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JANELA ABERTAS - JURACY DE OLIVEIRA PAIXÃO

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Autor: Juracy de Oliveira Paixão Instituição: O Autor Publicação: 2006 Categoria: Em “Janelas Abertas”, Juracy de Oliveira Paixão nos apresenta o Irará dos anos 50-60, espaço humano, cultural, e geográfico em que viveu a sua infância e adolescência. São páginas de amor e lembranças que retratam o cotidiano tranquilo da cidade, tecido pelos afazeres de sua gente simples. A todos, iraraenses ou não, será agradável ler estas “Janelas Abertas”, pois se trata de uma narração onde se sente a forte presença do sentimento de ter chão, ter raiz, tão necessário a todos os seres humanos. (Trechos do prefácio do Livro escrito por Hilda Oliveira Paixão)

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Janelas Abertas

Juracy de Oliveira Paixão

Direitos autorais, 2006, de Juracy de Oliveira Paixãoe-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Paixão, Juracy de OliveiraJanelas Abertas / Juracy de Oliveira Paixão – Fortaleza (CE)

ISBN

1. Irará(BA) – Anos 50/60 2. Anos 50/60 – Irará (BA) I. Paixão, Juracy de Oliveira II. Título

CDD

Índice para Catálogo Sistemático

Irará (BA) – MemóriasAnos 50/60 – Irará (BA)Irará (BA) – Anos 50/60

Capa: Jair DantasProjeto Gráfico: Tiago Sena

Sumário

Agradecimentos 9

Dedicatória 9

Apresentação 11

Prefácio 15

Janelas da Memória 17 Passeio Matutino 18 O Dia Seguinte 22 A Cidade em Três Manhãs 26 Os Caminhos que saem da Cidade 30 Brincadeiras de Criança 35 Fatias da Memória 39

Cenas do Cotidiano 43 Os Dias passam e a Cidade vive 44 O que Fazer Hoje á Noite? 46 O Senadinho 48 Sábado é para a Feira 50 Domingo é dia... 53

Fatos e Eventos 57 O Ciclo das festas 58 Festa da Padroeira - O Povo e o Credo 61 Rei Momo: Alegria para Todos 64 Tem Circo e Parque na Cidade 65 Na Igreja, da Quarta-feira de Cinzas ao Mês de Maio 68 As festas Juninas 71 Quebras na Rotina 73 Cosme & Damião 76 As Eleições de 62 78 Quando o Ginásio chegou 81

Miscelânea 85 Semelhanças 86 Temos História? 87 A Formação do Linguajar Iraraense 88 Irará & Moscou e Saudosismo 91 Tenho Saudades 93 O Ontem e O Hoje 95

Personagens Inesquecíveis 99 Zé Freitas 100 Jota Gomes 101 A Trinca de Ases 102 João Pechincha 103 Seu Dodó da Quitanda 104 Euclides Badaró 105 Professora Aurelina 106 Miguel Paes Coelho, o Crente 108 Raul Cruz, o Delegado Comunista 109 Alberto Nogueira 110 Manoel Fogueteiro 111 Lulu Tipógrafo 112 Joana das Bonecas 113 Valfredo Sapateiro 114 Zé Estrela, O Funileiro 115 Olavo, o Ferreiro 116 Zequinha, o Rouxinol dos Metais 117 Zé Petu e o Bar 118 João Tanoeiro 119 O boêmio Zé Vermelho 120

A Linguagem Iraraense dos Anos 50/60 – Lista de Palavras 123

Notas e Esclarecimentos 201

Crítica após Leitura 205

Agradecimentos

Agradeço a ajuda precisa das amigas Lindinalva Gomes Ferro e Nelzenete Martins Gomes – Nete de Lito - e da comadre Peta – Marizélia Ferreira – por acor-darem, na minha memória, lembranças adormecidas; a Leda e Clício Freitas, que me socorreram quanto à lista dos alunos da primeira turma do Ginásio São Judas Tadeu.

Agradeço às minhas irmãs Ivanete, Hilda e Jandira por fecharem os atalhos que queriam me afastar da trilha definida. A Ivanete agradeço, ainda, pelas lições de lingüística e pela correção dos inúmeros erros. Alguns desses erros persistem por absurda teimosia minha, o que assumo com inteira e exclusiva responsabili-dade. Agradeço, sobretudo, a Anita e Manoelzinho, por me terem concedido o privi-légio de viver e crescer em Irará.

Dedicatória

Dedico esse trabalho ao meu irmão Gilson, com quem a única disputa se limitou à posse por um badogue antes de chegarmos aos 12 anos de idade; à minha saudosa irmã Leonilda, que me ensinou a ver no silêncio um profundo diálogo; à minha esposa e companheira Maria Elizabethe, a brava cearense que me fez ser esperançoso e perseverante; ao Povo Iraraense, razão maior desta minha ousadia.

Apresentação

Há mais de quatro décadas deixei o meu Irará e por vários anos lá não retornei. Depois, tempo sim, tempo não, aparecia a título de abraçar os parentes e amigos, olhar a velha casa paterna. Na verdade, o que queria rever era a minha cidade tal e qual a sentia nos meus sonhos diuturnos. A partida foi conseqüência do que me ensinara meu pai: ir à luta, com coragem e determinação. Nada diferente do que fizeram muitos outros patrícios, por anos a fio. Em outras plagas, mirei novas paisagens, colori muros com o ousado negro do piche, conjuguei verbos plenos de esperança, ouvi discursos flamantes, bafejei e fui bafejado por azares e sortes, quis mudar o mundo, fazer a verda-deira revolução. A meu modo, a fiz: de vermelho pintei meu coração, cravando nele foice e martelo, e orei no túmulo de Lenine, rogando ao deus revolucionário pelo triunfo do socialismo em minha pátria. Cada muro que pichei, cada vez que ergui os braços, cada panfleto que escrevi e distribuí, cada choro que me afogou os olhos, calaram fundo na memória, preenchendo espaços ou substituindo ilusões. Um canto, porém, do meu cinzento pensar jamais foi abalado: aquele que registrou – como o bom carimbo em velho documento – as coisas que vi, ouvi e participei no meu Irará querido. A memória viva é a fonte de onde jorraram as páginas a seguir. Erros há, pois errar é acertar a vida. Considere-se que a memória, mesmo quando viva, sofre forte influência da imaginação e que somente essa é livre. Meu desejo é retratar os fatos como vistos, ouvidos e participados, mas o desejo sempre é fruto de alguma influência. Sei que, apesar dos percalços históricos, acredito na vitória dos ideais pelos quais lutei e sofri. Nessa minha certeza, reside o meu Desejo e a minha Razão. E o que é a Razão? Nada mais do que um termo de dicioná-rio, sujeito às ideologias. A minha razão nasceu da teimosia dos meus sonhos em busca da realidade. Sonhar faz bem, mesmo quando pesadelo, esse um alerta para a atenção no risco. Sonha-se quando o subconsciente quer conversar, meter papo novo na rotina do consciente. Do sonho para a realidade é uma simples questão de ajuste. Dos meus sonhos e da minha realidade, tirei o registro que as minhas palavras puseram no papel.

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Ao crer nos meus ideais, espero por derrotas a ladrilhar o caminho da vitória. Parodiando Maquiavel, o mestre florentino, poderia dizer: jamais apregoe vitó-rias prováveis. Antes, anuncie derrotas possíveis. Assim, quando o êxito vier, seu mérito será redobrado. Os jovens costumam, hoje, antecipar acertos e ganhos. Os velhos, esses com olhos sofridos, falam de desastres e decepções. Ambos estão certos e errados à luz da Lógica. Afinal, sempre fazemos algo desejando um ganho. Quando ocorre a perda, essa pode causar uma frustrante decepção. O presente é, sempre, con-seqüência dos ganhos e perdas do passado. E o futuro? Esse é um buraco negro no azul do Tempo. É nesse contexto de pensar que decidi por falar da minha cidade, registrando o que dela mais me marcou nos melhores anos em que nela vivi. Meu registro é uma visão do passado à luz do presente, vivido o passado. Optei por um estilo que ouso chamar, na minha vaidade, de coloquial-barroco, aquele que caça uma ortografia justa, mas deixa de lado a prepotência da Pontuação Absoluta, da Concordância Rigorosa, da Semântica Elitista. Deixo-os de lado não por ignorar seus méritos, mas por julgá-los inadequados ao meu objetivo. Sei que tal perjúrio será motivo para arder em fogueira. O período escolhido é aquele que entendo como o mais fértil e rico da história pátria: os Anos 50 / 60 do Século XX. Foi nesses anos que explodiu no Brasil os grandes movimentos de vanguarda, seja na cultura ou na política. Anos do Teatro de Arena, dos CPCs universitários, dos festivais de música popular, do Cinema Novo, da Vera Cruz, da Atlântida, da Cinedia, da Multifilmes, da criação das centrais sindicais, como a CGT e CNTI, do Movimento Estudantil, das Reformas de Base, das Ligas Camponesas, do enfrentamento das greves, da Cadeia da Legalidade, dos Grupos dos Onze, enfim da divisão política da sociedade brasileira em Povo versus Elite. Anos que tiveram início com o governo democrático de Getúlio Vargas, o Pai dos Pobres, vítima da oposição virulenta de Carlos Lacerda e da UDN. Anos que foram testemunha da iniciante industrialização do Brasil, sob a égide de Juscelino Kubitschek; anos que viram Brasília nascer no vazio do cerrado; anos que vivenciaram a loucura do Homem da Vassoura, aquele que renunciou após nove meses de governo, alegando pressões de forças ocultas. Anos em que, por plebiscito democrático, o povo escolheu a volta ao Presidencialismo, garantindo os poderes de João Goulart, o presidente das Reformas de Base, alijado da poder pelo tacão dos militares golpistas. Nesses anos, primeiro olhei Irará com olhos interrogativos, sem entender o que se passava. Depois, com cérebro consciente, buscando explicação para o que via. No final, com o coração a lamentar um futuro duvidoso que apagaria das memórias os fatos vistos, ouvidos e vividos. Ao partir para o mundo, encontrei as respostas que não tinha e aprendi a entender a minha gente e a minha cidade.

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Agora, julgo-me no dever de resgatar minha dívida com meu tempo de Irará. Faço esse resgate ora com leveza, ora com sarcasmo, mas sempre com a imaginação a marcar o bom caminho. Penso, também, que as rápidas mudanças dos tempos hodiernos tendem a apagar os fatos que passam. Desejo, com meu resgate, manter com os da minha idade a recordação do bom passado e fazer com que os mais jovens entendam por que o presente é como é. Afinal, a História é feita de fragmentos, uns que se agregam, outros que se desmancham.

Dividi meu registro em cinco partes:

Janelas da Memória: minha visão da cidade, de sua estrutura e conteúdo, no passado e no presente;Cenas do Cotidiano: o dia-a-dia da cidade e de suas gentes;Fatos e Eventos: acontecimentos de data marcada e aqueles eventuais, mas modificadores da rotina;Miscelânea: aspectos diversos que, de alguma forma, me levam aos Anos 50/60; Personagens Inesquecíveis: homenagem a pessoas que, na minha ótica, marca-ram o Irará de então. A seleção ficou a cargo dos meus sonhos. Um desejo – quem sabe – de ter sido eu mesmo cada um dos personagens retratados, essências puras do que considero virtude, prazer, perseverança, caráter, consciência, humanidade, alegria.

Nos textos, quase sempre utilizo o presente, pois é nele que me situo, naqueles Anos de Ouro quase sufocados pela mais de uma década de terror ditatorial, mas que sobrevivem como alicerce do tempos atuais e esperança de um futuro de paz e prosperidade.

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Prefácio

Em “Janelas Abertas”, Juracy nos apresenta o Irará dos anos 50-60, espaço humano, cultural e geográfico em que viveu sua infância e adolescência. São páginas de amor e lembranças que retratam o cotidiano tranqüilo da cidade, tecido pelos afazeres de sua gente simples. Andarilho da memória, o autor nos guia por ruas, becos e praças, reconstrói o roteiro dos caminhos, vias de acesso e saída do núcleo urbano por onde, hoje, a cidade avança, o moderno nascendo do antigo. Seus personagens inesquecíveis são uma bela e merecida homenagem aos que, com seu trabalho e arte, garantiam a sobrevivência honesta e supriam as necessidades da população, permitindo vida e alegria. São marceneiros, ferreiros, alfaiates, tanoeiros, sapateiros e tantos outros, donos de um saber fazer que o mundo atual vai extinguindo. Através destas páginas, passa a vida de uma época. Sua leitura fará bem a todos: aos que, como autor, viveram aquele tempo, de passeios nas Lajes, da “Voz da Liberdade”, de serenatas e circos, das festas de fevereiro, São João e Natal; aos mais jovens, que encontrarão aqui parte da história de Irará, importante para compreender o presente, conhecer e preservar seu patrimônio, mesmo que o tempo e a ação dos homens tenham destruído muitas das nossas coisas belas. A todos, iraraenses ou não, será agradável ler estas “Janelas Abertas”, pois se trata de uma narração onde se sente a forte presença do sentimento de ter chão, ter raiz, tão necessário a todos os seres humanos.

Hilda Oliveira Paixão

Janelas Abertas

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Passeio Matutino

Férias. Segunda-feira. Aprovado no exame de admissão ao Ginásio São Judas Tadeu recém-criado, o menino acorda disposto a uma boa caminhada. Quer dar uma volta solitária pela cidade. Satisfeito o apetite matutino, chinelo de couro nos pés, parte Rua de Baixo acima. Logo no Beco do Mercado, vê o movimento na padaria de Zinho. Ao balcão, o amigo Codinho e o colega Fernando na azáfama de despachar pães e bolachas. Assobiando, o menino passa pelo depósito de Tiano, já pleno de agitação e agitação. O depósito é vermelho, revolucionário, embora o menino não saiba, ainda, o motivo. Esquina da Praça. No alto passeio de “A Violeta”, Zeca Caribé conversa, animado, com Eduardo Portela, esse à porta de sua loja. “Certamente falam da boa feira que tiveram no sábado passado”, imagina o menino. “Devem ter vendido muitos metros, quiçá peças inteiras, de tricoline, cambraia, gorgorão, chita e chitão, até lona xadrez e, quem sabe, fustão e flanela”. A Praça. No meio do areião, o Abrigo de Amando. Cavalos atados às colunas fazem a faraônica e inacabada construção parecer um albergue de beira de estrada. Cães latem, a correr atrás de cadela no cio e mais atiçados pelas pedras lançadas pela molecada. Parado na esquina da farmácia de Chaves, o menino observa a confusão e torce pelo desfecho da perseguição dos cães à cadela. Gosta de ver a cena, tantas vezes presenciada na fazenda do avô. Como o desfecho tarda, avança. Ao balcão da loja de Éverton, avista Tom Zé a tamborilar com os dedos sobre a madeira rija. Vê, também, mais para dentro, o companheiro de brincadeiras pas-sadas, Augusto. Não estranha a ausência de Estela e Lúcia. Afinal, não é costume moça de família ir para balcão. Um vozeirão chama-lhe a atenção: é Éverton, um braço às costas, a conversar com Henrique na porta do bar. O assunto, aos brados, refere-se à falta de luz, no domingo. Ouve Henrique responder: “Vai ver que caiu um raio na linha que vem de Coração de Maria”. O menino concorda em silêncio, adiantando o passo. Armazém de Cesário. Lá está o primo Antonilton, balconista de couros e fivelas. Entra, cumprimenta o parente e sai, já que Deraldo se encontra presente e não gosta de conversa fiada no armazém. O alarido da mo-lecada e o latir dos cães atraíram à porta Alfredo e Jaime Franco. O menino pensa: “Gente mais velha também gosta do desfecho. Não sou o único, embora mais moço”. Pen-sa ou busca uma justificativa para seu gosto, encontrando-a na atitude dos mais velhos!? Esquina de Elísio. Braços cruzados às costas, Teófilo contempla o movimento e o areião desde a porta de sua loja. Vizinho e conhecido, o menino ousa per-guntar as horas. “Nove horas, meu filho”. Adoça o passo, já que ainda é cedo. Na farmácia da esquina, a “Confiança”, avista as prateleiras conhecidas. Ao pé do balcão, Dr. Ramalho passa instruções à empregada nova. Quer entrar mas

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Parte I - Janelas da Memória

desiste, para não aguçar as lembranças. O mesmo impulso se dá em frente ao bar vizinho, agora propriedade de Bráulio Miranda. Entra e pede um “abafa banca”. Mira as mesas de sinuca e de bilhar, acaricia a bombonière lotada e sussurra para si mesmo: “ainda vou vir aqui, à noite, tomar umas e jogar apostado”. Mal sabe ele que, no futuro, irá cumprir com sobra aquele desejo de menino curioso. Uma fila se forma na porta do Cartório de Guga. O que será!? Logo se lembra que ouvira algo sobre tirar documentos para obter o título de eleitor, já que no ano entrante haveria eleições. “Mas essas somente se darão lá pra outubro !!”, admira-se. Na fila, somente tabaréus. Se soubesse o que significa “eleitor de cabresto”, teria en-tendido a movimentação antecipada. Rua Direita acima, cruza com Helena, esposa de Zé Carvalho, a conver-sar com Profª. Eurídes, essa sua mestra do 5º ano primário. “Bom dia , profes-sora.” “Bom dia, meu filho. Parabéns pelo resultado do exame de admissão”. Não fora a timidez, o menino diria: “Devo a aprovação ao meu 5º ano com a senhora e mais os outros quatro anos com a Profª. Aurelina”. Apenas sorri e segue. Avista Fiinha à janela de sua casa e resolve bater um papinho. Afinal, tinham “trabalhado” juntos na Farmácia Confiança. Pergunta se Humberto já está de todo curado das queimaduras que sofrera no São João. “Está. Vai ficar ainda um bom tempo com as marcas, Dr. Aloísio disse que, com o passar dos anos, deverão sumir”. Despede-se da velha e boa companheira e avança. Adiante, vê porta entreaberta. Lembra-se do convite que recebera quando ali estivera no ano anterior: “Entre, venha ver a oficina”. Essa frase, convite instigante, haveria de acompanhar o menino em definitivo, mesmo quando homem feito. Ali nascera seu gosto pela notícia, pela impressão, pelo panfleto. Ali começara a avermelhar-se, sem que percebesse. Na Esquina da Cadeia ouve o chamado de Joaquim Estrela, à janela dos Correios e Telégrafos. Atende ao chamado, atravessando a rua. Sentia uma verdadeira atração por aquela repartição pública. Gostava de ouvir o tic...tictic...tic do aparelho de Código Morse, admirava a bateria de pilhas elétricas formada por garrafas com ácido, achava as folhas de selos verdadeiras obras primas. Joaquim Estrela entrega-lhe um envelope grosso. Imagina: “Deve ser do Instituto Monitor. São as aulas que pedi, de desenho e de eletricidade”. Já fizera, por correspon-dência, um curso de relojoaria e, agora, iria iniciar esses dois. “Apanho na volta, quando for para casa”. Suspira. Precisa retornar ao passeio da direita, pois, logo em seguida, está a casa de Lessa, pai de Eliane. Preferia olhar as janelas com a segurança da largura da rua. Não sabe se seu amor platônico é correspon-dido e tem receio de denunciar-se no caso de súbito encontro. Na Coletoria Federal, entretém-se um pouco a conversar com o amigo Clício, que ali trabalha como auxiliar. Acertam uma volta noturna de bicicleta, “quem sabe até o Cajueiro”. No passeio da repartição, o coletor Raul bate animado papo com Pe. Valtério. Esse fuma e sorri, com ar de vitória. É que acabaram de acertar um jogo de bara- lho para a noite, como de hábito. O menino ouve o acerto entre o preposto

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do Governo e o procurador de Deus e faz sua escolha: torceria pela vitória do coletor Raul, embora perceba no sorriso do padre a indicação da ajuda celestial. Como aquilo lhe parece injusto, resolve, ali mesmo, rezar uma Ave Maria e pedir a ajuda de Nsa. Sra. da Purificação para o patrão de Clício. Sendo ela a Mãe de Deus, certa-mente tem poder sobre o Filho. A Igreja Batista, no lado esquerdo da rua, está aberta, mas vazia. “Será que o pastor viajou!? E Miguel Paes Coelho, será que já veio e já saiu!?”. O menino gosta dos crentes, embora não encontre razão para seu gosto, oriundo que é de família com tradição católica. Julgando-se um inteligente pensador, diz a si mesmo: “A razão não passa de mero termo de dicionário, sujeito a ideologias. Gosto dos cren-tes e pronto...”. Admira a conversa fluente de Miguel Paes Coelho e, se pudesse, seria capaz de pagar para ouvir suas explanações. Ainda inexperiente, não percebe que seu gosto pelos crentes vem da empatia com o crente Miguel. No futuro, amigo de Ramon, filho de Miguel, passaria a ouvir as explanações mais amiúde, na barbearia da Rua Manoel Julião. Caminha. Em frente da bela casa da esquina da Rua Direita com a Praça da Bandeira, ouve ruídos de martelo e serrote. Zé Freitas está a fazer arte e esta alegra a esquina com sua rima inconfundível. O menino julga aquela casa como sendo o seu segundo lar, tanto ali comparece. Jorge sai à porta e se falam por um breve tempo. O menino é tentado a entrar, a ver o bater do macete sobre o formão, mas retrai-se. Fica para outra hora, já que tem compromisso com a caminhada. Prefeitura. Gente muita apinhada no passeio. Como sempre, benesses pater-nalistas estão a ser distribuídas. Vislumbra à porta do belo prédio clássico, Amaro Medeiros, charuto aceso, a “conversar” com Elísio Santana, cabeça erguida. Conversa de PSD e UDN. Acha aquilo interessante, já que sabe serem os dois duros adversários. À noite, durante a sopa, informaria ao pai a cena vis-ta. Esse, do alto de seus anos de UDN, rebateria: “Conversando o quê, meu filho!?. Deviam estar brigando, batendo boca, quebrando pau. Aqueles dois são como gato e rato. Você nada entende de política”. O menino calar-se-ia e acataria a obser- vação paterna. Chegaria até a lembrar-se de que vira os dois contendores com dedos em riste, um na cara do outro. “Bem que papai tem razão. Deviam estar era brigando feio”. No futuro, viria a constatar que, na chamada Política Nacional, nada é mais comum do que antigos adversários se tornarem aliados a fim de garantirem seus privilégios. O menino tem muito o que aprender. Chuva. Aliás, chuvisco. Resolve voltar. Retomaria sua caminhada no dia seguinte, justo daquele ponto, na Praça da Bandeira. Afinal, está disposto a vistoriar toda a cidade e ainda falta meia Rua Direita, toda a Quixabeira, a Canta Galo, a Mangabeira, a Manoel Julião e a velha Rua Nova, isso sem falar na Praça da Matriz. Descendo, passa pelos Correios para recolher suas aulas e segue para casa pelo passeio da esquerda. Na porta do Cartório de Guga, analisa os personagens da fila. Todos com chapéu de palha, a indicar a roça como moradia.

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Na Praça, vê que o desfecho entre cães e cadela já se deu. Agora, o que observa é um casal de cachorros como que amarrados em sentido oposto, tal e qual está habituado a presenciar na fazenda do seu avô. Sorri e ensimesma-se. Os moleques, estes observam a cena calados e desconfiados. Alfredo e Jaime Franco não mais estão à porta do armazém. O vento levanta poeira do areião da Praça. O sol, agora a pino, mal se esconde sob a frondosa sombra do oiti que protege a bomba de gasolina e sob as varandas do Abrigo de Amando. Dentro de pouco tempo, a madorna tomaria conta da cidade. Agitação, apenas lá em Tiano, o depósito ver-melho. Para tanto, basta que João Pechincha chegue, como de costume.

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O Dia Seguinte

Terça-feira, 8 horas da manhã. O menino pouco dormiu, a planejar nova caminhada. Desjejum feito, parte em marcha batida para seu rumo. Subindo a Rua de Baixo, dá-se no mesmo passeio com Dodó que, alegre, vai abrir a quitanda. Na Praça, a ventania a levantar poeira. Como sempre, os comerciantes à porta de seus negócios. No cartório de Guga, nova fila se formando. Disposto a não copiar a véspera, o menino acelera o andar. Ao passar pela porta da cadeia, um barulho de palmatória o surpreende: Paaa. Um ai sofrido chega-lhe aos ouvidos. “Quem bate!? Quem apanha!?”. Um sopro de maturidade sussurra-lhe: “Deve ser um Zé Ninguém, poderoso quando fardado, a pisar num Zé do Povo, calça surrada e pés descalços, talvez um simples ladrão de galinha, desses que saem no desespero para arranjar com que alimentar os seus”. O menino responde ao sussurro: “É, com certeza só pode ser isso”. Segue constrangido. Ei-lo na Praça da Bandeira. As benesses com o dinheiro público parecem con-tinuar, indica a movimentação na porta da prefeitura. No coreto, um corre-corre de crianças. Passarinhos alegram os ficus. O menino mira a fachada da prefeitura, remira o coreto e uma tristeza dolorosa lhe toca a face ao contemplar aqueles belos exemplares clássicos. Ali e com aquela idade, não sabe o porquê da dor. Esquina de Alfredo Franco. O menino lembra-se dos cães da véspera. Zé Leão quica bola no passeio de sua casa. Ao vê-lo, o jogador afirma: “Vou bater um baba. Gilson vai?”. “Não sei. Acho que foi caçar de badogue”. De um rádio a alto volume, ouve Adelaide Chiozzo: “Eu tou doente, moreno... doente eu tou, mo-reno... cabeça inchada, moreno... dói... dói...dói...” A melodia o faz lembrar-se que já, já, Jota Gomes porá no ar a Voz da Liberdade e haverá “Tornei-me um ébrio” na voz de Vicente Celestino. É o Irará alegre e cantante do qual o menino tanto gosta. Janelas ocupadas. Pequena, Corina e Nazinha, como de costume, espiam o movimento da rua. O andante pára e as cumprimenta. Ali já esteve outras vezes, a apreciar as maravilhas que as irmãs produzem em seu ateliê doméstico. Uns não gostam, dizem que se trata apenas de cópias de coisas e bichos; outros afirmam que são jóias de profundo valor artístico, o verdadeiro artesanato estilizado. Com esses, o menino concorda. Admira as irmãs, aliás, as venera. Não lhe interessa se copiam ou criam; para ele, é arte pura e isso lhe basta. Um dia lerá o que escreveu Pablo Neruda sobre os artistas populares: “Não creio na originalidade, que é mais um fetiche criado em nossa época de demolição vertiginosa. Acredito na personalidade através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artísti-ca”. Conversa, fala da caminhada de ontem e de hoje, observa, com as artistas, o sol a esconder-se entre as nuvens e segue. Nota que não há fila na porta do cartório de Maia. “O que é que um faz, que o outro não faz?!”. Mistérios da burocracia pátria. Professor Fernando, à porta,

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brinda o dia com sua negritude primorosa e altaneira. O menino pensa, ou melhor, reza: “Tomara que ele seja meu professor no Ginásio, ano que vem”. Será e muito mais. Será farol a iluminar caminhos, guia a apontar obstáculos. Será mestre. Lá está Raul Cruz debruçado na janela, a contemplar o tempo. O menino sente-se feliz em vê-lo, embora mal o conheça. Cumprimenta-o com um aceno, logo retribuído. Algo se forma ali, a rebentar anos depois. Escolas Reunidas Gal. Juracy Montenegro Magalhães – Grupo Escolar Dr. Juliano Moreira. “Que será que esses dois fizeram por Irará, meu Deus!?. Será que vieram assentar os tijolos!?. Vou perguntar a papai, ele sempre tem resposta pra tudo”. Detém-se à porta que tanto cruzou no seu 5º ano primário. Vê, como se lá estivessem de fato, a Profª. Eurides, a Profª. Rilza, a Profª. Valdira, até a Profª. Antônia, que não ensi-nava ali. Não vê as outras. Não vê ou não lembra !? Praça da Matriz. Igreja de Nsa. Sra. da Purificação. Pelo peso da padroeira, o templo deveria ser mais opulento, essa é a sua opinião. Lembra-se da magní-fica igreja onde uma de suas irmãs foi batizada, em Salvador: ”Aquela sim é que é igreja de santa importante...”. Por conversa dos mais velhos, soubera que a matriz da cidade era um imponente templo na Praça do Comércio, que foi demolido em nome da modernidade. “E modernidade exige destruição do belo??. Espero que um dia não cismem de derrubar o mercado, que deve ser maior do que a velha matriz”. Num repente, o menino medita: “Por que o Senhor do Universo precisa de casas na terra? Por que se utiliza de procuradores?. Todo poderoso, deveria muito bem servir-se das trombetas celestiais para comunicar-se diretamente com Seu povo”. Mistérios da fé. Posto de Puericultura. Gente amontoada pelas varandas, mais gente no pas- seio. “Deve ser pra tomar vacina. Vai ver que não vieram na semana passada, ou vieram e a vacina acabou. E se estiverem em jejum, ainda a essa hora!?”. Lembrou-se que, na semana anterior, fora levado pelo pai para vacinar-se. Fora em jejum, pois esse era o costume. No posto, o doutor informou que jejum somente se exige para exames. No caso de vacina, tratava-se de invenção sem sentido, crendice. “Que diabo é crendice??”. O menino resolve descansar à sombra dos oitis da praça. Observa o obelisco e conta o tempo. “Será que, ao completar-se mais cem anos, colocarão outro degrau?. Não, acho que vão fazer outro monumento somente para trazer alguém de fora para inaugurar”. O cemitério. O menino mantém uma relação conflituosa com os mortos: tem, simultaneamente, medo e curiosidade. Para ele, a morte está plena de in- terrogações. “Se a morte é o fim da vida, por que só se fica famoso depois de morto? Aí, é nome de rua, de praça, de cidade. Alguns, até, viram santos. De que adianta ser santo depois de morto? Será que o morto famoso sabe que seu nome foi colocado na praça?”. Apesar do medo, sente uma atração masoquista por aquele muro gradeado, por aquele portão imponente. Aproxima-se. Sempre ouvira dizer

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que há mortos que retornam na forma de guias. Resolve-se. Vai conversar com os mortos, pedir conselhos, uma luz, a indicação de uma trilha. Pensa em rezar, mas desiste. Já basta a Ave Maria gasta pela vitória do preposto do governo contra o procurador de Deus na mesa de carteado. Quieto e mudo, apoia-se no portão de ferro. No seu silencio interior, olhos fechados, vê um facho luminoso de verme-lho intenso. Não entende a mensagem, mas percebe que se trata de uma rota longa e sofrida que lhe cabe seguir. Apenas, terá que esperar a hora de por-se a caminho. Sobrado dos Nogueira. A reforma para a instalação do Ginásio São Judas Tadeu, filiado á Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, vai de vento em popa. O menino sente-se em aula já. “Qual matéria vai me agradar mais?”. De ante-mão, escolhe História e Geografia. O tempo dirá se a escolha foi correta. Casa Jesus, Maria e José. Anciãos com rostos amargurados às janelas. “Será que Alberto Nogueira conseguiu arrecadar o suficiente para essa gente ter um Natal?!. Se pudesse, daria ajuda”. Ah se o menino soubesse que uma grande, incomensurável ajuda seria ele entrar e dialogar com aqueles amargurados rostos! Seria um alimento, uma festa que nenhum dinheiro compraria. Na Esquina do Campo vê a molecada, Zé Leão e Jurandi à frente, a caminho do baba. Avista os muros do velho cemitério, mas sua mente se concentra a olhar o que os olhos não vêem: o Lasca Gato, bem no início da Ladeira da Fon-te da Nação. “Um dia, quando eu for maior, ainda vou ver o que tem nesse Lasca Gato tão falado”. A questão, no entanto, não é de tamanho. Há uma idade na qual já se aprendeu o suficiente para não correr riscos, mas ainda não se sabe o bastan-te para aproveitar a vida. Rua da Quixabeira. Lá está Djalma, a chinelar pela calçada. “Não vai pro baba?”. “Vou pra oficina de Tonhó. Tou lá de aprendiz”. Na Esquina de Henrique, cruza com Zé Luís. Não se falam, apenas se olham. “Se fosse Tonho Luís, eu ia parar pra conver- sar. Esse aí tá mais pra pai do que pra companheiro”. “Lá vai Dego, sacola na mão. Certo que vai pro balcão do irmão Tonhó”. Zinha, à janela, observa o passante, que observa a valorosa mulher. Silêncio na casa da Profª. Aurelina. Nas férias, somente um ou outro aluno ali comparece para tomar banca. O menino sorri: “Nunca precisei de banca pra passar...”. Lembra-se dos quatro anos que ali estudou, tomou bolo e chorou, mas aprendeu. Ali se aprendia, nem que fosse na base da régua e da palmatória (não aquela que imaginara existir na cadeia...). Esquina de Arlindo Paes Coelho. “Interessante, nunca vi Nazi na porta de sua venda. Também, ele não tem vizinho com quem bater papo. O jeito é ficar lá por dentro a mexer nos peixes, na carne de sertão, nas enxadas, esperando um freguês e torcendo pro dia acabar. Deve ser uma morrinha!!”. Avança pelo passeio a fim de cumprimentar o colega Emanuel, balconista da loja de Pedro Martins. A conversa é pouca, pois o dono não gosta de lero-lero no seu negócio. “Parece que aprendeu com Deraldo Bacelar ( ou foi o inverso?)”.

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Outra vez na praça, a velha casa onde morou lhe chama a atenção. É a segunda após a esquina e continua fechada. Ali morou por quase dois anos, quando veio para a cidade. Bem se lembra quando o pai adoeceu de tanto ficar até tarde no bar. Por isso, vendeu o bar para Bráulio Miranda. Fez bem. A passo lento, observa o consultório do Dr. Mendonça. O médico vinha de fora uma vez por semana e ficava dois dias na cidade. Doentes, sempre havia, pois Dr. Aloísio não dava conta de todos. Quem gostava era o pai, pois assim havia mais receitas para despachar na Farmácia Confiança. Na farmácia de Chaves pensava-se da mesma maneira. Pena que o pai vendeu a Confiança para Dr. Ramalho, pois o menino gostava de passar o tempo ao balcão, ler as bulas dos remédios, ver o preparo das drogas manipuladas. Ele e Fiinha tomavam conta do negócio, ela substituindo o farmacêutico prático Zeca de Sergipe, que o pai trouxera de Feira de Santana. Praça abaixo, vê-se na calçada de Piroca Brejão, casa cheia de vendeiros e qui-tandeiros a se abastecerem. Ali o negócio era do bom e todos tinham crédito. Ao menos, era o que ouvia do pai. Mercado. Resolve entrar para ver se ainda há restos da feira. A não ser na barraca e no balcão de carne, não se vê mais ninguém. O menino gosta do mercado. Todos os sábados, lá comparece com a mãe, a fazer as compras. Avis-ta uma porta aberta aos fundos e para lá se dirige. É hora de ir para casa que o sol já está a pino. “Canta galo, Manoel Julião, Mangabeira e Rua Nova que esperem, pois meus pés não são de aço”. Já na Rua de Baixo, sente que o depósito de Olavo está com cheiro de cachaça nova. Certamente chegara carga da “Dois Leões” e da desdobrada.

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A Cidade em Três Manhãs

Quarta-feira. Lá vai o menino seguir a rota decidida. Saiu mais cedo, para ver Valfredo abrir sua tenda. Mal chega à esquina do mercado com a Rua Canta Galo, avista o artesão a manejar o molho de chaves. Nunca pensou em ser sapateiro, mas sente entusiasmo pelo ofício. Acha que todo sapateiro é um artista. Lembra-se de Zé Vermelho, que é cantor e corta-sola. Inicia a descida da Canta Galo. Pedro Barbeiro já está na labuta, aparando os escassos fios de uma careca da sociedade. O cheiro de água velva corta o beco. João Pechincha já está no ponto, vendendo pule do bicho. “Será que hoje vai dar touro? Sonhei com dois enormes chifres essa noite”. Ainda não jogou no bicho, mas tem enorme curiosidade sobre como se dá o sorteio. “Que é limpo, tenho certe-za, pois João Pechincha é homem de bem. Se não fosse, não freqüentaria o depósito de Tiano”. No final da Canta Galo, a menina morena na janela da casa de Ma-noel Cardoso chama-lhe a atenção, mas o amor platônico passa a borracha. Ao menos, por enquanto. Depósito de fumo. Os fardos, a saírem do carro-de-boi há pouco chegado, acumulam-se na calçada. Lá dentro, a azáfama das manoqueiras a consertar fardos rasgados. Pensa: “Cigarro e charuto dão muito dinheiro. Se não dessem, não se plantaria tanto fumo. E se não plantassem, que fariam os pobres lavradores desse sertão!? Todo mundo a cultivar mandioca, não haveria boca pra consumir. Acho que iriam todos pra São Paulo”. É o que ouvira os maiores falarem. Beco de Teófilo. Resolve descer até Manoel Fogueteiro. Dá de face com os irmãos sergipanos, Zeca e Vavá, a discutirem sobre o preço do couro curti-do. “Vai ver que subiu de preço. Vão ter que aumentar o cobrado pelos chinelos. Logo agora, que estou precisando de um novo...”. Na porta de Maninha, Zé Pequeno olha a rua. Não se falam, já que mal se conhecem. Pensa em entrar na casa de Joana, a bonequeira, mas desiste. “Afinal, boneca é brinquedo de menina”. Algo o incomo- da ao pensar assim, mas não sabe explicar a razão. Anos depois, descobriria que naquela casa não se faziam bonecas mas arte, a mais bela e pura arte iraraense. Fim da Rua de Baixo. Passa pelo portão da salgadeira de Pompílio e logo está em frente à tenda de Mestre Cacimiro. Ali, estaca. O cheiro de madeira o faz entrar. “Bom dia, mestre”. “Bom dia, menino. Passeando a essa hora?”. “É, tou dando um giro pela cidade. O que é isso que estás montando?”. “É uma mesinha com gave- tas, pra apoiar oratório que um freguês comprou em Feira. Já tou terminando. Logo vou envernizar”. Segue e se dá em frente à tenda do fogueteiro. Ali é conhecido, pois todo ano comparece para comprar fogos. Olha, vê o pouco movimento e pensa: “deve ser porque o São João tá longe”. Retorna, para virar no beco de Éver-ton, rumo ao pé de sabonete. No lado oposto, a jaqueira está coberta de frutos, fora os caídos.

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Rua da Mangabeira. Esquina de Amélia. Cavalos de aluguel, arreados, aguar-dam partida, certos de que serão esporados como de costume. A dona avisa: ”Os bichos são quase gente. Não precisa esporar. Basta atiçar a brida que eles avan- çam sem serem maltratados”. O menino matuta: “Se esses cavalos falassem, diriam: ‘não adianta, Amélia. Eles pensam que a gente não sente. Metem a espora pra valer’. O correto seria cobrar multa de quem devolvesse os animais com marcas de esporas”. A Mangabeira é a rua mais bem falada da cidade. Na verdade se ouve homens falando dela, e como se existisse somente à noite. “Ainda vou desvendar esse misté-rio. Rua tão bonita de dia... tantas moças nas janelas...”. Na esquina do cinema, resolve: vai andar pelas duas calçadas da Manoel Ju-lião. Avança. Em frente á casa de Albertino, cruza com o primo Zé Nilton a sair com uma bola debaixo do braço: “Vou bater um baba”. Pensa: “Como essa turma de Gilson gosta de bola!. Eu prefiro caminhar, ver gente, ver casas”. Não sabe ele que da-queles babas sairiam jogadores famosos como Renato de Ospício, Delcker de Guga e, bem mais adiante, um goleiro chamado Dida, que seria da seleção canarinho. João Tanoeiro, assobiando, limpa as gaiolas de sua orquestra de pássaros. O menino gosta do fabricante de barris; admira o contraste entre seu jeito estouvado de falar e o carinho que emprega ao alisar as costelas de madeira dos vasos que fabrica. Na tenda de Zé Estrela, o funileiro, pára e fica a contemplar o derreter de solda em telha de barro cozido. Acha interessante aquele cortar, e virar, e bater, e soldar folha de flandres. O menino vê o artesão passar todos os dias pedalando bicicleta Rua de Baixo acima, vindo de seu sítio lá pras bandas do Cruzeiro da Queimada. O retorno se dá no passeio da farmácia de Chaves. Zé Petu, ao vê-lo, inquire: “Quer um abafa-banca, meu filho?”. Quis. Não entende por que todos os mais velhos o chamam de meu filho. “Vai ver que é porque me acham quieto. Não fazem idéia do vulcão que tenho na cabeça”. Cinema. O cartaz anuncia: Domingo - Roy Rogers em “Cavalgada Selvagem”. Decide que virá ao matinê dominical, mesmo que o pai não queira. Há de se arranjar com a mãe. Já basta que perdera “Sete homens e um destino”, na semana passada. A velha Rua Nova é um poeirão, com o vendaval a ciscar. Pompílio, à porta de casa, consulta uma folha de papel. “Deve estar verificando quem não pagou o aluguel. Papai pagou, que eu vi”. O velho senhorio é dono de casas por toda a cidade, inclusive de pontos comerciais como o de seu pai na Rua de Baixo. Joãozinho Dantas despacha o burro com os camburões de leite. E condutor, claro. “Tão tarde pra entregar leite. Será que não vai talhar?”. Uma gritaria assusta o menino. É a molecada a atiçar Das Dores, que desce a rua agitando os braços e falando sozinha. “E Lucinda, por onde andará?”. Das Dores não mete medo. Lucinda sim, é braba!”. Antônio de Modesto cruza a rua. “Certamente vai aplicar injeção, pela pressa com que anda”. Capelinha. A porta semi-aberta chama os que passam. Interesse em entrar,

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não tem. Não obstante, pára e observa: cabeças cobertas por véus, ora pretos, ora brancos, ocupam os poucos assentos. “Será que também Deus está de férias, por isso o povo desistiu da igreja e veio pra cá, a ver se ele aparece nessa casa modesta?!”. Não avista o Procurador do Deus. Alguém puxa a reza e todos respon-dem, numa mesmice sem reticências. Esquina do Foro. Dr. Cândido, o Juiz de Direito, enfatiotado, conversa à porta com Amaro Medeiros - charuto ao canto da boca - que mora quase em frente. O menino imagina: “Juiz deve ser mais importante que político. No entanto, pelo jeito, parece que o dono do charuto é quem passa instruções à autoridade, embora um seja do PSD e o outro da UDN”. Questiona: “É certo juiz ter partido ?! E pra quê o palitó e a gravata num calorão desse?!”. No outro lado da rua, em frente à casa do padre Valtério, o Procurador de Deus, um caminhão chama sua atenção. “Deve ser de Inácio, que mora vizinho. Vai ver ele está lá dentro tratando dos interesses dos romeiros que virão para a festa de Dois de Fevereiro”. Beco da Madalena. Estaca e fica observando animais com cangalhas con-duzindo adobes. Uma tropa. “Quem será que está construindo? Na Rua de Baixo não é, que não vi...”. Na Lagoa da Madalena fazem-se adobes de bom tamanho, embora costumem rachar por estarem mal curtidos. A pressa em vender é tanta... O menino olha os quintais à frente. Os muros com detalhes torneados da casa de Pedro Martins contrastam com as rústicas paredes brancas do lado oposto. Uma paisagem que se vê em outros cantos da cidade, exceto nas ruas da Quixabeira e da Mangabeira, essas só de pobres e remediados. O menino conclui que viu toda a cidade. Senta-se na borda da calçada e diz a si mesmo: “Como é pequena a minha terra! Eu a corri de ponta a ponta em três manhãs. Se fosse no frio de julho, teria visto tudo em um só dia...”. O menino engana-se. O que viu nas três manhãs em que bateu pernas foi donos de vendas, quitandas e armazéns, fachadas com janelas semi-abertas, repartições a exigir fila, políticos a distribuir benesses, Zé Ninguém a bater em Zé do Povo, Procurador de Deus a acertar jogo de cartas com Preposto do Governo, cães a ladrar e a se encangar, molecada a abusar de doida, autoridade a receber instruções de político... Não viu a Cidade. Bem verdade que sentiu o calor dos “meu filho” que escutou, que se enlevou com as rimas do martelo e do serrote de Zé Freitas, que recebeu nos olhos o porte soberano do Professor Fernando, que acolheu no ar o aceno de Raul Cruz, que sentiu a agitação no depósito de Tiano, que se empolgou com a solidariedade dos que iam bater baba, que se entristeceu com os rostos amargurados nas janelas da Casa Jesus, Maria e José, que deu pela falta de Miguel Paes Coelho no templo batista, que viu Zé Estrela derretendo solda em telha de barro cozido, que ouviu o assobio de João Tanoeiro limpando as gaiolas de sua orquestra de pássaros, que aprovou o gosto do abafa-banca de Zé Petu, que se lembrou ser Zé Vermelho cantor e artista, que espiou Valfredo abrindo seu ateliê

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de mágicas, que se alegrou por não precisar tomar banca com a Profª. Aurelina, que viu Olavo renovar o estoque de “Dois Leões”, que sentiu o cheiro de pólvora na tenda de Manoel Foqueteiro, que apreciou a mesinha feita por Mestre Cacimiro, que se emocionou ao ver o sol em companhia das irmãs artistas da Rua Direita, que se arrependeu por não ter entrado na casa de Joana Bonequeira, que recebeu dos mortos a indicação de um caminho a seguir... . Contudo não viu a enorme cidade que fervilha por todas as tendas e oficinas, que se emoldura nas bonecas e desenhos, que se entristece aos berros de “Badaró”, que palpita nos corações vermelhos ainda escondidos, que chora ao imaginar o que o futuro reserva ao velho prédio da prefeitura e ao solene coreto da Praça da Bandeira, que lastima a perda da velha matriz, que faz música ao tilintar de copos e garrafas, que estremece ao passar a Filarmônica, que teme pelo futuro do velho mercado, que sua ao lavar roupa na Fonte da Nação, que constrói peças maravilhosas a partir do barro bem pisado, que canta fantasiada de Germino Curador, que dança com os passos de João Chagas, que faz ritmo com o agogô de Só Chumbo, que brinca ao som do trombone de Zequinha, que se enche de alegria a cada sábado que chega e passa. Para ver essa Cidade Multifacetada, não bastarão ao menino três manhãs. Será preciso toda uma vida a fim de constatar que ela se renova todos os dias, todos os meses, todos os anos. Que faz arte, faz cultura, faz história.

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Os Caminhos da Cidade

Até meados do século passado, Irará possuía oito caminhos. Por eles chega-vam os tropeiros, cantavam os carros-de-bois, esquipavam os animais de montaria, vagavam os andarilhos com alpercatas de sola e relho. Por eles aventuravam-se os caminhões. Veias e intestinos da Vida Urbana, por esses caminhos entravam os cereais, as frutas e as verduras; saíam o fumo e os emigrantes – riquezas da terra e das gentes. Passada quase uma década, o menino que fizera a Cidade em Três Manhãs, agora rapaz, iria fazer os caminhos que circulavam a Urbis. Para fazê-los, saíra em busca de rumo e mundo.

I – O Caminho do Cruzeiro da Queimada Descida a Rua de Baixo, a marcha pelo lado esquerdo ladeia a área da salga-deira de Pompílio tendo à direita a bucólica vista do sítio dos Portela. Logo ouve-se o bater do macete no formão, a indicar que Mestre Cacimiro apronta mais uma encomenda. Em frente à tenda do artífice, a casa de Pedro Barbeiro a confrontar-se com a tenda de Manoel Fogueteiro. O cheiro de pólvora e de rosalgar atesta que o São João vai ser farto e colorido. Bons espaços caminhados, logo constata-se azáfama no sítio de Antoninho: Sampaio a selar cavalo, a carroça d’água a ser abastecida, o catavento a girar, girar. O Caminho estreita-se para maior intimidade com o aglomerado de casas nas posses de João de Bila. Adiante, na curva que se destina à Conceição, a piçarra solta denuncia que a Prefeitura andou tapando buracos deixados pelo último toró, a fim de facilitar a passagem da marinete. A marcha deixa a curva e segue em frente, rumo às sombras do Cruzeiro. Um olhar à esquerda mostra o sítio de Zulmiro com seu cajueiral a enfrentar o mormaço. Parada na capelinha para acender vela em prol de chuva que não chega. O sol, a meio pino, projeta os braços da cruz no chão arenoso, que o capim não cobre. O Cruzeiro da Queimada avisa ao andarilho que a cidade ficou para trás e que dali em diante só se verá enxada a cortar o chão crestado na dura labuta pela mandioca e pelo fumo.

II – O Caminho do Retiro Na encruzilhada que dá acesso ao sítio de Antoninho, dobra-se á direita, bem em frente à chácara de Possidônio. Pasto de um lado, coqueiros e jaqueiras do outro, logo o andarilho há que deparar-se com a varanda alambradada da casa onde morou Manoelzinho da Paixão, quando deixou o Leãozinho e veio morar na Rua a fim de educar os filhos. A velha casa coroa o cume da ladeira. Descida a pique permeada de voçorocas que a chuva do ano passado deixou

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como herança, a ladeira dá-se, na baixada, com o riacho que conduz o vinhoto do alambique. No pasto à direita, um mar de flores silvestres, que dançam ao embalo das borboletas e ao som do vento que sopra – morno às oito, quente à tarde. Os cavalos a pastar interrompem o banquete para mirar o andarilho, que desce ao encontro do fétido rego de água poluída. Passada a tosca ponte, a subida íngreme conduz ao Retiro se a marcha seguir em frente, mas dar-se-á no Povoado de Santo Antônio se o desejo de ver a nascente dita milagrosa for maior que o de conhecer o antigo Povoado de São Simão. O Caminho do Retiro faz as terras iraraenses parecerem poucas, tão logo se chega às plagas de Coração-de-Maria.

