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Janaína Tokitaka
Eugêniae os
R b Sˆ
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Uma coisa é certa: existem tantos tipos de crianças no mundo quanto há diferentes espé-
cies aquáticas no oceano. Eu explico: assim
como não é possível encontrar duas sardinhas
exatamente iguais, por exemplo, certamente
não há um filhote de gente como outro.
Algumas crianças gostam de futebol, qua-
drinhos de super-herói e bolo de chocolate.
Outras preferem livros de aventura, colecio-
nar pedrinhas redondas e adoram balas de
goma em forma de aranha. Conheci uma vez
uma menina que achava muito divertido ir ao
dentista e posso garantir quase com certeza
que ela não estava mentindo!
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Eugênia não era apenas única como qual-
quer outra pessoa no mundo: era drastica-
mente, irremediavelmente, completamente
diferente de qualquer outra criança.
O que estou tentando dizer é que Eugênia
jamais seria amiga da menina do dentista,
por exemplo, que decerto é uma das figu-
ras mais esquisitas que já conheci. Também
nunca se sentaria na mesma mesa do menino
que acordava mais cedo no domingo para
estudar matemática, ainda que gostasse muito
dessa matéria.
Eugênia poderia ser considerada um objeto
de estudo interessantíssimo por muitos cien-
tistas se não fosse uma menina de onze
anos bastante confusa, em conflito com a
vida e que simplesmente não conseguia fazer
amigos.
O problema dela era bem complicado:
seria como se pedissem que você pilotasse
um submarino. Ou que fizesse, do zero, sor-
vete napolitano. Ou que lambesse seu pró-
prio cotovelo. Agora imagine que o resto do
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mundo lambesse o cotovelo pilotando um
submarino enquanto toma sorvete napolitano
feito pelas próprias mãos, assim, facinho,
como quem passeia no parque. Aposto que
você ia ficar achando que o mundo estava
de brincadeira. Mas era mais ou menos assim
que Eugênia se sentia.
Ninguém, entretanto, poderia acusá-la de
nunca ter tentado: ela simplesmente havia
esgotado todas as maneiras de começar um
papinho normal no recreio da escola, na fila
da cantina, na condução escolar. O problema
é que todos os diálogos eram mais ou menos
assim quando alguém puxava assunto:
– Oi Eugênia, tudo bom?
– Não.
E era a mais absoluta verdade. Como pode-
ria estar TUDO bom? Todas as coisas do
mundo estavam funcionando perfeitamente?
Nada mais ou menos? Nada nem um pouqui-
nho ruim? A pergunta era fácil, a resposta
certa devia ser não, certo?
Errado.
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A maioria das pessoas dava de ombros,
pensando que aquela menina era meio estra-
nha mesmo. Uns realmente se ofendiam:
“Eugênia é grosseira, nariz em pé, louca,
todas as anteriores.”
Ela observava com muita atenção e tentava,
sem sucesso, fazer o que as pessoas pareciam
nascer sabendo. Abria o maior sorrisão e
sapecava um “Oi. Tudo bem?” para a menina
que tinha acabado de levar um tombo daque-
les que praticamente arrancam o joelho fora.
A menina tinha lágrimas nos olhos e, ainda
assim, respondeu: “Tudo”. Para Eugênia, era
o mais intrigante dos comportamentos. O
tipo de coisa que a deixava paralisada. Como
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alguém conseguia interpretar aquela multidão
de sinais contraditórios? O pânico tomava
conta do corpo de Eugênia, e ela saía cor-
rendo, em disparada, até suas pernas come-
çarem a tremer.
Deu para perceber a gravidade da situação,
certo?
Cada nova tentativa de encontrar um amigo
era acompanhada de risos e zoações. A rejei-
ção era geral. Eugênia não conseguia fazer
amizade com a professora, com a moça da
cantina, com os colegas de classe ou com
qualquer pessoa do planeta, então, passou a
evitar todos categoricamente. Concluiu, com
um suspiro, que não valia o esforço. Mas não
se conformou em passar o resto da vida sem
nenhum tipo de companhia...
Acho que eu me esqueci de mencionar
uma coisa muito importante sobre Eugênia:
ela era muito inteligente. Mesmo. Muito mais
inteligente do que eu, você, Albert Einstein,
Leonardo da Vinci e o cara que inventou
o videogame, todos juntos. O esforço que
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ela dispensava ao tentar fazer amigos era o
oposto do que ela fazia para quase todas as
outras atividades mentais.
Aos onze anos, ela já havia desmontado e
montado diversas vezes todos os aparelhos
eletrônicos da casa com tanta habilidade que
seus pais não perceberam a façanha, tam-
pouco se espantaram diante da melhora na
imagem de TV, da velocidade do computador
e da eficiência da máquina de café, que antes
produzia um líquido morno bem ruinzinho
e agora dava de dez a zero na da cafeteria
chique do bairro.
