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Jaqueline Peixoto Felix UM ESTUDO DO ETHOS NA AUTOBIOGRAFIA DE WASHINGTON OLIVETTO PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS Teoria Literária e Crítica da Cultura Novembro de 2015

Jaqueline Peixoto Felix UM ESTUDO DO ETHOS NA ... · Franco, Rose Ferraz e Washington Olivetto, o comercial traz a ideia da ... esquece”.Esse filme recebeu o Grand-Prix do Profissionais

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Jaqueline Peixoto Felix

UM ESTUDO DO ETHOS NA AUTOBIOGRAFIA

DE WASHINGTON OLIVETTO

PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS

Teoria Literária e Crítica da Cultura

Novembro de 2015

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Jaqueline Peixoto Felix

UM ESTUDO DO ETHOS NA AUTOBIOGRAFIA

DE WASHINGTON OLIVETTO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei

como requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre em Letras

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da

Cultura

Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social

Orientadora: Profa. Dra. Dylia Lysardo-Dias

Novembro de 2015

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Universidade Federal de São João del-Rei

Programa de Pós-graduação em Letras: Teoria Literária e Crítica da

Cultura

Dissertação intitulada “Um estudo do ethos na autobiografia de Washington Olivetto”,

de autoria da mestranda Jaqueline Peixoto Felix, aprovada pela banca examinadora

constituída pelos seguintes professores:

__________________________________________________

Profa. Dra. Nádia Dolores Fernandes Biavati

(representando a orientadora Profa. Dra. Dylia Lysardo-Dias – UFSJ)

__________________________________________________

Prof. Dr. Claudio Humberto Lessa – Titular – CEFET-MG

__________________________________________________

Prof. Dra. Suely da Fonseca Quintana – Titular – UFSJ

__________________________________________________

Prof. Dr. Anderson Bastos Martins

Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras

São João del-Rei, 27 de Novembro de 2013

Praça Dom Helvécio, 74 – São João del-Rei, MG – 36301-160 – Brasil – tel.:(32) 3379-2401

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Ao meu filho, Rafael, que nasceu junto a este trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Meu reconhecimento e minha gratidão por todos que, de alguma forma, contribuíram

para que eu chegasse até aqui:

Primeiramente a Deus, fonte inesgotável de sabedoria e amor, refúgio nos momentos

certos e incertos.

À Profa. Dra. Dylia Lysardo-Dias, pela orientação baseada em confiança e

compreensão. Agradeço o estímulo ao rigor científico e à expressão das minhas

reflexões, a orientação solícita e generosa, a sensibilidade e os conhecimentos

compartilhados.

Aos professores e secretária do Programa de Mestrado em Letras da UFSJ, que

contribuíram para a minha formação e amadurecimento e acompanharam minha

trajetória ao longo do curso com carinho e dedicação constantes. Em especial, ao Prof.

Dr. Anderson Bastos Martins, Coordenador do programa, pela compreensão e pelos

conselhos.

Aos amigos do mestrado, especialmente Thiago, Mariana, Carla e Tatiana, pelos

momentos felizes e dramáticos e pelas trocas de experiências ao longo dessa etapa.

À Capes, pelo apoio financeiro.

À minha mãe, Angela, pela dedicação e amor. Obrigada pela atenção e cuidados com

meu filho, Rafael, enquanto eu me dedicava aos estudos.

Ao meu pai, Márcio, pelo amor e confiança em minha capacidade.

Ao meu irmão, Eduardo, pelo companheirismo e força.

Finalmente, a todos meus familiares e amigos, que acreditaram em mim e que, de

alguma forma, contribuíram para que esse momento se concretizasse.

À todos, essenciais na construção do meu eu, o meu muito obrigada.

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Ressalte-se que ninguém é apenas bom ou

mal, ninguém é integralmente autêntico, somos

todos construções de imagens.

(Érika de Moraes, 2011, p.116)

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo identificar e analisar o ethos na obra autobiográfica “O

que a vida me ensinou – Credibilidade não se ganha. Conquista-se” de Washington

Olivetto no intuito de verificar como o profissional que é responsável por criar uma

imagem positiva de um produto ou serviço constrói sua própria imagem. O estudo

do ethos privilegiou sua dimensão discursiva, com base nas proposições de Ruth

Amossy (2013) e Dominique Maingueneau (2010, 2011a, 2011b, 2013), sem deixar de

lado as proposições de Aristóteles (1998), precursor no tratamento desse conceito.

Foram analisados ainda os modos de organização enunciativo e descritivo propostos por

Patrick Charaudeau (2012) para indicar como se materializa a presença do sujeito

discursivo. A pesquisa evidenciou um sujeito preocupado em manter e até justificar a

posição de referência que ocupa em sua área profissional através da supervalorização do

eu. Trata-se, pois, de um ethos de um homem exemplar: profissional de sucesso e ser

humano com defeitos e qualidades.

PALAVRAS-CHAVE: Ethos; imagem de si; autobiografia; Washington Olivetto.

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ABSTRACT

The aim of this paper is to identify and analyze the ethos in the autobiographic book “O

que a vida me ensinou – Credibilidade não se ganha. Conquista-se”, by Washington

Olivetto, in order to verify how a professional who is responsible for creating a positive

image of a product or service creates his own image. The study of the ethos favored its

discursive dimension, based on proposals by Ruth Amossy (2013) and Dominique

Maingueneau (2010, 2011a, 2011b, 2013), without putting aside the proposals of

Aristotle (1998), precursor in the treatment of this concept. The enunciative and

descriptive methods of organization, proposed by Patrick Charaudeau (2012) to indicate

how the presence of the discursive subject materializes, were also analyzed. The

research has shown a subject concerned with maintaining and even justifying the

reference position that he occupies in his professional area through self-overvaluation. It

is, therefore, an ethos of an exemplary man: a successful professional and a human

being with defects and qualities.

KEYWORDS: Ethos; self-image; autobiography; Washington Olivetto.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Encenação do ato de linguagem................................................................47

FIGURA 2 – Capa e contracapa da obra........................................................................54

FIGURA 3 – Orelha da obra...........................................................................................55

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................11

CAPÍTULO 1 – PERCURSO TEÓRICO...................................................................15

1.1 Considerações iniciais...............................................................................................15

1.2 A autobiografia.........................................................................................................16

1.3 O ethos......................................................................................................................20

1.3.1 O legado retórico.................................................................................................21

1.3.2 Ethos pré-discursivo e estereotipagem................................................................23

1.3.3 Ethos discursivo...................................................................................................25

1.4 Enunciação e qualificação na Teoria Semiolinguística............................................28

1.5 Algumas considerações.............................................................................................32

CAPÍTULO 2 – GÊNERO E OBRA...........................................................................35

2.1 Considerações iniciais...............................................................................................35

2.2 Do pertencimento ao gênero......................................................................................35

2.2.1 Biografia e autobiografia.......................................................................................36

2.3 Do pacto-autobiográfico e da questão identitária......................................................37

2.4 Entre o público e o privado........................................................................................38

2.5 Realidade ou ficção?..................................................................................................40

2.6 Autobiografia: o desejo de sobrevivência e a manutenção da reputação..................41

2.7 Algumas considerações.............................................................................................43

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DO ETHOS......................................................................44

3.1 Considerações iniciais...............................................................................................44

3.2 Das condições de produção......................................................................................44

3.3 Do ethos pré-discursivo.............................................................................................45

3.4 Do ethos no discurso e dos efeitos de sentido...........................................................46

3.4.1 Análise dos aspectos enunciativos e do contrato de comunicação........................46

3.4.2 Análise do modo enunciativo.................................................................................59

3.4.2.1 O ato alocutivo.....................................................................................................60

3.4.2.2 O ato elocutivo.....................................................................................................64

3.4.2.3 O ato delocutivo...................................................................................................80

3.4.2.3.1 O uso das aspas.................................................................................................90

3.4.3 Análise do modo descritivo: a qualificação............................................................94

3.5 A dimensão argumentativa do ethos........................................................................120

3.5.1 Do fiador e das cenas enunciativas.......................................................................120

3.5.2 Dos papéis sociais e da multiplicidade dos ethé...................................................122

3.5.3 Dos efeitos de sentidos.........................................................................................123

3.6 Algumas considerações...........................................................................................124

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................130

ANEXO A – Introdução da obra................................................................................133

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INTRODUÇÃO

As publicidades sempre me chamaram a atenção, especialmente pela forma que

trabalham a linguagem, sempre construindo imagens e expectativas a cerca de um

produto ou uma marca. A minha inserção no programa de Mestrado em Letras

possibilitou expandir a reflexão sobre essas publicidades a partir de seu criador, o

publicitário. Aí surgiu um questionamento: como alguém responsável pela imagem do

outro construiria a própria imagem?

O papel do publicitário, juntamente com sua equipe, é criar, realizar e divulgar

campanhas e peças publicitárias, procurando a melhor forma de apresentar produtos ou

serviços ao consumidor de maneira a promover a venda dos mesmos. Desse modo,

pareceu-me interessante refletir sobre como um publicitário deixa entrever sua

subjetividade e constrói uma imagem de si ao lançar sua narrativa de vida, visto que

essa é também um produto a ser consumido.

Washington Olivetto, Chairman1 e CCO

2 da WMcCann, agência de publicidade que

tem entre os seus clientes, empresas como Bradesco, Coca-Cola, Ford, Rede Globo,

Microsoft e TIM, é uma referência na publicidade brasileira, uma vez que já ganhou

mais de 50 Leões em Cannes, festival que premia a publicidade mundial. Dentre seus

trabalhos de maiores destaques estão: a peça publicitária “Homem com mais de

quarenta anos”, a propaganda do “Primeiro sutiã” lançado pela Valisère e as campanhas

do garoto Bombril.

“Homem com mais de quarenta anos” foi um filme produzido para o Conselho

Nacional de Propagandas com a proposta de fazer com que anunciantes de empregos

repensassem seus conceitos relacionados aos homens com idade mais avançada. A peça,

desenvolvida em parceria com Francisco Petit, proporcionou a Olivetto seu primeiro

Leão de Ouro em Cannes. Se por um lado aquele trabalho estava voltado para pessoas

mais maduras, O “Primeiro sutiã” dedicava-se aos mais jovens; criado por Camilinha

Franco, Rose Ferraz e Washington Olivetto, o comercial traz a ideia da

“primeira vez” expressa no slogan “O Primeiro Valisère a gente nunca

esquece”. Esse filme recebeu o Grand-Prix do Profissionais do Ano, Prêmio

1 Chairman é um termo em inglês usado para se referir tanto à pessoa que preside uma reunião ou uma

comissão permanente, quanto a quem dirige uma grande empresa ou organização.

2 CCO é a sigla inglesa para Chief Communication Officer, diretor de criação.

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Colunistas, Comercial da Década, Ouro no Anuário do CCSP e, no exterior, o

Leão de Ouro no Festival de Cannes, além de ter sido escolhido como um dos

“100 Melhores Comerciais de Todos Os Tempos”, livro de Bernice Kanner

que tem apenas dois filmes rodados em uma língua diferente da inglesa3.Outro

trabalho de destaque na carreira de Washington Olivetto foi a série de comerciais feitos

para a Bombril com Carlos Moreno, o garoto Bombril. Essa criação de Olivetto e Petit

entrou para o Livro Guinness dos Recordes como a campanha publicitária que mais

tempo ficou no ar com o mesmo personagem, sempre representado pelo mesmo ator.

Em 2011, Washington Olivetto publicou, pela editora Versar e em parceria com a

editora Saraiva, sua autobiografia intitulada O que a vida me ensinou – credibilidade

não se ganha. Conquista-se. A obra narra a trajetória de vida de um publicitário

consagrado e celebridade sempre presente na mídia. Ela integra uma coleção dessas

mesmas editoras que tem por objetivo, de acordo com os próprios editores, “revelar as

principais experiências, os episódios mais marcantes, os maiores desafios, as certezas e

as dúvidas, os valores e os princípios que nortearam a vida de profissionais de destaque

em suas áreas” 4. Portanto, o livro traz experiências da vida de Washington Olivetto, as

histórias sobre trabalhos anteriores, família, amigos, opiniões sobre determinados

assuntos em uma narrativa em primeira pessoa. A coleção que o livro integra é

composta por narrativas de vida de pessoas bem sucedidas, capazes de gerar um relato

de experiências que sirvam como modelo para outras pessoas.

As biografias e as autobiografias vão além do voyeurismo, elas proporcionam

diversos saberes tais como dados sobre o contexto histórico do biografado e do

biógrafo, elementos da identidade coletiva de um grupo social e os valores e crenças de

uma época. Essas narrativas de vida têm apresentado bastante expressividade no cenário

atual seja quantativamente, quanto qualitativamente, já que proliferam os relatos de vida

de celebridades, de personalidades do domínio da música, da televisão, do mundo

político e artístico.

Consideramos que Washington Olivetto é responsável por criar uma imagem positiva

de um produto ou serviço nas publicidades que elabora. Mas que imagem criou de si em

sua autobiografia? O trabalho aqui proposto busca analisar o ethos que Washington

3 O outro comercial presente no livro que não é em língua inglesa é o filme Hitler, ao qual Washington

Olivetto também responde pela criação, produzido para a Folha de São Paulo. 4 A proposta dos editores está inscrita na orelha do livro O que a vida me ensinou.

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Olivetto cria de si ao dar a conhecer sua história de vida, uma narrativa que, ao tornar-se

pública, acaba sendo um produto a ser consumido.

Assim, objetivamos pesquisar como o profissional da publicidade, responsável por

criar e divulgar uma certa imagem de um produto ou serviço para que seja consumido

pelo público alvo, elabora sua própria imagem.

Os objetivos específicos são: (i) investigar os elementos linguístico-discursivos,

como as modalidades enunciativas e as qualificações presentes na autobiografia que

participam da constituição do ethos do sujeito enunciador; (ii) identificar as marcas

discursivas do sujeito enunciador, como a cena de enunciação, o tom, o caráter e a

corporalidade do fiador do discurso, de forma a relacionar a construção do ethos à

argumentatividade; e (iii) identificar e analisar as características da construção da

narrativa autobiográfica, como o pertencimento ao gênero, questões públicas e privadas,

e o efeito de realidade que contribuem para a construção de um determinado ethos.

No primeiro capítulo, traçamos o percurso teórico que norteia nossa pesquisa. Para

isso recorremos aos estudos de Sérgio Villas-Boas (2002), Philippe Lejeune (2008) e de

Leonor Arfuch (2010) sobre o espaço biográfico e seus modos de configuração. Como

tomamos o estudo da imagem a partir do conceito de ethos, utilizamos as proposições

de Aristóteles (1998), precursor no tratamento desse conceito e as formulações de Ruth

Amossy (2013) e Dominique Maingueneau (2010, 2011a, 2011b, 2013) que

desenvolvem uma abordagem discursiva desse elemento que tem origem na Retórica e

que hoje dialoga com várias áreas das ciências humanas. Apresentamos ainda a

configuração enunciativa e o procedimento da qualificação do modo descritivo

conforme constam na Teoria Semiolinguística proposta por Patrick Charaudeau (2012),

uma que articula os dizeres às suas circunstâncias sociocomunicativas.

No segundo capítulo, apresentamos a obra utilizada como nosso objeto de estudo, o

livro O que a vida me ensinou – credibilidade não se ganha. Conquista-se, inserindo-a

no âmbito do espaço biográfico e abordando os elementos composicionais de uma

autobiografia. Trata-se de contextualizar o material de análise considerando que, como

propõe a análise do discurso, o dizer não existe fora das suas condições de produção.

Questões como publico e privado, bem como realidade e ficção também foram

abordadas aqui.

No terceiro capítulo, procedemos à análise da obra, utilizando as categorias de que

constam no modo de organização enunciativo e o modo de organização descritivo

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propostos por Charaudeau (2012). A partir dessas categorizações, verificamos o ethos

emergente na obra, com base nas proposições de Maingueneau (2010, 2011a, 2011b,

2013) e Amossy (2013).

Este trabalho se justificou não apenas pelo seu material de análise, uma vez que o

contexto histórico atual aponta para valorização do gênero que impulsiona o mercado,

mas também por permitir a identificação de traços da subjetividade contemporânea por

meio de uma narrativa de vida.

Finalmente, a análise procedida permitiu concluir que Washington Olivetto,

enquanto sujeito enunciador, constrói uma imagem positiva de si através da

supervalorização do eu. A partir de uma posição de superioridade ocupada por esse

sujeito, ele se empenha em construir a imagem do profissional exemplar, virtuoso e,

como todo mundo, com alguns defeitos. Entretanto, esses defeitos, além de serem

poucos, são expostos sempre de forma atenuada. Assim, foi observado o esforço de

Washington Olivetto em não apenas confirmar seu ethos pré-discursivo de profissional

de sucesso, referência em sua área, mas também em justificá-lo.

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CAPÍTULO 1 – PERCURSO TEÓRICO

1.1 Considerações iniciais

O cenário contemporâneo vem sendo fomentado por narrativas de vida que se apresentam

das mais variadas formas: desde os gêneros canônicos, como as biografias e autobiografias,

até programas de entrevistas e reality shows. O foco está no sujeito. A vida é o tema.

Todo discurso é organizado e encenado por um sujeito enunciador que, dotado de

determinadas intencionalidades, tenta produzir alguns efeitos sobre o outro, o sujeito

destinatário, que por sua vez “detecta e interpreta à sua maneira” (CHARAUDEAU, 2012,

p.57). No caso da presente pesquisa, objetiva-se identificar e analisar esses efeitos de sentidos

propostos pelo sujeito comunicante, que fala sobre si e, por isso, cria uma imagem de si no

próprio discurso. Nessa perspectiva, a Teoria Semiolinguística proposta por Patrick

Charaudeau (2012), por meio de seus próprios quadros teóricos e metodológicos, se constitui

em um importante instrumento de trabalho que nos permite analisar a linguagem e os efeitos

produzidos por meio de seu uso.

Essa pesquisa baseia-se nos estudos de Pierre Bourdieu (2006), Philippe Lejeune (2008),

Leonor Arfuch (2010), Dylia Lysardo-Dias (2014) e Alberto Rocha Junior (2014) sobre a

autobiografia e seus modos de configuração, o que permitirá verificar como texto de

Washington Olivetto se caracteriza como uma narrativa de natureza autobiográfica. Para o

estudo do ethos, serão utilizadas as proposições de Jean-Michel Adam (2013), Aristóteles

(1998), de Ruth Amossy (2013), Galit Haddad (2013), Catherine Kerbrat-Orecchioni (2010),

Dominique Maingueneau (2010, 2011a, 2011b, 2013) e Alain Viala (2013) já que a proposta

é uma abordagem discursiva desse elemento que tem origem na Retórica e que hoje dialoga

com várias áreas das ciências humanas. A elaboração teórica de Zygmunt Bauman (2001)

acerca das questões da modernidade auxiliará no debate a respeito do sujeito contemporâneo.

A análise da configuração enunciativa e dos procedimentos descritivos será fundamentada

pelas formulações de Patrick Charaudeau (2012) no âmbito da sua Teoria Semiolinguística,

que articula os dizeres às suas circunstâncias sociocomunicativas. As proposições de

Jacqueline Authier-Revuz (1990, 2004) quanto ao uso das aspas também serão abordadas a

fim de articular essa marca de heterogeneidade linguística com o discurso relatado do modo

enunciativo proposto por Charaudeau (2012).

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1.2 A autobiografia

Vivemos o momento de alta das narrativas de vida. A inserção dessas histórias no

mercado é notória pelo número de títulos lançados no mercado a cada ano. As

biografias, as autobiografias, bem como outras narrativas que têm o sujeito enquanto

foco, vão além do voyeurismo, elas proporcionam diversos saberes tais como dados

sobre o contexto histórico dos sujeitos, elementos da identidade coletiva de um grupo

social e os valores e crenças de uma época. Essas narrativas de vida têm apresentado

bastante expressividade no cenário atual seja quantitativamente, quanto

qualitativamente, já que proliferam as narrativas de vida de celebridades, de

personalidades do domínio da música, da televisão, do mundo político e artístico.

O crescente interesse por biografias e autobiografias de notáveis e famosos, o desejo

pelos detalhes da vida dos mesmos e, nos termos de Arfuch (2010, p.60), os

“bastidores” de sua criação movimentam o mercado que abarca o espaço biográfico e

desperta a atenção de grupos heterogêneos. Esse espaço biográfico contemporâneo

inclui, segundo a autora (2010 p.17), biografias, autorizadas ou não, autobiografias,

memórias, testemunhos, diários íntimos, correspondências, retratos, perfis, além de

outros gêneros que não pertencem à ordem da escrita, como filmes, entrevistas, realities

shows, entre outros, que hoje se proliferam e se materializam de diferentes formas

devido às novas formas de comunicação em rede.

Falar de narrativas de vida é pressupor que a vida seja uma história e, como toda

história narrada – com começo meio e fim – digna de ser contada. As narrativas de vida

têm por objetivo, como aponta Lysardo-Dias (2014, p.70), “dar a conhecer um sujeito,

expondo sua vida naquilo que ele tem de particular”. Espera-se que algo da ordem do

individual e do privado seja revelado, algo que seja relevante e escape do já conhecido.

Há sempre a expectativa de que algum segredo seja divulgado.

Assim, o mercado vem sendo impulsionado por essas narrativas que possam suscitar

conhecimentos e experiências de vidas. Arfuch (2010, p.16) aponta para a leitura de

obras desses gêneros como referências individuais, que geram identificações e que

justifica a adesão das pessoas e considera como fatores de interesse a curiosidade não

isenta de voyeurismo, a aprendizagem do viver e os modelos sociais de realização. É a

vida enquanto tema. São essas experiências do outro, enquanto testemunho, que

expressam, segundo a autora (op.cit) uma tonalidade particular da subjetividade

contemporânea.

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A pós-modernidade ou a modernidade tardia é marcada pelo descentramento do

sujeito, pela fragmentação do mesmo. A individualização desse sujeito trouxe,

conforme Bauman (2001, p.46), exposições públicas de questões privadas a fim de

“fazer parte da rede”, criando, assim, comunidades frágeis que buscam

inconclusivamente um porto seguro, com a liberdade da experiência, mas com o risco

das consequências da autoafirmação. Visto isso, o espaço biográfico pode ser entendido

como um respaldo, um lugar de ancoragem, pois as experiências dos outros auxiliam

nas experiências próprias.

Essa publicação da intimidade, que gera identificação, para Silibia (2008, p.29), tão

presente na sociedade contemporânea, retrata o deslocamento do ter, característico da

sociedade capitalista, para o parecer, traço da sociedade do espetáculo, obedecendo,

assim, à lógica da visibilidade. A necessidade de parecer ou aparecer, característica da

sociedade atual, é tratada pela autora (2008, p.55) como uma mudança na questão da

subjetividade. Trata-se de olhar para dentro de si, para os conflitos interiores, para uma

perspectiva externa, um olhar para fora.

O sujeito pós-moderno, portanto, reabriu a discussão entre público e privado. Se

antes tínhamos a defesa da autonomia privada contra o domínio público, hoje a defesa é

ao domínio público, que foi invadido por aflições privadas. Lysardo-Dias (2014) afirma

que é “como se tudo fosse para ser dito ou mostrado” (ibidem, p.64), como se a

interioridade deixasse de ser da ordem do secreto e passasse a ser da ordem do

confessional. É a necessidade da exposição da intimidade como elemento cultural

contemporâneo.

É comum que pessoas públicas – como intelectuais, políticos e artistas – sejam

autores e protagonistas de narrativas que contam suas próprias histórias. Desse modo, é

difícil separar o individual do coletivo. Essa prática de narrar a própria vida tem se

tornado cada vez mais recorrente, não limitando às celebridades, especialmente depois

da criação das redes socias. Revelar o íntimo parece instituir o individuo enquanto

sujeito, dando-o voz e vez. Afinal, ninguém melhor que eu para falar de mim. É o que

acontece nas narrativas em primeira pessoa, tais quais as autobiografias.

Todo texto deixa entrever uma relação entre os sujeitos, ou seja , um contrato, que

pode ser explicitado ou não. No caso das autobiografias, Lejeune5 (2008, p.15) o

5 Após a escrita do pacto autobiográfico, Lejeune ainda escreve “O pacto Autobiográfico (bis)” e “O

pacto autobiográfico 25 anos depois”.

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identifica em termos de “pacto autobiográfico”. É esse contrato, implícito ou explícito,

do autor com o leitor, que determina o modo de leitura do texto. A “autobiografia

(narrativa que conta a vida do autor) pressupõe que haja identidade de nome entre o

autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem se fala”

(ibidem, p.24). O que define uma autobiografia, segundo o crítico francês, é essa ideia

de pacto; é a ideia deste contrato de leitura em que a relação identitária entre autor,

narrador e protagonista é obrigatória e se estabelece através do nome próprio comum a

todos; é essa “identidade de nome” que firma o pacto autobiográfico, uma vez que a

identidade afirmada no texto remete, em última instância, ao nome do autor, que, por

sua vez, não deve desonrar o próprio nome.

Segundo Lejeune (2008, p.23), tanto a biografia, quanto a autobiografia são textos

referenciais que fornecem informações a respeito de uma realidade externa ao texto que

é passível de verificação. Por outro lado, na proposição do autor (op.cit.), o que

diferencia a biografia da autobiografia é a relação estabelecida entre a identidade do

narrador e a identidade do personagem principal. Enquanto na biografia essas

identidades são divergentes, na autobiografia são coincidentes e é isso o que firma o

pacto autobiográfico.

Essa coincidência de identidades é o que gera a sensação da transparência nas

narrativas. Espera-se que o que se diz seja a verdade, afinal há um sujeito para além do

texto que responde por ele. Nesse sentido, é em relação ao nome próprio que devem ser

situados os problemas da autobiografia. Conforme Lejeune (2008, p.23), o autor é a

única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável e que a responsabilidade

da enunciação de todo texto escrito é atribuída ao mesmo e, por isso, existe o

compromisso de responsabilidade de uma pessoa real, uma vez que ele tem um nome a

prezar e deve honrá-lo.

Para Lejeune (2008, p.23), o autor é definido por ser simultaneamente uma pessoa

real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Lejeune (op.cit) afirma que

“para o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se

define como pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir

do que ele produz.

Arfuch (2010, p.51), por sua vez, faz uma crítica a essa noção de pacto proposta por

Lejeune. Segundo a autora (op.cit), o sujeito não se expressa por meio do discurso, ele

se constitui através dele. Para ela, a identidade não pode ser representada apenas a partir

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de um contrato baseado no nome próprio. Isso porque há um distanciamento temporal

entre narrador e personagem. A autora (2010, p.54) afirma que “o narrador é outro,

diferente daquele que protagonizou o que vai narrar”, por isso, há a impossibilidade do

narrador de hoje assumir alguma responsabilidade por esse outro – personagem.

Ademais, ela explica que a autobiografia permite o conflito rememorativo “entre o eu

que era e o que ‘chegou a ser’” (ibidem, p.55), em uma narração em que o eu seria a

construção imaginária de si mesmo como outro.

Enquanto Lejeune (2008, p.55) defende a relação de semelhança entre personagem e

uma figura para além desse texto, apesar de poder definir o gênero autobiográfico por

algo que é exterior ao texto, não se trata de buscar uma semelhança com a pessoa real,

mas de verificar no texto a crença que produz; Arfuch (2010, p.138), por sua vez,

contesta essa identificação. Segundo ela, não se pode ter uma representação verdadeira

do autor, isso porque não se pode alcançar a verdade em seu todo, afinal, “toda história

é apenas uma história a mais a ser contada sobre a personagem” (op.cit).

A respeito dessa busca pela totalidade, Bourdieu (2006, p.184) fala da ilusão de que

“a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser

apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um

projeto”. É o que esse sociólogo francês chama de ilusão biográfica. Não se pode

entender a vida enquanto unidade, enquanto totalidade; mesmo porque, como visto

anteriormente, o próprio sujeito é descontínuo, ele é fragmentado em consequência de

seus inúmeros papéis sociais. Logo é preciso diferenciar a vida vivida da vida contada.

Para Rocha Junior (2014, p.78), a impossibilidade de atingir a totalidade permite o

arranjo de fragmentos. É esse arranjo que culmina nas obras e textos do espaço

biográfico; que não dão conta de uma totalidade, mas os organizam segundo um

propósito, geralmente mercadológico. Cabe ao autor deixar esta vida atraente, passível

de ser lida. Isso significa um trabalho, consciente ou não, de construção textual e

discursiva de uma narrativa que fornece uma representação da vida vivida.

Para isso, temos na escrita autobiográfica o lugar da memória. É através dela que

toda narrativa se desenvolve. Conforme Lysardo-Dias (2014, p.70), “o passado, pelo

viés da rememoração, é transformado em discurso no momento presente”. A

transformação da vida em escrita já atribui à narração um caráter ficcional, uma vez

que, como afirma a autora (2014, p.69), todo dizer pressupõe uma subjetividade e tem

um teor ficcional.

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Faz-se necessário distinguir o fictício do ficcional . A partir de Costa Lima, Rocha

Júnior (2014) faz essa distinção: o fictício é uma “característica determinada a partir da

experiência da realidade [...] e ficcional como próprio da experiência da narrativa”

(ibidem, p.85). Para Rocha Júnior (2014, p.85), os textos que compõem o espaço

biográfico “guardam em si tanto um discurso impregnado pela vontade de verdade

quanto um discurso ficcional que por si só questiona a vontade de verdade” (op.cit).

A ficcionalização aqui é entendida como efeito da narrativa, uma vez que “a

linguagem é por natureza representacional; logo, a ficcionalidade é intrínseca ao dizer.

A questão se refere muito mais ao uso de procedimentos que geram um efeito de

verdade do que uma apriorística fidelidade aos fatos” (LYSARDO-DIAS, 2014, p.69).

Portanto, o que está em voga não é, pois, a discussão do que é relativo à memória ou à

imaginação – uma vez que, sendo a primeira é falha, a segunda preencheria as lacunas

deixadas pelo tempo – mas os efeitos de sentido propostos pelo que está materializado

pelo texto.

Isso posto, tratar a autobiografia enquanto representação do real, passível de

verificação, conforme a proposição de Lejeune (2008), pode ser considerado um tanto

quanto ilusório, contudo, não podemos deixar de reconhecer a importância de sua obra

para o estudo do gênero. Conforme visto, a autobiografia revela imagens de um sujeito

construídas a partir de determinados interesses, mas que geram efeitos de verdade.

1.3 O ethos

De acordo com Maingueneau (2011a, p.11), o crescente interesse pelo ethos “está

ligado a uma evolução das condições do exercício da palavra publicamente proferida,

particularmente com a pressão das mídias audiovisuais e da publicidade”. Porém, de

acordo com o mesmo autor (2011a, p.12), “um dos maiores obstáculos com que

deparamos quando queremos trabalhar com a noção de ethos é o fato de ela ser muito

intuitiva”.

Efetivamente, no mundo globalizado de hoje, a informação propaga em escala

completamente nova. As novas tecnologias propiciaram novos lugares de falas para

públicos ainda maiores e mais diversificados. Visto isso, acreditamos que pertencer ao

mesmo grupo social, partilhar da mesma cultura parece não ser suficiente para o sucesso

do empreendimento comunicacional. Para além desses fatores, entender o contexto

histórico e à adequar da linguagem ao público, representam elementos importantíssimos

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para construir imagem favorável de si e, assim, persuadir. Desse modo, o estudo da

noção de ethos representa uma ferramenta significativa nos dias de hoje.

Delimitar a noção de ethos com alguma precisão é, na visão de Maingueneau (2010,

p.123), uma problemática. De acordo com o autor (op.cit)

Em grego, e no próprio Aristóteles, o termo “ethos” tinha um sentido

pouco especificado e se prestava às mais variadas abordagens: na retórica,

na moral, na política, na música... Ainda que nos limitemos ao “ethos”

propriamente discursivo, é evidente que ele é coextensivo a toda

enunciação: assim que alguém toma a palavra, algo da ordem do “ethos”

se manifesta; através do discurso, o locutor ativa no destinatário a

construção de uma certa representação de si, que ele [o locutor] se esforça

por controlar, de forma mais ou menos consciente (op.cit).

Ainda que delimitar o termo seja uma problemática, é na Retórica que encontramos a

primeira elaboração dessa noção e é a partir dela que a análise do discurso respalda sua

fundamentação enquanto a imagem que o orador constrói de si, via discurso. Assim,

nosso trabalho é tomar essa noção tendo como ponto de partida as considerações feitas

por Aristóteles (1998) e aliá-la a outras formulações de abordagens discursivas desse

elemento que hoje dialoga com várias áreas das ciências humanas.

1.3.1 O legado retórico

Viala (2013) afirma que tudo é argumento e que, por isso, a retórica está por toda a

parte. Ele entende a retórica em um sentido amplo, são “as maneiras de discorrer para

persuadir, não só as técnicas utilizadas nos gêneros oratórios canônicos, mas o risco

implicado em toda tomada de decisão, que existe em qualquer uso da linguagem”

(2013, p.179). De acordo com ele, tudo faz discurso e a retórica está sempre presente,

quer seja implícita ou explicitamente.

A Retórica é, para Aristóteles (1998, p.33), “a faculdade de ver teoricamente o que,

em cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão”, sua tarefa não é persuadir, mas

discernir meios de persuadir a propósito de cada questão. Aristóteles (1998, p.45),

afirma que cada homem em particular e todos os homens em comum se propõem a um

fim e para alcançar tal fim buscam certas coisas e evitam outras. Assim, a arte Retórica

parece ser capaz de apontar o que é próprio para persuadir e Aristóteles afirma que “não

se deve persuadir o que é imoral” (ibidem, p.31), nesse sentido o discurso deve trazer o

que é verdade ou o que parece ser a verdade.

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Segundo o filósofo (1998, p.29) “todos os homens [...] se empenham dentro de certos

limites em submeter a exame ou defender uma tese, em apresentar uma defesa ou uma

acusação”. Segundo ele, o sucesso do empreendimento argumentativo reside em provas

de três espécies: as que residem no caráter moral do orador; aquelas que se criam no

ouvinte; e outras no próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar; ou

seja, o ethos, pathos e o logos, – fatores que afetam tanto a razão, quanto a

sensibilidade, as paixões.

Adam (2013, p.94), retomando a Retórica aristotélica, afirma que qualquer

esquematização discursiva, ou seja, qualquer solicitação à construção do sentido, deve

ser considerada uma estrutura dinâmica submetida a atrações tendenciais entre esses três

pólos. Dito de outra forma, embora esses componentes se complementem, há no

discurso, aquele fator que se destaca de acordo com o propósito do orador. Nesse

sentido, a eficácia argumentativa se pauta, em maior recorrência, em um componente da

tríade. A argumentação baseada no caráter do orador refere-se ao ethos; a argumentação

baseada no estado emocional do auditório, ao pathos; e a argumentação baseada nos

argumentos propriamente ditos, ao logos.

O ethos refere-se à argumentação voltada para a figura do orador. A construção de

uma imagem de si é um conceito fundamental na eficácia discursiva, uma vez que é na

credibilidade depositada no orador que está concentrada a maneira de se adquirir a

adesão do público. Conforme Aristóteles (1998, p.33), a persuasão é obtida “por efeito

do caráter moral, quando um discurso procede de maneira que deixa a impressão de o

orador ser digno de confiança”. Essa confiança que os oradores inspiram provém, ainda

segundo o filósofo (1998, p.97), de três causas: a prudência, a virtude e a benevolência;

a falta dessas qualidades ou até de uma delas, compromete a verdade e,

consequentemente, a argumentatividade.

O pathos, por sua vez, refere-se à argumentação voltada para o auditório, mais

especificamente, às emoções desse. Trata-se de obter a persuasão mobilizando os

sentimentos e emoções, as paixões, do auditório. Não se trata da disposição real do

auditório, mas da imagem que o orador faz desse auditório e auxilia na forma pela qual

ele irá se pronunciar perante o outro.

O logos, por fim, refere-se ao discurso em si, à argumentação que se pauta nas regras

dos argumentos racionais, demonstrados ou que necessitam de demonstração.

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Convence-se pela lógica. De acordo com Aristóteles (2008, p.34), os discursos baseados

em exemplos prestam-se mais que os outros para persuadir.