III – O Caminho da Fonte-da-Nação Final da Quixabeira, na esquina da Casa Jesus, Maria e José. Se o destino é a Praça do Coreto, dobra-se à direita. Sendo os olhos pra ver paisagem, quebra-se à esquerda. Vencendo os olhos, dá-se um encontro de contrastes: o Campo de Bola - onde a moçada bate baba – faz parelha com o velho cemitério de muros sombrios embora gradeados à moda clássica. Um abraço da alegria dos jovens brincantes na solidão dos que deixaram a vida para ingressarem nos sete palmos da eternidade. Por trás do Campo de Bola, a salgadeira de Amadeu bem no cume da ladeira. Chão bem conhecido dos boêmios noctívagos, logo se vê o Largo do Lasca-Gato, com suas casinhas de janela e porta – de dia moça à janela, de noite rapaz à porta. Se o andarilho desviar os olhos para afastar a tentação e meter pé a descer a ladeira, encontrará, na meia rampa e à esquerda, o desvio para a Fonte-da-Nação. O cantar das lavadeiras sempre alegra os que chegam e aproximar-se é ver gente sofrida a divertir-se na labuta de todo dia. No verde da grama, a roupa da cidade posta ao sol, na quara indispensável ao branco almejado. Nas bordas da velha fonte, aguadeiros enchem os barris que irão mitigar a sede dos moradores da Rua: é esperar e ver os jumentos partirem – arqueados – ladeira acima, em cada costado quarenta litros. A quantos iraraenses sedentos a Fonte-da-Nação já saciou? Cálculo para entendido em estatística. O certo é que, seja inverno ou verão, haja seca ou chova toró, a Fonte-da-Nação cumpre sua bendita sina. Continuar a descida é apreciar, nas laterais, o verde intenso do capim a realçar a galharia cinza dos juazeiros, araçazeiros e cajueiros. Na baixada, o Alambique Dois Leões solta fumaça como se fosse locomotiva e o vento espalha o ativo odor da cana fermentada. Cruzando-se o riacho, o vinhoto assusta por escurecer o fio-d’água. Há que subir a rampa íngreme para deslumbrar-se com os campos coloridos por onde o gado pasta. Não fosse a cerca – a indicar pro-priedade – e a aventura conduziria o andarilho até as sombras da capoeira distante – isso se as vacas paridas o permitissem. Chegada ao topo, a trilha conduz ao aconchego do Povoado da Caroba. Voltar os olhos significa vislumbrar o casario da cidade como se fosse uma miragem em deserto verde.

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O Caminho da Fonte-da-Nação é a nossa Trilha de Santiago de Compostela: permite o andarilho cumprimentar a alegria da moçada no baba, ensimesmar-se com a solidão dos mortos, deixar-se tentar pelas atrações do Lasca-Gato, fanta-siar a mente ao canto melancólico das lavadeiras, ver a vida brotar na fonte que não seca, embriagar-se ao odor da cana a fermentar, entristecer-se com a turvação do fio-d’água poluído pelo vinhoto, acalentar-se diante das vacas a mugir, cons-tranger-se ao sentir os limites que a cerca impõe, despedir-se - com saudade - do casario distante e apressar-se para ver o sol se pôr à sombra da igrejinha da Caroba, como se chegado fosse ao templo de Santiago na milenária Compostela.

IV – O Caminho das Lajes Dá-se adeus à Rua mal se desce a calçada do Posto de Puericultura. A sombra do Obelisco parece apontar a rota: a vereda suburbana tem seus limites no arame farpado que registra as roças da redondeza. Se o dia for propício, o andarilho terá grande chance de cruzar com Raul Cruz a retornar do Bongue. À direita, o jardim da chácara dos Gomes chama atenção pela variedade de flores. O pau-a-pique in-dica curral e ordenha. A vereda é larga, com areia bem assentada, já que por ali transita a marinete com destino a Feira-de-Santana. Tomando-se à esquerda, na encruzilhada que leva à estação-do-trem, logo se avista a Escola Rural, arrodeada de terra seca e descoberta. Curva fechada à frente, o mato catingueiro indica solo entristecido. Vá se crer que naquela rus-ticidade haja uma cachoeira como a das Lajes! É embicar mato a baixo para ver e crer, tal qual São Tomé: no sair do cipoal, lajedos majestosos gretados por sécu-los de água corrente brilham em espelho cristalino. A queda d’água – pequena mas formosa – faz nascer da terra ressequida o verde das trepadeiras, provoca o abrir de flores - salão de borboletas - permite que lagartixas se cumprimentem na luxúria da pedra lisa e brilhante. O andarilho, que nas Lajes se refrescou à saciedade –olhos e sede – pode mar-char picada acima para encontrar o Rumo, povoado de gente simples, tez queimada e pele a demonstrar o quanto pode o sol. Há que ver o pau-a-pique a arrimar cabritos, porcos soltos no quim quim de quem tem fome, rolinhas fogo apagou na monotonia do seu umrurum, galinhas a ciscar no terreiro, que a sombra de pé de fruta-pão protege. A aventura leva à Vila de Quaresma, último baluarte das terras iraraenses antes que se chegue à influência de Feira-de-Santana.

V – O Caminho do Cajueiro O Caminho do Cajueiro é irmão mabaço do Caminho das Lages. Basta chegar-se à encruzilhada da estação-do-trem – cadê o trem que não vem - e seguir em frente para dar-se no aglomerado de pequenos sítios acolhedores e ensombreados. Adiante, a casa de Manoel Pinheiro, respeitado abatedor de boi. Antes, o quase

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esconderijo de Pedro de Tiano, já comunista declarado. Na capoeira rala que limita o fim da jornada, vislumbra-se o que resta ao catingueiro: mato espinhento, chão pedregoso, água só de chuva e quando São Pedro chora, sol renitente a não querer se pôr, anoitecer com o cio cio das cigarras e o agouro das corujas. Dali não se vê a Rua, que parece esconder seu rosto com vergonha de mostrar-se ao subúrbio. Este, altaneiro, espera chegar o sábado para apresentar o suor do seu esforço: aipim, galinha gorda, beiju de tapioca e massa, caju colhido no pé, jaca dura e mole, no açougue carne-de-boi bem talhada. O Caminho do Cajueiro é um retrato vivo de como a Rua esconde a dureza dos seus arredores, mas deles depende para sua própria sobrevivência.

VI – O Caminho do Corte A Cidade Nova põe fim ao arruado. Seguir a velha estrada de Água Fria é encontrar a dura caatinga que se estende para o norte. Logo se vê terra fatiada como bolo em festa de aniversário. É o corte da estrada-de-ferro. Como a ameaçar cumprir uma promessa de décadas, a paisagem violentada faz sonhar-se com o trem – que não vem que não vem que não vem. O andari-lho espera que o apito chegue na mesma rapidez com que se fez o corte. Afinal a estação está quase pronta e na vala aberta basta assentar-se os dormentes e os trilhos. Terra devastada em nome da civilização, da modernidade: há que trocar-se a duvidosa e apertada boléia do caminhão pelo anunciado conforto nos vagões da Maria Fumaça. Na rota, somente terra nua a mostrar suas entranhas: raízes secas, pedras a despencar, xiquexiques a apoiar-se na beira da ribanceira. A decisão de seguir pela paisagem inóspita levará o andarilho ao vento frio das noites da Barra – aí sim a esperar o apito incerto do trem que passa ás sete. Na estação já se encontram quebra-queixo, amendoim torrado, beiju de massa e piaba frita, todos a esperar os passageiros que seguem para Serrinha, Senhor do Bonfim e Juazeiro. Depois, é aguardar o trem das nove da manhã, com as gentes que se destinam a Aramari, Alagoinhas, Catu e Calçada. Na Barra mesmo, descem uns dois e talvez subam outros tantos. Cruzados os trilhos, é alcançar o belo templo que ornamenta a história da velha Vila de Água Fria, aquela que já foi cidade e há de voltar a ser.

VII – O Caminho da Lagoa da Madalena A Praça do Coreto abraça a Rua Nova bem no Beco de Pedro Martins. Ali se inicia a trilha que leva a Ouriçangas, Ouriçanguinhas, Aramari e Alagoinhas. Há que ver-se, logo nos primeiros trezentos passos, a chácara de Elesbão, ensombreada por frondosas fruteiras. Avista-se o curral e escuta-se o mugir das vacas à espera da ordenha.

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Seguir a rota é ver o Caminho apertar-se no canyon abrupto. O acidente – ou incidente? – topográfico impede o admirar-se as pastagens verdejantes que imperam ás margens da viela. Na ladeira, há que evitar-se os regos das voçorocas. Na baixada, a Lagoa da Madalena, na soberba de quem dispõe de água e na humildade de quem se deixa usar: lavadeiras, oleiros e pescadores disputam as bei- ras enlameadas da lagoa. No meio do lençol que brilha, um ou outro aguapé mostra a cara, a amedrontar a fartura. Adobes recém-moldados secam ao sol, fazendo coro com as roupas a quarar. Latas d’água na cabeça, as Marias sobem o Morro do Cruzeiro sem cansar. No largo do Povoado, o leprosário escancara a piedade de Alberto Nogueira e o andarilho medita sobre os Mandamentos da Lei de Deus, por Moisés escritos na Pedra Sagrada. O Caminho segue contornando fazendas e apontando horizontes: O Rato; a Pedras de Amando; a Pedras de Tiago; a Umbaúba; ao longe o morro que esconde o arruado da Vila de Pedrão, mal deixando ver-se a torre da velha igreja. Mais uma curva, uma descida, uma rampa, outra curva, uma subida e eis Ouriçan-gas, na pachorra de quem não tem pressa pelo correr do tempo. Do alto, bem em frente da igreja secular, vale olhar o vale e avistar a paisagem que o canyon do Caminho não deixou vislumbrar.

VIII – O Caminho da Mangabeira É pegar a esquina do cinema que vai sair na Mangabeira. O seguir em frente vai dar na roça. Se cortar passadas pelo Pé de Sabonete, é dobrar à direita bem na casa de Amélia - aquela que aluga cavalos selados - e logo verá a casa de Valfredo. A rota para a roça está na marca de patas pelo chão de areia. O Caminho da Mangabeira mostra a intenção da Cidade em estender-se para as bandas do verde e plano. O subúrbio pequenino finda no sítio de Olavo. Dali pra frente é cerca, mato e ladeira, até o desembocar no Rio Seco, aos pés da Pedras de Amando e logo após o massapé da Picada. O andarilho, se for menino, pode abusar do badoque, que a cada dez passos tem passarinho na cerca; pode abastar-se no caju, que os pés carregados margeiam a trilha. No andar seguro, chega-se à encruzilhada. Há que desviar-se dos despachos que ali são deitados – certamente para o bem dos cães vadios, já que mal, nessa terra, não se deseja. O Caminho da Mangabeira – direção clara de para onde a cidade irá - tem o privi-légio de não ser caminho para pneus. Suas areias soltas, suas margens ensombreadas, sua encruzilhada com despachos somente se abrem para o pisar dos cavalos, o cantar dos carros-de-bois e o passo ligeiro e certo dos andarilhos. Não por acaso, seu início mais usual se dá no Pé de Sabonete.

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Parte I - Janelas da Memória

Brincadeiras de Criança

Nada mais triste do que choro de idoso; nada mais alegre do que brincadeira de criança. A capacidade de adaptar-se às circunstâncias, a imaginação para criar opções, a habilidade para o aprendizado rápido, a resistência para o repetir sem cansar-se, a perseverança no insistir até ganhar, a manha para dobrar os mais velhos: ser criança é diversidade, bom humor, tenacidade, paixão e amor. Na metade do Século XX, as brincadeiras de criança se assemelhavam em todos os recantos, notadamente nas pequenas cidades e na zona rural. Brincava-se então como o fizeram os mais velhos cinqüenta anos antes, apenas acrescentada a evolução do vestir-se, calçar-se, comunicar-se, ousar. Em nosso pequeno Irará, onde as opções de lazer em nada se diferenciavam das demais comunidades interioranas, as brincadeiras de crianças seguiam a tradição das tias e tios, mães e pais, avós e avôs. As variáveis ficavam por conta da alegria e da coragem pró-prias das crianças, da largura da rua ou da altura do passeio. Na roça, as brincadeiras eram, de uma certa maneira, imitações do que faziam os adultos, com os limites que os meios disponíveis estabeleciam. Brinca-va-se de derrubar tanajura – “cai, cai, tanajura, na panela de gordura”; apanhavam-se borboletas usando-se caçapas de pano atadas a uma vara - soltava-se o inseto após a captura: o prazer residia no apanhar; armava-se arapuca para aprisionar pássaros e roedores - aqueles para a gaiola e estes para a panela; pescava-se piaba com vara e anzol pequenos; subia-se em árvore para colher frutos; tirava-se casa de abelha para chupar o mel; caçava-se com badoque para apurar a pontaria e ajudar no rancho; tomava-se banho no tanque - ou na biqueira quando a chuva caía. Sobretudo brincava-se no alimentar as criações, varrer o terreiro, cortar ma-naíva, raspar mandioca, tirar água da fonte, torrar castanhas, tirar leite de cabra ou de vaca, colocar sementes nas covas – meninos com chapéu de palha, meninas com touca de sacaria. Ainda bem que brincadeira de roça não segregava sexo nem cor – a não ser em casa de fazendeiro. Na cidade, os costumes impunham às meninas o brincar sob a barra da saia da mãe, mas libertava os meninos para a rua e o quintal. Em casa, as meninas imitavam suas mães, fazendo-se elas mesmas mãezinhas de suas bonecas. Com caixas vazias montavam sala, quarto, cama. Num monó-logo quase diálogo, ralhavam, ninavam e orientavam suas filhas feitas de pano. E as bonecas pareciam compreender, de tão atentas que se punham: olhos arre-galados, lábios tensos, braços estendidos. As mãezinhas mais atiradas até mama-deira ousavam preparar para seus rebentos, numa realidade que simulava sonhos. O que se via, passadas as horas, era mães e filhas, fatigadas, buscarem no aconchego da cama a letargia do sono reconfortante. Meninas brincavam de boneca – melhor seria dizer se fotografavam - de casi-

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nha,de fazer debuxo com papel de seda. Quando mais crescidas, aventura- vam-se no bordado e no croché e até arriscavam costurar à mão. Meninos, esses mais capetas e mais libertos, cedo tomavam o caminho da aventura, da busca pelo desconhecido: a estrepolia no trapézio armado no quin-tal, o domínio no volteio do papagaio solto, os lances ensaiados com a bola de meia, o esquipar no cavalinho de cabo de vassoura. Meninos atiravam-se a soltar papagaio, usar andadeira de lata e arame, andar sobre perna-de-pau, jogar gude e botão, soltar pião, aparar e catar pedrinhas de uma a cinco, imitar artista e bandido num faroeste amador, soltar barquinho na enxurrada, apostar no pauzinho. Quando mais taludos, partiam para o baba e a bicicleta. Cansados e sujos, arriavam à espera da merenda. Engraçado: meninas imitavam o dia-a-dia das mamães, mas meninos desco-nheciam os afazeres de seus papais. Mal do gênero ou do sexo? As brincadeiras urbanas ousavam separar os sexos, apesar de algumas prefe-rirem o enturmar-se de meninas e meninos. As brincadeiras do entumar-se eram: picula, jogo de peteca, lançar ioiô, girar de cabra-cega, fazer a roda, pular o passo-passo, adivinhar o que é o que é, saber em que mão está, trançar cordão nos dedos, pular corda, saltar amarelinha. Amadurecidos, todos iam ler revistas de quadrinhos. Amadurecidos ou convencidos!? Meninas e meninos – sejam da roça ou da cidade – brincam, crescem, amam e se reproduzem para tudo recomeçar como sempre aconteceu desde que gente apareceu no mundo. Os tempos mudaram, as brincadeiras são outras, a tecnologia domina. Mas, quem não lacrimeja os olhos ao lembrar-se criança a brincar ? Quem resiste a uma cantiga de roda? Crianças ouvem, aprendem e repetem; adultos escutam e se emocionam; idosos arrancam da memória o que os ouvidos percebem, cortam o choro e partem para o sonho bem desejado. “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar. O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.” “Atirei o pau no gato-to. Mas o gato-to não morreu-reu-reu. Dona Chica-ca admirou-se-se Do miau, do miau que o gato deu” “Capelinha de melão É de São João; É de cravo, É de rosa, É de manjericão.”

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“Eu sou pobre, pobre, pobre, De marré, marré, marré. Eu sou pobre, pobre, pobre, De marré desci. Eu sou rica, rica, rica, De marré, marré, marré. Eu sou rica, rica, rica, De marré, desci.”

“Fui no tororó, Beber água, não achei. Encontrei bela morena, Que no tororó deixei. Aproveite, minha gente, Que uma noite não é nada; Se não for dormir agora, Dormirá de madrugada.”

“O cravo brigou com a rosa Debaixo de uma sacada; O cravo saiu ferido, A rosa despedaçada!” O cravo ficou doente, A rosa foi visitar; O cravo deu um suspiro, A rosa pôs-se a chorar.”

“Pai Francisco entrou na roda, Tocando seu violão: Dararão, dão, dão! Dararão, dão, dão! Vem de lá ‘seu’ delegado, Pai Francisco vai pra prisão. Como ele vem todo requebrado, parece um boneco desengonçado!”

“Passarás, não passarás, Algum ‘dele’ há de ficar; Se não for o da frente, Há de ser o de trás, trás. Bom barqueiro, bom barqueiro Que me deixes eu passar; Tenho filhos pequeninos Que não posso sustentar.”

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“Teresinha de Jesus Deu uma queda e foi ao chão; Acudiram três cavalheiros, Todos três chapéu na mão. O primeiro foi seu pai, O segundo seu irmão, O terceiro foi aquele A quem Teresa deu a mão.”

“Fui à Espanha buscar o meu chapéu, Azul e branco da cor daquele céu! Ora palma, palma, palma! Ora pé, pé, pé! Ora roda, roda, roda! Caranguejo peixe é!”

“A canoa virou, Deixá-la virar, Foi por causa de Fulana, Que não soube remar. Se eu fosse um peixinho, E soubesse nadar, Eu tirava Fulana Do fundo do mar.”

“Escravos de Jó jogavam caxangá: Tira, bota, deixa o Zé Pereira ficar. Guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá!”

“Se essa rua, se essa rua fosse minha... Eu mandava, eu mandava ladrilhar... Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes... Para o meu, para o meu benzinho passar...”

As cantigas falam por si. Não cabe dizer mais nada.

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Fatias da Memória

Vida Doméstica – Almanaque Capivarol - O Cruzeiro – Manchete – Almana-que Bristol – Guri - Gibi – Almanaque Tico-Tico – Capitão Marvel – Mandrake – Superman – Tarzan – Fantasma – Batman & Robim – Zorro – Homem Sub-marino – Cavaleiro Negro – Tom & Jerry – Pateta – Tio Patinhas – Pernalonga – Pato Donald – Popeye – Luluzinha & Bolinha – Zé Carioca. Gorgorão – Chita – Bulgariana – Tafetá – Chitão – Tricoline – Casimira – Algodãozinho – Bramante – Organdi – Madrasto – Fustão – Tropical – Gabar-dine - Brim – Cetim - Linho – Cambraia – Filó – Musselina – Piquê – Mescla - Veludo. Sabonete Eucalol – Água Velva – Brilhantina Glostora - Vaselina Perfumada Ruth - Pasta Dental Kolynos – Sabonete Lifebuoy – Batom Coty – Rouge Royal Briar – Leite de Colônia Arthur Studart – Talco Johnsons – Loção após o Banho Cashemere Bouquet – Pó de Arroz Helena Rubinstein. Chapéus Ramenzzoni – Sapatos Clark – Chapéus Prada – Calçados Conga 7 Vi-das – Calças Banlon- Camisas Volta ao Mundo. Radiolas RCA Victor – Camas Patente – Rádios Phillips – Cobertores Dorme Bem - Louças Nadir – Máquinas de Costura Singer – Candeeiros Aladin - Talheres Sesam – Filtros Lorenzzetti – Lampiões Petromax. Lâminas de barbear Gillette Blue Blade – Lápis Faber – Canetas Parker – Cani-vetes Corneta – Despertadores Westclock – Lança-Perfume Rodouro - Relógios de algibeira Omega – Navalhas Sollinger - Lanternas Eveready – Tesouras Mundial. Inseticida Detefon – Vassouras Fiel – Formicida Tatu – Chumbos Brasil - Que-rosene Jacaré – Velas Estearina - Creolina Cruzwaldina – Enxadas Tupi. Cigarros Trocadero, Astória, Continental, Yolanda Branco, Yolanda Azul, Hollywood, Colúmbia – Charutos Suerdieck – Fósforos Olho. Palitos Monroe – Azeite Gallo – Goiabada Peixe – Óleo de Algodão Sanbra – Biscoitos Pilar – Queijo Palmyra – Sardinhas Setubal – Biscoitos Águia Central – Manteiga Cruzeiro do Sul – Biscoitos Tupy - Farinha de Arroz Arrozina - Salsichas Wilson – Óleo Guarani - Chocolate Diamante Negro – Mortadela Swift - Café São Paulo – Chocolate em pó Toddy – Fermento Royal – Corante Colorau – Amido de Milho Maizena Duryea – Avéia Quaker. Jurubeba Leão do Norte – Aguardente Dois Leões – Vermuth Cinzano – Vinho Barbera – Conhaque de Alcatrão São João da Barra – Aguardente Carioca – Vermuth Martini – Jurupinga Gerin – Aguardente Jacaré - Genebra Ferradas – Gin Gerin – Co-nhaque Macieira. Guaraná Fratelli Vita – Sukita – Gasosa de Limão - Laranja Turva – Crush – Grappete. Pastilhas Valda - Tiro Seguro – Leite de Magnésia de Phillips – Rubraton – Xarope de

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Ipecacuanha – Violeta de Genciana - Assa Fétida – Regulador Gesteira – Saúde das Crianças - Licor de Cacau Xavier – Eparema – Azul de Metileno - Robusterina – Capivarol - Postafen – Maracujina – Saúde da Mulher – Pomada Minâncora – Água Rubinat – Elixir Paregórico – Aguardente Alemã – Óleo de Copaíba – Bicarbonato de Sódio - Biotônico Fontoura – Es-sência de Cânfora - Vinho Reconstituinte Silva Araújo – Calcigenol Irradiado – Essência de Terebintina - Elixir de Salsaparrilha – Bálsamo de Benguê - Regulador Xavier – Coramina - Óleo de Fígado de Bacalhau - Xarope Bromil – Kusuk – Pílulas de Vida do Dr. Ross – Sal de Frutas Eno – Gotas Milagrosas de Santa Terezinha – Sabonete Sulfuroso Ross – Óleo de Rícino - Colírio Moura Brasil - Ácido Fênico – Essência de Cravo – Melhoral – Benzetacil – Phimatosan – Streptomicina Squibb - Capiloton – Polvilho Antisséptico Granado. O Direito de Nascer (Mamãe Dolores, Albertinho Limonta, Tereza Cristina) – Edifício Balança Mas Não Cai (O Primo Rico e o Primo Pobre, Ofélia) – Jerônimo, o Herói do Sertão - Repórter Esso – Jararaca & Ratinho – Alvarenga & Ranchinho – Zé Trindade – Oscarito – Grande Otelo. Omar Shariff – Peter O’Toole – Zza Zza Gabor – Sofia Loren – Gina Lolobri-gida – Sarita Montiel – Doris Day – Rocky Lane – Roy Rogers – Buck Jones – Kid Colt – John Mc Brown – Tyrone Power – Rock Hudson - Brigitte Bardot – Virna Lise – Simone Signoret – Ava Gardner – Monica Vitti – Marlene Dietrich – Anita Ekberg – Marcello Mastroianni – Charles Bronson – Burt Lancaster – Dean Mar-tin – Lana Turner – Maurice Chevalier – Grace Kelly – Libertad Lamarc – Marlon Brando – Mireille Mathieu – Vittorio de Sica – Cláudia Cardinale. O Conde de Montecristo – O Gordo e o Magro – O Renegado – Sete Homens e um Destino – Os Dez Mandamentos – O Pagador de Promessas – Exodus – Spartacus – Helena de Tróia – Ulisses, o Navegador – Capitão Gancho – E o Vento Levou – Cleópatra – O Incêndio de Roma- Marcelino, Pão e Vinho – La Violetera – Pear Harbor - Moisés – Os Doze Trabalhos de Hércules – Lampião Rei do Cangaço – Jerônimo – E Deus criou a Mulher – Apache – Moby Dick – O Anjo Azul – A Doce Vida – A Queda do Império Romano - Redenção – Lawrence de Arábia – O Corcunda de Notre Dame – Orfeu do Carnaval – Cantando na Chuva - Eles e Elas – Estranho no Paraíso – Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Agostinho dos Santos – Vicente Celestino – Nelson Gonçalves - Carlos Galhardo – Augusto Calheiros – Luís Gonzaga – Anísio Silva – Angela Maria – Cauby Peixoto – Dalva de Oliveira – Dircinha Batista – Altemar Dutra – Emili-nha Borba – Maysa – Ataulfo Alves – Bienvenido Granda – Carmélia Alves – Nat King Cole – Cláudia Barroso- Dick Farney – Inezita Barroso – Miltinho – Nora Nei – Zezé Gonzaga – Ray Charles – Dolores Duran – Charles Aznavour. Senhora - A Escrava Isaura – Vidas Secas – Helena – O Homem que Calculava – Os Sertões – Vinte Mil Léguas Submarinas – A Volta ao Mundo em Oitenta Dias – O Sítio do Picapau Amarelo – O Guarani – Jubiabá – Os Miseráveis – São Jorge dos Ilhéus – Nossa Vida Sexual - As Fábulas de Esopo – D’Artagnan e os Três Mosqueteiros – A Carne – Dom Quixote

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de La Mancha - Viagens de Gulliver – Cyrano de Bergerac – O Morro dos Ventos Uivantes – Dez Dias que Abalaram o Mundo – Vila dos Confins – Grande Sertão: Veredas – Germinal – Os Lusíadas – Os Irmãos Karamazov – Decamerão – O Cavaleiro da Esperança – Cascalho – Gabriela, Cravo e Canela. A Noite do meu bem – Que queres tu de mim? – Maria dos meus pecados – Balada triste – Tarde fria – Eu sonhei que tu estavas tão linda – Atiraste uma pedra – Conceição – A deusa do asfalto – Cinco letras que choram – Ninguém é de ninguém – Senhor da floresta – Salão grenat – A pequenina cruz do teu rosário – Sorris da minha dor – Boneca cobiçada - Ninguém me ama – Camisa listrada – A volta do boêmio – Alguém me disse –Asa branca – Cabeça inchada – Olha pro céu meu amor – Risque – Sabiá lá na gaiola – Dolores Sierra – Fica comi-go esta noite – Dos meus braços tu não sairás – Meu vício é você – Escultura – Pensando em ti – Naquela mesa – Deusa da minha rua - Hoje quem paga sou eu – Quero beijar-te ainda – Luar de Paquetá – Muié de oio azul – Cabocla serrana – Coração materno – Renúncia em prantos – Porta aberta - Patativa – Na casa branca da serra – Luar do sertão – Cintura fina – Assum preto – Riacho do navio – Mané fogueteiro –– Maringá – Casinha pequenina – In-teresseira – Mulher de trinta – Babalu – tornei-me um ébrio – Madame Pompadour – Cai a tarde – Devolve – Maria dos meus pecados – Meu mundo caiu.

Cenas do Cotidiano

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Os Dias passam e a Cidade vive

Cada dia, o passar das horas e dos acontecimentos – uns, invariáveis; outros, cheios de surpresa. Novembro. O mormaço a anunciar um toró que não cai. Os escolares, logo às sete horas, leite tomado e pão comido, partem para os seus suplícios. Os da Profª. Aurelina, sem farda, mas com capanga a estufar tabuada, caderno de cali-grafia, pedra de escrever, pena de bico grosso e merenda. Nas segundas, na mão vai também o tinteiro levado pra casa na sexta. Os do Grupo Escolar – aquele com nome de político e médico – com a mesma carga e mais o fardamento azul e branco. O caminho, todo mundo sabe e quem não sabe pergunta. A rapaziada, essa já está no batente dos balcões ou nos banquinhos das tendas. Um ou outro filho da fina flor vagueia pelas ruas em busca do que fazer ou do que aprontar. Comércio. Nas vendas, em cada porta do lado da sombra, um negociante a prosar com quem passa, ansiando por um freguês que entre. Os do lado do sol somente vão pro bate papo depois do meio dia, quando o astro rei dá a costu-meira sopa. Nos bares, quase ninguém, pois farra e jogo só de noite. Mal e mal se vende, de dia, uns abafa-banca, uns copos de refresco de limão, umas cordas de bombom de mel. Já nas padarias – duas – o movimento é pesado das seis às oito: sai pão italiano, sovado e cacetinho; sai bolacha fofa, de coco e de sal. Se fosse quarta-feira, haveria de ter caminhão a descarregar charque, quero-sene, peixe seco e até caixas de enxadas nas portas das vendas. Por volta das onze horas chega o “carro da Souza Cruz” que vem de Feira: pára de porta em porta das casas do comércio. Metade da carga é arriada nos armazéns de Piroca Brejão e de Alfredo Franco. “Um quase mundo, aqueles dois”, pensam os vendeiros. Meio dia. A romaria reside em fechar os negócios e partir pro almoço. Na segunda se liquida o que sobrou do banquete de domingo: um resto de malassado, feijão preto ou mulatinho com miúdos de porco, farofa - essa nova – salada de alface colhida no quintal e sobremesa de doce de leite. Satisfeito o apetite, quem tem empregado pra reabrir o negócio fica pr’uma madorna até as duas – uns até as três. E a garotada? Essa, retornada da escola e almoçada, prepara-se para pin-tar e bordar. A picula ocupa os cantos da casa na brincadeira do esconde-esconde. Os que preferem cabra-cega vão pro quintal, que tem mais espaço e o “cego” não corre risco de se chocar contra portas e paredes. ”Quebra-pote?” Não, isso é coisa pra dia de festa e somente lá na Praça. Vez por outra, a turma vai à porta ver se o homem do quebra-queixo aparece, ou mesmo aquele do amendoim torrado. Na falta dos dois, o jeito é esperar a hora da merenda. Negócios abertos, donos retornados da soneca, buzina em cada ponto o “carro do Café São Paulo”, também vindo de Feira. A meninada que observa o movimento pensa: ”Feira de Santana deve ser um lugarão. Tudo que aqui não tem vem de lá. Deve dar uns cinco Irará”.

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De tardezinha Joaquim Estrela desce rua a entregar as cartas chegadas. A uns avisa: ”Tem registrado. É preciso passar lá na agência pra assinar o recibo”. Logo a marinete aponta lá pras bandas de Antoninho. Todo mundo – ao menos os interessados e os curiosos – vai pro ponto vizinho à loja de Teófi-lo. Chegado o coletivo, é receber e dar abraço, comprar jornal, mala a cair do bagageiro alto, pacotes, sacolas, embrulhos e bugigangas outras cansadas da longa viagem de meio dia. “O condutor disse que do Birimbau pra cá tá uma buraqueira só”. – “E pra lá?” – “Bem, tão abrindo estrada nova e tem um desvio com muita lama perto de São Sebastião”. A viagem pode ser longa e cansativa, mas, toda manhã cedinho, por volta das seis horas, tem gente no ponto tomando arroz-doce e pongando na marinete, que sai quase lotada – a lotação se completa em Coração de Maria – para a Bahia. Nas casas, por todo o dia, o trabalho é duro: há que ferver o leite, aquele espumoso trazido à porta em camburão de alumínio, por jumento bem equi-pado; coar o café em coador de cambraia, com o pó sacudido fora; varrer tudo com vassoura de piaçava, exceto o quintal, que se varre com vassoura de pindo-ba após ciscar as folhas secas; preparar as panelas e pô-las no fogo pra requen-tar as sobras do Domingo, que não se vai perder assim; servir o almoço e lavar os pratos, bem lavados graças às folhas de caiçara; arrumar a merenda pra tur-ma miúda, nem que seja gemada com farinha de mandioca; passar a roupa seca ao sol da manhã, com barrufada pra tirar os encolhidos e economizar as brasas do ferro; acompanhar o aguadeiro na entrega da água nova com barris vindos em lombo de jegue ou com latas enchidas no tanque da carroça, tudo abastecido na mais que bendita Fonte da Nação; agüentar a algazarra da criançada a brincar, sem faltar o “lhe boto de castigo”; dar e tomar banho, alguns com cuia retirando água de lata cheia na cisterna; arranjar algo para a sopa da boca da noite – pode ser que saia mingau de fubá de milho em vez de sopa. Seis horas da tarde. A Voz da Liberdade, sob o eficiente comando de Jota Go-mes, anuncia a ”Ave Maria”, hoje a clássica, de Gounod. As tarefas de casa seguem a rotina: logo será hora de servir a sopa - ou o seu substituto eventual - arrumar a cozinha para o dia seguinte, ao menos la-var o que se sujou durante a sopa, fiscalizar a garotada que foi brincar na rua e mantê-la perto de casa, esperar que os maridos liberem o rádio para a novela de todo dia – “que hoje Isabel Cristina vai pro convento”. Na espera, prosar com a vizinha, de porta pra janela: “Ouvi falar que de-pois-de-amanhã vai ter leilão pra arranjar dinheiro pra Festa da Padroeira.” – “Tão cedo assim!?” - “Também acho, mas o padre é muito prevenido”. Umas pen-sam, apenas pensam: “Mais uma embromação, essa estória de leilão pra Festa”. Pen-sam, não dizem, e participam, ao menos oferecendo umas galinhas da capoeira, uns bolos de araruta, até uns frascos de doce de araçá e umas garrafas de licor de jenipapo. Julgam que, com suas ofertas - mesmo na dúvida quanto ao bom uso dos recursos - garantem lugar no céu, apesar dos pecados não redimidos. Anoitecida a cidade, a conversa é outra.

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O que Fazer Hoje à Noite?

Boca-da-Noite. A meninada agita-se a pensar no que fazer após a sopa. No tempo dos lampiões a gás, com as ruas escuras, o jeito era brincar nas varandas dos fundos das casas, sentados em esteira de pindoba ou, quanto muito, ir para a arrelia da casa vizinha, isso “se mamãe deixasse”. Agora é diferente: aqueles altos postes, aqueles longos fios de cobre e aquelas “lâmpadas de vidro com uma faísca dentro” deram novo sangue à vida noturna.

Meninas agrupadas na beira das calçadas brincam de trocar a roupa das bo-necas – essas irmãs perfeitas, crias de Joana - como se o fizessem em si mesmas. Meninos, mais ariscos, ensaiam um filme de cowboy nas esquinas em lusco-fusco – uns bancando Buck Jones, outros, Roy Rogers. O difícil é a escolha dos bandidos e índios – ninguém quer ser vilão. A solução fica por conta dos pauzinhos e azar de quem perder.

Vez ou outra, a depender da enturmação, meninas e meninos se ajuntam para a Brincadeira de Roda: - “Oh dona Maria, oh Mariazinha, que entrou na roda e ficará sozinha” – “Sozinha eu não fico nem hei de ficar, pois eu tenho Toínho para ser meu par”. A escolha do parceiro já indica uma empatia para uma relação fu-tura mais profunda.

Completada a Roda – todos já entraram, escolheram seus pares e saíram – parte-se para o descanso da Advinhação no aconchego das beiras: - “O que é o que é que tem orelha mas não escuta?” – “É pau podre”. – “O que é o que é que sai tarde e chega cedo?” – “É o sol”.

Os mais agitados, ainda meninas e meninos, preferem o pula-pula do Passo-Passo na borda da calçada: “Bote aqui o seu pezinho, bote aqui ao pé do meu, e depois não vá dizer que você se arrependeu”.

Para as moças e rapazes, o destino certo é voltear na Praça do Coreto: elas para a direita, eles para a esquerda. A cada encontro, um riso, um piscar de olhos, um relâmpago a incendiar corações ainda ingênuos. Duas, três noites assim e os pares já se decidiram. Logo os bancos darão guarida ao “conversa vai, não vem; conversa vem, não vai”. O que se vê são mãos trocando suores. Beijo na bochecha “só no domingo que vem”, isso se não chover e “se mamãe me deixar sair”. Aí é que o ne-gócio engancha: as futriqueiras de plantão logo fazem as mães das bem-aventura-das criaturinhas saberem do “conversa vai” na Praça do Coreto e essas, esquecendo-se do seus tempos de volteio, começam a botar gosto ruim: “Aquele rapaz não serve pra você, minha filha. Ele nem é bom na escola. Se seu pai souber, a coisa vai ficar feia”. Caso a criaturinha esteja mesmo a fim, o jeito é arriscar um encontro na volta da escola, “se não chover”. A tão esperada chuva sertaneja passa a encarnar a desculpa esfarrapada de quem quer mas não tem lá muita coragem.

A rapaziada mais crescida e já meio casca grossa bate firme nos bares: um jogo

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de sinuca ou bilhar regado a Jurupinga Gerim ou Conhaque de Alcatrão de São João da Barra – os mais afoitos vão mesmo é de “Dois Leões” - ou um dominó agritalha-do nas mesas das bodegas. Quem já está de namoro firme, daqueles de porta-de-casa, já se ancorou: o agarra-agarra e o “me solte que aí vem gente” vão fazendo as horas passarem. Na calçada, a bicicleta garante a saída rápida do amarrotado.

Dez horas da noite. Os decentes moços dos bares já partem para o Lasca-Gato ou para a Mangabeira. No retorno, o jeito é molhar a güela no bar de Petu, sempre de plantão.

E os mais velhos, o que fazem? Os homens, mal finda a ”Hora do Brasil”, par-tem céleres para a reunião do Senadinho, na Praça do Comércio. Quem não é da política, bate um carteado regado a genebra e tira-gosto de torreno. O carteado é democrático, laico e conivente: jogam udenistas e pessedistas contra petebistas e perrepistas; jogam o Procurador de Deus e o Delegado Comunista contra o Prepos-to do Governo e o comerciante sonegador do Imposto de Consumo. Já as senhoras - rádios liberados por seus fiéis maridos - escutam, ansiosas, mais um desfecho da triste saga de Albertinho Limonta e Isabel Cristina, mais a conivência de Ma-mãe Dolores: É “O Direito de Nascer” que faz a hora. Fofoca não, que isso “é coisa de gente sem eira nem beira, futrica de quem não tem vergonha na cara”. Após a saga, al-gumas quedam ao pé do rádio para se divertirem com as tretas do Primo Rico contra o Primo Pobre ou com o bordão “Só abro a boca quando tenho certeza” do Fernandinho e sua estimada esposa Ofélia – todos os quatro moradores do ”Edifício Balança mas não Cai”. A Radio Nacional é, sem sombra de dúvida, um sucesso de audiência.

Finda a escuta viciada, restam às senhoras recolher a meninada, banhar os pés e o rosto, rezar o terço e torcer por uma noite de bons sonhos, isso se os galos da vizinhança deixarem e se não for noite de serenata. Os senhores, fiéis maridos, encerradas as discussões no “parlamento”, retornam taciturnos mas esperançosos, cigarro a pitar, para o aconchego de suas camas a esta hora já es-quentadas. Na noite seguinte, tudo recomeça. Em algumas casas, no entanto, não é de duvidar que o dia amanheça com barriga nova em franco progresso. Afinal, a cidade precisa crescer e renovar-se.

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O Senadinho

Anoitecer. Invariavelmente, os homens dirigem-se às suas casas, para a obrigação de ouvir “A Voz do Brasil” pelas ondas curtas dos rádios com olho mágico. Afinal, o noticiário oficial é a principal fonte de informação sobre os acontecimentos políticos do país e não poderia existir meio mais fidedigno para a avaliação dos parlamentares eleitos pelos votos da imensa maioria de ta-baréus do que as notícias da Agência Nacional. O eleitor sabe o que seus eleitos dizem fazer, na medida em que esses divulgam o que querem que seus eleitores saibam. Assim marcha o país e a política nacional, tal e qual em dias futuros.

Findo o noticiário, as pernas masculinas partem para a Praça do Comércio, a dar início aos ”trabalhos legislativos” do dia – aliás, da noite. A partida tem dupla importância: dar quorum ao Senadinho e liberar os rádios para que os ouvidos femininos escutem a novela “O Direito de Nascer”, pondo, assim, os olhos a chorar diante das desventuras de Mamãe Dolores e Albertinho Limonta.

O plenário instala-se na calçada entre o bar de Henrique e a loja de Éver-ton. Os participantes, a média flor da política iraraense - já que a fina flor não se presta ao mister de discutir; simplesmente manda – acomoda-se desde o ficar de cócoras até o sentar-se em banquinho trazido de casa. Henrique, vez ou outra, contribui com umas poucas cadeiras. Éverton serve longo banco sem encosto.

Bancadas? Predominam as da UDN e PSD, mas uns gatos pingados do PTB ousam participar.

Discute-se, com admirável paz e cordialidade, as notícias do dia – aquelas ouvidas no rádio -, os acontecimentos locais relevantes, as recentes nomeações, as perspectivas eleitorais dos derrotados e mais uma ou outra fofoca da oposição e dos governantes. Não há ataques pessoais. Amanhecendo o novo dia, todos terão que conviver em harmonia, e isso elimina a formação de desafetos. Palavra de honra, o Senadinho da Praça é um exemplo de boa vizinhança. Ter cidadania e ser politicamente correto ainda não entraram em vigor.

Quem abre os debates? O primeiro a chegar, em conversa temporária com Henrique, esse impassível à porta do seu bar. Como comerciante modelo que é, aprova tudo com um simples baloiçar da cabeça – que a palavra é prata, mas o silêncio é ouro. Seu desejo, na verdade, é que caia ao menos um chuvisco mais forte: todos certamente entrarão no bar, ensejando a venda de umas cervejas, dois ou três cálices de conhaque e algumas taças de vermute. Quem sabe, de tira-gosto saia até uma lata de mortadela.

Obviamente, e como costuma acontecer nas casas legislativas, todo mundo sabe o partido de cada um. Nisso reside a arma para evitar-se a discussão ofen-siva. Os indecisos, geralmente do PTB, logo aderem à ala governista. Nada mais justo, pois cego só não enxerga com os olhos.

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Parte II - Cenas do Cotidiano

Voz dissonante há e se chama Raul Cruz, comunista letrado, bem aceito por todos. Afinal, quando não está delegado, está para ser. Raul Cruz funciona como ponto de equilíbrio, melhor dizendo, mediador nas discussões mais acirradas. A ser franco, conteúdo positivo nos debates somente há por força das suas interven-ções. O resto é pessedista que critica udenista, que rebate sob os aplausos de petebista.

No Senadinho, o andar das discussões costuma, vez por outra, motivar troca de legendas, sobretudo dos mais flexíveis e menos dependentes. A ocorrência assusta os donos do poder. Na ótica desses, aquele “parlamento” tem por obri-gação representar o pensamento dominante na cidade e qualquer desvio poderá criar dúvidas na massa votante. Fala-se que tanto Elízio Santana quanto Amaro Medeiros enviam espias de confiança para as seções, com o intuito de registrar as tendências de aliados e adversários.

No centro da Praça, o Abrigo de Amando encarna a soberba do Palácio da Alvorada e observa os debates com um sorriso de maledicência e menosprezo.

Como se pode constatar, política também se faz em porta de botequim.

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O Sábado é para a Feira

Os preparativos começam cedo, ainda na sexta-feira. Na cidade, os comerciantes aprontam as embalagens dos secos e molhados:

arroz, sal, café moído e em grãos, açúcar, tudo em pacotes de papel pardo com peso de duas, uma e meia libra. Dendê e óleo de mamona em garrafas bem cheias e devidamente limpas. Sabão, esse vai enrolado em papel de jornal, em peda-ços de meia e de uma libra. Aprontam-se os cortes de charque, feitos enviesados para ressaltar a largura da manta. Canela-em-lasca, pimenta-do-reino, cominho e colorau vão em pequenos embrulhos de cinqüenta e cem gramas. Sexta-feira deve entardecer com as prateleiras lotadas, os balcões arrumados. O estoque de cachaça-com-folha estará no ponto e será preciso arranjar dinheiro miúdo para o troco.

Na roça, a azáfama é outra, mas com a mesma correria: ensaca-se o feijão, a farinha, o milho, todos em sacos de quatro quartas. As frutas e raízes, da batata-doce e aipim ao inhame, da melancia e mamão à laranja, todos são aco-modados nos caçuás, protegidos por folha-de-bananeira. Os legumes e verduras, da berinjela e chuchu ao tomate, do pimentão e couve ao repolho, dos móios de coentro aos de hortelã, tudo é bem arrumado nos cestos devidamente forrados, onde não falta espaço para as raízes e folhas pra chá e reza. Beijus, farinha-de- tapioca, amendoim torrado e doces ocupam latas de flandre, aquelas de querosene Jacaré a tempo asseadas. Mel-de-abelha enche garrafas que se aprumam nos cantos vazios dos caçuás. Porrões, potes, panelas e frigideiras vão de amarrado, no equilíbrio das cangalhas. Burro é quem leva, pois jumento trota muito e pode quebrar a carga. Nos amarrados também seguem cestas, peneiras, colheres-de-pau, esteiras, cuias, fumo-de-corda, até bocapios e cabaças pra água.

Sábado. A cidade amanhece agitada. Açougues estocados desde cedo, com a matança dada na madrugada. Às sete horas as vendas, quitandas, lojas, padarias, bares e primos outros estão de portas escancaradas, donos a postos e caixeiros nos balcões. Sempre há, em cada ponto, a expectativa de que a freguesia aumente. Propaganda não há: o freguês certo vem na certa e sempre há aquele, duvidoso, que poderá mudar de rumo. Se não choveu por ocasião do plantio, a safra poderá não ser boa. Assim, cada negociante se prepara para abrir a caderneta do fiado, pois o certo tem crédito garantido.

Na fazenda, no sítio, na roça de meia, os jumentos e burros são arreados ainda à luz dos fifós. Cada cangalha com quatro sacos dos secos. No entremeio entre os sacos de riba, o arrumado de cestos e latas até o limite do não cair e a um peso que não estropie o bicho. Nos topes das cangalhas enfiam-se badogues. O resto, ou o que têm os que não têm animal, vai na cabeça enrodilhada, com o equilíbrio que o levar água da fonte pra casa já ensinou. Nos ombros, uma vara com nós

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se verga ao peso das gaiolas com coleiros, canários, sofrês, cardeais, bem-te-vis, assanhaços, azulões, pintassilgos.

A Feira não se limita ao comércio das mercadorias dos da cidade e dos da roça. Caminhões apinhados despejam um mundo de gente que vem de Água Fria, da Caroba, do Retiro, de Pedrão, de Ouriçangas, de Conceição, de Pataíba e até de Coração de Maria, Feira de Santana, Alagoinhas e Serrinha: gente do município e de fora, que vem comprar e vender. E trazem livrinho de violeiro, malas com decoração em couro, brincos e argolas de metal, molduras com figu-ras de santo, jaleques, chapéus-de-couro, selas, bridas, cilhas, cabrestos e demais tipos de arreios.

Para completar o cenário, os artesãos da cidade abancam, no chão forrado por esteiras, alpercatas, botas, sapatos com solado de pneu, cintos de couro cur-tido, fifós, ralos, formas para bolo, bandejas, assadeiras, camisas de chita, calças de mescla e de brim, bonecas de pano, tudo aquilo que o lufa-lufa da semana produziu nas tendas e oficinas.

O local é a Praça do Comércio em toda a sua grandeza. O movimento começa cedo com o entrar dos caminhões, que se enfileiram nas laterais da Rua Direita. Os animais, esses deixam suas cargas na Praça e vão, pachorrentos, pros quintais de guarda a duzentos réis o dia.

A Feira é bem dividida e organizada. No mercado, os secos a granel, os beijus e similares e os balcões dos açougues. Na calçada do lado da Praça, as bancas de verduras e de legumes, os sacos de amendoim torrado e cozido, o milho cozido e assado, as frutas e as raízes. No largo, as bancas e barracas, começando com as de doces e bolos, depois as de carne-do-sol e moquecas de piaba. A seguir, as bancas dos artesãos, as pilhas de malas e apetrechos de montaria. Lá pras sombras das palmeiras, os livrinhos de violeiro, as molduras com santo e outras miudezas. Tudo muito arrumadinho, espaço sobrando pro freguês passar, já que só se compra o que se vê.

Às oito, o mercado já despeja gente pelas calçadas. As donas-de-casa chegam com suas sacolas de lona, a pechinchar a dúzia de beijus, a quarta de farinha, o litro de feijão, o móio de coentro e de hortelã, a medida de tomate miúdo, a dúzia de laranja e de lima, a mão de pimenta. As sacolas se enchem e as fregue-sas se revezam. A cada banca que esvazia é um freguês que parte pr’uma venda, quitanda, padaria ou loja, a fazer sua feira, essa pra roça. Nos açougues, a compra é de patinho, chã-de-dentro e alcatra, que filé é coisa de cidade grande. Miúdos, só no mercado de fato, lá na esquina do cinema com a Mangabeira.

Nas vendas, entre uma cachaça com alecrim e outra com cidreira, saem duas libras de açúcar mascavo, duas de charque, meia libra de chumbo fino, um pacote de foscro, cem gramas de colorau e cinco litros de gás. Nas lojas, o metro não pára de medir cambraia, gorgorão, chita e algodãozinho alvejado. Até um ou dois guarda-sóis são embalados pra viagem. Nas padarias, o que mais se pede é fari-

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nha pra bolo, pão sovado e bolacha fofa. Até nas farmácias tem gente a comprar: remédio pra verme, pra dor dos quartos e pra tosse convulsa. Tiro Seguro, Pomada Minâncora e Xarope Bromil saem às dúzias.

Na praça abarrotada, a meninada vagueia entre os amendoins torrados e cozidos, quebra-queixo, cocadas e doces de leite, tal e qual formiga ao redor de mingau derramado. Os trocados recebidos dos padrinhos e tias voam dos mealheiros de barro pros bolsos das saias de chitão. Quem está de casamento marcado pechincha mala, candeeiro, fazenda pro enxoval, alpercata pro forró, vaselina perfumada pra assentar o pixaim. Os cachorros, todos com faro apura-do, preferem circular ao redor das bancas dos açougues, onde às vezes salta um pedaço de sebo ou voa um caco de osso. Já os gatos, sempre mais disciplinados, acomodam-se na madorna embaixo das bancas de moqueca de piaba, a gozar do odor garantido. A turma do sereno esgota o sortimento de livrinhos de violeiro, bom começo pr’uma noitada de boemia.

A mercadoria urbana vai pra roça e de lá vem e fica aquela do suor sob um sol a pino. O dinheiro circula, uns ganham, outros se endividam na caderneta do fiado, mas de tudo se vende e de tudo se compra.

Por volta das cinco a Feira se finda, até sábado que vem. É recolher as coisas: caçuás, barracas, esteiras de chão, sobras de mercadoria. A marcha pros cami-nhões e quintais de guarda é o que se dá.

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Domingo é Dia...

A agitação do sábado contrasta com a tranqüilidade do domingo, que ama-nhece sob o cantar dos galos e abre os olhos com o latir dos cães à procura, ainda, dos restos da feira. Nas ruas, os varredores fingem que varrem as sobras e esperam pela carroça de João de Bila para recolher os monturos. O povo, que mal acordou, observa crítico e ensimesmado.

As padarias não dormem no ponto: desde as cinco e meia estão no batente. O leiteiro circula como se o dia não fosse para o descanso - ao menos do jumen-to. Por volta das oito, uma ou outra venda e quitanda abre meia porta, para cerrá-la ao meio-dia. Já os bares e bodegas, esses são da domingueira: não somente abrem como escancaram suas opções.