Eugênia também havia lido todos os livros
de mecânica e elétrica avançadas de seu pai,
engenheiro, e corrigido alguns errinhos do
autor com anotações em post-its coloridos.
Um dia, no banho, descobriu como construir
uma nave espacial enquanto ensaboava os
dedos do pé, mas deixou para lá porque
não conseguia pensar em uma boa razão
para visitar a Lua. Até onde ela sabia, lá era
deserto, meio feio e sem graça.
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Então, ela decidiu resolver o problema à
sua maneira, mais fácil e natural. Sua única
chance de “fazer amigos” seria seguir o sig-
nificado da frase ao pé da letra. Afinal, as
pessoas não diziam que amizade é algo que
se constrói?
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eUgênia já tinha o plano perfeito traçado em sua mente: agora era uma questão de
meros preparativos, e nisso, felizmente, ela
era muito boa. Não seria fácil, claro, mas era
completamente possível: o mais complicado
seria manter tudo em segredo de seus pais.
Os pais de Eugênia, aliás, eram como o
resto do mun do para ela. Indecifráveis, com
frequência faziam coisas estranhas e a deixa-
vam ligeiramente nervosa. Tanto o pai quanto
a mãe pareciam estar sempre insatisfeitos
com ela, preocupavam-se com coisas bobas.
Àquele ponto, Eugênia já os tinha declarado
“as pessoas mais difíceis de entender do
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mundo inteiro” e deixado o problema regis-trado como sem solução.
O dia havia começado como qualquer outro. Eugênia fez questão de que fosse assim. Você, que está lendo este texto, pode até gostar de variar o café da manhã e comer bolacha rechea da sabor doce de leite em um dia e pão com manteiga em outro, mas, se havia algo que acabava com o humor dela, era uma mudança no cardápio da primeira refeição.
Todo santo dia, Eugênia montava o mesmo sanduíche. Duas fatias idênticas de pão de forma, sem casca e sem grãos, cortadas em triângulos e recheadas com queijo molinho e peito de peru, acompanhadas de suco de laranja. Tinha de ser coado, obviamente, já que Eugênia detestava sentir aqueles gomi-nhos “nojentos” presos entre os dentes.
Após o café da manhã, Eugênia pegou a mochila, os livros e os cadernos e saiu do prédio como quem vai à escola. Deu até um sorrisinho amarelo para os pais, algo que vinha ensaiando em frente ao espelho todas
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as noites. Virando o quarteirão, onde costu-mava pegar a condução escolar, escondeu-se atrás de uma moita enorme de azaleias.
Nem dez minutos depois, ela viu o carro prateado dos pais passar à sua frente. A mãe aproveitava para retocar o batom no retrovi-sor e o pai cantava uma música do rádio a plenos pulmões. Era o sinal para entrar em ação. Voltou para casa correndo, entrou no escritório dos pais e ligou o computador. Abriu o e-mail da mãe, o qual tinha apren-dido a invadir aos cinco anos, e depois um programa de edição de imagem. Copiou, com perfeição, um atestado médico dizendo que estava com... Eugênia coçou a cabeça. Amig-dalite? Sarampo? Perna quebrada? Optou por gripe comum, pois havia dois colegas de classe com a doença.
Anexou o documento ao e-mail e o enviou para a diretora da escola, pedindo com fir-meza que não telefonassem para confirmar o recebimento, alegando que “o aparelho se encontrava quebrado”. Parecia algo saído da boca da sua mãe: “E, se de fato fosse preciso,
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respondessem para aquele mesmo endereço
eletrônico.” A menina sabia que a mãe olhava
as mensagens uma vez por semana, se tanto.
Isso lhe daria tempo suficiente para inventar
uma resposta se alguém quisesse saber deta-
lhes sobre sua saúde, coisa que ela duvidava
muito que pudesse acontecer, mas era bom
ser prudente.
Eugênia prendeu os cabelos lisos em um
rabo de cavalo alto, bem puxado, para não
cair no rosto, arrumou os óculos tortos no
nariz e foi à caça. Juntou, formando uma
pilha monstruosa no meio da sala, todos os
tipos de tralhas eletrônicas que conseguiu
encontrar. Controles remotos, relógios que-
brados, baterias de aparelhos perdidos, um
treco de cozinha que Eugênia nunca tinha
visto ninguém usar, mas que aparentemente
cortava legumes em formato de estrelinha,
um par de óculos de visão noturna, um tram-
bolho de meio quilo que parecia ser algum
modelo antigo de celular e outros utensí-
lios inúteis da casa. Um fio de suor escorria
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pela sua testa, e seus tênis brancos estavam
completamente imundos, mas ela se sentia
radiante. Era muito, muito mais do esperava.