Essa tríade aristotélica (o ethos, o pathos e o logos) pode ser considerada a base dos

fundamentos argumentativos apreendidos socialmente, que refletem a posição em que

estamos e as crenças que compartilhamos com os demais, além de garantirem o sucesso

ou o fracasso da visada persuasiva.

Apesar da grande contribuição da Retórica aristotélica para a noção de ethos, essa

formulação parece não ser suficiente para os dias de hoje. Consideramos que atualmente

vivemos a democratização da escrita e a tecnologia contribuiu bastante para que isso

ocorresse, criando espaço e dando voz a todos que têm acesso a ela. Assim, os

pressupostos de Aristóteles, que dão conta do que diz respeito apenas à palavra oral

serve como respaldo para a análise do discurso que hoje trabalha o ethos não somente

na sua dimensão oral, mas também abarca sua dimensão escrita. Antes, porém, de

tratarmos sobre o ethos discursivo, é necessário fazermos algumas considerações acerca

do ethos pré-discursivo e da estereotipagem, pois são conceitos que remetem a algo que

Aristóteles não levava em consideração: a reputação do orador.

1.3.2 Ethos pré-discursivo e estereotipagem

Ethos pré-discursivo, na abordagem de Maingueneau (2011a), ou ethos prévio, na

abordagem de Amossy (2013): em ambas as perspectivas, trata-se da imagem que se

tem do locutor antes que ele tome a palavra; é, portanto, o que precede e até condiciona

a construção da imagem no discurso.

No momento em que toma a palavra, o orador faz uma ideia de seu

auditório e da maneira pela qual será percebido; avalia o impacto sobre o

seu discurso atual e trabalha para confirmar sua imagem, para reelaborá-la

ou transformá-la e produzir boa impressão conforme as exigências de seu

projeto argumentativo (AMOSSY, 2013, p.125).

Nesse sentido, o ethos pré-discursivo serve como instrumento de auxilio ao locutor

na construção da própria imagem. O que norteará seu discurso e o conferirá

credibilidade. Logo, a imagem preestabelecida afeta e condiciona a construção do ethos

no discurso. Nesse sentido, Haddad (2013, p.163) afirma que “longe de construir um

elemento exterior ao discurso, cuja análise não deve ser levada em conta, o ethos prévio

está, ao contrário, estreitamente ligado ao ethos discursivo”.

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Ao se tratar da imagem preexistente do locutor, faz-se necessária a intervenção da

noção de estereótipo, a qual desempenha um papel essencial no estabelecimento do

ethos nos trabalhos de Amossy (2013, p.125). “A estereotipagem, [...] é a operação que

consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um

esquema coletivo cristalizado” (op.cit). Portanto, a estereotipagem convoca os saberes

supostamente comuns entre os sujeitos, sem os quais seria impossível a comunicação.

Entretanto, afirmar que a estereotipagem está cristalizada na coletividade sugere que

essa seja algo fixo, portanto, imutável; Lysardo-Dias (2012, p.27), por sua vez, afirma

que os estereótipos são representações socialmente partilhadas, porém não se trata de

algo fixo. De acordo com ela, “os estereótipos são formas convencionalizadas de

apreensão do real que os sujeitos vão internalizando e difundindo; são esquemas

culturais que instituem uma percepção coletiva, mas nem por isso imutável” (ibidem,

p.31).

Essa definição de estereótipos enquanto formas estabilizadas, mas que podem ser

mudadas, permite refletir acerca da noção do ethos, que também pode ser mudada a

partir de um determinado discurso. Se de antemão o público possui uma imagem

estereotipada não favorável do sujeito enunciador, ethos pré-discursivo, a partir do

discurso desse sujeito, seu ethos pode se modificar, e, partir disso, criar outra imagem

estereotipada.

Quando se trata de alguma personalidade conhecida, Amossy (2013, p.126) afirma

que o indivíduo “será percebido por meio da imagem pública forjada pelas mídias”.

Nesse sentido, o processo de construções prévias de imagem e de estereotipagem é uma

via de mão dupla: público constrói uma imagem estereotipada do sujeito enunciador ao

mesmo tempo em que o sujeito enunciador, em uma perspectiva argumentativa, faz uma

imagem que o público pode ter dele, dessa forma ele poderá direcionar e adequar seu

discurso para confirmar ou refutar aquela imagem que ele acredita que o público faz

dele. Assim,

o orador adapta sua apresentação de si aos esquemas coletivos que ele crê

interiorizados e valorizados por seu público-alvo. Ele o faz não somente

pelo que diz de sua própria pessoa (frequentemente, não é de bom-tom

falar de si), mas também pelas modalidades de sua enunciação (ibidem,

p.126).

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A eficácia da palavra acontece, de acordo com Amossy (2013), simultaneamente em

diferentes níveis, não podendo separar o ethos discursivo da posição institucional (ou

seja, exterior) do sujeito enunciador, nem dissociar totalmente a troca verbal da

interação social, uma vez que é a posição institucional do sujeito enunciador e o grau de

legitimidade que ela lhe confere que contribuem para suscitar uma imagem prévia.

Porém, nem sempre o ethos pré-discursivo será estabelecido. Como pontua

Maingueneau (2011a, p.16) “é assim quando lemos um texto de um autor

desconhecido”, por exemplo. Nos demais casos, em que um nome ou uma assinatura

são suficientes para evocar uma representação estereotipada, quando há um ethos pré-

discursivo, a imagem preexistente do sujeito enunciador só será confirmada, refutada ou

modificada a partir do discurso. Assim, como já mencionado anteriormente, o ethos pré-

discursivo representa um elemento estritamente ligado ao ethos discursivo e deve ser

levado em conta em uma análise discursiva.

1.3.3 Ethos discursivo

De acordo com Amossy (2013, p.9) todo ato de tomar a palavra implica a construção

de uma imagem de si, nesse sentido,

não é necessário que o locutor faça seu auto- retrato, detalhe suas

qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas

competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são

suficientes para construir uma representação de sua pessoa. Assim,

deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma

apresentação de si.

Nessa mesma perspectiva, Kerbrat-Orecchioni (2010, p.119) afirma que o ethos não

consiste na autoatribuição explícita de certas qualidades, mas na sua indicação, através

do comportamento. Assim, dizer é, antes, da ordem do mostrar. De acordo com a autora

(2010, p.110), a noção de ethos diz respeito às maneiras, boas ou más e

remete a certas qualidades abstratas dos sujeitos sociais, as quais se

manifestam concretamente em seus comportamentos discursivos – os

atores interiorizam certos “valores”, que eles vão fixar em sua maneira de

se conduzirem na interação.

Já é sabido que essa noção de ethos, enquanto imagem de si, pertence à tradição

retórica, Maingueneau (2013) por sua vez, utiliza-se desse conceito e o expande,

inserindo-o na análise do discurso. Isso significa, segundo o autor (2013, p.69),

ultrapassar o quadro da argumentação, estudando sua incidência em textos escritos e

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que não se inscrevem necessariamente em situações de argumentação, ou seja, o ethos

aparece não apenas no discurso argumentativo, mas em toda troca verbal, seja ela oral

ou escrita.

Além da persuasão por argumentos, Maingueneau (2013, p.70) afirma que a noção

de ethos permite refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a uma certa

posição discursiva. A adesão é, de acordo com Viala (2013, p.167), em sentido mais

amplo, o conjunto dos efeitos de crença em uma opinião e, em sentido mais restrito,

consiste em atribuir uma crença à posição na qual alguém se encontra, portanto, pode

ser entendido enquanto processo que faz passar da opinião à crença.

Crer em algo, no dicionário Aurélio, refere-se ao ato de “aceitar como verdadeiras as

palavras ou afirmações”; o que vai ao encontro dos pressupostos aristotélicos que

afirmam que se deve persuadir somente com a verdade ou com o que parece ser

verdade. Em vista disso, para passar uma mensagem aparentemente verdadeira o sujeito

enunciador deve adaptar, de acordo Kerbrat-Orecchioni (2010), seu comportamento ao

seu estatuto, à situação de enunciação, ao sujeito interpretante, entre outros fatores.

Conforme a autora (2010), uma mudança muito radical pode ser catastrófica para a

imagem desses sujeitos enunciadores, uma vez que se cria a suspeita de falsidade e,

assim, compromete a credibilidade, bem como todo o empreendimento comunicativo.

Desse modo, o ethos visado nem sempre é o ethos produzido e é isso o que permite falar

da adesão ou não à posição discursiva do sujeito enunciador. Construir uma imagem de

si no discurso é, antes de tudo, um trabalho com a linguagem, com o social e com a

cultura.

Conforme Maingueneau (2011a, p.13), o ethos é construído pelo discurso e não

remete a uma imagem do sujeito enunciador exterior a sua fala, é, portanto, uma noção

exclusivamente discursiva. Essa noção consiste, segundo Kerbrat-Orecchioni (2010,

p.121), em um duplo processo semiótico, em seu processo normal o sujeito enuncia uma

informação e, em um processo paralelo, fixa certas características de sua identidade

através de seu comportamento verbal e não verbal, com a ajuda de certos marcadores ou

indicadores. É o que Adam (2013, p.102) denomina de “imagem esquematizada” do

sujeito no discurso. Apesar de não refletir à uma identidade real, Kerbrat-Orecchioni

(2010, p.122) aponta para a impossibilidade de dissociar completamente a identidade

aparente da identidade real, levantando, assim, a problemática da questão da relação

entre ser e parecer do sujeito fonte do ethos.

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Para os trabalhos que seguem na linha da análise do discurso, não há pretensão de

dar conta de uma realidade para além do texto. Os trabalhos se pautam no que é

mostrado no e pelo discurso e, por isso, pretende dar conta do que é construído a partir

dele. Além de ser uma noção discursiva, o ethos é, ainda, na perspectiva de

Maingueneau (2011a, p. 17), um processo interativo de influência sobre o outro e uma

noção sócio-discursiva; um comportamento socialmente avaliado que não pode ser

apreendido fora de uma situação de comunicação precisa.

Um texto, na perspectiva de Maingueneau (2011a, p.18), é sustentado por uma voz, a

de um sujeito situado para além desse texto. O texto escrito, mesmo quando nega,

possui um tom que dá autoridade ao que é dito, o que permite ao leitor construir uma

representação do corpo do enunciador, não do autor efetivo. A leitura faz, então, de

acordo com o autor (2011a, p.18), emergir uma instância subjetiva que desempenha o

papel de fiador do que é dito. A construção da figura desse fiador, segundo ele, parte de

indícios textuais de diversas ordens, ao fiador são atribuídos um caráter, que

corresponde a uma gama de traços psicológicos, e uma corporalidade, que corresponde

a uma constituição corporal, a uma maneira de se vestir e de se comportar no espaço

social. Conforme Maingueneau (2010, p.194), uma maneira de dizer remete a uma

maneira de ser.

“O simples fato de que um texto pertence a um gênero de discurso ou a um certo

posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos”

(MAINGUENEAU, 2013, p.71); assim, o caráter e a corporalidade do fiador apoiam-se

sobre um conjunto de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de

estereótipos sobre as quais a enunciação se sustenta. Nada tem a ver, pois, em conferir

um estatuto real ao discurso, mas em considerar no discurso certas representações

socialmente estabelecidas a fim de se obter a adesão do público, que por sua vez,

assimila as características do enunciador, dando-lhe corpo. A forma pela qual o sujeito

interpretante adere ao discurso, dá-se o nome de incorporação.

O sujeito enunciador não é, conforme Maingueneau (2013, p.75) uma referência

estável, pois está inscrito em um quadro interativo, em uma instituição discursiva de

configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciações

legítimos, um suporte material e um modo de circulação para o enunciado. Nesse

sentido, de acordo com o autor (2013, p.75), o discurso pressupõe uma cena de

enunciação, que integra três cenas: a cena englobante, que corresponde ao tipo de

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discurso (literário, religioso, filosófico...), a cena genérica, que é o contrato associado a

um gênero (editorial, sermão...) e a cenografia, que é construída pelo próprio texto: “um

sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética etc.”

(op.cit).

O ethos discursivo é, de acordo com Maingueneau (2008, p.18), resultante da

interação de diversos fatores: “ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado),

além de fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação

(ethos dito) – diretamente ou indiretamente”. Para ele, é impossível definir uma

fronteira nítida entre o “dito” e o “mostrado” pela enunciação. A interação dessas

diversas instâncias: pré-discursivo, discursivo, dito e mostrado, estabelecem o que

Maingueneau (2008, p.19) classificou de ethos efetivo.

Para Kerbrat-Orecchioni (2010, p.128), o desafio para o analista ao trabalhar o ethos

é a interpretação, de acordo com a autora (op.cit) os indicadores e índices de ethos são

extremamente polissêmicos, logo, devemos admitir que eles podem ser interpretados de

maneira não somente variável, mas até mesmo inversa; visto isso,

a tarefa do analista consiste em tentar reconstituir as diferentes

interpretações atribuídas ao segmento de interação analisando por seus

diferentes destinatários – aos quais, nos limitamos a simples hipóteses,

uma vez que não temos acesso aos mesmos (op.cit).

Assim, conforme a autora (op.cit.) a dificuldade para o analista repousa na necessidade

em dar conta do ponto de vista dos “membros”, dos envolvidos, e adotar um ponto de

vista excedente (a de um anti-interpretante) ao mesmo tempo; ele “deve compreender

como os enunciados são compreendidos pelas diferentes pessoas implicadas na troca

verbal e, correlativamente, como eles são coproduzidos ao longo do desenvolvimento da

interação” (KERBRAT- ORECCHIONI, 2010, p.134).

1.4 Enunciação e qualificação na Teoria Semiolinguística

A linguagem, para a análise do discurso, AD doravante, é um fenômeno complexo

que está além dos manejos de regras gramaticais e das palavras do dicionário; ela se

insere no social e que, por isso, determinadas competências são necessárias na

comunicação. A competência semiolinguística é uma delas e “consiste em saber

organizar a encenação do ato de linguagem de acordo com determinadas visadas [...],

recorrendo às categorias que cada língua nos oferece” (CHARAUDEAU, 2012, p.7).

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Essa competência aliada às competências situacional e semântica é o que o teórico

francês chama de competência discursiva.

Para Charaudeau (2012, p.17), a linguagem não é transparente, pois permite

diferentes leituras, ela é constituída de um explícito e um implícito e, por isso, vai

nascer de circunstâncias específicas de discurso; a comunicação vai se realizar no ponto

de encontro dos processos de produção e de interpretação e será encenado por duas

entidades, desdobradas em dois sujeitos, o de fala e o agente.

Assim, para que o ato de linguagem seja bem sucedido, Charaudeau (2012, p.56)

afirma que o sujeito comunicante utiliza-se de contratos e estratégias, que pressupõe que

os indivíduos pertençam a um mesmo corpo de práticas socias e que o sujeito

comunicante organize e encene suas intenções a fim de produzir determinados efeitos

sobre o sujeito interpretante, que por sua vez detecta e “interpreta à sua maneira”.

Os princípios de organização do discurso são instrumentos de reflexão que permitem

compreender melhor os fenômenos da comunicação, em outras palavras, são conceitos e

categorias que participam do funcionamento de toda troca verbal. Comunicar vai além

de transmitir uma informação. Comunicar é, pois, conforme Charaudeau (2012, p.68),

proceder a uma mise en scène, ou seja, “a uma encenação”, a qual os sujeitos, a situação

de comunicação, os modos de organização do discurso, a língua e o texto devem ser

levados em conta em função dos efeitos de sentidos a serem produzidos.

O ato de comunicação, na proposição de Charaudeau (2012, p.74), pode ser agrupado

em modos de organização que caracterizam a língua segundo sua finalidade discursiva.

Eles podem ser classificados em enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo.

Esses modos são estratégias utilizadas pelo sujeito enunciador de acordo com a

“situação de comunicação”, a fim de produzir sentido. Cada um desses modos propõe,

na verdade, a sua maneira, a sistematização do mundo referencial. Um texto é sempre

heterogêneo do ponto de vista da sua organização, por isso, pode apresentar mais de um

modo; a utilização de um ou mais modos depende de qual efeito de sentido o

enunciador pretende transmitir. Na obra em análise, a autobiografia O que a vida me

ensinou – Credibilidade não se ganha. Conquista-se de Washington Olivetto, os modos

de organização enunciativo e descritivo – por meio da qualificação – se apresentam

como ferramentas importantes para análise do ethos, objetivo principal da pesquisa.

O modo enunciativo é uma categoria de discurso voltada para o sujeito e sua forma

de agir na encenação do ato de comunicação. Enunciar, segundo Charaudeau (2012,

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p.82), é organizar as categorias da língua, de forma a dar conta da posição que o sujeito

enunciador ocupa em relação ao sujeito destinatário, em relação ao que ele diz e em

relação ao que o outro diz. Assim, podemos distinguir três funções desse modo, que é

estabelecer uma relação de influência entre sujeitos, revelar um ponto de vista do sujeito

enunciador e retomar a fala de um terceiro; sendo essas as modalidades alocutivas,

elocutivas e delocutivas, consecutivamente.

O comportamento alocutivo é caracterizado pela presença explícita do sujeito

destinatário, que é interpelado através de categorias da língua, tais quais os pronomes

pessoais ou nomes próprios ou comuns que o identifiquem. Espera-se que essa

modalidade provoque uma ação nesse sujeito. São exemplos dessa modalidade: a

autorização, a proposta e a interrogação. O comportamento elocutivo, por sua vez,

ocorre quando o sujeito enunciador expressa seu ponto de vista, sem, contudo, implicar

o sujeito destinatário naquilo que é dito. Correspondem a essa modalidade as categorias

como a opinião, a promessa e a declaração. Por fim, o comportamento delocutivo é

caracterizado pela impessoalidade, ambos os sujeitos são desvinculados. A intenção

comunicativa existe por si própria. Como é o caso da asserção e do discurso relatado.

É, portanto, através do modo enunciativo que encontramos as categorias da língua

que modalizam o enunciado e que permitem explicitar as diferentes posições do sujeito

enunciador e de suas intencionalidades enunciativas. De acordo com Charaudeau (2012,

p.81), embora a modalização e o enunciativo estejam intimamente ligados, um não deve

ser confundido com o outro. Para o autor (op.cit), enquanto a modalização é uma

categoria da língua, que reúne procedimentos linguísticos; o enunciativo é uma

categoria do discurso que permite demonstrar como o sujeito enunciador age no ato de

comunicação.

Já o modo de organização descritivo, na perspectiva de Charaudeau (2012), enquanto

texto, pode possuir outra finalidade além da descrição; ele pode ter a finalidade de

informar, de incitar um fazer ou de explicar. Esse modo, segundo o autor (2012, p.111)

consiste em fazer existir os seres a partir de um “olhar parado”, nomeando-os,

localizando-os e atribuindo-lhes qualidades que os singularizam. Trata-se de classificar

as coisas a partir de sua identificação. Assim, os componentes desse modo de

organização são: nomear, localizar-situar e qualificar.

Nomear é significar as coisas. A partir da visão de mundo do sujeito, nomear é, para

Charaudeau (2012, p.112) “o resultado de uma operação que consiste em fazer existir

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significantes no mundo, ao classificá-los”. Já localizar-situar consiste em determinar o

lugar que um ser ocupa no espaço e no tempo além de caracterizá-lo segundo sua

posição espaço-temporal; trata-se de um recorte objetivo do mundo, sem, contudo,

desconsiderar que esse recorte “depende da visão que um grupo cultural projeta sobre

esse mundo” (CHARAUDEAU, 2012, P.114). Por fim, qualificar consiste em atribuir

uma qualidade, um sentido específico a um ser; segundo o autor (2012, p.115) “toda

qualificação tem origem no olhar que o sujeito falante lança sobre os outros seres e o

mundo, testemunhando, então, sua subjetividade”; é uma atividade que permite ao

sujeito manifestar seu imaginário – individual e/ou coletivo. Esses componentes do

modo descritivo são, ao mesmo tempo, autônomos e indissociáveis.

De acordo com o teórico (2012, p.117), não há um percurso obrigatório para

construção desse modo, mas é a partir de sua interação com os outros modos que ele

adquire sentido. A intervenção do sujeito enunciador na descrição também contribui na

produção de determinados efeitos de sentidos, como o efeito de saber, o efeito de

realidade e de ficção, o efeito de confidência e o efeito de gênero. Charaudeau (2012,

p.139) lembra que esses são efeitos possíveis e que o leitor efetivo pode não percebê-

los.

Dentro da Teoria Semiolinguística o efeito de saber fabrica uma imagem de um

sujeito sábio, que utiliza o seu conhecimento na comprovação da veracidade de sua

argumentação. Já os efeitos de realidade e de ficção são tratados em conjunto, eles

“constroem uma imagem dupla de narrador-descritor, a qual ora é exterior ao mundo

descrito, ora é parte interessada em sua organização” (CHARRAUDEAU, 2012, p.140).

O efeito de confidência, por sua vez, parte da intervenção do sujeito, que faz uma

apreciação pessoal ao revelar reflexões pessoais, ao interpelar diretamente o leitor, ao

chamar o sujeito interpretante a compartilhar uma reflexão que o sujeito enunciador fez

consigo mesmo, ao compartilhar com o leitor a forma pela qual organizou seu discurso,

ou ainda, ao negar algumas qualificações antes de afirmar outras. Por fim, o efeito de

gênero é o resultado do emprego de alguns procedimentos discursivos, como frases

mais ou menos estereotipadas, que se repetem e que caracterizam determinado gênero.

A descrição, de acordo o teórico (2012, p.112) pode ser arbitrária, pois é o sujeito

que decide a proporção de uma descrição dentro de um relato. Ele também aponta para a

necessidade de observar que esse sujeito que constrói a descrição é sobredeterminado

pelas características culturais do grupo social ao qual pertence. Portanto, a descrição

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identifica as coisas a partir de um consenso – regido por códigos sociais – que pode, no

entanto, ser relativizada e até subjetivada de acordo com decisão do sujeito. Além do

mais, o autor (2012, p.144) lembra que é a finalidade de um texto que torna uma

descrição pertinente.

1.5 Algumas considerações

A busca pelo sentido da vida levou o sujeito à exposição da própria vida. O mercado,

hoje, é abastecido por narrativas de vidas que promovem conhecimentos e incitam a

curiosidade. Questões privadas começaram a partilhar o mesmo espaço das questões

públicas. A expansão da comunicação propiciou o surgimento de perfis virtuais que, a

todo tempo, revelam intimidades. Assim, o espaço biográfico é regido por narrativas

que seguem a ordem do espetáculo, que faz com que a vida seja contada não apenas

como mais uma vida, mas uma vida que tenha algo a mais.

Em sua forma testemunhal de narrar, o autor-narrador-personagem da autobiografia

nos faz crer que a história contada é verídica. Contudo, toda escrita de uma vida é

também uma criação. Ao contarmos uma história recorremos aos processos mentais que

nos auxiliam na reconstituição dos fatos. Os fatos narrados não correspondem,

necessariamente, ao ocorrido. Contudo, esses fatos são apresentados enquanto

realidades. Por se tratar de uma exposição pública, pode haver alteração do real ou,

ainda, atenuações para garantir determinados efeitos de sentidos. Assim, a história da

própria vida é narrada de forma a construir ethé que vão de acordo com a

intencionalidade do autor. Há razões para que uma narrativa seja escrita de uma forma e

não de outra, dentre essas razões podemos elencar o próprio mercado. Além do mais,

nos termos de Charaudeau (2012, 17), a linguagem não é transparente, ela é constituída

de explícitos e implícitos – o que permite diferentes modos de contar a mesma história,

bem como diferentes leituras do mesmo texto.

A questão principal que gira em torno da autobiografia diz respeito à “identidade de

nome”, ou seja, a coincidência do nome próprio entre autor-narrador-personagem. Essa

identidade do nome pode ser confundida pelo compartilhamento do eu gramatical.

Contudo, dentro da AD, o importante é o eu construído no e pelo discurso – o que é por

ele mostrado. Assim, não interessa saber quem é o autor na vida real, na exterioridade

do texto, nem se o que ele diz é realmente a verdade, mas o que é pelo discurso

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constituído e os efeitos de sentido produzidos. Por isso, entendemos a autobiografia, não

como gênero que revela identidades, mas como narrativa que constrói imagens – ethé.

O ethos representa um instrumento importante quando se pretende suscitar a adesão

do público a determinado conceito e, por isso, desponta também como uma importante

ferramenta para a argumentação. Uma imagem de si bem construída corrobora o

sucesso do empreendimento proposto, uma vez que garante credibilidade e autoridade.

É de forma indireta e de espelhamentos – reflexões imagéticas – entre sujeitos, que o

discurso oferece todos os elementos para compor um retrato de si, sem que,

necessariamente, se faça uma autodescrição.

Consideramos que o estudo dessa noção de ethos aliado ao gênero autobiográfico

permite vislumbres da subjetividade contemporânea, uma vez que os discursos se

pautam em sujeitos socialmente responsáveis e práticas comumente difundidas. O que

está em voga é o sujeito; é em relação a ele que as questões em torno da autobiografia

são levantadas. São as imagens que ele projeta em sua escrita que revelam contornos da

subjetividade contemporânea e é em relação à identidade do nome que encontramos o

que poderia ser uma problemática. Contudo, vimos também que mais do que dar conta

dos fatos e da verdade em si, a questão se refere muito mais ao uso dos procedimentos

que geram efeitos de verdades.

Para produzir tais efeitos no público, o sujeito enunciador utiliza componentes do

dispositivo de comunicação (situação de comunicação, modos de organização do

discurso, categorias da língua, texto). Visto assim, o ato de comunicar é, então, uma

questão de estratégia. No caso do nosso estudo, que tem como objeto de análise uma

autobiografia, os modos de organização do discurso enunciativo e descritivo auxiliarão

no processo de identificação e análise do ethos.

O modo enunciativo testemunha a forma pela qual o falante se apropria da língua

para organizar seu discurso. Nesse processo de apropriação, ele é levado a se situar em

relação ao seu interlocutor, ao mundo onde está inserido e àquilo que diz. No caso do

nosso objeto de análise, a autobiografia, é possível dizer que há predominância dos atos

elocutivos, uma vez que estamos diante, principalmente, dos posicionamentos do autor

– que é ao mesmo tempo narrador e personagem – em relação a si e à própria vida.

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Já em relação ao modo descritivo, mais especificamente o componente qualificar,

permitirá observar como o sujeito identifica e atribui qualidades às coisas. Trata-se de

contemplar o olhar subjetivo do autor-narrador-personagem da obra em análise a partir

da caracterização que ele dá às coisas e dos efeitos de sentido que são construídos por

meio dessa. Qualificar, dentro da Teoria Semiolinguística, é tomar partido, portanto,

será possível verificar a imagem que ele constrói de si a partir da autoqualificação, de

como ele qualifica a própria família e a própria profissão, por exemplo.

Procuramos apontar, neste capítulo, os conceitos teóricos por nós utilizados para a

realização deste trabalho. Num primeiro momento, procuramos levantar algumas

questões em torno do gênero autobiográfico. Apresentamos também um breve percurso

teórico sobre o conceito de ethos. Por fim, apontamos para os modos de organização –

enunciativo e descritivo – dentro da Teoria Semiolinguística, que nos auxiliarão a

alcançar o objetivo dessa pesquisa de verificar o ethos que emerge na materialidade

linguística-discursiva da autobiografia de Washington Olivetto intitulada O que a vida

me ensinou – credibilidade não se ganha. Conquista-se. O capítulo seguinte, Gênero e

obra, versará sobre a constituição do nosso corpus, desde sua composição a

contextualização da obra no âmbito das escritas autobiográficas.

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CAPÍTULO 2 – GÊNERO E OBRA

2.1 Considerações iniciais

O cenário cultural contemporâneo vem sendo fomentado por várias formas de

reflexões acerca da arte de registrar a própria vida. Arfuch (2010) classifica essas

variadas formas enquanto “espaço biográfico”, uma noção que busca englobar todas as

formas clássicas do discurso desses gêneros que começam a se entrecruzar e se

hibridizar.

Trata-se das biografias, autobiografias, memórias, testemunhos, diários íntimos,

correspondências, retratos, perfis, além de outros gêneros que não pertencem à ordem

da escrita, como filmes, entrevistas, realities shows. Acreditamos que o que é comum a

todos esses gêneros que pertencem ao espaço biográfico é a vida enquanto tema e o

sujeito enquanto centro de toda enunciação.

Embora as novas formas de comunicação em massa tenham possibilitado o

surgimento de diferentes gêneros do espaço biográfico, os modelos genéricos clássicos

ainda se apresentam como uma importante forma de relatar a própria vida. O formato

livro ainda encontra bastante espaço em um mundo que se apresenta cada vez mais

virtual. Prova disso é a criação de uma coleção, que hoje totalizam cinco obras,

autobiográfica intitulada “O que a vida me ensinou”, publicada pela Saraiva em parceria

com a editora Versar. Trazemos como material de análise uma dessas obras que elenca a

coleção, a do publicitário Washington Olivetto.

A partir dessa exposição da vida e do sujeito, surgem várias problemáticas: o

pertencimento ao gênero, a noção de identidade, questões públicas e privadas, verdade

ou ficção, entre outras. Abordaremos algumas dessas questões que acreditamos serem

importantes para a construção da imagem do sujeito da obra em análise.

2.2 Do pertencimento ao gênero

Todo texto pertence a um gênero discursivo. De acordo com Maingueneau (2011b,

p.59) há uma infinidade de termos para categorizar a variedade dos textos produzidos

em uma sociedade. Para esse autor (2011b, p.59), as denominações desses gêneros

apoiam-se em critérios heterogêneos que variam em função do uso que delas se faz: “as

categorias de que dispõe um leitor que procura um livro em uma livraria” (op. cit).

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Assim, um gênero é “uma espécie de categorização textual que, organizado pelas

condições de emergência dos discursos, delimita a estrutura e como se dá a circulação,

entre outras coisas, de um determinado texto” (GATTI, 2011, p.258). Portanto,

podemos afirmar que se trata de uma forma de contextualizar o leitor quanto ao tipo de

leitura a fazer.

Visto isso, é sabido que todas as obras trazem indicações sobre o gênero que

pertencem, bem como notas que direcionam o público alvo. Na obra analisada por nós,

essas referências que selecionam o tipo de leitor estão junto à referência bibliográfica,

bem como na orelha do livro.

Junto às referências bibliográficas encontramos as palavras: (i) Olivetto, Washington,

1951, (ii) Publicitários – Brasil, (iii) Publicidade – Brasil , (iv) Publicidade – Orientação

profissional, (v) Profissões – Desenvolvimento. Assim, a obra é destinada a leitores

interessados em conhecer não apenas a vida de Washington Olivetto, mas também saber

mais sobre os publicitários brasileiros, a publicidade no Brasil, estudantes interessados

em seguir carreira profissional na área publicitária e pessoas atraídas pelo tema de

desenvolvimento profissional. Aqui já temos um indício de que a narrativa será

construída em torno da vida profissional de Washington Olivetto.

A orelha do livro6 traz nota dos editores que afirmam que a coleção se trata de uma

pequena biografia. Contestamos, pois, o gênero ao qual os editores classificaram a obra.

A seguir, trataremos da distinção entre biografias e autobiografias, como forma de

atestar o gênero correspondente.

2.2.1 Biografia e autobiografia

Para Villas Boas (2002, p.18), a biografia pode ser definida enquanto “compilação de

uma (ou várias) vida(s)”, com o objetivo de gerar conhecimento sobre o passado de

alguém ou de alguma coisa. Nessa mesma perspectiva, Lejeune (2008, p.121) afirma

que “a vida de um homem pode muito bem surgir através da narrativa de um outro”.

Assim, biografias são narrativas em terceira pessoa, que tematizam a vida do outro ou a

existência de algo.

A autobiografia, por sua vez, é defina por Lejeune (2008, p.14) enquanto “narrativa

retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz se sua própria existência, quando

focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Em

6 Ver a orelha do livro no capítulo 3, tópico 3.4.1.

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suma: se o leitor acredita que o autor, o narrador e o protagonista de uma narrativa que

conta a vida de uma pessoa são a mesma pessoa, então se trata de uma obra

autobiográfica.

Para Lejeune (2008, p.41) o que diferencia a biografia da autobiografia é a relação

estabelecida entre a identidade do narrador e a identidade do personagem principal.

Enquanto na biografia essas identidades são divergentes, na autobiografia são

coincidentes. Portanto, a biografia se trata de um relato feito a partir da vida de outra

pessoa e a autobiografia, por sua vez, se trata de um relato feito a partir da sua própria

vida.

Pareceu-nos importante fazer essa distinção, pois a obra traz, erroneamente, sua

classificação genérica. Maingueneau (2011b, p.61) afirma que “alguns autores

empregam indiferentemente ‘gênero’ e ‘tipo de discurso’”, acreditamos que seja o

ocorrido na obra em questão, quando os editores a classificaram.

Ambos os gêneros pertencem ao que Arfuch (2010, p.58) chamou de “espaço

biográfico”, que se trata de uma

confluência de múltiplas formas, gêneros e horizontes de expectativa [...].

Permite a consideração das especificidades respectivas sem perder de vista

sua dimensão relacional, sua interatividade temática e pragmática, seus usos

nas diferentes esferas da comunicação e da ação (op.cit).

Isso posto, ao contrário do indicado pelos editores, a obra não se trata, pois, de uma

biografia, mas sim de uma autobiografia. Na sequência situaremos a obra no âmbito das

escritas autobiográficas.

2.3 Do pacto-autobiográfico e da questão identitária

O contrato7 que determina o modo de leitura de um texto é o que Leujene (2008,

p.56) chama de pacto-autobiográfico. Em uma autobiografia, esse autor (2008, p.24)

afirma que o contrato é estabelecido através da coincidência entre o nome do autor,

narrador e personagem. Trata-se de um nome próprio comum a todos.

Para Lejeune (2008, p.27), a “identidade de nome” pode ser estabelecida de duas

formas: (i) implicitamente através do título – História de minha vida, Autobiografia –

ou na seção inicial onde o autor se compromete com o leitor; (ii) de modo patente “no

7 Veremos mais sobre o contrato no capítulo 3

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que se refere ao nome assumido pelo narrador-personagem na própria narrativa,

coincidindo com o nome do autor impresso na capa” (op.cit).

Na obra analisada por nós, essa “identidade de nome” é estabelecida implicitamente

e de forma patente. Implicitamente através do título, “O que a vida me ensinou”, e na

introdução ao se comprometer com o leitor, como podemos observar o excerto abaixo:

[E1] Com você, leitor, gostaria de dividir essas experiências. (p. 10)

E de forma patente através do nome assumido pelo narrador-personagem que é o

mesmo presente na capa, como podemos observar no excerto que segue:

[E2] Todos os dias me pergunto: ‘o que você, Washington, está fazendo de

novo, na profissão ou na vida pessoal?’ (p. 131) (grifo nosso).

Essa coincidência de identidades confere a narrativa um efeito de transparência.

Espera-se que o que se diz seja a verdade, afinal há um sujeito para além do texto que

responde por ele.

Contudo, se de um lado Lejeune (2008) defende a relação de semelhança entre

personagem e uma figura para além do texto, Arfuch (2010, p.54), por outro lado,

contesta essa identificação. Para ela, a identidade não pode ser representada apenas a

partir de um contrato baseado no nome próprio. Isso porque há um distanciamento

temporal entre narrador e personagem. Além do mais, ela explica que a autobiografia

permite o conflito rememorativo “entre o eu que era e o que ‘chegou a ser’” (ibidem,

p.55), em uma narração em que o eu seria a construção imaginária de si mesmo como

outro.

Baseados nisso, podemos afirmar que, dada a impossibilidade identitária em

decorrência do tempo – em que as ações ocorreram e quando elas foram narradas – e o

caráter argumentativo que toda tomada da palavra implica, a autobiográfica pode ser

caracterizada como uma constante construção de ethé. Analisamos aqui, não o

Washington Olivetto sujeito do mundo, mas o Washington Olivetto sujeito enunciador e

suas imagens discursivas.

2.4 Entre o público e o privado

Dos direitos garantidos pela Constituição estão a privacidade e a proteção da honra.

Contudo, ainda que a honra permaneça sob resguardo do sujeito, a privacidade, por sua

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vez, tem se tornado cada vez menos íntima e o sujeito, atualmente, tem se exposto cada

vez mais. A honra parece residir justamente na espetacularização do privado.