Nove horas. Os meninos tomam conta do terreiro: em todas as esquinas a picula domina o anunciado sossego e a algazarra se faz rainha. Um grupo de moços e moças, sacolas à mão, marcham rua acima em busca do Caminho de Quaresma, acesso livre e público à água escorregadia das Lages. Vão fazer pique-nique – é o que dizem. De repente, um sobressalto, um susto: Lucinda aparece, picada e aos brados. A meninada recua ao passar da doida.

Às dez, Jota Gomes sobe a Praça, para fazer esperanças renascerem no espelho de “A Voz da Liberdade”: Entra no ar o Matinal Boêmio, com o melhor de Orlando Silva, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Cláudia Barroso, Ataulfo Alves, Ellen de Lima, Augusto Calheiros, Inezita Barroso, Carlos Galhardo, Nora Nei, Anísio Silva e tantas outras vozes da “dor de cotovelo”.

Almoço de domingo é banquete: cozido com o melhor da feira, feijão verde - às vezes andu ou mangalô - pirão de farinha-de-mandioca escaldada na água da couve e do repolho, ensopado e malassado, salada de alface com respingos de coentro, vez por outra carneiro ou leitão. Na sobremesa reina a ambrosia, sem desmerecer eventual doce-de-banana com calda, cravo e canela. O ritual inclui um abre-apetite de conhaque, genebra ou jurubeba – as damas vão de licor de jenipapo, aquele fabricado por Tiano.

Após o fausto, a madorna. A rede é o arrimo das crianças. Os mais velhos – machos – vão curtir a pança cheia no aconchego de suas camas, aquelas com colchão do macio capim miúdo. Já as damas, essas aproveitam o recesso – isso depois do lavar, enxugar e arrumar pratos – para uma olhadela nos reclames da “Vida Doméstica” ou para rir com as armações de “O Amigo da Onça” nas páginas de ”O Cruzeiro”, enquanto não chega a hora do café, por volta das três.

Cinema. Olavo capricha nos filmes: A Volta do Renegado, Sete Homens e Um Destino, Jerônimo, Tarzan Rei dos Macacos, Sansão e Dalila, vez por outra uma pe-lícula com as Rainhas do Rádio – Emilinha Borba e Dalva de Oliveira - ou com Oscarito e Grande Otelo. O melhor do musical nacional, do drama e da aventura, o

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que existe no mercado para cinema de tela pequena e projeção plana. Na matinê das quatro os miúdos lotam a sala. Já a seção noturna é um arrocho de gente. Se a fita quebra, a platéia vaia. Lito se vira para repor a cena cortada. Em casa, a audi-ência é toda para o FLA x FLU : aí não tem rádio que não berre das quatro às seis. Se não for dia de clássico carioca, vai ter jogo no campo do Caminho da Caroba: es-crete de Irará versus escrete de Alagoinhas ou de Santo Amaro. Os maiores torcem e os miúdos se bastam no quebra-queixo e no amendoim torrado.

Anoitece. Café tomado com leite e cuscuz, a vez é dos programas de auditó-rio da Mayrink Veiga – Zé Trindade e seu “o que é a natureza...”, da PRA-4 - Radio Sociedade da Bahia e até da Rádio Cultura de Feira de Santana, com o cancioneiro Ray Miranda. Alguns preferem a Rádio Nacional com “Tancredo e Trancado”, humorismo exclusividade das Pílulas de Vida do Dr. Ross, aquelas que são “peque-ninas, mas resolvem”. Se for dia de baile na ACRI, a Rua Direita engalana-se para ver os pares circularem. A banda de Zequinha é quem ordena o ritmo: foxtrote, samba canção, bolero, rumba. Poucos são os que dali saem sozinhos se sozinhos entraram: Nada melhor para um começo de namoro do que o aconchego de um salão de dança.

Nas noites sem baile, os bares fazem a festa: não tem sinuca de bico que uma “Dois Leões” não resolva; não há bilhar com bola de canto que a Jurupin-ga não mate. No bar do Coronel, Dante afina o violão pra instigar Zé Vermelho: É a serenata que chega à mesa da boemia, sai às ruas e fica nos corações, subindo a Rua Direita, volteando pela Rua Nova e embicando pela Rua de Baixo. Contam-se às dezenas os cheiros que se enxergam por trás das gelosias. As janelas mais bre-jeiras se abrem – pais no sobressalto e moças no enlevo. Todas as Marias, Anas, Raquéis, Suzanas, Franciscas e Jacintas são transformadas em “Laura, uma rosa nos cabelos. Laura, um sorriso sempre em flor”. Considere-se que algumas escolhem ser “Kalu”. Aí, cabe ao Poeta relembrar: “Kalu, tira o verde desse zóio de riba d’eu”. Se silêncio houvesse, haver-se-ia não somente de enxergar os cheiros mas também de aspirar o bater dos corações por trás das gelosias.

O Poeta e o Maestro encerram o espetáculo nas mesas de Zé Petu, sob as pal-mas dos Agnaldos Maia de plantão.

O domingo, contudo, não é somente pagão: tem também seu profundo momento de credo. Não há como esquecer as obrigações: a missa das oito na igreja matriz e a pregação das três no templo batista da Rua Direita. Se Pe.Valtério não dispensa um “Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis”, Miguel Paes Coelho não lhe fica a dever com Davi, Salmo 32: “Feliz o homem a quem o Senhor não inculpa de delito e em cujo espírito não há falsidade”. Os pecadores são perdoa-dos pelo corpo e sangue do Filho e os que são puros e honestos são reverenciados pelo Senhor. Credos há, mas é preciso crer e, sobretudo, saber separar o joio do trigo.

O domingo, que acordou com o cantar dos galos e o ladrar dos cães, que

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censurou a falta de zelo dos prepostos públicos, que lamentou o cansaço con-tinuado do jumento, que suportou a arrelia das crianças a brincar, que fingiu fazer piquenique, que se assustou com o bradar da doida, que sonhou ao ver-se no espelho de “A Voz da Liberdade”, que se fartou no banquete do meio-dia, que madornou após saciar-se, que riu das pilhérias de Péricles, que vaiou a quebra da fita, que torceu por seu time predileto, que consumiu quebra-queixo a mais não poder, que se animou com as piadas de Zé Trindade, que verteu lágrimas ao ouvir Ray Miranda, que gargalhou com “Tancredo e Trancado”, que dançou ao bom ritmo de Zequinha, que namorou ao sair do baile da ACRI, que se deu muito bem no sinuca e no bilhar, que viu, ouviu e sentiu todas as Lauras da cidade, que foi à matriz e ao templo e até duvidou dos credos, agora adormece embalado pelo acorde seguro do violão magistral de Dante de Guga e pela voz de ouro do poeta Zé Vermelho, o filho de Graziela.

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O Ciclo das Festas

Dezembro começa com a expectativa dos festejos natalinos. O costume de montar lapinhas pegou para valer: são dezenas de casas que se esmeram para apresentar o melhor. Os preparativos se iniciam ainda em novembro, com o consertar os guardados, o catar pedras e búzios, o recolher musgos e folhas, o peneirar da areia, o cortar papel-de-seda e crepom. Haja discussão para se definir a montagem mais apropriada. Garantido mesmo é a gruta e o berço de palha.

O curioso reside no conflito entre o que se faz e o que reza a tradição. Esta registra que Maria deu à luz o Filho de Deus em um estábulo dos arredores de Belém e que o primeiro leito do Menino Jesus foi uma manjedoura. As lapinhas recriam a manjedoura no berço de palha, mas desafiam a tradição ao situá-lo nas portas de uma gruta. Quem sabe não seja este desafio uma forma de voltar aos primórdios da humanidade – ao Homem das Cavernas!?

As lapinhas diferenciam-se na forma e nas dimensões, mas o básico é semelhante: Maria, José, o bebê Deus Menino, o berço, o jumento, o boi, pedras, areia, folhas – tudo bem representativo da ingênua noção de humildade que se pretende agregar à figura da Sagrada Família. Búzios, figuras em cerâ-mica, água, são variações outras por conta da imaginação das autoras. Autoras sim, que lapinha é criação de mulher – ela que repete em cada parto o parto divino de Maria.

Estabelece a crendice popular que montar lapinha uma vez exige repeti-la por sete vezes - uma a cada Natal – sob pena de desgraça garantida. Cabe questionar: por que haveria o Senhor do Universo de punir a quem resolve figurar o nascimento de Seu Filho, o Cristo!? Não basta o registro na mente do fiel!? Ou será porque a sobrevivência da tradição exige uma contínua visualização material!? Pergun-tas para o Senhor Deus responder. Reza a tradição que a primeira lapinha foi montada por Francisco de Assis, com o objetivo de fixar na memória do povo o nascimento de Jesus da forma mais realista possível.

Natal é tempo de licor no recesso dos lares e bares, tempo de festa na Praça, com bancas e barracas por noites seguidas do dezembro que corre célere. Jogos há, pois festa na Praça sem o azar da sorte não passa de mero aglomerado de vendedores e compradores.

Nas mentes infantis o assunto é a visita do Papai Noel, que virá do céu e entrará em cada casa pelas gretas das telhas, trazendo às costas um volumoso saco de presentes. Os pedidos dos pequeninos são os mais singelos: uma bola de borra-cha, uma boneca – daquelas que Joana dá à luz – um pião colorido, um carrinho de madeira, um ioiô. Desejos externados por vezes a fio, na cumplicidade das mães. Papai Noel virá? Satisfará o singelo anseio infantil? De quais infantis pedintes?

No virar da noite santa o ápice é a Missa do Galo na Igreja Matriz. Sua origem

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vem de lenda que afirma ter sido um galo de grandes esporões o primeiro ser vivo a anunciar o nascimento do Filho de Deus, cabendo-lhe, assim, a tarefa de, com seu canto pontual da meia noite, levar ao mundo a Boa Nova. Ao som de ”Os Sinos de Belém” todos ouvem, conscritos, o “Dominus vobiscum – Et cum spiritu tuo”. E todos ficam convictos de que o Deus Menino se faz presente.

Como se sentirão, ao amanhecer do 25 de Dezembro, as crianças cujos chinelos não contiverem presentes? Terá Papai Noel delas se esquecido ou suas súplicas não mereceram crédito? Ao menos estarão em suas pobres casas e sob a proteção de seus pobres pais? Onde estarão, nas noites de Natal, os famintos da África, os párias de Calcutá, os abandonados do esquecido Nordeste Brasileiro, os mutilados de Hiroshima? Uns, dormindo sob marquises frias e fétidas, outros em reformatórios quase prisões e mais outros fuçando lixeiras – tal e qual porcos à procura de restos. Muitos dirão como aquele pobre de Paris: “Mamãe, traz mais daquele lixo que sobrou da feira; ele estava tão bom na sopa de ontem à noite...” Na verdade, todas essas dezenas de milhões de crianças estarão – no Natal como em qualquer outro dia – perambulando pelas ruas, inchadas de verminoses, cobertas de feridas purulentas, envoltas em trapos sujos. Não verão lapinhas, não farão pedidos a Papai Noel, não ouvirão o galo cantar à meia noite nem hão de escutar “Os Sinos de Belém” a anunciar ”Dominus vobiscum”. Para elas - iraraen-ses, africanas, nordestinas, indianas ou vítimas da hecatombe – somente há uma solução: a profunda mudança de métodos e políticas que reformule mentalida-des, quebre estruturas falidas e renove a confiança no Ser Humano. Enquanto assim não se der, Papai Noel, seja em Irará ou em Nairobi, estará com frio, com sede, com febre, com medo e com fome...

Passados os festejos natalinos, tudo se volta para o Ano Novo. Na Praça, a festa continua diuturnamente. A virada do ano se caracteriza pelo desejar boa sorte, pelo apaziguar ânimos acirrados, pelo anseio de alcançar-se no novo ano o que o velho não propiciou. O foco da comemoração volta a ser a Matriz em sua rigidez de capa-e-espada. É como se o ciclo da vida se limitasse ao credo, à crença e à cruz: Obrigação, Esperança e Sofrimento – esse mascarado pela Re-signação.

Conta a lenda que as comemorações do Ano Novo tiveram início na Babilônia, duravam uma semana e eram precedidas pela limpeza, purificação e restauração dos templos. O ritual consistia em o rei despojar-se de suas reais e pomposas vestes, ajoelhar-se diante de uma imagem do deus Marduk e dizer-lhe que havia governado de forma correta e justa durante o ano que se findava e que seus súditos o amavam por sua benevolência. O sumo sacerdote respondia que Marduk aceitava como verdadeiras as afirmativas do rei e que o apoiaria por mais um ano. Nada diferente do que ocorre em nossos tempos e templos: os gover-nantes, súplices, afirmam sua abnegação hipócrita, prometem o melhor de si – embora somente o façam para si – e se sentem perdoados e apoiados. O povo,

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este, como sempre, acredita, aplaude e comemora. Esquece-se, ainda que seja por algumas horas, as amarguras e opressões sofridas e aposta-se num Ano Novo benfazejo e igualitário, como se a realidade não fosse mais que um sonho.

“Feliz Ano Novo” jamais foi o forte de nossa cidade. Gostamos, mesmo, é do Dia de Reis: aí, sim, tem folguedo, Chegança, Só Chumbo, João Chagas e Germino Curador. A data, criada pela mitologia cristã, visa a homenagear os Três Reis Magos – Melchior, Gaspar e Baltazar – que, anunciado o nascimento de Jesus Menino, seguiram a Estrela de Belém, esta os conduzindo até o estábulo onde Maria Virgem deu à luz o Filho de Deus. Lá depositaram aos pés do Santo Bebê suas oferendas reais: ouro, incenso e mirra.

A Festa dos Santos Reis é, para nós, uma antecipação do Carnaval: os blocos saem às ruas, o agogô se faz presente, a mistura de raças e crenças se sobrepõe ao credo pretensamente oficial. Cada casa abre suas portas e serve às suas me-sas os brincantes que chegam. A alegria contagia a todos, as dores – agora sim – do ano velho são esquecidas e aposta-se no vigor e boa sorte do novo ano que mal nasceu. É a esperança que renova em cada coração a ilusão de que se vive nesse vale de lágrimas por obra e graça d’Aquele que nasceu para remir nossos pecados e curar nossas feridas. Espera-se que Deus Pai ajude, no novo ano, a quem trabalha, e que não desampare os que vivem ao léu. Os festejos sacros são legitimados pelos folguedos profaos – quase pagãos: virtude de um povo que sabe da tristeza tirar alegria, da dificuldade criar esperança, do nada fazer renascer um tudo.

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Parte III - Fatos e Eventos

Festa da Padroeira – O Povo e o Credo

O Brasil é sui generis até em seu pretenso Estado laico: toda cidade brasilei-ra tem um padroeiro ou padroeira cujo dia não somente é considerado santo como se torna feriado. A diversidade de cultos e credos praticados pela população é posta de lado, predominando a imposição da sacrossanta Igreja Católica Apostólica Romana. Irará tem em Nossa Senhora da Purificação sua protetora e o Dois de Fevereiro é o ápice do seu Ramadã. A Festa da Padroeira incorpora um misto de comemo- ração religiosa e atividades pagãs - essas indo do jogo em praça pública ao carna-val escancarado. Meados dos anos 50. O Município, dotado de sede e cinco distritos, além dos povoados, prepara-se com efusão e entusiasmo para mais um Dois de Fevereiro. A Cidade, já dispondo de energia elétrica, enfeita-se desde a Rua de Baixo até a Torre da Matriz. O início das comemorações se dá com a seqüência de nove-nas ao anoitecer. Senhoras e senhores, circunspectos, aquelas portando bordados véus que as recatam, estes no calor de seus paletós engomados, garotas e garotos, moças e rapazes, comparecem em peso ao templo. A juventude masculina amon-toa-se nos altos passeios da igreja, em busca de uma chance para o namoro casual. O foguetório marca o começo e o fim da metódica e repetitiva cerimônia. Finda a noitada de rezas, desce-se à praça para a noitada de festa. Lá, os espí-ritos purificados no templo serão remidos nas bancas de cisplandim, nos cercados de jogo de argolas, nas mesas de licor, nos tabuleiros de quebra-queixo e no flerte desbragado das rodas. Mais tarde, nos bares já lotados, a jurupinga rolará solta, bordada pela “dois leões”, no entusiasmo das mesas de sinuca e bilhar. A rapaziada esquecerá o namoro nos passeios da matriz e nas rodas da praça e pensará numa madrugada pelo Lasca-Gato ou Mangabeira. Na sexta-feira que antecede o ápice das festividades, dá-se a Lavagem da Igreja. As baianas iraraenses, no rigor de seus trajes folclóricos, põem-se a faxinar os passeios da matriz tal qual fazem as do Senhor do Bonfim, na velha capital da Bahia. Deixasse o padre e lavariam todo o templo. Terminada a tarefa, o samba toma conta de todos e a Cidade se faz em festa. Credos e crenças à parte - queiram ou não os Senhores da Fé, a cultura negra se faz presente a lavar a alma do sofrido povo. No sábado à noite, o leilão. Tem de tudo: peru vivo e assado, corte de seda e de chita, garrafas de conhaque e de jurubeba, latas de goiabada, queijo, vez por outra – melhor, ano ou outro - até boi e cavalo. Piroca Brejão é o campeão de oferen-das. A doação exorcisma os pecados anuais, carnais ou materiais. O leiloeiro pede os lances, lembrando que tudo será “para a Festa da Padroeira”. Uns arrematam para gozar; outros para oferecer a novo lance. A festa pagã visa a financiar o credo. O calendário, ajustado para o ápice acontecer no domingo, mesmo que esse

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não caia no dia dois, espera pela procissão. Já no sábado, a feira é dobrada: mui-tos que não costumam vir, vêm; a maioria dos que vêm não voltam, ficam, pois a Padroeira bem merece o sacrifício. Além disso é preciso confessar-se para a comunhão festiva do domingo. A romaria não se iguala às de Padim Ciço, não por falta de romeiro, mas por falta de um padim. Mesmo assim, a Cidade, quente, encharca-se de gente: chegam paus-de-arara oriundos de Conceição, do Pedrão, de Ouriçangas, de Água Fria, de Quaresma e até de Pataíba, Retiro, Coração de Maria e Berimbau. Dizem que já houve ano em que veio romeiro até de Santa Bárbara, Serrinha e Lustosa. Em ano que chove mais, há menos necessidade de reza. Melhor guardá-la para as secas futuras. As ruas de entrada dos paus-de-arara já conhecem o coro monocórdio: “Avé, Avé, Avé Maria ... Avé, Avé, Avé Maria...” (assim mesmo, com acento agudo no e). O povo ingênuo, crédulo e faminto põe sua fé na cara enrugada pelo sofrimento e enfrenta a cidade engalanada. Enquanto a Praça do Comércio se transforma num enorme estacionamento de caminhões, a Praça da Matriz transborda de fiéis, com o sobrançeiro templo assemelhando-se à Caaba de Meca. A missa dominical é uma apoteose. Vigários das paróquias vizinhas com-parecem para ajudar na condução da solenidade. Batalharam duro desde cedo, a ouvir em confissão o povaréu pecador. Igreja apinhada, calor escaldante, suor em bicas, sino blimblomblando e Padre Valtério dá início ao sermão: “Meus caríssi-mos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo...”. Nesse momento solene, mesmo aqueles que não são lá muito da estima do padre se sentem caríssimos e irmãos. Terminada a pregação, a missa continua em bom e clássico latim, até o momento especial da comunhão. Aí, a disputa se dá por lugar na fila da hóstia: afinal, houve confissão por horas a fio, os joelhos calejaram na penitência e não se vai sair sem o Corpo e o Sangue de Cristo. Um detalhe: dentre os artesãos da cidade, os que mais lucram com as festividades da Padroeira são os alfaiates e costureiras. O hábito e a virtude recomendam que todos usem roupa nova na missa solene. Já sapatos, sempre menos expostos, basta que estejam engraxados e polidos. Após a missa, o almoço de confraternização: os assados predominam, junto com abundantes saladas, bastante arroz e até macarrão. Isso na casa dos que hão de carregar o andor – os gente fina. Abre-se o apetite à base de conhaque e fecha-se o estômago com um licorzinho, após o doce-de-leite. Os que não têm chance de sair da poeira castigam na desdobrada antes, durante e depois da carne-do-sertão com farinha grossa e toucinho. Há que preparar o espírito para a rasteira da elite. À tarde, a procissão é um divisor de águas – melhor dito, um divisor de clas-ses: políticos, comerciantes e fazendeiros disputam o andor da Padroeira num troca-troca a cada cinco passos; beatas e senhoras ditas de família – entenda-se como as de posses – vêm no segundo plano, como é próprio das mulheres; a ralé acoberta a poeira. À frente do andor, o vigário e seus acólitos, paramentos

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de dia festivo, puxam o aglomerado. As “Avé, Avé, Avé Maria...” secam as gargantas, mas o coro persiste. A ladainha inicia e se repete: “Abençoai Senhora, o povo irara-ense, esta freguesia é Vossa, tudo nela Vos pertence”. Nesse ato de doar-se por intei-ro à Padroeira, ninguém se lembra de retirar da doação os maus pensamentos, os pecadões e pecadilhos, as segundas intenções, as maledicências, o uso indevido do dinheiro público. Tudo vai, de roldão, para a Senhora Mãe dos Homens. A procissão marcha pela cidade como se fosse um batalhão de elite: passo marcado, verso bem posto, hino no ritmo, sem atropelos e agitação. Não falta, no público das calçadas, quem se ajoelhe ao passar da Padroeira. Não se sabe se ajoelham por fé ou por remorso. Tumulto mesmo somente ao entrar de volta na ma-triz: a disputa pelo andor, nos momentos finais, é feroz. Vencem os mais importantes. A noite é para dormir, que pecador não é de ferro. Além do mais, há que se acordar cedo, já que haverá a procissão da segunda-feira, rumo ao Cruzeiro da Queimada. A Rua de Baixo será invadida pelos “Avé, Avé, Avé...”, terá missa ao pé do Cruzeiro, o namoro então será deslavado, no meio da multidão a cachaça rolará solta e o retorno há de ser pagão, carnavalesco, ao som tromboniano de “Arriba a saia peixão, todo mundo arribou, você não...”. Antes que chegue o novo Dois de Fevereiro, vai aqui uma pergunta que não quer calar na mente: o que fazem, durante esses festejos, os iraraenses dos outros credos? O que fazem, minha Nossa Senhora da Purificação, Mãe de Deus e de todos os homens?!

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Rei Momo: Alegria para Todos

Carnaval. Irará se veste de pierrô e colombina para a vassalagem ao rei da alegria. Preparam-se fantasias e adereços e formam-se os grupos para o baile. Afinam-se os pandeiros e ajustam-se os agogôs que darão ritmo aos blocos populares. A cidade se divide entre o salão da ACRI e as pedras que calçam as ruas. A cerca social marca a algazarra carnavalesca. No clube, a elite folgazã - mesas ocupadas - observa o circular ansioso da mocidade fina flor, à espera dos primeiros acordes da orquestra de metais. Passeio lotado, a plebe contempla a alegria dos poderosos que se escancara pelas janelas. Na irregularidade das ruas, o folião popular saracoteia ao chamado dos blocos de Germino Curador, João Chagas e Só Chumbo. Confete, serpentina e lança-perfume a postos, o clube se agita ao som de ”arriba a saia peixão...”, marca registrada do carnaval iraraense. A partir daí, a seleção musical se limita às marchas dos carnavais passados da Capital Federal, mas quem se importa? Há que pular, cheirar Rodouro e cantar: “Domingo é dia de pescaria, oi Lá vou eu de caniço e samburá. Maré tá cheia, fico na areia, Porque na areia dá mais peixe que no mar.” “Mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. Traz a chupeta, traz a chupeta pro bebé não chorar.” “Oh jardineira por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, Deu dois suspiros e depois morreu.” Na poeira, o povo sambista e brincalhão encontra na batida do agogô o melhor da escala musical: a melodia ritmada que faz a hora e a vez da alegria popular, aquela regada a boa desdobrada e bastante suor. Passeios cheios, a popu-lação aplaude, afina e desafina um passo ousado e segue a folia que se agiganta a cada esquina. O cheiro de povo toma conta da ventania que sopra, injetando ânimo para os que somente dispõem das ruas. As origens da “brava gente brasileira” bem se refletem nas folias carnavalescas: brancos e assemelhados brincam no clube, ao som perfeito do trombone de Zequinha; negros gingam ao breque do pandeiro na voluptuosidade própria da raça, atentos ao passo de Só Chumbo; caboclos – reais e intencionais – marcham batido diante do incitamento de Germino e sua “tribo”, no passo firme e portento-so de quem foi o primeiro dono desta terra abençoada. Quem tem mais público? Não importa. Afinal, alegria não tem preço nem raça nem cor e Rei Momo é o senhor absoluto dos dias de Carnaval.

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Tem Circo e Parque na Cidade

Correu a notícia: de uma só vez, chegou Circo – já armado nas cercanias do cemitério – e Parque, em instalação acelerada na Praça do Comércio. Dizem que o circo é dos bons, com bailarinas, teatro de comédias e dramas, trapezis-tas, dois palhaços, mágico e até um malabarista. Já sobre o parque, o que se sabe é que veio de Serrinha e possui um serviço de alto-falantes com programa de oferta musical. A meninada está na espia, para acompanhar a saída dos palhaços. Pelo que comentam, não vai dar para emburacar por debaixo da lona, pois o circo tem vigias de olho. O jeito é arranjar uns tostões para o bilhete. No parque, já armaram o carrossel, a sombrinha de cadeiras e os barcos voa- dores. Falta montar a roda gigante e o escorregador. Tudo deve ficar pronto até quarta-feira. Confusão vai ser no sábado, quando o pessoal que negocia malas vir o seu lugar costumeiro ocupado pelo parque. Também, não é sempre que tem parque na cidade e aquele canto das palmeiras não faz tanta falta assim aos feirantes. Barulho na Rua Direita. A meninada corre. Lá vem o palhaço, em pernas- de-pau com dois metros de altura. Começa a arrelia: “Hoje tem espetáculo?” - “Tem, sim senhor.” - “Hoje tem marmelada?” - “Tem sim, senhor.” - “Arrocha, negrada...” – “Eh eh eh eh eh...”. E o palhaço anuncia as novidades da noite: mágico que trans-forma lenço em pombo e que derrama água pelo cocuruto; trapezista que dá dois saltos mortais a cinco metros do chão, sem rede de proteção, que trape-zista que se preza não tem medo de queda; artistas a apresentar a peça “A Morte do Conde Drácula”; bailarina de maiô a pular do trapézio para o colo da platéia e mais “mil e uma atrações”. A arrelia continua: “O palhaço o que é?” – “É ladrão de mulher” – “Arrocha , negrada...” – “Eh, eh, eh, eh, eh...”. A meninada já quebra os mealheiros de barro para comprar o bilhete. Na tabela, o preço: “Adulto – Cr$ 3,00; Criança – Cr$ 1,50; Criança de colo não paga. Quem for acompanhado somente compra bilhete e meio”. Vantagem pros namorados: sobra dinheiro pra pipoca, quebra-queixo e abafa-banca. Na Praça, o parque avança: montaram barraca para a venda de doces e até “Laranja Turva” natural. Noutra barraca, um mascarado expõe livrinhos de violeiro, todos com desenhos pretos e capas amarelas. O mascarado parece-se com o Zorro, mas falta o bigode e o chicote. O serviço de alto-falantes já está no ar: anunciam o programa “Ofereça uma música a quem você ama”. Logo, logo, surgem os Alô, Alô: “Alô, alô morena de olhos azuis e vestido com flores que mora na Rua da Quixabeira, escute essa gravação que lhe oferece rapaz mulato da Rua Manoel Julião – ‘Se você não me queria’...”. Essa é pra acabar

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namoro, logo se vê. Mais adiante, o rapaz mulato oferece “Beijinho doce” para “moça alourada, de saia com bolinhas, que mora na Rua Nova”. Já está de amor novo. No parque, os bilhetes são mais em conta e de preço único: quinhentos reis para usar qualquer aparelho por quinze minutos. Aí, termina-se gastando mais, já que se usa mais de um aparelho. A roda gigante e a sombrinha de cadeiras possuem motor a gasolina que faz um barulho dos diabos e solta fumaça que nem caminhão. Mas, quem se importa? O circo tem motor somente para a iluminação interna. Fora, nos carrinhos de pipoca e amendoim torrado, quem clareia é o lampião a carbureto. No circo, às oito horas em ponto, o espetáculo começa. Arquibancadas cheias e geral sobrando gente pelas beiradas, a gritaria é grande. O baleiro circula: “Olha o bombom de mel. Tem de hortelã. Olha o pirulito”. Na disputa por lugar, alguém tropeça e cai. A vaia é geral: ”Tá bebo...”. Os palhaços abrem o espetáculo com uma briga fingida de tapas um no outro e com piadas des-bocadas. A chusma aplaude e o tempo avança. O mágico já fabricou, com lenços fornecidos pela platéia, dois pombos, que voam para o topo do mastro, numa clara demonstração de que são reais. A bailarina já caiu sentada em três colos, sendo dois da arquibancada e um da geral. Todos gostaram, embora um deles levasse um tabefe da namorada. O malabarista já soltou fogo pelas ventas e arremessou bolas por baixo das pernas, aparando-as com as costas. O palhaço principal voltou ao picadeiro, calçando sapatos invertidos e tro-peçando em si mesmo. A chusma aplaudiu. Logo o espetáculo chega ao seu ponto culminante: o drama “A morte do Conde Drácula”. A platéia, silenciosa e tensa, observa o desenrolar: Drácula, que já mordeu uns quatro pesco-ços, prepara-se para atacar a mocinha. Ela chora de pavor. O conde a agarra e quando já ia sugar-lhe a carótida, aparece o mocinho munido de um enorme crucifixo e obriga o vampiro a se afastar. O monstro, protegendo o rosto com os braços, entoca-se em seu caixão. Antes que possa fechá-lo, o mocinho per-fura-lhe o coração com um espeto na forma de cruz. Drácula solta um grito pavoroso e morre, libertando morcegos pelos ouvidos. A platéia urra, aplaude e se levanta. Fecha-se o pano do palco. São dez horas da noite. Dentre os que foram ao circo, alguns se apressam para estar no parque. Chegam a tempo de ouvir o último Alô, Alô da noite: ”Alô, alô, moça do Cajueiro que usa blusa estampada, ouça essa gravação que lhe oferece rapaz da Rua de Baixo, com camisa xadrez: ‘Quero beijar-te ainda’, na voz maviosa de Orlando Silva “. Certamente nessa noite e em todas as seguintes, enquanto houver circo e parque, os sonhos serão bem diferentes sob as cobertas que agasalham do frio de agosto. A meninada sonhará com as brincadeiras dos palhaços e com as artimanhas do malabarista; os rapazes, com a brejeirice da bailarina; os enamorados, com lindas canções a oferecer e receber. Já os senhores

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e senhoras terão pesadelos ao pensar no custo dos bilhetes. Passados dez dias, o parque se vai, rumo a Candeias. Fica o circo por mais uma semana, agora sem concorrência. Mais tempo, mais público, mais envolvimento: quando a troupe parte antes do sol nascer, o palhaço leva companhia e um lar de roça fica com uma moça a menos. Bem que se diz que “palhaço é ladrão de mulher”.

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Na Igreja, da Quarta-Feira de Cinzas ao Mês de Maria

A Igreja Católica estabelece o início da Quaresma na Quarta-Feira de Cinzas. O povo brasileiro, ainda com os sons do carnaval nos ouvidos, deixa-se amorte-cer pela penitência que chega, estabelece rigores e dita costumes. Nos anos 50/60, o amortecimento pela penitência era prática habitual – quase obrigação – nesse Brasil de Tupã e de Oxalá que se via curvado ao Brasil de Thomás de Aquino, de Francisco de Assis, de Domingos de Gusmão e de Ignácio de Loyola. Dentro desse contexto, o Irará de Nossa Senhora da Purificação não tinha como fugir à regra: cobria-se de cinzas, remoía seus pecados, arrependia-se do que fez – e do que não fez - confessava e comungava para que a glória eterna lhe fosse assegurada. Determina a liturgia do Vaticano que a Quaresma é tempo de conversão, tempo para que o arrependimento tome conta dos corpos e mentes, a fim de que os espíritos, uma vez purificados pelo sacrifício, sejam merecedores dos bons augúrios da Páscoa que virá. A Quaresma tem seu término no Domingo de Ramos, aquele que, segundo a tradição, marca a entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Em nossa cidade, o jejum era levado a sério e o comércio se preparava com esmero: nas vendas e quitandas predominavam o bagre, o pirarucu e o bacalhau, todos secos e bem salgados, talvez para aumentar a carga da penitência. Na Matriz, Pe. Valtério paramentava-se de roxo e suas pregações primavam pelo plágio das de Antônio Vieira, notadamente a do sermão da Domingo Quinto da Quaresma: “Si veritatem dico vobis, quare non creditis mihi?”. Não satisfeito – ou não compreen-dido – optava por continuar plagiando - agora em bom português – o sacro ora-dor do Brasil setecentista: “Mal é dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis bem, e isto é um mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado nele”. Nas galerias, seu parceiro de carteado sorria discretamente, ao comparar o discurso emprestado com o blefe que o Procurador de Deus lhe aplicara em partida recente. A hipocrisia não respeita templo nem liturgia. Semana Santa. Na quinta-feira, a solenidade do templo e dos paramentos con-trasta com a humildade pretendida pelo Lava-Pés. A tradição registra que Cristo ajoelhou-se, lavou e beijou os pés de cada um dos seus doze apóstolos, numa mensagem clara da humilde posição que deveria estar reservada ao ministério do sacerdócio. No Irará, os doze apóstolos eram meninos escolhidos a dedo dentre os filhos da elite local, garantia segura de pés devidamente asseados e resguar- dados por bons sapatos. A cerimônia do Lava-Pés tem seguimento com o sermão baseado nas palavras de Cristo, registradas por São Paulo na Carta aos Coríntios: “Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em Minha memória. Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em Minha memória”. A Santa Ceia sela a quinta-feira que an-tecede à Paixão. Irará adormece sob o pesadelo do sofrimento reservado ao

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Senhor Jesus enquanto seu povo e seus políticos, contritos, arrenegam os males a outrem desejados, arrependem-se das traições cometidas, prometem devolver ao erário público as verbas desviadas e esperam que a morte do Filho de Deus resgate para o bem suas mentes regeneradas. A simbologia do Corpo e do Sangue de Cristo nos conduz a um momento de reflexão: sabemos o que não é certo. Por que o praticamos? Conhecemos os méritos da sinceridade, da caridade, da humildade. Por que mentimos, por que ignoramos os desvalidos da sorte, por que somos arrogantes? Será preciso que o Senhor Jesus retorne para nova crucificação, a fim de que nossa consciência se purifique!? “Penso, logo existo”, ensina a racionalidade. Sexta-Feira da Paixão. O dia inicia-se como se noite fosse. O peso da cruz parece vergar a todos. O ápice se dá na procissão do Senhor Morto. O preto cobre a mulher iraraense no seu recato de mãe e mártir – mártir que é para a boa criação dos seus rebentos numa sociedade machista. Os homens, tacitur-nos, dobram-se na condução do esquife de Cristo e do andor da Mater Dolorosa. O vigário e seus acólitos, na parcimônia dos paramentos roxos, abrem a marcha pelas ruas poeirentas sob o ritmo funesto da matraca, com seu trec-treec-trec-tre-ec-trec que mais causa saudades da sineta do que arrepios sepulcrais. A procissão passa, as lágrimas caem, o povo murmura “pequei, senhor. Perdoai-me” e o padre observa - espera ver um rosto menos contrito, para a crítica mordaz na Missa da Ressurreição. Afinal, de onde vem a inspiração dos sermões, senão das falhas dos pecadores!? Sábado de Alelúia. Na Praça dá-se a Queima do Judas. Os preparativos come-çam cedo, com a confecção do boneco cheio de palha seca e de bombas, vestido com roupas velhas, portando chapéu de baeta suja e sapatos rotos. Pela tarde ele é pendurado em um mastro para lembrar o enforcamento do apóstolo Judas, aquele que entregou Jesus aos sacerdotes do templo de Jerusalém. Quando anoi-tece, o povo cerca o traidor para a malhação e a leitura do seu testamento. Nes-te, Judas deixa os seus bens para os moradores mais conhecidos. São momentos de lazer e de algazarra, um renascer dos espíritos folgazões após a tristeza maca-bra da Sexta-Feira da Paixão. Uma pessoa do povo faz a leitura do testamento: “Para seu Fulano, deixo meu sapato furado, para que ele possa sair a namorar, na boca-da-noite. Para seu Beltrano, deixo essas cabaças rachadas, para que ele vá apanhar água na Fonte-da-Nação. Para D. Sicrana, deixo meu banquinho com três pernas, para que ela descanse após a fofoca no portão”. A chusma vaia, grita e aplaude. Lido o testamento, põe-se fogo no boneco e as bombas se encar- regam de dar-lhe o merecido fim. Punido o traidor, Pedro, aquele que, por três vezes, negou conhecer Cristo é perdoado; o povo, que pecou ao longo do ano se sente remido e todos esperam pela ressurreição salvadora. No Domingo da Ressurreição, o vigário recupera a fleuma, aporta ao púlpito em brancas vestes e demonstra sua fé nos homens: “ Meus caríssimos irmãos em

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Nosso Senhor Jesus Cristo. A ressurreição do Senhor é a certeza de que as portas do céu se abrirão para os justos de espírito, para os desprendidos de bens materiais, para aqueles que, olhando as necessidades de nossa Madre Igreja e lembrando-se de suas posses, sabem separar do ganho obtido a parcela a ser depositada no cofre da Matriz após cada missa. Para estes, o Senhor escreverá seus nomes na lista dos bem-aventura-dos e lhes reservará lugar especial em suas hostes celestiais”. Na platéia de fiéis, plena de comerciantes e políticos, o silêncio se torna ensurdecedor de tão silencioso que é e a sugestão impositiva tem gosto de constrangimento. Terminada a cerimônia, um aglomerado de homens se forma para a doação não tão espontânea. Espera-se, ao menos antes que chegue o Mês de Maria, que a Matriz seja agraciada com uma pintura nova. Maio. Nossa Senhora da Purificação reina soberana no mês mariano. Todas as Nossas Senhoras são soberanas em maio: noites de novena, a Ladainha, o Terço, o fo-guetório habitual, a pregação instigante e impositiva e o coro das vozes femininas: “No céu, no céu Com minha Mãe estarei Na santa glória um dia. Junto à Virgem Maria, No céu triunfarei.”

Os doadores do Domingo da Ressurreição conferem o bom uso do mealheiro: a matriz foi pintada – caiada, apenas – de frente a fundo, o altar mor está um primor. Alguns orçam mentalmente os gastos efetuados e franzem o senho mas ”padre é gente de confiança. Talvez a tinta tenha subido muito de preço”. Os festejos marianos em Irará eram castos, porém alegres; juvenis, porém sérios; simples, porém nobres; santos na intenção, porém terrenos nos resultados. A Igreja Católica, com o objetivo de fortalecer o culto a Nossa Senhora, enrijece o papel maternal da mulher sem desonerá-la das responsabilidades de esposa. O que se via no templo eram rostos femininos enuviados por finos véus que mal escondiam as marcas da resignação, da dúvida, da desesperança, da incerteza, da dor e até da fé.

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As Festas Juninas

Mês de junho no interior é tempo de alegria e comemoração. É o mês de Santo Antônio – a 13, de São João – a 24 e de São Pedro – a 29. Tais festas remontam aos rituais pagãos dos povos celtas, bretões, bascos, sardenhos, egíp-cios, persas, sírios e sumérios. Pagãs na origem, tornaram-se sacras por obra e graça da Santa Madre Igreja. Santo Antônio abre o ciclo com sua fama de casamenteiro e de recurso para todas as dificuldades. Padre Antônio Vieira – aquele que soube ser Igreja e Crítica – assim define seu homônimo santificado: “Se vos adoece o filho, Santo Antônio; se requereis o despacho, Santo Antônio; se perdeis a menor miudeza de vossa casa, Santo Antônio; se requereis os bens alheios, Santo Antônio”. Santo Antônio é uma panacéia sagrada. Pau pra toda obra, pode-se afirmar que o santo é o mais festejado nos grotões pátrios. Em Irará, tal não ficava por menos: de 1 a 13 de junho rezavam-se “Os reponsos” e a “Trezena” em homenagem ao simpático condutor do Menino Jesus, com muito alarido e animação – regada a bom licor, diga-se de passagem. E haja foguetes, doces e cânticos; haja solteirona a salgar os joelhos diante do altar do santo, na esperança do milagre redentor. A Festa de São João era magia para a meninada. Os mealheiros de barro subs-tituídos após o Natal eram mais uma vez quebrados para a cata dos tostões que se transformariam em chuvinhas, traques, cobrinhas, chuveiros e estrelinhas. Os mais crescidos, esses marchavam ao sabor das espadas e busca-pés. Aqueles de mais pos-ses queimavam vulcões e morteiros. Adultos complementavam a cena com foguetes mil. Já a partir dos festejos de Santo Antônio, a Rua de Baixo observava o constante passar da gente miúda em direção à tenda de Manoel Fogueteiro, aquele mágico que dava colorido e alegria ao fogo que queima e ao estrondo que ribomba. Na tenda, a labuta era dura desde fevereiro, para garantir o estoque a ser consumido nos meses a seguir: Mês de Maria, Festas Juninas, Cosme e Damião. A marca registrada dos festejos de São João residia, então, no preparar, acen-der e queimar fogueira. Reza a tradição que Isabel, prima de Maria, ficara grávida. Em conversa com a prima, disse-lhe que daria a seu rebento – certa de que este seria um macho – o nome de João Batista e que lhe avisaria do seu nascimento por meio de uma grande fogueira, cujas altas labaredas seriam avistadas pela prima, que morava distante. João nasceu – já predestinado a batizar seu primo ainda por vir ao mundo – e a fogueira foi acesa dando início a uma tradição mantida ao longo dos séculos. A história, por seu turno, relata que, ainda nos primórdios da Era Cristã, já havia o costume da queima de fogueiras nas áreas rurais com o intuito de afastar os maus espíritos. Uma vez mais a Igreja se apodera da crença pagã, casa-a com o sinal de Isabel e cria mais uma santa festa. Nasce desse casamento o caráter interiorano dos festejos de São João, quando o pular fogueira para comadrinhar-se ou compadrinhar-se se junta ao vestido-de-chita e ao chapéu-de-palha, brejeiras

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representações da alma pura do povo da roça. Nos lares – abastados ou singelos – o milho cozido, o bolo de fubá, a canjica e a pamonha são o tira-gosto para o licor de jenipapo, de maracujá e de caju. O dia 24 começava com foguetório para “acordar o santo”. Na seqüência, era preparar a lenha da fogueira, dividir os fogos entre a filharada, produzir as guloseimas e molhar a garganta de vez em quando e por todo o dia – sempre mais vez do que quando...Por todas as ruas o passante ouvia a Rádio Sociedade da Bahia apresentando o melhor de Luíz Gonzaga: “Olha pro céu, meu amor Vê como ele está lindo. Olha pra aquele balão multicor Como no céu vai sumindo”. Boca-da-noite. Acendem-se as fogueiras, a meninada se assanha e os pais ralham: “Cuidado para não se queimar. Nada de apontar chuveiro pra cima do outro. Peguem tição pequeno.” Começa a arrelia. Na noite joanina iraraense dá-se a bata-lha de espadinhas entre ruas distintas, na qual os soldados mirins esgotam suas energias e consomem sua munição. A regra informal estabelece: a Rua de Baixo desafia a Rua Nova com o irrestrito apoio da Manoel Julião; a Rua Direita enfrenta a Quixabeira e vizinhanças. E haja correria, haja espadinha a rodopiar, haja meni-no a esconder-se nos vãos das portas. Ao final da peleja, não há vencedores nem vencidos – os louros sobejamente merecidos cabem a São João. As meninas, essas se acomodam próximo às fogueiras a queimar chuvinhas e estrelinhas. As mais sapecas acendem traques e cobrinhas, tudo na maior algazarra. Enquanto os meni-nos não retornam do campo de batalha, elas aproveitam para se fazerem comadres e trocarem ingênuas e juvenis confidências que o santo abençoa. Estrondo. O que será!? Com a novidade das bombas-de-bater, não havia muro que amanhecesse limpo no raiar do dia 25. Aliás, o dia 25 era dedicado ao assar milho nas brasas das fogueiras moribundas, ao buscar pelas ruas a espadinha que caíra sem rodopiar, ao remendo com mercúrio-cromo dos dedos sapecados. No dia 29, São Pedro assumia a casa: repetia-se o ritual de São João com a pouca animação dos fogos que sobraram, da lenha quase toda consumida, do licor a meia-garrafa e do bom degustar da canjica e da pamonha, aquela já meio passada, esta tinindo de nova. A parcimônia do dia 29 é debitada às viúvas, eternas protegidas do santo pescador. São Pedro, a quem Jesus deixou tão grande e pesado fardo, não é de muita algazarra. Sua sisudez, porém, finda-se quando um pecador arrependido bate às portas dos céus, na espera da segura guarida. Então, o velho pescador tornado santo, cumprindo seu papel maior de guardião celestial, derra-ma lágrimas de alegria pela chegada de mais um hóspede, abre seus braços rijos e dá pouso seguro ao espírito que chega. As Festas Juninas se encerram com a melancolia da branca barba do santo maior e já na expectativa de que chegue setembro, tempo de Cosme & Damião.

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Quebras na rotina

Em Irará nem sempre os dias são uma mesmice só. Às vezes tem algo de novo a se dar, mesmo que seja um magote de ciganos que acampa nas redondezas. Aí é aquele corre-corre: crianças são guardadas a sete chaves “que cigano é ladrão de menino”. Sem mais tardar, Régis Soldado vai fiscalizar o acampamento e informa: “Estão lá, vizinho ao prédio da estação, uns trinta ou mais. Muito cavalo e burro, barracas e uma ruma de tralhas de latão. Acho que não vão fazer nada de errado. Parecem de paz”. Por volta das dez horas, as ciganas – longos e rodados vestidos de chita floreada, uma infinidade de pulseiras cor de metal – surgem na Rua a querer ler a mão do povo: “Quer ler a sorte, gajão? E você, boneca linda, quer saber se já tem amor rondando?” A leitura das mãos é rápida e eficiente: somente notí-cias boas, casamento no ano que vem, um pote de dinheiro a ser desenterrado no quintal, uma viagem importante e com bom retorno. Todo mundo fica feliz e as moedas pingam. Os ciganos, esses vêm com as tralhas de latão para negociar: caçarolas, tachos, canecos, uma variedade de utensílios com boa aparência. Com-prar, a ciganada não compra nem um vintém. Somente vende - tralhas e sorte. Uma semana depois a leva parte e alguns burros e jumentos da redondeza são dados como sumidos. Não se pode afirmar que os ciganos tenham algo a ver com a ocorrência, mas fica a impressão de que a sorte, tão bem vendida, deu azar. Cedo chega a notícia de que a marinete derrapou na lama e virou logo ali na ladeira perto da roça de Zé de Fiinho. Ninguém saiu machucado, nem mesmo o chofer, já experiente em dirigir na estrada enlameada. O carro reserva - que ia para Feira de Santana - vai dar socorro, levar os passageiros pra Bahia, já com umas boas horas de atraso. José Carvalho pode ser considerado um herói, ao dispor-se em investir seu capital para conduzir passageiros por estas estradas que mais parecem veredas pra tropa de burro, daquelas que serviam às Entradas e Bandeiras. Pode-se dizer que ele é o nosso Anhangüera, já que permite aos iraraenses terem acesso à Capital em condução com horário acertado e preço justo. Suas pepitas de ouro são a chance que propicia de se ter, a cada regresso da marinete, os jornais “A Tarde” e “Diário de Notícias” com as recentes informações da Corte. E a turma que estuda na Bahia? Não fosse a certeza da marinete, teriam que se aventurar nas boléias dos caminhões, se vaga houvesse. Dizem que tem deputado trabalhando para a construção de estrada nova – pavimentada - desde o Posto São Luís até Coração de Maria. Será que não dá para garantir uns votos iraraenses para esse lídimo legislador, a fim de que a pista chegue até aqui!? Tarefa fácil para a boa vontade e o prestígio de Amaro Medeiros e Elísio Santana. Seria uma simples movimentação dos cabrestos que manietam nossos eleitores.

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Uma boa notícia para esses dias sem chuva e muita sequidão: vai ser cons-truído um desvio da estrada-de-ferro que passa por Água Fria, com a finalidade de fazer os trilhos cortarem Irará. Comenta-se que a Leste Brasileiro já assegurou os recursos e que as máquinas já estão saindo de Alagoinhas para abrir o novo trecho. Vão fazer um corte nas elevações que ficam pras bandas da estrada de Água Fria, a fim de se assentarem os dormentes. Correu o boato de que a estação vai ser bem em frente da Escola Rural, ali pras bandas do Cajueiro. A notícia já faz os meninos sonharem com o apito do trem. Quem não está gostando nada dessa conversa é o pessoal dos caminhões, pois o frete vai rarear para eles, já que a com-posição será mista: vagão para passageiro e vagão para carga. É aguardar com muita fé em Deus, que logo o trem vai chegar... A boemia anda preocupada com essa estória de que “vem luz aí”. Boêmio gosta de penumbra, de sombra de lampião. Claridade, além de fazer mal aos olhos, atrapalha as atividades noturnas. Satisfeito com a notícia está Alfredo da luz, que vai deixar de andar tanto à boca-da-noite, para acender os lampiões. Com a luz de Paulo Afonso, basta fechar algumas navalhas presas aos postes e tudo vira dia. Os postes já estão chegando – enormes e de madeira alguns, outros de cimento armado. Os fios virão lá do Birimbau, passando por Coração de Maria e Conceição antes de adentrarem pela Rua de Baixo. Já tem venda que negocia com ferragens fazendo estoque de shuite, soquete, rosete, isolador, fio simples e torcido, até lâm-pada incandescente e tomada de baquelite. Virão eletricistas de Feira de Santana para trabalhar nas instalações internas das casas. Será que a luz chega antes ou depois das eleições? Uma coisa é certa: os lampiões somente farão falta aos boêmios e àqueles que os apreciam como jóias da arquitetura colonial. Não have-ria um jeito de os aproveitar no lugar dos postes? O dia amanheceu fechado, ameaçando trovoada. Por volta das nove horas, começou a relampejar e os roncos – mais a quase escuridão - assustaram os ga-los, que se puseram a cantar como se meia-noite fosse.. Ao primeiro relâmpago, os espelhos foram cobertos, a fim de se evitar queda de raio. O toró não esperou a hora do almoço. A enxurrada, vinda da Rua Direita, encheu a Praça e se escoou pela Rua de Baixo, beirando as duas bordas dos passeios. Como se estivesse de sobreaviso, a meninada pulou casa afora e se pôs a soltar barquinhos de papel que vão ancorar em frente à salgadeira de Pompílio Santana, nos garranchos que por lá se quedam. Não falta moleque aproveitando as biqueiras pro banho de há muito esperado. As goteiras nas casa exigem o remover das camas e ma-las, a fim de ceder lugar às bacias e baldes. Nos tanques, já não há mais espaço e a chuva transborda – economia garantida na despesa com os barris que vêm da Fonte da Nação. Passado o dilúvio, olhar os estragos: uma ou outra bica caída, algumas telhas fora de lugar, muita areia nas esquinas, notadamente nas da Rua Manoel Julião e Canta Galo, valetas abertas na Rua Direita e na Praça - por falta de calçamento.

