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Autor: Juan antonio martínez camino Tradutores: Padre Salvador M. Calderón, LC Marita Guenther Editora: Centro Bíblico Católico 113 páginas
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1
Juan Antonio Martínez Camino
JESUS DE NAZARÉ
A Verdade da sua História
(Ad usum privatum)
Tradutores:
Pe.Salvador M.Calderón L.C.
Marita Guenther
Editora: Centro Bíblico Católico
2
SUMÁRIO
Introdução
CONHECENDO JESUS
I
COMO CONHECEMOS JESUS DE NAZARÉ?.................................................... 6
1. Os testemunhos: Jesus e a Igreja...................................................................... 6
2. Os escritos: Jesus e o Novo Testamento............................................................14
3. A história: Jesus e os historiadores....................................................................25
II
O QUE CONHECEMOS DA VERDADEIRA HISTÓRIA DE
JESUS DE NAZARÉ?................................................................................................29
4. O Final: paixão e ressurreição............................................................................30
5. O começo: nascimento e família........................................................................44
6. A luz: batismo, tentação e transfiguração..........................................................58
7. Os atos: milagres e chamado..............................................................................71
8. As pregações: a felicidade da salvação de Deus................................................89
a) Como Jesus falava?...............................................................................................90
b) O que Jesus dizia?.................................................................................................94
Bibliografia...................................................................................................................103
Índice Geral das 153 perguntas....................................................................................105
3
Introdução
CONHECENDO JESUS
Contamos os anos a partir do nascimento de Jesus de Nazaré. Porém nem sequer isto
todo mundo sabe; nem mesmo todos os cristãos. Há algum tempo, em uma conversa
com jovens que se preparavam para receber o sacramento da Confirmação, falávamos
sobre Jesus Cristo. Começando pelo mais elementar, perguntei quando Jesus havia
nascido. Minha surpresa foi grande ao comprovar que as opiniões se dividiam. Havia-as
para todos os gostos. Porém curiosamente nenhuma das quatorze pessoas presentes
pode dar sequer uma resposta aproximada sobre o tempo transcorrido desde que Jesus
veio ao mundo.
Que sabemos sobre Jesus de Nazaré? Ele é, sem dúvida alguma, o personagem sobre o
qual mais tem sido escrito. Os livros que tratam a respeito dele podem preencher uma
grande biblioteca. Contam-se em dezenas de milhares. Entretanto, há muita gente que
não tem uma idéia precisa sobre Jesus. São muitos os cristãos que não estão bem
informados sobre aquele que é o início e o fim último de sua fé. Conformam-se com
uma crença mais ou menos negligente, recebida quase sem querer e mantida com
indiferença. Não se preocuparam em formar uma idéia definida da figura de Jesus. Sua
fé fica assim exposta ao capricho dos ventos da crítica e das opiniões infundadas, tão
veiculadas pela imprensa, televisão, cinema e novelas. Porém a fé cristã é amiga do
saber; necessita sobretudo conhecer o que é vital para ela. Nada lhe pode interessar mais
que Jesus de Nazaré.
Há muitos escritos sobre Jesus, porém, por onde começar? Alguns livros são muito
complicados ou críticos. Outros demasiado elementares ou crédulos. Vários dos mais
difundidos atualmente, simplesmente fruto da fantasia, benévola ou maliciosa,
novelesca ou pseudo-científica. Nestas páginas oferecemos uma informação sobre Jesus
fácil de ler, simples, porém suficientemente explicada e fundamentada. Fundamentada
em que? No método e nas fontes confiáveis para conhecer a verdade de sua história.
Somos crentes, não meros historiadores, supostamente imparciais. Alguns pensarão que
é uma desvantagem; que para escrever a história de Jesus de modo fidedigno seria
melhor ser neutro, isto é, em sua opinião, não crentes. Porém tanto o crente como o
descrente podem se comportar de modo parcial ou imparcial com os dados de que
dispõe. A questão é acertar o caminho que deve percorrer para encontrar o que se
procura, ser honesto e não falsear a realidade que os vários documentos descobrem
perante nossos olhos. Faremos todo o possível para apresentar a realidade com
objetividade. Não temos nenhum motivo para temer a verdade. O leitor poderá
comprová-lo por si mesmo.
