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Jennifer Serra_Iaô

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Cinema e Candomblé: a autoria do discurso no filme Iaô

Jennifer Jane Serra1

Resumo

Este texto aborda a relação do Candomblé com a Antropologia através da análise do

filme Iaô, do diretor Geraldo Sarno, que registra o ritual de iniciação de filhas-de-

santo em um terreiro de Candomblé. Partindo dos estudos de antropologia visual, o

presente trabalho realiza uma análise do comentário no filme e identifica a existência

de duas vozes, a do narrador, fundamentada no conhecimento acadêmico e a dos

personagens, baseada na experiência vivenciada.

Palavras-chave: Antropologia Visual, Candomblé, Documentário

1. Introdução

A antropologia visual, seja como técnica de pesquisa, campo de estudo,

ferramenta de ensino ou forma de abordagem do conhecimento antropológico, veio

oferecer uma alternativa à antropologia escrita. Até a introdução da câmera

cinematográfica como instrumento de pesquisa, a metodologia utilizada para a

pesquisa etnográfica era a observação direta, a qual, utilizava a linguagem como sua

forma de expressão. A observação fílmica nasceu como uma nova metodologia de

pesquisa que permitiu gravar em um suporte permanente os rastros de uma cultura, ao

mesmo tempo que restituía a animação aos corpos, coisas e ações. Claudine de France

(1998), retomando o ponto de vista de Marcel Mauss sobre as técnicas do corpo e de

André Leroi-Gourhan, sobre comportamento técnico, defende que a imagem animada

apreende de forma mais direta e fluida o comportamento técnico, no qual estão

inseridas as técnicas do corpo, materiais e rituais. Esse comportamento técnico se

traduz nos gestos, posturas e comportamentos individuais e coletivos, através dos

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da UNICAMP. E-mail: [email protected]

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quais podemos apreender a cultura de um povo.

A possibilidade de capturar o comportamento técnico de maneira mais intensa,

o renascimento da tradição oral e a mudança do foco nos povos colonizados, traduzida

pela preocupação de dar "voz" a esses povos, contribuíram para o desenvolvimento da

antropologia visual. Entretanto, há um significante contraste entre o escrito e o visual,

que se dá na interpretação que o leitor tem sobre o conteúdo desses registros. Como

afirma David MacDougall (1998), mesmo que fotógrafos e cineastas possuam o

controle sobre muitos aspectos da recepção das imagens, através, por exemplo, da

contextualização destas, as imagens parecem ter vida própria e as pessoas respondem

a elas de maneiras diferentes. Filmes etnográficos e fotografias seriam considerados

perigosos, tanto para os retratados nas imagens como para quem as frui, isso porque,

por serem polissêmicas e poderem gerar interpretações às vezes antagônicas, eles são

completamente distintos das descrições etnográficas escritas. Para MacDougall, é

responsabilidade do cineasta controlar qualquer potencial erro de interpretação do

material fílmico e não do espectador em ser um bom intérprete desse material.

Através do comentário falado nos filmes etnográficos, o antropólogo-cineasta

descreve, decifra e dá sentido àquilo que é visto, elucidando o que há por trás das

imagens, isto é, o seu significado. Mas, além disso, o comentário em filmes de

natureza etnográfica permite também explicitar o tipo de relação estabelecida no

encontro do cineasta com o “outro”; em outras palavras, com o objeto do filme, e a

postura adotada para representá-lo. Quanto à forma de representar um povo ou uma

cultura, a escritora e cineasta Trinh T. Minh-ha defende que a postura do cineasta

deve ser a de falar com e, não, falar sobre o outro, isto é, deve utilizar uma fala que

não trata do outro como um objeto, como algo distante do enunciador ou ausente do

discurso. Uma fala que se reflete nela mesmo, que pertence também a esse outro e que

deve materializar-se em todos os aspectos do filme: verbalmente, musicalmente e

visualmente.