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O lucro fica por conta do frescor de algumas horas e da lavagem geral que se deu pela cidade. Se o toró se estendeu à roça, então a alegria será bem maior, com boa safra garantida. A feira de sábado será o termômetro do resultado.

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Cosme & Damião

Setembro. Festas de Cosme & Damião. Na Igreja, dia 26; no Terreiro, 27. Os santos mártires, tidos como padroeiros dos médicos e protetores dos gêmeos e das crianças, nasceram mabaços em data incerta do Século III, de uma nobre fa-mília da Arábia. Estudaram medicina na Síria e depois foram para Egéia e Anató-lia. Não recebiam pagamento por seus serviços médicos – daí serem chamados “anárgiros”, ou seja, que “não são comprados por dinheiro” –porque seu objetivo prin-cipal era a conversão dos pagãos à fé cristã. No Candomblé, são identificados com os orixás Ibeijis, amigos das crianças e das festas, danças e iguarias. Segundo lenda africana, os orixás-crianças são filhos de Iemanjá – a rainha das águas e de Oxalá – o pai de toda a criação. Outras tradições negras atribuem a paternidade dos maba-ços a Xangô, tanto que a comida servida aos Ibeijis ou Erês, chamados carinhosamente de “crianças”, é a mesma que se oferece a Xangô, o senhor dos raios, o caruru. Amaciados os atabaques, ebós postos, água-de-cheiro a transbordar das jarras, Terreiro com o calor do orixá presente: sinais evidentes de que os gêmeos santos observam a cena. Setembro 27 é casa, festejo e louvor de Cosme & Damião. Irará multirracial: branco, moreno e negro. Nesta terra, dia de Cosme & Damião marca com clareza a difícil convivência das raças na população misci- genada desse nosso país pretensamente desprovido de racismo. Ao rufar dos atabaques, a cor branca benze-se e murmura: “Te esconjuro. Vai começar o candomblé. Essa gente não tem jeito nem crença”. Não sabe, sequer, o significado do nobre Candomblé, raiz profunda da cultura iorubá. O som do ata-baque emite notas que o tilintar dos santos sinos não é capaz de reproduzir - sem nenhum demérito para o lindo blimblomblar. O ritual dos cultos negros possui absolutas semelhanças com ritos da igreja branca – não tão branca em sua origem e não tão sacra em sua história secular. Ebós servidos, a pele morena – na incerteza de sua mestiça composição – prefe- re a hipócrita afirmativa: “Não são tementes a Deus...”. Um deus é para ser temido ou lhe basta ser adorado? Os deuses sempre se fizeram presentes desde os primór-dios da existência humana: deus Sol, deus Céu, deus Lua; deus Leão, deus Gato, deus Águia; deus Fogo, deus Água, deus Terra; deus da guerra, deus da paz , deus da concórdia. Qual dentre os deuses criou o Ser Humano à sua imagem e seme-lhança? Se esse deus criador é o de extrema bondade, quem criou o ser humano que pratica o mal? Não há porque se temer a Deus. Há que crer n’Ele e adorá-lo se n’Ele se acreditar. Água-de-cheiro borrifada, a pele negra – batuque posto – abre largo sorriso, lacrimeja os sofridos olhos e brada a plenos pulmões: “Meu orixá está em casa. Ele me ama e me protege”. As oferendas reforçam a confiança no ser sobrenatural; a dança põe espírito e carne em comunhão; o ritual abençoa os que crêem e perdoa os que menosprezam.

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Parte III - Fatos e Eventos

As Festas de Cosme & Damião são a simbiose mais que perfeita do credo e da fé, do temer e do adorar, do conhecer e do supor. Irará – baiano como ele só – honra Cosme & Damião – Ibeijis meninos – desde os terreiros da Caroba até aqueles de Santo Antônio, desde os batuques no Cruzeiro da Queimada àqueles no Cruzeiro da Madalena, desde a Rua de Baixo até a Rua da Quixabeira. A cidade abasta-se no caruru, no vatapá, no amendoim e nos miúdos de galinha. O espoucar dos foguetes anuncia a chegada dos gêmeos santos em cada casa de cada rua. Amarguras e rancores postos de lado, confraterniza-se como se fosse o Dia do Juízo Final, quando há que se ter os pecados perdoados para que se abram as portas do céu. O conflito multirracial dá lugar a novo trio, esse benfazejo, criador e, de fato, sacrossanto: religião – vida - arte. Viva Cosme & Damião, santos irmãos mabaços, morenos no rosto, negros no coração e no sangue, brancos na alegria. Iraraenses, baianos, brasileiros.

Ogun,kajire,njiowoni,njiayani.

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As Eleições de 62

1962. Ano difícil para Irará: a elevação à categoria de município dos Distritos de Água Fria, Ouriçangas, Pedrão e Santanópolis reduziu a área de nossa terra à Sede mais Bento Simões e Caroba. O choque político, contudo, foi bem mais abrangente do que o trauma da redução territorial: o surgimento de novas lide-ranças políticas nos municípios recém-criados fez minguar o cacife dos coronéis locais, os quais, por décadas a fio, vinham pintando e bordando às custas do voto-de-cabresto do nosso povo. Na criação do novo Município de Pedrão, dá-se um lance audacioso, para se dizer o mínimo: seu principal mentor foi o então prefeito José de Lima Valverde, pedronense de quatro costados. Afinal, perguntam alguns, ele foi desleal com seus eleitores iraraenses – aí incluídos os do ainda Distrito de Pedrão - ou optou pela fidelidade às origens!? Mas a atuação de políticos tradicionais de Irará na cria-ção dos novos municípios não se restringiu a esse caso. Água Fria contou com a discreta mas segura influência de Amaro Medeiros, que logo disputou as elei-ções para prefeito. Quanto a Santanópolis, sua ascensão à condição de município teve como baluarte a mão importante do deputado estadual Clodoaldo Campos, ex-prefeito de nossa terra. No caso de Ouriçangas, os patronos foram aqueles que tradicionalmente representavam o Distrito na Câmara de Vereadores de Irará. Pode-se até afirmar, num arroubo de compreensão, que tais ações foram justas por se tratar da defesa dos torrões natais, mas o resultado desse processo foi que nosso município se esfacelou enquanto que os donos do poder apenas fatiaram o bolo entre si. Uma mãe pobre pariu quatro pobres filhos e continuou pobre como Jó. Em 1962, a campanha eleitoral para prefeito de Irará caracterizou-se por uma unanimidade: eleger-se-ia Deraldo Campos Portela, o insigne médico de todos, o eficiente professor de inglês do Ginásio São Judas Tadeu, o apoiador fiel e cons-ciencioso de todos os atos e fatos positivos que acontecem em nossa cidade. Até os comunistas apoiavam sua candidatura. Eleito seria, eleito foi. Essa unanimidade quanto ao candidato a prefeito, no entanto, não cancelou nem diminuiu a batalha pelos votos para os demais cargos em disputa: vereador, deputado estadual, deputado federal, governador e senador. Cada partido agia como sempre: utilizando de todos os expedientes visíveis e invisíveis para cooptar eleitores. Procediam como se fossem gatos à noite, quando todos são pardos. O elei-torado, por seu turno, nada esperava de novo, além da segura certeza da vitória do Dr. Deraldo. Habituados à mesmice das promessas descumpridas e aos cha-vões eternamente repisados, nossos eleitores sentiam-se num estado de exaustão e esgotamento que conduzia a uma esperança de renascer. Era como se os versos mágicos da poetisa Adélia Prado se fizessem presentes nos murmúrios de todas as bocas iraraenses:

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“Eu quero uma licença para dormir, Perdão para descansar horas a fio, Sem ao menos sonhar A leve palha de um pequeno sonho. Quero o que antes da vida Foi o sono profundo das espécies, A graça de um estado. Semente. Muito mais que raízes.” Como já registrado, o fatiamento do município fez com que sua importância política ficasse apequenada: para lá não foram, dessa vez, candidatos a governa-dor, senador ou mesmo a deputado federal. Bem diferente das eleições anteriores, as de 1958, quando fomos merecedores – ou vítimas!? – da visita do então candi-dato a Governador da Bahia, o General Juracy Montenegro Magalhães, intitulado líder inconteste da UDN estadual. O General entrou em nossa cidade nos ombros de uma coluna de puxa-sacos e ao som da descabida marcha da campanha que ousava afirmar: “Cacau, petróleo e Paulo Afonso são as riquezas da Bahia. Têm nas mãos de Juracy Toda a sua garantia. Este ilustre brasileiro, Dos candidatos o primeiro. Para a Bahia governar, Em Juracy vamos votar.” E o tal ”ilustre brasileiro” general elegeu-se na ponta da agulha para desmandar em nosso Estado, tal qual o fizera em seus governos anteriores, interventor que foi a mando da Ditadura de Trinta, do ano 31 ao 37. Eleito em 1958 com a promessa de zelar pelo “Cacau, Petróleo e Paulo Afonso” de nossa amada Bahia, não se sabe o que a região cacaueira conseguiu de positivo sob a sua égide. Desconhece-se, também, quais os poços de petróleo que vieram à luz por seus esforços e recorda-se que Paulo Afonso esmaecia com os apagões diários sem que algo fosse feito para evitá-los. O que se tem conhecimento é que o fumo, a mandioca e o sisal – também riquezas importantes da Bahia – estão no mais absoluto ao léu. O que se escutava diariamente nos noticiários da Rádio Sociedade da Bahia – a PRA-4 - eram as no-tícias sobre o espancamento e prisão de estudantes soteropolitanos por parte dos esbirros do governador entrincheirados na Polícia Militar. O que se lia nas pági-nas de “A Tarde” eram as arbitrariedades praticadas em nome da ordem estabe-lecida, mas em detrimento do anseio popular. Nada diferente do que ocorria no Século XVII, quando Gregório de Matos - O Boca do Inferno – assim registrou:

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“Triste Bahia! Oh quão dessemelhante Estás, e estou do nosso antigo estado!” As eleições daquele ano em nosso Município trouxeram, contudo, um fato que fugia à mesmice dos pleitos anteriores: pela primeira vez, o Partido Comu-nista apresentou candidatos em três níveis, vereador, deputado estadual e depu-tado federal. Essa novidade gerou expectativas, já que os candidatos eram todos iraraenses natos: Pedro de Tiano, Tom Zé e Juracy Paixão para vereador; Aristeu Nogueira para deputado estadual; Fernando Santana para deputado federal. Os três candidatos a vereador nada prometiam além de defender os interesses do povo trabalhador. Aristeu Nogueira endossava a promessa do trio e acres-centava a disposição de lutar por igualdades sociais em nosso Estado. Quanto a Fernando Santana, ele reforçava o anseio de seus camaradas e parceiros e afir-mava sua convicção em um Brasil mais justo e verdadeiramente soberano. O trio de candidatos a vereador não se elegeu, Aristeu Nogueira ficou com a primeira suplência e Fernando Santana ascendeu à Câmara Federal. A principal vitória, contudo, dessa campanha dos comunistas residiu no plantar raízes que frutifica-ram, de modo a se afirmar como o fez Berthold Brecht: “Então foi baldada a luta? Enquanto houver de pé um só dos nossos combatentes, o ini-migo vitorioso não saiu ainda.”

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Quando o Ginásio chegou

Na década de 50 do século passado, a grande frustração da maioria dos pais iraraenses residia na falta de posses para dar seguimento aos estudos de seus filhos e filhas, tão logo concluído o ciclo da Escola Primária. Uns poucos podiam assumir as despesas de hospedagem e manutenção dos estudantes na Capital, ou mesmo em Feira de Santana. O que resultava era uma massa crescente de jovens que viam seus sonhos de progredir na vida tolhidos pela impossibilidade de conti-nuar sua educação escolar. Terminavam todos nos balcões do comércio, nas ban-cas da feira, num ou noutro ofício muitas vezes desempenhados sem aptidão. Essa realidade explica a grande agitação que se deu nos fins do ano de 1953, decorrente da notícia de que em 1954 haveria ginásio funcionando. A simples expectativa motivou o esforço pelas aulas particulares, visando ao necessário Exame de Admissão: quem sabia ensinava a quem esquecera o que sabia e houve até casos de aluno e professor estudarem juntos para o grande teste de seleção. O ginásio chegaria sob o patrocínio da CNEG – Campanha Nacional de Edu-candários Gratúitos. O local onde funcionaria o ginásio logo foi escolhido: o velho e nobre Sobrado dos Nogueira – a casa grande do Coronel Elpídio – na Praça da Ma-triz. Nada mais justo: a história do Irará de ontem a propiciar a formação dos que haveriam de construir o Irará do amanhã. Superada a primeira dificuldade, partiu-se para encarar a segunda e mais crucial: a formação do Corpo Docente. A solução encontrada – inteligente e oportuna – foi convocar os mestres da terra, conhecidos de todos por seu saber e dedicação: Profa. Lourdes – Matemática, Profa. Hildete – Português, Profa. Antônia – Geografia, Prof. Fernando – História, Profa. Rilsa – Educação Física, Pe. Valtério – Latim, Dr. Ramalho – Francês, Profa. Áurea - Trabalhos Manuais e Profa. Maria José – Canto Orfeônico. Essa plêiade de mestres formou um Corpo Docente digno dos melhores educandários da Bahia e viria a merecer a permanente gratidão da Família Iraraense. Pensou-se em efetuar um sorteio para a escolha do nome do novo templo do saber, mas optou-se pela criação de uma comissão organizadora para cuidar dessa e de outras providências. Todos estavam convictos de que essa comissão agiria dentro dos mais lídimos princípios da Equidade, Justiça e Democracia e não se negaria em ouvir a voz das ruas. Vejam só: mal se passaram dois meses da notícia de que Irará teria ginásio e tudo já se encontrava definido. O nome seria Ginásio São Judas Tadeu, como muito bem escolheu a Comissão Organizadora. Alguns iraraenses mais especuladores estranharam a homenagem ao santo e se perguntaram por que não Ginásio Imacu-lada Conceição de Maria - dentro dos padrões de religiosidade – ou mesmo Giná-sio Iraraense – respeitando-se assim o laicismo da organização política nacional.

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Estranharam mas não discordaram – afinal sabia-se que o santo não exercera ne-nhuma pressão para alcançar a honraria obtida. A Comissão também decidiu que a Profa. Lourdes Portela seria a diretora do estabelecimento, decisão essa que toda a comunidade iraraense apoiou e aplaudiu, já que a conhecida mestra possuía – como ainda possui - todos os méritos e qualidades necessários ao cargo. O duro para ela seria conciliar a condição de diretora com a de titular da cadeira de mate-mática. Por fim o mais esperado: a Comissão marcou e divulgou a data do Exame de Admissão e nomeou a Banca Examinadora. Começava, então, a corrida pelo ingresso no Primeiro Grau da Educação Oficial. Divulgado o resultado do primeiro Exame de Admissão ao Ginásio São Judas Tadeu, foram aprovados os seguintes candidatos: Moças: Denise Valverde, Lea Medeiros, Lêda Freitas, Lindinalva Gomes Ferro, Maria Eulália, Maria de Lourdes Reis, Marinalda Carvalho, Marlene Paixão, Mary Ferreira, Nilce Maia, Nilda Estrela, Railda Medeiros, Romilda Pinheiro, Vera Ra-malho e Vilma Cruz. Rapazes: Aderbal Paes Coelho, Antônio Costa, Antônio Luís Santos, Atenaldo Medeiros, Carlos Alberto Barbosa, Carlos Alberto Paixão, Clício José Freitas, Deraldo Valois da Paixão, Djalma Leão, Ednaldo Paixão, Ginaldo Gomes, José Aristeu de Araújo, José Aquino, José Ferreira, José Humberto Santana, José Mas-carenhas, José Luís Silva, José Gomes, Juracy Paixão, Manoel Bispo dos Santos, Nelson Cerqueira, Nelson Pinho, Paulo Aquino e Vítor Ferreira. Rigorosamente dentro do calendário oficial, iniciou-se o ano letivo no recém inaugurado ginásio – aquele que bem poderia ter-se chamado Ginásio Iraraense. Decidiu-se que as aulas seriam noturnas – das 07 às 10 horas – já que uma boa parte dos candidatos aprovados eram empregados no comércio. Houve quem dis-sesse, no entanto, que o verdadeiro motivo da decisão pelo horário noturno foi o fato de o Corpo Docente também ministrar aulas no Curso Primário. As duas prováveis causas eram mais do que justas – assim entendia a Cidade. O que valia era ter ginásio funcionando para que a juventude iraraense pudesse alargar seus horizontes. Ficou acertado em reunião com a comunidade de pais e alunos que, faltando energia, as aulas seguiriam normalmente, devendo cada aluno – ao me-nos os que pudessem – trazer de casa os lampiões que possuíssem. Previa-se uma procissão de luzes pela Rua Direita: Petromax a gasolina, lampiões a carbureto, até os conhecidos Aladim iriam passear rua acima. Por inúmeras vezes, nos apagões da energia recém-inaugurada, tal procissão se deu. Primeira noite de aula: os alunos percorriam o velho sobrado de cabo a rabo. A sala de aula era o grande salão frontal do lado direito do pavimento térreo. No lado esquerdo ficavam as salas da diretoria, da secretaria e dos professores. De início não se cogitava utilizar o pavimento superior – talvez no ano seguinte, quando haveria duas turmas de alunos. Os alunos foram informados de que as aulas de Educação Física seriam

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ministradas de manhãzinha, entre as 5:30 e as 6:30h. Assim, tanto a Profa. Rilza disporia de tempo para cumprir suas obrigações nas Escolas Reunidas, como os alunos que trabalhavam poderiam, com uma simples carreira, chegar ao pé de seus patrões a tempo e hora. O recreio seria na Praça, não devendo ocorrer algazarra nem namoro desbragado. O difícil seria controlar a malta, mas o risco de uma suspensão funcionaria como freio para o ímpeto dos mais arrojados. E se chovesse? Bem, se chovesse, a diversão ficaria limitada ao salão dos fundos, aí sim, sem arrelia, namoro ou qualquer outro tipo de arroubo. Algumas dúvidas pairavam no ar. Como os professores lidariam com uma turma de alunos tão heterogênea no que tangia à idade? Haveria castigos? – ques-tionavam os mais jovens, lembrando-se de seu tempo de curso primário. Poder-se-ia fumar? - interrogavam os mais velhos, preocupados com o interromper do vício. Haveria oração no início das aulas ou o credo se limitaria ao santo nome do ginásio? – inquiriam os que esperavam um estabelecimento laico. A tantas dúvidas somente o tempo daria respostas e faria os ajustes necessários. O impor-tante, então, residia em se iniciarem as aulas, para gáudio dos que batalhavam por uma vida melhor. Passados tantos anos, nada melhor do que olhar a comunidade iraraense e constatar o bem proporcionado pelo velho ginásio então instalado no Sobrado dos Nogueira.

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Semelhanças

Cada um de nós, brasileiros, somos dotados de um enorme apego às nossas raízes, considerando-as como únicas e insubstituíveis. Isso tem a ver, evidentemente, com o fortalecimento dos laços familiares e com a manutenção dos vínculos de relacionamento e de amizade. Os nordestinos em particular, somos imbuídos de forte relação com o torrão natal, aquele que nos viu nascer, crescer, sofrer e vingar. É como se as agruras da natureza, em vez de nos calejar o físico, fossem bem-aventuranças a alegrar a nossa alma. Gostamos da paisagem ressequida, dos arbustos espinhosos, dos rios sem água corrente, das capoeiras quase sem sombras, do solo pedregoso, do sol sempre a pino. Amamos tanto as dificuldades da vida que delas fazemos prazerosas lembranças perenes e so-nhos sempre acalentadores. Julgamos nosso recanto de origem como único, insuperável, o mais belo e benfazejo. Somos tão assim que não conseguimos enxergar beleza e méritos - mesmo harmonia - nos torrões alheios, por mais iguais que sejam ao nosso. Ainda bem que somos dessa forma, senão como suportar a dura vida de sertanejo!?

Vaguear pelo nordeste brasileiro é encontrar dezenas de torrões natais com vida, cheiro e cor tal qual o nosso. Irará está para nós – iraraenses baianos – assim como Moita Bonita, Cacimbinhas, Venturosa, Mãe d’Água, Viçosa, Saboeiro e Pau d’Arco estão para seus naturais de Sergipe, Alagoas, Pernambu-co, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Em cada um deles – como em dezenas de outros recantos e tal como em nosso Irará – encontramos menino a soltar papagaio, comadre a trocar confidências à janela, aguadeiro a açoitar jumentos abastecidos, cão a latir atrás do cio, viola e violeiro a chorar suas paixões, fitas pretas e flores novas nos cemitérios, abóbora e farinha-de-mandioca nas fei-ras, padroeiros e padroeiras a aguardar suas novenas, noiva a bordar enxoval, padre a recolher parcos donativos, pedinte a sobreviver da caridade, político a encurtar o tamanho dos cabrestos. Em todos sentimos ar de humildade, solidariedade, sin-geleza e paz. Mas – sejamos honestos – somos mais o nosso Irará, esse dos cami-nhos conhecidos, dos terreiros bentos, do beiju gostoso e da alegria permanente.

Iraraenses somos e como tal pensamos, para nosso bem e nosso deleite.

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Parte IV - Miscelânia

Temos História?

Os estudiosos afirmam que a perenidade de um povo tem sua garantia na manutenção de seus marcos históricos, culturais e lingüísticos O folclore, o linguajar típico, o manejo dos recursos naturais na manufatura do artesanato, são símbolos que marcam uma comunidade. O mais forte dentre os registros da história, contudo, reside na estrutura e feição das construções, capazes que são - se preservadas - de sobreviver ao tempo e aos modismos.

Olhar os registros de nossa cidade nas primeiras décadas do Século XX sig-nifica orgulhar-se da Velha Matriz na Praça do Comércio, do imponente e aristo-crático Sobrado dos Nogueira, do clássico Paço Municipal na Praça da Bandeira, da singela Capelinha da Rua Nova, do Foro da Comarca quase em frente à Capelinha, do Coreto alambradado a olhar o Paço, das fachadas com contornos torneados dos velhos prédios comerciais, das robustas paredes da velha Cadeia Municipal.

Da Velha Matriz a saudade aperta quando visitamos Ouriçangas, Água Fria, Pedrão, Retiro, até Bento Simões e Caroba.

O que vimos em nome da modernidade? A Velha Matriz – digna de todas as Nossas Senhoras – sucumbiu ante a fúria de abrir espaços, como se espaço não houvesse no minúsculo Irará de então; o Paço – belo e imponente – cedeu lugar ao concreto armado, cujas paredes parecem mais propícias aos conchavos polí- ticos; o velho Foro caiu sem respeitar leis de preservação; o Coreto amesquinhou-se em uma pizza insossa; a Capelinha arrenegou seus votos e tornou-se aliada do pecado arquitetônico; as fachadas da Praça do Comércio desceram da nobreza altiva para a decadência das portas de correr. Resistem impávidos – e como exceções a confir-mar a maldita regra - o Sobrado dos Nogueira – com fachada mal pintada ano não, ano sim - e as robustas paredes da Cadeia, mal guardando a Cultura Popular.

Presenciamos ruir ante a ação devastadora das picaretas a velha Agência dos Correios e Telégrafos, o belo casarão de Raul Cruz, a clássica residência de Helena e Éverton, as portas com arcadas dos armazéns dos Franco. Tantas ou-tras sólidas construções desse Irará de séculos- Irará de eira e beira – deram lugar a meras paredes com portas e janelas. O que faltou? Desprendimento dos herdei-ros e proprietários ou a mão do Poder Público? Tantas belas – às vezes milena-res – construções mundo a fora se adaptaram às novas necessidades mantendo suas características originais, desde o Velho Continente até o Brasil de Goiás Velho, de Parati, de Tiradentes, do Pelourinho, de São Luís do Maranhão, de Alcântara. Citados alguns grandes e outros pequenos, por que não nos inserimos entre eles?

Até quando resistirá à sanha da fraudulenta modernidade o Velho Mercado Público, o imponente Sobrado dos Nogueira e, mesmo, as sólidas e centenárias paredes da Velha Cadeia?

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A Formação do Linguajar Iraraense

O linguajar iraraense tem suas origens nas diferentes formas de penetração e comunicação sofridas pela região ao longo dos tempos.

Na Bahia Colonial, em plena época do florescimento dos engenhos de açúcar no Recôncavo, duas vias comerciais se formaram a partir de Cachoeira. Uma seguia para o sul, em direção às Minas Gerais, entortando-se pelas encostas da Chapada Diamantina até alcançar o norte mineiro. Outra, mais agreste, cor-tava as terras iraraenses então pertencentes a Garcia D’Ávila e subia em direção a Sergipe, tomando a rota do rio Real. Os tropeiros foram semeadores de civilização e fomentadores da economia. Traziam a produção dos engenhos e as trocavam pelos produtos das regiões que cruzavam num ativo comércio de escambo. Nas paradas para repouso, à medida que informavam as novidades da Coroa e dis-seminavam história e estórias, novas palavras e expressões se incorporavam à linguagem da região. Caminho natural dos antigos tropeiros, as terras do atual município de Irará e circunvizinhas foram ponto de parada obrigatória dessa importante expressão de desbravamento.

O acirramento das contradições geradas pela escravidão proporcionou a formação de diversos quilombos nas terras baianas. As regiões iraraense e cir-cunvizinha também foram alvo dessas aglomerações de negros, embora de menor importância já que as lavouras aí praticadas não exigiam grande concentração de escravos. Os quilombos deram uma importante contribuição à formação da lin-guagem popular, aliada à forte marca da cultura africano-mística. O vocabulário negro tem forte presença na denominação de alimentos, crenças e costumes.

As terras iraraenses, outrora habitadas por segmento silvícola do ramo dos Paiaiás, que se espraiaram desde Jacobina, beneficiaram-se também da mestiçagem indígeno-africana. O linguajar de origem indígena se manifesta, sobremaneira, nos assuntos da Natureza.

A presença marcante dos jesuítas – veja-se Água Fria, Bento Simões e Caroba – em seu afã pela catequese, muito contribuiu para o fortalecimento dos elos entre índio, negro e português na formação da raça, costumes e lingua-gem da microrregião na qual se inserem as terras iraraenses. Ressalvas religio-sas e sociológicas à parte, os catequistas tiveram papel preponderante na fixação do homem à terra.

Com o desenvolvimento da lavoura fumageira na região e a conseqüente necessidade de transportar o fumo para os depósitos de troca, surgiram as rotas dos carros-de-bois, com a figura indolente - mas brava - do carreiro e do guia-dor. Os carros-de-bois contribuíram acentuadamente para a melhoria das comunicações entre os povoados, pois sua circulação exigia a abertura de picadas mais largas e menos íngremes. Os carreiros, no entanto, por serem quase sempre

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Parte IV - Miscelânia

da mesma região, tiveram parca contribuição na formação do linguajar das terras por onde circulavam.

Em meados do século XX, anos 40, a necessidade de acelerar a circulação das mercadorias fez com que velhos caminhões importados surgissem em terras brasileiras. Em que pese a existência de algumas vias férreas, a política de es-tradas do governo brasileiro jamais incentivou o desenvolvimento do meio de transporte ferroviário como o mais viável e econômico para um país com a extensão territorial brasileira. Isso fez com que poucas estradas-de-ferro fos-sem implementadas, a maioria na região sudeste . No leste e nordeste, o úni-co destaque era a Via Férrea Federal Leste Brasileiro – a Leste - que unia o porto de Salvador a Juazeiro e Aracaju. Em nossa microrregião somente havia a estação de Água Fria, com modesta capacidade de armazenagem e operação.

Finda a Segunda Guerra Mundial, o governo americano, a titulo de ajuda solidária, vendeu a preço de sucata grande quantidade de velhos caminhões militares aos países do Cone Sul. Assim, o transporte rodoviário começou a tomar vulto e longas estradas foram abertas. O caminhoneiro passou a ser a fonte de informação entre os grandes centros e as pequenas cidades interioranas.

Irará foi, durante décadas, um considerável centro caminhoneiro. Seusdonos de caminhão fizeram nome e sucesso. Quem, hoje, entre os cinqüenta e setenta anos de idade, não conheceu Ospício e filhos, Inácio, Zé Mendes, Zé Campos e tantos outros?? Esses caminhoneiros faziam o trajeto Salvador - Irará e cidades vizinhas todas as semanas, levando mercadorias locais (fumo, farinha de man-dioca) e trazendo charque, móveis, açúcar, peixe seco, enxadas, foices, picaretas, formicida Tatú, remédios, querosene, tecidos, farinha de trigo. Muitos chegavam a realizar duas viagens por semana entre a sede municipal e a capital do Estado. Naqueles tempos, uma viagem de caminhão de Irará a Salvador, em dias chuvosos, podia durar mais de 12 horas pela velha estrada de cascalho que passava por Candeias e São Sebastião. Os caminhoneiros, como soe acontecer ainda nos dias de hoje, foram uma importante via de informação e formação lingüística, já que difundiam o modo de falar das gentes da cidade grande, contavam casos – nem sempre verídicos – e faziam circular as notícias, em franca concorrência com o velho telégrafo do Código Morse.

Com a grande difusão do rádio por ondas curtas já no final do segundo terço do século XX, a linguagem e os costumes das microrregiões interioranas sofre-ram forte influência dos programas radiofônicos – notadamente das novelas - que divulgavam a forma de falar dos grandes centros e impunham as gírias das regiões mais desenvolvidas. Artistas famosos influenciavam decisivamente as atitudes das pessoas simples do interior que buscavam, nesses estereótipos, uma forma de ascendência cultural. Era a eletrônica a ditar suas regras. Desde um simples jogo de futebol até os grandes programas de auditório, a audiência do rádio era maciça e homogênea.

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Janelas Abertas

A formação do linguajar iraraense deu-se, como em outras microrregiões brasileiras, por uma soma de fatores que vão desde o racial até o econômico, pas-sando pelo místico-religioso. As melhorias do sistema de comunicação provo-caram o aperfeiçoamento continuado desse linguajar, resultando em um modo de falar característico de cada micrroregião, formado tanto de gírias locais como daquelas de uso regional e geral.

O linguajar é, indubitavelmente, uma das marcas registradas da cultura de um povo.

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Parte IV - Miscelânia

Irará, Moscou & Saudosismo

Situada na linha divisória entre o Recôncavo e a Caatinga, a cidade baiana de Irará é um primor de exclusividades.

Nos anos 50 / 60 foi considerada a Moscouzinha da Bahia, devido ao ele-vado número de comunistas iraraenses em relação à pequena população local. E eram comunistas famosos, como Aristeu Nogueira, Raul Cruz, Fernando San-tana, Tertuliano Teixeira, dentre tantos outros que agitavam a cena revolucionária da Bahia de então, dispostos a darem suas vidas para mudar o mundo.

Berço de um considerável número de artistas dos mais variados matizes, tem, da nova geração, nomes como Zé Nogueira, João Cerqueira, as ceramistas Nem, Dôli, Dinha, Bel – apenas para citar algumas - e dezenas de outros que pintam, compõem, cantam, gravam, imprimem, fazem... Até o Dida, goleiro da seleção, em Irará pôs os pés no mundo.

Da velha guarda, nomes como Tom Zé, Mestre Maçu, Almiro de Oliveira, Mestre Panta, Maestro Aniceto Cruz, Maestro Xaxá, Ovídio Santa Fé, Fred Dantas, apenas dão início a uma longa lista.

Terra de Nossa Senhora da Purificação, reza por todos os credos com devoção e fervor, festejando-os com a alegria própria do bom baiano.

Ser iraraense é uma benção dos céus. Naquele recanto, respira-se um ar espe-cial, embora quente, à sombra das poucas árvores que a Prefeitura deixa de pé.

Como bem disse um patrício da nova guarda, Roberto Martins, todo iraraense é de um pai e de uma mãe: Fulano, filho de Beltrana e de Sicrano. Assim, não se tem dúvidas a respeito de quem se fala.

Ir a Irará, ao menos uma vez por ano, é dever de quem lá nasceu, dever cum-prido à risca, seja para ouvir as bandas locais, seja para os festejos de São João ou para as festas da Padroeira, seja para rememorar o passado. Anda-se por aqueles caminhos, outrora poeirentos, como se fossem as alamedas do Bois de Bologne. Olha-se o velho sobrado do Cel. Elpídio Nogueira como a mirar o Coliseu Romano, sobe-se a ladeira da fonte como se fosse a colina do Parthenon.

Iraraense de quatro costados, encontrei, nos meus 20 anos de Fortaleza, a felicidade tão buscada. Como os demais, vou ao torrão natal todos os anos; no meu caso, com o saudosismo dos que descem a ladeira da vida com os olhos mirando para o alto. Lá, na Moscouzinha da Bahia, relembro meu refúgio na ver-dadeira Moscou, para onde fui, meados dos anos 60, a fim de escapar das garras ferozes e assassinas dos anos de chumbo. Na minha cidade, sertão seco e pobre, relembro do aconchegante frio moscovita. Revejo, na praça da Matriz, o Teatro Bolchói. Pelos caminhos da Mangabeira, alcanço o Parque Górki. No Comércio, sinto-me na Praça Vermelha, a olhar os muros do Kremlin. Descendo a Rua de Baixo, estou a caminhar pela Lênine Prospekt. No velho bar do Coronel, bebo vodka

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Janelas Abertas

como o fazia no Beriozka do Hotel Aeroflot. Se entro na Casa de Cultura, estou a visitar as galerias da Úlitsa Arbat. Apreciando a Filarmônica 25 de Dezembro, pranteio, como se escutasse as melodias do Coral Púchkin. A velha casa da família é a datcha dos meus dias de férias, nos arredores da capital da URSS. Inconscien-temente, murmuro: Za izdaróvie, Továrich. Karachô, Spassibo.

Nesses tempos do ético, social e politicamente correto, em que a revolução ideológica deu lugar à das palavras, espero que o meu Irará faça jus aos seus guerreiros do passado, mereça os artistas de hoje e construa uma sociedade mais justa. Dâ cvidânia.

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Parte IV - Miscelânia

Tenho saudades (Poema em prosa)

Tenho saudades do meu IraráDa praça em barro batido,Onde a enxurrada formava riachosE aguçava a imaginaçãoDe menino.

Tenho saudades, no meu Irará,Do pé de sabonete, do Lasca-GatoE dos caminhos do CajueiroPor onde andei noites e noitesQuando rapaz.

Tenho saudades da Salvador da Bahia,Da Baixa dos SapateirosE dos cortiços do Pelourinho,Onde me acoiteiQuando estudante.

Tenho saudades, na velha Salvador,Da Vila Paulista, no Corta-Braço...Da Mouraria, da Lapinha e do Tabaris,Onde gastava o que não tinhaQuando perdido.

Tenho saudades da Moscou, vermelha,por onde vaguei em tantos invernos.Moscou dos bosques e berioskas,Da Rua Tamanskaia, onde me alojeiQuando achado.

Tenho saudades, na vermelha Moscou,Das aulas onde saciei a sede de dialética;Das bibliotecas e museus mil,Onde encontrei a lógica e o raciocínioQuando consciente.

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Tenho saudades da Fortaleza minha,Das ventanias que trazem, no sopro,O calor da calma;Do abster-me, calar-me, consentir,Onde sou.

Dessa Fortaleza que amoPorque sou amado, eu.Desse “arre égua” que soa como versoNão de Camões, mas do Patativa,Onde me reencontro.

Tenho saudades de mim;Dos cigarros columbia que conduziaE não fumei;Dos discursos que escreviMas não fiz;Dos panfletos que mimeografeiE distribuí;Das críticas e autocríticas;Das pichações, dos pontos, dos aparelhosOnde fiquei.

Tenho saudades de tudo,Mas não sei se devo manterEssa saudade que cresceE me estimula,Ou tratar de mitigá-laEsvaziando-me...

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Parte IV - Miscelânia

O Ontem e o Hoje

Nem sempre o passar do tempo significa envelhecer. Adaptar-se às novas realidades não implica, necessariamente, em modificar-se. As cidades são como suas gentes: amam, choram, pensam, relembram, decoram e se aperfeiçoam. Cada uma tem seu tempo de avançar, efetuando os contornos que suas gentes esperam. Em Irará, vê-se o passar das décadas nas fachadas reformadas da Praça e no arruado que tomou conta dos arredores. A alma da cidade, contudo, soube manter o que foi bom, aperfeiçoar onde cabia o melhorar. Tudo feito sem desme-recer o passado e sem amortecer a expectativa do futuro.

Folheemos as páginas da Cidade:

As ferramentas que fizeram os artífices do passado – personagens ines-quecíveis - afiaram-se para moldar os artistas do presente, desde a pintura de João Martins, passando pelo cordel de José Aristeu e chegando às cria-ções de Zé Nogueira.

A cerâmica popular, que se limitava aos amontoados da feira semanal, atravessou os anos fortalecendo-se como expressão artística e se pôs na Internet e nas exposições pela competência de Didi, Lita, Dôli e companheiras outras.

Zequinha silenciou o seu trombone para que Tom Zé tivesse vez, saindo do casulo de “A Alvorada” para a globalização do CD.

Jota Gomes tirou do ar “A Voz da Liberdade” e calou-se o boêmio Zé Ver-melho para que, do pranto dos saudosos, nascessem as bandas da baianidade iraraense.

O abrigo, que obstruía a Praça e zombava do senadinho noturno, cedeu lugar à Senhora da Purificação – Praça e oratório.

A feira, que se apertava nos quatro cantos da Ruy Barbosa, agora se espraia pelas terras antes de Amélia e da Mangabeira, numa profusão de cores, cheiros e vielas.

Se nas noites juninas não mais se aplaude a arte de Manoel Fogueteiro, sor-vem-se com prazer os licores da terra, ao calor das fogueiras que persistem. Ainda se viaja com freqüência a Feira de Santana, não pelos suprimentos de primeira ordem, mas devido às vicissitudes da tecnologia.

Os jovens, antes alheios, insípidos e inodoros, hoje alimentam a vida cul-tural com “Vinhos, Versos & Sons”.

Os políticos que, no passado, encurtavam os cabrestos a cada eleição, hoje se curvam á sociedade, que exige contas e esclarecimentos. Ainda possuem cabrestos, mas esses estão com as cordas puídas.

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Janelas Abertas

A Festa da Padroeira ainda patrocina arrependimentos e penitências – pou-cas – mas as multidões de sempre permanecem fiéis ao seu chamado popular.

Os babas de Deucker, Renato, Baraúna, Parrinha, Zé Nilton, Jurandy, Zé Leão e tantos outros meninos dos Anos 50 / 60 adquiriram direitos autorais na figura do goleiro Dida.

O velho Mercado sente saudades da velha matriz e das arcadas da Praça, sofre com as dores de suas rachaduras e goteiras, mas põe fé na cidadania que o fará permanecer de pé.

Se o Coreto não resgatou seu passado clássico, ao menos sente-se lison-jeado por estar circundado pelo mundo financeiro.

O dar-se por inteiro de Alberto Nogueira frutificou nos rijos braços que o seguiram e que mantêm acesas as chamas benditas da “Casa Jesus, Maria e José”.

Se continua a faltar uma rede de esgotos, sobra onde abastecer-se de canos, fios, portas, remédios e ataúdes. O comércio deixou os limites da Praça e rumou em direção da Mangabeira.

Os comunistas que patrocinaram a Moscouzinha da Bahia passaram pelas chagas de Cristo sem perder a esperança, esta renascida na ebulição política da nova juventude iraraense.

Enquanto os Anos 50 / 60 foram de êxodo para muitos patrícios, os tempos de hoje são de refluxo para os que buscam a paz do berço natal.

Os caminhos que foram veias e raízes da Cidade de Ontem, multipli-caram-se num emaranhado de novas ruas e praças, engoliram as terras de Possidônio, do Bongue, da Cidade Nova, de Antoninho e de João de Bila, da Salgadeira de Pompílio e do quintal de Éverton, da estrada do Retiro e das bandas da Mangabeira, formando a Cidade de Hoje. Expansão desordenada mas vigorosa, a mostrar que as raízes e veias, antes minguadas e curtas, farta-ram-se no alimento chamado urbis.

Mazelas há e muitas, ao menos para que a Cidade se insira – a toque de foice e a tiro de pistola – na chamada modernidade dos dias atuais. Contudo, mazela comum a todos não desqualifica, tão somente iguala e apequena.

Nas cercanias, passadas mais de quatro décadas, Pedrão, Ouriçangas, Água Fria e Santanópolis franzem o cenho ao olharem a Comarca, ainda se interrogando sobre o porquê da divisão da pobreza.

Fechadas as páginas da Cidade, a de Ontem nada deve à de Hoje. Essa, por seu turno, pode orgulhar-se por avançar sem abrir mão da cultura, dos costumes, da arte, da fé e dos defeitos de suas gentes. Contrariando o poeta Belchior, poder-se-ia afirmar que, em Irará, continua havendo Galos, Noites e Quintais.

Personagens Inesquecíveis

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Janelas Abertas

Zé Freitas (10 de julho de 2003)

José Freitas – Zé Freitas Carpinteiro – era um Maestro das Madeiras. Alto, esguio, solene, sisudo, mas de uma sensibilidade e paciência a toda prova. Foi o artífice de todos os móveis mais rebuscados da cidade. Seu jeito especial de trabalhar - detalhes quase despercebidos - davam às suas peças um toque de nobreza, de antigüidade, de equilíbrio. A maioria das casas iraraenses daquele tempo teve seus móveis construídos por Zé Freitas – seu concorrente era Mes-tre Cassimiro, mais rudimentar, porém não menos artista – que a todos aten-dia como se fossem o único freguês. Não se tratava de uma arte repetitiva, mas de uma individualidade transportada da necessidade, do desejo, para a dureza e a resistência da madeira. As peças, trabalhadas com cuidado, tinham pés tor-neados, puxadores com requintes de clássico, detalhes nas molduras que lembra-vam uma obra de Rembrandt. Zé Freitas não fazia móveis, fazia arte.

A velha e ampla casa, na esquina da Rua Direita com a Praça da Bandeira, era seu mundo. Na sala da frente mantinha sua oficina – seu atelier – onde a madeira reinava. Nada de fórmicas, de compensados, de aglomerados. Era madeira maciça, da boa, de lei. A cola não passava de mero complemento, para evitar o ranger das peças justas. O que firmava eram os rebaixos, os encaixes, as cavilhas, tudo milimetricamente elaborado. Mí Bemol. Dó Sustenido.

O ar sisudo, agravado, talvez, pelo cachimbo que pitava, ao primeiro impul-so logo se transformava num sorriso aberto, moleque, provocativo. “Menino, me dá essa bicicleta pr’eu dar uma volta”. “E o senhor sabe montar?”. “Menino, bicicleta é como comer, se aprende e nunca mais se esquece”. E saía, desengonçado por suas pernas longas, a voltear pela praça, a rir de sua própria molecagem.

Adoeceu. Doença brava. A família o levou para tratamento em hospital de Salvador. Certamente o inseparável cachimbo o acompanhou. Ferramentas, não lhe foi dado levar.

Certo dia, o amigo juvenil foi visitá-lo no hospital. Levou-lhe maçãs. En-quanto as comia, abriu-se e falou de sua vida, de sua arte. Expressou – lágri-mas nos olhos – o quanto amava o que fazia. Fazia para viver, mas mais fazia por amor ao resultado. Pranteando, confirmou que a visita freqüente dos filhos e parentes aliviavam sua dor e sua solidão. O que não disse, os olhos e as lágrimas falaram: “O que me mata mesmo aqui, não é a doença, mas a falta que me faz minha casa, minha plaina, meu formão”.

José Freitas, o Maestro das Madeiras, é um personagem inesquecível do Irará, Anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Jota Gomes (10 de agosto de 2003.)

Jota Gomes – José Gomes – é sinônimo de “A Voz da Liberdade”. Infatigavel-mente, todas as manhãs, das 09 às 11 horas, todas as tardes, das 16 às 18 horas, todas as noites, das 20 às 22 horas, lá estava ele: “Prezados ouvintes, no ar “A Voz da Liberdade”, serviço de auto-falantes da Prefeitura Municipal de Irará”.

A prática de locutor, quem a deu foi a fala diária; o timbre de voz firme, quem aperfeiçoou foi o cotidiano. As palmas merecidas, essas vinham da satis-fação popular.

Jota Gomes sentia o gosto do povo. O repertório que escolhia, nos velhos discos de setenta e oito rotações, era aquele que se queria ouvir: de Angela Maria a Agostinho dos Santos, de Carlos Galhardo a Orlando Silva, de Augusto Calheiros a Nelson Gonçalves. Notícias, tirava-as de “ A Tarde” ou de “O Diário de Notícias”, trazidos na véspera pela velha marinete.

Invariavelmente, em todas as seis horas da tarde de nossas vidas de então, Jota Gomes nos lembrava a Ave Maria, alternando o clássico de Gounod com o poético de “cai a tarde tristonha e serena...”.

Manhãs de domingo. Matinal boêmio. Os enamorados enlevavam-se com as dedicatórias lidas por Jota Gomes. Lia-as com tal paixão, que parecia terem sido por ele escritas para seus próprios amores.

Dia de festa. Praça cheia. Povo alegre. “A Voz da Liberdade” fazia tilintar copos ao som de “ um dia, busquei um porvir risonho...”. Era Jota Gomes enchendo nossos corações de melancolia, em meio aos festejos da Padroeira.

JotaGomes se foi, certamente para cuidar da locução de alguma rádio celes-tial, personagem inesquecível que é do nosso Irará - Anos 50/60.

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Janelas Abertas

A Trinca de Ases (21 de junho de 2002.)

Retrato mais que perfeito da raça brasileira, a Trinca de Ases do nosso folclore torrão colocava na praça um Irará sonoro, moleque e colorido. Só Chumbo, João Chagas e Germino Curador faziam nascer favos de néctar das taças de fel da dura vida da nossa gente.

O som do agogô era clássica melodia nas ágeis mãos de Só Chumbo e de seus companheiros de bloco. O ritmo marcado como tilintar de guizos punha o povo nos passeios para ver passar a festança. As poucas palmas não eram malquerer, antes timidez de um povo que preferia o sorriso maroto e aberto como sinal de aprovação. Palmas era coisa de palácio, de rico, de casa grande.

O baloiço da burrinha tornada viva pela alegria de João Chagas mostrava a brejeirice da nossa gente morena. Era impossível permanecer estático ao passar do bloco. A vara que açoitava a burrinha sinalizava como uma descarga elétrica que dava vida à alegria. Maestro, batuta e povo em uníssona melodia.

O invisível alvo da flecha e arco de Germino Curador e sua “tribo” era o sub-consciente de cada um de nós a rememorar, ali, nossas origens caboclas. Nos cocares e nas tangas coloridas, o artista punha a fermentar a bravura de uma raça jamais subjugada pelos poderosos e pelos falsos vendedores de indulgências.

Forasteiro que fosse, reconhecia naquela Trinca de Ases a quintessência do povo brasileiro. Sem porém ou vacilação, vendo-se aqueles menestréis, podia-se conceber as razões mesmas da nossa existência miscigenada. Se mensurável fosse o espetáculo, poder-se-ia dizer que a Trinca de Ases ganhava o duro jogo da vida contra a miséria, a tristeza e o esquecimento. Aquele substrato iraraense - agogô, burrinha, arco-e-flecha - representava a explosão de um povo simples, mas cons-ciente de seu papel na formação da raça pátria.

Nãohácomonãovertersaudadesquemserecordada Trinca de Ases,cadaumdelespersonageminesquecíveldoIraráalegreebrincalhãodosanos50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

João Pechincha (10 de maio de 2004.)

João Ferreira da Silva – João Pechincha – era, tal e qual Fernão Dias Paes Leme, um caçador de esmeraldas. Seu rio das velhas eram as ruas de Irará. Suas esmeraldas, incrustadas em sua mente, residiam na bandeira do socialismo e no ideário comunista. Aventureiro como um dom quixote enfrentando os moi-nhos de vento do capitalismo, tinha como espada a palavra desamedrontada. As páginas de “O Momento” eram o seu melhor sancho pança.

Pechincha fez a revolução à sua maneira, na lucidez e na coragem fermen-tadas pela boa e patrícia “Dois Leões”. Homem do povo, escolheu por companhia o lazer das massas desvalidas e esperançosas, o” jogo do bicho”, naqueles tempos sadio e confiável. Pensava mirando o encaracolar das baforadas do forte “Astória”, seu “papirochka” brasileiro.

Enfatiotado de mescla e xadrez, quando Pechincha cismava que era dia de bra- dar, apurava o vocabulário e marchava pela Rua de Baixo desafiando os pode- rosos de então: “Abaixo a UDN e Elísio Santana... Viva a União Soviética, Luís Carlos Prestes e o Partido Comunista”. Seus punhos fechados e braços erguidos eram a foice e o martelo, símbolos do ideário sonhado. Seu vozeirão, que fazia tremer os rea-cionários e covardes, levava esperança aos desvalidos.

A banca de “jogo do bicho” Pechincha transformou no contraponto dos pobres para as rodadas de bacará da falsa e decadente elite que carteava a portas fecha-das. Sua visão de povo o fez amar a “Dois Leões”. Nela encontrava vocabulário para desafiar a embriaguez dos ricos pela usura, festejada à base de “White Horse” falsificado. Na sua farra de palavras, estava Pechincha concorde com Lênin e Trotsky quando estes, instigados por boa vodka caucasiana, bradavam palavras de ordem nas ruas moscovitas dos anos cinco.

João Pechincha tinha como tzar o capitalismo, como líder o Cavaleiro da Espe-rança, como motor revolucionário a luta pela vitória do socialismo. Comunista de primeira hora, seu marxismo foi forjado no fogo quente da vontade de vencer, tendo como bigorna o anseio dos que vêm de baixo.