Porém há mais, quem pode ser realmente neutro? Quem não tem já uma opinião ou uma
idéia a respeito de Jesus se começa a falar seriamente sobre ele? O importante será
acertar a perspectiva justa para chegar a compreender a verdade. Colocar-se em um
terreno de ninguém, é condenar-se de antemão a não entender a chave de sua
personalidade. Não podemos confiar em quem se apresenta como neutro perante Jesus
4
e, ao mesmo tempo, pretende revelar-nos o segredo de sua existência. Como terão se
deparado com este segredo se, de fato, se mantiveram distantes dele? Para compreender,
é necessário aproximar-se. E fazê-lo com honestidade, sem jamais abdicar da própria
razão. Porém é necessário aproximar-se. Principalmente quando se trata de compreender
uma pessoa.
Acercamo-nos de Jesus de Nazaré com imenso respeito e carinho. Cremos que o
respeito e o amor são, sem dúvida, muito melhor conselheiros que a calculada distância,
ou, conseqüentemente, o desdém. Acercamo-nos dele também, e sobretudo, com a fé
que Deus nos deu. Porque na sua pessoa encontramos o alicerce firme sobre o qual
apoiar nossa vida. Sua palavra renova diariamente em nós a esperança suprema. A
atualização de sua morte e vitória nos torna livres para não sucumbir ante nossa culpa e
para caminhar com alento renovado em direção à meta. Talvez não há aproximação
maior a uma pessoa que esta que a fé a respeito de Jesus nos proporciona: a de sua
presença misteriosa, porém real e viva, no sacramento do corpo e do sangue de Cristo
que constitui a Igreja. Haverá melhor maneira de conhecê-lo verdadeiramente?
Vivemos e viemos da fé em Jesus Cristo, porém o que escrevemos nestas páginas
poderá ser compreendido por todos. Pelo menos por todos os “neutros”. Inclusive os
adversários poderão tirar proveito da leitura desta história, que os fará esquecer seus
julgamentos negativos sobre Jesus, durante o tempo necessário para se permitir uma
pequena pausa de reflexão.
É importante conhecer verdadeiramente Jesus. Nenhum outro homem marcou a história
da Humanidade como ele. Nossa cultura ocidental se torna incompreensível sem algum
conhecimento de Jesus Cristo. Para ninguém é aconselhável viver de estereótipos e,
muito menos, de inverdades. Sobretudo quando se trata do único ser humano do qual foi
dito com seriedade por muitos, durante séculos, que nele está a chave de toda a
existência, posto que nele é o próprio Deus quem vive a história atormentada dos
homens fazendo parte dela. Por fidelidade a esta convicção e por amor a Jesus Cristo,
milhares, milhões de pessoas deram suas vidas. E muitas outras encontraram nela o
sentido de sua vida e de sua morte, de seus sofrimentos e de suas glórias.
Aqueles que acreditam que Deus se nos manifesta e nos salva em Jesus de Nazaré, não
duvidam de que hão de conhecê-lo o melhor possível. Escrevemos sobretudo para eles,
para facilitar-lhes um conhecimento accessível de Jesus Cristo. Trata-se de comprovar
primeiro que Jesus de Nazaré é um personagem histórico, não uma invenção de alguém.
E, segundo, que este personagem viveu e morreu de tal maneira, que é razoável crer
nele como o Filho de Deus, como a encarnação do próprio Deus na história humana.
Apresentando de outra maneira, trata-se de mostrar como a verdade da história de Jesus
de Nazaré é que Deus se manifestou nele como o mistério do Amor redentor, do qual
procedemos e para o qual nos encaminhamos.