2. Candomblé e o registro do sagrado

O Candomblé surgiu no Brasil a partir da fusão de diferentes crenças

africanas, proporcionada por fatores como a concentração de tráfico em determinadas

regiões da África e o intercâmbio linguístico, sexual e religioso entre escravos e ex-

escravos na colônia. Os grupos étnicos, entretanto, mantiveram suas identidades e

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foram agrupados em torno das "nações de candomblé" que, segundo Roger Bastide

(1978), são reconhecíveis pelas diferentes tradições (línguas, ritos, gestos) que

perpetuam. Para o sociólogo, "é possível distinguir essas 'nações' umas das outras pela

maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo

idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das

divindades, e enfim por certos traços do ritual" (1978: 29).

O conhecimento religioso no Candomblé é transmitido através de um sistema

hierárquico rígido e a comunicação entre deuses e mortais se processa através da

possessão, na qual a própria divindade entra em contato com os crentes através da

incorporação mediúnica. Em muitos rituais, faz-se necessário o sacrifício de animais,

assim como a utilização de produtos minerais e vegetais, que são carregados de

valores simbólicos. Em todos os ritos, os elementos sonoros são também essenciais,

sejam eles produzidos através de toques de instrumentos musicais ou de cantos

litúrgicos e os elementos dotados de simbologia se estendem aos alimentos e

vestimentas.

Entre os membros do Candomblé é possível identificar uma resistência em

aceitar publicações de imagens de rituais, a qual pode estar baseada na crítica à

revelação de conhecimentos que são transmitidos de maneira controlada e processual

e que repercutem na hierarquia interna dos terreiros e, também, pela perda do controle

sobre a veiculação dessas imagens que, em contato com espectadores desinformados e

despreparados, poderiam gerar uma profanação do sagrado ali representado e

aumentar o preconceito com o Candomblé, especialmente por causa do sacrifício de

animais.

Em entrevista à pesquisadora Eliane Coster (2008), o professor Reginaldo

Prandi explica porque filmar ou fotografar está em desencontro com o sistema

religioso sobre o qual se fundamenta o Candomblé:

"O Candomblé é uma religião iniciática e o acesso aos ritos é

cumulativo, ele vai aumentando na medida em que o processo

iniciático se aprofunda. Então mesmo que se possa pensar nos ritos não

públicos, não é todo o mundo que é do Candomblé que pode assistir e

participar... Na medida em que você vai subindo certos degraus, isso

significa que você vai se submetendo a maiores exigências de todos os

tipos, você vai ganhando privilégios. E o privilégio que você ganha de

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forma crescente é o acesso ao conhecimento religioso, ou seja, o

acesso aos ritos, aumentando a sua participação" (PRANDI In

COSTER, 2008: 69)

Para alguns membros do Candomblé, as imagens dos rituais, além de

potencialmente propiciar a profanação do sagrado, podem ser usadas como armas para

a perseguição religiosa, como podemos depreender do depoimento de um pai-de-

santo2, fornecido à Coster em sua pesquisa:

"Porque que não se deixa fotografar os rituais, oferendas, boris, a

iniciação? Não é porque é algo diabólico ou algo extraordinário, não é

nada disso, é porque nós não sabemos quem vai ver, quem vai usar e a

interpretação que vai se dar. Aquilo que pra alguém que está sendo

iniciado é um momento tão sagrado, vamos supor, mostrar matando

um animal, que é um momento em que você está entrando em uma

ligação com a divindade, que tem toda uma importância profunda,

quem vê (os rituais) através da fotografia não tem essa emoção (do

momento). Está vendo uma foto, e para a pessoa pode ser uma coisa

que vai ser ridicularizada, porque ela não viveu o momento pra

entender." (Pai Francelino de Xapanã In COSTER, 2008: 61)

A interpretação controversa de imagens dos rituais sagrados do Candomblé e a

consequente reação contrária à sua veiculação, por exemplo, foi registrada em 1951,

quando o repórter José Medeiros, da revista O Cruzeiro, publicou uma matéria com

imagens do ritual até então inéditas na imprensa brasileira. Como descreve Fernando

Cury de Tacca (2003), incomodado com uma reportagem francesa, que, segundo o

jornalista, "não mostrava o 'verdadeiro candomblé'" (2003: 148), José Medeiros

decidiu fazer uma matéria sobre o culto. Encontrando resistência nos terreiros mais

tradicionais de Salvador, que não o permitiram fotografar rituais, ele descobriu, então,

o terreiro de Mãe Riso da Plataforma, no subúrbio da cidade, no qual a mãe-de-santo

permitiu o registro da iniciação de três iaôs.

