu que J se abrisse progressivamente descoberta de um Deus que no to cruel como ele imaginava de dentro de sua crise, mas de um Deus de santidade que o nico a poder juntar desta maneira tanta bondade e tanto respeito pela justia (TERNAY, 2001, p. 311).

J luta com Deus, mais ainda consigo mesmo, com a falta de moderao de seus pensamentos, com o sentimento de inferioridade que o assalta, com a insegurana que o corri interiormente e da qual gostaria de sair com palavras ameaadoras (MARTINI, 1990, p. 107).

Entretanto, para DIETRICH (1991, p. 40), isto estranho porque a interveno do todo-poderoso, que fala do meio de uma tempestade, parece descarregar sobre o entendimento limitado de seu sdito a imensido csmica da sabedoria envolvida na criao e na natureza.

J conhecia Deus pela catequese, pela teologia, pelas disquisies, pelos livros. No se tratava, claro, de conhecimentos falsos. Entretanto, no conseguiam criar unidade e, de fato, a enfocar a face de Deus... Agora, os olhos se lhe iluminaram e conseguiu intuir, diretamente, que, de Deus, no se fala; pelo contrrio, ouve-se-lhe e se o adora (MARTINI, 1990, p. 122).

O Deus que J buscava calou-se, enquanto este ltimo esforava-se para encerr-lo num sistema. Enfim, fala quando J, tocando o fundo do despojamento, no encontra palavras, quando no espera outra palavra seno a de Deus (CHREAU, 2006, p. 289).

Os discursos dos amigos representam a teologia da ordem e da submisso a um destino providencial que regula o cosmos, mas que no enfrenta as injustias com as quais os seres humanos padecem. Os amigos tm, portanto, discursos tpicos de certas prticas consoladoras. Trata-se de uma antiteologia. A antiteolgoia se parece muito com a teologia, mas no teologia (ROSSI, 2005b, p. 76.77).

A lgica de uma teologia que deduz suas razes de princpios gerais levou os amigos a trair sua amizade. E agora Deus os condenava por esta defesa anti-humana da divindade de Deus (PIXLEY, 1984, p. 341).

Para a questo do desafio da verdadeira religio, a partir do livro de J, cf. STORNIOLO, 1992, p. 77-87.