Começaremos pois, explicando o caminho que seguimos e em que nos baseamos para
afirmar que Jesus é um personagem de nossa história e para conhecê-lo
verdadeiramente: Como conhecemos Jesus de Nazaré? A seguir descreveremos os
traços mais sobressalentes de sua vida, procurando nela o que nos conduz a seu segredo
mais profundo: Que conhecemos da história verdadeira de Jesus de Nazaré? É uma
ordem lógica, porém quem se acerca destas páginas pode começar a ler por onde lhe
pareça mais interessante.
5
Estas duas grandes questões serão desmembradas por nós em muitas outras perguntas
menores. Esperamos assim, amigo leitor, responder tuas interrogações sobre Jesus. Ao
menos as mais básicas. Porque, sem dúvida, acabarás por fazer tu mesmo a ele a
pergunta de tua vida; e será dele e de seu santo Espírito que receberás a resposta
completa.
6
I
COMO CONHECEMOS JESUS DE NAZARÉ?
1. OS TESTEMUNHOS: JESUS E A IGREJA
1. “Creio em Jesus, porém não na Igreja?”
É bastante difundida a idéia de que quem queira conhecer Jesus de Nazaré terá que
esquecer o que a Igreja, durante muitos séculos, vem dizendo sobre ele. Desconfia-se da
visão que a Igreja fornece de Jesus. Pensa-se que não corresponde à verdade do que
Jesus foi na realidade. Suspeita-se ou afirma-se que os ensinamentos eclesiásticos sobre
ele são invenções mais ou menos brilhantes, porém, em todo caso, falsas, que nos
impedem de nos acercarmos da verdadeira figura de Jesus.
Em contrapartida, supõe-se que Jesus foi um personagem grande e fascinante. Supõe-se
que ele foi e quis algo muito diverso do que a Igreja depois fez de sua figura. E seria
hora de encontrar novamente o verdadeiro Jesus: o Jesus de carne e osso; o Jesus de
coração grande; o Jesus que revelou aos homens horizontes de humanidade e
solidariedade inimagináveis. São muitos os livros sobre Jesus que prometem dar a seus
leitores o que a Igreja lhes oculta sobre ele. Há um desejo de conhecer seu verdadeiro
segredo. E também há quem sabe aproveitar-se deste nobre desejo.
Pois bem, separar Jesus de sua Igreja é um fenômeno novo que tem suas razões de ser
históricas, porém que impede o acesso à verdade da história de Jesus. É um ponto de
partida atualmente muito difundido. Entretanto não é difícil dar-se conta de que não
fornece o que promete.
2. Livres da tutela e guia da Igreja para conhecer Jesus?
É pensado que os avanços das ciências históricas, da arqueologia, da história das
religiões, etc., já nos permitem conhecer o verdadeiro Jesus sem necessidade de
depender para isto da Igreja. Neste campo como em muitos outros, podemos e devemos
ser modernos. Moderno é ser livre para usar a própria razão. A liberdade permitiu o
desenvolvimento das ciências. Elas nos trouxeram o progresso em todos os setores da
vida. As ciências naturais, resultado da livre investigação do mundo, nos possibilitam,
por exemplo, prever o tempo, alongar a vida, nos comunicarmos sem restrições e ser,
portanto, mais donos de nossa própria existência.
A mesma coisa teria ocorrido com as ciências do espírito. Antes dependíamos de certas
autoridades para conhecer nossa história ou para pensar e projetar nosso futuro. Era-nos
dado já traçado. Não tínhamos acesso às fontes do conhecimento e da reflexão. Alguns
detentores de poder, entre eles os eclesiásticos, haviam-se convertido em
administradores, interessados, da história, da filosofia e da teologia. Ao contrário, hoje,
desfrutamos de liberdade de investigação também neste campo. Portanto, poderíamos
conhecer Jesus de Nazaré prescindindo dos intermediários eclesiásticos, que haviam
esboçado um Jesus à medida de seus interesses ou, na melhor das hipóteses, de suas
falsas ilusões.
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3. Quando se começou a pensar em um Jesus sem Igreja?