A reportagem foi publicada em 15 de novembro de 1951, com o título As

2 Pai-de-santo e mãe-de-santo são nomes usados para denominar o chefe religioso do terreiro, que possuem maior axé e conhecimento acumulado.

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Noivas dos Deuses Sanguinários, contendo 38 fotografias e o texto descritivo do

jornalista Arlindo Silva, texto esse carregado de dramaticidade e sensacionalismo.

Segundo relatos de Medeiros, presentes no artigo de Tacca, após a publicação das

fotografias a mãe-de-santo Riso da Plataforma foi perseguida no meio religioso e até

obrigada a prestar explicações em uma delegacia de polícia sobre as razões de ter

permitido as fotos. Além disso, as iaôs3 fotografadas não tiveram sua iniciação

reconhecida e foram discriminadas por seguidores da religião.

3. Iaô, de Geraldo Sarno

Realizado por Geraldo Sarno em 1976 como o segundo de uma série de

experimentos sobre o Candomblé iniciada no mesmo ano com o curta-metragem

Espaço Sagrado, o filme Iaô descreve visualmente o processo de iniciação de filhas-

de-santo4 em um terreiro no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, enquanto

um narrador, em off, complementa a descrição, explicando o significado do que é

visto, além de apresentar certas considerações acerca da função social do Candomblé.

A localização geográfica do terreiro, no recôncavo baiano, não é informada, mas,

pode ser obtida extra-filme ou através do curta Espaço Sagrado. O terreiro Ilê Axé Ató

Ilé, local das gravações, é comandado por Mãe Filhinha, uma das mais antigas mães-

de-santo da Bahia.

O texto da narração foi retirado do livro Os Nàgô e a Morte, da antropóloga

Juana Elbein dos Santos, que, conforme os créditos iniciais, serviu de inspiração para

o filme. Dividido pelas fases que marcam a iniciação das noviças (as abians), o filme

mostra desde os ritos preparatórios até a cerimônia de Saída das Iaôs, quando estas

anunciam o nome de seu orixá e inclui as cerimônias que se passam no interior de um

quarto fechado, o roncó, espaço reservado para rituais considerados como "secretos",

onde ocorre a manifestação do sagrado. Além da narração do locutor, gravada em

3 Iaô, em iorubá, significa "esposa" (do orixá), mas no Candomblé tem o sentido de "noviça". Os membros de um terreiro de Candomblé recebem denominações correspondentes ao posto que ocupam no terreiro e na hierarquia religiosa. O ritual chamado de "Feitura de Iaô" é um ritual de passagem de uma iniciante, chamada abian, para o posto de Iaô. Trata-se de um ritual de iniciação religiosa no qual as noviças apreenderão novos conhecimentos e serão preparadas espiritualmente para receber seus orixás através da possessão.4 Nem todos os seguidores e membros de um terreiro podem se tornar filhos ou filhas-de-santo, que são os sacerdotes ou sacerdotisas responsáveis pelo culto aos orixás e cuidado com a casa de candomblé, pois é preciso que o indivíduo apresente a disposição natural para incorporar, ou assentar, o santo, isto é, o orixá. Os que não são filhos-de-santo podem desempenhar trabalhos não-sacerdotais, como os ogãs, alabês, ekédes etc.

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estúdio, o filme faz uso de som direto, entrevista (somente com a mãe-de-santo) e

trilha sonora composta por cânticos registrados no terreiro.

O filme de Sarno foi motivo de grande polêmica entre a comunidade do

Candomblé por revelar momentos considerados secretos, expor rituais sagrados para o

olhar leigo e exibir cenas que podem ser consideradas pejorativas, como, por

exemplo, as cenas das iaôs babando. As imagens de dentro do roncó são as mais

controversas, por seu impacto visual e exótico e porque exibem rituais considerados

pelos mais tradicionalistas como interditos ao olhar laico. Nas sequências que se

passam no roncó vemos as noviças possuídas e submetidas a rituais como a depilação

da cabeça e o banho de sangue, com sacrifício de animais. Os planos próximos, o

sangue dos animais e o som hipnótico das cantigas entoadas pela mãe-de-santo

intensificam a força dessas cenas.