1961. Yuri Gagarin viaja pelo espaço. João Pechincha, rádio ao pé do ouvido, sai às ruas: “A Bandeira Vermelha foi hasteada no reino dos céus. Viva o Povo Soviético, viva o Comunismo”. Nada mais de acordo com a então “Moscouzinha da Bahia”.

Pechincha se foi, mas as sementes oriundas da boa cepa de suas palavras estão a germinar e, independente de eventuais retrocessos - comuns ao longo da História - hão de produzir os frutos próprios da boa semeadura.

Já não se vêem comunistas como JoãoPechincha, personagem inesquecível da “MoscouzinhadaBahia”, Irará anos 50/60.

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Janelas Abertas

Dodó da Quitanda (20 de junho de 2004.)

Apenas duas portas a meio quarteirão da Praça do Comércio, a quitanda de Dodó era o refúgio certo dos que somente tinham dinheiro no fim do mês. Na “caderneta” sempre havia espaço para mais um fiado.

O comércio de secos e molhados na praça de Irará dos anos 50/60 era uma escada de três degraus. No topo situavam-se os armazéns, reduto fechado de Piroca Brejão e Alfredo Franco, atacadistas e varejistas da pesada. No meio estavam as “vendas”, uma quase exclusividade de Lúcio, Manoelzinho e Nazi. As quitandas fechavam a escada, com destaque para a de Dodó, na Rua de Baixo.

Afável e de boa conversa, Dodó tinha nas “cadernetas” de fiado o seu filão de ouro. Bons tempos aqueles em que crédito se obtinha pelo conhecer e se relacionar e não pelo tamanho do patrimônio. Fim de mês era certo que todos quitavam a “caderneta”, para “pendurar” uma nova conta no dia seguinte.

Sábado. Dia de feira em Irará. O mercado enchia de tabaréus a vender sua pro-dução; os armazéns lotavam de compradores no atacado e no varejo; mercando de louça a charque e peixe seco, as “vendas” despejavam gente pelos passeios. Nada, no entanto, era comparável ao movimento na quitanda de Dodó. Ali se encon-travam os menos favorecidos, aqueles que sabiam poder fazer a feira para pagar depois – quem sabe, no sábado vindouro, se a produção de farinha tiver boa saída.

“Menino, vai lá na quitanda de Dodó e peça meio quilo de toucinho, daquele fresco que só ele vende. Diga prá botar na caderneta”. Era ir e voltar com a encomenda.

Fim de tarde, boca da noite. A quitanda fechava as portas e Dodó, calmo e tranqüilo, descia a Rua de Baixo a caminho de sua casa, aquela de janelas envidraçadas, a poucos passos do ponto da labuta. Ia dormir o sono dos bons e justos.

Dodó da quitanda, aquele que confiava no povo humilde, é personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Euclides Badaró (26 de junho de 2004.)

Dizia-se que fora comerciante de posses lá pras bandas de Água Fria. Que sofrera uma grande decepção amorosa e que esta o fizera perder todo o seu patrimônio e passar a vagar, como se perdido estivesse. E estava.

Não há como negar: a dor do amor é o maior dos sofrimentos. Para ela o único remédio é o devaneio. Esse terrível mal era o sofrer de Euclides.

O populacho, fazendo pouco da sua horrível dor, agastava-o, atormentava-o, instigava-o aos brados de “Badaró! Badaró!”.

Euclides, tido como “o louco”, reagia como se louco fosse, não pelo amor perdido, mas pela provocação diuturna. Mordia os próprios braços, baloiçava o cajado de pau d’arco que sempre trazia consigo e, em desabalada carreira, punha a fugir a turba inconseqüente.

Fosse Euclides um camponês russo dos meados do Século XIX e, certamente, teria sido imortalizado pela forte escrita de Dostoiévski. Quando lhe davam trégua, andava calmamente pelas ruas do Comércio, vestido quase a rigor – sapatos engraxados, calça com vinco firme, camisa de mangas compridas abotoada até o colarinho e, nos dias de frio, paletó bem passado. Conversava, enquanto tomava a “pinga” que os “vendeiros” lhe serviam. Sua conversa não era a de um doido, mas a de um coração despedaçado. Dos olhos tristes brotavam lágrimas, indepen-dente do tema. Sua lógica ia além do entendimento daqueles pobres mortais que o escutavam. Estes sorriam, não de seus devaneios, mas por verem em Euclides um espelho vivo no qual suas imagens de covardes estavam refletidas. Euclides sim, era corajoso, não escondia suas desgraças e sentimentos.

Morder o próprio braço era, para Euclides, a vã defesa contra a intolerância, a desumanidade, a incompreensão. Na verdade, havia mais juízo no “louco” Euclides Badaró do que naquela turba que o insultava, tal e qual o povo de Jerusa-lém no julgamento de Cristo.

EuclidesBadaró, em sua amargura, solidão e devaneios, é um personagem inesquecível do Irará – Anos 50/60.

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Janelas Abertas

Professora Aurelina (28 de junho de 2004.)

Seis horas da manhã. “Apronta-te, menino, ou vais chegar atrasado na Professora Aurelina”. Esse monólogo imperativo era palavra de ordem em várias casas irara-enses nos cinco dias da semana, durante anos a fio.

Professora Aurelina, autodidata e mestra particular não reconhecida pelo sistema público de educação daqueles tempos, ministrava aulas a alunos do pri-mário - dez pela manhã e dez à tarde - em sua humilde casa da Rua da Quixabeira. A pontualidade britânica, conjugada com o rigor da disciplina, fazia contraponto ao conhecido saber da mestra. As poucas vagas eram disputadas como numa corrida de obstáculos, na qual o vencedor é aquele que chega na frente..

A ampla mesa na sala de jantar era, para quantos a freqüentavam, uma experi-ência com características tanto de temor quanto de repetida expectativa. Sabia-se que ali se aprendia, mesmo que a experiência fosse dolorosa. E era, ao menos para os que faziam corpo mole.

Com a Professora Aurelina estudavam-se os quatro primeiros anos dos cinco que compunham o curso primário de então. O quinto era obrigatório ser feito em escola pública ou particular reconhecida, para que o aluno pudesse se sub-meter ao exame de admissão, condição sine qua non para ingressar-se no ginásio. Para matricular-se no quinto ano primário das Escolas Reunidas General Juracy Montenegro Magalhães, o aluno da Professora Aurelina tinha que submeter-se a uma espécie de vestibular, a fim de se aferir os seus conhecimentos e ver se eram condizentes com o quarto ano primário. Não se sabe de candidato que não tenha logrado êxito.

“Um B com A, B a BA ... Três vezes Oito, Vinte e Quatro...”. O ABC e a Tabuada eram a base do aprendizado iniciante, a ser testado na lousa de ardósia e no quadro mais que negro, de tão temido que era. Errar era bolo na certa, aplicado pelo aluno mais forte da classe, nem sempre o mais estudioso - por isso mesmo, o bolo era caprichado, numa espécie de inveja e vingança pessoal. Às vezes, a longa régua de madeira acertava o braço de quem tagarelava durante a aula. Tortura!?. Não, ensino do mais alto valor, aplicado conforme as teorias de então. Com o tempo aprendia-se que o estudo e a dedicação eliminavam o castigo, dando lugar à satisfação. Aliás, os castigos físicos aplicados na sala de aula da Professora Aurelina jamais chegaram aos pés dos que se sofria nos internatos da época.

Nos dias de tabuada - anunciados com antecedência para que houvesse pre-paro - formava-se a roda e iniciava-se a ladainha: “Dois vezes três ... três vezes quatro... quatro vezes cinco...” Quem errava tomava bolo e saia da roda. Poucos conseguiam chegar à casa dos Nove, nos “nove vezes nove...” Os que a alcançavam, recebiam um elogio público e um bilhete para os pais os acompanhava na volta para casa.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Fora das horas de aula, a Professora Aurelina era uma meiguice só. “Minhas crianças”, era como se referia a seus alunos, numa entonação própria de Mãe e Mestra amorosa. No dia de seu aniversário, todos lhe levavam presentes - e havia bolo, dessa vez doce. O “parabéns pra você” era entoado com alegria e satisfação, pois a mestra já se tornara uma segunda mãe.

Um dia, Leontino Barbeiro entrou na vida e na casa da Professora Aurelina e ela se foi de nossa cidade, não sem antes registrar-se na memória de todos como personagem inesquecível do Irará – Anos 50/60.

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Janelas Abertas

Miguel Paes Coelho, o Crente (28 de junho de 2004.)

Na mesmice católica apostólica romana da sociedade iraraense dos anos 50 / 60, Miguel Paes Coelho foi a máxima figura dentre as exceções. Professando seu credo com o destemor de um Lutero reformista, não arredava mãos de sua Bíblia, companheira e inspiração. Muitos, ao vê-lo aproximar-se, afastavam-se murmu-rando: “ Lá vem Miguel e sua pregação de crente...”. Esses, não mais que presunçosos filhos pródigos do grande rebanho do Senhor, com seu repúdio, apenas perdiam a chance de beber – nas entrelinhas da fala religiosa – da água rica e profícua do saber que Miguel trazia em si.

Entre um e outro versículo, entre Samuel e Ezequiel, um Miguel Paes Coelho pleno de cultura e diversidade transmutava o tradicional e dogmático discurso religioso para as verdades da vida cotidiana, doando aos que tinham a humildade de ouvi-lo uma porção minúscula do seu imenso saber. Era como se as citações bíblicas agissem como uma mágica que, ao “abre-te sésamo”, fizesse jorrar conhe-cimento e cultura por horas a fio.

Miguel sabia encontrar, nos escritos atribuídos aos profetas, a senha certa para fazer explodir a barreira da resistência que se interpunha em seu caminho, naquele universo católico apostólico romano sectário e mesquinho.

Como a maioria dos homens do seu tempo na nossa provinciana Irará, Miguel Paes Coelho usava chapéu, de baeta e marca prada. Contudo, a diferença entre Miguel e os demais usuários residia no ato de tirar o chapéu da cabeça. Enquanto os demais o faziam para aliviar o calor e coçar-se - ações comezinhas -, Miguel Paes Coelho o tirava ao mudar o discurso – sair do dogmatismo religioso e penetrar no pragmatismo do conhecimento abrangente e profuso. O gesto fun-cionava como uma saudação ao que iria brotar daquela fonte inesgotável que se escondia sobre a baeta marca prada.

Escutar os ensinamentos do crente Miguel equiparava-se a consultar a Grande Enciclopédia Delta Larousse.

Miguel Paes Coelho é, inquestionavelmente, personagem inesquecível do Irará – Anos 50 / 60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Raul Cruz, o Delegado Comunista (29 de junho de 2004.)

“Moscouzinha da Bahia”, o Irará – Anos 50/60 teve – negativa da contradição – o notório comunista Raul Cruz como Delegado de Polícia. O cargo era político, o que demonstra o peso da nomeação. Raul Cruz delegado não desmentiu nem desmoralizou Raul Cruz comunista. Sua fé revolucionária e sua dialética marxista -leninista foram as ferramentas que forjaram sua atuação como mandatário da Lei e da Ordem.

Raul Cruz, comunista da primeira hora, era o líder do Partido na “Mos-couzinha da Bahia”. As reuniões que chefiava na ampla sala de sua casa situada na esquina da Rua Direita com a Praça da Matriz, sempre tinham início com a leitura e discussão de clássicos do marxismo-leninismo, que brotavam fácil da sua biblioteca tantas vezes encaixotada ao primeiro bafo de repressão.

Senadinho da Praça do Comércio, oito horas da noite. Raul Cruz, o comunista, era o mediador destemido das acirradas discussões entre udenistas no poder e pessedistas aguardando o poder. A lógica e a dialética do seu raciocínio marxista-leninista lhe permitiam conviver com os opostos e ser por eles respeitado. Ali via-se e ouvia-se Raul Cruz acrescentar conteúdo ao debate inútil dos que nada tinham a dizer. Afora ele, os demais apenas pensavam nas próximas eleições e, quiçá, na alternância do poder. Udenistas e pessedistas eram farinha do mesmo saco. Imperceptível e sutilmente, Raul Cruz dava rumo ao vazio de idéias e fazia brotar semente de bruta pedra.

O “Bongue” era seu refúgio semanal. Lá, embalado pelo mugir pachorrento de suas vacas, assentado em duro assento, meditava a ler seus clássicos, prepa-rando-se para as lições que ministraria a seus fiéis camaradas, lições que nesses calaram fundo, tornando-os capazes de sobreviver ao ocaso da “Moscouzinha da Bahia” sem perder o espírito revolucionário.

Raul Cruz é, no seu misto de comunista e delegado, personagem inesquecí-vel do Irará – Anos 50 / 60.

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Janelas Abertas

Alberto Nogueira (30 de junho de 2004.)

A casa grande ainda domina a Praça, embora não mais abrigue senhori-tas a vigiar o movimento pelas frestas das gelosias. Nos seus salões não mais se faz política e as cores das paredes rememoram os anos idos. Hoje, ao ver-se a casa grande - vazia mas imponente - recorda-se o Coronel Elpídio, patriarca dos Nogueira, e logo vem à mente que as crianças daquela casa cresceram sabendo que o mundo pode ser transformado pela fé revolucionária, pela honestidade lídima e pela humanidade perseverante. O Coronel Elpídio Nogueira não era temido, era respeitado. Seus herdeiros não o fizeram por menos.

Alberto Nogueira é mais que sinônimo de humanidade, humildade e per-severança; Alberto Nogueira é o Pai dos Desvalidos. No patrimônio da família instalou o “Abrigo dos Pobres”, nos tempos em que tais empreendimentos não con-tavam com o apoio de ONGs nem obtinham deduções no imposto de renda.

A motivação de Alberto Nogueira era mitigar o sofrimento dos desampa-rados e, para isso, quase que esmolava mensalmente de porta em porta. Trans-formava, não se sabe como, os parcos recursos que arrecadava em meios para prover teto, alimento, ungüento e alegria aos que punha sob sua proteção.

“Anda, come teu pão com alegria e bebe contente teu vinho, porque Deus se agra-dou de tuas obras.” (Salomão, Eclesiástes 9,7). Nada poderia se aplicar melhor a Alberto Nogueira do que a citação do sábio profeta. No entanto, ele era uma tris-teza só – circulava calmo, mas taciturno e pensativo, saindo de uma porta com dois tostões para arrecadar não mais que um cruzado na porta a seguir. Fazia as contas e via que a sopa da semana teria que ser menos encorpada. Certamente, daí vinha a sua profunda, mais que profunda altahman.

“O que devo fazer para sensibilizar essa gente, meu Deus, para que aprendam a dividir!?” devia pensar Alberto. Para cada gesto de apoio e compreensão, sobra-vam alguns de hostilidade e desapreço. No silêncio do seu quarto de dormir, certamente se dizia: “Esta gente não conhece o dito de Salomão: “Mais vale visitar a casa em luto do que a casa em festa, porque ali o desfecho de cada homem vem à cons-ciência de quem vive”. (Salomão, Eclesiástes 7,2).”. No dia seguinte, no entanto, ao ver seus desvalidos, Alberto Nogueira perseverava na sua faina por humanidade.

Alberto Nogueira tratou leprosos, medicou tísicos, abrigou mendigos, socorreu abandonados, mitigou sedentos, amparou inválidos, doou e, por inteiro, se doou.

Por se ter doado tanto, Alberto Nogueira é, para os que têm consciência e memória seletiva, personagem inesquecível do Irará – Anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Manoel Fogueteiro (23 de junho de 2004.)

Diz o poeta que “Manoel Fogueteiro era o deus das crianças...”. E era. Nosso Manoel Fogueteiro, tenda instalada nos finalmente da Rua de Baixo, em frente ao sítio dos Portela, bem fez jus ao verso do poeta.

A tenda, de três portas, ficava a poucos passos da sua ampla casa avarandada. Lá pilava-se terra, socava-se pólvora, serrava-se bambu, encerava-se cordão, cortava-se papelão, faziam-se embrulhados, torcidos e canudos, os ingredientes vitais para os fogos de artifício artesanais.

Fins do mês de maio. A garotada começava a quebrar seus mealheiros de barro e contar os tostões a ver o que podiam adquirir de fogos para o São João que se aproximava. Havia-se de comprar logo no início de junho, antes de os estoques se acabarem. Ia-se à tenda sondar os preços e olhar o sortimento. Quase sempre ganhava-se umas amostras “pra ver como é bonito...”.

E bombinhas, e espirais, e traques, e chuveiros, e estrelinhas, e buscapés, e espa-dinhas, e chuvinhas, e fósforos de cor, e... . A variedade satisfazia a todos os gostos da criançada. Para os grandes , ia-se de foguetes, espadas e bombas de bater, além dos morteiros. O que não havia era festa sem fogos, São João e São Pedro sem a marca de Manoel Fogueteiro.

Um dia a tenda explodiu, como costuma acontecer em quase todos os fabricos artesanais de fogos de artifício. O cronista já não mais se encontrava por perto, mas soube que Manoel Fogueteiro partiu com a sua tenda, certamente para ver, do céu, como é triste noite de São João sem suas maravilhas..

ManoelFogueteirofoi,defato,“odeusdascrianças”eépersonageminesque-cíveldoIrará–anos50/60.

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Janelas Abertas

Lulu Tipógrafo (23 de junho de 2004.)

Aquela casa de janelas altas na Rua Direita escondia um mistério que o menino queria descobrir. Diziam que ali morava Lulu Tipógrafo, o mágico que fazia as palavras se colarem ao papel, para o povo ver e ler. Um dia, ousou: “Ô de casa!!”. “Pode entrar”. Entrou. A porta semicerrada dispensava vacilações. Corredor a dentro, deu-se de frente com o mágico em sua cadeira de rodas. Deficiente das pernas, Lulu recorria a apoio mecânico para reduzir o esforço físico. “Entre, a oficina fica lá no fundo”. Ele sabia que fora a curiosidade quem trouxera o menino, como já ocorrera a outros.

Naquele mundo novo, o menino descobriu que as letras eram de chumbo, que se agrupavam em réguas para formar palavras e frases, essas encaixadas a tábuas de apoio para a composição de textos. O menino viu que as letras eram tateadas – não se olhava o tipo, escolhia-se ao toque com a ponta dos dedos, tal era o manejo e a prática. O menino, que já lera sobre Gutemberg, transportou-se para séculos atrás, no velho continente, ao ser apresentado à prensa de impressão manual, na qual se punha a composição e se imprimia folha a folha, na marra e no aperto. Ainda bem que Lulu Tipógrafo não possuía linotipo. Assim, o menino tinha o que apreciar.

Lulu Tipógrafo era o impressor, o propagandista, o jornalista de Irará. De sua tosca prensa gutemberguiana, saiam proclamas e convites de casamento, infor-mes sobre missas de sétimo dia, reclames de ervas e chás, anúncios eleitorais e, supra-sumo do melhor, jornal semanário – iraraense da gema - vendido de porta em porta e disputado como ouro em pó.

O menino cresceu, foi-se da cidade, trabalhou em jornal, escreveu e distri-buiu panfletos, pichou muros e fez mundo, mas não esquece a porta semicerrada e a oficina de LuluTipógrafo, personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Joana das Bonecas (10 de dezembro de 2003.)

Numa casinha simples da Rua de Baixo da pequena Cidade de Irará, Estado da Bahia de um país de nome Brasil, residia uma Fada, daquelas de estórias encantadas. Sua varinha mágica eram agulha e tesoura.Com essas ferramentas comuns, a fada fazia multiplicar figuras de pano e cores, para o agrado e a alegria das crianças da cidade.

Essas simples linhas já seriam suficientes para descrever o papel de Joana das Bonecas na vida das meninas dos anos 50/60 de nossa terra, não fosse a neces-sidade que o cronista sente de registrar a hospitalidade humilde mas profunda com que essa Fada verdadeira recebia suas visitas, compradores ou não, crianças ou adultos. A todos mostrava suas criações, tocando-as com meiguice e carinho, como se o fizesse a um recém nascido.

Era difícil visitar Joana, ver suas obras e não adquiri-las. As meninas ali che-gavam com olhos faiscando de curiosidade. Ao verem as bonequinhas, o faiscar tornava-se marejar, um sorriso se abria e a voz embargada e imperativa murmu-rava: “Mamãe, eu quero uma...”.

Festejos da Padroeira. Nas noites de novena, a festa era na Praça. Lá havia de tudo: mesas de cisplandim, cercados pra jogar argola, barracas de doces, até leilão. A algazarra infantil indicava onde estavam as meninas: cercando a mesinha humilde de Joana das Bonecas, a expor suas obras primas, irmãs entre si.

Pela satisfação que proporcionou a nossas irmãs, pelo milagre de multipli-car - com sua arte inigualável de pano e cores - os sorrisos infantis de nossa terra, JoanadasBonecas é personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Janelas Abertas

Valfredo Sapateiro (14 de janeiro de 2004.)

Salvador da Bahia, terra privilegiada. Terra de magarefes nas Sete Portas, de ourives na Rua da Misericórdia, de alfaiates na Rua Direita da Piedade, de pin-tores no Terreiro de Jesus. Ah, sim, de sapateiros na Baixa dos Sapateiros. Eram tantos e tão conhecidos, que a longa via ainda ostenta o nome nos dias atuais.

Tão somente por ter em si a oficina de Valfredo, a Rua do Canta Galo, em nossa Irará, deveria chamar-se Rua do Sapateiro, ficando Canta Galo como apelido. Val-fredo Sapateiro fez história com sua oficina, onde tantos aprenderam o nobre ofício. Um dos seus mais renomados auxiliares foi Zequinha, o Rouxinol dos Metais.

Sapato de vaqueiro e fazendeiro, sapato de menino e menina, sapato pra senhor, sapato pra senhora, até os de casamento a oficina de duas portas produzia. E chinelo, e cinto, e alpercata. Também havia botas, tanto as de cano longo como as de cano curto. No espaço da frente, balcão de rústica madeira cercava pratelei-ra recheada. Ali, na mesinha de centro, Valfredo aguardava a clientela certa, tão logo pronta a encomenda. A sala de “serviço”, no fundo, fazia-se apresentar pelo vozerio de mestres e aprendizes.

Couro prensado e colorido, cola regulada, tesoura afiada, agulha e sovela, máquina de costurar, apoio para bater sola e salto, cordão devidamente encerado, rebites e ilhoses, cadarços com extremidades metalizadas, pregos de pontas rom-budas, eis os ingredientes da receita. A mistura perfeita dependia da qualidade do mestre. Valfredo era O Mestre, que o digam os pés bem calçados que tão bem nos conduziram em nossa juventude pelas ruas da cidade natal.

Artesão e mestre de qualidade e paciência ilimitada no tolerar as exigências da clientela, eis o retrato fiel de ValfredoSapateiro, personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Zé Estrela, o Funileiro (22 de fevereiro de 2004.)

Quem não teve, nos idos anos 50/60, um fifó para alumiar?? Zé Estrela o fazia. Quem não quis por bica em casa de eira e beira?? Zé Estrela a montava. Qual dona de casa não ralou coco em ralador de flandre?? Zé Estrela o fornecia. Quem, fazendeiro ou vaqueiro, não pôs os pés em estribo de zinco?? Zé Estrela o fabri-cava. E fabricava bandeja e forma para as doceiras, baú para as jóias das distintas senhoras, canecos para a medição dos grãos, mealheiro redondo e quadrado para a guarda dos trocados da criançada, funil de bico reto e bico curvo para as bode-gas. Até alça de zinco para caixão de pobre, Zé Estrela se dispunha a fazer.

Ferramentas, eram poucas mas imprescindíveis: moldes em madeira de lei, tesourões de cortar chapa, talhadeiras e furadores, martelos de bola e dente, ma-cetes de madeira para desempeno, serra de arco reto e arco curvo, aplicadores de rebite e o ferro de soldar, daqueles de aquecer em brasa de carvão e calibrar em solda derretida na telha.

Em sua oficina de três portas na Rua Manoel Julião, Zé Estrela ditava o ritmo: “Ver o sortimento, separar os moldes, cortar as folhas de zinco e flandre, traba-lhar rápido que o sábado vem aí, e as encomendas precisam ser entregues”.

Era prazeroso avistá-lo todas as manhãs, a vir de bicicleta de seu sítio lá pras bandas do Cruzeiro da Queimada, para encarar a labuta do dia sorrindo para quantos o visitassem, embora lhe doessem os calos do rijo batente.

Na oficina, o trabalho era de sol a sol, num cortar, moldar, bater e soldar sem fim, criando peças dignas de museu, não pela idade, mas pela perfeição e originalidade.

Zé Estrela, Artesão, Artista e Funileiro, é personagem inesquecível do Irará–anos50/60.

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Janelas Abertas

Olavo, o Ferreiro (15 de fevereiro de 2004.)

A forja atiçada lança faiscas no ambiente. O bater do martelo na bigorna se faz ouvir. O vizinho comenta: “Olavo já chegou e ainda não são 7 horas. Eta homem danado! Nem vi o Lito passar”. É que Lito, estudando na parte da manhã, somente comparecia ao batente após o almoço.

Primeiro no velho galpão da Rua do Canta Galo, depois nos fundos do cine-ma, esquina da Rua Manoel Julião com a Rua Nova, a oficina do ferreiro Olavo era uma azáfama nos seis dias da semana. O domingo servia para descansar o braço pro rojão da segunda entrante, “que ninguém é de ferro” embora no ferro fosse o trabalho.

O forjado contava com a forja de fole de couro. O fundido, com cadinho rústico protegido por bom barro. Forjado e fundido era a base do trabalho no quase ateliê de Olavo Ferreiro.

Do estanho derretido e lançado nos moldes e do bater do martelo no ferro em brasa acostado à bigorna, nasciam peças pra fazenda e pra cidade. Aldrabas, rebitões, estribos, argolões, dobradiças, ferrolhos, argolas de brida, ganchos, tra-vas de cancela, tudo aparado a milímetro. O limar, lixar e polir incessantes, após a esfriada no vento da porta, faziam as peças brilharem como espelho. Tudo pura arte, sem tirar nem por.

“Zé, chame um carregador pra levar essa caixa de enxadas lá no Olavo, pra bater.”. Bater enxada era ajustar a ferramenta nova a fim de dar-lhe a inclinação correta para o trabalho. Forja, bigorna e martelo ficavam conhecendo o instrumento do tabaréu. Na tarefa de bater se incluía amolar – “Um pouco, bem pouco, que en-xada muito afiada corta o pé do lavrador”. Na oficina também se amolava foice, estrovenga e machado, esses sem bater mas afiados a gosto.

O cinema, aquisição tardia, apenas foi um desvio de rota daquele empreende-dor sertanejo, sisudo e trabalhador como boi do coice em canga de carro. O depósito de bebidas voltado pra Rua de Baixo serviu, tão somente, para facilitar o acesso à oficina no velho galpão.

Pela modéstia – própria de sua profissão e ainda mais dos verdadeiros mes-tres –, pela perseverança e pela profunda fé que devotava ao trabalho, o artesão, ferreiro e artista Olavo é personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

Zequinha, o Rouxinol dos Metais (25 de março de 2004.)

Dia da Independência. Os escolares enfileirados aguardavam a hora da mar-cha: assim que a banda chegasse. A Filarmônica 25 de Dezembro dava o tom e o acorde do festejo patriótico. Os músicos, todos de primeira, pareciam em sim-biose com seus instrumentos, fossem de sopro ou de repique. O destaque ficava por conta do trombone manipulado com maestria por Zequinha, sapateiro, mú-sico e rouxinol.

Festa da Padroeira. Missa no Cruzeiro da Queimada. A folia começava na Praça, afunilava pela Rua de Baixo e partia em arrelia para o Largo do Cruzeiro pelo ca-minho de João de Bila. Animando os foliões, a banda de música atacava de “arriba a saia peixão. Todo mundo arribou, você não”. O tom estava no sopro do Rouxinol, vibrante e forte.

Teclados é a elite da música, dizem os especialistas; cordas é coisa de boêmio, afirmam os da madrugada; tambores e caixas são de folclore, repetem os con-servadores; flautas e fagotes cheiram a coro de igreja, insistem os desentendidos; metais só em banda escolar, corroboram os pretenciosos. Todos esses pseudo crí-ticos são desprovidos de equilíbrio e bom ouvido, são incapazes de perceber que a música não discrimina, mas interage; que não tem cor, nem raça, nem credo. Contudo, há que se afirmar – nem que seja para confirmar o dito – que metais são metais, tal e qual brilhante em colar de safiras e rubis.

No universo musical de então, Zequinha foi o Rouxinol dos Metais, o sopro que transmutava a melodia em alegria, a competência que transformava escala de dó sustenido a si bemol em frêmitos de prazer.

Zequinha, sapateiro, músico e RouxinoldosMetais, é personagem inesque-cível do Irará – anos 50/60.

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Janelas Abertas

Zé Petu e o Bar (15 de abril de 2004.)

Irará –anos 50/60 possuía bares em praticamente todas as ruas, nem que fossem primos, como bodegas e depósitos. O maior era o da Rua Direita, em frente da barbearia de Nelson Guarda e vizinho da antiga Farmácia Confiança. Per-tencia a Braúlio Miranda, antes fora de Manoelzinho da Paixão e, mais pra trás, de Everton Martins. Lá tinha sinuca e bilhar dos grandes e mesas para o carteado. Na esquina oposta da Rua Direita com a Praça do Comércio, havia ainda o bar de Nelson Coronel – danado de bom - esse com filial na Rua da Quixabeira.

Apesar das atrações dos dois maiores e dos primos bodegas e depósitos, os bares que mais fizeram história foram o de Henrique, na Praça do Comércio, vizinho da loja de Everton, e o de seu irmão, Zé Petu, na Rua Manoel Julião.

Zé Petu montou seu bar de três portas em casa de estilo colonial – eira, beira e arcadas. Dois ambientes bem distintos possuía o negócio. O da frente, com mesas pra servir bebidas e olhar pra rua. Ver o movimento era estimular a ima-ginação e atiçar o gosto pra tomar mais uma, antes da saideira. Nos fundos, havia amplas mesas, disputadas pelos que somente sabiam bebericar ao bater do carteado. Sempre cheio, os fundos desbragava risos, gargalhadas mesmo, quando alguém tinha ases pra ganhar do destino de perder.

Além do variado estoque de bebidas – de cana mineira a jurupinga fermentada -, Zé Petu servias refrescos – de maracujá, cajá e limão . Sua loura era sabida como a mais gelada da cidade. Numa disputa firme com o de Nelson Coronel, no bar de Zé Petu tinha sanduíches e outras iguarias, a maioria vinda de casa. Era entrar e pedir daqueles de bife batido, mais guaraná Fratelli Vita ou Laranja Turva. O serviço saía rápido, ao gosto do freguês. Os do lanche preferiam disputar com os do carteado as mesas dos fundos, talvez para comer com mais gula a iguaria, sem que os vissem os passantes.

Zé Petu, com seu andar rápido e falar trovejante, sabia ser afável como um gato angorá. De seu bar os boêmios eram assíduos freqüentadores – afinal, aquela rua era a abençoada Rua dos Boêmios, bastava o sol dormir. Passagem se- gura para a Mangabeira: na ida, uma pinga bem dosada pra acender; na volta, apesar do frio da madrugada, uma loura bem gelada pra relaxar.

Zé Petu - um verdadeiro abrigo dos boêmios - é personagem inesquecível do Irará- anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

João Tanoeiro (15 de abril de 2004.)

Aguardente saborosa é a envelhecida em boa dorna. Vinho que se pre-ze passou por bons barris. O que se guarda em pipa de boa cepa não envelhece, enobrece. Dorna, barril e pipa de bom pai não vazam pelas costelas. Quem é do ramo sabe: barril vazando entre as costelas dá prejuízo, contamina o conteúdo e este perde qualidade.

Irará – anos 50/60 tinha alambique renomado, possuía depósitos de amplo sortimento, fabricos artesanais de jurubeba e vinagre. O barril, a pipa e a dorna eram presenças constantes nesses ambientes. Ainda há que se lembrar dos de água, daqueles que, em lombo de jumento sestroso, iam de porta em porta, desde a Fonte da Nação.

João Tanoeiro era o pai dos barris: desde o escolher das tábuas para o preparo das costelas, o cravejar das cintas de aço na inclinação devida, o tornear dos tampos de alto e fundo – aquele com boca e tarugo, o moldar das costelas para a curvatura adequada, o aquecer do piche para argamassar as gretas, o montar do conjunto – cos-telas, cintas e tampos - até o aprumar e arrochar pelo bater do martelo. E há que brunir o exterior, dar brilho e cor à madeira bruta no molde vergada, testar a vedação das juntas e tampos e, ao final, olhar o resultado com olhos de pai que viu o filho crescer sob a proteção do seu esteio.

João Tanoeiro labutava ao som de sua orquestra natural, seus pássaros de estima-ção. Mãos de mestre e fundo musical de pintassilgos e curiós produziam obras dignas da melhor adega mediterrânea.

Para João Tanoeiro, em sua tenda na Rua Manoel Julião, não havia tempo ruim. A barba branca por fazer não era desleixo mas urgência no atender à freguesia, ansiosa por seus vasilhames. Afinal, cachaça não espera na boca do alambique; vinagre fermentou, tá pronto e tem que ser armazenado; água em lombo de ju-mento, só com barril bem vedado pro suor do bicho não entrar. Tempo vago, somen-te para limpar as gaiolas e comprar alpiste.

A qualidade do que fazia – criava, melhor dito, pai que era - o bom trato com a freguesia e o amor pelo harmonioso canto dos pássaros tornam JoãoTanoeiro,in-questionavelmente, personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Janelas Abertas

O boêmio Zé Vermelho (20 de maio de 2004.)

Anos 50/60. Anos de Ouro do Rádio, não somente por “O Direito de Nascer”, mas sobretudo pela “Hora da Boemia”. Anos de Nelson Gonçalves, de Augusto Calheiros, de Angela Maria, de Orlando Silva, de Carlos Galhardo. Ouvi-los era rasgar o coração e afogar os olhos:

“Boemia, aqui me tens de regresso...”.“Chorei, chorei de dor...”. Na pequena Cidade de Irará, Jota Gomes comandava a melancolia ao micro-

fone de “A Voz da Liberdade”.Noites iraraenses. Não havia bar sem boêmio a cantarolar, a cismar por algum

amor perdido ou por uma desilusão, voz afinada por boa e gelada loura. Nesse cenário, o destaque era Zé Vermelho, filho de Graziela e irmão de Velho

, morador da Rua de Baixo. Voz perfeita fosse nos graves ou nos agudos, em sua garganta fizeram morada os astros da então música romântica nacional.

Tempos de serenata. Cantava-se – sorria-se – para o amor que se tinha; cantava-se – rezava-se – para se ter um amor; cantava-se- chorava-se – quando o amor partia.

Zé Vermelho era o seresteiro perfeito. Sabia sentir na face da platéia a mensa-gem desejada. Se o amor partira, voltava ao chamado do Zé Vermelho, ali Agosti-nho dos Santos:

“Maria dos meus pecados... cadê, meu amor, cadê...”Se a amada não correspondia, Carlos Galhardo assumia a garganta e a voz

de Zé Vermelho:“Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda ...”Se era amor distante, daqueles do qual só se vê carta, Zé Vermelho tomava

emprestado o vozeirão de Nelson Gonçalves:“Nada consigo fazer quando a saudade aperta...”O violão de Dante de Guga era o acorde seguro para a voz de ouro do cancio-

neiro iraraense. Não havia dó bemol sem pausa certa na melodia, nem fá sustenido sem um agudo vibrante. Violão e canção, mais que rima, era vinho do Porto casado com champanhe francesa. Os aplausos e urras intercalados de Agnaldo Maia não conseguiam desafinar a dupla. Palmas para um, palmas para dois, palmas para o bater palmas.

Um dia o boêmio partiu. Diziam que fora batalhar a vida lá pras bandas de Minas Gerais. O certo é que a saudade apertou e o trem de Minas o trouxe pra Bahia e o entregou à velha marinete, que o pôs em casa. Ganhou apelido novo: “Zé Vermelho, o mineiro”. Também é certo que não perdeu aplausos nem elogios. Na sua volta, nada mais justo do que uma encarnação viva de Nelson Gonçalves, voz de um, voz do outro:

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Parte V - Personagens Inesquecíveis

“Boemia, aqui me tens de regresso,e suplicante te peçoa minha nova inscrição. Voltei pra rever os amigos que um dia, eu deixei a chorar de alegria, me acompanha o meu violão...”.A noite iraraense voltou a brilhar mais que nunca, a lua recuperou seu sor-

riso apaixonado e as moças da terra voltaram a dormir e sonhar ao tom e som da voz de ouro do Zé Vermelho boêmio.

Zé Vermelho - o rei da voz da romântica cidadezinha - que nas horas vagas cortava couro e fazia alpercatas, é personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

A Linguagem Iraraense dos Anos 50 / 60

Lista de Palavras

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Janelas Abertas

A Linguagem Iraraense dos Anos 50 / 60

A escolha do período compreendido pelos anos 50 / 60 tem a ver com a vi-vência do autor, além de ter sido, nesse período, que ocorreram os grandes avan-ços da formação cultural e política no Brasil. Não há como pensar em linguagem desvinculando-a da cultura e da ação política, os verdadeiros caldeirões da for-mação de um povo. O vocabulário listado inclui palavras corriqueiras em outras regiões e mi-crorregiões, mas que eram de grande habitualidade entre as gentes de Irará. Algu-mas palavras são exclusivas da cidade e estão marcadas por um asterísco. Aqueles termos de uso geral aqui indicados apresentam , tão somente, seu sentido local ou regional, deixando-se de lado o sentido geral – que diz respeito a dicionário am-plo e irrestrito. Preferenciou-se, também, palavras relativas a costumes locais, as que nomeiam ferramentas de uso dos diversos artífices, as indicativas de plantas e pássaros comuns à região, os termos utilizados na conversa familiar e na labuta diária bem como as corruptelas adotadas pelas gentes da roça. A descrição do significado de cada palavra não segue regras fixas de dicioná-rio, pois tem como objetivo fazer entender o que se desejava expressar, naqueles anos, em nossa comunidade. Evidentemente, a dificuldade de pesquisa fez com que o trabalho ficasse restrito aos ditames da memória do autor. A maioria das palavras incluídas no trabalho continua ativa na linguagem geral e da região, mas já não tem o peso que possuía no falar coloquial do período abordado. Os exemplos apresentados para alguns termos foram escritos de forma a pre-servar a fala coloquial da época e da região, que abusava das próclises, dos prono-mes pessoais e da junção de preposições com pronomes. Novos termos surgiram, as gírias fizeram e fazem a festa, mas o que se falava calou no coração. Na devida medida, o trabalho é, apenas, uma ListadePalavras.

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A

Abafa-banca* Picolé feito em cuba de geladeira, geralmente de coco.Abaixar-se Agachar-se, acocorar-se. Abaixe-se aí para que eu veja como estão seus cabelos. Se tiver piolhos, vou colocar creolina.Abancar-se Instalar-se. Estabelecer-se. Ele abancou-se lá na praça, pra vender miudezas.Abano Instrumento semelhante a um leque, feito de palha, utilizado para ativar o fogo nos fogões a lenha.Abarrotado Cheio até à tampa. Tão cheio que já não cabe mais nada. O cinema, hoje, estava abarrotado de gente.Abatido (a) Acabrunhado. Enfraquecido. Adoentado. Achei o João tão abatido. Será qu’ele está doente!?Abaular Dar a forma de barril. Abelhudo Intrometido. Metido. Bisbilhoteiro. Lá vem aquele abelhudo escutar nossa conversa.Aboiar Conduzir a boiada utilizando-se do aboio.Aboio Canto monocórdio utilizado pelo vaqueiro a fim de facilitar a condução da boiada.Aborrecido Chateado. Fiquei muito aborrecido com esta estória de que você não vai bem na escola.Aborrecimento Chateação. Abrir o apetite Estimular a fome. Desejar comer. Vou tomar uma pra abrir o apetite.Abusado Chato. Implicante. Deixe de ser abusado, menino..Abusar Aborrecer. Chatear. Desonrar. Irritar. Fique quieto, menino. Deixe de ser abusado. Ele abusou da moça. Vai ter que casar.A coisa pega Fica difícil. Fica complicado. Se ele não se tratar, a coisa pega. Aí, não tem jeito.A coisa vai ficar Vai ter encrenca. Vai ter briga. feia Acho bom você acabar com esse namoro. Se seu pai souber, a coisa vai ficar feia.Acoitar Esconder. Abrigar. Eu soube que tem fazendeiro aí acoitando jagunço fugido.A conversa é outra É outra estória. È outro papo. Agora que você perdeu, a conversa é outra. O que acertamos não

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vale mais.Aderente Parente por afinidade. Ele nada tem a ver comigo. Não é parente nem aderente.Adjutório Ajuda dada em grupo. Mutirão. Vamos fazer um adjutório pra ralar a mandioca, pois a safra foi grande.Adobe Bloco de barro seco ao sol utilizado para construir paredes e muros. Agourar Predizer. Adivinhar. Supor provável acontecimento bom ou ruim.Agourento Diz-se da pessoa que prevê mau agouro. Não gosto de falar com aquela mulher. Ela é muito agourenta.Agritalhado Na base do grito.Com gritaria. Com barulho. O baba, ontem, foi muito agritalhado.Aguar Regar. Molhar a lavoura ou o jardim.Agüentar Suportar. Aturar. Aguardar. Não sei até quando vou agüentar isso. Agüente aí qu’eu já volto.Ajeitar Consertar. Dar um jeito. Domingo vou ajeitar essa fechadura. Vocês brigam e eu é quem tenho que ajeitar as coisas.Ajuntar Reunir. Juntar. Agrupar. Vou ajuntar dinheiro pra ver se compro uma bicicleta.Ajuntar-se Reunir-se. Formar uma turma. Amigar-se.Alcoviteira (o) Mexeriqueira. Fuxiqueira. Leva-e-traz.Aldraba Argola ou pequeno macete preso às portas de entrada, pelo lado de fora, para funcionar como se fosse uma campainha. O mesmo que aldrava.Alesado (a) Abobalhado. Adoidado. Palerma. Chico é muito alesado. Faz cada merda...Alforje Bolsão duplo feito de couro de boi curtido, utilizado para trans- porte de suprimentos. Normalmente é colocado sobre a sela, com um saco pendente de cada lado da montaria.Algazarra Gritaria. Bagunça. Balbúrdia. Esses meninos fazem muita algazarra quando estão brincando.Algibeira Bolso de calça situado logo abaixo do cós e ao lado da braguilha. Aguadeiro Aquele que entrega água de porta em porta, conduzida por jumento provido de barris. O aguadeiro chegou cedo, antes d’eu lavar o porrão.Almanaque Publicação em forma de revista, com conteúdo diversificado, priorizando o lazer e as informações populares.

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Alpercata Calçado de couro curtido costurado a mão.Alvoroço Barulho. Gritaria. Confusão. Pra que esse alvoroço todo por causa de uma besteira?!Ama Empregada doméstica. Criada. Totonho colocou duas amas em casa, pra ajudar a família.Amarrado Lote de coisas (frutas, pedaços de madeira, papéis etc) amarra- dos em bloco. Faça um amarrado desses paus e guarde lá no quintal.Amarrados um Diz-se de duas pessoas que sempre estão juntas. no outro Aqueles dois parecem amarrados um no outro.Amêndoa* Fruto da árvore conhecida como coração-de-negro, de forte coloração arroxeada.Amigar-se Tornar-se amante. Juntar-se (homem e mulher) sob o mesmo teto sem estarem casados.Amolar Afiar o corte de instrumento doméstico ou agrícola, a exemplo de tesoura e enxada. Aporrinhar. Chatear. Irritar. Vou amolar as foices para a limpeza do pasto na próxima semana. Não venha me amolar com essa conversa de viajar pra roça. Amuado (a) Melindrado. Chateado. Quieto no seu canto*. Depois da briga ele ficou amuado.Anágua Espécie de saia feita de tecido fino, usada por baixo do vestido (ou da saia externa) para dar mais recato. Maria, lembre-se que moça direita não sai de casa sem anágua.Anarquia Bagunça. Arrelia. Confusão. Eta menino danado para gostar de uma anarquia.Ancas Quadris, tanto dos animais de criação quanto das pessoas.Ancorar-se Apoiar-se. Namorar encostado à porta da casa da namorada. Passei pela Rua Direita ontem à noite e vi Joãozinho ancorado. Toda noite ele tá lá.Andanças Viagens. Passeios. Nas minhas andanças por aí, tenho visto muita coisa boa e mais ainda coisa ruim.Andor Armação de madeira no formato de plataforma, utilizada para o transporte de imagens durante as procissões.Andu Espécie de feijão que se assemelha à ervilha.Angu Mingau de farinha de mandioca, cozido no leite ou na água.Anil Tablete de mineral na cor azul, utilizado na lavagem de roupas para facilitar o alvejamento.Aninhar-se Acomodar-se. Agasalhar-se. Recolher-se. Aninhou-se todo e pegou no sono.Ano Bom Ano Novo. O dia do Ano Novo.

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Ansiar Desejar ardentemente. Almejar. De tanto ansiar por uma casa boa, Pedro endividou-se para com prar a que mora.Antonte* Corruptela de anteontem, usada pelas pessoas da roça.Anum Anu. Pássaro de bico forte que come gafanhotos e outros insetos maiores e que levanta o rabo quando pousa.Ao léu À toa. Perdido. Sem rumo. Aquele menino ficou ao léu depois que a mãe morreu. Vou sair ao léu, pra ver onde vou parar.Apanhar Levar surra. Molhar-se na chuva. Recolher. Apanhei ontem de mamãe, por causa de sua arenga, seu sacrista. Não saia sem sombrinha, pra não apanhar chuva e se resfriar. Apanhe esses brinquedos do chão e guarde lá com suas coisas.Aparar Ajudar a parturiente nos trabalhos de parto (tarefa a cargo das parteiras). Segurar algo que foi atirado por outrem. João, acho bom mandar avisar a Comadre Melânia, pois acho que de hoje pra amanhã ela vai ter nenê pra aparar. Apare essa garrafa, mas cuidado pra não deixar cair.Apear Descer da montaria. Quando fui apear, o cavalo deu um pinote e me derrubou.A peça O sujeito. Aquele sujeito. Forma depreciativa de se referir a alguém de quem não se gosta. A peça não me sai da cabeça. Se o vir novamente, vai ter briga.Aperrear Atanazar. Provocar. Prejudicar. Chico só anda aperreando o pai com essa estória de jogar futebol.Aperrear-se Enrolar-se. Endividar-se. Ficar em situação difícil.Aperreado (a) Endividado; enrolado; assustado; constrangido; humilhado. João está aperreado devido às despesas com a doença do pai. Ao ver o vulto escuro, fiquei aperreado. Aquelas pirraças da turma me deixaram aperreado e resolvi me esconder.Aperreio Ato de ficar em dificuldades ou sob pressão. Endividamento. Susto.Apois* Então. Pois então. Apois não é qu’ele se deu bem!?Aporrinhação Aborrecimento. Chateação. Incômodo. Isso qu’está se passando só me causa aporrinhação. Essa tosse é uma grande aporrinhação.Aporrinhar Incomodar. Chatear. Abusar. Aborrecer.Apurar Ganhar. Ter lucro. Com a vendagem do fumo, apurei o bastante pra reformar a casa. Aprumar-se Equilibrar-se. Fortalecer-se.

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Se você não parar com essas exorbitâncias, nunca vai aprumar-se.Aquetar-se Corruptela de Aquietar-se. Ficar quieto. Veja se se aqueta aí, até sua mãe chegar.Araçá* Nome regional dado à goiaba.Arapuá Abelha grande e agressiva.Arapuca Armadilha feita de galhos presos uns aos outros, para a captura de pássaros e pequenos animais. Engodo. Tapeação. Tico caiu numa arapuca com aquela mulher que ele arranjou lá em Água Fria.Araque (de...) De baixa qualidade.. Fulano é um pintor de araque.Araruta Farinha obtida da raiz de planta do mesmo nome, utilizada para fazer mingau.Arcada Formato típico das portas e janelas das casas coloniais. Arenga Fuxico. Intriga. Conversa fiada. Essa arenga toda não leva a nada.Arengueiro (a) Fuxiqueiro (a). Leva-e-trás. Fulana é uma arengueira de marca maiorArgola Brinco. Pingente.Armado Pronto para chover. O céu tá armado. O toró vai ser já.Armar chuva* Diz-se de condições atmosféricas com nuvens propensas a chover. Hoje o dia amanheceu armando chuva.Arranchar-se Encontrar abrigo. Construir um rancho. Eles chegaram hoje do Pedrão e se arrancharam na casa do tio. Deixei ele arranchar-se lá no terreno da lagoa.Arranjar Conseguir. Obter. Procurar. Veja se arranja uma tábua maior. Ele vive arranjando briga.Arredar Afastar. Sair. Recuar. Arrede essa cadeira daí. Arrede daqui e vá pro seu canto.Arredar o pé Ir embora. Ir para casa. Ele arredou o pé foi cedo. Arregaçar Dobrar a bainha da calça, geralmente para protegê-la da lama. Dobrar a manga da camisa. A estrada estava cheia de lama. Tive que arregaçar as calças..Arrear Pôr arreios na montaria ou no animal de carga. Já arreou o cavalo? Quero sair logo.Arrelia Barulho. Gritaria de crianças quando brincando.

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Deixe de arrelia, menino e vá estudar.Arreios Apetrechos de couro utilizados nos animais de montaria e de carga.Arreliar Fazer bagunça. Gritar. Vaiar. Fiz besteira e a turma me arreliou.Arremedar Imitar de forma rude. Fazer arremedo.Arremedo Imitação mal feita. Isso aqui é um arremedo das coisas que Zé Freitas faz.Arrenegar Negar. Expulsar. Amaldiçoar. Eu te arrenego, maldito. Vai pro diabo que te carregue.Arrepiar-se Reagir fisicamente, através de arrepios, como conseqüência de susto, medo, surpresa, horror, entusiasmo etc. Arrepiei-me todo ao ouvir o discurso que Aristeu fez. Aquele é o que se pode chamar de bom político. Arriar Baixar. Pôr no chão. Areie esse saco na balança, pra ver o peso.Arribar* Levantar. Erguer. Sair. Arriba a saia peixão. Arribe daqui, antes qu’eu lhe dê uns sopapos.Arrimar Apoiar. Proteger. Se você resolver montar negócio, vou lhe arrimar.Arroba Unidade de peso equivalente a 15 quilos, largamente utilizada nas operações que envolviam produtos a granel. Tiago e a gente dele colheram esse ano mais de 200 arrobas de fumo !!! Arrochada Apertada. Muito cheia. A casa tava arrochada de gente. Arrochar Apertar. Ajustar. Gritar em grupo. Precisa arrochar a porca bem, pra evitar do parafuso soltar-se. “Arrocha, negrada...”,diz o palhaço.Arrocho Aperto. Dificuldade. Com essa seca, o arrocho vai ser grande pros da roçaArrodear Corruptela de Rodear. Cercar.Arruaça Confusão, barulho, bagunça... Que arruaça é essa aí fora?!Arruado Arruamento. Agrupamento de casas formando um lado de rua. Arrumado* Posto em ordem. Organizado. Ajuntamento de coisas em forma de ruma*. Mamãe, já arrumei meu quarto. Posso sair pra brincar?? O arrumado foi posto nos cantos da despensa, assim que chegou da feira.Arrumar Organizar. Procurar. Atirar. Arrume isso, menino. Que bagunça.