Conforme já mencionado, o motivo principal atribuído pelos editores à escrita da

autobiografia de Washington Olivetto é sua profissão e sua vida pública. Ele escreve

como forma de tornar público, não a sua imagem – visto que essa já é pública e a escrita

auxilia na confirmação ou refutação desta imagem já existente–, mas um saber. Sua vida

é narrada apenas como pano de fundo para determinados temas.

O sucesso é uma das possíveis consequências do reconhecimento de um trabalho.

Assim, quando uma obra escrita por um profissional de sucesso tem como proposta

“revelar as principais experiências, os episódios mais marcantes, os maiores desafios, as

certezas e as dúvidas, os valores e os princípios que nortearam a vida [...]”8 desse

profissional, algo da ordem do confessional é esperado, pois, como pontua Arfuch

(2010, p.84), “o privado alude ao que é secreto”. Portanto, a partir disso, cria-se o efeito

de que a obra traz uma receita pronta para se atingir o sucesso, ainda que seja negado

esse tipo de abordagem.

O autor-narrador-personagem, por sua vez, demonstra jogar com a oposição do

mostra/esconde, como podemos observar nos excertos que seguem:

[E3] Vou revelar um pedaço do segredo da coisa: a melhor publicidade

não é aquela que tenta vender, mas é aquela que gera predisposição de compra. (p.90) (grifo nosso).

[E4] Não vou contar quem são, mas tenho amigos na MPB, gênios

talentosos, que botam espiões em seus shows. O objetivo é ver se há garotadinha na plateia e registrar seus comentários sobre o espetáculo. [...]. Bob Dylan e Mick Jagger também fazem isso (p.131) (grifo nosso).

No excerto 3, a “revelação” de apenas um pedaço do segredo, por estar relacionado

ao seu lado profissional, pode ser justificado pela concorrência, afinal, ele ainda está em

atividade. Já no excerto 4, o autor-narrador-personagem descreve o fato, mas não faz

nomeações das pessoas próximas a ele, ao protegê-los, esse sujeito protege a si. Esses

tipos de construção auxiliam na elaboração do imaginário de que realmente exista algo

que é da ordem do confidencial.

[E5] Agora, aquela coisa* que ocorreu comigo nunca virou tema de sonho. Deletei. É um assunto que cortei deliberadamente.” (p.95) (grifo

nosso).

8 Ver proposta dos editores na orelha do livro presente no capítulo 3 dessa dissertação.

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Aqui, em E5, primeiro o autor-narrador-personagem cita “aquela coisa” – que em

nota os editores afirmam ser o sequestro de que ele foi vítima – e em seguida afirma que

é um assunto que não aborda. Ora, se não iria abordar, qual a razão da citação? Afinal,

acreditamos que seja exatamente esse o tipo de assunto da ordem do confessional que se

espera encontrar nesse tipo de narrativa autobiográfica.

Embora seja o esperado, a revelação de episódios de vida como esse coloca o sujeito

em situação de vulnerabilidade, é afirmar-se fraco publicamente e, como veremos no

capítulo 3, não é essa a imagem que esse sujeito constrói de si ao longo da narrativa.

Verificamos, portanto, que embora a narrativa autobiográfica suscite a publicação do

que é privado, o autor-narrador-personagem da obra em análise promove jogo do mostra

e esconde ao tentar manter a linha tênue entre o que é privado e o que é, de fato,

público. Assim, a suposição do privado encontra seu valor comercial – público.

2.5 Realidade ou ficção?

Para Sibilia (2008, p.30), “não há nada inerente às características formais ou ao

conteúdo que permita diferenciá-las [as obras autobiográficas] claramente das obras de

ficção” e ainda que pareça ambígua, a autora (op.cit.) afirma que existe uma distinção e

ela está apoiada no fato de uma existência real – firmada pelo pacto.

As obras autobiográficas estão relacionadas ao regime de verdade que suscita

expectativas. Segundo Sibilia (2008, p.197), a busca da sociedade por esse real acaba

por gerar na mídia a introdução de “efeitos do real”, como forma de suprir esta

necessidade. Trata-se de uma fronteira cada vez mais tênue. Segundo a autora (2008,

p.196), uma esfera contamina a outra, o que acaba por comprometer a nitidez destas

esferas. Esta “contaminação” ocorre pela crescente “ficcionalização do real na mídia,

bem como a gradativa naturalização do realismo na ficção” (op.cit.).

Portanto, acreditamos que, sendo o eu autobiográfico uma fonte questionável, algo

da ordem do real deve ser manifestado a fim de garantir credibilidade ao relato. Na obra

analisada por nós, o autor-narrador-personagem além de destacar as propagandas

assinadas por ele, ele ainda cita pessoas, que assim como seus trabalhos, são

popularmente conhecidas, como podemos observar nos excertos que seguem:

[E6] Acredito que a melhor forma de fechar esse capítulo é falar de mais um trabalho do qual muitos se lembram, o que desenvolvemos para a Bombril. A série de comerciais com Carlos Moreno é a mais longeva da

propaganda mundial (p.30) (grifo nosso).

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[E7] A propaganda do primeiro sutiã é um dos dois filmes brasileiros

incluídos na lista de 100 melhores comerciais de TV de todos os tempos, apresentados com detalhes no famoso livro The 100 best tv commercials... and why they worked, de Bernice Kanner (p.85) (grifo

nosso).

[E8] [...] é uma honra ter estado na cabeça inspirada de Jorge Bem Jor, e na letra de W/Brasil (Chama o Síndico). Legal demais ligar o rádio do carro e escutar: “Alô, alô, W/Brasil; Alô, alô, W/Brasil” (p.115). (grifo

nosso)

Além dessas referências, o autor-narrador-personagem ainda descreve lugares,

aponta dados históricos e discorre sobre o cenário político:

[E9] No Belém surgiu, por exemplo, a Vila Maria Zélia, o primeiro conjunto residencial operário do país, fundado em 1917 pelo

empresário Jorge Luís Street para acolher 2.100 funcionários da Cia. Nacional de Tecidos de Juta. O lugar compunha um prolongamento da fábrica. Tinha suas próprias simbologias, suas próprias histórias (p.46) (grifo nosso).

[E10] Agora é esperar que o governo Dilma, distante da disputa eleitoral,

siga na trilha do novo, sem reviver essas polêmicas que envolveram preconceito e demagogia. Vamos olhar para frente, fazer crescer economicamente este país maravilhoso (p.105) (grifo nosso).

Esses tipos de abordagens no discurso se ancoram em coisas da realidade e, por

serrem passíveis de verificação, garantem credibilidade ao relato. É esse tipo de visada

que confere às narrativas do espaço biográfico uma dimensão argumentativa. “É

possível observar a narração como uma estratégia de captação do público: contar uma

história parece ser mais sedutor do que argumentar sobre teses.” (MENDES, 2007, apud

PROCÓPIO, 2012, p.200).

Portanto, mais do que uma representação do real, temos aqui, uma interpretação

desse real. Afinal, ele é apresentado pelo olhar de quem o narra, a partir de um tempo

passado e segundo uma visada argumentativa. Assim, sendo, como aponta Lysardo-Dias

(2014, p.69), a linguagem é de natureza representacional, a ficcionalidade é intrínseca

ao dizer; logo, a questão se refere não à fidelidade dos fatos, mas aos procedimentos que

geram os efeitos de verdade – realidade.

2.6 Autobiografia: o desejo de sobrevivência e a manutenção da reputação

Se na antiguidade as narrativas orais davam conta da história e da cultura de um povo

e eram responsáveis pela preservação de um passado. Hoje, o espaço biográfico se

apresenta resgatando esse sentido de preservação e perpetuação de uma história. As

narrativas voltadas para o eu, em particular, clamam por sobrevivência.

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“Contar a história de uma vida [ou da própria vida] é dar a vida a essa história”

(ARFUCH, 2010, p.42). Frente à fragilidade imposta pela morte, as narrativas

autobiográficas se apresentam como solução alternativa para driblar a morte e não cair

no esquecimento.

Na obra analisada por nós, o autor-narrador-personagem manifesta o desejo de

eternizar a marca criada por ele, como podemos observar no excerto a seguir:

[E11] Recentemente surgiu a WMcCann. Por quê? Porque percebi o óbvio: que não sou eterno, e gostaria de deixar a marca W imortalizada. (p.72) (grifo nosso).

O anseio em manter sua empresa viva, mesmo depois de sua morte, levou o autor-

narrador-personagem a fazer tratados comerciais que permitissem a perenidade do seu

empreendimento. Se, por um lado, a negociação o permitiu imortalizar a marca no

âmbito comercial, por outro, escrever sobre a profissão e sobre a própria vida permite

materializar esse apelo à eternidade no âmbito social, pois “esquecer é morrer. Se a

morte ceifa a vida física, o esquecimento mata a simbólica” (MARTINEZ, 2008, p.93).

Assim, as narrativas de vida parecem servir como refúgio para fugir do esquecimento

que a morte impõe.

É importante ressaltar que o lado profissional desse sujeito foi determinante para que

ele escrevesse a obra em análise. A vida, aqui, é construída em torno da profissão e do

sucesso. Assim, ao materializar sua vida, especialmente a profissional, em páginas

autobiográficas, esse autor-narrador-personagem dá um novo sentido ao

empreendimento, ele faz com que sua marca assuma uma característica que Arfuch

(2010, p.35), ao retomar Roland Barthes, afirma ser própria das narrativas da própria

vida: parece remeter à “ilusão de eternidade”.

Isso posto, além de uma tentativa, um esforço, frente ao esquecimento, a

autobiografia demonstra ser para o autor-narrador-personagem da obra por nós

analisada um auxílio na manutenção da reputação, como podermos observar a seguir:

[E12] O bom publicitário, ao construir um personagem, precisa lhe dar uma biografia, com passado, presente e futuro. E ela precisa ser administrada cuidadosamente, mesmo que isso seja complicado. Isso, aliás, vale para todos nós, seres humanos. Acordamos, todos os dias, para administrar nossas biografias. Isso deveria ser outra virtude do publicitário: saber cuidar da sua reputação (p.94)(grifo nosso).

Entendemos, aqui, biografia enquanto própria vida e carreira e reputação enquanto

imagem. Ao mesmo tempo em que afirma ser necessário o cuidado com essa carreira

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através da administração da imagem, esse sujeito escreve sobre esse tema. Portanto,

acreditamos que a autobiografia foi uma forma que esse sujeito encontrou para cuidar

de sua imagem, seu ethos, enquanto profissional.

Visto isso, a autobiografia além de se constituir enquanto uma tentativa de conservar

o passado e viver além do tempo, uma escrita de sobrevivência, portanto, ela se

constitui também enquanto lugar de exibição de competência, um palco usado para

construir ethé discursivos.

2.7 Algumas considerações

Para Maingueneau (2011b, p.60), um gênero discursivo traz funções que são

necessárias à sociedade, a saber: lúdica, de contato, religiosa. Acreditamos que uma

autobiografia, gênero da obra em análise, apresenta uma função referencial, pois se trata

das experiências do outro enquanto testemunho. Se para Villas Boas (2002, p.27) a

leitura de uma biografia é uma questão de projeção, pois é o prazer de se projetar em

outra vida que faz com que as pessoas leiam obras desse gênero, afirmamos que essa é

também uma questão da obra autobiográfica.

Segundo Arfuch (2010, p.46), trata-se das “relações entre autor, obra e público com

um caráter de ‘inter-relações íntimas’ entre pessoas interessadas no conhecimento do

‘humano’ e, consequentemente, no autoconhecimento”. Portanto, são as experiências do

outro que são tomadas como forma de compreender melhor o mundo, são as ideias e

ações do outro que servem como base de orientação.

Na escolha do que é privado que pode ir a público, bem como as escolhas

linguísticas9 mobilizadas no discurso, o sujeito vai construindo sua imagem; trata-se de

como ele deseja que o outro o veja. O efeito de real que se produz na obra pressupõe

uma verdade que garante credibilidade ao discurso e auxilia na construção dessa

imagem que o sujeito pretende passar. Assim, a autobiografia se apresenta como palco

para construções de ethé, lugar de manobra na manutenção da reputação e de articulação

para escapar do esquecimento.

9 Trataremos da materialidade linguística no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3: ANÁLISE DO ETHOS

3.1 Considerações iniciais

A propósito do ethos, discorreremos sobre sua construção na já citada obra de cunho

autobiográfico: O que a vida me ensinou – Credibilidade não se ganha. Conquista-se;

publicado em 2011 pela editora Versar em parceria com a Saraiva.

Como se sabe, Washington Olivetto, devido aos premiados trabalhos, é considerado

referência na área publicitária. Muito se poderia falar sobre a vida e a obra desse

publicitário. Há alguns estudos que abordam seus trabalhos publicitários. Contudo, não

há nenhum que aborde sua obra autobiográfica. Por isso, nos interessa, aqui, esboçar

uma análise com base na leitura de sua autobiografia à luz dos pressupostos teóricos da

AD, mais particularmente, no que tange às noções de ethos e à produção de sentidos.

Numa perspectiva discursiva, a proposta, aqui, é observar a produção dos sentidos de

um “modo de dizer” (o tom e a corporalidade) num texto destinado a publicação.

Para a AD, a língua é constitutivamente opaca e polissêmica, “os sentidos nunca se

dão em definitivo; existem sempre aberturas por onde é possível o movimento da

contradição, do deslocamento e da polêmica” (GREGOLIN, 2003, apud SALGADO,

2011, p.83). Não se trata de um processo consciente, mas de lugares enunciativos. Os

sentidos são constituídos no e pelo discurso.

3.2 Da situação de comunicação

A situação de comunicação a qual deu origem o discurso é fundamental dentro da

AD. Para Charaudeau (2012, p.69) trata-se do que “é externo ao ato de linguagem,

embora constitua as condições de realização desse ato”. Portanto, faz-se necessário

abordar as condições que levaram à escrita da obra. O que a vida me ensinou é uma

coleção de obras de cunho autobiográficas que, segundo nota dos editores, presente na

orelha do livro, traz experiências de profissionais que se destacam em suas áreas. O

primeiro convidado para participar da coleção foi Reinaldo Polito10

, posteriormente,

Mario Sergio Cortella11

e em seguida, Washington Olivetto.

10 Professor de Oratória, palestrante e escritor. Mestre em Ciências da Comunicação. Pós-graduado com

especialização em Comunicação Social pela Fundação Cásper Líbero e em Administração Financeira pela

FGV e pela Decap, onde formou-se em Ciências Econômicas e em Administração de Empresas. 11

Mestre e doutor em Educação pela PUC-SP. Docente, consultor e autor de diversos livros na área de

Filosofia, Ciências da Educação e Gestão de Conhecimento.

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Na introdução de sua obra, Washington Olivetto, enquanto sujeito enunciador,

admite ter tido auxílio de dois jornalistas e propositores do projeto, Colombini e Walter

Facelta Jr., que o EUe chamou de “provocadores intelectuais”, uma vez que o incitaram

a falar sobre os acontecimentos em sua vida e o auxiliaram na seleção dos episódios que

resumiam, de acordo com ele, seus valores e princípios.

A respeito dessa parceria, Salgado (2011, p.84) afirma que há sempre outros

elementos, para além do autor, que definem as feições de publicação de uma obra. De

acordo com ela, é a partir do século XIX, que aparece a figura do editor para

institucionalizar lugares no mercado editorial e oficializar as práticas de publicação. O

que ocorre após o surgimento desse elemento é que “a publicação de um texto nunca foi

mera reprodução gráfica de um material tal qual apresentado por seu autor” (op. cit). É

esse tipo de profissional juntamente com outros, que, segundo Salgado (2011, p.84),

garantem a autoridade do autor e a proficiência do texto; esse tipo de profissional

propõe ajustes e alterações sempre pautados pelo projeto editorial, conforme o gênero a

ser publicado.

Nessa mesma perspectiva, Yanoshevski (2011, p.270) afirma que, em uma entrevista,

o entrevistador deve moderar a palavra do escritor de acordo com o auditório/leitor

condicionando e interferindo na imagem que o escritor tenta fabricar dele mesmo,

efetuando, assim, uma “co-construção” da imagem criada em favor de um leitor. Trata-

se, portanto, de uma dupla construção imagética.

Visto isso, acreditamos que se trata de uma coenunciação, não apenas da enunciação

de um único sujeito. Washington Olivetto buscou essas parcerias com jornalistas de

forma que eles conseguissem extrair algo de sua vida que fosse favorável para

construção de sua imagem e que correspondesse às exigências da editora. Nesse sentido,

a imagem de si é construída a partir de uma negociação entre sujeitos envolvidos na

obra, desde o responsável pela escrita até o responsável pela publicação. Aristóteles

(1998), já apontava, na Retórica, a necessidade de adequação do discurso ao público

como forma de garantir a persuasão. Essa negociação das palavras e do sentido

evidencia o caráter mercadológico da obra.

3.3 Do ethos pré-discursivo

Washington Olivetto é uma figura pública, portanto, tem sua imagem construída não

somente por seus discursos, mas também pelo que é veiculado na mídia. Seu nome

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suscita sempre a imagem do publicitário, profissional bem sucedido e por isso,

referência. O que está em consonância com a proposta dos editores da coleção,

conforme visto quando tratamos das condições de produção. Nesse sentido, a própria

gênesis da obra, ao inscrever dados relacionados ao autor na orelha do livro12

, corrobora

para construção desse ethos pré-discursivo de Washington Olivetto.

É essa imagem, de referência na área publicitária, que o leitor em potencial, TUd,

terá do sujeito enunciador. Cabe a esse sujeito trabalhar para confirmar, reelaborar ou

transformar esse ethos pré-discursivo e produzir boa impressão a fim de garantir a

argumentatividade. Visto isso, o ethos pré-discursivo serve como instrumento de auxilio

ao EUe na construção da própria imagem. É o que norteará seu discurso e o conferindo-

lhe credibilidade.

3.4 Do ethos no discurso e dos efeitos de sentido

Para identificarmos como acontece a estruturação discursiva da construção do ethos e

quais os efeitos de sentidos produzidos a partir do seu modo de dizer, dividimos nossas

análises a partir dos aspectos enunciativos e do contrato de comunicação, bem como dos

modos de organização do discurso enunciativo e descritivo.

3.4.1 Análise dos aspectos enunciativos e do contrato de comunicação

Considerando que a linguagem se manifesta nas práticas sociais, Charaudeau (2012,

p.75), no âmbito da Teoria Semiolinguística, defende que a linguagem desdobra-se no

“teatro da vida social”; é a partir dessa concepção de linguagem que o autor desenvolve

o conceito de mise-en-scène. A mise-en-scène, termo francês para “colocar em cena”,

“encenar”, diz respeito ao fato de que os sujeitos, em suas diversas práticas sociais,

assumem um determinado papel no jogo comunicacional e fazem uma encenação.

Visto isso, o autor (2012, p.77) estabelece que qualquer ato de linguagem nasce de

circunstâncias específicas de discurso, se realiza no ponto de encontro dos processos de

produção e de interpretação e é encenado por duas entidades, sujeitos de fala e sujeito

agente, como mostra o esquema a seguir:

12

Veremos mais sobre a orelha do livro ao tratar do contrato de comunicação.

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FIGURA 1 – Encenação do ato de linguagem

Fonte: Charaudeau, 2012, p. 52.

Na obra em análise, Washington Olivetto, enquanto EUc, é dotado de uma identidade

civil e social. A orelha13

dessa mesma obra traz, além de uma breve apresentação da

narrativa, uma foto do autor bem como uma nota biográfica sobre ele, como veremos

posteriormente quando tratarmos dos paratextos. De acordo com Procópio (2012,

p.163), são as informações reveladas nessa parte do livro, sobretudo de ordem

profissional, que constroem a identidade social deste sujeito comunicante. Portanto, a

orelha cumpre papel de identificar o sujeito comunicante, traçando de maneira sintética

seu perfil.

O EUe é, conforme Charaudeau (2012, p.52), o desdobramento do EUc, sendo ele o

ser responsável pela enunciação, por se tratar do sujeito de fala. Se o circuito externo

compreende à fala configurada, onde se encontram os seres agentes da prática social (o

EUc e o TUi), os sujeitos do mundo, ligados ao conhecimento da organização do “real”,

o interno compreende o “circuito da fala” configurada, onde se encontram os seres de

fala (o EUe e o TUd), resultantes de um saber intimamente ligado às representações

linguageiras das práticas sociais.

Na obra, o sujeito enunciador é autor-narrador-personagem do texto autobiográfico.

É o que Lejeune (2008, p.24) chama de “identidade do nome” e é também o que firma o

13

Orelha – termo usado para designar o desdobramento da capa e contracapa de um livro, onde,

geralmente, encontramos a sinopse do livro, bem como uma breve biografia do autor.

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pacto autobiográfico. Conforme visto no capítulo 1, esse pacto é definido pela relação

identitária entre autor, narrador e protagonista, que é obrigatória, e se estabelece através

do nome próprio comum a todos. Segundo o autor (2008, p.23), o leitor que não

conhece a “pessoa real”, embora creia em sua existência, irá imaginá-la a partir do

discurso produzido por ela. Portanto, essa “identidade do nome” comporta

compromissos e responsabilidades de uma “pessoa real”, atribuídos através de uma

convenção social, um contrato. Esse tipo de contrato proposto por Lejeune (2008) nos

interessa porque cria na obra o efeito de realidade.

No que se refere à instancia de recepção, o EUc por meio de seu EUe instaura em um

projeto de fala o TUd; trata-se de um leitor idealizado, a representação de alguém

interessado na vida do autor-narrador-personagem. De acordo com Procópio (2012,

p.141) é em função dessa projeção que o EUe irá mobilizar os procedimentos

discursivos das mais variadas ordens para narrar a história em questão, tratam-se de

estratégias que o EUe utiliza para atingir seu propósito comunicativo, como escolhas

lexicais, uso de metáforas, entre outros. Podemos dizer, aqui, que é a imagem prévia

que ele faz de seus leitores. É o que o permite organizar seu discurso de forma a

persuadir seu público. Nos termos da autora (2012, p.147) trata-se da “imagem virtual

que o EUc e o EUe têm de seu leitor em potencial”.

Enquanto o TUd é constituído pelo EU, o TUi é caracterizado por ser independente

desse EU e por ter uma existência real no mundo, sendo o responsável pelo processo de

interpretação do ato de linguagem. Dotado de uma identidade social, trata-se do sujeito

interpretante – ser social –, que no caso da obra em análise é o leitor efetivo. Deve-se,

contudo, ressaltar que, embora uma comunicação eficiente ocorra quando há uma

correspondência entre o TUi e o TUd, essa simetria nem sempre ocorre.

De acordo com Charaudeau (2015, p.69), todo ato de linguagem tem um propósito,

uma “condição que requer que todo ato de comunicação se construa em torno de um

domínio de saber, uma maneira de recortar o mundo em ‘universos de discursos

tematizados’” (op.cit). Procópio (2012, p.150) considera que o propósito de uma

biografia é a vida de um determinado personagem, tema ao qual se referem as obras do

gênero. Consideramos que o espaço biográfico como um todo, incluindo as

autobiografias, apresenta esse propósito – a vida enquanto tema.

Ainda sobre encenação do ato de comunicação, Procópio (2012, p.151) admite que as

obras do gênero biográfico são desenvolvidas em situação de comunicação

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monolocutiva – não comportam respostas imediatas dos sujeitos– e têm como canal de

transmissão o livro (gráfico). Em outras palavras, o sujeito comunicante não saberá, de

imediato, se sua mensagem foi interpretada de forma correta pelo sujeito destinatário.

Isso nos permite dizer também que esse EUc também não saberá, de imediato, se fez

uma imagem acertada do TUd, isto é, se o TUd faz correspondência com o TUi.

Admitimos que todas essas considerações também podem ser feitas acerca das

autobiografias.

Essa situação de troca pela qual o discurso surge é, na visão de Charaudeau (2015,

p.67), muito importante na construção de qualquer discurso. É a garantia de que a

comunicação será estabelecida. Para isso é necessário que os parceiros reconheçam as

restrições da situação de comunicação da troca linguageira por meio de um acordo

prévio sobre os dados desse quadro de referência – um contrato de comunicação.

A noção de contrato pressupõe, para Charaudeau (2012, p.56), “que os indivíduos

pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam suscetíveis de chegar a um

acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas sociais”. Para isso, o sujeito

comunicante fará o uso de estratégias a fim de organizar e encenar suas intenções de

forma a produzir determinados efeitos – como o de persuasão ou de sedução – sobre o

sujeito interpretante.

Charaudeau e Maingueneau (2008, p.130) definem o contrato como termo

empregado

[...] para designar o que faz o que o ato de comunicação seja reconhecido

como válido do ponto de vista do sentido. É a condição para os parceiros

de um ato de linguagem se compreenderem minimamente e poderem

interagir, co-construindo o sentido, que é a meta essencial de qualquer ato

de comunicação (op.cit).

De acordo com Charaudeau (2012, p.57), é essa co-construção do sentido que

permite afirmar que a encenação do ato de linguagem é revisada e corrigida pelo sujeito

interpretante, podendo ser até mal recebida – o que ocasionaria a quebra do contrato e a

comunicação não seria estabelecida. O autor (op.cit) lembra ainda, que não se trata de

um processo totalmente consciente. Portanto, como bem lembra Procópio (2012, p.137),

não é só de estruturas determinadas que o contrato é constituído. Existe

um espaço de manobras no qual se estabelecem as estratégias discursivas

dos parceiros do ato de linguagem. Este espaço de manobras é marcado

pela intervenção do sujeito e está relacionado ao projeto de fala desse

sujeito, às suas expectativas, posicionamentos e imaginários discursivos

(op.cit).

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Visto isso, a noção de gênero se apresenta como importante ferramenta na elaboração

desse contrato; uma vez que para que a troca comunicativa entre sujeitos aconteça, é

necessário que alguns elementos sejam reconhecidos. Para Maingueneau (2011, p.69),

“dizer que o gênero de discurso é um contrato significa afirmar que ele é

fundamentalmente cooperativo e regido por normas. [...] Evidentemente, esse contrato

não necessita ser objeto de um acordo explícito”.

No que diz respeito ao gênero biográfico, Procópio (2012) observou algumas

regularidades no processo de significação de uma produção discursiva enquanto

narrativa desse gênero e que fazem parte do contrato estabelecido entre os parceiros

envolvidos no ato de linguagem que resultam em uma biografia. Utilizaremos, como

categoria de análise, esses elementos que firmam esse contrato, pois acreditamos que

também são característicos das obras autobiográficas.

Segundo a autora (2012, p.154), os dados paradiscursivos são “informações

acessórias que nos auxiliam no reconhecimento de um texto como pertencente a

determinado gênero”. Seus elementos são: (i) características quanto à forma, (ii) o

paratexto e (iii) os elementos iconográficos.

No que diz respeito às características quanto à forma, a obra em análise é divida em

seções e capítulos similares aos elencados por Procópio (2012) em seu estudo. A

autobiografia em questão apresenta: dedicatória, introdução, sumário e capítulos (que

narram a vida do autor). Não observamos a presença de referências e notas, bem como

de prólogos, epílogos e seções extras. Essas seções correspondem aos paratextos e, por

isso, serão tratados mais detalhadamente a seguir.

A divisão dos capítulos também faz parte desses elementos que firmam o pacto e

pode ser feita, de acordo com Procópio (2012, p.156), seguindo o critério cronológico, o

temático ou temático-cronológico. Segundo ela, a forma cronológica tende a ser um

padrão e é organizada de acordo com o período dos acontecimentos da vida que está

sendo narrada. A temática por sua vez, focaliza mais os episódios do que o tempo

propriamente, conforme a autora (2012, p.156), a adoção desse tipo de ordenamento

temático nas biografias tende a ser mais criativa e pode estar relacionado muito mais a

uma escassez informativa sobre o personagem, do que por estilo narrativo. O temático-

cronológico, por sua vez, é uma junção dos dois critérios.

Acreditamos que esse elemento também pode ser observado nas autobiografias. Na

obra em análise, apesar de manter certa linearidade, não percebemos esse recurso nos

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títulos. É preciso que os capítulos sejam lidos para saber. A forma temática, por sua vez,

é verificada nos mesmos, como podemos observar a seguir:

a independência é sedutora

a aventura de aprender

a coisa certa no tempo certo

o meu ócio criativo

lições de casa

a lição das ruas

coisas do esporte

pra que inspiração?

a publicidade e seus desafios

ameaças à boa publicidade

o melhor publicitário

modéstia e humildade

manobras e política

o sentido das palavras

pessoas, ídolos e exemplos

presentes e recordações

como dar sentido à vida

Cada capítulo traz como título o tema principal a ser abordado. Não possui

numeração e não apresenta iniciais em maiúsculas, o que pode ter relação com o estilo

da coleção à qual a obra pertence, pois todas as outras obras da coleção têm esse mesmo

formato. Portanto, pode ser formato padrão da editora. Há nos títulos a preocupação, por

parte do EUe com as temáticas; contudo não podemos dizer que essas temáticas não

possuem relação com o tempo. Esse EUe aborda, primeiramente, o motivo que o levou

a ter uma profissão (a independência é sedutora), em seguida o que foi aprendendo

desde os tempos da escola (a aventura de aprender), passando por suas primeiras

experiências profissionais (a coisa certa no tempo certo), entre outros temas, para chegar

ao que é hoje (como dar sentido à vida).

Procópio (2012, p.156) expõe que em biografias temáticas há escassez informativa

sobre o personagem. O mesmo não pode ser dito sobre as obras de cunho

autobiográfico, em que o personagem é o próprio narrador e autor da obra. No caso da

obra que estamos analisando, não se trata, pois, de falta de informação, mas de

adequação – à coleção – e até mesmo de exercício do estilo criativo que o publicitário

está habituado. Algumas omissões podem ser consideradas também como falha da

memória ou, até mesmo, preservação da imagem, como podemos observar no excerto

que segue:

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[E13] Agora, aquela coisa*14

que ocorreu comigo nunca virou tema de sonho. Deletei. É um assunto que eu cortei deliberadamente. Não esqueço, lógico.

Mas não transformo em pauta, para não realimentar. Tive o bom-senso de fazer isso. É algo que a gente corta na hora ou não corta nunca. Por isso, esse episódio nem gerou conteúdo para este livro. E nada de importante se perdeu com essa decisão (p.95) (grifo nosso).

Aqui, por se tratar de um assunto que teve grande repercussão quando ocorreu, o

EUe pode ter sentido a necessidade de citar o episódio. Contudo, fez questão de

ressaltar que se trata de um assunto que não tem interesse de entrar em detalhes, pois ele

deletou (da vida e da memória). Por ser uma situação delicada, em que ele não se

encontra em posição de superioridade, o EUe pode ter decidido por não descrever o

episódio como forma de preservar sua imagem.

O número de capítulos e de páginas também são considerações feitas pela autora

(2012) no seu estudo sobre biografias. Segundo Procópio (2012, p.158), quanto mais

informações o biógrafo dispuser sobre o personagem, maior será a extensão da narrativa

e da divisão de capítulos. Já em uma narrativa autobiográfica, ao contrário da biografia,

o personagem é o próprio autor. Ninguém sabe mais da vida dele do que ele mesmo. Na

biografia, o autor é outro, por isso é necessário que uma pesquisa sobre o personagem

seja feita. Assim, não podemos dizer que a obra em análise, apesar de ser relativamente

curta – possui 143 páginas distribuídos em 18 capítulos –, dispõe de pouca informação

sobre o personagem. O que corrobora, mais uma vez, a questão do estilo e do padrão

editorial.

Seguindo os dados paradiscursivos propostos por Procópio (2012, p.158), temos, na

sequência, os paratextos: eles possibilitam, conforme a autora (op.cit), a identificação

do gênero biográfico e, consequentemente, de pistas do contrato de comunicação

estabelecido entre os sujeitos. Entre os principais paratextos presentes na constituição e

caracterização de uma biografia estão: o título, a capa e contracapa, a orelha, o prefácio,

apresentação ou introdução, a dedicatória e agradecimentos, as referências ou notas

bibliográficas e os elementos iconográficos. Acreditamos que esses também são os

principais paratextos de uma autobiografia, com ressalva na dedicatória e nos

agradecimentos, pois esses paratextos remetem a algo pessoal do autor e em uma

biografia esse difere do personagem, enquanto em uma autobiografia se trata do mesmo

sujeito enunciador.

14

Em nota, os editores esclarecem que “aquela coisa” se refere ao sequestro de que Washington Olivetto

foi vítima em 2001.

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Em relação ao título, Procópio (2012, p.160) afirma que há o nome do personagem

ao qual a narrativa se refere mencionado, bem como o uso de palavras e expressões

como: vida, história de vida, biografia, etc. Na obra em questão, além do indicativo de

primeira pessoa, encontramos também a palavra vida como indicativo de uma obra

autobiográfica: “O que a vida me ensinou”15

.

Já a capa e contracapa de uma biografia são formadas, conforme Procópio (2012,

p.160), por uma junção de elementos. A capa traz o nome do autor, título e subtítulo –

quando existe – e resumo ou apresentação da narrativa ou do autor na contracapa,

geralmente “escrita pela instância editorial ou por outra instância dotada de autoridade e

legitimidade para apresentar e recomendar a obra e autor” (op.cit), além de imagens

como fotografias do personagem e logomarca da editora. Acreditamos que esses

elementos também valem para as autobiografias.

No caso da autobiografia por nós escolhida, o título encontra-se no centro da capa, de

forma destacada e é padrão para toda coleção, o diferencial entre as obras dessa mesma

coleção é o subtítulo, que se encontra logo abaixo do título, com um pouco menos de

destaque. O nome do autor está grafado no topo da página. A contracapa traz

fragmentos da obra, frases do próprio Washington Olivetto e uma pequena referência ao

autor ao final feito pela instância editorial16

. Não há imagens do autor-narrador-

personagem. A única imagem da capa é um banco e um microfone à luz de um holofote,

remontando o ambiente de um palco vago, a espera de uma pessoa prestes a contar algo,

no caso, histórias sobre a própria vida, uma vez que o título também está dentro da luz

projetada pelo holofote. Como podemos observar na figura a seguir:

15

Grifo nosso. 16

“Washington Olivetto é um consagrado publicitário brasileiro. Chairman e diretor de criação da

WMcCann, acumula mais de 1.000 premiações em sua carreira”.

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FIGURA2 – Capa e contracapa da obra

Fonte: SARAIVA: VERSAR, 2011.

Acreditamos que quando uma autobiografia não traz estampado na capa a foto

daquele que tem a vida narrada, o próprio nome desse sujeito já evoca todo imaginário

que já se tem construído acerca dessa pessoa. Além do mais, quando outra ilustração

figura esse espaço, pode significar uma melhor representação daquilo que ele,

biografado/autobiografado, ou a editora, pretende passar para o público alvo. No caso

da obra em análise, em que todos os livros da coleção trazem a mesma ilustração que

remonta o ambiente de um palco aliado ao mesmo título – “O que a vida me ensinou” –,

podemos inferir que aquele que tem a palavra, no caso o autobiografado, fará uma

apresentação da própria vida, uma exposição de si.

É uma capa padrão que além da mudança do nome e do subtítulo, traz também

mudanças na cor. A capa da obra em análise é preta. Em e-mail aos editores, foi

questionado o critério de escolha dessas cores, em resposta eles afirmaram que se trata

de expandir ao máximo a paleta de cores e de levar em consideração o gosto pessoal de

cada autor17

.

17

Informação fornecida pela Equipe Saraiva através de seu SAC – Serviço de Atendimento ao Cliente –

em mensagem pessoal recebida em 13 de janeiro de 2015.

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A orelha de uma obra do gênero biográfico, por sua vez, é composta, por dois blocos

textuais: em um, uma sinopse do livro é apresentado e o outro se configura, conforme

Procópio (2012, p.163) como uma “mini nota biográfica sobre o autor”, além da

presença de uma fotografia do autor da obra em questão. Admitimos que as orelhas das

obras do gênero autobiográfico também apresentam a mesma configuração. Esse

elemento, além de despertar a atenção do leitor, auxilia na construção da imagem prévia

do autor-narrador-personagem, sendo, portanto, um elemento fundamental para nossa

análise, uma vez que auxilia na construção do que Amossy (2013) chama de ethos

prévio ou ethos pré-discursivo, na abordagem de Maingueneau (2011a). Assim, vejamos

a orelha da obra em análise:

FIGURA 3 – Orelha da obra.