O exotismo das imagens, porém, é em parte suavizado pelo comentário que

pontua o filme com breves explicações sobre o que está sendo mostrado e o

significado religioso/simbólico das ações e de alguns elementos. O comentário em

nenhum momento adquire caráter pessoal, mas permanece o tom acadêmico das

descrições e, em alguns momentos, chega a ser poético. As imagens, por outro lado,

apresentam uma preocupação estética, além de descritiva, que se traduz também na

exploração dos sons dos cânticos e dos instrumentos musicais.

Além de explicar o sentido das ações que transcorrem em frente à câmera, o

comentário em Iaô funciona como um contraponto às imagens exóticas. Ele conduz o

espectador a uma interpretação das imagens segundo uma leitura antropológica

fundamentada na origem acadêmica do discurso do narrador. Não se trata aqui de um

comentário puramente descritivo ou que traduz uma visão totalizante sobre uma dada

cultura. Esse uso do comentário se difere de filmes antropológicos descritivos, como,

por exemplo, aqueles produzidos em Bali por Gregory Bateson e Margareth Mead, em

que o comentário descreve de forma redundante o que está sendo visto, ou do

comentário de Robert Gardner no filme Dead Birds, em que ele confere uma

interpretação pessoal às ações dos personagens.

Poderíamos aproximar o uso do comentário em Iaô àquele que o cineasta-

antropólogo Jean Rouch faz em Les maîtres fous (1955), no qual filma rituais de

possessão de uma comunidade Hauka e cujas imagens chocantes, como a de um cão

sendo comido, provocaram reações em intelectuais franceses e africanos. Como expõe

Sylvia Caiuby Novaes sobre Les maîtres fous:

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Todo o filme é acompanhado por comentários de Jean Rouch, que

procura explicar o ritual apontando para a racionalidade que é

própria dos Hauka, mostrando como eles representam e satirizam as

autoridades coloniais. A narrativa de Rouch parece ser ignorada

pelos espectadores, que se detêm nas imagens de possessão de

homens babando, de rostos desfigurados, corpos em contorção, e de

um cachorro sendo sacrificado e comido. Marco Antonio Gonçalves

aponta para o fato de Rouch "criar uma tensão proposital entre as

imagens inexplicáveis enquanto simples imagens para uma platéia

que desconhece o ritual e um texto, que assume uma narração que

torna o ritual algo racional" (CAIUBY NOVAES, 2008: 52-53)

Podemos identificar uma diferença entre o texto da narração e as imagens de

Iaô no plano da autoria do discurso se considerarmos que o comportamento técnico

dos personagens, isto é, o movimento dos corpos, gestos e posturas, captados pela

imagem animada são elementos de um processo comunicativo cujo emissor são os

membros do terreiro. Todo o filme é preenchido pela linguagem corporal e sonora dos

personagens. No sundidé5, na saída das iaôs, por exemplo, não há interferência do

narrador, mas somente os sons entoados e tocados pelos membros do terreiro e o

movimento corporal das iaôs que, dominando o enquadramento, manifestam a

identidade de seus orixás através de movimentos de dança específicos. Nesta

sequência em especial, os corpos e a música tomam o discurso para si, descartando a

necessidade do texto para "falar" sobre o ritual. Com base nessa análise, podemos

apreender que o conhecimento revelado pelas técnicas corporais e rituais dos

membros do terreiro se difere do conhecimento acadêmico proferido pelo narrador.

Trata-se de um conhecimento que se constrói e se transmite através da própria prática

ritualística do Candomblé que foi captada pela câmera.

Por outro lado, o tom científico da narração, baseada na tese acadêmica de

Juana Elbein dos Santos, acentua a distância entre o realizador e o objeto do filme e

pode encontrar parentesco com as produções de Geraldo Sarno na década de sessenta,

5 Sundidé é a cerimônia de culminância da iniciação e também é chamada de Saída de Iaô, Dia do Nome, Dia do Oruncó ou Nome do Santo. Trata-se de uma festa pública, em que as iaôs, possuídas e vestidas em trajes litúrgicos e com os corpos pintados, anunciam, para a comunidade do terreiro e convidados, o nome do orixá que as possui.