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Maria, veja se arruma uma faca amolada aí. Arrume longe esse pau, que tá com cupim.Arte Travessura. Estrepulia. Deixe de fazer arte, menino.Assadeira Utensílio de cozinha fabricado com folha-de-flandres, próprio para levar ao forno as carnes que se deseja assar.Assanhaço Sinônimo de sanhaço, pássaro muito arisco de cor esverdeada.Asseado Limpo. Só deixo os meninos saírem bem asseados.Assento Selim de bicicleta. Bunda (nádegas). O doutor mandou tomar banho de assento.Assim, assim* Mais ou menos. Ela está assim, assim, desde que voltou da roça.Assuntar Observar. Prestar atenção. Assunte bem no que estou falando, menino!Até à tampa Até não caber mais. Completamente cheio. Encha a lata até à tampa.A tempo No devido momento. Na hora. Ele chegou a tempo de ver o filho sair.Atiçar Cutucar as achas de lenha para avivar o fogo. Provocar. Atice esse fogo senão ele apaga. Atiça ele, pra ver se sai briga...Aticum* Fruto da árvore do mesmo nome que se assemelha a uma pêra, embora com casca enrugada.À toa Perdido (a). Sozinho. (a). Abandonado (a). Largado (a) ao léu. Ele ficou à toa, desde que a mãe morreu.Atoleiro Brejo. Área muito úmida com aspecto de lamaçal.Auê Confusão. Gritaria. Barulho. Que auê é esse, aí na cozinha!?Avarandado Varanda comprida situada na parte frontal das casas-de- fazenda.Avivar Dar mais vida. Atiçar. Reforçar. Para avivar a cabeça, precisa comer coisa forte.Avexado Apressado. Agoniado. Pedro tá avexado pra ir pra casa. O filho está doente.Azulão Pássaro canoro de cor azul, comum nas regiões onde existem árvores frutíferas.

B

Baba* Jogo de futebol sem regras a cumprir, praticado por jogadores

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descalços. Pedro foi bater um baba com os amigos da escola.Babado Acabamento em roupa feminina, na forma de franzido.Babau Foi-se embora. Partiu repentinamente. Acabou-se. Você demorou e o doce... babau. O circo mal chegou e ... babau.Badaró* Doido. Louco. Bacio Sinônimo de urinol. Penico. Chica, coloque um bacio embaixo da cama de Francisco, pois ele está com febre e não pode sair do quarto.Badogue Atiradeira rudimentar feita com duas tiras de borracha atadas a um pedaço de couro e a um gancho de madeira. Aquele menino aprendeu a caçar com badogue desde pequenininho. Baé Porco pequeno e roliço. Que menino gordinho, parecendo um porquinho baé !!!Baeta Tecido grosso feito de lã, com textura felpuda, normalmente utilizado como enchimento ou forro.Bafo Odor desprendido pela boca. Mau hálito. Cumpadre Mané já chega da roça c’um bafo danado de cachaça.Bagunça Baderna. Confusão. Desarrumação. Lá na festa foi a maior bagunça. Essa casa tá uma verdadeira bagunça.Bahia Nome usado pelos mais velhos para referir-se à Salvador. Se ele passar de ano, vai estudar na Bahia.Baita Muito grande. Forte. Enorme. Veja que baita manga está ali naquele galho.Baixa Lugar mais baixo de uma roça ou estrada. Lá naquela baixa tem um riacho muito bom pra pescaria de piaba.Bajular Adular. Ser servil. Puxar o saco. Em época de eleição, até pobre é bajulado.Balaio Cesto grande feito com cipós entrelaçados, utilizado para o transporte ou a guarda de frutas e raízes. Balanço Brinquedo infantil formado por uma tábua ou barra de ferro suspensa por duas cordas geralmente atadas aos caibros do telhado ou a um galho de árvore. Conferência anual dos esto- ques de um empreendimento comercial. Passei a manhã toda no trapézio, já qu’estou de férias. Papai está fazendo o balanço da venda e vai chegar mais tarde em casa.Balangandã Amuleto. Colar feito com miçangas.Balde Vaso com alça suspensa, próprio para a apanha de água na fonte

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ou em cisterna. Geralmente os baldes têm capacidade variando entre 10 e 20 litros.Balofo (a) Gordo. Fofo. Como aquele sujeito está balofo, gente. Vai ver que só come gordura. Bamba Competente. Capacitado... Pedro é bamba nesse serviço de pedreiro..Bambo Troncho. Defeituoso. Que balança (por estar mal aprumado) Esse banco tá bambo. Bote um calço nele.Banana mabaça* Má formação no cacho de bananas, quando aparece dois frutos presos um ao outro.Banana nanica* Banana de casca verde mesmo quando madura, muito doce, de dimensões maiores que as da prata. Banca Local de jogo. Pose. As bancas de cisplandim já foram instaladas na praça. Deixa de banca, rapaz. Tu não é de nada...Banco Espécie de assento rústico, disponível sobretudo nas casas da zona rural.Bangüê Espécie de estrado feito com cipós ou tábuas utilizado para o transporte de barro ou tijolos.Banguela Diz-se da pessoa que perdeu os dentes. Desdentado.Baque Pancada. Queda. Perda. Que baque foi esse aí, que eu ouvi daqui de fora? Carlinhos sofreu um grande baque no seu negócio, desde que mudou de ponto.. A morte da irmã foi um baque para ele.Banqueiro Que bota banca. Posudo. Metido a importante. Mas que sujeito mais banqueiro aquele.Baraúna Árvore de madeira escura e resistente. Pessoa forte e de muito vigor. Aquele menino bem merece o apelido de Baraúna. Veja como não cansa.Bardame* Corruptela de baldrame, apoio de madeira que cerca as varandas das casas de fazenda. Zé tá lá fora, encostado no bardame, olhando o pasto.Barra da saia A bainha da saia.Barrica Vaso de madeira com formato abaulado no centro, próprio para a guarda de cereais.Barril Tonel de madeira com capacidade de 20 litros, próprio para o transporte de água em lombo de jumento ou para a guarda de cachaça.Barrufo Corruptela de borrifo. Sopro de água pela boca.

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Maria barrufou a roupa antes de passar, pra estirar melhor. Bastardo(a) Diz-se do(a) filho(a) que não é legítimo(a). Filho(a) tido(a) fora do casamento. Sabia que Fulano é filho bastardo de seu Beltrano? Pois é, nasceu da vida amigada que seu Beltrano tem com Sicrana.Bastidor Armação dupla de madeira, que serve para fixar e estirar o tecido que será bordado. Geralmente tem forma circular.Batedeira Utensílio doméstico próprio para bater ovos, no preparo de bolos, gemadas etc, feito de arame de aço enrolado na forma de um cone e provido de cabo de madeira.Batente Esteio no qual a porta se apoia ao ser fechada. Trabalho diário. Bote um calço naquela porta, senão vai folgar o batente de tanto o vento dar. Ele parte cedo pro batente.Bater papo Conversar amigavelmente. Prosar. Fiquei até tarde no bar, batendo papo e ouvindo Zé Vermelho cantar.Bater pernas Andar sem destino. Passear. Saí cedo e bati pernas por aí.Bater um Jogar baralho.carteadoBatuque Samba praticado pelas comunidades negras. Canto usual nos candomblés. O batuque na cozinha sinhá num qué...Batuta Competente. Eficiente. Zequinha é um músico muito batuta.Beiju Petisco feito de farinha de mandioca (beiju mole e beiju seco). A merenda, hoje, vai ser os beijus que sua vó mandou.Beira Beiral. Beirada. Borda. Margem. Saliência junto à caída de águas e perpendicular à parede, para enobrecer a fachada da casa. Lá na beira da lagoa tem muito caranguejo. Ele mora em casa com beira, o que mostra as posses.Beldroega Erva rasteira utilizada como ração para porcos.Bem que eu avisei Tá vendo aí!? Eu não disse!? Você se deu mal porque quis. Bem que eu avisei. Bença Corruptela de abenção. Bença, dindinha!. Bença, papai!.Benza Deus Graças a Deus. A expressão é utilizada também como elogio. Benza Deus. Que criancinha linda você tem!Berrar Refere-se ao som emitido pelos bovinos, caprinos e ovinos. Gritar. Chorar alto.

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O boi berrou assim que ficou atolado no brejo. Esse menino berra a noite toda. Besta Presunçoso. Orgulhoso. Coisa fácil e abundante. Que sujeito mais besta. Parece que tem o rei na barriga!. Pedro ganha uma grana besta com aquele seu jeito de fazer de tudo um pouco.Besteira Coisa sem importância. Ato errado. Ele somente fala besteira. Esse menino anda fazendo muita besteira. Besuntado Sujo. Mal vestido. Mal pintado. Chico saiu pra rua todo besuntado. Que porta mais besuntada !Bibião* Pequeno candeeiro feito com frasco ou garrafa de vidro, geral- mente com alça de flandre, provido de pavio de algodão e alimentado por querosene. Fifó. O mesmo que bibiano.Biboca Pequeno e rudimentar ponto comercial na roça.Bica Calha de chapa zincada, colocada no beiral dos telhados para colher a água da chuva.Bicheira Ferida purulenta em animal de criação. Ferida que já está com bichos (morotós).Bico Chupeta. Palavra com teor depreciativo dirigida às pessoas tidas como de classe inferior. Essa menininha não já tá na idade de largar o bico? Vai ficar com a boca pontuda. Cale esse bico que ninguém lhe chamou na conversa.Bigorna Ferramenta de ferreiro, utilizada como apoio para malhar o ferro em brasa. Binga Tabaqueira feita de chifre de bovino. Sinônimo popular de pênis. Biqueira* Tubulação que serve para escoar a água que se acumula nas bicas. Parte do telhado que sobra na beira, a fim de permitir a instalação da bica.Birra Implicância. Teimosia. Aquela moça está sempre de birra comigo. Deixa de birra, menino, e vai estudar!Bisagra* Dobradiça.Bobe Apetrecho de uso feminino para acomodar os cabelos enrolando-os e prendendo-os com um misse.Bobo (a) Tolo (a). Sem preparo. Sem inteligência. Que menino mais bobo aquele.Boca da noite* De noitinha. Início do anoitecer. Pôr do sol. Na boca da noite eu passo na sua casa.Bocado Mão cheia de comida que se leva à boca. Muito.

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Tinha um bocado de gente na fila do posto esperando o doutor atender.Bocadinho Um pouco de alguma coisa. Me dê um bocadinho desse doce.Bocapio Espécie de sacola feita de palha de pindoba, usada para o trans- porte de mantimentos.Bodega Pequeno ponto comercial na área urbana, basicamente para vender bebidas e similares. Chico passa horas e horas bebendo naquela bodega da esquina.Bofes Pulmões. Ele está tuberculoso. Os bofes já não dão conta do recado.Boi-do-coice* Um dos dois bois que compõem a primeira parelha (canga) do carro-de-bois e que ficam instalados rente ao estrado do carro. Boi mais forte. Aquele cara parece um boi-do-coice: é lento mas é forte.Boi inteiro Boi que ainda não foi castrado. O oposto de boi capado.Bola, comer Receber propina para facilitar algo irregular. Aquele picareta vive comendo bola dos grandões aí...Bola, dar Olhar. Dar atenção. Flertar. Maria não me dá bola, mas sei que gosta de mim...Bola, pagar Dar propina em troca de facilidades. Chico vive pagando bola para não ser multado...Bolacha fofa Bolacha com textura macia e muito absorvente.Boléia Cabine de caminhão. Arranjei uma carona na boléia do caminhão de Inácio, pra ir à Bahia amanhã.Bolo Castigo aplicado nas mãos, utilizando-se de uma palmatória ou um chinelo. Ele levou meia dúzia de bolos porque errou a tabuada.Bolodório Conversa fiada. Conversa mole. Deixa de bolodório, menina. Vai procurar o que fazer.Bolor Mofo. O pão tá com bolor. Dê ele pras galinhas. Borocoxô Fraco. Sem coragem. Sem animação. Que festa mais borocoxô !! Ele está assim borocoxô, porque tem febre.Bosta Sinônimo popular de fezes. Pessoa sem valor. Vá se lavar, menino. Tá fedendo a bosta. Aquele cara é um bosta!Botar Pôr ovos. Colocar algo em algum lugar. Essa franga já tá botando. Outro dia era uma pintinha.

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A galinha pedrês somente botou dois ovos até agora. Bote isso aí, menina, e venha cá !Botar banca Bancar. Fazer pose. Mostrar importância. Pechincha botou banca de cisplandim durante a Festa da Padroeira. João foi pra festa e botou banca o tempo todo; não dançou com ninguém.Botar de castigo Punir. Castigar. Se você não tirar nota boa, vou lhe botar de castigo todo o domingo.Botar de molho Colocar a carne no tempero, para pegar gosto. Pôr o alimento em líquido, a fim de amolecer.Botar gosto ruim Dificultar. Atrapalhar. Criar dificuldades. Minha mãe tá botando gosto ruim no meu namoro. Não sei o que fazer.Botar os bofes Arfar. Estar muito cansado. pela boca Corri tanto, que estou botando os bofes pela boca.Braça Medida de comprimento equivalente a dez palmos (2,2 m). Corte e limpe uma vara com duas braças e meia pra dar ao carreiro, que a dele se quebrou. Braguilha Abertura vertical nas vestimentas masculinas, situada desde o cós até o final dianteiro, provido de botões ou fecho-écler.Brecha Greta. Fenda. Joaninha gosta de espiar a rua pela brecha da janela.Breado* Sujo; emporcalhado; mal lavado. Você tá todo breado, menino. Tava brincando na lama?Bredo Erva de folhas tenras usada como verdura em cozinhados.Brega Sinônimo popular de prostíbulo. Ele encheu a cara e foi pro brega.Brejo Área pantanosa ou cheia de lama, com cobertura de capim alto. Atoleiro. José foi ver se tira a vaca que caiu no brejo e ficou atolada.Brida Arreio próprio para colocar-se na cabeça do animal de montaria, munido de embocadura metálica, a fim de permitir a sua condução e controle. Rédea. Briguento Pessoa que gosta de brigar. Aquele menino é muito briguento. Não vai ser grande coisa.Brocado Furado. Apodrecido. Oco. Aquela tábua tá toda brocada.Brocha Prego de pequeno tamanho, com três faces. Tacha. Broche Adereço feminino provido de presilha para fixar na blusa.Broco Amalucado. Abobalhado. Diz-se das pessoas idosas que apre- sentam as dificuldades próprias da velhice.

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Ele já tá broco. Não sabe mais o que faz.Broto Rebento. Planta nova e frágil.Brotoejas Pequenas pústulas da pele, que apresentam coceira. Essa menina tá cheia de brotoejas. É bom passar um pouco de goma, pra não coçar.Broxa Pincel largo para caiação de paredes. Impotente. Dizem que Fulano tá broxa desde aquela queda do cavalo.Bruaca Mulher velha rabugenta. Bruxa.Bucha Objeto de má qualidade. Fruta da planta rasteira do mesmo nome, cuja entrecasca serve como esponja para lavar pratos. Isso é uma bucha. Não serve para nada.Buço Leve penugem sobre o lábio superior de homens jovens e de algumas mulheres.Bueiro Sinônimo de chaminé, de uso nos fogões a lenha. Na região não se usava essa palavra para indicar o escoamento de águas. Esse era sempre chamado de esgoto.Bufa O ato de soltar gases. Peido. Aquele cara fica bufando o tempo todo...Bugigangas Quinquilharias. Coisas sem muito valor. Ela guarda uma mala cheia de bugigangas.Buliçoso Teimoso. Impertinente. Metido. Se crescer buliçoso assim, vai terminar se dando mal.Bulir Mexer em. Mexer com. Provocar. Ele buliu comigo, por isso apanhou. Não bula nisso, menino; deixe de ser teimoso.Busca-pé Fogo de artifício na forma de canudo, com pequena bomba que explode ao final da queima.Buscar Procurar. Apanhar. Eu busquei ele por todos os cantos, mas não encontrei de jeito nenhum. Vou buscar a bola pr’a gente jogar.

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Caatinga Região seca, com a presença apenas de arbustos e de vegetação resistente à estiagem.Cabaça Vaso feito com a casca seca e oca da fruta da cabaceira, utilizada para conduzir água.Cabaço Sinônimo chulo de hímen. Cabeça Rês. A unidade dentro de um rebanho de bovinos. Zidorinho tem um rebanho com não sei quantas cabeças de bom

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gado de leite.Cabeça-de-prego Pequeno abcesso. Furúnculo.Cabresto Arreio próprio para reter o animal de montaria ou carga, mas não indicado para a condução do mesmo. Nervura que mantém a glande dos meninos encoberta.Cabresto quebrado*Diz-se do rapazinho que realiza relações sexuais pela primeira vez, perdendo a virgindade.Caçapa Sacos existentes na mesa de sinuca para aparar as bolas vencidas. Saco que se prende na ponta de uma vara para apanhar insetos. Caçar* Buscar alguma coisa que não se sabe onde está. Antônia, cace o moedor até achar. Não mandei deixar à toa.Cacarecos Trecos. Troços. Tralha. Coisas sem valor. Jogue esses cacarecos fora, pra poder arrumar a casa.Cacarejar Refere-se ao canto das galinhas. Imitar uma galinha. Ficou ali, a cacarejar como se tivesse botado um ovo.Cacete Barra de madeira utilizada como arma ou como apoio. Sinônimo chulo de pênis.Cacetinho* Pão de sal, pequeno. Vá lá na padaria de Zinho e peça cinco pães cacetinhos. De hoje, heim ...Cachaço O mesmo que nuca; toitiço.Cacho Conjunto de frutas (geralmente bananas, cocos) agrupadas no mesmo apoio. Amante do sexo feminino. Beltrana é cacho de Sicrano.Cachorro doido* Cão raivoso.Caco Pedaço de louça, vidro ou cerâmica. Arrasado. Enfraquecido. A terrina caiu e foi caco pra todo lado. Fiquei um caco, depois que recebi a notícia.Caçoar Zombar. Fazer pouco. Mamãe, Chiquinho tá caçoando de mim...Caçoleta, Bater a Morrer. Ir-se desta para melhor. Teco bateu a caçoleta, após um longo sofrimento.Caçuá Grande cesto feito de cipós entrelaçados, utilizado para o trans- porte de frutas e objetos por animais de carga providos de cangalhas.Cadinho Vaso refratário ao calor utilizado por ferreiros e ourives para derreter metais.Caducar Enternecer-se com as crianças. Aquela mãe vive caducando com a filha pequena.Caduco (a) Pessoa idosa sem domínio dos sentidos.Cagar Defecar. Fazer cocô.(Apesar do termo ser considerado, hoje,

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escatológico, era largamente usado por todos, independente do ambiente ou do meio social). Vá cagar, menino, senão vai ficar com o bucho crescido.Caibro Peça longa de madeira lisa utilizada nos telhados como apoio das ripas que sustentam as telhas.Caiçara* Arbusto de folhas crespas, muito usadas como bucha para lavar pratos, por não deixar odor nem manchas. Maria, vá catar umas folhas de caiçara, pois as de casa já acabaram. Caída d’água Parte do telhado que ultrapassa a parede frontal das casas. Biqueira.Caititu Porco bravo que vive no mato. Peça acoplada por corda ao rodete, provida de serrilhas de aço, utilizada para ralar as raízes de mandioca.Caixeiro Balconista. Empregado de loja ou venda. Manoelzinho contava que foi caixeiro em Jequié nos tempos de rapaz. Calango Pequeno réptil parecido com a lagartixa, de cor esverdeada.Calçola Peça do vestuário íntimo feminino. Calcinha. Moça decente não usa calçola de cor.Calhamaço Forma errônea de se nomear canhamaço, tecido grosseiro feito com fibras de cânhamo. Livro volumoso e antigo.Califon Sinônimo de sutiã.Caloteiro Aquele que dá calote. Aquele que não paga o que deve. Fulano é um caloteiro de marca maior.Calundu Cara feia. Mau humor. Amuo. Papai hoje acordou com calundu. Não dá nem pra chegar perto.Calunga Rato de pequeno porte, comum nas casas-de-fazenda.Cajuí* Fruto pequeno, típico da região, da mesma família dos cajus, porém sempre de coloração amarela quando maduro. A casta- nha do cajuí é, também, de pequeno tamanho.Cambalacho Tramóia. Mutreta. Treta. É raro o político de hoje que não apronta uns cambalachos depois de eleito.Camisola Espécie de vestido longo e folgado, feito em tecido leve, usado pelo sexo feminino para dormir.Campado* Marcado. Ferrado. Você tá campado comigo, seu corno.Cancela Porteira de curral ou pasto. Porteira que une duas fazendas.Canga Peça de madeira utilizada para manter juntos os bois que for- mam as parelhas no carro-de-bois. Junção de madeira para dois animais (bois ou cavalos), para puxar o arado. Parelha.Cangalha Sela feita de madeira e palha, utilizada em jegues e burros para

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o transporte de mercadorias, objetos pesados e para a montaria rústica.Cangambá Sinônimo regional de gambá, animal silvestre que, ao ser ata- cado, exala um forte e desagradável odor.Cangote Sinônimo popular de nuca. Corte o cabelo de forma que o cangote fique livre.Canhamaço Tecido grosseiro feito com fibras de cânhamo.Canjica Papa feita de milho ralado, na forma de mingau.Cansanção Arbusto provido de folhas ásperas, que provocam intenso ardor e coceira quando tocadas.Canto Ângulo formado por duas paredes ou pelas paredes e o piso. Coloque suas coisas naquele canto, pra não ficar no caminho da gente.Cão Sinônimo sertanejo de diabo. Ele parece o cão, de tão ruim que é...Cão vadio Cão sem dono. Cachorro que vive pelas ruas. Capacho Tapete grosseiro e rústico, feito de palha ou sisal, utilizado para a limpeza dos calçados na entrada das casas. Pessoa servil e submissa. Fulano é um verdadeiro capacho de Sicrano.Capado Capão. Animal (geralmente de criação) que foi castrado.Capar o gato Cair fora. Sair às pressas. No meio daquela confusão, tratei de capar o gato, antes que sobrasse pra mim.Capeta Sinônimo popular de diabo. Traquinas. Travesso. Somente o capeta agüenta essa situação. Mas que menino mais capeta.Capoeira Mata nova e rala, nascida em terra antes submetida a queimada. Grupo de galinhas. Aquela capoeira nascida ali embaixo tá cheia de boa caça. Pelo visto, nesta capoeira tá faltando galo. Não se vê um pinto nem pra remédio.Caqueiro* Vaso para planta. Vaso já com planta.Carbureto Composto químico do carbono, utilizado como combustível de lampiões.Cardeal Galo-de-Campina. Ave comum nas terras iraraenses, escolhida para gaiola por seu belo canto.Carnegão O mesmo que carnicão, a parte central cheia de pus nos furún- culos.Carniça Restos de animal morto. Esse cachorro tá fedendo. Parece que andou comendo carniça

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feito urubu.Caroá Fibra grosseira utilizada para a confecção de sacos e cordas.Carocha Besouro pequeno e colorido, que deixa mau cheiro nos dedos quando apanhado. Escaravelho.Carola Diz-se de pessoa que é muito apegada à religião. Freqüentador assíduo de igreja.Carpina Sinônimo regional de carpinteiro. Mestre Cassimiro é um carpina de mão cheia.Carpinteiro Artesão que trabalha com a madeira bruta, aparando-a e trans formando-a em tábuas e barrotes, além de confeccionar uten- sílios rústicos com tais peças trabalhadas, a exemplo de cancelas, balcões e prateleiras.Carrapeta Brinquedo feito de madeira, à semelhança de um pião.Carrapicho Arbusto silvestre cuja flor é dotada de espinhos que se pren- dem à roupa de quem passa tocando-os.Carreiro Condutor de carro-de-bois.Casa de morada Diz-se de casa para fins residenciais, com o intuito de diferen- ciá-la das casas para negócio ou depósito. Pedro comprou uma casa de morada na Rua.Casamento Chuva fina com a presença do sol. da raposa Hoje tem casamento da raposa. Veja que chuvinha fina com o sol brilhando.Casco A parte inferior da pata do cavalo ou do boi. A parte externa que envolve o fruto do coqueiro. Cascudo Besouro pequeno. Castigo aplicado às crianças, batendo-se as juntas dos dedos da mão sobre as laterais da cabeça. Se você não ficar quieto, vou-lhe dar uns cascudos.Casquinha Avarento. Pão-duro. Aquele homem é muito casquinha. Apesar do que tem, não compra nem um sapato pros filhos.Cataplasma Curativo feito com ervas enroladas em tecido, para extrair o pus dos ferimentos.Catar Apanhar um a um (piolho, lenha, planta, fruta etc). Cate tudo, ponha no cesto e deixe na despensa.Catatau Coisa volumosa. Muita coisa. Homem muito alto e magro. Tenho um catatau de coisas para fazer... Virgem, como esse menino cresceu. Está um catatau!Catimbó* Feitiço. Maria parece que está com catimbó .Catinga Sovaqueira. Cecê. Mau cheiro nas axilas. Mau cheiro oriundo de corpo suado.

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Vá tomar um banho pra tirar essa catinga.Catingueiro (a) Habitante da caatinga. Roçeiro. Homem (ou mulher) rústico (a). Cativar Fazer-se amado (a). Tornar-se o preferido (a). Chiquinha cativou o avô.Catucar Corruptela de cutucar. Mexer. Futucar. Bulir. Vai pra casa, menino. Deixa de tá catucando as coisas dos outros.Cavaco Pedaço de madeira lascada.Cavador* Ferramenta rural utilizada para fazer buracos na terra, a fim de fixar-se as estacas de uma cerca.Cavalo-do-cão* Nome regional dado à libélula.Cavanhaque Espécie de barbicha no queixo, formando uma ponta para baixo. Caveira Ossada da cabeça de qualquer animal. Desgraça. Ele me paga... Vou fazer a caveira dele com o patrãoCavilha Peça de madeira em forma de calço, usada pelos marceneiros para ajustar duas partes encaixadas. Cecê Catinga. Sovaqueira. Mau cheiro nas axilas.Cedinho Muito cedo. Antes do sol nascer. Amanhã vou sair cedinho pra caçar.Cego Assim se intitula a criança que, na brincadeira de cabra-cega, está com os olhos vendados. Vamos sortear no pauzinho, pra ver quem sai de “cego”.Ceroulas Antigo modelo de cuecas, que cobre o corpo desde o umbigo até abaixo das virilhas, sendo provida de bragilha sem botões ou fecho-écler. Cerrar Fechar e trancar as portas.Céu encoberto O mesmo que diafechado. Condições em que há acúmulo de nuvens escurecendo o céu e indicando possibilidades de chuva. Com esse céu encoberto, vai ter toró já, já.Chambre Espécie de roupão normalmente utilizado por pessoas idosas, quando se encontram adoentadas.Chapa Dentadura postiça. Placa de ferro fundido fixada na parte superior dos fogões a lenha, possuindo duas ou mais trempes para a colocação das panelas. No Abrigo de Amando tem um dentista prático que sabe fazer chapa. Limpe a chapa do fogão, que tá toda suja de banha.Chateação Aborrecimento. Aporrinhação. Amolação. Me causa uma grande chateação esse seu namoro. Chato Enganjento. Enjoado. Diz-se de pessoa incômoda. Piolho que infesta os pelos pubianos. Que sujeito chato, aquele alí. Vive amolando os outros.

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Pequei chato. Vou ter que comprar Neocid.Chegar-se Aproximar-se. Buscar intimidade. O que é que aquele rapaz queria, se chegando assim ?!Chiada Barulho. Algazarra.Reclamação. Deixa de chiada, pessoal. Assim ninguém consegue estudar. Vamos parar com essa chiada. Quem não estiver satisfeito que saia.Chibata Taca. Instrumento para açoitar os animais de montaria. Instru- mento para aplicar castigos físicos. Ou você se aqueta ou vai cair na chibata.Chicote Rebenque feito de couro curtido, usado para estimular a montaria. Chinelo Calçado sem salto, feito com sola curtida. Chiqueiro Cercado para prender os porcos. Lugar muito sujo Vá botar comida pros porcos, lá no chiqueiro. A casa de Fulana mais parece um chiqueiro!Chocalho Espécie de sineta que se atrela ao pescoço de animais, a fim de saber-se onde se encontram. Pequeno sino rústico.Chocar Ato das aves para fazer germinar os ovos, agachando-se sobre eles. Chocar-se Abalar-se. Assustar-se. João ficou bastante chocado com a morte da mulher. Choca Diz-se da ave que está a chocar ovos. Chata, nervosa, abusada. Você tá parecendo galinha choca, com essa birra.Chocho Sem graça. Sem gosto. Um pirão chocho, foi tudo que comi.Choradeira Lamentação. Deixe de choradeira, menina. Não vê que, no final, vai dar tudo certo?!Chupa-chupa* Sinônimo regional de sanguessuga.Chuveiro* Fogo de artifício em forma de canudo, muito utilizado nas noites de São João.Chuvinha* Fogo de artifício em forma de canudo, menor que o chuveiro e maior que a estrelinha.Cilha Tira de couro curtido, utilizada para fixar a sela na montaria.Cimento armado Estrutura em cimento e ferro, utilizada na construção de pavi- mentos, postes, colunas etc.Cinta Aro de aço utilizado para arrochar as costelas dos barris, barri- cas, tonéis, pipas e dornas.Ciscador Ferramenta agrária, própria para recolher as folhas secas caídas ao chão. Ancinho.Ciscar Ato praticado pelas aves, ao catar insetos no chão. Juntar as

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folhas, gravetos etc. João, cisque o quintal antes de varrer.Cisco Sujeira miúda pelo chão ou levantada pelo vento. Tem muito cisco lá no quintal. Deu uma ventania e caiu um cisco no meu olho.Cisma Dúvida. Desconfiança. Incerteza. Se minha cisma não falhar ,esse namoro não vai longe.Cisplandim Jogo de azar, constituído de uma tabela numerada e de uma cumbuca com dois ou mais dados.Cisterna Fonte profunda, de onde se extrai água mediante a descida de um balde preso a uma corda acionada por molinete.Coalhada Calda resultante da precipitação e coalho do leite gordo e cru, rica em proteínas e gorduras. Kefir. Iogurte.Cobrinha* Fogo de artifício semelhante a um traque, mas que serpenteia pelo chão em vez de estalar.Cochichar Falar baixo. Falar ao mesmo tempo que outrem. O que é que vocês tanto cochicham, que nem escutam o que digo?Cocó Coque. Cabelo enrodilhado para trás e preso com grandes misses. Pra sair hoje a noite, vou fazer um cocó em seus cabelos.Cocô Fezes. Merda. Bosta. Mamãe, o nenê fez cocô.Cocorote Pancada no alto da cabeça, dada com as juntas dos dedos da mão. Cocota Menina-moça vaidosa e cheia de trejeitos.Cochilo Sono leve e ligeiro. Madorna. Soneca. Essa noite mal tirei um cochilo, preocupado com a doença de Maria. Cocho Vaso de madeira de médio porte utilizado no preparo da farinha de mandioca. Vaso pequeno de madeira, utilizado para dar comida aos porcos.Cocuruto Alto da cabeça. Coice Patada aplicada por cavalos, jumentos, burros e similares, uti- lizando-se das patas traseiras. Levei um coice tão forte daquele burro que fiquei entrevado.Coivara Restos de mato amontoados, para serem queimados antes do preparo da terra para o plantio da lavoura. O que resta dos matos após a queimada.Coleiro Pássaro típico do cerrado, mais conhecido como papa-arroz, escolhido para gaiola por seu canto agudo.Colhuda* Mentira. Invenção contada para se vangloriar. Deixa de contar colhuda, homem.Colocar remendo O mesmo que fazer remendo. Remendar. Consertar rasgão em

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roupa, cobrindo-o com um pedaço de tecido, nem sempre semelhante ao da roupa. Cômoda Móvel doméstico composto de várias gavetas de grande porte, utilizado para aguarda de roupas e outros objetos pessoais.Como quê Muito. Bastante. Ele trabalhou como quê o dia todo. Tá mortinho.Consumição Agonia. Preocupação. Apreensão. Essa espera tá me dando uma consumição danada.Contar Esperar apoio ou ajuda. Eu contava com ele pra fazer o negócio.Conto Cédula da República Velha que circulou até meados dos anos 50, no valor de um milhão de réis. Na época, as fortunas eram avaliadas em contos de réis. Dizem que Pedro deixou uma herança de cem contos de réis para a família, mas que os herdeiros já queimaram a metade.Conversa fiada Papo furado. Conversa mole. Conversa pra boi dormir. Promessa exagerada feita com a intenção de não cumpri-la. Vamos deixar de conversa fiada, que não sou bobo pra crer nisso.Conversa vai, De prosa em prosa... Falando, falando...conversa vem Encontrei Gilson na Rua. Conversa vai, conversa vem, fiquei sa- bendo qu’ele vai estudar em Feira.Convusca (tosse) Corruptela da palavra convulsa. Tosse convulsa.Coque Cocó. Cabelos enrodilhados para trás e presos com grandes misses.Corda* Sinônimo regional de varal.Coroca Pessoa idosa que se torna chata ou implicante. Que sujeito mais coroca, aquele velho!!Corno Marido traído pela esposa. Palavra muito utilizada como xin- gamento, mesmo que a pessoa xingada não seja traída.Corre-corre Tumulto. Pressa. Confusão. Na saída do cinema, por causa da chuva foi um corre-corre danado. Correria Pressa. Carreira. Azáfama. Deixem de correria, meninos. Pra quê essa agonia toda!?.Cós Parte reforçada das calças na altura da cintura, onde se situam as passadeiras para uso do cinto.Costurar pra fora Diz-se da mulher casada que está traindo o marido. Cumadre, eu soube que aquela fulana tá costurando pra fora e o marido nem desconfia.Corte* Canal feito em áreas elevadas de um terreno, a fim de permitir o assentamento de dormentes e trilhos ou a passagem de estrada de rodagem.

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Cova Buraco para enterrar animal morto. Buraco para colocar estaca ou plantar algo. Sepultura.Coxear Mancar. Manquejar. Andar puxando de uma das pernas. Coxo Pessoa a quem falta uma perna ou pé. Pessoa que anda puxando de uma das pernas.Coxonilho* Pequeno tapete de tecido (geralmente feito com cordões), utili- zado para forrar a sela. Cozinhado O mesmo que cozido. Panelada composta basicamente de ver- duras e legumes, contendo miúdos de boi ou porco.Cristaleira Móvel requintado, geralmente disposto nas salas de jantar, que serve para guardar a louça e os cristais.Croché Renda feita à mão, utilizando-se de um par de agulhas longas e linha apropriada. Cruzado Moeda da época do Império, mas que circulou até meados dos anos 50. Havia as de um cruzado (quatrocentos réis) e as de dois cruzados (oitocentos réis).Cuia Vaso pequeno feito de cabaça ou de madeira leve e macia, uti- lizada para apanhar água ou cereais.C’um, C’uma Corruptelas de Com um, Com uma. C’uma casa dessa, eu também fazia festa, ora... Cumadre Corruptela de comadre. Cumadre Bela chega amanhã pra ver a afilhada.Cumbuca Vaso feito de cabaça, geralmente usado para transportar água ou cereais. Pequeno vaso utilizado no jogo de dados.Cumeeira Parte mais alta do telhado, servindo de junção para as duas des- cidas d’água.Cupim Saliência em forma de corcova que marca touro.Cunfundós* Fim do mundo. Lugar perdido. Faça o serviço direito, senão te mando pr’os cunfundós do Judas.... Pedro mora num lugar tão esquisito que mais parece os cunfundós. (A palavra é sempre usada no plural)Cunha Calço de madeira, para evitar que a porta ou a janela bata pela ação do vento.Curral Cercado de pau-a-pique que tem por objetivo abrigar os grandes animais de criação. Vá lá no curral e traga o cavalo malhado. Cuidado que ele dá coice.Curtume Salgadeira. Local onde se efetua o curtimento dos couros crus.Cuspe Saliva. Cuspo.Custar uma Ser muito caro. fortuna A operação de Juca vai custar uma fortuna ao pai dele.Cutucar Mexer em alguém utilizando-se das pontas dos dedos ou de

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algum objeto pontiagudo. Não se cutuca onça com vara curta.

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Dado (a) Diz-se de pessoa que se relaciona bem com outras. Ela é muito dada. Todo mundo gosta de seu jeito. Danada* Grande. Intensa. Tô com uma dor de cabeça muito da danada.Danado (a)* Teimoso. Arguto. Inteligente. Ô menino danado, esse Francisco!! Dar banca Dar aulas particulares de reforço escolar. Profa. Aurelina dá banca nos dias de sábado.Dar (passar) Não pagar o que deve. Não cumprir com os compromissos. calote Não venda fiado a Beltrano. Ele costuma dar ( passar) calote em todo mundo.Dar chabu Sair pela culatra. Diz-se do tiro que recua, atingindo o atirador. Diz-se de fogo de artifício que explode antes da hora. Diz-se do fato de alguém deixar de cumprir um compromisso. Soltei um foguete para anunciar a chegada do nenê, mas ele deu chabu. Tive que soltar outro. Fulano deu chabu. Todo mundo ficou bravo com ele.Dar corda Instigar. Apoiar. Provocar. Vou dar corda àquele sujeito pra ver se ele me conta a verdade.Dar o dia Obrigação que tinha o morador da roça para com o dono da fazenda, de trabalhar para esse um ou mais dias por semana, sem pagamento.Dar o troco Descontar. Devolver na mesma moeda. Diz-se quando fazemos com outrem algo de mal, como vingança pelo que nos foi feito Dei o troco àquele sacrista, pelo prejuízo que ele me causou.Dar ousadia O mesmo que dartrela. Permitir. Dar liberdade. Não dê ousadia a esse rapaz, que ele não presta pra você.Dar-se mal Sair-se em desvantagem. Sair perdendo. Arranjar encrenca. Vai dar-se mal, com essa mania de meter-se na conversa dos outros. Dar trela Dar confiança. Dar atenção. Dar ousadia. Acho que você tá dando muita trela a esse seu amiguinho. Já, já ele vai entrar aqui como se fosse a casa dele.Dar uma topada Dar um encontrão. Bater-se em algo. Topar em. Dei uma topada no batente da porta e quase quebrei a cara no chão. Dar uma volta Sair para passear. Vou dar uma volta por aí, pra ver se esqueço o que aconteceu.

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Dar um jeito Consertar. Machucar uma parte do corpo. Já dei jeito naquela porta rachada. Dei um jeito nessa mão, que tá é doendo.Debaixo da barra Diz-se dos filhos que são mantidos dentro de casa, sob o con- -da- saia da mãe trole da mãe. Aquela menina vive debaixo da barra-da-saia da mãe. Ninguém a vê na porta de casa.Debulhar Tirar o milho do sabugo ou o feijão da vagem.Debuxar Fazer debuxos.Debuxo Desenho prévio do que se pretende bordar ou costurar.De cor Memorizado. Decorado. Guardado na memória. De memória. A taboada, eu sei toda de cor.Dedal Utensílio usado para proteger os dedos ao costurar-se algo. Pequena medida de volume. De tanto usar o dedal, aquela moça ficou com a ponta do dedo fina. Bote aí um dedal de sal.De dia Durante o dia. Deixe pra fazer isso amanhã de dia.De hoje a oito Dentro de uma semana. De hoje a oito vou a Feira de Santana.De hoje a quinze Dentro de quinze dias. De hoje a quinze vou fazer prova final.Deixar à mão Deixar algo em lugar fácil ou visível. Deixei o livro à mão, pra quando voltar me lembrar de lê-lo.De jeito Bem feito. Ajustado. Correto. Isso é que é um trabalho de jeito, gente ...De junto Vizinho. Próximo. De junto da farmácia tá o bar.De manhãzinha* Ao amanhecer. Acordei bem de manhãzinha...De mão cheia De primeira. Competente. O melhor. Zé Freitas é um artista de mão cheia. Faz cada peça que parece arte. De marca maior O maior. Useiro e vezeiro. Aquele sujeito é um enrolão de marca maior. Sempre promete o que não vai cumprir.De metal Diz-se de qualquer objeto que seja feito de metal branco (alu- mínio, estanho etc), desde que não seja a prata. Esse anel tá barato pra ser de prata. Acho que ele é de metal.De noite Durante a noite. Hoje de noite vou até a casa de Zé Dias.De noitinha* Ao entardecer. Na boca-da-noite.

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De noitinha eu passo lá, pra gente sair juntos.De primeira. De boa qualidade. Muito Bom. Excelente. João é um amigo de primeira.De repente Inesperadamente. O céu estava azul, azul. De repente caiu aquele toró.De riba De cima. Por cima. Em cima. Tire essa caixa de riba da outra.De tardinha Ao entardecer. De tardinha o sol se abaixa e o calor melhora.Desasnado Sabido. Preparado. Aquele menino ficou desasnado depois que foi pra Bahia.Desasnar Aprender. Sair da ignorância (deixar de ser asno).Descarado(a) Sem vergonha. Sem pudor. Brincalhão. Mas você é muito descarado. Fica aí contando essas coisas pras meninas...Desdobrada* Cachaça enfraquecida pela adição de água fervida. Isso é desdobrada. De “Dois Leões” não tem nada. Desengalhar Retirar os galhos. Desembaraçar. O caminho da Picada estava quase fechado, depois do toró que der- rubou muito pau. Tive que desengalhar para poder passar com o carro-de-bois.Despejando gente Cheio de gente até não caber mais. O mercado, hoje, tá despejando gente pelas portas.Despenar* Corruptela de depenar .Retirar as penas de ave abatida. Desco- brir. Despenei a galinha enquanto mamãe arrumava os temperos. Despenei o sujeito, botando todos os seus podres para fora.Despongar Descer da marinete ou do caminhão. Desponguei no ponto da praça.De tarde Durante a tarde. Acho que o enterro só vai sair de tarde.De tardezinha Ao entardecer. De tardezinha pode ser que chova, armado como está.Deu no que deu... O resultado foi esse. Por isso aconteceu. - O que foi que houve? - Brigaram até não agüentar mais. - Mas, por quê? - Começaram se xingando, e deu no que deu.De vez Diz-se de fruta que está no ponto de ser colhida. Essas bananas tão de vez. Leve para casa e enrole, para terminar de amadurecer.

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Dez réis* Coisa de pouco valor. Isso não vale nem dez réis.Diacho Diabo. Coisa ruim ou malévola. Que diacho de estória é essa que você tá contando?Dia fechado* O mesmo que céuencoberto. Dia em que há possibilidades de chuva, devido à aglomeração de nuvens. Hoje o dia amanheceu fechado. Vai chover lá pras nove horas.Dindinha Forma carinhosa de chamar-se a madrinha. Bença, dindinha...Dinheiro jogado Compra malfeita. Compra inútil. fora Essa calça foi dinheiro jogado fora. Ficou apertada em mim.Dinheiro miúdo Dinheiro trocado em cédulas ou moedas de pequeno valor, próprio para o troco. Preciso arranjar dinheiro miúdo pra feira amanhã.Doca Cego de um olho. Zarolho. Ele ficou doca depois que levou aquele tiro.“Dois Leões” Aguardente fabricada no Alambique ”Dois Leões”, tão popular que passou a ser sinônimo de cachaça. Me dá uma “dois leões” aí, daquela de Feira.Donzelo Rapaz que ainda é virgem. Tu vai morrer donzelo, se continuar assim...Dordolho Corruptela de dor-dos-olhos. Conjuntivite.Dorna Barrica de grandes dimensões, para a guarda de bebidas a granel. Dor nos quartos Dor nos quadris. Dor de quarto. Amanheci hoje com uma dor danada nos quartos. Será que chá de quebra-pedra é bom pra isso!?

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É batata... É garantido. É bom. É certo. É seguro. Esse cara é batata. Sempre chega na hora. Isso que ele contou é batata. Pode acreditar.É de hoje... Há muito tempo. Faz tempo. É de hoje que ele saiu. Já deve tá chegando lá.Eira Propriedade rural ou urbana sem construção. Título de posse de terra.Eira e beira Diz-se de alguém que tem origem nobre ou importante. Aquele ali tem eira e beira. O pai foi coronel, daqueles....Embalar Ninar. Acalentar. Pôr para dormir. Embale ele que o sono já tá vindo.Embicar Dirigir-se. Tomar a direção de...

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Ele desceu a rua e embicou por aquela esquina.Embromação Enrolação. Tapeação. Embuste. Isso tudo que esses políticos dizem é uma embromação pra enganar os bestas.Embrulhar Fazer embrulho. Enrolar. Embalar. Tapear. Vou embrulhar sua compra com papel de presente, pra ficar mais bonito. Ele me embrulhou com aquele palavreado de doutor.Emburacar* Entrar pelo buraco. Passar por baixo da cerca. Emburaque ali e apanhe aquela manga. Vá logo... Hoje, no circo, vamos emburacar sem pagar.Empinar Fazer subir( papagaio). Erguer. Saltar bruscamente (a montaria). Mal peguei nas rédeas, o cavalo empinou, quase me derrubando.É natural* É normal. Está certo. É natural que ele se zangue quando falam mal de seu pai. Encaixe Torneado feito em peça de madeira, com a finalidade de fixá-la noutra peça provida de rebaixo. As duas peças assim conju- gadas são ajustadas mediante a aplicação de uma cavilha. Esse procedimento é comum aos marceneiros mais experientes. Zé Freitas não usa prego nem parafuso. É tudo no encaixe, na cavi- lha e no rebaixo.Encardido Sujo. Manchado. Mal lavado. Essa roupa nem parece que viu água. Tá toda encardida.Encher a burra Encher o cofre. Ganhar muito dinheiro. Vou encher a burra se esse negócio der certo.Encomenda Coisa que se solicita que alguém traga de algum lugar. Aquilo que se pediu. Titia, a encomenda que a senhora pediu ao Manoel chegou e está na sua cama. João, não trouxe sua encomenda porque não tive tempo de procurar. Encomendar Solicitar algo. Fazer pedido antecipado de algo. Fui lá na venda de Tuca e encomendei pra sábado duas latas de goiabada.Encosto Apoio. Ponto de apoio. Entidade espírita que protege os vivos. Esse balcão é o encosto para os sacos de farinha ainda não costurados. Aquele moço parece que tem um encosto protegendo-o do mal.Encrenca Confusão. Briga. Se faltar luz hoje, vai ter encrenca no cinema.Enfonar Faltar com o acertado. Ele marcou comigo mas enfonou. Fiquei lá esperando e nada...Enganchar Colocar no gancho. Prender no gancho Parar. Quebrar. Com-

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plicar. Ficar difícil. Enganche essa rede alí. O carro-de-bois enganchou na ladeira da Picada. Parece que quebrou o eixo. A situação enganchou. Soube que vai haver três candidatos a prefeito. Os chefões não sabem como resolver o rolo.Enganação Embromação. Enrolada. Tapeação. Isso que você tá dizendo é uma enganação pra besta ouvir.Enganjento Chato. Enjoado. Deixa de ser enganjento, menino. Fica aí com essa cara de choro.Enguiço Mau olhado. Quebra de alguma coisa. O que é isso? – É enguiço. O carro deu um enguiço na subida da ladeira.Enjoado Enganjento. Chato. Antipático. Diz-se de alguém que está com problemas de enjôo. Mas como você tá enjoado hoje. Não tem quem suporte. Fiquei enjoado com aquele doce que comi.Enlameado(a) Sujo (a) de lama. Breado (a). Caí na estrada e fiquei todo enlameado.Enrodilhada (o) Na forma de rodilha. Com rodilha na cabeça. Enrolada Tapeação. Enganação. Embromação. (Usa-se, com tais signi- ficados, sempre no feminino). Aquele rapaz tá de enrolada com essa conversa de emprego em Feira. Enrolado (a) Confuso. Complicado. Envolvido em algo errado. Ô sujeito mais enrolado. Não se entende o que ele fala. Acho que Zefa tá enrolada com alguma coisa. Anda tão retraída...Enrolão Mentiroso. Falso. Tapeador. Treteiro. Aquele sujeito é um enrolão. Não dá pra acreditar no que ele fala.Enrolar Embrulhar. Empacotar. Tapear. Enganar. Enrole aí dois pães cacetinhos. Se você me enrolar, ficamos de mal.Enrustido (a) Fechado. Introvertido. Encaixado. Aquele ali é um pederasta enrustido. As peças foram enrustidas e nem se nota a emenda.Entalado Engasgado. Enfiado no meio de algo. Fui comer cocada rindo e fiquei entalado. Trouxe o livro entalado no meio da tralha. Deu foi trabalho para achar.Entremeio No meio de... Entre um e outro. Coloque essa bolsa no entremeio das malas.Entretela Tecido grosso que se coloca como forro interno de algumas

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partes das vestimentas, a exemplo do cós das calças.Entrevado Com problemas nas pernas. Torto. Diz-se daquele que sofreu forte pancada nas pernas e ficou - ainda que por pouco tempo- com dificuldades para se locomover. Levei um escorrego lá na fonte e fiquei todo entrevado.Enturmação Agrupamento. Formação de turma. Formação de grupo. Ontem foi uma enturmação geral lá no ginásio, pra ouvir o Prof. Fernando falar.Enturmar-se Entrar numa turma. Fazer amizade com um grupo. Logo que cheguei lá me enturmei.Enxó Ferramenta de carpinteiro usada para desbastar a madeira.Enxu Espécie de marimbondo.Enxúndia Gordura das aves, às vezes usada como remédio para inflamação. Enxurrada Água de chuva que desce pelas ruas ou pelos caminhos e ladeiras. Eta enxurrada boa pra soltar barquinho.É o diabo...* Está difícil! Vamos ter problemas.... Do jeito que as coisas vão, é o diabo...Esbagaçar (-se) Quebrar em pedaços pequenos. Cair ao chão e machucar-se. Os tijolos estão todos esbagaçados. O mamão caiu do pé e esbagaçou-se todo. Pedro esbagaçou-se na descida da ladeira.Esbojar* Derramar pelas bordas. O leite ferveu tanto que esbojou.Escalda-pés Ato de mergulhar os pés do doente em água bem quente, a fim de apressar a cura (esse procedimento era muito comum nos casos de febre alta ou resfriado).Escaldar Introduzir algo em água fervente, a fim de eliminar as impurezas. Maria, assim que despenar a galinha, escalde no caldeirão grande.Escarradeira Vaso baixo e redondo, com tampa furada, esmaltado, normal- mente colocado nos cantos das salas e quartos das casas mais possuídas, para que as pessoas cuspissem dentro, evitando-se, assim, que o fizessem no chão.Escolher a dedo Fazer uma ótima escolha. Ser meticuloso na escolha. Zé foi escolhido a dedo por Maneco pra ajudar ele na venda. Esconjurar Amaldiçoar. Deseja o mal. Sai daqui coisa ruim. Te esconjuro!Escopro Ferramenta usada pelos marceneiros para desbastar a madeira lavrada. Escora Apoio. Reforço. Suporte que serve para apoiar ou reforçar a sustentação de um objeto, parede etc. A minha escora é o meu pai, que me ajuda em tudo.