Com aquela matéria-prima, poderia fazer não
apenas um, mas três amigos. O que mais
poderia querer da manhã em que matou aula
pela primeira vez na vida?
Arrastou aqueles preciosos materiais um
por um até seu quarto. Era a única vez que o
cômodo branco parecia mais ou menos com
o quarto de qualquer outra criança. Havia
mais objetos esparramados pelo chão do que
empilhados na prateleira por ordem de cor e
tamanho. Eugênia abriu seu kit de ferramen-
tas, a coisa que ela mais gostava de ter. Sentia
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orgulho daquele estojo enorme: cada peça
havia sido um presente de Natal ou de ani-
versário. Não entendia a necessidade de ter
um videogame de última geração se, pelo
mesmo preço, ela poderia ter a steel 2000,
uma supersolda poderosíssima que derretia
até o mais duro dos metais. O complicado
era aguentar as queixas dos pais e avós, que
questionavam como uma menina de onze
anos poderia preferir um kit de parafusos a
um kit de maquiagem com glitter. Pegou os
materiais e começou a trabalhar com dedi-
cação no que viria a ser seu primeiro amigo:
um robô inteligente, quase humano.
Zero era uma réplica sua sob todos os
aspectos. Não que não funcionasse bem, isso
seria impossível para uma criadora enge-
nhosa como Eugênia. O problema é que
havia semelhanças demais entre criador e
criatura. Era como se a menina se enxergasse
em um espelho vivo, com todos os defeitos
e as manias que mais detestava desfilando à
sua frente. O robô parecia antipático, tímido
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e desinteressante aos seus olhos, e ela não
podia culpá-lo por possuir qualquer uma des-
sas características. Percebendo que ficaria
louca se seu único amigo fosse também sua
cópia perfeita, Eugênia partiu para a cons-
trução do amigo número 2.
Aldo foi um avanço em relação a Zero.
Eugênia tentou fazer uma versão melhorada
de si mesma: mais inteligente, mais eficiente,
mais rápida! Infelizmente, a menina se esque-
ceu, ao ampliar suas próprias qualidades, de
diminuir o que percebia como seus defeitos.
Aldo era um robô brilhante, mas tão desa-
jeitado quanto sua criadora. Eugênia tentou
puxar papo:
– Oi, Aldo.
– Olá – disse numa vozinha metalizada e
esnobe. – A senhorita cometeu uma falha.
Não possuo códigos de sociabilização no
meu programa.
– Ih, verdade. Puxa. Não dá pra consertar.
– Já havia percebido. Por favor, me destrua.
Não quero ser imperfeito.
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– Ah, acho que não. Deu trabalho, sabe.
Vai brincar com o Zero ali, vai.
– Não possuo o código, não sei brincar.
– Tudo bem, ele também não sabe.
Os dois robôs se sentaram um do lado do
outro, cada qual com um volume da coleção
Matemática Aplicada II. A leitura não cativou
a atenção de Aldo.
Eugênia resolveu pensar diferente. Seguir
uma nova receita. Colocou todas as caracte-
rísticas humanas que conhecia no seu com-
putador e sorteou algumas. Provavelmente,
foi assim que todas as pessoas foram feitas,
pensou.
Era a única explicação para o quão contra-
ditórias podiam ser de vez em quando. Algu-
mas características, no entanto, ela escolheu
como não optativas: o robô deveria gostar de
doce, fazer piadas que ela entendesse (Eugê-
nia tinha extrema dificuldade em entender
coisas que pareciam engraçadas para o resto
da humanidade) e não poderia mentir para
ela em hipótese alguma.
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Eugênia, então, carregou o robô número
3 com seus próprios dados – suas músicas
preferidas, comidas que não suportava, cores
que achava bonitas, livros de que mais gos-
tava. Como ela gostava que falassem com
ela, o que esperar de todas as suas ações,
quando queria conversar e quando deveria
ser deixada em paz. Assim, o robô já nasceria
conhecendo-a desde sempre, melhor do que
qualquer pessoa no planeta.
Tremendo, suja de graxa e suando muito
(três coisas que ela nunca experimentara até
então), Eugênia apertou o botão vermelho
que ligaria sua última e melhor invenção,
batizada de Isaac.
– Você...
– Sim, está tudo bem comigo, não poderia
estar melhor! Vamos jogar xadrez, fazer um
bolo de chocolate e pesquisar sobre raças de
cachorro na internet?
– Era exatamente o que eu queria fazer!
E lá se foram felizes, Isaac e Eugênia,
seguidos de longe por Zero e Aldo.
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