Fonte: SARAIVA: VERSAR, 2011.

Washington Olivetto é um profissional reconhecido em sua área. Portanto, para

aqueles que já o conhece ou que conhecem seus trabalhos, a orelha do livro – FIGURA2

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56

– auxilia na confirmação da imagem que circula na sociedade a respeito dele, de um

profissional premiado e, por isso, referência; conferindo assim, de imediato,

credibilidade à obra. Para quem ainda não o conhece, essa seção auxilia na construção

de uma imagem prévia, que será, posteriormente, confirmada ou refutada. O que

podemos perceber é que, mais que uma narrativa que conta a vida de alguém, se trata de

uma narrativa que enfoca, principalmente, episódios que contribuíram para o sucesso e

notoriedade do autor.

A obra não apresenta muitos elementos iconográficos, apenas as imagens citadas

anteriormente na capa – que são as mesmas presentes na contracapa, porém em

proporções muito menores – e uma foto de Washington Olivetto na orelha do livro.

Trata-se de uma imagem em cores, relativamente pequena, considerando que é a única

imagem do autor-narrador-personagem. Esse fator é algo que foge às expectativas ao se

tratar do gênero a qual a obra pertence, contudo, está dentro do padrão proposto pela

editora para a sua coleção. Tal fator pode ser explicado devido à brevidade da narrativa.

O fato desse elemento ser limitado na obra, pode ter relação com o fato de que a mesma

é relativamente breve, do ponto de vista de sua extensão.

O prefácio, a apresentação ou a introdução de uma biografia, podem ser escritos pelo

próprio autor ou por alguma pessoa convidada que, segundo Procópio (2012, p.166)

“deverá ser dotada de autoridade e legitimidade para a presentar a obra e seu autor”.

Quando escrito pelo próprio biógrafo, a autora (op.cit) afirma que esse paratexto

apesenta algumas funções, como: enumerar as etapas do trabalho biográfico, apresentar

as principais dificuldades vivenciadas no processo, indicar as influências do seu campo

de ancoragem e reconhecimento das fontes, entrevistados e demais auxiliares do

trabalho. Consideramos que esse elemento também pode ser apresentado dessa mesma

forma em uma autobiografia.

Na obra analisada por nós, a introdução é escrita pelo próprio autor-narrador-

personagem, que apresenta uma síntese de como o trabalho autobiográfico se deu – a

introdução está no anexo A –; ele descreve as principais atividades realizadas desde o

convite feito pela editora até o momento da escrita, as dificuldades encontradas durante

o processo também são expostas nesse espaço, como podemos observar no excerto a

seguir:

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[E14] De repente, chegou a minha vez. Logicamente, fiquei honradíssimo com o convite. No entanto, pintaram duas preocupações: (1) eu teria que

me concentrar para manter a qualidade da série. (2) Precisaria de muita reflexão e julgamento crítico para escolher as melhores lições aprendidas durante a vida. (p. 9)(grifo nosso)

A partir desse fragmento, podemos perceber que as preocupações que o autor-

narrador-personagem teve durante o processo estão mais relacionadas em se enquadrar à

série do que ao gênero propriamente dito. Vale ressaltar que o que o levou a escrever foi

sua trajetória de sucesso. O convite da editora só foi feito, por ele ser considerado

destaque no que faz e, por isso, ter histórias de conquistas para narrar.

Além do mais, ao elencar suas dificuldades, como bem ressalta Procópio (2012,

p.166) no âmbito das biografias, mas que vale igualmente para as autobiografias, “ele [o

autor] se isenta de possíveis esquecimentos e negligências quanto a informações não

abordadas”. Quanto às outras características, Olivetto indica sua ancoragem ao mesmo

tempo em que reconhece quem o auxiliou no trabalho, como podemos observar a

seguir:

[E15] Como sou basicamente um profissional de comunicação, que aprende ouvindo e contando histórias, resolvi recorrer a parcerias com os propositores do projeto (p. 10) (grifo nosso).

Aqui o autor demarca seu lugar de fala, se coloca enquanto profissional de

comunicação, e cita as pessoas que o auxiliaram no processo de reconstrução da

memória. Visto que Olivetto, enquanto autor-narrador-personagem, é a fonte da própria

enunciação, a investigação dos fatos fica por conta do processo de rememoração.

Sabemos que a memória não é capaz de retomar todo o passado exatamente como ele

ocorreu, ela apresenta apenas uma versão, atualizada, desse passado. Para Bosi (2007,

p.20), “lembrar não é re-viver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir

do outrora”. Assim o trabalho com o tempo e com as lembranças é feito a partir da

recriação e da significação, “fica o que significa” (BOSI, 2007, p.22).

Portanto, a presença dessas parcerias durante esse processo de reconstrução da

memória são peças fundamentais, já que são elas que irão assessorar o autor-narrador-

personagem de forma que ele não se esqueça de nada que possa ser relevante para o

projeto, através de entrevistas e indagações e, assim, garantir uma maior credibilidade a

obra, além de assegurar o estatuto de verdade dessa narrativa.

Já a dedicatória e agradecimentos aparecem nas biografias, de acordo com Procópio

(2012, p.167), como elemento capaz de revelar as fontes às quais o sujeito recorreu e

para demarcar a presença do autor na obra. No caso da autobiografia, a presença do

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autor está em toda obra, uma vez que há a identificação do nome e a fonte também é o

próprio autor. Portanto, essa seção pode ter relação maior com o que o autor tem de

mais próximo, como a família ou pessoas que o incentivaram durante a vida ou o

processo de escrita. No caso da autobiografia em análise, Olivetto dedica a obra e a

construção do próprio eu à esposa: “Para minha mulher, Patrícia, sem a qual eu não

seria possível” (ibidem, 2011, p.5). Acreditamos que, na obra analisada por nós, essa

seção também auxilia na construção do ethos prévio, que no caso, seria de um homem

que valoriza a própria mulher e reconhece seu papel na vida dele, já que optou por

dedicar a obra somente a ela.

Em biografias, as referências ou notas bibliográficas aparecem, segundo Procópio

(2012, p.167), como indicação referencial de credibilidade e verdade. Já nas

autobiografias, podemos dizer que o próprio autor é a própria referência. São suas

memórias que serão narradas. Na obra em análise, o autor cita os jornalistas que o

ajudaram no processo de rememoração – conforme mencionado acima, ao tratar da

introdução –, e cita também, ao longo da narrativa, celebridades que, por serem

conhecidas do público e a qual ele tem algum tipo de relação, podem falar dele como

forma de atestar a veracidade de seu depoimento. Ele legitima essas pessoas de forma a

dar mais credibilidade a própria fala, como podemos observar no excerto que segue:18

.

[E16] A princípio, reuni-me com o próprio Colombini, jornalista tarimbado,

capaz de fazer as perguntas certas nas horas certas (p.10)(grifo nosso)

[E17] [...] é uma honra ter estado na cabeça inspirada de Jorge Ben Jor, e

na letra de W/Brasil (Chama o Síndico). Legal demais ligar o rádio do carro e escutar: 'Alô, alô, W/Brasil; Alô, alô, W/Brasil"

19 (p.115)(grifo nosso).

Percebe-se que essa questão da credibilidade é uma noção desenvolvida por ele a

todo o momento, a começar pelo subtítulo: “Credibilidade não se ganha. Conquista-se”.

A manutenção desse elemento é feita durante toda a obra, principalmente através desse

“contrato” firmado por ele nessas seções iniciais da obra. Afinal, ele tem uma imagem a

zelar e precisa manter essa credibilidade.

Por fim, Procópio (2012, p.167) aponta os elementos iconográficos como um dos

dados de apoio na identificação de determinado gênero do discurso. De acordo com ela,

18

Veremos mais dessas citações quando abordarmos, no modo enunciativo, as modalidades delocutivas.

Mais especificamente, o discurso relatado citado. 19

Itálico do autor

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esses elementos são “comprovações das informações reveladas na narrativa” (ibidem,

2012, p.168).

Acreditamos que tais elementos poderiam estar presentes em uma autobiografia,

como forma de atestar a verdade. Contudo, acreditamos também que não se trata de um

dado crucial, uma vez que sendo o autor o próprio narrador e personagem, ele tem a

responsabilidade para além do papel. Uma responsabilidade de uma “pessoa real” que,

como aponta Lejeune (2008, p.23) não terá sua existência posta em dúvida, uma vez que

exceções e abusos de confiança colocariam em prova a credibilidade atribuída a esse

tipo de contrato social instituído pelo nome. Ainda segundo o autor (2008, p.26), há em

uma autobiografia a intenção de honrar a própria assinatura, uma vez que é sabido “o

quanto cada um de nós preza seu próprio nome”. Portanto, a palavra assinada dispensa o

uso de imagem como elemento que comprove a verdade, o efeito de verdade gerado a

partir dessa assinatura já é o suficiente para garantir credibilidade. Poderia, sim, ser um

recurso extra na obra que imprimiria um valor estético ao projeto editorial, porém não

se trata de um dado imprescindível no gênero autobiográfico.

Vimos que é a partir desses elementos que o público alvo será captado e direcionará

sua leitura. A respeito disso, Lejeune (2008, p.45) afirma que é esse “contrato que

determina o modo da leitura do texto e engendra os efeitos que, atribuídos ao texto, nos

permitem defini-lo como autobiografia” e lembra que apesar de poder definir esse

gênero por algo que é exterior ao texto, não se trata de buscar uma semelhança com a

pessoa real, mas de verificar no texto a crença que produz, admitindo que possam

coexistir leituras diferentes do mesmo texto, logo, “interpretações diferentes do mesmo

contrato proposto” (ibidem, 2008, p.57).

3.4.2 Análise do modo enunciativo

Conforme Charaudeau (2012, p.74), os modos de organização do discurso estão

interligados. Contudo, é necessário tomarmos como base os modos de organização

predominantes no ato de linguagem para fins deste estudo. O modo enunciativo

representa uma ferramenta fundamental de análise, uma vez que o EUc presente na obra

O que a vida me ensinou – Credibilidade não se ganha. Conquista-se tem como

objetivo dar conta do ponto de vista do EUe em relação a si, aos outros e ao mundo.

Essa correspondência entre EUc e EUe permite “organizar o mundo referencial” através

do modo enunciativo, o que é característico das autobiografias.

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De acordo com a proposta de Charaudeau (2012, p.82), o modo enunciativo é

dividido em três atos: (i) estabelecer uma relação de influência entre os sujeitos –

comportamento alocutivo; (ii) revelar o ponto de vista do EUe – comportamento

elocutivo; (iii) retomar a fala de um terceiro – comportamento delocutivo. Dentre esses

atos locutivos, propostos por Charaudeau (op.cit.), na obra em análise, o alocutivo

encontra menor recorrência; o elocutivo e o delocutivo, por conseguinte, apresentam

maior predominância.

3.4.2.1 O ato alocutivo

Charaudeau (2012, p.82) afirma que através do ato alocutivo o locutor apresenta uma

relação de influência, ele age sobre o interlocutor que, por sua vez, é solicitado a ter

uma determinada reação, como podermos observar nos excertos20

abaixo:

[E18] Com você, leitor, gostaria de dividir essas experiências (p.10)

[E19] Veja bem, leitor, estou falando dos grandes profissionais, e não de

qualquer fazedor de anúncios (p.91).

[E20] No dia em que eu me mostrar apático e sem vontade de observar reações, saiba, amigo leitor, que estarei me aposentando (p.124).

Os três excertos acima são caracterizados pela “interpelação”; essa é uma categoria

modal que, como aponta Charaudeau (2012, p.86), o sujeito enunciador assume a

identidade de uma pessoa humana e destaca a pessoa dentre um conjunto de

interlocutores possíveis, designando-a por um termo de “identificação” que a específica.

No caso da obra analisada, esse termo é “leitor”, como podemos observar nos excertos

acima. Ainda de acordo com o autor (2012), espera-se que o sujeito interpretante se

reconheça nessa interpelação.

Acreditamos que essa categoria modal reforça o contrato de comunicação21

, pois o

sujeito comunicante instaura, em seu projeto de fala, o sujeito destinatário. Além do

mais, a interpelação favorece o efeito de real, uma vez que, ao envolver o leitor, cria

uma aproximação entre os sujeitos. Essa proximidade e coloquialidade garantem o tom

de conversa da obra. A construção dessa estratégia de discurso ainda cria o que

20

Todos os excertos apresentados nesse trabalho contêm grifos nossos. 21

Ver mais sobre o contrato no princípio deste capítulo.

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Charaudeau (2012, p.141) chama de efeito de confidência, isto é, uma “intervenção”

explícita do sujeito comunicante através da interpelação direta do leitor.

[E21] “Aos mais jovens costumo sugerir que desenvolvam a habilidade de

rir de si próprios, de exercitar a autocrítica e treinar um pouquinho a ‘autoridicularização’” (p.99).

Já no E21, há a categoria modal da “sugestão” (CHARAUDEAU, 2012, p.89). Aqui,

o sujeito atribui a si um estatuto de saber, confirmado pela sua experiência, e propõe ao

interlocutor uma ação a ser seguida. Essa categoria contribui para construção da

imagem do sujeito como aquele que é detentor de um saber, um ethos intelectual,

portanto.

Outra categoria modal do ato alocutivo encontrada, foi a de “interrogação”. De

acordo com Charaudeau (2012, p.90), a partir dessa modalidade, o sujeito estabelece

uma informação a adquirir e atribui a si o direto de questionar. Verificamos, na obra

analisada por nós, três diferentes tipos de interrogação22

: (i) as que o EUe volta a

pergunta para si, (ii) as que ele se faz como se fosse uma outra pessoa (como se fosse o

TUi que o perguntasse), e (iii) as perguntas que o EUe faz ao TUd. Atentemos para

esses tipos de interrogações nos excetos que seguem:

[E22] Aí eu me pergunto: será que essas pessoas, apartadas das coisas do mundo, serão capazes de lidar com a vida real? Será que a sociedade não está eliminando o saudável processo de aprendizagem, em que indivíduos ganham anticorpos ao manter contato também com as ideias e conceitos inadequados? (p.87).

[E23] Por vezes, acordo e me pergunto: “por que faz tempo que não tomo um vinho com fulano?” (p.110).

[E24] Todos os dias, me pergunto: “o que você, Washington, está fazendo de novo, na profissão ou na vida profissional?” (p.131).

[E25] Onde vou levá-los [esposa e filhos]? Como será a primeira refeição com eles depois do retorno? Que coisas incríveis terão para me contar? (p.132).

Nos excertos acima, podemos observar que as perguntas estão voltadas para o

próprio EUe. São reflexões próprias desse sujeito. Ao não direcionar essas perguntas à

outra pessoa, ele não se expõe; o que sugere a imagem de alguém autossuficiente, ou

ainda, de uma pessoa reflexiva, que se interroga antes de tomar alguma decisão.

22

É importante ressaltar que essa foi uma diferenciação feita por nós, não constando, portanto, nas

proposições de Charaudeau (2012) acerca dessa modalidade.

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Além das interrogações voltadas para si, o EUe lança algumas perguntas para ele

responder como se uma outra pessoa o tivesse questionando, como podemos observar a

seguir:

[E26] As centenas de peças [...] resistiram olimpicamente a mudanças nos padrões de comportamento [...]. Como afinal?(p.31).

[E27] A região [zona leste de São Paulo] a região teve uma importância fundamental em minha formação. Mas por quê? (p.46).

[E28] Pra quê inspiração? (p.63).

[E29] Recentemente surgiu a WMcCann. Por quê? (p.72).

[E30] A mensagem do bom comercial, ao contrário, permanece. É lembrada anos e anos depois da veiculação. Mas por quê? (p.78).

[E31] Afinal, o que é preciso para se criar uma boa peça? (p.89).

[E32] Em geral, esses indivíduos [falsos modestos] sabem que têm algum talento especial. E tentam teatralmente minimizá-lo ou escondê-lo, com o intuito de realçá-lo. O que acho disso? (p.98).

[E33] Na verdade, muitos textos de semiótica são complicados, densos e até mesmo chatos. Mas muitos estudos nessa área nos ajudam a resignificar o mundo. Isso é importante por quê? (p.137)

Aqui, O EUe faz asserções, questiona e, em seguida, responde às questões feitas por

ele mesmo. A seguir temos a resposta dada ao E31:

[E34] Digo eu: conhecer o produto, identificar o target e ter algum talento

para desenvolver uma ideia original (p.89).

Podemos dizer que o sujeito utiliza as interrogações para destacar o que será

desenvolvido em seguida; por, talvez, julgar que seja algo que o TUi gostaria de saber e,

até, o interrogaria, caso tivesse em uma situação dialogal; o que contribui para conferir a

obra um tom de conversa. Assim, as respostas dadas podem ser o que os sujeitos

interpretantes, ao comprar o livro, buscam encontrar.

Ao contrário da proposta de Charaudeau (2012), em que o sujeito enunciador assume

uma posição de inferioridade, revelando sua ignorância, na obra, esse sujeito, ao fazer

esse tipo de interrogação, inverte sua posição de inferioridade ao lançar uma pergunta a

qual o sujeito interpretante deveria fazer, não ele.

Ainda temos as interrogações que o EUe faz ao TUd:

[E35] A vida comunal faria todos felizes. Quem poderia dizer que não?

(p.27).

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[E36] Você pode imaginar o que é encarcerar um moleque serelepe por conta de uma doença apenas presumida? (p.36).

[E37] Se as pessoas não tiverem (desde cedo) contato com o certo e o errado, como vão poder comparar conceitos e tomar decisões corretas?

(p.88).

[E38] Como saber o que realmente passava pela cabeça do sujeito?

(p.118).

[E39] Caramba, afinal onde será que dói? Por que ele chora tanto? Devo levar ao hospital ou será que me viro só consultando A vida do bebê, do Dr. Rinaldo De Lamare? (p.129)

[E40] Afinal, quem vai dar o remédio para a pressão arterial e para controlar a diabetes? (p.130)

[E41] De noite, vez ou outra, [você] lembra da viagem de volta ao mundo que nunca fez. Será que ainda dá tempo? (p.130)

[E42] [...] o que faz você feliz? (p.142)

Nesse tipo de interrogação, podemos observar que o EUe não tem como objetivo

uma resposta, mas sim estimular a reflexão do TUd ou ajudar esse mesmo sujeito a

entender determinado assunto ou situação. Trata-se, portanto, de perguntas retóricas.

Plebe (1992, p. 63), em seu Manual de Retórica, assim define uma pergunta retórica:

[...] fazer uma pergunta para a qual já se sabe que não há possibilidade

de opção entre responder afirmativa ou negativamente, já que a própria

formulação do problema prefigura uma das suas respostas (ou exclui

ambas), é o artifício que recebe o nome de pergunta retórica23

.

A pergunta retórica tem como função enfatizar alguma ideia ou ponto de vista. De

acordo com Ramos (1996, p.2) esse tipo de pergunta não exigem respostas por parte do

TUi. Quando muito, permite uma réplica para confirmar ou romper com o que foi

proposto. Para ele, ao não esperar resposta, o valor de uma pergunta retórica como

estratégia de persuasão é reforçado, pois o EUe traça uma linha de raciocínio que leva o

TUi a encontrar as respostas que estão presentes nas próprias perguntas que formula. O

que nos permite afirmar que é uma forma de transmitir certezas na forma de perguntas.

Além de um importante elemento de persuasão, a pergunta ainda pode ser vista como

uma forma de agir sobre o outro. Para Aristóteles (1998, p.218),

o emprego da interrogação é particularmente oportuno, quando acontecer que

o adversário, depois de ter expresso uma das partes da alternativa, à menor

interrogação suplementar, responde um absurdo [...] emprega-se a

interrogação, quando, sendo evidente um primeiro ponto, é manifesto que, a

23

Itálico do autor

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64

seguir, à interrogação, o adversário concederá o outro; alias, quando nos

informamos sobre uma premissa única, não devemos por interrogação,

suplementar acerca do que é evidente, mas sim enunciar a conclusão [...]

Podemos ainda empregar a interrogação, quando há possibilidade de mostrar

que o adversário se contradiz ou que suas afirmações são paradoxais [...]

usamo-la quando o adversário é obrigado a responder de maneira sofística ,

para destruir a asserção proposta [...] (op.cit.)

Aqui, a pergunta possibilita neutralizar o adversário. Nesse sentido, em uma situação

de fala, é um instrumento eficaz do orador que pretende, com o embate, o descrédito do

outro sujeito.

Como podemos ver, a pergunta é um recurso importante no processo de adesão do

empreendimento comunicativo. Para além de persuadir, esse elemento pode se prestar à

manipulação. Na obra em análise, a interrogação, ainda, criou um efeito de

superioridade do sujeito enunciador e contribuiu para a imagem dele como aquele que

detém um saber.

3.4.2.2 O ato elocutivo

No ato elocutivo, por sua vez, o EUe enuncia seu ponto de vista sobre o mundo

através de uma avaliação, de uma motivação, de um engajamento, de uma decisão e/ou

de um modo de saber, sem que o TUd esteja implicado nessa tomada de posição,

enunciando, assim, sua subjetividade. Juntamente com o ato delocutivo, apresenta

grande recorrência ao longo da obra em análise. Acreditamos que o maior uso desse ato

deve-se ao gênero da obra, pois a expressão do ponto de vista do sujeito é própria de

uma autobiografia; a grande recorrência do ato delocutivo, por sua vez, pode ser um

recurso usado na argumentatividade, uma vez que, ao apagar seu ponto de vista, o EUe

constrói enunciados aparentemente objetivos.

O ponto de vista de avaliação do sujeito comunicante corresponde às modalidades de

“opinião” e de “apreciação”. É a forma pela qual esse sujeito julga o propósito do

enunciado. Tomemos, primeiramente, a modalidade de opinião.

[E43] Acho que alguns erros dessa fase, na Lince, na Casabranca e na DPZ,

foram corrigidos sem que eu percebesse [...] (p.16).

[E44] Acho que isso (ser adestradamente profissional) não ocorre somente

comigo (p.63).

[E45] Achava que precisava aprender mais, que tinha de construir uma base

de conhecimento sólida (p.71).

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[E46] Na verdade, acredito que pouca gente saiba, hoje, contar uma boa

história (p.81).

Os excertos acima correspondem às suposições a partir das quais o EUe exprime o

seu ponto de vista. Acreditar que obteve ajuda no inicio da sua carreira, E43, e que não

tinha conhecimento suficiente para abrir sua própria agência, E45, embora seus colegas

de trabalho achassem o contrário, sugere a imagem de um sujeito bem relacionado, que

obteve ajuda e incentivo por parte desses colegas; além de alguém que erra, logo

humano, mas que busca se aprimorar.

Já em E44, o sujeito enunciador faz suposições relacionadas a si e a outras pessoas e

em E46, apenas a outras. O uso do termo “adestramento”, usado em E44, cria um efeito

animalesco, como se, profissionalmente, as pessoas precisassem ser disciplinadas para

fazerem repetições. Já em E46, ao demonstrar certo descrédito nas habilidades dos

outros, o EUe cria um efeito negativo ao subestimar os contadores de histórias que

existem hoje.

O que podermos observar, aqui, é que ao se referir a si mesmo, o EUe constrói

imagens favoráveis e ao tratar dos outros, esse sujeito já faz críticas que não são tão

positivas.

[E47] [...] considero-o [Monteiro Lobato] uma referência pedagógica (p.22).

[E48] [...] considero que sempre fui mais aluno do aprendizado do que do

diploma (p.22).

[E49] Acredito que todo mundo nasceu com um dom para fazer alguma

coisa especial, mas são poucos que descobrem que coisa é essa (p.23).

[E50] Acredito que os livros de história não catalogaram bem os

acontecimentos (p.28).

[E51] Considero que foi um excelente laboratório para aprender a dinâmica

de metamorfose das grandes cidades (p.48).

[E52] Considero que poderia ser bom profissional de publicidade em

qualquer lugar do mundo (p.54).

[E53] Muita gente compara o trabalho do publicitário ao labor do poeta. Consideram que vivemos, sobretudo, de inspiração. Pelo menos no que me toca, considero que não é bem assim que funciona. Meu processo criativo

está atrelado a tudo que fiz e vivenciei antes (p.63).

[E54] Tenho duas características que não considero méritos, mas que fazem

parte do meu jeito de agir (p.64).

[E55] Creio que, por vezes, assistir é quase tão agradável quanto fazer

(p.81).

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[E56] Pessoalmente, considero essas ações de higiene moral uma

verdadeira loucura, uma insanidade (p.88).

[E57] E considero que não é motivo de vergonha reconhecer características,

tendências e qualidades (p.97).

[E58] Considerei, desde cedo, que podia usar meus talentos e

conhecimentos no ramo da publicidade (p.98).

[E59] E acredito que não foi diferente com muitos dos meus leitores (p.130).

[E60] No entanto, considero que [os períodos de verdadeiro prazer e

diversão] são hiatos numa trajetória que envolve muitíssimos estorvos e estresses (p.130).

Esses excertos, além de integrarem a modalidade de opinião do EUe, exprimem suas

convicções. São certezas próprias desse sujeito. Em alguns dos excertos supracitados, o

EUe exprime suas crenças no que se refere ao aprendizado. Percebermos, a partir desses

excertos, certa restrição ao ensino formal.

O EUe fala ainda sobre suas convicções relacionadas à profissão. Aqui, ao mesmo

tempo em que o sujeito enunciador diz que o trabalho ao qual exerce é uma questão de

exercício e não de inspiração (de um dom), ele coloca sua habilidade no nível da

vocação, criando, assim, a imagem de uma pessoa naturalmente privilegiada; o que gera

um efeito de superioridade, uma vez que, segundo ele, nem todos encontram o seu dom,

mas ele encontrou.

Além do dom que considera ter e do fato de saber usá-lo, o EUe aponta para duas

características que acredita possuir: não falar dos problemas pessoais, que segundo ele

mesmo, significa não ter humildade; e não se render à tristeza, E54. Ao reconhecer as

características que são próprias dele, o sujeito enunciador afirma que não é vergonha

alguma admitir isso, independente de serem coisas positivas ou negativas, E57. Além

disso, ele ainda acredita que muitas das coisas que aconteceram com ele, aconteceram

também com muitos leitores. Trata-se de uma certeza, uma vez que faz parte do curso

natural da vida, E58, e que essa, a vida, apresenta mais problemas e estresses do que

períodos de verdadeiro prazer e diversão, E60.

Ao admitir que não fala sobre seus problemas pessoais, o EUe se mostra uma pessoa

reservada. Além do mais, ao reconhecer que não tem humildade, esse sujeito cria, ainda,

a imagem de uma pessoa presunçosa.

[E61] Julgo-me bem sortudo por ter obtido sucesso profissional muito cedo

(p.97).

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[E62] Como me julgo ético, honesto, generoso, acho sempre que a traição

jamais vai acontecer (p.109).

[E63] Julgo que não mereço [a traição] (p.109).

Nos excertos acima, temos a modalidade de “apreciação” de cunho ético. Nas três

passagens, as sentenças estão voltadas para si. Ele se julga uma pessoa de sorte, ético,

honesto, generoso e que não merece traição, construindo, assim, a imagem de uma

pessoa íntegra.

De acordo com Charaudeau (2012, p. 83), do ponto de vista de motivação, o sujeito

enuncia a razão pela qual foi levado a realizar o conteúdo do propósito referencial. A

esse ponto de vista, correspondem as modalidades de “obrigação”, de “possibilidade” e

de “querer”. Os excertos abaixo representam a modalidade de obrigação:

[E64] Ainda jovem, percebi que deveria compreender a dinâmica de cada

época para comunicar bem (p.26).

[E65] Portanto, não preciso de um espaço físico específico, de uma trilha sonora ou de um estímulo no campo da aromaterapia. Não preciso de

ambientação (p.63).

[E66] Aprendi que, enquanto empregado, eu deveria me comportar como

dono (p.71).

[E67] Achava que precisava aprender mais, que tinha de construir uma base

de conhecimento sólida (p.71).

As obrigações citadas acima equivalem a obrigações de ordem interna, isto é, na

proposição de Charaudeau (2012, p.94), uma ação cuja realização depende apenas do

próprio EUe. O E66 trata de uma coerção de ordem moral, para o sujeito enunciador sua

postura enquanto empregado deveria ser a mesma que a do dono, seu comportamento é

justificado, portanto, em nome de um valor ético. Os demais excertos versam sobre

coerções de ordem utilitária.

[E68] E para isso [para ter os anúncios aprovados e veiculados] eu precisava

me aproximar dos clientes (p.70).

[E69] [Eu] Precisava encarar diariamente um novo desafio, provar tudo de

novo, conforme exige a dinâmica da publicidade (p.97).

[E70] Para garantir a reputação, preciso sempre oferecer um serviço com

grau de excelência (p.131).

Os excertos acima correspondem a obrigações de ordem externa. De acordo com

Charaudeau (2012, p.94), trata-se dos deveres que não dependem do EUe, ele apenas se

submete à ordem que se torna o motivo de fazer. Como podemos observar, todas as

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ordens seguidas pelo EUe estão relacionadas à profissão. Contudo não são ordens

ditadas por um superior, mas pelo cliente. Aqui, esse sujeito enunciador coloca o cliente

em uma posição superior a sua, criando, assim, um efeito de submissão ao cliente para

garantir o sucesso profissional. Trata-se de uma submissão estratégica.

Na perspectiva de Charaudeau (2012, p.95), a modalidade de possibilidade também

se divide em interna e externa. A de ordem externa diz respeito a uma autorização que o

sujeito enunciador recebeu para realizar uma ação.

[E71] De repente, eu podia fugir da minha ‘cela’ pela janelinha dos livros

(p.37).

Esse tipo de referência é praticamente inexistente durante a obra em análise. O que

demonstra que o EUe não aceita muito a subalternidade – exceto aquela vinda de seus

clientes, como vimos na modalidade anterior –. Em E71, trata da possibilidade desse

sujeito fugir de uma situação que lhe foi imposta quando criança; ele deveria ficar de

repouso devido a uma doença, mas lhe foi permitido o contato com os livros, que, para

ele, equivalia a uma fuga daquela realidade, ou seja, ao mesmo tempo em que ele se

submete, ele encontra uma maneira de lidar com aquela situação.

A partir disso, percebemos como esse sujeito cria a imagem de um sujeito habilidoso.

Quando a situação lhe favorece, ele se submete. Contudo, quando a situação não lhe

agrada, ele faz uma negociação. O que gera um efeito de conveniência.

Os excertos a seguir já trazem a modalidade de possibilidade de ordem interna, isto

é, quando o poder fazer depende somente do EUe, que revela aptidão ou disposição

natural, seja ela física ou intelectual, de realizar determinada ação, conforme

Charaudeau (2012, p.95):

[E72] Hoje, posso admitir isso e manifesto minha gratidão a essas pessoas

(p.16).

[E73] Posso dizer que esse mergulho antecipado no mundo da leitura me

rendeu bons frutos (p.22)

[E74] Posso dizer que a vida me ensinou a respeitar e reverenciar esses

precursores. Aprendi, portanto, que grandes coisas acontecem em contextos apropriados (p.26).

[E75] Posso dizer que algumas virtudes são perenes (p.32).

[E76] Sabia que podia aprender com cada um deles [membros da família]

(p.39).

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[E77] Posso ainda dizer que meus pais tiveram a generosidade de se

esforçar para que eu tivesse acesso a um excelente padrão educacional [...] (p.43).

[E78] Sem arrogância, posso dizer que me adiantei a muitos nova-iorquinos

nessa percepção da mudança (p.48).

[E79] Considero que poderia ser bom profissional de publicidade em

qualquer lugar do mundo (p.54).

[E80] Como não faço campanha política, posso falar à vontade sobre isso

(p.103).

[E81] Posso até fingir que tem retorno, mas não tem (p.108).

[E82] Eu posso ser o cara do confronto, sim, mas somente se isso for da

batalha, da discussão, do combate no campo das ideias (p.121).

[E83] Se há sabotagem, cafajestada e se outras pessoas se tornarem vítimas, eu posso ficar doidão (p.121).

[E84] Se há um conselho que realmente posso dar é este: tente fazer com

que sejam muitos os seus curtos momentos de felicidade (p.131).

Em E72, o sujeito enunciador afirma que hoje é capaz de admitir gratidão por

aqueles que o ajudaram no passado, demonstrando, assim, que antes não tinha

humildade suficiente para isso. Já em E73, E74, E75, E77, E78, esse sujeito discorre

sobre capacidade de falar algo, demarcando o seu lugar de fala, como alguém que tem

autoridade para isso. Ele afirma que a leitura, desde muito cedo, o ajudou muito, que

aprendeu a respeitar e a reverenciar seus precursores. Ele afirma, ainda, que algumas

virtudes não cessam; que seu padrão educacional é graças a seus pais e que possui uma

visão antecipada da mudança.

A partir da leitura desses excertos, consideramos que essas afirmações só são

possíveis devido à aptidão intelectual e à experiência que o sujeito enunciador julga

possuir. Aqui, envolto por uma máscara de humildade, esse sujeito constrói a imagem

de uma pessoa de visão e bem sucedida, o que, mais uma vez, gera um efeito de

superioridade.

O EUe ainda se coloca como um aprendiz. Em seguida, de profissional exímio, pois

é capaz atuar em qualquer lugar do mundo e de ser imparcial. Depois, mostra-se ao

mesmo tempo pouco confiável, ao admitir ser um fingidor, e correto, ao revelar que fica

nervoso quando há sabotagem. Por fim, coloca-se como conselheiro. Apesar das duas

imagens se contradizem, farsante e decente, o EUe cria, ainda, a imagem do profissional

exemplar e do conselheiro. Esse posicionamento do sujeito enunciador confere à obra

um efeito de saber.

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A última modalidade dentro do ponto de vista da motivação é o “querer”.

Charaudeau (2012, p.95) afirma que o EUe estabelece, com seu enunciado, uma ação a

fazer cuja realização não depende dele, trata-se de uma situação de carência que gostaria

de ver preenchida. O “desejo”, o “anseio” e a “exigência”, são, de acordo com o autor

(2012), variações do “querer”. Abaixo, seguem os excertos relacionados ao desejo:

[E85] Com você, leitor, gostaria de dividir essas experiências (p.10).

[E86] Gostaria também de salientar que as ideias expostas a seguir fazem

parte de contextos de vida. [...] Longe de mim desejar impor verdades absolutas (p.11).

[E87] Decidi, então, que gostaria de escrever para todas as mídias. Queria

estar nos jornais, nas revistas no rádio e na televisão (p.24).

[E88] Eu queria estar mais próximo possível do chamado ‘tempo real’. Queria me antecipar (p.141).

[E89] Desde cedo, também, quis estar desperto para ver o mundo acontecer

(p141).

Esses excertos dizem respeito a um querer íntimo do sujeito enunciador, como em

E85 em que ele revela querer dividir suas experiências; pode-se dizer que a obra parte

também da vontade que esse sujeito tem em contar sobre sua vida. Acreditamos que

esse querer pode partir de um desejo de adquirir ainda mais notoriedade, uma vez que o

EUe manifesta o desejo em compartilhar suas experiências e de ter visibilidade. Foi

possível perceber, através dos excertos 87, 88 e 89, o desejo desse sujeito de estar

atualizado. Temos, aqui, a imagem de um sujeito exibicionista e atento, gerando, assim,

um efeito de ambição.

Na proposição de Charaudeau (2012, p.95), o “querer” expressa um desejo “íntimo”

do sujeito enunciador, sem especificar o agente ou a causa que poderia realizar esse

desejo. Na obra em análise, ao contrário da proposta do autor (2012), esse agente é

especificado. Para o EUe, a maioria de seus desejos podem ser realizados pelo próprio

EUe, é um querer pessoal ao qual ele mesmo é capaz de satisfazer.

O “anseio”, por outro lado, corresponde a um “querer cuja realização é tida como

quase impossível” (CHARAUDEAU, 2012, p.95) e é inexistente na obra, o que revela

que o sujeito enunciador se atém apenas àquilo que pode ser realizado; mais que isso,

que pode ser realizado por ele mesmo – egocentrismo.