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realizadas como parte do conjunto de filmes da Caravana Farkas. Nesses filmes, os

cineastas partiam de um saber sociológico sobre determinada realidade e colhiam

imagens e depoimentos que corroboravam esse saber previamente apreendido. A

narração com “voz de Deus” era acompanhada frequentemente de entrevistas de

personagens que serviam como uma amostragem da teoria social que se queria

ratificar.

Entretanto, em Iaô, o modelo sociológico sustentado pela narração entra em

choque com a proximidade criada entre o diretor e o objeto do filme e por sua

intervenção nas imagens, através da participação da equipe de filmagem em duas

sequências. Em uma delas, o diretor é filmado sofrendo uma limpeza espiritual, com a

seguinte explicação do narrador:

"Encerrados os ritos preliminares e preparatórios, o membro da equipe

que acompanhará os trabalhos de iniciação no interior do roncó faz a

limpeza de corpo com o ebó para exú" (narrador em Iaô)

Não sabemos que se trata do próprio cineasta, a menos que o conheçamos

pessoalmente, pois ele não se identifica. Sua participação não é destacada, nesta ou na

sequência em que aparece novamente, oferecendo um presente ao orixá que preside a

iniciação, pleiteando a sua aceitação. Nesta cena, o narrador intervém da seguinte

forma:

"Para mobilizar seu axé individual e assim poder acompanhar os ritos

finais de iniciação, um membro da equipe oferece a Oxalá, o orixá que

preside à criação, o ebô, milho branco cozido" (narrador em Iaô)

Por uma característica própria do Candomblé e do ritual em curso, foi

determinante para a realização das filmagens que o diretor saísse do papel de

observador passivo e participasse diretamente do ritual. O ritual aconteceria com ou

sem a presença da equipe de filmagem, mas, para que o olhar da câmera e do diretor

penetrasse no espaço do sagrado, foi preciso um acordo espiritual com as entidades

que presidem a cerimônia.

Para Jean Claude Bernardet (1985), essas duas sequências expõem o

envolvimento pessoal do cineasta no processo de filmagem e sua relação de amizade

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com os membros do terreiro filmado, que rompe com o distanciamento inicialmente

pretendido, mas não com o modelo descritivo de caráter sociológico:

"A ablação dessas duas sequências alteraria com certeza o filme, pois

eliminaria uma dimensão da relação entre o cineasta, a comunidade e o

processo religioso. No entanto, sem elas, tenho a impressão de que o

filme permaneceria coerente. Não me parece que elas tenham marcado

a linguagem e a construção dramática do filme. A filmagem revela

atenção e carinho para com as pessoas e sua vivência religiosa; isso é

indiscutível, mas nem por isso a atitude indicada nas duas sequências

em questão alterou substancialmente uma descrição de tipo sociológico

ou antropológico." (BERNARDET, 1985: 176)

As imagens do diretor submetendo-se aos rituais e o tratamento que dá ao

Candomblé expressam uma identificação entre Sarno e a comunidade do terreiro que

também pode ser percebida quando o diretor, ao entrevistar a mãe-de-santo, refere-se

ao orixá como uma entidade real, demonstrando, se não crença na sua existência, ao

menos respeito na fé de sua interlocutora. Diferente do filme Viramundo, realizado

por Sarno em 1965 e no qual a religião é apresentada como alienação e fuga catártica

de um povo sem consciência social, em Iaô Geraldo Sarno mostra uma visão positiva

do Candomblé, apresentado-o como uma forma de organização social e de resistência

dos negros contra a classe dominante. O transe, que em Viramundo é tratado como

uma "manifestação de alienação e de desespero histérico de indivíduos sem saída",

como nos afirma Jean Claude Bernardet (1985: 33), em Iaô assume outro sentido,

como mostra esse trecho da narração:

"O transe exprime aqui e agora a existência de um sistema religioso,

com seus deuses e mitos, de um sistema de conhecimento, de uma

doutrina". (narrador em Iaô)