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Coloque uma escora naquele muro, senão basta chover e ele cai.Escorar Colocar escora em algo.Escorar-se Viver às custas de outro. Amparar-se em outra pessoa. Casou antes da hora e agora fica se escorando na gente.Esculhambar Fazer mal aos outros. Falar mal de alguém. Fazer bagunça. Danificar. João esculhambou a vizinha ontem, lá na festa. Deixa de esculhambação, pessoal. O rádio tá todo esculhambado.Espada Fogo de artifício em forma de canudo, muito usado nas noites de São João.Espadinha* Fogo de artifício em forma de canudo, muito usado nas noites de São João, parecido com a espada, embora menor e mais fina. Espanador Utensílio doméstico feito de fibras de sisal ou de pindoba, uti- lizado para sacudir a poeira que se acumula sobre os móveis. Penacho*.Espanar Sacudir a poeira que se acumula sobre os móveis, utilizando-se de um espanador.Espanta-boiada* Pássaro de médio porte, de cor branca, que voa em revoada e fazendo muito barulho. Corre, José, fecha a porteira pro gado não sair, qui vem ali um mundo d’espanta-boiada...Esperteza Capacidade de ser esperto, no sentido de enganar os outros. Levar vantagem. Você viu a esperteza daquela mulher? Terminou levando a melhor.Esperto(a) Sabido. Inteligente. Vivo. Mas que menina esperta, aquela filha de Maria.Espevitada(o) Falastrona. Petulante. Posuda. Viu que moça mais espevitada, aquela !?Espora Instrumento de montaria que se ata ao sapato ou bota e que serve para incitar a montaria.Esporado Diz-se do animal de montaria que está com ferimentos causa- dos por esporas.Esporro Bronca. Reclamação. Espoucar Espocar. Papocar. Pipocar. Explodir. Mal iniciou-se a festa, os foguetes começaram a espoucar.Espreguiçadeira Espécie de cadeira com o assento e o encosto em lona e que dispõe de recurso para graduar a inclinação do encosto.Espreguiçar-se Estirar o corpo. Espumoso Cheio de espumas. Com muita espuma. Gosto de beber leite espumoso, daquele que mal saiu do peito da vaca.

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Esquadro Ferramenta de usos dos marceneiros e pedreiros, para permitir o ajuste de madeiras ou paredes e muros num ângulo reto com as suas perpendiculares.Esquipar Diz-se da capacidade de certos cavalos de andarem saltitando. O cavalo de seu avô é um esquipador de primeira.Estabanado (a) Descontrolado. Estouvado. Que moça mais estabanada, aquela. Deixa cair tudo...Estaca Barrote irregular de madeira lascada, usado na confecção de cercas.Estacar Parar. Ficar quieto. Ao ver a namorada, ele estacou.Estado Situação. Condição. O estado dele não tá nada bom depois que foi pra roça.Estambo* Corruptela de estômago. De tanto comer mocotó fiquei com o estambo doendo.Estar à mão Estar em lugar fácil ou visível. Este remédio deve estar à mão.Estar ansiando Estar com fadiga. Respirar com dificuldade. Ela sofre de asma, por isso está ansiando desse jeito.Estar na corda Diz-se de alguém que se encontra numa situação difícil. bamba Paulo tá na corda bamba naquele emprego.Esterco Fezes de animais, notadamente os de criação.Estiagem Falta de chuva. Estio. Verão. Com esta estiagem demorada, não vai ter safra de fumo que preste.Estirar o corpo Espreguiçar-se. Acordei, mas fiquei naquela de estirar o corpo, com uma preguiça danada.Estouro Papoco. Tiro. Pipoco. Explosão. Estouvado (a) Imprudente. Estabanado. Grosseiro. Toma jeito, menino. Deixe de ser estouvado.Estranhar Não reconhecer. Desconfiar. Ele tá chorando assim, porque te estranhou...Estrelinha* Fogo de artifício usado nas noites de São João, constituído de papel enrolado contendo pólvora colorida que, ao ser queimada, solta fagulhas na forma de pequenas estrelas cintilantes.Estribo Apoio lateral para os pés do cavaleiro, normalmente feito de antimônio ou de zinco.Estripulia Algazarra. Brincadeira. Os meninos estão fazendo estrepulias na rua.Estrompado Desajeitado. Torto. Grosseiro. Machucado. Aquele menino parece que é estrompado.

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Essa mesa está com os pés estrompados. Levei uma queda feia que me deixou estrompado. Estrondo Estouro. Tiro. Papoco. Pipoco. Explosão Estropiado Muito machucado. Muito cansado. Essa viagem a Pedrão deixou meu cavalo estropiado. Tou estropiado de tanto andar.Estrovenga* Ferramenta agrícola com duplo corte, utilizada para a limpeza dos pastos e roças.Estrume Fezes de animais de criação misturadas com folhas secas, for- mando uma espécie de adubo. Empilhe o estrume do galinheiro, que é pra botar no jardim.Estuciar* Tramar; pensar; meditar sobre algo que se pretende fazer. Astuciar. Ana anda estuciando alguma coisa. Tá tão calada...Esturricar O mesmo que estorricar. Torrar em demasia. Fique de olho no toicinho que tá no fogo pra não esturricar.F

Facão Ferramenta de uso na agricultura para o corte de galhos de árvore e de pequenos arbustos. Faca grande, também utilizada como arma.Falada Diz-se de moça ou mulher de quem se fala mal, geralmente nos aspectos envolvendo sexo. Sicrana tá mais falada do que mulher da vida.Falar pelos Falar em demasia. Tagarelar. cotovelos Não gosto daquele rapaz. Ele fala pelos cotovelos. Fardo Conjunto de coisas ajustadas numa prensa e devidamente amarradas. Os fardos têm pesos diferentes, em função do que eles contêm. Um fardo de fumo, por exemplo, pesa em volta de 50 quilos. Já o de charque chega a pesar mais de 100 quilos.Farelo A parte mais grossa de qualquer tipo de farinha. O resultado da passagem da farinha pela peneira.Faro Instinto. Intuição. O olfato dos animais. Se meu faro não falhar, vamos ter confusão essa semana.Fastio Falta ou perda do apetite. Tou c’um fastio danado. Não agüento comer nada.Fátima Esmalte de unha. Comprei um vidro de fátima vermelha pra minha namorada.Fateiro Açougeiro que negocia com fato.Fato Vísceras de animais de criação. Miúdos (de boi, porco, carneiro, galinha).

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Quando sair pra feira, passe no mercado de fato e compre meio quilo do de boi pro almoço de domingo. Fazenda Sinônimo de tecido. Naquela loja tem fazenda boa, para as tabaroa...Fazer feira Ir à feira e efetuar as compras da semana. Vou fazer feira, mas só posso gastar dois mil reis.Fazer fita Fingir. Simular. Aquele choro é ele fazendo fita.Fazer pouco caso Não dar importância. Menosprezar. Carlos fez pouco caso do que falei. Ele vai ver o resultado.Fazer pouco de ... Mangar de alguém. Atacar o outro com calúnias ou achaques. Dei-lhe um sopapo pra ele deixar de fazer pouco de mim.Fazer-se de santo Passar por bonzinho. Aquele sujeito se faz de santo, mas não vale nada. Só quem conhece a peça, sabe.Fechar navalha Ligar a entrada de luz de uma casa ou de uma rua. O oposto de abrir navalha (cortar a luz). Alfredo da Luz passa toda boca-da-noite fechando as navalhas das ruas. De manhazinha, abre as navalhas mal o sol nasce.Fecho-écler Sinônimo de zíper. Consta de uma tira dupla de tecido refor- çado, com serrilhas dentilhadas que se entrelaçam quando se aciona a trava de união.Fedor Mau cheiro. Odor desagradável. Como fede aquele beco!!!Feição Aparência. Jeito. Forma. Aspecto. João tá com a feição de quem sofre de grande mal. Essa boneca tem uma feição tão parecida com gente, que mais parece que fala. Feito a facão Malfeito. Feito às pressas. Essa mesa parece que foi feita a facão. Tá toda bamba.Fel Vesícula biliar dos animais de criação. Sinônimo de muito amargo. Depois que sangrar, lembre de tirar o fel, pra carne não ficar amar- gando. Esse remédio amarga como fel. Ferrão Vara longa provida de ponta de ferro, utilizada pelo carreiro para estimular os bois-de-carro a andarem.Ferrado Diz-se do animal que já foi marcado a ferro. Campado. Enrolado. João tá ferrado. Vai perder o emprego.Ferrar Marcar os animais com o ferro-de-marcar em brasa. Colocar alguém na lista negra. Vingar-se.

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Aquele sujeito vai se ferrar comigo.Ferrar-se Enrolar-se. Complicar-se. Eu me ferrei no exame de admissão.Ferroada Mordida de inseto. Não saia pro quintal não, que as abelhas tão soltas e vão lhe ferroar. Ficar boba Ficar surpresa. Surpreender-se. Fiquei boba quando ele me disse que me amava. Não acreditei.Ficar de mal Acabar a amizade. Estremecer-se. Rusgar. Vou ficar de mal com você, se continuar com essa mania de me chamar por apelido.Ficar no barricão Não casar. Ficar solteira. Sicrana, apesar do dote e da beleza, terminou ficando no barricão. A culpa foi da mãe, que não deixava ela se mostrar.Ficar tiririca Ficar zangado. Aborrecer-se. Zefa ficou tiririca com aquela pintura mal feita na casa.Fifó Sinônimo de bibião, bibiano: pequeno candeeiro, feito com frasco de vidro e pavio de algodão em mecha, alimentado por querosene. Às vezes possui alça de folha-de- flandres.Filho natural Filho de pais solteiros.Fina flor A elite. Os ricos. Os poderosos. Aqui somente a fina flor tem vez. Pros outros é somente chicote.Fincar Cravar. Enfiar. Plantar. Juca passou o dia fincando pé de pau no pasto.Fio Gume. A parte afiada da faca ou de qualquer instrumento de corte Fita Fingimento. Simulação. Aquela estória de que tá com dor é pura fita a fim de não ir para a escola.Fitar Olhar com insistência. Olhar fixamente. Por que tá me fitando assim? Parece que nunca me viu.Flandre Corruptela regional de Flandres. A folha-de-flandres. Esse caneco é de flandre e aquele é de zinco.Fodido Encrencado. Enrolado. Lenhado. Você tá fodido, se perder de ano.Fofo Mole. Sem consistência. Fraco. Diz-se de criança bonitinha. Esse bolo ficou fofo. Vai azedar logo. Mas que menininha mais fofa !Foice Ferramenta de uso na agricultura para cortar as ervas daninhas e arbustos indesejáveis existentes numa plantação.Folgado (a) Intrometido (a). Abusado (a). Preguiçoso. Deixa de ser folgado, rapaz. Quem te chamou na conversa?? Chico é muito folgado!! Só trabalha na base do empurrão.

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Folha Cachaça com folha. Me dá uma folha aí...Pode ser cidreira.Foliador* Instrumento de uso na agricultura para a aplicação de inseticida nas plantações.Foliar O ato de aplicar inseticida nas lavouras, notadamente para matar formigas, usando o foliador.Fonte Nascente de água que se acumula na superfície.Forja Fornalha utilizada pelos ferreiros para aquecer ao rubro as bar- ras de metal a serem forjadas. O conjunto de ferramentas pró- prias do ato de forjar metais. Na oficina de Olavo tem uma forja de primeira.Formão Ferramenta de marceneiro, usada para abrir canais, encaixes e rebaixos na madeira.Foscro* Corruptela de fósforo, muito utilizada na zona rural. Me dê duas caixas de foscro marca “Olho”.Freguês Cliente. Comprador. Ele é nosso freguês desde o tempo de meu pai.Freguesia Os fregueses de um determinado negócio. Localidade subme- tida à proteção de um determinado santo da Igreja Católica. Minha freguesia tá aumentando depois que abri o ponto novo. Esta freguesia é vossa, tudo nela vos pertence.Fresco Vento leve. Pessoa afeminada. Fiquei a tarde toda pegando um fresco na varanda. Aquele rapaz é um fresco.Fretar Corruptela de flertar. Minha filha, moça de família não fica fretando pela rua. Aquele rapaz freta com tudo quanto é moça daqui.Frieira Coceira entre os dedos dos pés.Fritada Comida caseira, feita com ovos batidos e com recheio de legumes e carne picada. Qualquer comida frita em azeite.Frouxo O que está folgado. Pessoa sem coragem. Deixei o parafuso frouxo para facilitar o trabalho. Ele é um frouxo. Não agüenta um tapa.Fruta-Pão Fruta da árvore de mesmo nome, com muita polpa e com tex- tura macilenta. Deve ser cozida antes de ser consumida. Fuá Barulho. Confusão. Que fuá é esse aí, menina?!Fubá Farinha feita de milho ou arroz moído. Hoje o jantar vai ser mingau de fubá de milho com canela em pó..Fuçar Remexer. Mexer. Bisbilhotar. O porco baé tá sempre fuçando naquele canto do chiqueiro. Já fez

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um buraco. Não fuçe as minhas coisas.Fujão* Diz-se do noivo que abandona a noiva na hora do casamento.Fuleiro Ordinário. Sem valor. Imprestável. Vagabundo. Que emprego mais fuleiro esse que você arranjou !Furador Ferramenta própria para fazer furos em sola e em borracha, usada pelos sapateiros e coureiros. Fumeiro Local onde se expõe carnes à ação da fumaça, para a cura. Essa carne é de fumeiro... E é nova...Fungar Aspirar a secreção nasal. Demonstrar vontade de chorar. O que é que você tem, que tá fungando assim!??Futucar Mexer. Bulir. Esse menino é um perigo. Está sempre futucando onde não deve.Futrica Fuxico. Arenga. Provocação. Chica já gosta de uma futrica!.Fuxico Futrica. Arenga. Ato de espalhar notícias de forma destorcida. Aquela mulher já gosta de um fuxico.Fuxiqueira (a) Pessoa que costuma fazer fuxico. Deixa de ser fuxiqueira, mulher. Não tá vendo que vai arranjar confusão!?Fuzuê Confusão. Barulho. Arruaça. Que fuzué é esse aí fora, menino? Vamos parar com isso?

G

Gabola Vaidoso(a). Pretensioso(a). Maria é muito gabola. Também pudera, ela é linda.Gago Aquele que gagueja.Gagueira Deficiência da fala.Gala Sinônimo chulo de esperma.Galado* Sujo de gala.Gamela Pequeno vaso de madeira na forma de bandeja funda, usada para a manipulação de alimentos.Garrancho Escrita mal feita. Caligrafia ruim. Pequenos galhos secos, atira- dos ao chão Esse menino não aprende nada. Somente sabe fazer esses garranchos. O quintal está cheio de garranchos. Garrar* Corruptela de agarrar. Pôr-se. Começar. O trabalho foi tanto que garrei a maginar na canseira de amanhã.Garrincha Pássaro de belo canto, de cor parda com listas negras, que cos- tuma freqüentar a proximidade das casas.

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Garrote Boi ainda novo. Bezerro quase adulto.Gastar o que Endividar-se. não tem Geo gastou o que não tinha para casar a filha. Agora tá enrolado.Gato* Sinônimo regional de ladrão. Cuidado com aquele sujeito. Ele é gato.Gatos pingados Pouca gente. Poucos. A festa foi mixa. Tinha somente uns gatos pingados dançando.Gás Sinônimo de querosene. Vá lá na venda e compre dois litros de gás. Leve a lata.Gelosia Parte da janela provida de gretas que se abrem e se fecham. Gênio Índole. Temperamento. Estado de espírito. Ele tem um gênio danado. Por qualquer dá cá aquela folha, já tá brigando.Gentinha Forma depreciativa de referir-se às pessoas humildes. Giba Corcunda.Gilete Diz-se da pessoa, homem ou mulher, que mantém relações bissexuais. Goela Garganta. Eu amanheci com a goela inflamada. Acho que vou pegar resfriado.Gogo Doença das aves que provoca acúmulo de secreção nas vias res- piratórias, matando-as por asfixia. Aquela galinha está com gogo. Vou tirar ela do terreiro, pra não pegar nas outras.Goma Cola feita de amido de mandioca. O próprio amido de mandioca.Gongují* Sinônimo regional de centopéia.Gorgulho Pequeno besouro que infesta os grãos de feijão e milho. Caruncho.Gosma Muco viscoso expelido pela boca. Secreção de certas plantas e animais, com aspecto viscoso.Gosmenta Com aparência de gosma. Nojenta. Tinha uma lesma gosmenta na minha cama. Me deu um nojo.Grade Espécie de porta contendo gelosia, normalmente usada para separar a casa do jardim ou a entrada principal da parte íntima da casa.Granel Produto seco, estocado em quantidade e sem embalagem.Graveto Pequeno galho seco. Greta Falha em tábua, em tronco de árvore ou em pedra . Abertura de porta ou janela, de forma disfarçada. Brecha. Aquela mulher costuma ficar olhando pela greta da janela os homens que passam.Guarda-chapéu O mesmo que porta-chapéu. Móvel de madeira com suportes apropriados para as pessoas colocarem o chapéu, ao entrarem em casa. Alguns são providos de espelho e de bandeja inferior, para os chinelos.

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Guarda-comida Armário de madeira, geralmente provido de telas nas laterais, usado para a estocagem de alimentos perecíveis. Localiza-se na cozinha ou na copa.Guarda-pó Espécie de capa usada sobre a roupa, para protegê-la da poeira. Os barbeiros costumavam trabalhar usando um guarda-pó.Guardar a Esconder. Guardar muito bem guardado. sete chaves Guardei a sete chaves a escritura da casa.Gude Pequena bola de vidro colorido usada em jogos caseiros. Vão brincar de gude lá no corredor. Deixem eu arrumar a casa.Guiador* Menino que vai a pé na frente da primeira parelha de bois, indicando o caminho a seguir pelo carro-de-bois.Gume A parte amolada da faca ou de qualquer instrumento de corte. Fio.

H

Haveres Bens. Posses. Aquele homem está rico, com todos aqueles haveres...Hoje vai ter...* Vai haver confusão. Vai ter briga. Já vi que hoje vai ter. Essa gente toda bebendo sem parar...Homem Sinônimo de coragem. Qualidade de ser valente.. Aquilo é que é um homem. Venha brigar, se você é homem.

I

Ilhós Peça oca de metal aplicada na roupa para a passagem de fita ou cadarço. Impaludismo Malária. Sezão.Inhaca Sovaqueira. Cêcê. Mal cheiro oriundo das axilas. Vije, mas como você tá com uma inhaca danada, rapaz...Inhá* Corruptela regional e mestiça de sinhá(senhora).Inhá sim* Corruptela regional e mestiça de sim,senhora.Inhô* Corruptela regional e mestiça de sinhô(senhor).Inhora* Corruptela regional e mestiça de senhora.Inhô sim* Corruptela regional e mestiça de sim,senhor.Inteiro Diz-se do animal de criação que não foi castrado.Invenção Mentira. Conversa inventada. Deixe de invenção, que a estória não é essa.

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Jabá Carne de charque. O termo jabá é basicamente utilizado pelo pessoal da roça. Os da cidade usam, sempre, a expressão carne de charque ou simplesmente charque.Jaleque* Corruptela de jaleco. Blusão feito de couro de boi curtido, com acabamento acolchoado, usado pelos vaqueiros. Jataí Pequena abelha de coloração amarela, que produz um mel muito concentrado e rico em própolis.Jirau Estrado feito de varas de madeira sobre base de barro, usado como cama.Joça Coisa sem valor. Objeto feio. Deixa essa joça aí. Pra que você quer essa porcaria??Jogar barro Sondar. Ver como as coisas estão. na parede Tonho veio aqui e ficou jogando barro na parede, pra ver se eu falava da estória da Chica.Jogo do pauzinho Espécie de aposta que consiste em tentar adivinhar quantos paus de fósforo o adversário tem nas mãos fechadas.Judiar Maltratar. Ferir. Chico está sempre judiando daquele cachorro.Junta As articulações do corpo humano (dos braços, das pernas, dos dedos etc).. Local onde se dá a união de duas tábuas. Junção de duas paredes perpendiculares.Junta-de-bois Conjunto de dois bois atrelados a uma canga, para puxar o carro ou o arado. Parelha.Juntar Ajuntar. Agrupar. Reunir. Amontoar. Junte suas coisas e caia fora de minha casa. Filha minha não se amiga. Jura Juramento. Promessa. Eu fiz uma jura de que não vou mais falar com ela.

L

Labuta Trabalho. Lide diária. Esforço. Hoje a labuta foi dura lá na venda. Teve muito freguês.Ladrilho Cerâmica geralmente utilizada em paredes, de cor branca.Laia Qualidade ou classe de uma pessoa. Geralmente é usado com teor depreciativo. Não quero conversa com gente da sua laia.Lambe-lambe Fotógrafo que trabalha com sistema rudimentar de revelação. Fotógrafo de feira livre.Lamparina Pequeno fifó, próprio para uso diante dos oratórios. Teca, vá acender a lamparina de Santa Luzia.

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Lapada De uma só vez. Tarefa. João fez o trabalho de uma lapada só. Essa lapada é sua.Lapinha Presépio montado nas semanas que antecedem o Natal. A la- pinha, montada uma primeira vez, deverá ser repetida por sete anos, “pra não dar azar”.Lasca Pedaço de madeira ou pedra, com aspecto afiado ou pontudo.Lascar Rasgar. Romper. Quebrar em lascas. Lasquei o papel bem picadinho, ali na frente dele.Latrina Privada. Sentina. Sanitário. Eu já lhe disse que não se vai à latrina sem fechar a porta. Que coisa !! Lavadeira Lavandeira. Pássaro que tem o hábito de procurar comida nas bordas das poças d’água e dos riachos. Tem cor branca e marca preta nos dois lados da cabeça.Lavar a alma Sentir-se realizado. Vingar-se de algo. Com essa compra, lavei a alma daquele prejuízo que tive o ano passado. Pedro levou um tombo e quebrou o braço. Lavei a alma daquele tapa que ele me deu.Légua Medida de distância, equivalente a, aproximadamente, seis mil e seiscentos metros. Daqui até a fazenda de Tiago dá duas léguas.Leira Montículo de terra entrecortado por pequenas valas, para o plantio de verduras.Leitão Porco novo. Bacorinho.Leite coalhado Leite cortado. Leite talhado. Leite que já entrou em fermentação. Leite cortado Leite talhado. Leite que passou da hora de ferver. Leite já em estado de fermentação. Esqueci de ferver o leite logo cedo. Agora já tá cortado.Leiteiro Aquele que entrega leite nas portas, conduzido por jumento provido de camburões de alumínio. Vendedor de leite. O leiteiro hoje queria entregar leite cortado.Leite talhado Leite cortado. Leite coalhado. Leite em estado de fermentação. Esse leite talhado, vou guardar pra fazer coalhada.Lenhado* Enrolado. Fodido. João tá lenhado, com aquela estória de andar falando dos outros.Lenhar Queimar. Manchar a reputação de alguém. Você vai ter o troco. Vou lenhar você com a professora.Lerdo Lento. Preguiçoso. Que sujeito mais lerdo, aquele ali. O trabalho dele não anda.Léria Mentira. Conversa Fiada. Pilhéria.

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Deixe de léria menina, senão você fica de castigo.Lero-Lero Enrolação. Tapeação. Conversa fiada. Pare com o lero-lero, que aqui ninguém é besta.Leva Ajuntamento de pessoas. Grupo. Magote. Tinha muita gente no enterro? – Tinha uma leva.Leva-e-traz Fuxiqueira(o). Fofoqueira (o). Aquele ali é um verdadeiro leva-e-traz. Não dá pra confiar.Levar a melhor Sair ganhando. Levar vantagem. Zeca sempre leva a melhor no sinuca.Liberto (a) Ousado (a). Atrevido (a). Aquela moça é muito liberta pra meu gosto.Libra Medida de peso do sistema inglês, equivalente a, aproximada- mente, 500 g, usada habitualmente pelas populações rurais nas compras de gêneros alimentícios.. Usa-se, também, a meia libra (250 g.).Licuri Corruptela de ouricuri. Aricuri. Palmeira baixa e frondosa, que possui sementes na forma de pequeninos cocos.Livrinho de violeiroLivro de cordel. Literatura de cordel. Comprei dois livrinhos de violeiro pra ler na farra de hoje.Lodo Sujeira. Limo. Mofo. A beira da fonte estava cheia de lodo.Lombriga Verme que infesta o ser humano. Esse menino tá amarelo de tanta lombriga. Dê um purgante de óleo de rícino pra resolver isso..Lufada Rajada. Ventania intermitente e forte. Hoje pela manhã era cada lufada de fazer tremer as telhas.Lugarão Lugar muito grande. Cidade muito grande. Dizem que Alagoínhas é um lugarão. Deve ter muita escola.

M

Mabaço (a) Sinônimo popular de gêmeo (a).Machado Ferramenta agrária, própria para o corte de árvores.Machucado Ferida. Ferimento. Pereba. Esse machucado foi o que ficou da queda que levei.Madorna Ato de dormir por pouco tempo e levemente. Tirei uma madorna e fui trabalhar.Madrinha Animal que vai na frente da tropa puxando o caminho.Madurecer Corruptela de amadurecer. Se esse abacate não madurecer logo, vai ficar travoso.Mãe-d’água Expressão regional sinônimo de Iara,arainhadosrios.

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Magarefe Açougueiro.Maginar Corruptela de imaginar. Pensar. Julgar. Ouvindo a conversa dele sobre a Bahia, garrei a maginar como é que era lá. Magoar Ferir. Ofender. Causar dor. Não mexa na ferida, senão magoa e demora de sarar. Ele me magoou com aquela conversa sobre seu avô.Magote Muito. Grande quantidade. Hoje tinha um magote de gente no mercado.Mais logo* Expressão muito usada na região, com o significado de mais tarde,logomais, daquiapouco. – Você quer um café? - Agora não, mais logo.Malassado Carne assada, geralmente no espeto, de forma a manter a polpa suculenta, avermelhada quando fatiada.Maldar Julgar mal. Pensar mal de alguém. Não digo que estou maldando, mas acho que Tonho tá escondendo alguma coisa.Maleita Termo regional sinônimo de malária.Mal e mal Com muita dificuldade. Mal e mal consegui vender nesse sábado a metade do passado.Malhada Área cercada próxima ao curral, utilizada para se fazer a sepa- ração das reses.Malícia* Planta sensitiva muito comum na região, que possui a caracte- rística de fechar as folhas quando tocada.Maluquice Tolice. Doidice. Bobagem. Coisa de maluco.Mamparra Embromação. Tapeação. Com esse calor a mamparra é geral: todo mundo fica fazendo de conta que faz.Mamparrear Embromar. Tapear. Fazer de conta.Manaíba O mesmo que manaíva, maniva. Pedaço do caule de mandioca ou aipim, usado para novo plantio.Manaíva O mesmo que manaíba, maniva. Pedaço do caule da mandioca ou do aipim, usado para novo plantio.Mancar Manquejar. Coxear. Andar falseando um pé, devido a dor ou ferimento. Com esse calo que tenho no pé direito, pra andar calçado tenho que mancar.Manco Animal que perdeu uma das patas. Animal que está com uma das patas danificada. Pessoa que puxa de uma das pernas. Coxo.Mandaçaia Abelha média de asas escuras, que produz um mel encorpado,

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perfumado e muito doce. Você é, para mim, como mel de mandaçaia.Maneta Pessoa que perdeu um braço ou uma mão.Mangalô Semente comestível maior que o feijão, de cor esverdeada.Mangangá* Besouro grande que costuma fazer sua casa nos caibros do telhado.Mangar Zombar. Fazer pouco do outro. Mãe, aquele menino tá mangando de mim.Manguá Corruptela regional de mangual. Chicote de couro cru preso a uma barra de madeira, utilizado para açoitar os animais de carga.Manha Treta. Disfarce. Embromação. Deixe de manha e pare de chorar.Maniva O mesmo que manaíba, manaíva. Pedaço do caule da mandioca ou do aipim, usado para novo plantio. Já cortei as manivas pro plantio dessa semana.Manoca* Pequeno amarrado contendo cinco folhas de fumo, a fim de facilitar o enfardamento na prensa de madeira. Amanhã começamos a fazer as manocas da safra. Até o fim da semana, a prensa vai chiar.Manoqueira* Mulher da roça que trabalha no armazém de fumo preparando as manocas.Manquejar Mancar. Coxear. Andar puxando de uma das pernas. Ato de quem é ou está manco. Fiquei manquejando desde que caí da escada.Mão* Punhado. Quantidade de um determinado produto, geralmente seco ou de origem agrícola, que cabe em uma mão fechada. Por quanto a mão de pimenta?Maravalha* O mesmo que raspa. Diz-se de aparas utilizadas para acender-se o fogo nos fogões a lenha. Vá lá na tenda de Mestre Cacimiro e peça um pouco de maravalha que a de casa já acabou e a lenha está verdeMarceneiro Artesão que trabalha com madeira já desbastada, na forma de tábuas e barrotes, eque fabrica peças finas e providas de deta- lhes bem acabados. Zé Freitas é o mais perfeito marceneiro que temos. Veja os torne- ados desse porta-chapéu.Marchante O mesmo que magarefe. Aquele que negocia com carne fresca nos açougues.Marinete Sinônimo regional de ônibus. Acorda, menino, que tá na hora de pegar a marinete.

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Maroto Sinônimo de tratante. Esperto.Marquise Cobertura saliente de uma casa, formando uma espécie de ex- tensão do telhado, com o objetivo de proteger a sua frente tanto da chuva como do sol.Marrada* O mesmo que marroada. Pancada dada por boi, carneiro ou bode, usando a cabeça. Levei uma marrada daquele bode, que fiquei troncho.Marrão Boi teimoso.Marroada Pancada desferida com a cabeça, por boi, carneiro ou bode. Marrada. Filó ficou daquele jeito depois que levou uma marroada do bode mimoso. Marruáis Corruptela de marruá. Boi novo e bravo.Massapê Corruptela de massapé. Consiste de terreno escuro propenso a tornar-se enlameado quando ocorrem as chuvas e que costuma rachar no verão.Mata-borrão Apetrecho para enxugar o excesso de tinta deixado pelas canetas tinteiro ou pelas penas de escrever.Mata-burro Espécie de ponte seca nos caminhos e estradas rurais, cons- truída com barras de cimento ou de madeira, com espaçamento entre as barras, de forma a permitir o trânsito de carroças e de pessoas e a impedir o trânsito de animais.Matraca Diz-se de homem ou mulher que fala demais. Aquele ou aquela que fala pelos cotovelos. Instrumento de madeira que é usado durante as procissões da Semana Santa, substituindo a sineta. Tonha é uma verdadeira matraca.Maturi* Castanha verde, ainda em formação.Matutar Pensar; meditar. Manoelzinho passa horas matutando sobre como manter os filhos na escola.Mau agouro Previsão de algo ruim. Qualidade negativa atribuída ao pio da coruja. Não quero fazer mau agouro, mas isto não tá me cheirando bem.Mealheiro Cofrinho usado pelas crianças para guardar moedas. Cofre de barro.Mecha Conjunto de fibras torcidas, formando um pavio. Punhado de cabelos. Medida* Quantidade préestabelecida para a venda de qualquer produto, seja da linha de secos e molhados ou de origem agrícola (uma lata, um copo, um saco, um molho, um punhado etc). É necessário que a medida escolhida pelo vendedor esteja à vista do compra-

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dor, geralmente já cheia do produto em exposição. Quanto é a medida de tapioca?Meeiro Sócio em negócio ou fazenda. Morador em terra de propriedade de outro, onde planta e paga o uso do solo com parte da lavoura colhida.Meia coronha Calça que está com as pernas acima dos sapatos. Não vista isso, qu’está meia coronha. Não vê que você cresceu !??Melpoejo* Mel misturado com própolis. Mel gordo, usado no tratamento da tosse e de inflamação de garganta.Mercê Com a graça... Com a fé... Mercê de Deus, vou ficar bom dessa maldita doença.Merda Cocô. Fezes. Coisa mal feita. Limpe essa merda de galinha aí da varanda. Que merda é essa que vocês tão fazendo?.Merenda Lanche que as crianças faziam por volta das três horas da tarde e/ou levavam para a escola. Joana, não esqueça sua merenda. Preparei um pão com goiabada.Mesmice Marasmo. Pasmaceira. Repetição. Que mesmice, essa vida. Se não tiver cinema domingo, o fim de semana vai ser a mesmice de hoje.Mesquinhez Avareza. Que sujeito mais mesquinho, aquele. Nem aos filhos ajuda.Mestre O melhor. Aquele que sabe tudo de determinado ofício. Manoel Fogueteiro é um verdadeiro mestre no fabrico de fogos.Meter medo Assustar. Amedrontar. Não meta medo no menino. Assim ele não dorme.Metido (a) Pretensioso. Gabola. Vaidoso. Aquela moça é muito metida. Parece que tem um rei na barriga.Mexer Remexer. Misturar. Espalhar a massa de mandioca sobre o forno utilizando-se de um rodo, para que a farinha torre de maneira uniforme. Não mexa aí, menino. Isso pode quebrar. Mexa bem o mingau, pra ficar bem macio. Mexeriqueiro (a) Fuxiqueiro(a). Encrenqueiro(a). Arengueiro(a).Milingote* Mamulengo plano, feito de papelão. Palhaço de papel.Misse Grampo de cabelo. Compre lá na loja de Teófilo duas dúzias de misses graúdos.Mixa Fraca. Sem graça. A festa tá muito mixa. Também, Zé Vermelho não veio cantar.Mixaria Coisa sem valor. Coisa barata. Pouco.

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Paguei uma mixaria por esse rádio sem olho mágico. Mocotó Pé de animal de criação. Comida sertaneja, feita à base de pé de porco. Sinônimo popular de pés sujos. Domingo vou preparar um mocotó daqueles, com couve e tudo. Vai lavar esses mocotós, menino.Moderno Jovem. Moço. Ele ainda tá moderno, apesar de já ter fios brancos.Mofino Tímido. Frouxo. Fresco. Aquele menino é muito mofino. Queira Deus não afine a voz...Móio Corruptela de molho, punhado de raízes ou ervas expostas à venda na feira. Comprei barato dois móios de coentro. Paguei dois réis.Moirão O mesmo que mourão, grosso tronco de árvore fincado ao chão, servindo para amarrar animais bravios.Moita Pequeno agrupamento de arbustos. Molenga Preguiçoso. Palerma. Frouxo. Covarde. Deixa de ser preguiçoso. Vai tratar de estudar. Aquele sujeito é um molenga. Tem medo de tudo.Molhados Diz-se dos gêneros alimentícios que são líquidos ou úmidos, tal como o dendê e o sal moído.Molhar a goela Beber um aperitivo. Tomar cachaça. Vou molhar a goela, pra ver se me saio melhor no papo.Molho Caldo onde se coloca temperos, para ser levado á mesa. Maria, traga o molho de pimenta.Mondrongo Pessoa disforme. Coisa mal feita. Veja que mondrongo ficou essa boneca. Bem diferente das de JoanaMonturo Monte de lixo que exala mal odor.Moquear* Submeter a carne fresca à ação das brasas, sem contato direto. Assar.Morador Aquele que mora como agregado numa fazenda, devendo dar o de fazenda dia ao fazendeiro, para compensar a moradia.Morão* Nome dado, na região, a besouro que vive enterrado, mais co- nhecido como rola bosta.Moringa Vaso de barro para esfriar a água e servi-la à mesa.Mormaço Tempo abafado e muito quente. Hoje tá um mormaço dos brabos. É sinal de chuva.Morotó Bicho de ferida em animal. Verme que devora os defuntos. Acharam o corpo dele no mato, já sendo comido pelos morotós.Morrinha Preguiça. Moleza. Mal cheiro oriundo do animal suado. Deu-me uma morrinha, com aquele mormaço. Esse cavalo tá c’uma morrinha danada. Vai dar um banho nele.

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Mourão Moirão. Esteio de madeira bem grosso, utilizado para amarrar boi ou cavalo bravo. Principal estaca de uma cerca.Mulher à toa Mulher da vida. Prostituta.Mulher da vida Prostituta. Puta. Mulher à toa. Mulher de zona.Mulher de zona Prostituta. Puta. Mulher à toa.Mulher largada Diz-se da mulher casada que foi abandonada pelo marido.Mulher parida Mulher que deu à luz há pouco tempo e está de resguardo.Munguzá Espécie de papa grossa, feita com milho cozido, preservando os grãos inteiros. O mesmo que mungunzá.Mutreta Treta. Tapeação. Enganação. Essa estória de estrada-de-ferro parece mais uma mutreta.Mutreteiro Enganador. Mentiroso. Raro é o político que não é mutreteiro.Muque Força dos braços. Usei o muque para tirar o boi do brejo.Muxoxo Gesto das crianças que consiste em estalar a língua de encontro ao céu-da-boca ou afunilar os lábios, indicando pouco caso para o que lhe foi dito. Que coisa mais engraçada. Fazendo muxoxo pra titia...

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Na lona Duro. Sem dinheiro. Fiquei na lona. Perdi tudo na mesa de cisplandim.Nambu Pássaro de médio porte que tem canto em forma de pio acentu- ado. Inhambu.Na moita Nas sombras. Escondido. Diz-se do fato de alguém fazer algo sem que os outros percebam a tempo de evitar. Ele agiu na moita pra conseguir aquele emprego.Nanico (a) Sinônimo de anão. Coisa de pequeno porte. Aquele menino ficou nanico assim, porque não mamou.Não cheirar bem Achar que algo vai dar mau resultado. Ver algo errado numa determinada atitude. O que esse sujeito falou não me cheira bem. Acho bom a gente tomar cuidado.Não dar um pio Não falar nada. Ficar calado. Não dê um pio, senão apanha.Não é da sua Não lhe interessa. Não lhe diz respeito. conta Pra quê quer saber? Isso não é da sua conta.Não engolir Não aceitar. Não acreditar.

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Não engulo essa estória que Fulano conta. Ele pensa que todo mundo aqui é bobo.Não querer Não dar atenção. Não estar a fim de papo. Não responder. conversa Falei, falei mas Pedro não quis conversa.Não ser grande Não ter futuro. Não valer nada. coisa Aquela casa não é grande coisa. Tem as paredes de sopapo.Não ter errada Não ter como errar. Tão certo como dois e dois são quatro. Impos- sível não dar certo. Vá por aí que você chega lá. Não tem errada.Na ponta do lápis Tudo muito certo. Tudo bem feito. Quero tudo na ponta do lápis. Não gosto de enrolada.Navalha* Chave de controle da entrada de energia, constituída por uma base em porcelana, uma haste dupla de cobre e dois fusíveis de rosca. A utilização do nome deriva do fato de se dizer que o aparato serve para cortar a luz, tal como faz a navalha com a barba. Antes de mexer aí, é preciso desligar a navalha, senão vai tomar choque.Necas de Não sobrar nada. Não falar nada. Não querer nada. Não saber pitibiriba* de nada. Na aula, todo o mundo falou. Ele, necas de pitibiriba!Nem pra remédio Pouca coisa. Um tantinho de nada. O doce hoje não dá nem pra remédio. Também, seu pai comeu quase tudo.Ness’instante* Agora mesmo. - Que hora aconteceu isso? - Ness’instante.Nigrinhagem Baixaria. Safadeza. (Termo pejorativo e racista).Ninar Embalar. Acalentar. Botar pra dormir. Vou ninar aquela criança pra ver se ela dorme logo. No batente Na labuta. No trabalho. Logo cedo vi Olavo no batente.Nódoa Mancha deixada na roupa pelo contato com determinadas frutas e/ou plantas, a exemplo do caju.Nojo Repugnância. Asco. Essa sujeira toda na Praça após a feira me causa nojo.No tope No topo. No alto. A parte mais alta. Enfie essa argola no tope daquele pau.Novilha Vaca ainda nova.

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Obrar Fazer algo. Agir. Defecar.

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Ele obrou bem, dizendo o que disse. Esse menino passou o dia obrando mole.Oferecida Exibida. Que se abre. Mulher fácil. Deixe de ser oferecida. Que coisa mais feia. Rapaz, não te mete com aquela fulana, que ela é muito oferecida.Oitão Parede lateral da casa. Parede dividida com a casa vizinha. A casa de Zé Dias tem um lindo jardim ao lado do oitão direito.Oiteiro O mesmo que outeiro. Pátio externo no fundo das casas. Peque- no quintal rente à casa. Botei a galinha pra chocar logo ali no oiteiro.Olaria Fabrico rústico de peças de barro, a exemplo de telhas, potes e similares.Olho mágico Dispositivo existente nos rádios mais modernos dos Anos 50/60, que facilitava a boa sintonia das emissoras de ondas curtas. O negócio O acertado fica parado. O combinado não vale mais. engancha Se você não fizer sua parte, o negócio engancha e aí, olhe, babau.Onda Fato contado com dissimulação e mentiras. Confusão. Deixa de onda, ou você vai se dar mal.Os fundos A parte do fundo. A parte final de uma casa ou de uma fazenda. Lá nos fundos tem um quartinho muito abafado. Os fundos são grandes mas escuros.Os novos As crianças. Os meninos. Os pequenos. Os novos não imaginam como a vida é difícil. Vivem para brincar.Ovos Sinônimo chulo de testículos. O cavalo esquipou tanto que quase quebrei os ovos.

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Pabular-se Gabar-se. Exibir-se. Exagerar. Deixa de se pabular, rapaz.Pachorra Preguiça. Calma. Levanta, rapaz. Deixa de pachorra e vai pra roça! Pachorrento (a) Modorrento. Calmo. Preguiçoso. Pagar uma Pagar muito dinheiro. fortuna Ele vai pagar uma fortuna por aquela fazenda, mas vale.Palerma Molenga. Tolo. Deixa de ser palerma, rapaz. Trata de adiantar esse serviço. Que cara mais palerma. Não vê que tão enrolando ele na conversa.Palmatória Instrumento de madeira em forma de colher plana, utilizado para aplicar bolos, usado nas escolas particulares ou em casa. Pera aí, que já vou buscar a palmatória e você vai ver, seu danado.

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Palmo Medida de comprimento equivalente a 22cm. A pressa foi tanta em se desfazer do defunto, que a cova dele somente tinha cinco palmos.Pamonha Pessoa molenga. Aquele sujeito é um pamonha. Não quer nada com a vida.Pão sovado Pão feito de massa batida. O melhor pão sovado é o da padaria de Zinho.Papagaio Sinônimo de pipa. Arraia. Afonso passa o dia soltando papagaio.Papeira Caxumba. Esse menino está com papeira. É preciso cuidar, pois tem o perigo dela descer pros ovos.Papel arengueiro* Papel de seda.Papel pardo Papel para embrulho, de cor entre o branco e o cinza, com tex- tura grosseira. Mas não dá pra embrulhar nem num papel pardo!? Vou ter que levar assim aberto!?Papocar Pipocar. Espoucar. Espocar. Explodir.Papoco Pipoco. Estrondo. Tiro. Estouro. Ouvi um papoco essa noite, que não consegui mais dormir.Parir Dar à luz. Assim que Maria parir e logo depois do resguardo, nós vamos passar uns dias na roça.Parida Diz-se da mulher que deu à luz a poucos dias.Parteira Aquela que apara os nenês durante os trabalhos de parto. Nor- malmente as parteiras eram chamadas de comadre. Mandei avisar a Comadre Melânia que essa semana vou parir. Ela que se prepare.Passada Comida já um tanto velha. Comida dormida. A canjica tá passada mas ainda dá pra comer.Passadeira Espécie de argolas presas ao cós das calças, para a fixação do cinto.Passadiço Passagem em forma de S, feita nas cercas que separam os pastos ou propriedades rurais, de forma que as pessoas possam circular sem que os animais fujam ou invadam o pasto vizinho.Passado Estragado. Azedo. Quase podre. Esse leite tá com cheiro de passado.Passar de ano Ser aprovado na escola. Passei de ano e vou estudar na Bahia.Passar o troco Devolver ao freguês parte do dinheiro que esse entregou a mais no pagamento da compra efetuada.

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Espere. Deixe eu lhe passar o troco.Pata Perna de qualquer animal.Pataca Moeda da época do Império que permaneceu em circulação até meados dos anos 50, e que valia 320 réis.Patacoada* Presepada. Tolice. Brincadeira ridícula. Deixe de patacoada, menino.Pau-a-pique Varas ou estacas amarradas uma às outras, formando uma es- pécie de parede ou cerca. Lá na fazenda tem muita cerca de pau-a-pique pra proteger as plan- tas da boca dos animais. A casa dele é de sopapo e pau-a-pique mas tem bastante espaço.Peado Preso por peia. Imobilizado. Aquele cavalo foi peado pra não se afastar da casa.Pear Ato de amarrar as duas patas dianteiras ou uma dianteira com uma traseira de um animal de montaria, afim de que ele não se afaste da casa enquanto pasta.Peca Fruta que foi colhida ou caiu do galho antes de amadurecer por completo.Pechinchar Tentar reduzir o preço de algo. Regatear. Pechinchei até que ela baixou pra duzentos réis.Pé-duro Boi ou cavalo que não tem raça definida.Pedra de escrever Lousa de ardósia, usada nas escolas primárias para o aprendi- zado da escrita e da tabuada. Escrevia-se sobre ela com uma espécie de lápis de ardósia.Pegar gosto Absolver as qualidades do molho ou do tempero. Deixe a carne de molho, para pegar gosto.Peia Laço curto provido de duas alças que serve para pear o animal que se deseja manter por perto da casa ou da cocheira. Surra. Se você não se quetar, vai cair na peia.Peido O mesmo que bufa. Ato de eliminar gases intestinais. Aquele sujeito peida até na escola.Pelanca Carne de má qualidade, cheia de restos de pele e nervos. Essa pelanca só serve pra sopa.Pelar Retirar os pelos de animal morto.Pelar-se* Queimar-se em água ou outro líquido muito quente. A sopa saiu agora do fogo. Cuidado pra não pelar a lingua.Pelejar Insistir. Teimar. Tentar. Pelejei foi muito pra ver se os dois não brigavam.Penacho* Espanador feito com fibras de sisal ou pindoba.Penca Pequeno punhado de frutas, presas pelo mesmo apoio. Usa-se, habitualmente, referindo-se a bananas.

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Penico Sinônimo popular de urinol. Bacio. Fulana, precisa lavar esses penicos com bucha grossa.Per’aí Corruptela de espere aí. Aguarde. Per’aí, isso não tá certo não... Per’aí um pouquinho, que já volto.Perder de ano Perder o ano na escola. Ser reprovado... Se você perder de ano, vai pra roça.Pereba Ferida. Machucado. Ferimento. Fui caçar na mata e voltei cheio de perebas, de tanto me encostar nos espinhos.Piaba Peixe pequeno de água doce, muito usado para fazer moquecas fritas enroladas em palha de banana.Piaçava O mesmo que piaçaba. Espécie de palmeira que fornece uma fibra dura muito usada na confecção de vassouras e asseme- lhados. Pica Sinônimo chulo de pênis.Picada Caminho estreito aberto no mato, por onde as diversas roças se comunicam. Pegue aquela picada que você sai lá no sítio de CarlosPicado (a)* Agitado (a). Furioso (a). A doida tava picada da vida.Picareta Ferramenta agrícola utilizada para quebrar pedras ou abrir buracos em chão duro.Picula Brincadeira infantil, na qual uma ou mais crianças correm para uma delas as pegar. A criança que tem a função de pegador é sorteada no início da brincadeira.Pigarro Incômodo na garganta. Toda vez que fumo Astória fico com um pigarro danado. Acho que vou mudar pra Continental.Pijama Vestimenta folgada masculina usada para dormir, feita em duas peças com tecido leve.Pilastra Coluna de amarração de parede.Pilha* Sinônimo popular de lanterna. Se sair de noite, não se esqueça de levar a pilha.Pilhéria Zombaria. Troça. Mentira. Deixe de pilhéria, menino. Não vê que isso é feio?Pindoba Espécie de palmeira baixa que fornece uma palha fina e resis- tente, muito usada para a confecção de esteiras, vassouras, cha- péus e bocapios*.Pingueira* Vazamento de água de chuva, que cai por defeito ou falha no telhado.