Ainda como parte do “querer”, temos, na proposição de Charaudeau (2012, p.96), a

“exigência”, que se refere a um querer muito intenso relacionado à posição de

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autoridade do EUe, o qual chama seu TUd à submissão, como podemos observar

abaixo:

[E90] Digo sempre ao meu pessoal: “pô, eu não quero malhar o sujeito para vender algo na marra; eu quero é gerar uma genuína predisposição de

compra” (p.91)

[E91] Não quero que fiquem [os bilhetes] menos sinceros nem menos

verdadeiros (p.123)

Em E90, o EUe evidência seu lugar de fala, como aquele que detém o poder. Com o

cargo de chefia, ele exige como seus funcionários devem trabalhar: sem desonrar a

imagem de ninguém, de forma a gerar predisposição de compra. Já em E91, ele exige

que os bilhetes feitos por ele mesmo sejam sinceros e verdadeiros, portanto, trata-se de

uma exigência que ele tem para com ele mesmo. É mostrado aqui, pelo EUe, a imagem

de um sujeito autoritário e exigente.

Do ponto de vista do “engajamento”, há as modalidades da “promessa”, da

“aceitação/recusa”, do “concordância/discordância” e da “declaração”. Na “promessa” o

EUe compromete-se, pelo seu dizer, a realizar um ato, colocando-se na posição de falsa-

testemunha se não cumprir o que faria; o que não é o caso do EUe da obra em questão,

uma vez que ele não faz juramento algum. Isso gera um efeito de não

comprometimento. Já a “aceitação/recusa”, refere-se à resposta favorável ou

desfavorável de um pedido de realização de um ato.

Como “aceitação”, há apenas o ato do sujeito enunciador de acatar o pedido da

família para que ele fizesse o tratamento preventivo. O que mostra que nem em

ambiente familiar, onde o papel do EUe, como filho, deveria ser de submissão, ele se

rebaixa. Uma vez que aceita o que a família sugere, ele o coloca em nível de igualdade,

não daquele que apenas obedece a ordens, E89.

[E92] Aceitei o tratamento preventivo [...] (p.36).

A “recusa” é identificada em passagens que tratam do trabalho, de convites e

propostas que o EUe recebeu e rejeitou. O que o coloca mais uma vez em uma posição

de superioridade, uma vez que pode escolher com quem e para quem trabalha, E90 e

E91.

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[E93] Recusei-os [os convites de trabalho de agências dos Estados Unidos e

da Inglaterra] educadamente (p.54).

[E94] Recusei várias propostas de concorrentes (p.71).

Na modalidade de “concordância/discordância”, proposta por Charaudeau (2012,

p.97), pressupõe-se que foi dirigido ao EUe um pedido de dizer, cabendo a ele

confirmar se adere ou não à verdade desse propósito. Essa concordância ou discordância

pode ser realizada de maneira total, parcial ou retificativa. A seguir, temos o exemplo de

uma concordância total do sujeito enunciador:

[E95] Com certeza, essa conduta [de internalizar um saber específico e

automatizá-lo] vale para tudo no campo do “fazer” (p.41).

Nesse exceto, o sujeito enunciador demonstra concordar totalmente com a conduta

de sua avó Lucia, ele acredita que deve-se aprender bem uma técnica, exercitá-la até

tornar-se um hábito e acrescentar algum ingrediente pessoal, isso em qualquer trabalho

realizado, independente de ser culinário, como no caso de Lucia, que, de acordo com o

sujeito enunciador, “[...] tinha de cabeça o roteiro da perfeição. No entanto, nunca

deixou de colocar paixão e carinho em suas artes culinárias” (ibidem, 2011, p.41). Já no

excerto a seguir, podemos observar que o EUe discorda parcialmente da verdade do

propósito:

[E96] Há quem diga que os anos 1970 são sombrios, um vale temporal de desilusão. Discordo em partes (p.28).

Para o sujeito enunciador, os anos 1970 não foram sombrios como muitas pessoas

dizem. Segundo ele, houve, nessa época, um renascimento do espírito libertário e um

refinamento do pensamento gerado pelas restrições impostas pela ditadura. Embora

houvesse a censura, o EUe, vê esse período como uma época de expansão criativa.

[E97] Lá pelo oitavo ano de DPZ, todos os meus colegas de mercado e clientes já diziam que eu deveria criar a minha própria empresa. Eu não concordava (p.71).

Em E97, por outro lado, o EUe apresenta uma discordância total. Enquanto colegas

de trabalho e clientes acreditavam que ele deveria criar a própria empresa, ele não

concordava, acha que deveria aprender ainda mais. Demostrando, assim, ser exigente

quanto à qualidade de seu próprio trabalho, uma vez que todos de seu círculo

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profissional apostavam nele, ele, por outro lado, acreditava que poderia aprender ainda

mais e ser ainda melhor.

Do ponto de vista da “declaração”, Charaudeau (2012, p.98) afirma que o EUe detém

um saber e o transmite em forma de “confissão”, “revelação”, “afirmação” ou, ainda,

“confirmação”. Na obra em análise, as declarações feitas pelo sujeito enunciador se

desdobram nas formas de confissões e de revelações. Acreditamos que esse tipo de

declaração seja esperado em obras de cunho autobiográfico, uma vez que há expectativa

de que algo da ordem do individual e do privado seja revelado, algo que seja relevante e

escape do já conhecido. Os excertos que seguem são confissões feitas pelo EUe, o que

cria um efeito de cumplicidade com o leitor:

[E98] Eu confesso: nunca fui um ótimo aluno [...] (p.21).

[E99] Na verdade, muitas das melhores lições que aprendi não vieram do

ensino escolar, tampouco dos livros didáticos. Muito do bom aprendizado veio da descoberta no dia a dia, das experiências não agendadas (p.21).

[E100] Confesso que a vaidade profissional me impede de ceder à tristeza à

depressão e à preguiça (p.64).

[E101] Admito que me sinto generoso, me sinto bem nessa divisão que soma

(p.66).

[E102] Na verdade, sempre pensei que poderia passar uma boa mensagem,

especialmente se estivesse infiltrado no sistema (p.70).

[E103] A primeira W, que surgiu em sociedade com o grupo suíço GGK, foi muito feliz, mas admito que a parceria foi firmada porque eu queria ter um

pouquinho mais de segurança (p.71).

[E104] Hoje eu tenho maturidade e segurança para reconhecer

perfeitamente essa condição inicial favorável (p.97).

[E105] Confesso que tenho uma verdadeira tara por estar atrelado ao que

existe de mais novo (p.103).

[E106] Por isso, admito que sou tomado por certa melancolia quando penso

na questão tempo versus amizade (p.110).

[E107] Na verdade, minha maneira de entender o mundo passa sempre pela

música popular (p.114).

[E108] No entanto, admito que tem um limite [para praticar a cordialidade e

engolir sapos (p.121).

[E109] Fechando o raciocínio, admito que é mais delicado escrever um

bilhete a mão (p.124).

[E110] O trabalho pode até não me agradar, mas admito que o autor acertou

na formatação, que soube atender às expectativas do seu público (p.139).

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Nos termos de Charaudeau (2012, p.98), o EUe escondia um saber que “o colocaria

em causa”. É, pois, um tipo de declaração em que se reconhece uma culpa. Em E98, ele

revela não ter sido bom aluno na escola, o que pode ir de encontro com as expectativas

de muitos de seus leitores, uma vez que se espera que uma referência profissional tenha

sido um exemplo também no aprendizado escolar, como forma de justificar a sua

posição. Em seguida, a fim de defender essa posição ocupada por ele, o sujeito

enunciador declara que a maioria de seu aprendizado não veio com a escolaridade, mas

sim com as experiências do dia a dia, E99.

Há, aqui, uma questão relativa à teoria (escola) e prática (experiência). O EUe

mostra-se avesso à teoria e adepto ao conhecimento adquirido informalmente. Esse

sujeito constrói, assim, a imagem de um mau aluno, que ao admitir tal fato, não

demonstra pesar, pois foi bem sucedido ao sair do padrão.

No campo profissional, tema central do livro, o sujeito enunciador confessa ser

vaidoso, mas essa não é uma vaidade ruim, uma vez que o impede de ceder à tristeza,

E100, conforme ele justifica. Esse sujeito admite também ser generoso nesse campo,

E101. Ele declara ainda que sempre achou que tinha algo bom para passar para as

pessoas, a publicidade seria um meio, E102. Já em E103, o EUe confessa que a parceria

profissional se deu pela segurança que essa junção lhe garantiria. Além do mais, hoje,

ele admite que, inicialmente, teve uma situação muito favorável, isso lhe auxiliou a

chegar onde está, coisa que antes não admitiria, o que mostra certo orgulho por parte do

EUe, E104.

O sujeito enunciador declara ainda gostar do que é novo, E105, o que não causa

estranhamento algum, uma vez que o mercado está sempre em busca do novo e para ter

destaque, é necessário inovar, principalmente levando em consideração a profissão do

publicitário. Em contrapartida, no campo pessoal, o EUe demonstra ser melancólico no

que diz respeito às amizades, E106, ele admite que o tempo lhe traz nostalgia. Em E107,

esse sujeito reconhece seu gosto por música popular e afirma que isso influencia na

forma pela qual ele vê o mundo.

Já em E108, ele trata da cordialidade, para o EUe, há um limite para isso, o que

revela que ele não é uma pessoa que “engole sapos”. Ele ainda confessa ter preferência

por bilhetes escritos à mão, o que, segundo esse sujeito, torna esses bilhetes mais

pessoais, E109, e declara que embora não goste de determinado estilo musical, admite

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que, se tiver sucesso, o autor da música acertou na formatação, o que mostra que, para

ele, sucesso está relacionado à aceitação popular.

Todas essas afirmações sobre o modo de ser do EUe têm como efeito de sentido a

perspicácia. Esse sujeito apresenta-se como alguém que foge dos padrões, mas que, por

estar atento ao mercado, consegue se sobressair, que preza a segurança e é

profissionalmente vaidoso.

Como mencionado anteriormente, a “revelação” também é uma forma de

“declaração”. Ela ocorre quando o EUe expõe um saber oculto. Embora seja uma

categoria muito esperada por esse tipo de obra, o sujeito enunciador faz apenas uma

revelação explícita:

[E111] Vou revelar um pedaço do segredo da coisa: a melhor publicidade

não é aquela que tenta vender, mas é aquela que gera predisposição de compra (p.90).

Nesse excerto, o EUe admite haver um segredo profissional e até revela uma parte

desse fazer, mas não totalmente. Expondo, assim, seu lado competitivo e criando um

efeito de mistério.

Por fim, do ponto de vista do “saber” temos as modalidades da “constatação” e do

“saber/ignorância”. Pela “constatação”, o locutor reconhece um fato de maneira

objetiva, fruto de uma observação, trata-se de saber o que algo significa, sem, contudo,

expressar julgamentos:

[E112] Lendo e observando o mundo, percebi que era possível aprender de

outra forma [...] (p.22).

[E113] Na hora de racionalizar, percebi que a publicidade misturava as duas

coisas (p.23).

[E114] Primeiro, descobri o que era ganhar a vida honestamente (p.40).

[E115] Aos poucos, percebi que as melhores receitas eram relativamente

simples [...] (p.41).

[E116] Descobri que as coisas elegantes nem sempre estavam associadas a

riqueza e dinheiro (p.44)

[E117] Ainda jovem, percebi que deveria compreender a dinâmica de cada

época para comunicar bem (p.70).

[E118] Percebi também que não adiantava produzir os melhores anúncios do

mundo se eles não fossem aprovados e veiculados (p.70).

[E119] Depois de 14 anos de DPZ, enfim percebi que já tinha feito tudo o que

podia na agência (p.71).

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[E120] Descobri que não existia um único modo de conduzir uma empresa,

ter ideias, trabalhar em equipe, motivar pessoas, criar, fazer (p.71).

Esses são saberes adquiridos por esse sujeito de forma comprovada e, por isso,

objetiva; são saberes trazidos pela observação e experiência. Nesses excertos, o uso dos

verbos descobrir e perceber parte de processos cognitivos do sujeito enunciador,

auxiliando, assim, na construção da sua imagem enquanto pessoa coerente, que

racionaliza um fato ou um evento de forma prática e objetiva, o que resulta na produção

de um efeito pragmático por parte desse sujeito.

Já o “saber/ignorância” trata , segundo as proposições de Charaudeau (2012, p.92),

de uma informação que é pressuposta e é reconhecida ou não em sua verdade pelo EUe.

A obra em análise traz os conhecimentos que o sujeito enunciador afirma ter adquirido

ao longo da vida, sendo essa, uma modalidade muito constante ao longo da obra. Como

pressuposições de ignorância esse sujeito, em tom de brincadeira, reconhece a falta de

conhecimento apenas uma vez, quando diz não ter aprendido quase nada sobre química,

E121:

[E121] Brinco que não consegui aprender quase nada do programa de

química, e que tenho até hoje sérias dúvidas sobre a fórmula da água (p.138).

Admitir que ignora algo pode prejudicar a imagem positiva que vem sendo

construída durante a obra, por isso, quanto menos admitir que não sabe das coisas,

melhor para seu empreendimento comunicacional. Além do mais, a obra trata das coisas

que a vida o ensinou, por isso o EUe deve tratar dos saberes adquiridos por ele, não das

coisas que desconhece. Mostrar conhecimento justifica a escolha de seu nome para

compor a seleção de autores que fazem parte dessa coletânea; fato esse que gera um

efeito de sabedoria:

[E122] Aprendi a me preparar para resistir civilizadamente a esse tipo de

oposição oportunista (p.18).

[E123] Aprendi, portanto, que grandes coisas acontecem em contextos

apropriados (p.26).

[E124] A leitura dos poemas me ensinava que as coisas podem ser vistas e

sentidas de modo diferente (p.28).

[E125] Assim, sem muito método, com a ajuda do povo de casa, [...], aprendi

a ler e escrever (p.37).

[E126] Sabia que podia aprender com cada um deles (p.39).

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[E127] Aprendi muito com ele [avô] (p.40).

[E128] Com eles [avós maternos], também aprendi a ter prazer em comer

(p.40).

[E129] Há 15 anos, eu também já sabia que o SoHo ia deixar de ser o

grande barato (p.49).

[E130] Logicamente, foi em Cannes que aprendi demais sobre a minha

profissão, e também sobre a arte e comunicação (p.51).

[E131] E aprendi desde cedo que dependo muito da minha língua. É por

meio dela que posso expor minhas ideias (p.54).

[E132] [...] aprendi muito com o esporte, com o jogo, com a disputa (p.57).

[E133] A disputa na quadra, de maneira geral, já me ensinara muita coisa

sobre limites, sobre força de vontade e sobre respeito aos adversários (p.58).

[E134] Para além do Coringão, o esporte me ensinou muito (p.62).

[E135] Para o trabalho render, aprendi também que é sempre válido

estimular o prazer da coautoria (p.64).

[E136] Isso mostra que fui aprendendo a liderar equipes e a conviver

produtivamente com gente legal (p.65).

[E137] “Eu sei que vocês vão conseguir fazer isso sozinhos”, sentenciei,

passando a bola para eles (p.66).

[E138] Eu já sabia que não era possível realizar a revolução política sem a

revolução estética (p.69).

[E139] Mas eu também sabia que a minha notícia não poderia ser maior que

o meu trabalho (p.70).

[E140] Com o tempo, aprendi a fazer boas apresentações para os públicos

de interesse (p.70)

[E141] Aprendi que, enquanto empregado, eu deveria me comportar como

dono (p.71).

[E142] Aprendi que é fundamental cultivá-la [a inveja] (p.81).

[E143] Eu, como adolescente, já sabia que essa [capacidade de surpreender

e encantar] era uma ferramenta de competição (p.96).

[E144] Aprendi a me prevenir contra as grandes euforias que muitas vezes

conduzem a grandes erros (p.96).

[E145] Aprendi a colar um amorzinho a outro para fazer amorzões (p.108)

[E146] Interessante é que aprendi que nem todos eram fantásticos como

eles [James Joyce, Ernerst Hemingway e outros] (p.116)

[E147] Sei, por exemplo, que meu amigo Ricardo Scalamandré, da Globo,

gosta de um dry-martini (p.124).

Podemos perceber que contextos diferentes trouxeram experiências e aprendizados

diferentes, mas que, de forma geral, convergem em ensinamentos profissionais. Os

excertos E145 e E147 trazem conhecimentos da área pessoal; enquanto E147 trata de

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amizade, de um saber que o auxilia na hora de agradar um amigo, E145 refere-se aos

amores, para o EUe, amores breves são melhores que os grandes amores. Esses trechos

expõem o lado pessoal do EUe de alguém atencioso, E147, ao mesmo tempo em que

não é dado ao romantismo, E145.

Observamos, ainda, algumas referências que o EUe mostra ter: SoHo24

, E129,

Cannes25

, E130, James Joyce26

, Ernerst Hemingway27

, E146 e o coringão28

, E134.

Além de mostrar vivência, ao remeter a universos sociais e literários internacionais e do

esporte, o EUe cria um efeito de sofisticação, saber e competitividade.

A família também aparece como fonte de saber. Essa referência à família passa a

imagem de alguém que carrega valores tradicionais, logo, de uma pessoa íntegra, dotada

de princípios morais, já que a nossa sociedade tem a família como um valor positivo. A

referência aos avós indica uma valorização do passado, que é retomado para a

construção do novo a partir da sua criatividade.

A literatura e o português também aparecem como fonte de conhecimento. Já

mencionamos anteriormente que as referências literárias internacionais (James Joyce e

Ernerst Hemingway), E146, demonstram que o conhecimento do EUe vai além da

esfera nacional, isto é, que ele sabe o que está acontecendo culturalmente no mundo. Os

conhecimentos adquiridos pela literatura, ampliação do universo, aliado aos obtidos

pelo estudo do português, como a boa comunicação, são características necessárias para

o bom desempenho do profissional na publicidade, uma vez que se trabalha a língua e

os sentidos.

O EUe discorre ainda sobre o que o esporte lhe ensinou. Em E132, ele apresenta o

esporte enquanto disputa, trata-se da competitividade. Além dessa competitividade, ele

exercitou, por meio do esporte, a força de vontade, o respeito e limites, E133. Esses são

traços que refletem em sua carreira e montam o perfil de uma pessoa que é competidora,

mas que respeita a concorrência, isto é, correto. Para finalizar os aprendizados

adquiridos através do esporte, o sujeito enunciador reforça que obteve grandes

ensinamentos por meio dessa prática e fala de sua paixão pelo time de futebol paulista, o

Corinthians, E134.

24

Bairro de Manhattan, na cidade de Nova York. Uma abreviação de “South of Houston”. 25

Cidade no sul da França que cedia uma das mais importantes premiações da publicidade. 26

Escritor irlandês. 27

Escritor norte-americano. 28

Referência ao Sport Club Corinthians Paulista.

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Portanto, o esporte tem um papel importante na formação desse publicitário de

sucesso que vê nessa atividade mais que um entretenimento. Além da competitividade,

do saber ganhar e perder, a presença do esporte constrói um perfil amplo de uma pessoa

fanática pelo time, que está a todo o momento trabalhando o emocional, envolvido com

táticas e seguindo regras – tudo o que envolve o jogo e a disputa.

Os demais excertos abordam conhecimentos adquiridos diretamente relacionados à

carreira profissional. O EUe afirma saber lidar com a oposição, E122, e demonstra ter

uma visão que lhe permite tirar proveito de determinadas coisas, E129, mostrando-se

uma pessoa civilizada e capaz de reconhecer tendências. O sujeito enunciador ainda

atribui a Cannes grande parte do seu conhecimento. Participar de um festival como o

que ocorre em Cannes e ainda ser premiado representa um reconhecimento profissional

importante, assumir, portanto, ter aprendido em um lugar que simboliza o sucesso é

demonstrar vaidade envolta pela máscara da humildade.

O sujeito enunciador demonstra ter espírito de liderança, E136 e 137, e interesse em

produzir uma quantidade maior de trabalhos, E135. Além do mais, ele acredita que

através da publicidade pode-se mudar a sociedade.

Em geral, o EUe tem um ponto de vista positivo com relação à profissão. Ele

também mostra interesse em produzir uma quantidade maior de trabalhos, E138. Além

do mais, esse sujeito apresenta-se como líder, E136, 137 e 141. Demonstra também

saber vender suas ideias, E140. Todo esse comportamento descrito cria a imagem de

uma pessoa engajada.

Socialmente, a inveja é um sentimento negativo; o EUe, entretanto, faz a inversão

dessa significação, E142. Para ele, trata-se de algo saudável, que desperta admiração e

que estimula a produção, demonstrando, mais uma vez, competitividade. Além dessa

imagem de uma pessoa competitiva, que também é apresentada no E142, o sujeito

enunciador mostra-se capaz de prevenir-se contra grandes euforias, que segundo ele,

podem conduzir a grandes erros, E144; saber equilibrar as próprias emoções quando se

trabalha justamente com esse apelo, mostra um lado racional e assertivo desse sujeito.

Visto isso, seus saberes apontaram para um sujeito educado, capaz de contornar

problemas, de reconhecer tendências, profissionalmente vaidoso, ambicioso, líder,

elemento de mudança social, bom vendedor, engajado, competitivo, equilibrado e

racional. Características essas que denotam, por parte do EUe, qualidades; até mesmo

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aquelas que poderiam evidenciar defeitos (como a ambição, a competitividade e a

inveja) são apresentadas como algo positivo, que o auxiliam em sua produtividade.

3.4.2.3 O ato delocutivo

O ato delocutivo é aquele que, segundo Charaudeau (2012, p.83), o sujeito

enunciador se apaga da enunciação e age como testemunha dos discursos do mundo.

Esse ato cria um efeito de objetividade, uma vez que a subjetividade do EUe está

desvinculada por se tratar de pontos de vista externos. Assim, segundo Charaudeau

(op.cit), há duas possibilidades: a asserção e o discurso relatado.

Na asserção, o propósito se impõe por si só. Trata-se da maneira de apresentar a

verdade desse propósito – a maneira de dizer. O sujeito enunciador diz como o mundo

existe. A modalidade de asserção se desdobra em diversos tipos, como a evidência, o

anseio e a exigência. Na obra em questão, encontramos configurações de: evidência,

probabilidade, apreciação, obrigação, possibilidade e confirmação.

[E148] Logicamente, fiquei honradíssimo com o convite (p.9).

[E149] Lógico que eu preferia ser o Mick Jagger ou artilheiro da Seleção

Brasileira, mas não tinha grande talento para o rock e nem para o futebol (p.13).

[E150] Logicamente, tinha tesão em fazer o que fazia, em criar, em

comunicar (p.14).

[E151] Obviamente, não houve tempo de mudar nada (p.17).

[E152] Em 2010, quando recebi o título de comendador da república italiana, obviamente me senti honrado, mas minha mãe é quem foi mesmo ao delírio

(p.43).

[E153] Logicamente, havia [na Confeitaria Vienense] gente bem chique, mas

não era isso que me fascinava (p.44).

[E154] Se havia centros de produção, é lógico que também havia operários e

operárias, muitos imigrantes ou descendentes (p.45).

[E155] Logicamente, essa interpretação passa por um olhar calibrado sobre

a relação entre o espaço e as manifestações nos campos da moda, da música, das artes plásticas, do esporte e da política (p.50).

[E156] Logicamente, foi em Cannes que aprendi demais sobre a minha

profissão, e também sobre a arte e comunicação (p.51).

[E157] Sim, é evidente que ainda tem gente que cultiva preconceito, tanto

racial, quanto social. Mas o Brasil parece lidar melhor com essas questões delicadas (p.52).

[E158] Obviamente, há dias em que me sinto mais atilado, com mais

energia, e posso fazer melhor e mais rápido (p.64).

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[E159] Logicamente, também analisei as virtudes éticas do parceiro e sua

inserção na cultura popular (p.73).

[E160] Com certeza, atravessamos um vale, um hiato criativo, mas isso

tende a mudar (p.82).

[E161] Certamente, o trabalho é uma manifestação de total respeito aos mais

jovens, mas se fosse lançado hoje [o comercial do meu primeiro sutiã] eu não me surpreenderia se algum oportunista o qualificasse como incentivo à pedofilia ou a outra bobagem do gênero (p.85).

[E162] É lógico que a gente não vai gerar grandes revoluções no quadro

social, mas pode colaborar na implantação de bons hábitos e no combate a gestos predatórios, sempre com um incentivo à reflexão (p.102).

[E163] Mas, obviamente, é uma utopia [buscar a plena sabedoria] (p.111).

[E164] Logicamente, isso [da brincadeira ser necessária à vida humana e do

chiste ajudar na reconstrução da força do espírito] não era consenso (p.136).

[E165] Afinal, se alguém compõe uma canção e obtém grande aceitação popular, certamente tem algum mérito (p.139).

[E166] E é lógico que a coletividade iria se beneficiar disso [se a matemática

fosse mais popular (p.140).

[E167] Logicamente, cada um tem seu jeito de dar sentido à vida (p.141).

Os excertos acima representam asserções na configuração de evidência; tratam-se,

portanto, de proposições que devem ser entendidas como verdadeiras e inquestionáveis.

Inicialmente, o EUe diz não haver dúvidas que ele se sentiu muito honrado com o

convite para escrever o livro, E148. A verdade que se estabelece é a de que qualquer

pessoa que recebesse esse convite também se sentiria, contudo, por se tratar de uma

honraria, não são todos que recebem.

Para o sujeito enunciador muitas são as certezas ligadas, principalmente, ao trabalho:

a primeira delas é o prazer pelo que faz, E150. Os episódios em que o EUe comete um

erro ou que algo ruim acontece são raros na narrativa, contudo, ele discorre sobre um

anúncio que não deu certo, uma propaganda feita para a Clineu Rocha que tinha como

tema os judeus. O erro foi justificado pelo EUe como sendo uma infeliz coincidência,

mas que por se tratar de um jornal que já estava sendo impresso quando ocorreu uma

guerra que envolvia a questão religiosa, não houve tempo de mudar o anúncio, ou seja,

um fato que se impôs a ele, E151, assim, na visão desse sujeito, não foi ele o

responsável pelo insucesso do seu trabalho.

O sujeito enunciador ainda discorre sobre como descobrir tendências, que, segundo

ele, tem relação com interpretação e com regulação do ponto de vista, E155. A cidade

de Cannes, na França, é um lugar onde ele pode aprender muito sobre a profissão, logo

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é um lugar que tem muito a ensiná-lo, E154. Enquanto, profissional, há dias que o EUe,

como qualquer ser humano, se encontra mais disposto ao trabalho e, por isso, rende

mais, E158.

Ele ainda conta sobre a junção da W/Brasil com a McCann: para que a negociação

fosse efetuada, uma análise prévia de seu parceiro foi realizada, E159. Devido sua

configuração de evidência, acredita-se que esse tipo de comportamento deve ser

empreendido em qualquer tipo de negociação. Assim, ao demonstrar que uma junção só

deve ser realizada a fim de trazer algum benefício próprio e que, pra isso, uma espécie

de investigação deve ser efetuada, o EUe mostra cautela e prudência.

Quanto ao atual cenário da publicidade, o sujeito enunciador considera que não é um

bom momento, E160, o que talvez justificaria o foco nos trabalhos anteriores desse

sujeito. Não há na narrativa menção a trabalhos recentes ou em curso de realização,

somente aos trabalhos passados que o consagraram. Talvez para que a obra não fique

datada, talvez porque o “segredo” seja a arma do sucesso.

Dos trabalhos realizados, o EUe aponta para o comercial do “Meu primeiro sutiã”,

lançado pela Valisère em 1987, E161, afirmando que, apesar do respeito para com os

mais jovens, se fosse lançado nos dias de hoje, não teria a mesma aceitação devido ao

politicamente correto. Percebemos aqui certa aversão a esse conceito, talvez por impor

barreiras à liberdade criativa.

Por fim, das verdades relacionadas ao trabalho, o EUe trata do papel da publicidade

na sociedade, E162. Para ele, é certo que não se pode fazer uma revolução, mas é um

instrumento de auxílio na implantação de hábitos e um incentivo à reflexão. Assim, ele

considera que a publicidade é um instrumento de manipulação e de mudança social; o

que faz dele, enquanto publicitário, um manipulador.

Nos excertos 154, 157, 163, 164, 165, 166, e 167, o EUe trata ainda de verdades

universais relacionadas à sociedade, às pessoas e às crenças. São evidências

pertencentes à lógicas universais sociais e, por isso, irrefutáveis. Dessa forma, o EUe se

aproxima do TUd por meio de imaginários sociais partilhados e, com isso, reforça sua

argumentatividade. Além disso, em E151, ao afirmar que “cada um tem seu jeito de dar

sentido à vida”, o sujeito enunciador não se compromete e protege a própria face, caso o

TUi não concorde com a forma que esse EUe dá sentido à vida.

Por fim, o sujeito enunciador apresenta asserções na configuração de evidências

relacionadas ao seu sucesso e reconhecimento. Ser famoso era um sonho que o EUe

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tinha desde a infância, E149 e que, mais tarde, obteve reconhecimento através de uma

comenda. Aqui, esse sujeito demonstra ser digno de honrarias, empreendedor, vaidoso,

e detentor de saberes.

O discurso relatado, por sua vez, é “reproduzido em sua forma. Trata-se, de uma

repetição do que já foi dito” (CHARAUDEAU, 2012, p.103) e podem ser relatados de

maneiras diferentes pelo EUe. Na obra em análise, há o que Charaudeau (2012, p.104)

chama de “citado” e o “evocado”. O discurso citado ou a citação, segundo esse autor

(2012), é uma construção já enunciada anteriormente que é retomada de forma integral

ou parcialmente.

Na obra em análise, o sujeito enunciador se coloca em posição de autoridade para

julgar o que é bom e o que é ruim na área publicitária29

. Para isso, ele relata, sob a

forma de citação, alguns comerciais que considera bons, como podemos observar nos

excertos a seguir:

[E168] O locutor sentenciava: ‘Sujeira, não. Bom Bril é a solução. Para um Brasil limpinho, vote Bom Bril’ (p.31).

[E169] A assinatura do filme é: ‘até as más notícias soam melhor numa fita Basf’ (p.80).

[E170] Não dá para esquecer também o ‘não é nenhuma Brastemp’,

campanha da Talent, obra-prima do meu filhote profissional, Ricardo Freire (p.80).

[E171] Há outros projetos mercadológicos que não dependem do brilho individual da peça. É o caso do ‘desce redondo’, da Skol, feita pela F/Naska

(p.80).

[E172] Tempos depois, outro fez igual, e comunicou: ‘esta é a minha água mineral, da Fonte Saúde’ (p.92).

[E173] Um terceiro competidor agregou diferenciação: ‘esta é a minha água mineral, da Fonte Saúde, tratada antes do engarrafamento’ (p.92).

[E174] Um quarto completou o jogo, com um elemento de persuasão e outro de promoção: ‘está é a minha água mineral, da Fonte Saúde, tratada antes do engarrafamento, a melhor do mercado e a única que oferece copinhos colecionáveis’ (p.92).

De acordo com Lysardo-Dias (2005), a publicidade parte de uma referência

supostamente partilhada e mobiliza representações amplamente difundidas no sentido

de realizar seu projeto de comunicação. Assim, acreditamos que o mesmo ocorre

quando o sujeito enunciador mobiliza esse elemento em seu discurso, ao mencionar

29

Conforme veremos na análise das qualificações, quando esse sujeito qualifica coisas relacionadas à sua

área.

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esses comerciais, conhecidos socialmente; ele aproxima o discurso com a realidade do

sujeito destinatário tornando-o mais acessível e, consequentemente, facilitando a adesão

do TUi ao seu propósito argumentativo.

Ao citar o tema de divulgação turística de uma cidade espanhola, o EUe se mostra

atento aos assuntos de sua área de atuação, não se limitando à esfera nacional. Como

podemos observar no excerto que segue:

[E175] [...] a cidade [San Sebastián] escolheu um tema que realmente

representa sua personalidade: ‘ondas de energia de pessoas’ (p.51).

Frases que, socialmente, possuem um efeito moral também são utilizadas no discurso

desse sujeito:

[E176] Enfim, vale aquela frase que ora é atribuída ao escritor Oscar Wilde, ora ao físico e filósofo Blaise Pascal: ‘fiz esta carta mais longa porque não tive tempo de fazê-la curta’(p.20)

[E177] Aí, vale a frase do Sócrates [...]: ‘só sei que nada sei’ (p.111).

[E178] Lembro de uma entrevista que [Marcelo Mastrianni] concedeu ao Roberto D’Ávilla. Dali, saiu um raciocínio maravilhoso, que é mais ou menos assim: ‘deveríamos ter o direito a duas vidas, uma para ensaiar e outra para representar’ (p.116).

A utilização desse tipo de frase auxilia na construção da imagem de uma pessoa

culta. Entretanto, no excerto 176, esse sujeito demonstra não saber a origem de tal frase.

Acreditamos, portanto, que são utilizadas apenas para ilustrar suas próprias proposições.

Um respaldo argumentativo.

Assim como o uso de propagandas e de frases amplamente difundidas, a citação de

músicas também auxilia na aproximação do discurso com a realidade do sujeito

destinatário:

[E179] Nada do que foi será/ De novo do jeito que já foi um dia/ Tudo passa/ Tudo sempre passará/ A vida vem em ondas/ Como um mar/ Num indo e vindo infinito (p.33)

[E180] Legal demais ligar o rádio do carro e escutar: ‘Alô, alô, W/Brasil;

Alô, alô, W/Brasil’ (p.115).

No entanto, não se tratam apenas de músicas que esse sujeito enunciador considera

boas. Uma, E179, está relacionada à música de um artista que esse sujeito tem como

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amigo – o que corrobora a imagem do sujeito bem relacionado –, a outra, E180, trata da

empresa desse sujeito – o que lhe confere um estatuto de importância.

Além da música que faz referência à empresa do sujeito enunciador, ao citar outras

pessoas que falam sobre ele, esse sujeito supervaloriza a própria imagem, como

podermos observar nos excertos seguintes:

[E181] [Ricardo Amaral] Relatou com bom humor: ‘Uma vez saímos para jantar e, sem querer, trocamos os cartões de crédito. No dia seguinte, viajamos para países diferentes e foi aí que notamos a troca. Liguei para ele e combinamos de usar os cartões, mas sem acertarmos nada depois. Isso é um ato de carioquismo pleno’ (p.54).

[E182] O maior elogio que recebi na vida, [...] foi uma frase pronunciada em Nova York: ‘O Washington tem um dedo no pulso do Brasil’ (p.55).

Além do mais, o EUe faz autocitações:

[E183] Pensei: ‘lá eu vou ser bom, mas aqui eu posso ser melhor’ (p.54).

[E184] ‘Eu sei que vocês vão conseguir fazer isso sozinhos’, sentenciei,

passando a bola para eles (p.66).

[E185] Digo sempre ao meu pessoal: ‘pô, eu não quero malhar o sujeito para vender algo na marra; eu quero é gerar uma genuína predisposição de compra’ (p.91).

[E186] Por vezes, acordo e me pergunto: 'por que faz tempo que não tomo um vinho com fulano?' (p.110).

[E187] As vezes, no meio do dia, penso: ‘poxa, faz um mês que eu não almoço com o Paulo Salles’ (p.110).

[E188] Todos os dias me pergunto: 'o que você, Washington, está fazendo de novo, na profissão ou na vida profissional?' (p.131).

Considerando o caráter mercadológico da obra autobiográfica, espera-se que o

sujeito enunciador compartilhe suas ideias e crenças. Assim, a autocitação, além de

refletir um possível interesse do leitor, ainda confere ao EUe um grau de importância.

Quanto a esse leitor, o sujeito enunciador também faz citação, por meio de

inferência, de um possível pensamento dele:

[E189] [Você] Deve estar dizendo: ‘caramba, logo acima ele disse que o publicitário não precisava ser gênio, mas agora fala em puta ideia’

(p.92).

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Acreditamos que seja essa uma forma de captar o leitor, envolvendo-o em seu

discurso e reforçando, assim, a argumentatividade.

O sujeito enunciador, ainda, cita os clientes do seu pai, E190. Acreditamos que seja

uma forma de demonstrar a credibilidade que seu pai possuía. Significa que ele, o pai,

inspirava confiança. Como essa característica a qual o EUe preza, subentende-se que

seja algo herdado. Logo, as pessoas podem confiar nesse sujeito, assim como confiavam

em seu pai. Algo fundamental em seu empreendimento argumentativo.