Para Geraldo Sarno, a religião teria duas faces: uma como válvula de escape aos

problemas sociais e outra como resistência cultural. À comparação feita entre Iaô e

Viramundo, Sarno responde:

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“Alguns querem ver entre Iaô e Viramundo o lento e amadurecido

percurso do documentarista – de um filme agressivamente ideológico a

outro que cede vez à compreensão de manifestações onde, a rigor, não

se espera encontrar firmes posturas ideológicas. Nada mais falso. O

projeto que deu depois em Iaô existia desde 1965 – e desde então

destinado a ser contrapartida de Viramundo na documentação das

religiões afro-brasileiras que, como todos os fenômenos humanos, não

representam um único e exclusivo papel na vida das sociedades”.

(Depoimento de Geraldo Sarno para o Festival “É Tudo Verdade” de

2001)

Mesmo com a parceria estabelecida entre Sarno e os membros do terreiro e a

submissão do diretor ao limites impostos por esses membros – perceptível no filme,

por exemplo, na cena em que a câmera segue as iaôs até a entrada do roncó e a mãe-

de-santo faz um sinal para a câmera parar –, ainda assim, o filme é passível de gerar

protestos de religiosos de outros terreiros, que podem sentir-se violados e não

incluídos nesse acordo. Isso é possível porque o filme generaliza o ritual filmado e

permite a identificação de membros de outros terreiros de Candomblé com as imagens

exibidas. Não há, em Iaô, a contextualização de onde acontecem as filmagens e nem

identificação dos personagens, o que generaliza as práticas registradas e transforma o

ritual filmado em um modelo de ritual que pode ser atribuído aos demais terreiros.

Apesar de dominarem o enquadramento e as cenas, as abians em momento algum são

identificadas (o narrador apenas refere-se a elas com o título que recebem no ritual de

iniciação, como dofona e dofonitinha) e mesmo a mãe-de-santo só tem seu nome

mencionado ao ser interpelada por Sarno na entrevista. Essa generalização é

endossada pelo comentário, fundamentado em uma tese cujo objeto foi o Candomblé.

As críticas de seguidores de outros terreiros estaria justificada, então, por estarem

representados no filme, mesmo sem terem sido consultados sobre as filmagens.

Segundo João Carlos Rodrigues (2001), o filme foi criticado por antropólogos

ligados ao Candomblé como a própria Juana Elbein dos Santos, assim como Pierre

Verger, que questionou, inclusive, a seriedade do terreiro ao permitir as filmagens. A

principal crítica feita por Juana Elbein dos Santos diz respeito ao registro audiovisual

do sagrado. Para a antropóloga, o sagrado não pode ser filmado, ele só é apreendido

através da experiência vivenciada e não pode ser devassado, caso contrário

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transforma-se em espetáculo e deixa de ser sagrado. Segundo Juana Elbein dos

Santos, o sagrado não pode ser realizado no ritual se for presenciado por um olhar

profano o que colocaria em cheque a validade da iniciação das iaôs filmadas.

Por outro lado, segundo estudos realizados pela pesquisadora Lisa Earl

Castillo (2005), as críticas ao filme Iaô feitas por pessoas ligadas ao universo da

antropologia, como Verger e Santos podem ter sua origem nas relações estabelecidas

entre antropólogos e terreiros de Candomblé da Bahia, especialmente de Salvador,

que implicou na exaltação de práticas tidas como "puras", mais próximas daquelas

encontradas na África, e na marginalização de práticas rotuladas como "impuras",

como aquelas que promoviam o sincretismo religioso e distanciavam-se dos modelos

africanos.

Lisa Earl Castillo retoma a oposição conceitual entre "pureza" e "deturpação"

e apresenta a análise feita por Beatriz Dantas no livro Vovô Nagô e Papai Branco:

Usos e Abusos da África no Brasil, que aponta para o papel ideológico da

Antropologia na construção do discurso sobre o Candomblé e a influência da

etnografia na re-africanização de terreiros de Candomblé de Salvador. Castillo nos

revela que há uma diferença em como terreiros de regiões, por exemplo, do Sudeste

brasileiro, se relacionam com materiais etnográficos produzidos sobre o Candomblé,

considerando-os valiosas fontes de estudo para os rituais, em oposição aos terreiros

baianos, que, apesar de valerem-se desses estudos para alcançar certo status social,

não demonstram interesse nesses materiais para as práticas religiosas. O registro

fílmico seria considerado, por membros de terreiros mais tradicionais, portanto, não

uma metodologia de pesquisa, mas uma deturpação da prática de apreensão do

conhecimento religioso.