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Joana, ponha uma bacia debaixo daquela pingueira do quarto.Pinicar Picar. Beliscar. Coçar. Ô coisa pra pinicar é ferroada de abelha.Pinóia Coisa sem valor. Pessoa reles. Essa pinóia de sela que você comprou vai fazer calo no lombo da mula. Aquele ali é um pinóia. Não quer nada com a vida.Pinote Pulo. Salto. Ia pelo mato e cruzei com uma jararaca. Dei um pinote pra ela não me morder.Pintar e bordar Fazer de tudo. Fazer tudo para... Ele pintou e bordou, mas ela não quis conversa.Pintar o sete* Fazer molecagem. Aprontar. Esse menino pinta o sete na escola. Só anda tomando bolo.Pipa Grande barril de madeira, com capacidade para 500 litros. Pes- soa gorda. Sicrano tá uma pipa de tanto beber cerveja.Pipoco Papoco. Estrondo. Barulho. Tiro. Estouro. Explosão.Piripicado* Palavra usada em conjunto com rebocado para indicar que o outro estará complicado se não cumprir o prometido. Dar cer- teza de algo. Se você não fizer o que prometeu, tá rebocado piripicado.Pirraça Atitude tomada para chatear outro. Implicância. Você vai apanhar, se não parar com essa pirraça. Ele tá de pirraça comigo.Pitada Pequena quantidade de sal ou de rapé.Pitó* Bronca. Reclamação. Dei-lhe um pitó, que ele logo se calou.Pixaim Cabelos crespos. Vou comprar vaselina pra ver se ajeito esse pixaim dos diabos.Pixote Corruptela de pexote. Menino pequeno. Aprendiz. Mau jogador. Mas que pixotinho lindo !!!.. Você é pixote ainda. Precisa aprender mais. Que sujeito pixote. Não acerta uma bola... Plaina Ferramenta de marceneiro, que serve para acertar as faces de uma peça de madeira.Pó Sinônimo popular de talco. Rapé (o pó resultante da folha seca de fumo após ser moída ou triturada). Pegue aí a punça, pr’eu passar pó no nenê. Eu não fumo. Prefiro tomar uma pitada de pó e espirrar.Polegada Unidade de medida do sistema inglês, largamente utilizada pelos

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marceneiros, carpinteiros e ferreiros, equivalente a 2,75 cm. Vá lá na oficina de Olavo e compre uma enxada de dez polegadas.. Peça pr’ele amolar de jeito.Poleiro Espécie de apoio de madeira para o agasalho noturno das aves de criação.Pongar Subir na marinete ou no caminhão. Ponguei assim que a marinete parou.Porcaria Coisa suja. Coisa insignificante. Que porcaria é essa, menino!? Por inteiro* Completamente. Todo. Ele se molhou por inteiro, quando passou pelo rio.Porta-bacia Lavatório. Suporte de aço com três pés, provido de um aro su- perior para apoiar uma bacia esmaltada e de um outro menor, intermediário, para a colocação de jarro esmaltado com água de reserva.Porta-chapéu* Espécie de suporte múltiplo, geralmente disposto na entrada das casas, para que as pessoas, ao chegar, colocassem seus cha- péus. Alguns tinham espelho e bandeja inferior, para os chine- los. Guarda-chapéu.Porrão Grande vaso de barro cozido para armazenar água, com capa- cidade de, aproximadamente, 100 litros, no formato de uma pêra.Porrete Cacete de madeira grossa, usado como arma. Pancada muito forte, dada com os punhos.Posses Os bens que alguém possui. Os possuídos de alguém.Posuda (o)* Que bota pose. Metida a importante. Não gosto daquela mulher. Ela é muito posuda.Possuído (s) Bens. Fortuna. Posses. Aquilo que alguém possui. (É mais usado no plural). Os possuídos dele vão a mais de cinco contos de reis.Pote Vaso de barro cozido, bojudo, com capacidade para, aproxima- damente, 16 litros de água.Pote de dinheiro Diz a estória popular que os antigos enterravam potes de barro cheios de ouro ou de dinheiro nos quintais das casas, para garantir o futuro dos herdeiros.Pra Corruptela de para. Vou a Feira de Santana pra comprar um chapéu Prada.Pra chuchu Diz-se de algo que é especial, muito bom. Esse licor tá bom pra chuchu.Pregar peça Fazer teimosia. Aprontar. Deixe de tá pregando peça aí, ou eu não lhe levo na feira.

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Prenúncio Aviso. Previsão. Sinal. Tanajura é prenúncio de trovoada.Presepada Palhaçada. Brincadeira boba. Patacoada* Deixe de presepada, menino!!Presepeiro (a) Aquele que faz presepada. João tá muito presepeiro.Pr’esse, p’ressa Corruptelas de para esse, para essa. Pr’esse caso, não tenho jeito. Melhor procurar o doutor.Presilha Peça feita em aço, composta de arame com mola e ponta e encaixe para fixar a ponta. Broche. Fixador para prender as fraldas dos recém-nascidos.Presunçoso Vaidoso. Gabola. Pretencioso. Aquele menino ficou muito presunçoso depois que foi estudar na Bahia.Prevenido Precavido. Atento. Avisado. Ele é muito prevenido. Só vai pra mata com a espingarda. Ele foi prevenido. Se não se cuidou, não foi por falta de aviso.Privada Sinônimo popular de quarto sanitário. Latrina. Sentina.Pro mode De maneira á. A fim de. Vou acordar cedo pro mode pegar o caminhão que vai pra Ala- goinhas.Prosa Conversa agradável. Papo bom. Mentira. Meu primo chegou ontem. A prosa durou até tarde. Deixa de prosa, rapaz. Mas tu não aprende.Prosar Conversar amigavelmente. Bater papo. Vão prosar lá fora, que aqui estão atrapalhando.Pr’uma Corruptela de por uma, para uma. Ele seguiu pr’uma ladeira que tem logo ali. Não serve nem pr’uma coisa nem pra outra.Prumo Aparelho usado pelos pedreiros para alinhar as paredes em um ângulo de noventa graus com o piso.Pua Ferramenta de marceneiro, utilizada para fazer furos.Puba* Massa puba. Massa de mandioca amolecida n’água.Pucumã Fuligem acumulada nas teias-de-aranha do teto da cozinha, oriunda da queima de lenha nos fogões. Costumava-se aplicar pucumã sobre cortes para acelerar a cicatrização.Puído Roto, gasto, rasgado. Não vista essa blusa, menina. Não vê qu’está puída?! Pule Recibo de aposta no jogo-de-bicho. Perdi minha pule. Vou repetir o jogo.Punça* Esponja para passar talco. Pequena almofada de tecido macio.

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Passe um talquinho nele. Tome a punça.Punhado Mão. O que cabe numa mão fechada. Comprei um punhado de amendoim torrado por dois réis.Purga Laxante. Purgante. Remédio caseiro usado para curar prisão de ventre e/ou limpar os intestinos. Se você não fizer cocô até de noite, vou-lhe dar uma purga.Puta O mesmo que prostituta. Mulher da vida. Mulher de zona. Mulher à toa.Puxando fogo Embriagado. Bêbado. Meu compadre tá puxando fogo como sempre. Não diz nada que se entenda. Puxar da perna Mancar. Andar manquejando. Quando tirar o gesso, acho que ainda vou ficar um tempo puxando da perna.Puxar o caminho* Guiar. Conduzir. Indicar o caminho a ser seguido.

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Quarana* Arbusto cujas folhas são semelhantes às de fumo. Cate umas folhas de quarana e dê pra ela aprender a fazer manoca. Quarar Corar. Pôr a roupa lavada ao sol para que clareie. Não enxague a roupa sem quarar senão vai ficar amarelada.Quarta Medida para secos a granel, equivalente a ¼ de alqueire (não se trata do alqueire para área), representando, aproximada- mente, nove litros. Hoje vou comprar somente uma quarta de farinha. Zilda mandou um pouco lá das “Pedras”.Quartos Sinônimo popular de quadris. Essa viagem para Santanópolis me deixou com dor nos quartos. O cavalo que montei era esquipador.Quebra-pote Brincadeira que consiste em amarrar um pote cheio de presentes no alto de uma vara ou entre duas varas, para que uma pessoa vendada tente quebrá-lo durante um certo tempo antes acorda- do. Os presentes, quando caídos, são recolhidos pelos assisten- tes e a pessoa que fez a quebra ganha um presente especial.Quebra-queixo Guloseima feita de açúcar queimado, com castanha ou amen- doim, servido em pedaços. Puxa-puxa. Normalmente, o ven- dedor de quebra-queixo utiliza-se de uma pequena talhadeira e de um martelinho para retirar os pedaços que vende enrolados em papel de seda.Queimada Área derrubada a machado e foice, cujos restos são queimados

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em coivaras, a fim de permitir o plantio da lavoura. Zé já tá com a queimada pronta pra roça desse ano.Queimado Bombom enrolado em papel de seda, formando uma espécie de cordão com nós, geralmente feito de mel ou açúcar mascavo. Quentar* Corruptela de esquentar. Ponha a água pra quentar pro mode fazer o cuscuz.Quentura Calor. Hoje tá uma quentura danada.Quetar* Corruptela de aquietar-se. Ficar quieto.Queto* Corruptela de quieto. Fique queto aí, menino....Quieto no Expressão que significa não se meter no que não é da conta. seu canto* Fique aí quieto no seu canto que o assunto não é da sua conta.Quintal-de- Quintal de casa na cidade, onde é possível deixar a montaria guarda guardada até a hora da partida em troca de um pequeno paga- mento. Cocheira. Quitanda Armazém de pequeno porte, menor que a venda, no qual se comercializam secos e molhados. Seu dono é chamado de qui- tandeiro. Minha filha, vá ali na quitanda de seu Dodó e veja se ele tem açúcar mascavo. Quixaba Fruta parecida com a jabuticaba, embora de menor tamanho e possuindo um visgo branco adocicado. A quixabeira possui muitos espinhos e é nativa da caatinga.

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Rabugento Mal-humorado. Zangado. Ranzinza. Aquele homem é muito rabugento. Por qualquer coisa trata as pes- soas de forma grosseira.Rajada Ventania forte e brusca. Sopro forte de vento. Passou uma rajada ali na Praça, que levantou até pedaço de pedra.Ralhar Reclamar. Chamar a atenção. Mamãe ralhou comigo por causa do barulho que eu fazia.Ralado* Ferido. Descascado. Escorreguei na ladeira e fiquei todo ralado. Vai deixar o chão todo ralado, arrastando assim essas pedras.Ralador O mesmo que ralo, utensílio de cozinha próprio para ralar fru- tas e legumes.Ralo O mesmo que ralador, utensílio de cozinha próprio para ralar

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frutas e legumes. Coisa pouco espessa. Fino. (A palavra ralo não tinha o significado usual de hoje, relacionado com a entrada de esgoto. Essa era simplesmente chamada de esgoto). Esse caldo tá ralo. Nem parece que levou carne. Nâo vai chover hoje. Somente tem umas nuvens ralas no céu.Ramerrão Rotina. Mesmice. Aqui é sempre esse ramerrão. Nada acontece de novidade.Rancho Casa pobre na zona rural. Comida feita para toda a família na roça. Ele tem um rancho na fazenda de Pitaco. Ele trouxe uma preá pro rancho de hoje.Ranger Refere-se ao barulho de dois objetos que se arrastam um de encontro ao outro. Bote um óleo naquela porta, que ela pára de ranger. Ranzinza Zangado. Rabugento. Mas seu avô tá é ranzinza. Não sei o que deu nele.Rapariga Sinônimo popular de amante do sexo feminino. Dizem que aquele sujeito tem duas raparigas na cidade.Rapaz Homem ainda moço e solteiro. Costuma-se, também, utilizar a palavra como um termo exclamativo, mesmo que se fale com alguém do sexo feminino. Rapaz, veja que coisa mais feia !Raspa Aparas de madeira trabalhada pela enchó, formão ou plaina. Maravalha.Raspar o prato Comer até o último grão. Ele tava morto de fome. Raspou o prato e ainda pediu mais.Raspar o tacho Comer as sobras de doce que ficaram grudadas no tacho. Gas- tar todo o dinheiro que se encontrava guardado. Ela raspou o tacho até não ficar nem sinal do doce. Fulano raspou o tacho pra fazer a festa de casamento da filha.Rato Tratante. Canalha. Mau caráter. Aquele sujeito é um rato. Não se pode tratar com ele.Rebento Filho. Broto. Planta nova. Os rebentos dele são a cara do pai. Esse rebento parece que não vai vingar.Rebocado* Palavra usada juntamente com piripicado . Dar certeza.Reclame Propaganda. Anúncio. Publicidade. Na “Vida Doméstica” tem cada reclame que é uma beleza.Recomendar Aconselhar. Sugerir. Indicar. Recomendei a ele que evitasse o caminho da fonte, pois choveu e lá deve estar escorregando.

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Lá na Rua, procure Dr. Aloísio, pois já lhe recomendei a ele.Rédea Corda feita de couro curtido, própria para manter os animais de carga ou de montaria presos a um moirão. Rédea curta, a Sob controle. Sem muita liberdade. Manoel trata os filhos a rédea curta.Redemoinho Movimento giratório de vento, fazendo com que a poeira se eleve.Redoma Espécie de cúpula de vidro, usada para a proteção de imagens. Sinônimo clássico de proteção. Ela é criada como se estivesse dentro de uma redoma.Rego Vala por onde a água escorre. Passagem d’água nos terrenos alagados.Réis Plural de real, dinheiro da República Velha que circulou até me- ados dos anos 50. Havia moedas de um real e de dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta, cem e quinhentos réis e cédulas de um real e de dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta, cem e quinhentos mil réis. A cédula de um milhão de réis chamava-se um conto de réis. Com a criação do Cruzeiro por Getúlio Vargas, nos anos 40, esse passou a valer um mil réis, mas ambos padrões mo- netários circularam ao mesmo tempo, até o recolhimento do real por volta de 1955.Relampejar Passar relâmpago. Cair relâmpago. Maria, tá relampejando. Cubra os espelhos.Relho Tira de couro de boi curtido ao sol. Utilizam-se relhos de di- ferentes espessuras na costura de indumentárias de vaqueiro e de montaria, bem como para costurar calçados rústicos. Rebenque.Remela Secreção que se aglutina no canto dos olhos. Vai lavar esses olhos cheios de remela, menina. Remendar Colocar remendo. Consertar. Dar um jeito. Já remendei seu capote. Fizeram merda e quem teve que remendar fui eu.Remoso* Qualquer tipo de alimento que ofereça reais possibilidades de causar algum mal estar. Não coma carne de porco, que é remosa pra quem tá no seu estado.Renca* Grupo de pessoas de uma mesma família. Forma ofensiva de se referir a um grupo de pessoas. Não quero ver mais você e sua renca aqui na minha casa.Rente Junto. Vizinho. Corte o cacho bem rente ao tronco. Eu tô morando rente ao armazém de Zuca.

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Requentar Esquentar novamente alimento já parcialmente usado. Não gosto de café requentado. Parece chá mal feito.Rês Cabeça. Unidade de gado bovino. Aquele ali é o que se pode chamar de criador. Tem pra mais de qui- nhentas reses.Resfriado Sinônimo de gripe. Com essa chuva, peguei um bruto resfriado e tou até com febre.Resguardo Repouso após uma doença ou depois do parto. Maria tá de resguardo. O parto foi bom, mas ela ainda tá fraca.Retado Bom. Valente. Inteligente. De primeira. Aquele menino é retado. Precisa ver como joga bola. Eu sou mesmo retado. Botei todo mundo pra correr.Rinchar Refere-se ao som produzido pelos cavalos. Relinchar. Ranger. O cavalo tá rinchando de dor. Aquela gaveta rincha toda vez que abre.Riba, em, pra A parte de cima. Em cima. Pra cima. Bote o pacote em riba da mesa.Ripa Tira fina e longa de madeira, usada nos telhados para servir de apoio lateral das telhas.Roça Forma popular de identificar tanto a zona rural quanto a pe- quena propriedade rural. Identifica, também, determinada plantação João mora na roça. Pedro tem uma boa roça. Os filhos de Tiago, cada um tem roça de fumo.Roça de meia Manter plantação em terra de outro, pagando o uso do solo com parte da lavoura obtida. Zeca tem roça de meia na fazenda de Pedro.Rodagem A estrada de rodagem. A rodagem tá coberta de lama. É capaz da marinete atolar-se.Rodete* Grande roda de madeira que serve para acionar a bola ou caiti- tu (cilindro navalhado), que tritura a raiz de mandioca. O ro- dete é acionado por força humana quando na posição vertical e por força animal quando na posição horizontal.Rodia* Corruptela de rodilha, disco de pano enrolado usado sobre a cabeça, para o transporte de objetos. Não carregue pote d’água sem rodia, que vai fazer calo grande no cocuruto.Rodilha Pano torcido e enrolado na forma de uma espiral que se coloca sobre a cabeça, a fim de permitir o transporte de objetos. Rodo Utensílio próprio para mexer farinha no forno, constituído de

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uma vara com uma tábua presa na horizontal em uma das ex- tremidades. Chama-se também de rodo a ferramenta utilizada para amontoar areia ou pequenos pedaços de pedra.Rodopiar Dar muitas voltas. Rodar. Fiquei rodopiando com as crianças e estou tontinho.Rogar praga Desejar o mal a alguém. Desejar má sorte. Acho que te rogaram foi praga. Você não fica boa disso.Rola Pássaro muito comum na região, também chamado de rolinha fogo apagou. Sinônimo popular de pênis. Esconda essa rola, menino.Rolo Confusão. Briga. Ontem, na abertura do cinema, foi um rolo danado. Todo mundo queria entrar logo.Roliço Formato cilíndrico de determinados objetos. Rombuda Que tem ponta grossa ou malfeita. Com essa agulha rombuda, você não vai fazer nada.Ronceiro Preguiçoso, lento. Deixa de ser ronceiro. Esse trabalho é pra hoje?!Rosalgar Nome popular do dissulfeto de arsênico, usado como veneno para ratos e como meio de provocar a queima branca e brilhan- te dos fogos de artifício.Rosete Peça de porcelana utilizada nas instalações elétricas das casas, para permitir o desvio de corrente para um fio pendente com lâmpada incandescente.Rua Forma com que as pessoas da roça chamam a cidade. Amanhã vou na Rua, comprar veneno pr’esses formigueiros.Rua abaixo Descer a rua. Estar andando em direção ao fim da rua. Todos os dias vejo esse homem passar aqui, rua abaixo.Rua acima Subir a rua. Andar em direção ao início da rua. Se você for rua acima, vai sair na Praça do Comércio. Não tem errada.Rude Ignorante. Sem educação. Grosseiro. Ele foi rude com a irmã, coitada. Ruim da bola Fraco do juízo. Adoidado. Se você não se cuidar, vai terminar ruim da bola, bebendo desse jeito !Ruma Pilha de alguma coisa. Muita coisa. Amontoado. Faça uma ruma de tudo, que a carroça já vem. Tinha uma ruma de gente no enterro.Rumar Corruptela de arrumar. Atirar. Jogar. Rumei uma pedra nele e saí correndo.

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Rusga Briga. Implicância. Deixem de rusga, meninos, senão vocês caem na taca.Rusgar Brigar. Implicar com.

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Sabido (a) Esperto (a). Desenvolvido (a). Ana está muito sabida pra idade dela.Sabonete Planta de grande porte, cuja semente pode ser usada como sa- bão por seu alto poder espumante.Sabugo O que resta da espiga de milho depois que se debulha os grãos. Sabugueiro Árvore cujas folhas são usadas em chás para fazer brotar o sa- rampo ou a catapora que se encontram enrustidos.Sacrista* Mau caráter. Malvado. Aquele sujeito é um sacrista. Seu sacrista, batendo num menino !Saída Diz-se de moça que se expõe em demasia. Atirada. Aquela moça é muito saída. Vai se dar mal, já, já.Sair de casa Diz-se de moça que se amiga ou que perde a virgindade antes do casamento. Beltrana saiu de casa e foi morar com o namorado, lá em Feira.Salgadeira* Curtume. Local onde se trabalha o couro cru. Vasilha de cobre ou barro, utilizada para salgar carne fresca, a fim de se poder guardá-la por alguns dias.Sanhaço Pássaro também conhecido como papa-mamão, de cor esver- deada e canto grave. Assanhaço.Sapeca Teimosa (o). Arisca (o). Essa menina é muito sapeca. Queira Deus não faça bobagem daqui a uns anos.Sapecar Chamuscar. Queimar de leve. Jogar. Atirar. Cuidado pra não sapecar os dedos com esse tição. Sapequei uma pedra naquele boi bravo que vai aliSaqué* Galinha d’Angola, também chamada de tô fraca.Saruê O mesmo que gambá. Cangambá.Se amigar Amigar-se. Tornar-se amante. Juntar-se (homem e mulher) sob um mesmo teto, sem estarem casados. Eu vou é me amigar, que esse negócio de casamento é pra rico.Sebo Gordura sólida retirada da carcaça de animais de criação aba- tidos. Nada melhor pra amaciar relho do que sebo de boi.Secos Gêneros alimentício secos, geralmente disponíveis a granel

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(arroz, farinha, fubá-de-milho, café etc).Se dar mal Sair-se mal. Complicar-se. Dar-se mal. Sair perdendo. Arranjar encrenca. Ele vai se dar mal, agindo com tanta teimosia.Se matar Trabalhar até a exaustão. Cansar-se muito no trabalho. de trabalhar O pai deles se mata de trabalhar para que todos possam estudarSem um vintém Sem dinheiro. Na lona. Duro. Aquela mulher deixou o pobre do Fulano sem um vintém furadoSe mostrar Exibir-se. Aparecer. Ela se mostra muito. Logo, logo, vai sair de casa.Sem eira Diz-se de pessoa sem tradição. Pessoa de pouca importância. nem beira Aquele alí é um sem eira nem beira qualquer. Sentar praça Entrar para a polícia. Ser soldado de polícia.Sentina Sinônimo popular de vaso sanitário. O vaso sanitário das pri- vadas em forma de fossas, constituído de uma boca de cimento que funciona como local para o usuário acocorar-se.Se picar Cair fora. Fugir. Sair com rapidez. Se pique daqui, antes que o guarda chegue.Sereno Chuva rala, geralmente ao amanhecer ou entardecer. Vá pra dentro, menino, Não vê que tá caindo sereno?!Se resfriar Resfriar-se. Pegar um resfriado. Saia desse sereno, senão vai se resfriar logo.Sestro Mania. Cacoete. Ele tem o sestro de ficar batendo as pálpebras, como se estivesse com cisco no olho.Sezão Malária. Diz-se do estado febril próprio de quem está com ma- lária. Febre intermitente e esporádica.Shuite* Sinônimo local para interruptor. (Será originário de algum ter- mo em inglês??)Sianinha Tira de tecido em algodão, na forma de ziguezague, utilizado como adorno em vestimentas femininas.Sinal Marca. Notícia. Esse sinal é de nascença. Ele nunca mais deu sinal, desde que foi morar em Lustosa.Siririca Masturbação feminina.Sisudo Austero. Sério. Tião é muito sisudo. Nunca vi ele rindo.Soberba Arrogância. Exibição de superioridade. Deixe de soberba, que você não é lá grande coisa.Sofrê Apelido do pássaro corrupião.Sombrinha Guarda-sol de uso feminino.

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Soneca Madorna. Cochilo. Sono ligeiro. Todo dia eu tiro uma soneca depois do almoço.Sonso Fingido. Dissimulado. Enganador. Deixa de ser sonso, menino e para com essas mentiras.Sopa Coisa fácil. De fácil execução. Isso pra mim é sopa. Faço desde pequenininho.Sopapo Tapa violento, dado com as mãos fechadas. Soco. Tipo de pa- rede rústica, feita com barro socado entre varas amarradas por cipó. Dei-lhe um sopapo, pra ele aprender a se comportar. Filó mora numa casa de sopapo, bem junto da capoeira.Soqueira Espécie de reforço para os punhos, a fim de tornar o soco mais violento. O termo (e o instrumento) surgiu na região na onda dos filmes americanos que mostravam as badernas dos chama- dos playboys.Sovaco Axilas.Sovaqueira Cecê. Mau cheiro oriundo das axilas. Rapaz, tú tá c’uma sovaqueira de dar dó.Sovela Ferramenta usada pelos coureiros e sapateiros para fazer furos nas peças de couro curtido, a fim de passar os fios de algodão encerado ou de couro cru.Sovina Avarento. Unha-de-fome. Aquele sujeito é muito sovina. Nem esmola a cego ele dá.Sumiço Desaparecimento. Não sei que sumiço ele levou. Nunca mais o vi por aqui.Suplício Sofrimento. Sacrifício. Grande esforço. É um suplício para mim saber desse seu namoro. Não consigo engolir isso. Foi um verdadeiro suplício ,o que passei para chegar aqui.Surrão Sacola de couro curtido, utilizada para o transporte de comida quando o lavrador ou o vaqueiro se afastam da casa de morada. Suspensórios Apetrecho da vestimenta masculina que visa manter a calça à altura da cintura sem o uso de cinto.Sussurro Conversa a voz baixa. Murmúrio. A conversa dele era quase um sussurro. Mal dava pra se ouvir. Sustança Força. Vigor. Coma essa sopa, pra ter mais sustança.

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Tá, tava, tavam Corruptelas de está, estava, estavam.

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Os meninos tavam no quintal, catando manga.Tabaréu Homem da roça. Matuto. (O feminino é tabaroa).Tabaroa Mulher da roça. Matuta. (O masculino é tabaréu).Tabatinga Barro mole e pegajoso.Tabuleiro Terras altas, arenosas, com vegetação rasteira.Taca Chibata. Rebenque de couro curtido, utilizado para estimular os animais de montaria. Instrumento de castigo. Ou você deixa de fazer traquinagem, ou vai cair na taca, seu moleque !Tacar* Atirar. Jogar. Lançar. Taquei uma pedra nos urubus que tavam lá no quintalTacho Vaso de cobre usado para o preparo de doces ou para ferver água.Taco Pedaço (de arame, de carne, de madeira, de papel etc). Me dá um taco desse pão aí.Tagarela Falador. Conversador. Que fala pelos cotovelos. Que sujeito mais tagarela.Tagarelice Ato próprio dos tagarelas. Muita conversa. É uma tagarelice que não acaba mais.Talhadeira Ferramenta de pedreiro, utilizada para quebrar pedras ou abrir cortes em pisos e paredes.Talisca* Tira fina de madeira rachada. A nervura da palha de coqueiro. Taludo Crescido. Grande. Como esse menino tá taludo. No ano passado era tão pequeno!Tanajura Espécie de formiga voadora que perde as asas ao cair. Diz-se que as tanajuras quando aparecem estão indicando que vai tro- vejar e chover grosso.Tanino Substância segregada por algumas plantas, com características adstringentes, a exemplo do que se sente quando se morde uma banana verde. Produto usado para curtir couro cru.Tanoeiro Artesão que fabrica barris, tonéis, dornas, barricas, pipas e si- milares. João Tanoeiro é o melhor fabricante de dornas da Bahia.Tanque Pequeno açude resultante do acúmulo de água de chuva. Re- servatório doméstico para a captação de água de chuva, geral- mente feito de cimento.Tapeador Aquele que tapeia. Enganador. Mentiroso. Mentindo como mente, esse menino vai ser um grande tapeador.Tapear Mentir. Enganar. Enrolar. Falsear.. Ele me tapeou o tempo todo. E eu, besta, acreditei. Tapeie ela um pouquinho. Depois, com calma, você conta a verdade.

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Taquara rachada Diz-se de alguém que canta mal. Eu não gosto de cantar, pois tenho uma voz que mais parece uma taquara rachada. (taquara é um tipo de bambu).Tarefa Unidade agrária de medida de área, equivalente a 4.356 m² (trinta braças quadradas). Essa unidade é largamente usada para indicar o tamanho de uma propriedade rural ou para in- formar quanto se plantou de determinada lavoura. Trabalho diário. Atividade obrigatória. O sítio de Zequinha tem cento e vinte tarefas de boa terra. Augusto plantou, esse ano, dez tarefas de mandioca. Minha tarefa é ingrata. Não sei se o dia vai dar pra fazer tudo. Minha tarefa é roçar o pasto. Qual é a sua?Tarugo Tampa de barril. Pedaço roliço de madeira, utilizado para fixar pranchas ou barrotes. Tá vendo aí? Eu não disse!? Eu bem que falei. Tá vendo aí?. Eu sabia disso, falei e você não acreditou.Teimosia Implicância. Insistência.. Deixe de teimosia, menino. Você vai apanhar.Teimoso Implicante. Insistente. Que sujeito mais teimoso. Fica ali que não arreda pé.Telheiro Área coberta de telhas, normalmente sem paredes. Galpão aberto.Tenção Corruptela de intenção. Faço tenção de passar na casa de vovó esse domingo.Tenda Local onde trabalham barbeiros, alfaiates, sapateiros, ferreiros e outros artesãos. Oficina.Tento Atenção. Cuidado. Tome tento ao andar por esse caminho cheio de buracos.Ter jeito Ter conserto. Ter correção. Ter habilidades. Aquela parede tem jeito. É só reforçar as pilastras. Ele é teimoso mas tem jeito. Basta o pai querer. Aquela menina tem jeito pra costura.Ter modos Ter educação. Ser educado. Agir de forma correta. Tenha modos. Não vê qu’estão olhando?Terreiro Área limpa ao redor das casas da zona rural, geralmente cercada. Terrina Vaso de porcelana, provido de alças e de tampa, utilizado para levar a sopa à mesa.Ter tutano Ser inteligente. Pensar bem. João tem tutano, por isso se dá bem na escola.Ter vergonha Envergonhar-se. Ter pudor. Ter brio. Ter honra. Tenha vergonha, rapaz. Fazendo besteira no meio da rua!

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Teve Corruptela de esteve. Ele teve lá em casa ontem.Ti, ti, ti, ti, ti...* Som utilizado para chamar as galinhas na hora de dar a ração.Tição Pedaço de madeira em brasa. Xingamento racista. Vá pegar um tição lá na cozinha para acender a fogueira. Tipóia Tira de pano que envolve o pescoço e serve para apoiar o braço doente. Pronto, tá engessado. Agora ponha o braço numa tipóia, pra evitar esforço.Tinindo Brilhante; caprichado; arrumado. Pedro só sai de casa tinindo.Tintim por tintim Tudo muito bem detalhado. Tudo bem esmiuçado. Conte o que aconteceu tintim por tintim.Tiquinho Bocadinho. Pouquinho. Ela só me deu um tiquinho de doce.Tirar de casa Diz-se do fato de um rapaz iniciar relações sexuais com moça virgem. Ele tirou ela de casa e o pai nem desconfia. Tiririca Irritado. Nervoso. Quando soube do acontecido, fiquei tiririca.Titica Coisa insignificante. Tarefa fácil. Isso aí, pra mim, é titica.Tive Corruptela de estive. Eu tive lá hoje, mas foi cedo.Toco Pedaço de tronco de árvore que permanece preso ao solo de- pois da derrubada. Tô fraca Sinônimo popular de saqüé. Galinha d’Angola. O termo “Tô fraca” deriva do som que as saqüés produzem ao cantar.Toiceira O mesmo que touceira. Parte d árvore cortada que renasce pela sobra do tronco que restou na terra. Toucheira.Toicinho O mesmo que toucinho. Parte gordurosa da carne de porco.Toitiço Nuca. Cachaço. Encontrei o jumento morto. Parece que foi uma pancada no toitiço.Tolerar Suportar. Agüentar. É preciso ser Cristo pra tolerar essa gente. Não sei se vou tolerar essa dor por muito tempo.Tolete Pedaço de fezes ressequidas. Cocô duro. Doutor, ele não tá bem. O senhor precisa ver os toletes que saem.Tolo Bobo. Imaturo. Novo. Ele ainda é muito tolo, apesar de já tá crescido.Tomara Queira Deus. Espero. Oxalá.

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“Tomara que chova logo”.Tomar banca Freqüentar aulas de reforço escolar. Tou tomando banca com a Profa. Aurelina, pra ver se passo de ano.Tomar cuidado O mesmo que ter cuidado. Quando sair, tome cuidado pra não escorregar nessas pedras mo- lhadas.Tomar rumo Sair. Ir pra casa. Partir. Ir embora. Tomei meu rumo, assim que a festa acabou.Tomar uma* Beber um trago. Bebericar. Vou tomar uma e depois vou pra casa.Tonteira Tontura. Vertigem. Deu-me uma tonteira ontem , que não caí por pouco.Tonto Zonzo. Atordoado. Fiquei tonto depois daquela nossa farra.Tontura Vertigem. Tonteira. Perda momentânea do equilíbrio. Senti uma tontura e quase caí.Topar Dar de frente. Encontrar. Bater em. Topei com Zé, hoje, na feira. Assim que ele apareceu, topei a mão na cara dele.Tope Tamanho. Altura. Pancada no pé. Manoel é do mesmo tope do primo. E só andam juntos. Levei um tope danado, jogando bola.Tora Pedaço grosso de árvore cortado a machado.Torar Cortar rente. Derrubar. Quebrar. Mandei cortar o cabelo e ele torou tudo. Ficou que nem um coco. Tore aquele tijolo e me dê um pedaço.Toró Chuva muito forte. Aguaceiro. Ontem caiu o maior toró.Torquês Alicate em forma de tenaz, usado para torcer arame farpado e segurar chapas quando postas na forja. Ferramenta habitual de ferreiro.Torrão Pedaço duro de terra. Pedra de açúcar. Hoje merendei banana pisada com torrão de açúcar mascavo.Torrar Secar bem. Esturricar. Gastar tudo. Vamos torrar e moer esse café, pois o que tinha em pó já acabou. Ela deixou a carne torrar demais. Torrei no bicho tudo que ganhei na feira. Fiquei duro novamente.Torreno* Corruptela regional de torresmo (pedaços de toucinho fritos, usados como complemento do almoço ou como tira-gosto).Tosse convulsa Coqueluche.Tostão Moeda da época do Império que circulou até meados dos anos

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50 e que valia cem réis.Tou Corruptela de estou. Eu tou c’uma dor de barriga das bravas.Touca Cobertura feita de pano para proteger a cabeça. Espécie de boné para uso feminino. Se vai sair, ponha um touca por causa do sol.Toucheira* Corruptela de touceira. Toiçeira. Grupo de pequenos arbustos formando um amontado. Parte de árvore cortada que renasce pela sobra do tronco que ficou na terra. Vi a galinha pedrês se escondendo naquela toucheira. É capaz de ter ninho por lá.Toucinho Parte gordurosa da carne de porco, que é separada em forma de manta e usada como fritura. Toicinho.Trado Ferramenta de carpinteiro, usada para furos de grande espes- sura.Traíra Peixe de água doce muito comum nos rios e lagoas.Tralha Cacarecos. Objetos sem valor. Pessoas desqualificadas. Guarde essas suas tralhas, senão eu jogo tudo fora. Aquela tralha que mora alí embaixo não serve pra nada.Tramela Trava utilizada para a segurança de portas e janelas, constituída de um pequeno pedaço de madeira preso ao esteio lateral por um prego com arruela, o qual funciona como eixo.Tranca Barra de madeira utilizada para travar portas e janelas, instalada no sentido transversal.Traque Bombinha para festas juninas. Traquinagem Teimosia. Travessura. Brincadeiras perigosas. Esse menino ainda vai se machucar com essa traquinagem de andar sobre pernas-de-pau.Traquinas Teimoso. Inquieto. Travesso. Buliçoso Esse menino é muito traquinas. Vai terminar levando uns bolos.Traste Coisa sem valor, geralmente móvel doméstico. Pessoa sem caráter. Joguei aqueles trastes que vieram da roça no lixo. Aquele sujeito é um traste. Não vale a merda que caga.Tratar com Acertar com. Entender-se com. Tratei com Tiago a sua ida para a Bahia.Trato Acerto. Combinação. Nosso trato foi que você iria pra roça assim que chovesse. Tá na hora de ir.Travesso (a) Teimoso. Traquinas. Buliçoso. Deixe de ser travesso, menino. Quer apanhar?

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Travessura Teimosia. Traquinagem. Brincadeira perigosa.Travo Amargor. Adstringência. Esse abacate tá travando. Acho que foi tirado verde.Travoso Que trava. Amargo. Como é travoso esse remédio!.Trecho Parte de uma estrada, pronta ou em construção. Lama mesmo só no trecho entre Coração de Maria e Irará.Treco Troço. Cacareco. Tralha. Coisa sem valor. Esse treco não serve para nada. Foi dinheiro jogado fora.Trejeitos Gestos. Caretas. Postura anormal para chamar a atenção. Feia como é, só mesmo com esses trejeitos para que a olhem.Tremendo feito Assustado. Amedrontado. vara verde Acordei essa noite tremendo feito vara verde: sonhei com o bicho papão.Trempe Suporte de aço com três pés, usado para apoiar uma panela sobre um braseiro. Os furos de uma chapa de fogão a lenha. Coloque o cozido na trempe do meio, que apronta mais ligeiro.Trens Tralhas. Trastes. Objetos pessoais das pessoas mais humildes. Vou juntar meus trens e cair fora antes que a confusão comece.Treta O mesmo que mutreta. Enrolada. Manha. Velhacaria. Malan- dragem. Não gosto de treta. Tudo comigo é na ponta do lápis.Treteiro Malandro. Manhoso. Enrolão. Sujeito treteiro, aquele que tá ali na esquina.Triscar* Tocar de leve. Encostar. Trisquei naquele fio e tomei um baita choque.Triscou pegou Lance da brincadeira de Picula, no qual o menino pegador toca em um dos meninos que correm, passando este à condição de pegador.Troça Bagunça. Zombaria. Vamos deixar de troça, que a aula vai começar.Trocados Dinheiro miúdo, em moedas. Dinheiro próprio para troco. Gastei os trocados que tinha pra comprar um presente pra mamãe.Troço (os) Cacarecos. Tralha. Coisas sem valor. Esses seus troços só estão servindo pra ninho de barata.Trompaço Empurrão. Esbarro. Encontrei o sujeito na rua e dei-lhe o maior trompaço.Troncho Desengonçado. Torto. Desequilibrado. Bambo de um lado. Levei uma queda do cavalo e fiquei todo troncho. Aquela mesa tá troncha. Bote um calço nela.Tropa Grupo de animais com carga, devidamente conduzido por um

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tropeiro.Tropeçar Topar. Esbarrar. Cambalear. Tropecei na escada e quase caí. Ando assim, tropeçando, desde que caí do cavalo.Tropeiro Aquele que conduz uma tropa. Nos tempos antigos, por aqui passavam muitos tropeiros com suas mercadorias em lombo de burro.Trouxa Volume formado por objetos ou roupas colocados dentro de um pano cujas pontas se encontram e são amarradas entre si. Pessoa que se deixa enganar facilmente. Faça uma trouxa de suas coisas e caia fora daquí. Que sujeito trouxa aquele. Se deixou enganar até pelo bobão do Fulano.Trovão Som que se dá após a passagem de um relâmpago. Conseqüência ruidosa da caída de um relâmpago. Relampejou, vai ter trovão. É só esperar.Trovejar Ocorrer trovões. Trovoada Ribombar de trovões. Chuva forte acompanhada de trovões. Vamos ter trovoada já. Tá relampejando muito.Turma do sereno Turma da farra. Turma da boemia. Boêmios.Turma miúda Os pequenos. As crianças. Os meninos. A turma miúda não cansa de brincar.

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Uma pechincha Coisa barata. Coisa de pouco valor. Paguei uma pechincha por esse chambre.Umbaúba Árvore alta, comum das terras iraraenses, constituída de tronco roliço e sem divisão. Um mucado Corruptela de um bocado. Um pouco. Uma parte. Mãe, me dê um mucado de carne.Um mundo Muita coisa. Fartura. Coisa grande. Essa casa parece um mundo. Tinha um mundo de gente na feira.Um tantinho Um quase nada. Um tantinho de nada. assim Ele só me deu um tantinho assim de comida. (mostrando a ponta da unha do dedo polegar).Um tantinho Muito pouco. Quase nada. Um tantinho assim. de nada Com a venda de hoje, na feira, somente apurei um tantinho de nada. Unha de fome Casquinha. Sovina. Avarento. Aquele sujeito é tão unha de fome que nem roupa pras filhas ele

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compra.Unheiro Sinônimo popular de panarício. Inflamação nas unhas. De tanto catar lenha, estou cheio de unheiro.Urinol Bacio. Vaso de porcelana utilizado para recolher a urina das pessoas doentes que não podiam se locomover até o banheiro.Uruçu Abelha tradicional, grande produtora de mel e muito comum na região.Urucubaca Feitiço. Azar. Má sorte. Só ando doente. Parece até urucubaca.Urupemba O mesmo que urupema. Peneira feita com palhas de coqueiro ou com cipós finos.

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Vadiagem Vagabundagem. Ociosidade. Falta do que fazer. O problema mais sério daqui é a vadiagem da gente moça.Vadiar Vagabundar. Brincar. Vão vadiar lá fora, meninos. Não agüento essa arrelia.Vadio Vagabundo. Aquele que não trabalha por preguiça. Aquilo é um vadio de marca maior. Vê o pai se matando no batente mas não ajuda.Vagabundo Ordinário. Vadio. Coisa mal feita ou de má qualidade. Não quero você tendo amizade com aquele vagabundo, que nem estudar estuda. Mas que roupa mais vagabunda você comprou!.Vaqueiro Aquele que cuida do gado vacum. Encarregado de zelar pelo gado. Laurinho é o melhor vaqueiro dessas bandas. Com ele boi não tem vez.Varapau Pessoa grande. Pessoa muito alta. Aquele varapau nem parece o menininho que andava lá em casa.Variar Delirar. Falar besteiras. Bebeu tanto que ficou variando até dormir.Veadagem Coisas de veado. Vamos deixar de veadagem, pessoal. Tomem vergonha.Veado Sinônimo popular de homossexual passivo.Venda Ponto comercial menor que um armazém. As vendas se espe- cializavam por grupos de produtos: as de secos e molhados, as de artigos de couro, as de ferragens; as de materiais de construção. Algumas vendiam produtos de mais de um grupo, como se fossem pequenos supermercados.

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A venda de Joel está bem sortida. Tem até louça nadir!Venda de Secos Venda especializada na comercialização de gêneros alimentí- e Molhados cios. Ato de vender gêneros alimentícios. Somente a venda de secos e molhados é que tem futuro. Todo mundo precisa comer Vendagem Resultado da comercialização em dia de feira. O resultado da feira. - E aí, como foi a vendagem nesse sábado? - Valeu a pena. Vendi quase tudo.Venta (s) Nariz. Narinas. Limpe essas ventas , menino. Que coisa mais nojenta.Verruma Ferramenta de marceneiro semelhante a um saca-rolhas, utili- zada para facilitar o ato de atarraxar parafusos.Verter água* Urinar. Fazer xixi. Por causa da cerveja de ontem, passei o dia vertendo água.Vexado (a) Agoniado. Preocupado. Envergonhado. Humilhado. Essa demora pra criança nascer tá me deixando vexado. Ele falou umas coisas que me deixaram vexado. Ficou vexado assim porque urinou nas calças.Vexame Aperreio. Vergonha. Passei o maior vexame, com meu irmão chegando bêbado em casa.Vidona* Situação boa em que alguém se encontra, seja no aspecto finan- ceiro ou de lazer. Antonio tá passando uma vidona, desde que se mudou pra Feira.Violeiro Tocador de viola ou violão. João tá um violeiro de mão cheia.Vingar Crescer. Sobreviver. Acho que esse rebento não vinga. Tá muito murcho Vintém Moeda da época do Império equivalente a vinte réis, que circulou até meados dos anos 50.Visagem Assombração. Fantasma. Essa noite me assustei como se tivesse vendo uma visagem.Visgo Sumo pegajoso existente em algumas frutas (a jaca, por exem- plo), galhos e folhas. Vivo Esperto. Inteligente. Atento. Eta menino vivo, aquele filho do Zé.Vitrola Sinônimo de radiola. Instrumento antigo para rodar discos de 78 rotações. Volta Corrente decorativa usada ao pescoço. Colar. Comprei uma volta de ouro pra Joana.Vulto Sombra. Pessoa não reconhecida. Assombração.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60

Vi um vulto ali na esquina e fiquei assustado. Acho que Joaquim tá na cidade. Ontem vi o vulto dele na feira.

X

Xale Manta de uso pessoal para proteger contra a friagem. Normal- mente os xales são confeccionados em flanela.Xereta Diz-se de pessoa que gosta de bisbilhotar a vida alheia. Abelhudo. Aquela mulher é muito xereta. Não quero ela aqui em casa. Olhe bem !Xibungo Pederasta passivo. Veado. Usada como xingamento, a palavra causa grande mal estar e ofensa. Seu xibungo. Tá pensando o quê?Xingamento Ofensa. Depreciação. Calúnia. A coisa começou com xingamentos dos dois lados. Aí, passaram pra briga, e deu no que deu.Xingar Ofender. Depreciar. Caluniar. Acusar com palavras de baixo calão.

Y

Ypisilone Termo que nomeava a letra Y, que foi usada até a reforma da Língua Portuguesa.

Z

Zabelê Pássaro de porte médio, de coloração preta e amarela, também conhecido como jaó.Zanzar Andar a esmo. Estar perdido no mato. Andar sem destino. Fui caçar e zanzei até encontrar o rio. Vou zanzar por aí, pra ver se acho alguém conhecido.Zinabre Secreção esverdeada resultante da oxidação de objetos de cobre e que deixa forte odor nas mãos, quando tocada. Azinhavre.Zoada Barulho. Ruído alto. Pessoal, deixem de zoada, senão ninguém consegue ouvir o cantor.Zóio (s) Corruptela de olho, olhos. Os zóios dela parecem dois vagalumes brilhando no escuro da noite.. Zonzeira Tonteira. Tontura. Vertigem. Toda vez que bebo desdobrada fico com uma zonzeira da braba.Zonzo Tonto. Atordoado. Tomei uma pancada na cabeça que fiquei zonzo bem uma meia hora.

Zorra Confusão. Arruaça. Que zorra é essa!? Isso aqui tá uma zorra. Ninguém se entende. Zumbi Fantasma noturno que vagueia pelos campos. De noite eu pareço um zumbi. Não consigo dormir até a madrugada chegar.Zunhada Corruptela de unhada. Ferimento feito com as unhas. Levei uma zunhada da namorada, porque quis beijá-la á força.Zurrar O som produzido pelos jumentos.

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Notas e Esclarecimentos

No presente trabalho ousei utilizar palavras e expressões da minha imaginação, bem como outras de uso pouco comum. Certas palavras, inclusive, têm muito a ver com os anos retratados e já não são de uso corrente nos dias atuais. Tais abusos ficam por conta da intenção de melhor caracterizar o que tinha em mente. Utilizei, igualmente, algumas palavras e expressões dos idiomas russo, latino, árabe e iorubá, bem como termos onomatopéicos. Nessas Notas e Esclarecimentos facilito a leitura indicando o significado das minhas ousadias, abusos e pretensões.

Altahman: Palavra do idioma árabe escrita no alfabeto latino, que significa: profunda tristeza; grande amargura.

Anos cinco: A década na qual se insere o ano de 1905.Os anos em que se deu a Primeira Revolução Russa.

Anos de chumbo: Os anos que se passaram sob o tacão da ditadura militar, iniciada a 01 de abril de 1964.

Aparelho: Local onde se escondiam os comunistas caçados pelas forças da repressão, durante a ditadura militar. Local secreto de reuniões dos comunistas.

Arre égua: Puxa vida!; eu hem!. Expressão de uso corriqueiro na forma coloquial de se comunicar do cearense.

Aspirar o bater dos corações: Sentir os corações a bater.Azar da sorte: O que se obteve de negativo no lugar da boa sorte desejada e

esperada.Berioska: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino, que significa:

Loja de presentes; bazar; loja de miudezas.Blimblomblando: O som dos sinos a tocar. Essa palavra é criação do poeta popular

paraibano Dijiê Quirino.Caaba: O local sagrado dos muçulmanos na cidade de Meca, Arábia

Saudita.

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Canyon: Desfiladeiro em cujas profundidades passa um leito de rio ou uma vereda.

Capa-e-Espada: Fiel ao senhor até às últimas conseqüências.Cinzento: A massa cinzenta; o cérebro; a inteligência.Corta-Sola: Sapateiro; coureiro.Dã cividânia: Expressão do idioma russo escrita no alfabeto latino que

significa: Adeus; até logo; até breve.Escambo: Comércio baseado na troca de mercadorias, sem a utilização

de qualquer tipo de moeda.Esbirros: Prepostos; puxa-sacos; subordinados sem qualificação.Fez mundo: Viajou por outras terras; andou por aí...Gajão: Título com o qual os ciganos se dirigem aos homens que não

são ciganos; meu senhor.Iorubá: Povo negro africano que vive na Nigéria, Daomé e Togo. A

língua falada pelo povo iorubá.Karachô: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa:

Bem; muito bem; ótimo.Matraca: Instrumento usado nas cerimônias religiosas católicas da Sexta-

Feira Santa em substituição à sineta. Média flor: Classe média; os remediados.Na ponta da agulha: De pronto; imediatamente; de chofre. “Ogun, ka ji re; nji owo ni; nji aya ni”: “Ogun, que nosso despertar seja na felicidade; que encontremos

dinheiro; que encontremos companhia”. Panacéia: Remédio para todos os males.Papirochka: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa

cigarro rústico; cigarro de palha.Patena: Espécie de aparador que serve como apoio para a hóstia e de

cobertura para o cálice de vinho.Pei buf: Tiro e queda; pensou, agiu; bateu, caiu; desejou, fez.Possuídos: Que têm bens; que têm posses; ricos.Primo: Negócio ou objeto assemelhado a outro.Que não vem que não vem que não vem: Forma onomatopéica de imitar o som provocado pela passagem

de um trem.Quilombo: Povoado rústico cujos habitantes eram escravos fugidos.Ramadã: O mês do jejum na religião muçulmana.

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“Si veritatemdico vobis, quare non creditis mihi?”:“Se vos digo a verdade, por que não me credes?”Sine qua non: Expressão latina que significa: ”sem a qual não é possível”. O uso da

expressão determina uma condição para a realização de um ato.Spassibo: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa:

Obrigado; agradecido.Tipo: Molde de letra ou sinal alfabético feito em chumbo, usado na

composição de textos para impressão tipográfica.Tovarich: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa:

Camarada; companheiro.Vermelho: Comunista; revolucionário.Vinhoto: Resíduos poluentes resultantes da fermentação da cana-de-açúcar.Voçoroca: Canal aberto em solo pedregoso, como conseqüência da erosão

provocada pela água das chuvas.Za izdaróvie: Expressão do idioma russo escrita no alfabeto latino que

significa: Saúde!; à sua saúde!.

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Crítica após a Leitura

“Janelas Abertas” nos leva, de maneira carinhosa, a uma viagem pelos caminhos de Irará, personagens e histórias desta cidade, despertando em nós um desejo de defendê-la, para que seu passado seja respeitado e melhor o seu futuro.

Foi muito bom, criança da Rua de Baixo que fui, “rever” Amélia, o pé de sabonete, a Mangabeira, o Cajueiro, as Lajes.

Após a leitura, nota-se o quanto Irará mudou do período abordado até os dias atuais. Seus caminhos ainda existem, mas neles há outras realidades. Já não bebemos a água da Fonte da Nação; no entorno do Cruzeiro, surgem loteamentos que formam novos caminhos; a Lagoa da Madalena está poluída; o “senadinho” não mais existe... Hoje Irará tem novos personagens e, certamente, novas histórias.

Tomara que, nos caminhos atuais desta querida cidade, meninos e meninas estejam a observar seus personagens para, num tempo futuro, nos contar suas histórias, como fez o autor de “Janelas Abertas”.

Jandira Oliveira Paixão

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