[E190] [As pessoas] Diziam coisas como ‘olha aí o que está faltando e pode tirar o pedido’ (p.42).

Por meio do discurso relatado citado, foi possível observar que o sujeito enunciador

se pauta em saberes comumente difundido para embasar seu discurso, além de conferir a

si um caráter extremamente narcisista.

Já o discurso relatado evocado ou a alusão trata-se, nos termos de Charaudeau (2012,

p.105), de um “dado evocador”, ou seja, algo que o sujeito enunciador tem como hábito

de dizer ou do que é dito socialmente, o correspondente à expressão popular: “como se

diz”.

As máximas e os provérbios, de acordo com Charaudeau (2015, p.166),

correspondem a esse caso.

[E191] Aí você fica superfeliz e dispara a frase jubilosa: ‘puxa, ainda me pagam pra fazer isso’ (p.15)

Assim, ao utilizar essa máxima, o sujeito enunciador além de fazer uma alusão ao

saber popular, ainda cria a imagem de sujeito realizado profissionalmente.

O sujeito enunciador também evoca expressões que estão na moda, significando,

como aponta Charaudeau (2015, p.166), “como se diz nesse momento”. Como podemos

observar nos excertos a seguir:

[E192] E as garçonetes são ‘modernérrimas’ (p.51).

[E193] Por isso, algumas redes sociais on-line chamam os amigos de ‘contatos’ (p.109).

[E194] No mundo dos negócios, também vem ganhando força o termo ‘contatos profissionais’ (p.109).

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[E195] Corriam os anos 1970, e ele [Capote] já estava muito ‘destruído’, mas

seguia botando as coisas com maestria no papel (p.113).

[E196] Eu queria estar mais próximo possível do chamado 'tempo real'

(p.141).

[E197] Se você ainda não se ‘achou’, esse é um tema no qual você deveria

pensar ainda hoje, antes de dormir (p.142).

Além dessas expressões mais atualizadas, o EUe também utiliza expressões um

pouco mais antigas, mas que ainda não saíram de moda, como podemos observar nos

excertos que seguem:

[E198] No fundo, todos nos considerávamos de esquerda, mas tinha uma esquerda mais careta e conservadora, e havia outra que era ‘desbundada’,

não no sentido da alienação, mas na admiração por uma estética nova e libertária (p.115).

[E199] Ambos [Bob Rafelson e Bert Schneider] trabalharam em muitos projetos ‘cabeça’ [...] (p.117).

Assim, com o uso desses tipos de expressões, esse sujeito demonstra estar atento às

mudanças na linguagem, além de ser sociável e moderno.

Há, também, o uso de expressões relacionadas à campanhas políticas e ao esporte. O

sujeito enunciador faz a junção desses dois universos. Construindo, assim, a imagem do

sujeito e do torcedor politizado. Como podemos observar nos excertos que seguem:

[E200] Entre 1981 e1984, vigorou a chamada ‘democracia corinthiana’ –

termo cunhado por mim, inspirado pelo jornalista Juca Kfouri – [...] (p.59).

[E201] A própria expressão ‘democracia corinthiana’ ganhou um logotipo

que lembrava aquele da Coca-Cola (p.60).

[E202] Utilizamos vários outros temas de campanha, sempre politizantes, como ‘Democracia já’, ‘Quero votar para presidente’, ‘Dia 15, vote’ e ‘Ganhar ou perder, mas sempre com democracia’, frase exposta numa faixa

que os jogadores exibiram orgulhosamente no campo do jogo (p.60).

[E203] Ajudamos a impulsionar o movimento das ‘Diretas já’ e tivemos nossa

cota de participação no processo que pôs fim à ditadura militar (p.61).

Há também a evocação de expressões ligadas à profissão. Trata-se dos prêmios

relacionados à área de atuação do EUe, E204, 205, e de uma expressão que remete à

finalidade da propaganda, E206.

[E204] Quem é da área sabe a emoção de receber um ‘leão’ na disputa com

os maiorais da área. (p.51).

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[E205] Em 2006, recebi da revista Seleções Reader’s Digest o prêmio de ‘Publicitário Mais Confiável’, a partir do resultado da pesquisa Marcas de

Confiança, realizada pelo Ibope (p.67).

[E206] A meta ainda é ‘persuadir a mocinha’, do mesmo modo que fazia o

primitivo caçador de bisões (p.94).

Palavras e expressões em inglês também aparecem como dado evocador. Aqui, trata-

se de uma convenção. Contudo, não deixa de aludir a outro cenário cultural; o que

corrobora na construção da imagem de um sujeito viajado, culto e experiente. Como

podemos observar nos excertos que seguem:

[E207] No início dos anos 1970, as primeiras comunidades ocuparam alguns grandes prédios e galpões de SoHo, denominação que faz referência à área “South of Houston”, ou sul do rio Hudson (p.49).

[E208] Antigas instalações de produção viraram os famosos ‘lofts’,

frequentemente retratados em filmes sobre artistas descolados (p.49).

Com relação ao “como ele diz”, nos termos de Charaudeau (2015, p.166), o sujeito

enunciador faz alusão à obra do filosofo francês Lévi-Strauss30

, E209, o que corrobora

com o ethos intelectual que esse sujeito vem construindo. Além do mais, esse sujeito

enunciador evoca um termo que o personagem de uma de suas campanhas nunca

pronunciaria, portanto, ao contrário da proposta de Charaudeau, trata-se do que ele não

diz, E210. Como podemos observar a seguir:

[E209] Nesse particular, aqui nos ‘tristes trópicos’ estamos na frente (p.52).

[E210] Ele [o Garoto Bombril] nunca pronunciou ‘você’. Ele nunca diz ‘você’ (p.93).

O “como eu gosto de dizer”, proposto por Charaudeau (2015, p.166), também

aparece entre as alusões presentes na obra:

[E211] As coisas que aprendi com São Paulo me foram úteis e me fizeram o que chamo de ‘detector’ de cidades (p.48).

[E212] Quando recebi o título de cidadão carioca, em agosto de 2010, quis levar ao evento seis ‘padrinhos’ (p.53).

30

Tristes trópicos é um ensaio do antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss, publicado em

1955. É uma narrativa etnográfica romanceada, que faz referências às sociedades indígenas brasileiras.

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[E213] Ela [a puta ideia] depende de uma atitude disciplinada e de ‘adestramento’, uma palavra que adoro usar, sem medo da conotação com

o treinamento de animais (p.92).

[E214] Aos mais jovens costumo sugerir que desenvolvam a habilidade de rir de si próprios, de exercitar a autocrítica e treinar um pouquinho a ‘autoridicularização’ (p.99).

Esses termos empregados estão relacionados à forma pela qual o sujeito enunciador

tem como hábito dizer e remetem a universos diversos, como o tecnológico, E211, o

familiar, E212, o do treinamento animal, E213 e da autoanálise, E214.

Já o “como se diz”, à maneira de Charaudeau (2015, p.166), se configura pelos ditos

proferidos socialmente, como podemos observar nos excertos a seguir:

[E215] A vida me ensinou que, na publicidade, o ‘médio’ e o ‘correto’ se enquadram no conceito de ‘malfeito’ (p.15).

[E216] Suspeitaram, então, que o mal oculto fosse o poliovírus, causador da poliomielite, a popular ‘paralisia infantil’ (p.35).

[E217] Eram os chamados ‘pulmões de ferro’, mais assustadores do que a

própria morte (p.36).

[E218] A boa vacina, desenvolvida pelo Dr. Albert Sabin, essa da ‘gotinha’

simpática, somente seria lançada no mercado na virada de 1961 para 1962 (p.36).

[E219] De repente, eu podia fugir da minha ‘cela’ pela janelinha dos livros

(p.37).

[E220] Sempre prestei muita atenção nos exemplos de ‘família’ [...] (p.39).

[E221] Tinha uma leiteria no bairro da Luz, mais precisamente na Rua São Caetano, que depois se tornaria a ‘rua das noivas’ (p.40).

[E222] Com certeza, essa conduta vale para tudo no campo do ‘fazer’ (p.41).

[E223] Isso [viver uma experiência com o esporte] vale também para os torcedores, aqueles fanáticos que ‘jogam’ do lado de fora (p.59).

[E224] No campo das personalidades, a maior admiração é por Muhammed Ali, visti tanto em sua faceta ‘física’ quanto ‘jurídica’. Como atleta, como

cidadão, como homem de marketing, como gerador de ideias, foi fenomenal (p.62).

[E225] Tem o ‘correto’ que, na verdade, é moralista (p.87).

[E226] Essa postura ‘redomista’ tem origem na falta de cultura geral, na

formação mediana pra cacete de alguns pseudo-educadores e no radicalismo demagogo que costumam render votos (p.88).

[E227] Aliás, entre os melhores publicitários, e me enquadro nesse grupo, não tem nenhum ‘gênio’ (p.89).

[E228] Mas como bons intrometidos e ‘invasores’ de lares e mentes,

podemos colaborar ainda mais com a construção de um país melhor (p.102).

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[E229] Muitas vezes, lá pelos 30 anos, quando você pensa que vai ter algum sossego, a parceira ou parceiro começa a querer ‘discutir a relação’ (p.129).

[E230] No segundo, o ‘engraçado’ se escora na oposição à diferença e na

exposição exagerada ou ridícula de estereótipos (p.135).

[E231] Porque é um jeito de dar nova cara e também novo sentido ao que criamos e àquilo que ‘lemos’ no cotidiano [...] (p.137).

Todos esses excertos destacam dizeres comuns da sociedade que esse sujeito retoma.

Assim como no discurso relatado citado, acreditamos que esses tipos de dizeres

auxiliam na captação do sujeito destinatário por se tratar de saberes comumente

difundidos, reforçando, assim, o caráter argumentativo da obra.

Em ambas as categorias propostas por Charaudeau (2012, 2015), citado e evocado,

há a presença das aspas. Esse teórico não faz uma distinção dos seus diferentes usos.

Portanto, faz-se necessário uma intervenção quanto ao uso desse recurso. A seguir,

faremos algumas considerações a partir da proposta de Authier-Revuz (1990, 2004)

quanto aos diferentes usos das aspas.

3.4.2.3.1 O uso das aspas

Como podemos observar nos quadros de excertos classificados segundo a Teoria

Semiolinguística, que trazem as maneiras de relatar o discurso de forma citada e

evocada, há um uso exacerbado das aspas. Essa forma marcada no discurso é o que

Authier-Revuz (1990, p.26) identifica por “heterogeneidade mostrada”, pois inscreve o

outro na sequência do discurso, fazendo, assim, que esse discurso seja um produto de

interdiscursos.

Ao inscrever o outro no discurso, a autora (1990, p.29) afirma que há alteração na

unicidade aparente da cadeia discursiva e remete ao que é exterior ao discurso. “Uma

dupla designação é assim operada pelas formas de heterogeneidade mostrada: a de um

lugar para um fragmento de estatuto diferente na linearidade da cadeia e a de uma

alteridade a que o fragmento remete” (op.cit).

Assim, para a autora (1990, p.31), a inserção de um outro fragmento, configurado

pela marcação, recebe nitidamente um caráter particular acidental, trata-se de uma

forma de defesa, uma necessidade de se recorrer a um outro para se constituir.

Dos frequentes empregos das aspas apontados por Authier-Revuz (2004, p.217),

observamos, então, que as aspas são usadas para marcar:

(i) o uso de palavras estrangeiras, técnicas e expressões familiares;

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(ii) a inclusão de palavras apropriadas ao sujeito destinatário;

(iii) a introdução de certas palavras e citações empregadas por outros;

(iv) a falta de uma outra palavra mais apropriada;

(v) a maneira enfática de um dizer.

As aspas são, na perspectiva de Authier-Revuz (2004, p.218), um sinal de distância,

um “corpo estranho” que é destacado como forma de “suspensão de responsabilidade”,

pois manifestam hesitação, por parte do sujeito enunciador, quanto ao uso adequado da

palavra.

O emprego das aspas para marcar palavras estrangeiras, neologismos, técnicas, bem

como expressões familiares é, de acordo com a autora (2004, p.221), muito frequente.

Na obra analisada por nós, o sujeito enunciador faz o uso das aspas para esse fim, como

podemos observar nos excertos que seguem:

[E207] No início dos anos 1970, as primeiras comunidades ocuparam alguns grandes prédios e galpões de SoHo, denominação que faz referência à área “South of Houston”, ou sul do rio Hudson (p.49).

[E208] Antigas instalações de produção viraram os famosos “lofts”,

frequentemente retratados em filmes sobre artistas descolados (p.49).

Authier-Revuz (2004, p.221) afirma que a utilização de palavras estrangeiras já

supõe compreensão por parte do TUi e as aspas seriam apenas uma forma normatização

desse uso através de um “código comum”. No E207, entretanto, além da utilização da

expressão estrangeira entre aspas, o sujeito enunciador também fez a tradução, talvez

como forma de resgatar o significado que não seria imediato devido a um fator cultural.

O sujeito enunciador também marca, no seu texto, algumas palavras como forma de

adequar seu discurso ao leitor, como podemos observar a seguir:

[E216] Suspeitaram, então, que o mal oculto fosse o poliovírus, causador da poliomielite, a popular ‘paralisia infantil’ (p.35).

[E217] Eram os chamados ‘pulmões de ferro’, mais assustadores do que a

própria morte (p.36). [E197] Se você ainda não se ‘achou’, esse é um tema no qual você deveria

pensar ainda hoje, antes de dormir (p.142).

Esse tipo de emprego das aspas corresponde ao que Authier-Revuz (2004, p.223)

chamou por “aspas de condescendência” e está relacionada à menção de uma palavra

que é apropriada ao sujeito destinatário, mas não ao sujeito enunciador. Nos excertos

216 e 217, acreditamos que, por ter sido submetido ao tratamento, é possível que o EUe

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conheça os termos específicos ligados à “suposta” enfermidade; o uso dos termos

popularmente conhecidos entre aspas reforçam essa hipótese, uma vez que pode ser

entendido como uma forma de garantir que o sujeito interpretante compreenda

plenamente seu enunciado. Já no E197, ao apropriar seu discurso ao linguajar do sujeito

destinatário, percebemos qual o tipo de público que ele se dirige: mais jovem e em

busca da realização profissional.

Na obra analisada por nós, as aspas também são empregadas para introduzir algumas

citações feitas por outras pessoas:

[E181] [Ricardo Amaral] Relatou com bom humor: ‘Uma vez saímos para jantar e, sem querer, trocamos os cartões de crédito. No dia seguinte, viajamos para países diferentes e foi aí que notamos a troca. Liguei para ele e combinamos de usar os cartões, mas sem acertarmos nada depois. Isso é um ato de carioquismo pleno’ (p.54).

[E190] [As pessoas] Diziam coisas como ‘olha aí o que está faltando e pode tirar o pedido’ (p.42).

Ao contrário da proposta de Authier-Revuz (2004, p.224) que sustenta que as

palavras ditas por um outro é uma forma de proteção, pois isenta o sujeito enunciador

da responsabilidade do conteúdo em caso de réplica ofensiva, acreditamos que na obra

em análise, o uso das aspas está ligada, em algumas ocorrências, a um outro tipo de

proteção. Trata-se de uma forma de atestar o já dito, uma confirmação daquilo que foi

exposto pelo sujeito enunciador, o que é, de certa forma, um respaldo na argumentação.

Assim, se o EUe já havia falado de suas virtudes, ele inclui a fala do outro como

testemunha dessas autoafirmações. Portanto, se na concepção de Authier-Revuz (op.cit)

esse tipo de modalidade da aspa de inserção das palavras de um outro corresponde a

uma forma “não plenamente apropriada”, observamos que na obra trata-se de uma

forma plenamente apropriada, devido ao seu caráter testemunhal.

Outro uso das aspas é o de marcação da falta de uma outra palavra mais apropriada:

[E226] Essa postura ‘redomista’ tem origem na falta de cultura geral, na

formação mediana pra cacete de alguns pseudo-educadores e no radicalismo demagogo que costumam render votos (p.88).

Aqui, observamos o uso das aspas como forma de modalizar o dizer do EUe. Esse

tipo de comportamento mostrado no discurso refere-se ao que Authier-Revuz (2004,

p.225) chama de “questionamento ofensivo” e ocorre quando o sujeito enunciador “é

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obrigado a falar com palavras que percebe como impostas pelo exterior, no lugar de

suas próprias palavras, que lhe são proibidas” (op.cit), trata-se de uma defesa, uma

reação ofensiva em uma situação dominada.

Outra modalidade encontrada para o emprego das aspas foi na marcação enfática de

um dizer, como podemos observar a seguir:

[E183] Pensei: ‘lá eu vou ser bom, mas aqui eu posso ser melhor’ (p.54).

[E182] O maior elogio que recebi na vida, [...] foi uma frase pronunciada em Nova York: ‘O Washington tem um dedo no pulso do Brasil’ (p.55).

[E185] Digo sempre ao meu pessoal: ‘pô, eu não quero malhar o sujeito para vender algo na marra; eu quero é gerar uma genuína predisposição de compra’ (p.91).

[E213] Ela [a puta ideia] depende de uma atitude disciplinada e de ‘adestramento’, uma palavra que adoro usar, sem medo da conotação com

o treinamento de animais (p.92).

Nos excertos 183, 182 e 185, o foco está voltado para o sujeito enunciador, pois se

tratam marcações que realçam frases ditas por ele ou sobre ele. Esse tipo de destaque

produziu no discurso um efeito narcísico. No excerto 213, por sua vez, o sujeito

enunciador enfatiza um termo ao qual ele desloca o sentido, mas que corresponde a

exatamente ao que ele quer dizer. Esse tipo de uso das aspas corresponde ao que

Authier-Revuz (2004, p.228) chama de “aspas de ênfase”, pois trata-se de realçar, por

meio da “insistência”, uma maneira de dizer.

Foi possível perceber, por meio da análise das formas configuradas da aspa, uma

tentativa do sujeito enunciador de adequar o seu discurso ao sujeito destinatário, um

esforço em inserir o outro no discurso como forma de assegurar e de respaldar o já dito,

uma modalização do dizer como forma defensiva e uma enfatização do eu.

A respeito desse eu, Authier-Revuz (1990, p.33) afirma que

as formas marcadas de heterogeneidade marcada reforçam, confirmam,

asseguram esse ‘eu’ por uma especificação de identidade, dando corpo ao

discurso – pela forma, pelo contorno, pelas bordas, pelos limites que elas

traçam – e dando forma ao sujeito enunciador – pela posição e atividade

metalinguística que encenam.

Assim, tem-se a ilusão do sujeito enquanto fonte de seu discurso, quando, na

verdade, ele é, de acordo com a autora (1990, p. 27) o suporte e o efeito, fruto do

mascaramento que o inconsciente promove. Sendo assim, as aspas, essas “palavras

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mantidas a distância”, funcionam como uma forma de ancoramento real que auxiliam na

ilusão de um sujeito exterior ao texto e, consequentemente, na argumentatividade, além

de criar um efeito de isenção do dizer.

3.4.3 Análise do modo descritivo: a qualificação

Conforme visto anteriormente, na proposição de Charaudeau (2012, p.109), “um

texto é sempre heterogêneo do ponto de vista da sua organização”. Além de dar conta da

posição do falante em relação ao interlocutor, em relação ao que ele diz e em relação ao

outro; interessa-nos saber como o EUe qualifica seu relato. Para além desse modo

enunciativo, o modo descritivo auxiliará na compreensão do processo de caracterização

do eu, uma vez que tem como componente o qualificar que, de acordo com o autor

(2012, p.116), significa manifestar o imaginário individual e/ou coletivo, isto é, fazer

uma construção subjetiva e/ou objetiva do mundo.

Para Charaudeau (2012, p.111), descrever “consiste em ver o mundo com um olhar

parado, que faz existir os seres ao nomeá-los, localizá-los e atribuir-lhes qualidades que

os singularizam”. Esses são, portanto, os três componentes da construção descritiva:

nomear, localizar-situar e qualificar; conforme visto no capítulo 1 desta dissertação.

O componente “qualificar” nos permitirá identificar a atividade desse sujeito em

designar qualidades a si e a outros, de forma que culminará na própria caracterização.

Para isso, considerando a recorrência e o gênero, ordenamos as qualificações a partir de

oito temas, a saber: autobiografia, vida, pessoas, educação, família, diversidade,

profissão e o próprio sujeito enunciador.

Tratemos, inicialmente, sobre as qualificações acerca da obra autobiográfica:

[E232] Como sou basicamente um profissional de comunicação, que aprende ouvindo e contando histórias, resolvi recorrer a parcerias com os propositores do projeto (p.10).

[E233] [Entrevista com Colombini] Foi o pontapé inicial desta aventura (p.10).

[E234] A partir dessa seleção e categorização [dos episódios da vida], pude construir essa síntese da minha saga de aprendizado. (p.10).

[E235] as ideias expostas a seguir fazem parte de contextos de vida (p.11).

[E236] Longe de mim desejar impor verdades absolutas (p.11)

Como podemos observar nos excertos acima, o sujeito enunciador caracteriza a obra,

inicialmente, enquanto projeto e aventura, o que nos permite inferir que se trata de um

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trabalho que o EUe tem que é a ordem do lúdico. Além do mais, ao descrever a

produção enquanto síntese e contexto, o sujeito enunciador produz um efeito de uma

obra fragmentada, que há mais do que é ali exposto. Finalmente, ao qualificar o tipo de

verdade que o EUe não deseja impor, subentende-se que, ainda assim, verdades são

ditas, ainda que sejam pessoais.

Para Ducrot (1987), a negação é um “fato da língua”. O linguista sustenta que um

enunciado declarativo negativo apresenta dois atos ilocutórios distintos, sendo o

primeiro uma asserção positiva e o segundo uma recusa. Por serem pontos de vistas

opostos, não há como pertencer ao mesmo autor. Assim, geralmente, o enunciado

negativo é atribuído ao locutor (EUe), e o positivo, por conseguinte, ao alocutário (TUi)

ou a um terceiro. A negação é, portanto, parte integrante da teoria polifônica de Ducrot

(1987). Anteriormente, o linguista distinguia dois tipos de negação:

(i) Polifônica ou polêmica: ponto de vistas opostos com choque de duas atitudes

antagônicas e rebaixamento de valores;

(ii) Descritiva: representa um estado de coisas.

Atualmente, além das já consideradas, Ducrot (1987) acrescenta mais uma

classificação às negações, sendo esta uma subdivisão da polêmica:

(iii) Metalinguística: anula pressupostos positivos e equaliza valores na refutação de

um enunciado oposto.

Quando o sujeito enunciador da obra por nós analisada nega que não deseja impor

verdades absolutas, ele está, de antemão, considerando que alguém possa fazer alguma

crítica quanto à forma pela qual as proposições são feitas. A negação por parte do EUe

é, portanto, uma marca de um ponto de vista rejeitado e que consiste em mostrar a

falsidade de uma proposição. Contudo, a qualificação feita pelo sujeito enunciador

relativizou essa negação: não se trata de verdades absolutas, mas, ainda assim, verdades.

A veracidade do conteúdo não é, pois, posta em prova, o que confere à obra um efeito

de transparência.

A seguir, abordamos as qualificações atribuídas à vida:

[E237] Entre longas conversas na agência e pizzas divididas, pudemos vasculhar um mar de episódios e separar aqueles mais carregados de simbolismo, aqueles que resumiam meus valores e princípios. A partir

dessa seleção e categorização, pude construir essa síntese da minha saga de aprendizado (p.10).

[E238] Se minha vida é uma referência de êxito, parte dele devo a Monteiro

Lobato [...] (p.21)

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[E239] A vida é muito curta para ser maçante (p.87).

[E240] Como um todo, a vida é fantástica, encantadora. Mas a verdade é que são raros os períodos realmente prazerosos, sem embaraços, mal-estar e constrangimentos (p.127).

A partir dos excertos acima, podemos observar que o EUe tem, no geral, uma visão

positiva da vida, especialmente da própria, visto que é uma referência de sucesso. O

sujeito enunciador usa a metáfora do mar para caracterizar os momentos da vida dele, o

que faz com que, em seu discurso, a sua vida tenha um efeito de vastidão e é o que lhe

concede a imagem de um sujeito experiente.

Apesar de qualificar a vida enquanto “fantástica”, o sujeito enunciador afirma que ela

contém muitos momentos ruins, o que nos leva às seguintes perguntas: Se os momentos

ruins são predominantes na vida de uma pessoa, por que na obra, que trata da vida desse

sujeito, eles são minoria? Por que o EUe faz essa inversão?

Como o título da obra é “O que a vida me ensinou”, esse tipo de postura assumida

pelo sujeito enunciador nos faz acreditar que ele aprendeu apenas com os bons

momentos ou que ele omite esses episódios para não demonstrar fraqueza e

vulnerabilidade. Assim, ele constrói uma imagem de uma pessoa forte e superior.

Em seguida, as passagens que traz as pessoas as quais o EUe referencia-se:

[E241] O primeiro [livro da coleção] trazia os saberes acumulados de Reinaldo Polito, o mago brasileiro da expressão verbal (p.9).

[E242] [...] devorei as 109 páginas de textos do professor e consultor Mario Sergio Cortella, um bambambã da Filosofia e das Ciências da Religião

(p.9).

[E243] A princípio, reuni-me com o próprio Colombini, jornalista tarimbado,

capaz de fazer as perguntas certas nas horas certas (p.10)

[E244] [...] o papel de 'provocador intelectual' foi assumido pelo jornalista Walter Falceta Jr., também experiente e, assim como eu, descendente de italianos e corinthianíssimo (p.10).

[E245] Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, entre outros cobras da reivenção simbólica, geraram saberes refinados para revolucionar a

literatura, o jornalismo e também a publicidade (p.26).

[E246] Naquela noite incrível [em que recebi o título de cidadão carioca], Ivo Meirelles, [...], levou um casal de mestre-sala e porta-bandeira para me homenagear. E recebi ainda o carinho do meu amigo Lulu Santos, que me

considera uma extensão de sua família. Bom à beça (p.53).

[E247] [...], destacava-se ali [no time de basquete do XV de Piracicaba] o grande Wlamir Marques, atleta que comandou excelentes formações do

selecionado brasileiro, [...]. (p.57).

[E248] Do outro lado, havia o extraordinário Emiliano Rodriguez, um atleta excepcional, um dos melhores do mundo na época, que deu muito trabalho

aos brasileiros (p.58).

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[E249] Os craques Sócrates, Wladimir e Casagrande, lideraram um

movimento de politização que extrapolou o Parque São Jorge, influenciando atletas em todo o Brasil (p.60)

[E250] Como atleta, como cidadão, como homem de marketing, como gerador de ideias, [Muhammed Ali] foi fenomenal. Tive a sorte de viver a

época de ídolos de verdade (p.62).

[E251] [Pelé, Mané Garrincha, Maradona, Wlamir Marques, Michael Jordan, Hortência, Fittipaldi, Piquet e Senna] Esses todos foram espetaculares professores. Com seus talentos e estratégias, [...] (p.62).

[E252] Costumo ler ensaios do Capote, que são coisas espetaculares

(p.113).

[E253] [...], é uma honra ter estado na cabeça inspirada de Jorge Ben Jor, e na letra de W/Brasil (Chama o Síndico). Legal demais ligar o rádio do carro e escutar: "Alô, alô, W/Brasil; Alô, alô, W/Brasil. É a maior coisa que pode

acontecer na vida de um sujeito. [...], o homenageado se vê cantado na boca das pessoas comuns. Comuns e tão especiais (p.115).

[E254] Tenho muitos super-heróis de estimação, como Boni e André Midani

(p.115).

[E255] Entre os caras que eu nunca conheci, mas sempre admirei, está o Marcelo Mastroianni. Um ator fantástico, uma pessoa maravilhosa (p.116).

[E256] Li tresloucadamente muita coisa acerca de James Joyce, de Ernest

Hemingway, de Gertrude Stein, essa turma que habitou Paris numa época espetacular (p.116).

[E257] O Ricardo Freire, que é ex-brilhante-publicitário e atual brilhante-turista-escritor, tinha como intenção publicar um livro com os meus bilhetes. Ele os considera ótimos, o que muito me orgulha (p.123).

Como podemos observar nos excertos acima, sujeito enunciador cita apenas pessoas

que, de alguma forma, são referências para ele, uma vez que as qualificações dadas a

elas são qualificações positivas. Além do mais, ao citar os nomes dos autores

precursores da coleção a qual a obra pertence e dos jornalistas que o auxiliaram na

escrita, (E241, 142, 143, 144), o EUe está, de forma indireta, qualificando a si mesmo,

pois se todas as pessoas que estão envolvidas na coleção são referências, ele, como parte

desse grupo de pessoas, também é. Portanto, ao elencar esses nomes, o sujeito

enunciador garante autoridade para produzir seu discurso, construindo, assim, um efeito

de credibilidade.

Ao citar a música a qual faz referência à sua empresa, o sujeito enunciador constrói a

imagem de alguém privilegiado, E253. Entretanto, simultaneamente, produz um efeito

de egocentrismo, pois caracteriza Jorge Bem Jor por inspirado apenas por ter escrito tal

música, esse sujeito enaltece aquele que, de alguma forma, o favorece. Além disso, as

qualificações dadas em E254 remetem ao universo infantil dos desenhos animados e

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traz a conotação da domesticação animal, o que reforça a imagem de um sujeito

egocêntrico e até imaturo, mimado.

A utilização dessas referências em seu discurso reforça o caráter argumentativo do

discurso voltado pra si, uma vez que se tratam de pessoas supervalorizadas pelo EUe e

que compartilham as mesmas práticas que esse sujeito, seja através do esporte, com

referências as quais ele admira; seja por meio da literatura, ao elencar autores aos quais

lera – o que cria a imagem de uma pessoa culta –; seja através da própria área de

atuação, demonstrando conhecer tudo o que envolve o trabalho – incluindo seus

precursores –; ou ainda, por meio das artes, citando artistas que fazem parte da cultura

popular.

Na sequência, abordaremos as caracterizações relacionadas à educação:

[E258] Eu confesso: nunca fui ótimo aluno, daqueles que ganham medalhas

e são os xodós das professoras (p.21).

[E259] Posso dizer que esse mergulho antecipado no mundo da leitura me rendeu bons frutos (p.22).

[E260] Posso ainda dizer que meus pais tiveram a generosidade de se esforçar para que eu tivesse acesso a um excelente padrão educacional, reservado aos meninos de um estrato econômico mais alto. Essa decisão,

por si só, constituiu uma lição de valor inestimável (p.43).

[E261] Com uma educação melhor, teremos consumidores mais preparados e críticos, também capazes de compreender a mensagem

publicitária e separar o joio do trigo (p.101).

[E262] Muitas vezes a professora é chata pra cacete, embora finja de simpática. [...]. Mas isso [andar de bicicleta e jogar videogame] somente depois de fazer a abominável lição de casa (p.127).

[E263] Não sei se a culpa é dos programas de estudo ou dos professores, mas me parece desativada uma ferramenta utilíssima para fazer essa leitura diferenciada dos textos e objetos: a Semiótica (p.137).

[E264] Na verdade, os textos de semiótica são complicados, densos e até mesmo chatos (p.137).

[E265] Na verdade, os conteúdos didáticos costumam ser bastante inadequados, já desde o ensino fundamental. Eu mesmo, na área de ciências exatas, sempre tive desempenho constrangedor (p.138).

[E266] A construção do saber hermético, gerador de autoridade nas academias, afastou muita gente da busca pelo verdadeiro conhecimento. No mundo atual, não há lugar para pedantismos de doutores vetustos e rabugentos (p.138).

[E267] Hoje, estudo livremente (p.138).

[E268] No Brasil, sempre me incomodei com as idiossincrasias de certa classe de gênios super diplomados (p.138).

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[E269] [...] não importa o lugar, há sempre um chato que se julga detentor da exclusividade de algum saber, mesmo que seja um falso saber,

desconectado da realidade (p.139).

[E270] No caso da educação, muita coisa se resolveria com talento criativo e leveza (p.140).

[E271] Um bom sistema de educação seria capaz de assumir essa missão [de elevar a inteligência], de qualificar as pessoas para o desafio da construção do conhecimento. [...]. Uma formação adequada, resolveria os

problemas de muitas empresas (p.140).

A partir desses excertos, o sujeito enunciador constrói a imagem de mau aluno do

ensino formal, mas que teve êxito na aprendizagem informal. Apesar de afirmar possuir

um bom nível educacional, esse sujeito levanta várias críticas negativas ao sistema de

ensino. Há a valorização do ensino privado e uma militância em prol de uma educação

com mais qualidade.

Além do mais, o EUe critica exatamente aquilo que, de alguma forma, tirou sua

supremacia. Mais uma vez, o que lhe é negativo – no caso, o baixo rendimento escolar –

é justificado pelo problema existente no outro; ele não atribui a si a responsabilidade

pelas coisas negativas. Assim apesar de demonstrar certa aversão ao ensino formal, esse

sujeito, cria um efeito de isenção.

Por outro lado, observamos também, que ao tratar da educação, o EUe utiliza

palavras mais formais do que aquelas que ele vem utilizando ao longo da obra. Podemos

observar essa divergência nos excertos 262 e 268 . Acreditamos que o coloquialismo do

EUe seja uma tentativa de aproximação com o TUd, conforme visto na análise do modo

enunciativo; o uso de um vocabulário mais elaborado, por outro lado, além de criar um

distanciamento maior, legitima sua fala ao garantir o status de detentor de um saber.

Ulteriormente, segue as qualificações relacionadas à família. De forma geral, ao se

referir à família, o EUe sustenta a ideia de hereditariedade e a utiliza como critério

determinante para certos comportamentos . Ele descreve a família sempre de maneira

enaltecedora e afirma que muitas dessas características foram, de fato, herdadas, como:

a paixão pelo time, a honestidade, a gentileza e o respeita à clientela, a busca pela

credibilidade. Trata-se, pois, da valorização da família. Como podemos observar nos

excertos que seguem:

[E272] [Meu avô] Era um sujeito criativo, mas da criatividade física, concreta. Tinha o prazer da invenção (p.40).

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[E273] Por conta dele [meu avô], também fiquei apaixonado pelo basquete, impressionado com as vitórias do XV de Piracicaba (p.40).

[E274] Meu pai, [...], foi outra forte referência em minha formação. Era um ótimo vendedor, representante da fábrica de pincéis Tigre (p.41).

[E275] Nesse labor [de vendedor], ele [meu pai] apresentava uma característica muito forte que acabei transportando para minha profissão: a busca pela credibilidade (p.42).

O dinheiro também é um assunto abordado pelo sujeito enunciador. No excerto 272,

a pobreza do avô é algo que causa estranheza. Ainda assim, ele aponta um ponto

positivo na origem desse avô: vindo de um lugar bonito, elegante e frequentado por

milionários – mais uma vez o dinheiro é colocado em voga. A tia também é uma figura

que aparece tendo grande destaque nesse aspecto. Com ela, o EUe teve tudo que os pais

não puderam lhe proporcionar, como: frequentar lugares “badalados”, restaurantes

tradicionais. Com isso, esse sujeito produz um efeito de ostentação e constrói a imagem

de uma pessoa gananciosa e interesseira. É possível que essa não fosse a imagem que

ele esperava construir de si, pois se tratam de característica negativa; talvez efeito

esperado fosse o de sofisticação.

[E276] Esse [bisavô Paulo] era pobre, coisa até estranha e rara em sua cidade natal. Portofino é uma comuna Gênova, bonita e elegante, habitada e

frequentada por milionários (p.39).

[E277] No campo da família, tive ainda outro privilégio, que foi contar com o

desvelo e atenção da tia Lígia Olivetto Melloni, irmã do meu pai. Ela tinha um padrão de econômico mais alto que o do resto da família. Era diretora de um serviço de saúde importante em São Paulo. Embora muito bem casada,

não tivera filhos - o que a fazia alucinada pelo sobrinho (p.43).

[E278] Com ela, comecei a conhecer alguns dos lugares mais badalados da cidade. Frequentávamos restaurantes tradicionais [...] (p.44).

[E279] Minha tia me ensinou a valorizar o que é benfeito, o que é bonito, o que é requintado, oferecendo subsídios para que eu pudesse definir meus

padrões estéticos nas mais variadas áreas. Descobri que as coisas elegantes nem sempre estavam associadas a riqueza e dinheiro (p.44).