4. Conclusão

Em Iaô, Geraldo Sarno tematiza a cultura dos brasileiros afro-descendentes

através do ritual de iniciação de iaôs, identificando nos símbolos do Candomblé o

ethos dos negros brasileiros, assim como nos propõe Geertz acerca dos símbolos

sagrados:

"Os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um

povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, o seu estilo e

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disposições morais e estéticas – e a sua visão de mundo – o quadro

que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas

ideias mais abrangentes sobre ordem." (GEERTZ, 1989: 103-104)

Os elementos narrativos do filme – a voz em off, as imagens, os sons –

parecem originar-se de sujeitos diferentes, embora pertencentes à mesma comunidade:

a do Candomblé. Enquanto a comunidade do terreiro Ilê Axé Ató Ilé se expressa, na

maior parte do filme, visualmente e através da trilha sonora, o comentário pertence a

Sarno, mas, principalmente, a Juana Elbein dos Santos, uma antropóloga inserida no

Candomblé. A descrição feita pelo comentário do narrador em Iaô explica as imagens

segundo o ponto de vista do livro de Santos, construindo uma relação do comentário

com a antropologia escrita. Além disso, ele ressalta o valor social dos rituais do

candomblé, o que pode influenciar na forma como o espectador se relaciona com as

imagens e diminuir o exotismo que estas imagens possuem. A relação entre o filme e

a tese de Juana Elbein dos Santos, entretanto, parece conflituosa. De certa forma, o

filme trai a tese por ir de encontro ao que ela defende acerca da apreensão do sagrado,

que, segundo a autora, só pode ser experimentado se vivido.

Quando se trata de imagens de uma manifestação religiosa baseada em forte

simbologia atribuída a ritos e materiais, como o Candomblé, a diversidade de leitura

das imagens fílmicas é potencializada, o que faz do registro visual um dos motivos de

contestação por parte dos seus seguidores. A resistência ao registro no Candomblé,

entretanto, se dá também ao texto escrito e provém de uma noção tradicional de que o

conhecimento só pode ser apreendido através da experiência vivida e de que o

registro, sobretudo visual, transgride o espaço de circulação de um conhecimento que

é identificado como "segredo". Dessa forma, assim como as imagens são susceptíveis

a diferentes interpretações, a maneira como o filme Iaô é recebido entre pessoas

ligadas ao Candomblé, pode variar a depender da visão do espectador sobre o registro

audiovisual dentro da tradição do Candomblé.

Se, para certos membros do Candomblé, o filme, além de controverso, pode

ser considerado um rompimento na tradição da prática ritualística e manutenção da

religião, para os estudos etnográficos, entretanto, Iaô constitui uma importante fonte

de pesquisa. A utilização de som direto enriquece ainda mais o registro etnográfico,

com a captação das falas dos personagens, dos cânticos entoados pela mãe-de-santo

no roncó, os toques dos tambores que chamam os orixás e embalam as danças, entre

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outros sons e músicas, que são carregados de simbologia e estão associados às

tradições próprias de cada nação de candomblé. Nesse filme, por exemplo, podemos

identificar que o terreiro filmado pertence à nação jeje sem que esta informação seja

dada pelo narrador, mas, pelas expressões linguísticas usadas pela mãe-de-santo,

próprias desse grupo étnico.

Podemos concluir que, pelo uso do comentário fundamentado em um estudo

etnográfico e a expressão dos personagens através de sons, danças e ritos, além da

presença do diretor em algumas cenas, o diretor Geraldo Sarno, no filme Iaô, permite

o diálogo entre dois agentes discursivos que se expressam sobre o Candomblé: uma

fala fundamentada no conhecimento acadêmico e a dos personagens, baseada na

experiência vivenciada.

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