[E280] Logicamente , havia gente bem chique, mas não era isso que me fascinava. Era o atendimento exemplar, os quitutes delicados e saborosos, era a orquestrinha de cordas e piano discreto e inspirado (p.44).

A simplicidade e a pobreza dos outros membros da família são sempre compensadas

pela excelência e zelo dos serviços prestados, ainda que esse serviço seja o trabalho

doméstico e o cuidado com os filhos, como é o caso da avó e da mãe. Há, a partir das

passagens relacionadas à família, a construção do perfil de um sujeito privilegiado, bem

educado e sofisticado. Todas características transmitidas através do ambiente familiar.

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[E281] Lucia [...] era uma espetacular cozinheira (p.40).

[E282] Os almoços de domingo costumavam ser lá [na casa da avó]. Massas, aves, carnes, saladas e sobremesas: tudo excelente (p.40).

[E283] Talentosa, Lucia sabia misturar ingredientes simples para produzir sabores mágicos (p.41).

[E284] A confecção dessas obras-primas dependia também do tempo certo

no forno ou na frigideira, da combinação de cada elemento (p.41).

[E285] Aos poucos percebi que as melhores receitas eram relativamente simples, mas que o prêmio ao paladar resultava de um conhecimento técnico desenvolvido no curso de muitas gerações (p.41).

[E286] Minha mãe, uma dona de casa prestimosa, construiu a minha concepção do amor. Era protetora e muito orgulhosa dos filhos (p.42).

[E287] Resumindo: mães devotadas ainda são fornecedoras de boa gente

para o mundo (p.42).

[E288] [...], minha mãe era bem jovem quando eu cheguei, mas dedicou-se de maneira criteriosa e madura à minha educação (p.42).

A herança, de bens ou de atributos, está sempre atrelada ao passado. Portanto, é o

passado que o sujeito retoma para construir a imagem do que ele é hoje. Como podemos

observar nos seguintes excertos:

[E289] No caso dos italianos imigrantes e descendentes, a família era um núcleo de diversões, exercícios artísticos, trocas de informação e compartilhamento de prazeres gastronômicos (p.39).

[E290] Um dia, preocupado com as barbeiragens dos alunos, [meu avô]

começou a pensar num dispositivo de intervenção imediata do instrutor (p.40).

[E291] Com eles [meus avós], obtive duas lições. Primeiro, descobri o que era ganhar a vida honestamente. Trabalhavam muito e atendiam com gentileza e respeito a clientela. Com eles, aprendi também a ter prazer em

comer (p.40).

[E292] [Meu pai] Optou por ser um advogado mediano, em vez de manter-se como vendedor excepcional (p.42).

[E293] Posso ainda dizer que meus pais tiveram a generosidade de se esforçar para que eu tivesse acesso a um excelente padrão educacional, reservado aos meninos de um estrato econômico mais alto. Essa decisão, por si só, constituiu uma lição de valor inestimável (p.43).

[E294] [...] a paternidade é algo sagrado. Meu pai foi legal comigo e sua dedicação foi uma esplêndida lição de vida (p.142.)

[E295] Olha só como meus pais fizeram o serviço benfeito (p.143)

Quanto à sua atual família, constituída por sua esposa e filhos, o espaço destinado a

eles na obra é mínimo. Há apenas dois momentos em que eles aparecem: no início,

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quando o EUe faz a dedicatória à esposa31

, e no final, quando ele menciona que esposa e

filhos estão viajando e ele precisa pensar em uma forma de recebê-los.

[E296] Pensar nisso [receber a família] é bom. Como também é imaginar um jeito especial de recebê-los. [...]. Tudo isso é refrescante. Esse reencontro vai gerar um momento fabuloso. Mas é certo que preciso estar preparado mental e espiritualmente para vivê-lo intensamente (p.132).

Acreditamos que tal proporção pode estar ligada ao fato de que, talvez, o EUe

considere ter aprendido muito mais com a família do passado, do que com a atual

família, pois fazer esse resgate de virtudes contribui para construção das próprias

qualidades, uma vez que se trata de características herdadas, o que, consequentemente,

será transmitido para a atual família.

Embora o sujeito enunciador demonstre cuidado e preocupação para receber a atual

família que está chegando de viagem, o fato deles terem viajado de férias sem ele e o

fato de serem mencionados apenas uma vez e, ainda assim, no final da obra contribuem

para criar um efeito de distanciamento familiar, visto que servem apenas como segundo

plano na obra. Logo, a importância da família na vida desse sujeito está relacionada

apenas com o que eles podem lhe proporcionar: virtudes ou bens materiais.

Dando sequência nos quadros divididos por tema, temos, a seguir, os excertos com

assuntos variados:

[E297] Naquela época [do golpe militar], promoveram-se bandalheiras deliciosas (p.29).

[E298] De certo modo, até mesmo a abominável censura ajudou indiretamente a refinar o pensamento (p.29).

[E299] Nesses casos [de poliomielite bulbar e paralisia do diafragma], [crianças] eram mantidas vivas por medonhas máquinas de pressão cíclica. Eram os chamados 'pulmões de ferro', mais assustadores do que a própria

morte (p.36).

[E300] Era uma profilaxia considerada precária. A boa vacina, desenvolvida pelo Dr. Albert Sabin, essa da 'gotinha' simpática, somente seria lançada no

mercado na virada de 1961 para 1962 (p.36).

[E301] Depois, compreendi que se tratava de justa precaução (p.36).

[E302] E como prêmio pelo sacrifício, uma estrutura muscular à prova de

estiramentos e distensões, além de uma quantidade verdadeiramente absurda de cálcio no corpo (p.37).

[E303] Para viver bem ali [Bairro Belém, zona leste de São Paula], era

preciso saber trocar ideias, compreender até mesmo o que significava o silêncio numa conversa (p.46).

[E304] No Largo São José do Belém, eu vi e ouvia as mulheres devotas. [...].

O lugar [a Praça Silvio Romero, no Tatuapé] já ia se convertendo em área de paquera para juventude mais transada da Zona Leste (p.46).

31

Conforme visto quando tratamos dos paratextos, p.60.

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[E305] Ali [no bairro da Aclimação], o mais interessante foi ver de perto o

processo de urbanização e verticalização da cidade (p.47).

[E306] [...], ainda se encontra boa conversa nas padarias do bairro, que segue como lugar tranquilo e charmoso. Considero que foi um excelente

laboratório para aprender a dinâmica da metamorfose das grandes cidades (p.48).

[E307] Há muitos anos, por exemplo, detectei que o SoHo seria o grande barato de Nova York (p.48).

[E308] Há 15 anos, eu também já sabia que o Soho ia deixar de ser o grande barato (p.49).

[E309] [O SoHo] Continua um lugar interessante. Mas deixou de ser o grande barato (p.49).

[E310] Logicamente, essa interpretação passa por um olhar calibrado sobre

a relação entre o espaço e as manifestações nos campos da moda, da música, das artes plásticas, do esporte e da política. E esse não pode jamais ser um olhar estático (p.50).

[E311] O lugar [San Sebastián] é belíssimo [...]. (p.50).

[E312] [San Sebastián] É uma cidade que vai se depurando, que se mantém saudavelmente inquieta. Por isso, sempre atraiu gente interessante (p.50).

[E313] Em 1999, inaugurou-se o palácio Kursaal, que é bonito, espaçoso e inovador (p.51).

[E314] O legal de San Sabastián é que tudo está em movimento. Há sempre alguém propondo algo novo (p.51).

[E315] San Sebastián tem gente de todo lugar, o que é bom demais. Gera intercâmbio, trocas de saberes. A comida é excelente. E as garçonetes são 'modernérrimas' (p.51)

[E316] Nesse particular [da interação das raças], aqui nos 'tristes trópicos'

estamos na frente (p.51).

[E317] Eu conheço o mundo direitinho. E alguns lugares eu conheço muito direitinho (p.53).

[E318] Naquela noite incrível [em que recebi o título de cidadão carioca], Ivo

Meirelles, [...], levou um casal de mestre-sala e porta-bandeira para me homenagear. E recebi ainda o carinho do meu amigo Lulu Santos, que me considera uma extensão de sua família. Bom à beça (p.53).

[E319] É por meio dela [da língua] que posso expor minhas melhores ideias.

Ela é o fio que me liga à cabeça e à alma das pessoas, sempre da maneira mais honesta possível (p.54).

[E320] O maior elogio que recebi na vida, e olha que a vida tem sido generosa comigo, nesse departamento, foi uma frase pronunciada em Nova

York: 'Washington tem um dedo no pulso do Brasil'. É uma avaliação que me orgulha tremendamente (p.54).

[E321] Digo sem reservas que é muito bom viver no Brasil (p.54).

[E322] Há algo de extraordinário no Brasil no que se refere a ensinamentos. Tivemos desde sempre essa necessidade de aprender as coisas, as nossas e as dos outros.[...]. Lá nos países considerados desenvolvidos, muitas

vezes eles conhecem apenas a geografia da nação em que vivem. Conosco a coisa sempre foi diferente. [...] foi uma dificuldade que virou vantagem

(p.55).

[E323] Em 1964, assisti ao maior jogo de basquete já disputado no país

(p.57).

[E324] Estava tudo uma beleza, até que numa partida no Colégio São Luís

eu estourei o menisco. [...] Resolvi então entrar na faca, para poder voltar a jogar. Mas naquela época era uma cirurgia primária. Eles simplesmente

tiravam o menisco (p.58).

[E325] Ele [meu joelho] é uma espécie de meteorologista silencioso. Quando

o tempo vai mudar, ele emite o sinal (p.58).

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[E326] Por causa da operação, parei [de jogar basquete] por um puta tempo

(p.58)

[E327] Dessa aventura [de jogar basquete], ficou a convicção de que toda criança deveria viver uma experiência no esporte. Ele ajuda a formar o bom caráter e desperta a necessidade de estratégia, dedicação e o jogo de cintura na superação de qualquer desafio (p.59).

[E328] Nesse período esplendoroso [entre 1981 e 1984, em que vigorou a

chamada 'democracia corinthiana'] tudo era discutido e votado pelo coletivo [...] (p.60).

[E329] Eu lidava diretamente com o marketing, procurando potencializar a mensagem revolucionária do grupo (p.60).

[E330] Utilizamos vários outros temas de campanha, sempre politizantes,

como 'Democracia já', 'Quero votar para presidente', [...], frase exposta numa faixa que os jogadores exibiam orgulhosamente no campo de jogo (p.60).

[E331] A memória seletiva pode nos dar a impressão de que tudo feito no passado era perfeito, de que naquela época remota só havia felicidade e satisfação. E não é verdade (p.68). [E332] Todas as pessoas são sensíveis (p.75).

[E333] Agora, aquela coisa que ocorreu comigo nunca virou tema de sonho. Deletei. É um assunto que eu cortei deliberadamente (p.95).

[E334] [...], fui modelando conceitos atrelados a algumas palavras importantes em meu aprendizado de vida (p.106).

[E335] [Amor] esse é um conceito amplo pra cacete (p.107)

[E336] Nada contra os grandes e eternos amores, mas amorzinhos também são muito bons, valiosos, joias ricas (p.108).

[E337] [Lealdade] Esse é um conceito importantíssimo para mim, sagrado

em todos os aspectos [...] (p.108).

[E338] [Traição] Essa é inaceitável. Para pessoas que têm autoestima alta, como eu, a traição parece ainda maior. Como me julgo ético, honesto, generoso, acho sempre que a traição jamais vai acontecer (p.109).

[E339] [Amizade] é fundamental, gera conexões de qualidade, [...] (p.109).

[E340] [Sabedoria] Pra mim, é a somatória-mistura do aprendizado com a experiência (p.111).

[E341] O desprezo leva ao não conhecimento, à ignorância voluntária. E isso é tão ruim quanto o produto cultural eventualmente desprezado (p.114).

[E342] No fundo, todos nos considerávamos de esquerda, mas tinha uma esquerda mais careta e conservadora, e havia outra que era 'desbundada', não no sentido da alienação, mas da admiração por uma estética nova e libertária. Estive sempre alinhado com essa segunda ala (p.115).

[E343] [...], é uma honra ter estado na cabeça inspirada de Jorge Bem Jor, e na letra de W/Brasil (Chama o Síndico). Legal demais ligar o rádio do carro e escutar: "Alô, alô, W/Brasil; Alô, alô, W/Brasil. É a maior coisa que pode

acontecer na vida de um sujeito. [...], o homenageado se vê cantado na boca das pessoas comuns. Comuns e tão especiais (p.115).

[E344] Li tresloucadamente muita coisa acerca de James Joyce, de Ernest

Hemingway, de Gertrude Stein, essa turma que habitou Paris numa época espetacular (p.116).

[E345] [...], muitas opiniões são criadas a partir de inferências equivocadas. Isso é ruim porque gera desencontro e preconceito (p.120).

[E346] No campo das rixas, há um monte de associações ridículas.[...]. E são hábitos que estão em todos os lugares, até nos tidos como mais chiques e requintados (p.120).

[E347] [...] a melhor maneira de lidar com a inveja destrutiva é não lutar

contra (p.121)

[E348] [...], admito que é mais delicado escrever um bilhete à mão. Fica mais sincero, mais verdadeiro (p.124).

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[E349] [Os presentes personalizados] dá uma certa mão de obra, mas a vida me ensinou que o efeito é fantástico. [...]. Repito que é trabalhoso, mas é uma arte rara, um exercício criativo, uma atividade gostosa (p.124).

[E350] A verdade é que os períodos de verdadeiro prazer e diversão são muito efêmeros (p.130)

[E351] Há quem consiga prolongar esses momentos venturosos, mas nem

sempre isso é possível ou conveniente. [...]. Essas pessoas, frequentemente, se transformam em eternos filhos de papai ou em veteranos irresponsáveis e dependentes (p.130).

[E352] A vida me ensinou, portanto, que o negócio é mesmo curtir os curtos bons momentos, e tentar multiplicá-los, sempre (p.131).

[E353] Não vou contar quem são, mas tenho amigos na MPB, gênios talentosos, que botam espiões em seus shows (p.131).

[E354] Compreender a arte dos sinais tem sido vital para perceber que um

mesmo trabalho artístico pode trazer inúmeras mensagens embutidas. Também oferece um arsenal de conhecimentos que permitem interpretar e

refazer as relações entre forma e conteúdo (p.137).

[E355] As grandes individualidades surgem dessa descoberta e da inserção

no meio em que essas habilidades podem ser devidamente aproveitadas (p.141).

Em geral, o EUe demonstra apreço por tudo que é belo e sempre tem uma visão

positiva das coisas e expressa isso, com frequência, de forma intensa através de

advérbios e superlativos, como podemos observar nos excertos 305, 320, 321, 323, 338,

341 e 347. Além das formas de intensidade convencionais, o sujeito enunciador também

utiliza palavras que são popularmente consideradas vulgares para desempenhar tal

função, como nos excertos 326 e 335. O uso desses termos, além de criar um efeito de

intensidade, contribui para informalidade do discurso.

Embora afirme que os melhores momentos sejam “efêmeros”, E350, o sujeito

enunciador apresenta, basicamente, apenas os bons momentos que ocorreram com ele.

Os considerados ruins, além da menor recorrência, são sempre justificados e impostos a

ele, o que vai de encontro com a proposição desse excerto citado. Isso mostra que o EUe

busca construir sua imagem apenas em torno do que é bom e justifica isso afirmando ser

uma questão da memória, E331, que prioriza a felicidade.

As poucas atribuições negativas existentes estão relacionadas ao que comumente é

considerado ruim, como a censura, doenças, sequestro, traição, desprezo. Dessa forma,

o EUe se protege de emitir qualquer juízo de valor que possa, de alguma forma, afetar o

TUi. Além disso, ao se referir à “suposta” doença que teve na infância, esse sujeito

supervaloriza o sofrimento e confere à narração um efeito dramático, E299, 300, 302.

As situações consideradas ruins mais uma vez aparecem impostas a ele, o que

proporciona ao discurso um efeito de vitimização.

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Tradicionalmente, utilizamos o diminutivo para indicar uma diminuição de tamanho.

Porém, dependendo do contexto em que ele é utilizado, pode assumir outros efeitos de

sentido e significações, como é o caso do excerto 317. Aqui, o sujeito enunciador, ao

fazer o uso do diminutivo, reforça um sentido – a forma minuciosa a qual conhece o

mundo – além de construir a imagem de uma pessoa viajada.

O EUe, ainda, no E320, relata o que, segundo ele, foi o maior elogio recebido. Esse

sujeito não conta quem fez tal apreciação, mas onde ela foi feita. Portanto, o lugar ao

qual foi dito aparece como mais importante do que quem disse. Assim, ser elogiado em

Nova York garante ao sujeito enunciador um estatuto de grandeza, de importância, uma

vez que se trata de um cenário internacional altamente valorizado.

O esporte também aparece como provedor de virtudes. O EUe lista as características

que a prática de atividades fornecem ao indivíduo, E327. Ao afirmar que ele já praticou

esporte, no caso o basquete, volta pra si todas as qualidades proporcionadas por essa

atividade. Portanto, ele, de forma indireta, declara ter bom caráter, ser estrategista,

dedicado, além de ter “jogo de cintura”.

Além dessas imagens, o EUe constrói, também, nos demais excertos, o perfil de uma

pessoa que gosta de “bandalheiras”, de bom comunicador, de sujeito politizado e

requintado. Ele ainda, ao se denominar homenageado e caracterizar as pessoas por

“comuns”, coloca-se em uma posição de superioridade.

Ao caracterizar o trabalho, publicidade, e o profissional ao qual exerce esse ofício, o

publicitário, o sujeito enunciador caracteriza a si mesmo. A profissão é o tema mais

recorrente na obra. O EUe narra episódios de sua vida que estão, de alguma forma,

ligados ao trabalho. São as condições que propiciaram que ele chegasse a ser o que é

hoje – profissionalmente.

Como um todo, o sujeito enunciador constrói uma imagem positiva quanto à

experiência profissional. Ele ainda cria, além do efeito de saber, uma imagem de

exemplaridade, pois se coloca como exemplo e detentor de um saber, que pode fazer

com que seja visto como um mestre que aconselha e ensina o que sabe.

Quanto às próprias experiências na profissão, o EUe afirma que foram assertivas

desde o início, E357, 360, 361, 362. Além do mais, o dinheiro aparece sempre como

elemento motivador, E356, 358, 359, 362, 364, 365, 366. Primeiramente, o sujeito

enunciador mostra que essas experiências foram compensadoras devido ao ganho

financeiro, E358, 359; depois afirma que teve dificuldade em deixar o salário, E364,

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que era garantido, para tornar-se dono da própria agência, algo, segundo ele, arriscado;

por fim, além do lucro, esse sujeito afirma buscar prestígio, credibilidade, confiança e

longevidade; não queria “simplesmente” o sucesso, E363. Essa postura do EUe aponta

para um sujeito ambicioso, capitalista e, até, ganancioso. Como podemos observar nos

excertos a seguir:

[E356] Portanto, a ideia de independência era muito sedutora (p.13).

[E357] A experiência do trabalho foi generosa comigo (p.14).

[E358] [...] porque [meu pai] julgou o salário absurdamente alto (p.14).

[E359] Por vezes, é uma profissão que tem curta durabilidade. Mas compensa porque se muda de faixa salarial muito rapidamente (p.14).

[E360] Elas [primeiras experiências] foram positivas (p.15).

[E361] Na fase inicial da carreira, o grau de acerto era muito alto (p.15).

[E362] Naqueles primeiros tempos, não houve grande êxito financeiro, mas os anúncios de qualidade renderam prêmios e a valorização dos publicitários

(p.25).

[E363] A busca era por credibilidade, confiança e longevidade. Eu não buscava simplesmente o sucesso (p.70).

[E364] Largar um salário bom não foi fácil (p.72).

[E365] E precisa ter um bom emprego, daqueles que garantam bom salário e algum prestígio (p.128).

[E366] E não cogite apenas experimentar atividades que possam lhe render dinheiro (p.142).

O sujeito enunciador, ao elogiar a DPZ – agência em que trabalhou antes de abrir o

próprio negócio –, aparenta demonstrar gratidão. O que gera um efeito de

reconhecimento por parte desse sujeito. Afirmar que trabalhara em um bom lugar,

mostra que sempre teve boas condições de trabalho. Entretanto, posteriormente, ao

declarar que saiu dessa agência porque queria inovar e, por isso, criou a própria agência,

o EUe, sutilmente, desqualifica essa empresa que trabalhara em detrimento da própria.

Assim, esse sujeito, ao tentar construir uma imagem de inovador e empreendedor, se

mostra também antiético. O mesmo ocorre quando ele classifica as propagandas dos

concorrentes de “convencionais”; ele desmerece o outro para construir sua imagem de

inovador.

[E367] Na época, o público-alvo [...] estava cansado das propagandas convencionais [...] (p.30).

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[E368] [A DPZ] Propiciava-me boas condições de trabalho. Era uma agência muito digna, correta, respeitável e ética (p.71).

[E369] Eu imaginava outro modelo para os negócios e ele não podia ser implementado ali, onde tudo já estava definido e cristalizado (p.71).

Há, ainda, a idealização do passado produtivo do sujeito enunciador. Ele descreve os

próprios comerciais com exaltação. É como se esse sujeito estivesse vendendo ao leitor

os trabalhos que o consagraram, como do Primeiro Sutiã e o do Garoto Bombril. Ele

cria um efeito comercial nessa descrição. Talvez se o TUi comprar essa ideia de que o

comercial seja realmente bom, ele compre também a imagem do profissional de

sucesso, empreendedor, confiável e detentor de um saber que o EUe vem tentando

construir. Como podemos observar nos excertos que seguem:

[E370] A premiadíssima propaganda [O primeiro sutiã], [...], mostra um modelo diferenciado de abordagem, sutil, em que a percepção da mudança gera uma resposta rápida e generosa na família (p.30).

[E371] O momento mágico é celebrado com um presente simples e necessário. O sutiã apresenta-se como um elemento simbólico relevante

no momento em que a garota se torna mulher (p.30).

[E372] O garoto Bombril nasceu em 1978, em uma parceria criativa com

Francisco Petit, na DPZ (p.30).

[E373] A proposta foi introduzir um personagem humano, simpático, educado, um pouco constrangido por estar na TV, capaz de gerar empatia e passar a mensagem sem aborrecer as telespectadoras (p.30).

[E374] A propaganda [do garoto Bombril] fez um sucesso estrondoso e se

repetiu muitas vezes, com narrativas diferentes (p.31).

[E375] Afinal, Carlos Moreno deixou de ser jovem, mas suas aparições continuam encantando, inclusive a garotada (p.31).

[E376] [O Garoto Bombril] Precisa manter-se tímido e respeitoso. Nos anos 1970, a mulher ainda era tratada no Brasil de forma muito desrespeitosa e grosseira. Então, a fragilidade educada dele era muito encantadora para o público feminino. Cada mulher tinha a impressão de ser a interlocutora única e direta do personagem (p.94).

Quando se refere às premiações recebidas, o sujeito enunciador afirma que esses

prêmios resistiram olimpicamente às mudanças, E377. Essa adjetivação remete ao

universo esportivo e tem relação direta com o tempo. Além disso, o EUe ainda trata dos

prêmios e honrarias como coisas corriqueiras, que ele não se surpreende mais, E378.

Aqui, a possível tentativa de autovalorização cria um efeito de banalização.

[E377] As centenas de peças encheram a minha prateleira de prêmios e resistiram olimpicamente a mudanças nos padrões de comportamento, a

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choques econômicos, a alterações na estrutura familiar, a metamorfoses no universo da cultura e a construção de novos arquétipos comunicantes (p.31).

[E378] Às vezes, os elogios e prêmios que recebemos se tornam corriqueiros, mas ainda são fantásticos porque comovem as pessoas que gostam de nós, aquelas que fazem a vida valer a pena (p.43).

Em algumas passagens, o sujeito enunciador qualifica grupos de pessoas que está

inserido. Assim, por meio de silogismos, conseguimos depreender a imagem construída

de si através da imagem feita do outro. Como quando o EUe conta ter concorrido, em

2004, com outros 33 diretores de criação ao título de me melhor chefe para se trabalhar;

nesse momento, o EUe os classifica por “feras”, E379. Os diretores de criação que

concorriam à votação eram feras, ele também era diretor de criação e concorria, ele

também era “fera”. É importante notar que, além de se colocar como “fera”, ele, ainda,

constrói a imagem do melhor entre os melhores, pois ganhou o título. Outro dado

significativo é a data da premiação recebida; dessa data até o ano da publicação da obra,

passaram-se sete anos, um tempo considerável para esse tipo de premiação que costuma

ser anual. O passado de glória é usado para justificar a posição atual, ainda que seja um

passado mais distante. O fato sobrepõe-se ao tempo.

[E379] No campo profissional, me orgulho de ser reconhecido como um

cara com quem é bom trabalhar. Em 2004, numa votação promovida pelo

Portal da Propaganda, fui eleito o melhor chefe para se trabalhar,

concorrendo com outros 33 diretores de criação, todos feras (p.65).

Outras passagens que nos permite fazer esse tipo de construção através de silogismo

é a que o EUe descreve o Festival de Cannes, nesse momento, ele afirma que os

“maiorais” da área publicidade disputam o prêmio, E380. Ele já disputou o prêmio

muitas vezes e ganhou, ele é o “maioral”. Além do mais, ele afirma que o grande

publicitário é complexo, ele enquanto grande publicitário é complexo, E381.

[E380] O Festival de Publicidade [de Cannes], criado em 1953, tornou-se o mais importante evento do segmento no mundo. Quem é da área sabe a emoção de receber um 'leão' na disputa com os maiorais da área. Importante ali também é acompanhar a revolução permanente dos símbolos

e dos modelos de comunicação (p.51).

[381] Esse profissional, o grande publicitário, é complexo (p.89).

Ao construir essa imagem de melhor profissional da área, o sujeito enunciador

assume o papel de autoridade e institui o que é bom e o que é ruim na publicidade, o

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que se deve e o que não se deve fazer, além de firmar o que é necessário para ser bem

sucedido. Como podemos observar nos excertos a seguir:

[E382] E o trabalho sempre teve essa característica pra mim: ou ele é totalmente adorável ou é absolutamente insuportável (p.15).

[E383] É muito bom para o ego quando uma campanha é benfeita, quando

tem qualidade, quando o público discute a mensagem na rua (p.15).

[E384] Quando você faz [um trabalho] malfeito é muito frustrante. E tem um detalhe: médio também é malfeito (p.15).

[E385] O sucesso sempre depende de disciplina, dedicação e algum talento (p.25).

[E386] [...] por causa do profissionalismo, o trabalho vai ser bem executado

(p.34).

[E387] Fazer sucesso por dois, três ou cinco anos não é tão difícil. O complicado é manter-se no topo por décadas (p.71).

[E388] Para dar certo na área, é preciso exercitar essa visão dialética, exercendo as responsabilidades de maneira integral, sempre com senso crítico (p.72).

[E389] Os bons lances do empreendedorismo estão sempre atrelados ao bom-senso e à busca de complementaridades (p.73).

[E390] O bom profissional precisa ser uma antena giratória, captando sinais

de todas as áreas, o tempo todo (p.75).

[E391] O pior da publicidade é quando ela desrespeita a inteligência das

pessoas, não importa o nível de desenvolvimento intelectual, econômico e financeiro (p.75).

[E392] A gente se utiliza de metáforas muito mais óbvias, mais temporais, mais facilmente inteligíveis (p.77).

[E393] No entanto, os publicitários se utilizam de raciocínios instantaneamente muito mais surpreendentes (p.77).

[E394] A boa piada tem uma excelente arquitetura de ideias. É uma pequena história com um final surpreendente. Muitos bons anúncios

guardam essas mesmas características (p.77).

[E395] A boa campanha não é somente engraçada. Ela é original e também pertinente. Quando guarda essas características de qualidade, torna-se relevante, importante e desejável, transferindo esses atributos ao produto

ou serviço a que está associada (p.78).

[E396] No caso da publicidade, a gestão do tempo também é fundamental

(p.79).

[E397] A publicidade também precisa ser honesta e séria (p.85).

[E398] Por vezes, uma peça publicitária parece perfeita, mas é monótona, enfadonha e gera só aborrecimento. [...]. Então, se é chata, não dá (p.87).

[E399] Tem o 'correto' que, na verdade, é moralista. E, pior, hipócrita, do carinha que pretende ser sério, sem ser (p.87).

[E400] Pessoalmente, considero essas ações de higienismo moral uma verdadeira loucura, uma insanidade (p.88).

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[E401] Essa postura 'redomista' tem origem na falta de cultura geral, na formação mediana pra cacete de alguns pseudo-educadores e no radicalismo demagogo que costuma render votos (p.88).

[E402] Conheço gente ótima, excelente, talentosíssima, com ideias maravilhosas, mas que não tem disciplina, não respeita regras, prazos e limites. Muitos dos talentosos acham que por conta de suas qualidades

estão dispensados de seguir disciplina (p.89).

[E403] E, considerando o que se faz hoje, a necessidade de talento na publicidade não é tão grande (p.89).

[E404] Para triunfar nesse campo [da publicidade], é preciso, sim, ser inteligente e cultivar a sensibilidade. Também ajuda ter uma boa formação. E é fundamental estar antenado (p.90).

[E405] O bom publicitário precisa determinar a linguagem do produto, assim

como precisa conhecer a linguagem do público-alvo (p.90).

[E406] Mas tem o ato final desse espetáculo, que é a criação da puta ideia

(p.91).

[E407] [...], a puta ideia não depende de genialidade ou magia. Ela depende de conhecimento profundo do produto, do mercado e das ferramentas de

comunicação (p.92).

[E408] Os produtos industriais geraram tremenda similaridade entre os produtos. Por isso, a persuasão vai precisar lidar com elementos sutis da

psicologia do consumidor (p.92).

[E409] [...] [a publicidade] deve oferecer valores intangíveis, normalmente

associados ao entretenimento e à difusão da cultura (p.93).

[E410] O bom publicitário, ao construir um personagem, precisa lhe dar uma

biografia, com passado, presente e futuro. E ela precisa ser administrada cuidadosamente, mesmo que isso seja complicado (p.94).

[E411] Por fim, digo que o publicitário precisa entender que pode ser considerado um gênio pela manhã e um besta à tarde (p.96).

[E412] Promovemos um produto ou serviço que seja bom de verdade, [...]

(p.101).

[E413] Fazer benfeito não é só questão de caráter, mas também de sempre estimular o melhor negócio (p.102).

[E414] A boa propaganda faz as coisas funcionarem melhor, e mais rapidamente (p.102).

[E415] Para garantir a reputação, preciso sempre oferecer um serviço com grau de excelência. Ao mesmo tempo, no entanto, me predisponho sempre, obsessivamente, a fazer o novo de novo, [...] (p.131).

Ao elencar as características de uma boa campanha, cria-se o efeito de que as que

foram produzidas por ele carregam tais atributos; como quando ele afirma que para ter

sucesso é necessário disciplina, dedicação e algum talento, E385, acredita-se que ele,

enquanto pessoa que alcançou esse sucesso, é uma pessoa disciplinada, dedicada e

talentosa. Essa postura faz com que o sujeito enunciador assuma uma posição de

autoridade para declarar o que é bom e o que é ruim dentro do seu campo de atuação.

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Essa postura é justificada pela experiência. A seguir, podemos observar elogios que o

sujeito enunciador tece a alguns concorrentes:

[E416] A assinatura do filme é: 'até as más notícias soam melhor numa fita Basf'. Brilhante (p.79).

[E417] Outra campanha espetacular foi a gerada por Phill Dusemberry, [...],

para a Pepsi (p.80).

[E418] Não dá para esquecer também o 'não é nenhuma Brastemp', campanha da Talent, obra-prima do meu filhote profissional, Ricardo Freire

(p.80).

[E419] Creio que, por vezes, assistir é quase tão agradável quanto fazer. [...]. No mínimo, é um treino excelente, um jeito de aprimorar o que se faz

(p.81).

Esse comportamento mostra um sujeito atento ao trabalho do outro. Entretanto, ao

levantar críticas negativas, além de apresentar a imagem de uma pessoa exigente, o EUe

também compromete a ética profissional, pois esse tipo de crítica está sempre voltada

para o outro, E424, 425. Por outro lado, esse sujeito demonstra, também, não saber

receber bem uma crítica, E420, 421,422. Como podemos observar nos excertos a seguir:

[E420] Foi uma coincidência [a campanha que tinha os judeus como tema e a guerra contra Israel]. Desagradabilíssima (p.17).

[E421] Aprendi a me preparar para resistir civilizadamente a esse tipo de oposição oportunista (p.18).

[E422] Felizmente, tive uma quantidade enorme de experiências adoráveis, e uma muito pequena de insuportáveis (p.18).

[E423] Curiosamente, [...], quando se mete na publicidade, o cineasta normalmente se torna medíocre (p.82).

[E424] Em 2008, Martin Scorsese fez um comercial muito ruim. De bom,

somente a assinatura dele. E não é implicância minha. Scorsese é um profissional de cinema maravilhoso. Possivelmente, o mais importante diretor e ideólogo em atividade na área. Não por acaso, também é um bom contador de histórias. O próprio Fellini, gênio em sua área, chegou a fazer comerciais lamentáveis para o Campari. Eram ruins de doer (p.82).

Conforme visto na análise do modo enunciativo, o sujeito enunciador afirma que, na

publicidade, a disciplina supera o talento, entretanto, em outro momento dessa mesma

análise, esse sujeito menciona ter um dom. Portanto, no excerto 425, ao afirmar que é

bom ver o esforço dos concorrentes, há, ainda que envolto por uma forma de elogio, a

depreciação do outro, uma vez que enquanto os outros se esforçam, ele tem um talento

nato.

[E425] Na publicidade, a inveja é saudável. [...] Ver o resultado do esforço intelectual alheio é algo muito prazeroso (p.81).

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Para o EUe, a publicidade é um instrumento de mudança, E426. Contudo, não faz

campanhas políticas, E427. Esse tipo de comportamento pode ser uma forma de

proteger sua imagem e se isentar de críticas, uma vez que, sendo o debate político algo

polêmico, ele não associa sua imagem à imagem de algum candidato que não tenha

grande aceitação.

[E426] Mas como bons intrometidos e 'invasores' de lares e mentes, podemos colaborar ainda mais com a construção de um país melhor (p.102).

[E427] Como não faço campanha política, posso falar à vontade sobre isso. Em 2010, por exemplo, a propaganda eleitoral me irritou profundamente

(p.103).

O sujeito enunciador cria um efeito de utilidade pública ao se referir à função da

publicidade, pois demonstra acreditar que essa seja uma ferramenta de transformação,

E433, 434; assim, para ele, a finalidade da mesma vai além da venda, E429, 430, 431,

432, está relacionada à informação e ao incentivo. Ele afirma, ainda, que devido à

saturação do mercado, atualmente, é difícil fazer algo novo e que o Brasil já foi melhor

no que se refere à produção publicitária, E428, 436. Talvez esse seja o motivo pelo qual

o sujeito menciona somente a trabalhos realizados em um passado mais remoto – na

obra, ele não cita trabalhos realizados recentemente e nem em fase de desenvolvimento

–. Trata-se de justificar a própria condição. Atualmente, ele se mostra mais

empreendedor do que publicitário, E437, 438.

[E428] A verdade é que a massa de publicidade produzida no mundo é de baixa qualidade. [...]. Alguns países têm uma média um pouco melhor. É o caso da Inglaterra, por exemplo. Os Estados Unidos têm muita coisa boa, mas o volume é tão grande que a quantidade de porcaria também é imensa. E o Brasil já foi melhor (p.76).

[E429] A boa publicidade respeita as pessoas. [...]. A melhor publicidade é

aquela que cumpre sua tarefa de vender produtos e construir marcas (p.76).

[E430] A melhor publicidade não é aquela que tenta vender, mas é aquela

que gera predisposição de compra (p.90).

[E431] É preciso que uma coisa fique bem clara: a publicidade, por si só, não

vende nada (p.91).

[E432] Do ponto de vista do gesto intuitivo de informar, diferenciar, seduzir e promover, a publicidade é antiga (p.93).

[E433] Além de nossas obrigações de venda, podemos sempre acrescentar uma informação útil, um incentivo, mesmo que na forma de um simples

sorriso (p.102).

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[E434] Dela [a publicidade], brotarão novas ideias extraordinárias, que

certamente servirão de alavanca para conduzir o Brasil ao lugar que merece (p.105).

[E435] No campo da publicidade e das artes midiáticas, é cada vez mais difícil produzir a obra-prima, a coisa autenticamente nova e original. Isso porque a produção é massiva, no mundo todo. E a divulgação desse material é imediata e global (p.133).

[E436] Hoje a quantidade de coisas legais, exibidas a todo momento, atenua

ou neutraliza os impactos (p.134).

[E437] Em dois anos, comprei a parte dos sócios e constituí a W/Brasil. E foi mais um projeto feliz, reconhecido pelo mercado e pela sociedade. Aos poucos, desenvolvi ainda mais meu lado empreendedor (p.72).

[E438] Recentemente surgiu a WMcCann. [...], queria ter acesso a algumas contas internacionais, e esse seria um bom atalho para chegar lá (p.72).

O EUe afirma também gostar da interação e até incentiva a produção interativa,

E439, 441, 444, 446, 447. Ele condena os “mecanismos competitivos” que algumas

agências estimulam, 442, 443. Algo controverso, uma vez que ele mesmo se autointitula

competitivo. Além disso, esse sujeito admite o lado ruim da profissão: que possui

atividades desinteressantes, coisas desagradáveis e inevitáveis, E447. Algo que rompe

com que vem sendo construído ao longo da narrativa, pois até então ele fala sobre

sucesso, prêmios, o que deve e não deve ser feito, mas não tinha apontado, ainda, algo

negativo. Pode ser uma estratégia para valorizar o que faz: afirmar que se trata de um

trabalho sério, que exige responsabilidades, assim como os demais.

[E439] [Interação dinâmica] Esse é, [...], o combustível de uma fábrica de

ideias, como uma agência de publicidade (p.11).

[E440] A publicidade atravessa um vale. E passamos por um trecho que predomina a baixa qualidade (p.18).

[E441] [...] é sempre válido estimular o prazer da coautoria. É bem melhor ser coautor de coisas brilhantes do que autor solitário de coisas medíocres

(p.64).

[E442] O problema é que muitas companhias ainda estimulam, erroneamente, mecanismos competitivos que geram exclusão e frustração

(p.65).

[E443] Isso mostra que fui aprendendo a liderar equipes e a conviver produtivamente com gente legal. É uma pena quando competições internas são mal resolvidas (p.65).

[E444] O resultado desse compartilhamento da responsabilidade foi excelente. Nos meses seguintes, todo dia vinha alguém à minha mesa demonstrar surpresa com a velocidade do processo de integração. Muitos diziam que o clima era legal e que a agência estava bem-humorada (p.65).

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[E445] A vida profissional faz com que troquemos muitos desses momentos adoráveis por atividades desinteressantes. A pauta do dia tem muitas coisas desagradáveis, sempre muitas delas inevitáveis (p.111).

[E446] Já disse que o mais legal é interagir solidariamente, [...] (p.113).

[E447] Na agência, vivo me deixando surpreender positivamente pelas pessoas. Surgem ideias geniais de onde menos se esperava (p.133).

Dos conselhos dados relacionados à profissão, o EUe aponta para necessidade de

cuidar da própria reputação, E449, e de criar um inventário de bons atributos como algo

benéfico e que todos deveriam fazer, E450. É possível que a obra em análise seja o

inventário desse sujeito enunciador a fim de administrar a própria reputação. Além do

mais, o EUe aponta para a necessidade da transparência profissional, E450, de acordo

com ele, deve-se evitar falsos perfis, E448, criando, assim, um efeito de transparência

no próprio relato.

[E448] Se você, como você mesmo, não for brilhante, saiba que ainda assim será melhor do que representar uma outra pessoa. Nada de falso perfil

(p.69).

[E449] Isso deveria ser outra virtude do publicitário: saber cuidar da sua

reputação (p.95).

[E450] Nessa área, o importante é que as pessoas sejam transparentes, que mostrem suas competências e suas fragilidades, [...] (p.98).

[E451] O importante é que o indivíduo faça um inventário desses bons

atributos e determine onde pode empregá-los (p.98).

De forma geral, ao qualificar o universo profissional, o sujeito enunciador se

autovaloriza, ele constrói o perfil de um sujeito educado, racional, competente,

profissional, empreendedor, corajoso, sensato, vaidoso, simpático, exigente.

O último tema a ser tratado está relacionado diretamente ao sujeito enunciador. Trata

das autoqualificações. Ao longo da obra o sujeito enunciador empenha-se em construir a

imagem de uma pessoa de valores e princípios e a forma mais direta de se fazer essa

construção é afirmar ser ou ter determinada qualidade. Em uma obra de cunho

autobiográfico essa é uma característica muito recorrente, afinal, o discurso do sujeito

está, basicamente, voltado para si.

Conforme visto anteriormente, a obra está voltada mais para o lado profissional do

EUe, por isso, muitas das características auto afirmadas correspondem ao sujeito

enquanto publicitário. Como podemos observar nos excertos que seguem:

[E452] Logicamente fiquei honradíssimo com o convite (p.9).

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[E453] Já demonstrava, desde cedo, certa capacidade de persuasão, senso de humor e facilidade de travar relacionamentos. Eu era intuitivo. E bom comunicador (p.23).

[E454] Tive a sorte de descobrir para que eu servia na vida - e descobrir muito cedo. Poucos têm esse privilégio. E, por isso, poucos são aqueles bem-sucedidos e realmente felizes no que fazem profissionalmente (p.23).

[E455] Curioso, eu percorria as ruas de São Paulo e também as estradas de letrinhas dos bons livros (p.23).

[E456] Gosto então de integrar o pessoal [da agência] nessa aventura do conhecimento. Admito que me sinto generoso, me sinto bem nessa divisão que soma. É excelente para elevar a autoestima (p.66).

[E457] Foi quando eu resolvi fazer a W. A nova agência realmente se beneficiou de um lado meu empreendedor, corajoso e legal (p.71).

[E458] Julgo-me bem sortudo por ter obtido sucesso profissional muito cedo

(p.97).

[E459] [Traição] Essa é inaceitável. Para pessoas que têm autoestima alta, como eu, a traição parece ainda maior. Como me julgo ético, honesto, generoso, acho sempre que a traição jamais vai acontecer (p.109).

[E460] [...] eu sou bem tolerante [...] (p.121).

Aqui, ele constrói o perfil do profissional de comunicação curioso, trabalhador,

intuitivo, talentoso, privilegiado, bem-sucedido, sortudo, generoso, interativo, curioso,

corajoso, exigente, empreendedor, tolerante, bom comunicador, digno de honrarias,

realizado. Como, na obra, o EUe assume uma postura professoral, entende-se que essas

são as características que se deve ter para ter uma carreira de sucesso como a do próprio

sujeito enunciador.

Esse sujeito afirma crescer nos momentos adversos, E461, o que demonstra sua

capacidade de superação e cria uma imagem de pessoa batalhadora e competente.

Porém, apesar de afirmar que possui momentos adversos, esses episódios quase não são

apresentados no decorrer da obra e quando aparecem são sempre justificados, conforme

já visto, o EUe nunca é culpado, o que coloca em dúvida se essa é de fato uma

característica desse sujeito. Além do mais, ele afirma que não considera isso uma

qualidade, mas uma característica. Ao fazer essa distinção o sujeito enunciador

estabelece uma relação entre algo adquirido e algo nato. No caso dele, trata-se de algo

nato, um dom.

[E461] Normalmente, sou bastante relaxado. Porém, num momento de dificuldade, tendo a me concentrar e a me superar. Cresço nos momentos de adversos. Nem creio que seja uma qualidade. É uma característica minha

(p.35).

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O EUe ainda afirma ter um dom natural para detectar tendências, E462,

paradoxalmente, conforme já visto, afirma também ser “adestradamente profissional”.

Assim, ao mesmo tempo em que faz uma analogia com a disciplina do treinamento

animal, ele diz-se naturalmente talentoso. Essas proposições, apesar de divergentes,

auxiliam na construção de um sujeito empenhado, que busca aprimorar a habilidade que

tem.

[E462] Tenho um dom natural para detectar o rumo dos ventos (p.67).

Ele ainda, inicialmente, afirma não ter humildade, E463, porém, posteriormente, se

julga humilde, mas afirma não ser modesto, E464. Ao longo da obra observamos o

esforço desse sujeito em tentar construir a imagem de uma pessoa humilde, no sentido

de se aproximar das pessoas. Ele, apesar de construir a imagem de superioridade, tenta

manter-se próximo. Por outro lado, para esse sujeito, modéstia e humildade não são

sinônimas. Em sua concepção, a modéstia é falsa. Na verdade, ambas significam falta

de vaidade, coisa que ele não vem demonstrando em sua narrativa. Contudo, o efeito

criado, a partir dessa distinção feita por ele, é o de verdade, de que suas proposições são

todas verdadeiras, uma vez que ele não se julga modesto – “fake”32

.

[E463] Não tenho humildade para pedir ajuda, conselho e consolo (p.64).

[E464] Sempre fui humilde. Modesto, jamais. A humildade é diferente da modéstia, que é sempre fake demais (p.98).

Por considerar-se pretensioso, o sujeito enunciador, dispensa a ajuda profissional,

mas afirma submeter-se à autoanálise, E465. Aqui, esse sujeito também demostra falta

de humildade. A “autoridicularização” é uma atitude que, segundo o EUe, torna a

pessoa mais verdadeira, menos deslumbrado e menos prepotente, E466. Por julgar-se

pretencioso, ele utiliza-se dessa prática, produzindo, assim, um efeito de evolução, pois

cria a imagem do sujeito que busca melhorar, evoluir.

[E465] Nunca fiz psicanálise porque sou pretensioso pra cacete. Estou me autoanalisando o tempo inteiro. Não acho mérito. Tem gente

excepcionalmente preparada para fazer isso. Mas tenho essa mania de autoanálise (p64).

[E466] Com isso [autoridicularização], o indivíduo fica mais verdadeiro, menos deslumbrado, menos prepotente. No meu caso, funciona como um artifício psicanalítico. Como sou pretensioso, faço comigo mesmo (p.99).

32

Fake em inglês significa falso.

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Após afirmar que exercita a autoridicularização para se tornar mais verdadeiro,

menos deslumbrado e menos prepotente, E466, o sujeito enunciador ainda nega ser

prepotente, E467, demonstrando, assim, uma controvérsia. Conforme visto

anteriormente, para Ducrot (1987), toda negação pressupõe uma afirmação. Portanto, o

EUe, ao negar esse atributo, parte do pressuposto de que as pessoas o qualifiquem dessa

forma. Assim, para retificar essa imagem que ele acredita que as pessoas possuem dele,

sua imagem prévia, esse sujeito além de negar, justifica afirmando que tem boa relação

com todos os tipos de pessoa, do mais simples ao mais importante. O comportamento

desse sujeito está voltado mais uma vez para questão financeira. Subentende-se que ele

é visto dessa maneira, prepotente, por pessoas de baixa renda salarial.

[E467] E eu não sou prepotente coisa nenhuma. [...]. Travo diálogos com o empresário de sucesso, mas também bato altos papos com o garçom ou com o guardador de carros. Tudo numa boa (p.119).

Quando criança, o EUe afirma ter sido considerado prodígio, E468. Observarmos

aqui, que o sujeito enunciador vem construindo um efeito de atemporalidade no que diz

respeito às suas virtudes. Sujeito de talento inato, criança prodígio e adulto de sucesso.

[E468] Fui considerado menino prodígio, mas procurei manter os pés no

chão (p.71).

Ao retratar o episódio em que os militares, durante o período da ditadura, se

incomodaram com as intervenções que ele fazia durante jogos do Corinthians, E469, o

EUe cria o efeito de engajamento e constrói a imagem de um sujeito audacioso, que

desafiava o maior órgão repressor da época.

[E469] Achei bom que os militares se sentissem incomodados [com as

minhas intervenções (p.61).

Esse sujeito ainda relaciona a sua imagem a atual projeção da publicidade brasileira

no país e no mundo, uma vez que se coloca como responsável pela atual visibilidade

que ela tem no cenário nacional e internacional, E471. Devido à sua amizade com

profissionais de outras áreas, ele ainda se diz responsável por valorizar a imagem do

publicitário no Brasil, criando, assim, a imagem de uma pessoa influente, E470.

[E470] Quem inaugurou essa ponte, até por ser muito amigo da rapaziada

da imprensa, fui eu (p.15).

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[E471] Aliás, sem cabotinismo, eu fui um dos caras responsáveis por valorizar o papel do publicitário (p.15).

O sujeito enunciador afirma que sempre se achou muito bom no que faz e que, ainda

jovem, tinha dificuldades em saber perder, E473, 474. O tempo pretérito indica que,

atualmente, esse sujeito não tem mais essa característica, o que produz um efeito de

maturidade por parte desse sujeito. Além disso, o ele aponta para o desejo que sempre

tivera em possuir notoriedade e, assim, adquirir autoridade, E472. Hoje, com a

visibilidade alcançada, além da postura de autoridade que assume, ele ainda admite ser

admirado e que, por isso, tem inimigos; por estar demasiadamente exposto, E475.

[E472] Eu ficaria conhecido e ganharia autoridade para propor novas ideias. Era um círculo de virtudes (p.70).

[E473] Por conta da minha personalidade competitiva, quando comecei imaginei jamais ser recusado, o que na verdade se evidenciou impossível

(p.96).

[E474] Felizmente, como fiquei bobo e deslumbrado na idade certa (bem

jovem), assimilei algumas derrotas e baixei minha bola (p.96).

[E475] [...] é interessante notar que todas as pessoas admiradas também

ganham inimigos. Tenho alguns poucos, conhecidos ou desconhecidos. Quando a pessoa é muito exposta, recebe antipatia e o ódio de uns tantos

(p.119).

Das qualificações acima, por ele e a ele atribuídas, o sujeito enunciador comporta-se

como pessoa virtuosa, que também tem defeitos, mas que, além de serem poucos, ele

busca atenuá-los, isto é, além das qualidades sobressaírem aos defeitos, esse sujeito está

sempre em busca de ser uma pessoa melhor. Essas virtudes corroboram para a garantia

de adesão do sujeito interpretante ao seu empreendimento comunicativo. Conforme

vimos no capítulo 1, ao tratar da retórica, o caráter moral do sujeito enunciador gera

credibilidade e “deixa a impressão de o orador ser digno de confiança”

(ARISTÓTELES, 1998, p. 33). Portanto, essa argumentação pautada no caráter do EUe,

a qual refere-se o ethos, é proveniente de suas virtudes.

3.5 A dimensão argumentativa do ethos

A nosso ver, as reflexões acerca da noção de ethos centram-se nas estratégias

argumentativas que o enunciador utiliza para se projetar no discurso com a finalidade de

construir uma imagem positiva de si e, assim, influenciar e persuadir. Essa noção de

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ethos é retomada na base da Retórica, reinterpretada e ampliada pela Análise do

Discurso.

Essa noção, tal qual é concebida pela Retórica, dá conta da interação verbal.

Entretanto, com a evolução da sociedade e dos meios de comunicação, a dinâmica do

discurso modificou-se. Consideramos que, hoje, a multiplicidade nas relações sociais

demandam múltiplos papéis e, consequentemente, múltiplos ethé. Portanto, para atender

a essas demandas, é necessário organizar os discursos de forma a adequá-los não

somente ao público, conforme a proposta Retórica, mas também à realidade sócio-

histórica a fim de garantir eficácia.

No caso do material analisado por nós, que tem a vida do próprio sujeito enquanto

tema – uma obra autobiográfica –, há um aspecto que sobressai e que serve como fio

condutor de toda narrativa: a profissão. Esse foi o motivo que deu origem à obra e é em

razão disso, portanto, que o empreendimento argumentativo é estabelecido. Os ethé

construídos recaem, basicamente, sobre o sujeito enunciador enquanto profissional.

3.5.1 Do fiador e das cenas enunciativas

Para representar a imagem do sujeito enunciador no discurso, invoca-se uma

instância subjetiva, a de um “fiador”, noção proposta por Maingueneau (2010, 2011a,

2011b, 2013). Para ele, o fiador é uma figura que o leitor deve construir com base em

indícios textuais. Assim, esse fiador toma corpo à medida que esse sujeito lhe dá voz

por meio das estratégias usadas, do seu dizer e do tom assumido no discurso. Sendo

assim,

... a qualidade do ethos remete, com efeito, à imagem desse fiador que, por

meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o

mundo que ele deverá construir em seu enunciado. Paradoxo constitutivo: é

por meio de seu próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua maneira

de dizer (MAINGUENEAU, 2004, p.99).

Portanto, a eficácia do discurso, bem como o ethos, está relacionada a esse fiador que

responde pelas escolhas linguísticas. A construção dessa imagem, no entanto, é um

processo inferencial, não necessariamente consciente. Na obra analisada por nós, a

figura desse fiador corresponde ao nome estampado na capa: Washington Olivetto. É

ele a fonte explícita da informação veiculada nesse discurso.

Para Maingueneau (2013), o discurso, pela finalidade da pertinência, pressupõe uma

“cena de enunciação”. Conforme visto no capítulo 1, essa “cena de enunciação” integra

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três cenas: “cena englobante”, “cena genérica” e “cenografia”. Ainda segundo o autor

(2013), nem todos os gêneros de discurso elaboram cenografias específicas, alguns

costumam não mobilizar cenografias variadas. Nesses casos, cenografia e cena genérica

se mesclam. Embora o gênero autobiográfico possibilite cenografias que afastam do

modelo preestabelecido, a obra em análise, apresenta um modelo clássico de

autobiografia33

e, por isso, as cenas de enunciação desse discurso se reduzem à cena

englobante e à cena genérica:

(i) Cena englobante: é do discurso autobiográfico – que tem como parceiros da troca

verbal, um sujeito que propõe uma narrativa em primeira pessoa que se dirige a um

público interessado em saber sobre sua carreira profissional.

(ii) Cena genérica: é a obra impressa – por meio da qual um publicitário narra sua

trajetória de vida, mais especificamente os episódios que giram em torno da

profissão.

Portanto, essa obra, apesar de ser suscetível a cenografias variadas34

, se atém a sua

cena genérica rotineira. Quando isso acontece, Maingueneau (2013) afirma ainda que há

a possibilidade de enunciar por uma cenografia que se afasta dessa rotina, como é o caso

do excerto a seguir:

[E476] Com você, leitor, gostaria de dividir essas experiências (p.10)(grifo

nosso).

Aqui, como em outras passagens semelhantes35

, o sujeito enunciador, enquanto

fiador do discurso, interpela o sujeito interpretante36

, o leitor, como em uma conversa

amistosa. Ao fazer essa escolha, o sujeito enunciador tende a atrair a atenção do TUi e

trazê-lo para seu propósito comunicativo. Portanto, essa interpelação promove uma

aproximação do enunciador, da cena enunciativa. A argumentação se dá quando o TUi

faz a “incorporação” desse propósito, isto é, quando ele se relaciona ao ethos amigo

produzido por esse discurso. Assim, mais do que contar a própria história, o EUe

convoca o TUi a partilhar dessa experiência.

33

Ver mais sobre o contrato que firmado pela autobiografia clássica 34

Admitimos que, no espaço biográfico – tal qual proposto por Arfuch (2010), existem outros gêneros

autobiográficos; como por exemplo: a carta e a entrevista. 35

Ver mais sobre a interpelação na análise do modo enunciativo: ato alocutivo, p.62 36

Sujeito interpretante ou TUi refere-se à teoria semiolinguística de Charaudeau (2012). Optamos em

usá-la aqui como forma de manter um padrão. Maingueneau (2013) por sua vez, utiliza a nomenclatura

co-enunciador para se referir a esse sujeito.

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3.5.2 Dos papéis sociais e da multiplicidade dos ethé

Através da análise do modo enunciativo e da qualificação do modo descritivo foi

possível observar as várias imagens que o sujeito enunciador constrói ao longo da

narrativa.

Consideramos que, atualmente, os inúmeros papéis sociais desempenhados pelos

sujeitos afetam sua forma de agir. A cada nova situação que se impõe, uma atitude é

requerida e, com isso, um papel a ser projetado. Martins (2010, p.47) afirma que

os papéis sociais permitem compreender a situação social, pois são

referências para percepção do outro, ao mesmo tempo em que são

referências para o comportamento próprio. Se no encontro social os

homens se apresentam como ocupantes da posição de professores ou

autores de um livro, sabem como se comportar, porque aprendem no

decorrer de nossa socialização o que está prescrito para os ocupantes

dessas posições. Se alguém for convidado a proferir uma palestra numa

escola, não irá vestido como se estivesse indo para o clube, assim ocorre

com o mundo acadêmico e com todas as conformações de mundo.

Assim, a multiplicidade de situações existentes no meio social demanda múltiplos

papéis a serem exercidos. Em consonância com a Retórica, como toda tomada da

palavra constitui-se uma forma de argumentação, entende-se que múltiplas, também,

são as imagens a serem construídas, os ethé.

Consideramos que em uma interação verbal o sujeito enunciador tem à disposição

inúmeros papéis e desempenha alguns deles, conforme a situação de comunicação, e

que inúmeros também são os papéis que o sujeito interpretante possui; admitimos que

esse sujeito enunciador se empenhará para desempenhar o máximo de papéis possíveis,

afim de captar, de alguma forma, seu sujeito destinatário. Ele projetará em seu discurso

os ethé necessários para persuasão.

Entendemos, portanto, que papéis sociais (filho, publicitário, pai, corinthiano) trazem

entrelaçados ethé, como podemos observar a seguir:

[E477] Sempre prestei muita atenção nos exemplos de “família”, mesmo na época em que desconhecia o significado mais profundo desse conceito. Desde criança procurei entender o sistema de relação entre os entes queridos e o papel de cada um no grupo. Sabia que podia aprender com cada um deles. (p.39)

Aqui, observamos que o sujeito enunciador se encaixa em diversos papéis dentro da

estrutura familiar (neto, filho, sobrinho). Em todos os papéis, ele se coloca como

aprendiz. Sendo a família, comumente considerada uma fonte de princípios e valores,

uma instituição valorizada em nossa sociedade; o sujeito enunciador utiliza-se desse

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fato para projetar seu ethos familiar no discurso e dar credibilidade ao seu dizer.

Credibilidade essa que valida o discurso e cria um efeito de confiança. Embora esse

aspecto não esteja ligado diretamente à profissão, é ele que conferirá o estatuto de

legitimidade ao que é dito posteriormente, uma vez que o ethos familiar suscita o bom

caráter do EUe.

3.5.3 Dos efeitos de sentidos

Observemos o excerto a seguir:

[E478] Sempre prestei muita atenção nos exemplos de “família”, mesmo na época em que desconhecia o significado mais profundo desse conceito. Desde criança procurei entender o sistema de relação entre os entes queridos e o papel de cada um no grupo. Sabia que podia aprender com cada um deles. (p.39)

Aqui, E478, o efeito de confiança foi produzido a partir de um deslocamento do

sentido da língua, do seu sentido literal das palavras. Charaudeau e Maingueneau (2008,

p.180) retomam os trabalhos de Charaudeau para distinguir “efeito pretendido” e “efeito

produzido”.

Assim, de acordo com os autores (op. cit.), os efeitos pretendidos referem-se aos

efeitos que o EUe pretende e busca produzir junto ao TUd ; já os efeitos produzidos

dizem respeito àqueles que o TUi reconhece efetivamente. Ambos são usados no

interior de uma “problemática de influência”. Entretanto, os efeitos produzidos não

coincidem necessariamente com os efeitos pretendidos.

Visto isso, podemos afirmar que a qualidade do ethos auxilia para que os efeitos

pretendidos coincidam com os produzidos, pois ao apresentar-se como sendo digno de

fé, o sujeito enunciador inspira confiança, facilitando, assim, o cumprimento de seu

propósito argumentativo.

De forma geral, na obra analisada por nós, o sujeito enunciador, transmite, além do

efeito de confiança mencionado anteriormente, efeitos de realidade e transparência

decorrentes do gênero da obra, conforme visto no capítulo 2. Embasados nesses efeitos

produzidos, podemos afirmar que esses podem também ser efeitos pretendidos pelo

EUe, caso contrário ele não assinaria a obra e nem se esforçaria em construir uma boa

imagem de si.

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3.6 Algumas considerações

Ao mobilizar a noção de contrato, foi possível observar que além da materialidade

linguística, há também uma materialidade histórica que, por meio das relações sociais,

auxilia e até condiciona os dizeres e, consequentemente, a imagem de si no discurso.

Procuramos fazer uma análise discursiva sobre a construção de um ethos e sua

sobreposição a um outro ethos já existente, um ethos pré-discursivo, através do discurso

autobiográfico. Na obra analisada, Washington Olivetto não apenas mantém a imagem

preexistente, de publicitário de sucesso e, por isso, referência na área da publicidade,

como também a utiliza como respaldo para ampliá-la.

O contrato de comunicação, além de definir os papéis dos sujeitos no ato de

linguagem, direciona a leitura-interpretação da obra; logo, ele fundamenta a escrita e

orienta a leitura.

A análise do modo enunciativo, em que o ponto de vista do sujeito é evidenciado,

permitiu observar as imagens que o sujeito enunciador criou a partir de sua própria

perspectiva em relação ao mundo, aos outros e a si próprio. O sujeito enunciador, ao

longo da narrativa, vai construindo o perfil do profissional exímio e do sujeito

afortunado e virtuoso.

Acreditamos que essa proporção está diretamente relacionada com o gênero da obra.

Tratando-se de uma autobiografia, o sujeito, por excelência, expressa seu ponto de vista,

modo enunciativo. Além do mais, a aparente objetividade expressa no discurso, por

meio do modo delocutivo, auxilia no empreendimento argumentativo, uma vez trata de

saberes comumente partilhados. Assim, quanto maior a recorrência desse modo, maior é

a probabilidade do sujeito interpretante de aderir ao projeto de fala do sujeito

enunciador de forma voluntária. O ato alocutivo, por sua vez, estabelece uma relação de

força; embora, ao longo da narrativa, seja possível perceber a posição de superioridade

do sujeito enunciador, uma constante imposição através de modalidades alocutivas

poderia levar o TUi a romper o contrato de comunicação, arruinando, assim, a imagem

positiva que EUe tenta estabelecer.

Já a análise da qualificação do modo descritivo permitiu compreender caráter

subjetivo da obra, uma vez que, ao qualificar, ele manifestar o imaginário individual

e/ou coletivo. Essa manifestação do imaginário, por sua vez, permite a construção ethos

do sujeito enunciador, visto que parte de suas escolhas, nem sempre conscientes,

argumentativas.

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A divisão das qualificações por temas, por sua vez, permitiu confirmar o enfoque da

obra. Os temas vida e obra autobiográfica foram destacados devido ao gênero:

autobiografia enquanto narrativa de vida. É importante ressaltar que se tratam de

menções diretas, à vida e à obra. O que fica implícito pode também ser depreendido dos

outros temas. Educação, referências pessoais, família foram assuntos que percebemos

um registro superior que outros temas variados.

Sendo a obra de cunho autobiográfico, espera-se que o sujeito discorra sobre si, as

autoqualificações explícitas apresenta grande recorrência. Maior ainda é o índice de

recorrência das qualificações feitas à profissão em geral. É importante lembrar que ao

qualificar a profissão, esse sujeito, indiretamente, se qualifica. Essa periodicidade aliada

à postura professoral do sujeito enunciador dá a obra o caráter de orientação

profissional.

Assim, através desses dois modos discursivos, foi possível compreender como o

sujeito enunciador trabalha a própria imagem. Ele reforça a imagem do profissional de

sucesso e usa essa posição referencial para traçar o seu perfil completo, pessoal e

profissional. Trata-se de uma forma de justificar a imagem pré-existente e o sucesso e

de legitimar a fala por meio da credibilidade.

A multiplicidade de ethé construídos está diretamente ligada à multiplicidade de

papéis sociais, por sua vez; assim, essa gama de imagens construídas favorece a adesão

do TUi, uma vez que promove maior possibilidade de identificação. Portanto, a

dimensão argumentativa do ethos está atrelada aos papéis que estão socialmente

definidos e, por isso, passíveis de avaliação dos restantes membros dos grupos.

Portanto, acreditamos que essa aproximação com o real, do ponto de vista social, valida

os ethé construídos na obra e garante credibilidade ao discurso.

De forma genérica, o ethos que sustenta toda obra e, inclusive, respalda as demais

imagens suscitadas é o ethos professoral. O tom didático sugerido pelo discurso supõe a

imagem de um fiador sábio e com autoridade para transmitir o que aprendeu. Trata-se

da construção da imagem de um sujeito de bom caráter. A linguagem materializada no

texto prima pela coloquialidade, com construções que muito se aproximam da oralidade.

Uma imagem positiva de si no discurso, por sua vez, garante que os efeitos

pretendidos correspondam aos efeitos produzidos. Quem comunica quer que o outro

faça algo ou creia em algo, quando o sujeito enunciador conquista a confiança do sujeito

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interpretante através da sua imagem, ele garante o sucesso do empreendimento

comunicativo, isto é, é bem sucedido em sua argumentação.

Por fim, podemos afirmar que há, por parte do sujeito enunciador, a tentativa de fazer

uma construção objetiva do mundo, contudo suas descrições fazem parte de uma

construção subjetiva. Esse tipo de construção refere-se ao que Charaudeau (2012, p.141)

chama de “efeito de subjetividade objetivada”, isto é, quando o EUe tenta fazer com que

o seu ponto de vista subjetivo seja compartilhada pelo TUi.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro O que a vida me ensinou – Credibilidade não se ganha. Conquista-se é uma

narrativa autobiográfica de Washington Olivetto, um publicitário consagrado devido a

trabalhos como “Meu primeiro sutiã”, “Hitler” e as campanhas da “Bombril”.

A história de um publicitário, que tem como ofício, juntamente com sua equipe,

construir imagens de produtos ou conceitos a fim de gerar predisposição de venda de

um produto ou de um conceito, atraiu o nosso interesse. A motivação principal para essa

pesquisa foi autocaracterização desse publicitário. Daí, surgiu a pergunta: Como alguém

responsável pela imagem do outro construiria a própria imagem?

Para responder a essa questão, identificamos e analisamos as imagens de Washington

Olivetto pela análise dos procedimentos da enunciação, os atos locutivos, e do

procedimento de qualificação proveniente do modo de organização discursivo descritivo

proposto por Charaudeau (2012).

O modo enunciativo, por meio dos atos locutivos, apontou para forma como a

argumentatividade foi sendo construída: o ato elocutivo deu conta do ponto de vista do

sujeito, característico de uma obra autobiográfica, o ato delocutivo proporcionou uma

maior aproximação com o sujeito interpretante e o ato alocutivo garantiu ao sujeito sua

posição de superioridade.

As autoqualificações mostraram um sujeito empenhado em construir a imagem do

profissional exemplar, virtuoso e, como todo mundo, com alguns defeitos. Entretanto,

esses defeitos, além de serem poucos, são expostos sempre de forma atenuada. São as

qualidades que o destaca, porém são os defeitos que o aproxima do seu publico alvo,

pois demonstrar um pouco de fragilidade auxilia na adesão do sujeito interpretante, uma

vez que pode gerar identificação. Se os defeitos igualam, as virtudes elevam, logo o

número de virtudes supera os defeitos. Além do mais, são elas, as virtudes, que auxiliam

na credibilidade.

É importante ressaltar que embora, de acordo com Amossy (2013, p.9) não seja

necessário fazer um autorretrato, detalhar suas qualidades e nem falar explicitamente de

si para construir a própria representação, na obra analisada, o sujeito enunciador,

insistentemente, explicita seus atributos pessoais e, principalmente, profissionais. O

excesso de autoatribuições explícitas gera um efeito negativo devido ao pedantismo. A

supervalorização do eu transmite a imagem de um sujeito prepotente, mesmo que esse

negue tal característica.

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O ethos pré-discursivo de Washington Olivetto era do profissional de sucesso,

referência em sua área. Ao longo da narrativa, foi possível perceber o esforço do sujeito

enunciador em não apenas manter essa imagem, mas também justificá-la. Acreditamos

que a supervalorização do eu seja uma tentativa de defesa dessa posição referencial que

esse sujeito ocupa.

Assim, esse sujeito constrói na obra o perfil do profissional de comunicação curioso,

trabalhador, intuitivo, talentoso, privilegiado, bem-sucedido, sortudo, generoso,

interativo, curioso, corajoso, exigente, empreendedor, tolerante, bom comunicador,

digno de horarias, realizado.

O sentido é extraído a partir da relação entre os sujeitos e para que o ato de

comunicação seja bem sucedido, há, em uma situação monologal, um esforço por parte

do sujeito enunciador para que os sentidos pretendidos sejam os mesmos que os

produzidos. Na obra analisada, o efeito produzido do real, firmado pelo contrato, nos

leva a acreditar que esse seja também o efeito pretendido.

O ethos que sustenta toda obra e, inclusive, respalda as demais imagens suscitadas é

o ethos conselheiro. O tom didático e, por vezes, impositivo e categórico sugerido pelo

discurso supõe a imagem de um fiador sábio e com autoridade para transmitir o que

aprendeu, aquilo que a vida lhe ensinou. Trata-se da construção da imagem de um

sujeito de bom caráter que, através da obra autobiográfica, prescreve um tipo de receita

para o sucesso profissional.

Viver em sociedade é desempenhar papéis e assumir ethé, podendo a ambição

máxima residir na verificação de quais são eles e fazê-los mudar de feições, uma vez

que se admite que certos papéis, ethé e estereótipos desonram o sujeito. Assim, a fim de

buscar legitimidade e até aceitação social, os sujeitos buscam, na vida pós-moderna,

formas de referenciação que lhes sirvam de respaldo.

Bauman (2001, p.41) afirma que a individualidade traz a consumação na escolha dos

objetivos, dado a gama de opções e que, em um mundo fluido, vitórias e derrotas não

são predeterminadas, nem irrevogáveis, mas também não são pontos finais, para tudo há

uma validade. Portanto, podemos afirmar que uma obra que se compromete em revelar

episódios de vida de um profissional bem sucedido e, ainda que negue, vende a ideia de

que a obra seja um tipo fórmula para o sucesso, constitui-se, mercadologicamente, como

um objeto sedutor.

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Quanto à obra autobiográfica, podemos dizer que ela busca descrever o homem com

efeito de real. A ancoragem na realidade gera confiança e cria o efeito de verdade. Esse

tipo de efeito gerado pelo gênero da obra foi fundamental para construção da imagem

do sujeito enunciador, uma vez que esse tipo de visada que confere às narrativas do

espaço biográfico uma dimensão argumentativa.

Entre o que é público e o que é privado, o sujeito enunciador promoveu um jogo de

mostra e esconde. Visto que esse sujeito já é uma figura pública, ele escreve a fim de

tornar público um saber. Sua vida é narrada apenas como pano de fundo para

determinados temas ligado à profissão. Verificamos, portanto, que embora a narrativa

autobiográfica suscite a publicação do que é privado, o EUe ao tenta manter a linha

tênue entre o que é privado e o que é, de fato, público. Assim, a suposição do privado

encontra seu valor comercial – público.

Ao publicar sua história de vida, o publicitário Washington Olivetto busca construir

uma imagem positiva de si. Para tanto, ele destaca sua vida profissional, promove uma

ancoragem com a realidade a partir de dados verificáveis e firma seu lugar de autoridade

no ramo publicitário expondo seu lado empreendedor. Ele aponta seus defeitos e

geralmente justifica-os; mostra-se virtuoso, focaliza seus trabalhos bem sucedidos como

forma de atestar suas afirmações. Washington Olivetto valoriza a família no que tange

as relações hereditárias e encontra na autobiografia uma forma de manter a reputação.

Esse estudo representa uma perspectiva dentre várias possibilidades de leituras.

Entendemos a obra como uma versão de um passado, a veracidade dos fatos não foi

uma preocupação, nosso interesse estava no que foi mostrado através de seu discurso,

na forma pela qual a argumentatividade foi construída, no que foi escolhido para

perpetuar-se como história de sua vida.

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de discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p.269 – 293.

Material em análise:

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ANEXO A

Introdução da obra.

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