Colocar Jesus em contraposição com sua Igreja é algo relativamente recente. Sempre
houve maneiras diversas de entender a fascinante figura de Jesus de Nazaré. A esse
respeito não há nada de novo. As heresias, por exemplo, era um dos modos parciais ou
fragmentários de compreendê-lo e ressaltavam algum aspecto de sua pessoa. Porém nem
mesmo elas se consideravam um meio de prescindir por completo da Igreja para
entender Jesus. De igual maneira as diversas escolas ortodoxas de interpretação de sua
figura eram e são visões diferentes entre elas, porém sempre coerentes com a vida e
ensinamento da Igreja.
Foi a partir do século XVIII que teve início a suspeita sistemática de que a Igreja fosse
um meio adequado para conhecer Jesus. É a época chamada do Iluminismo ou “das
luzes”. Então começou a ser difundida entre as pessoas a idéia de que a razão é a única
luz capaz de iluminar o caminho do homem no mundo. A razão entendida, infelizmente,
apenas como o exercício independente das próprias faculdades do homem,
compreendido como indivíduo pensante, capaz de se orientar por seu próprio
entendimento, sem dependência de nada e de ninguém.
4. Eram ateus os que assim pensavam?
Não. Os iluminados eram antes teistas. Isto é, eram pessoas que não podiam imaginar o
mundo sem uma referência “ao divino”. Porém este divino, conforme pensavam, não
podia ser de modo algum semelhante ao humano. Deus, para ser Deus, conforme o
teismo, não pode absolutamente estar submetido ao histórico, não pode mudar, nem
sofrer, nem querer. O Deus do teismo está acima de tudo isto, que seria indigno da
razão. Esta, quando pensa em Deus, o pensa somente – conforme os iluminados - como
sendo impassível e supratemporal; como um ser acima do mundo que não intervém
absolutamente nele e, menos ainda, poderia ou teria que se fazer ele próprio parte do
mundo. Deu-lhe a existência e, a seguir, deixa-o simplesmente ser e evoluir por si
próprio. É um bom relojoeiro que não precisa dar corda continuamente ao mecanismo
que construiu. O Grande Relojoeiro, o Grande Arquiteto, não precisa macular as mãos
com sua máquina. Para isto criou-a perfeita, sem qualquer defeito.
5. Eram cristãos os que começaram a separar Jesus da Igreja?
Sim. Eram cristãos de um modo peculiar; a maioria deles, protestantes. Uma espécie de
protestantes chamados liberais, exatamente porque começaram a tomar também a
liberdade de questionar o Credo da Igreja e precisamente no que se refere a Jesus Cristo.
O protestantismo havia surgido, no século XVI, como um movimento de reforma da
Igreja que pretendia livrá-la dos defeitos que então tinha, para devolvê-la a uma vida
conforme o Evangelho. As coisas se complicaram e o que havia começado como
reforma terminou, logo, em cisão e, portanto, em oposição ao que a Igreja é e deve ser.
A princípio não foi tocada a figura de Jesus Cristo; unanimemente reconhecido como o
Filho único de Deus, encarnado para a salvação dos homens. O que estava em questão
era apenas a compreensão e organização de Igreja. Porém a história mostrou que certos
princípios protestantes iriam conduzir também a questionar a visão eclesial de Jesus
Cristo, como aconteceu a partir do século XVIII.
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6. Que princípios protestantes estão na base do confronto moderno entre Jesus
e a Igreja?
Antes de tudo o chamado princípio “só a Escritura”. O protestantismo clássico insiste
que só Cristo é o Senhor; só ele é o Salvador. Toda outra autoridade deve estar
submetida a ele, também a autoridade da Igreja. É um princípio que sublinha
acertadamente o que constitui a essência da revelação cristã. Porém daí não se segue,
como pretende a doutrina protestante, que a única autoridade que nos fala legitimamente
de Cristo na Igreja seja a Sagrada Escritura, isto é, a Bíblia e apenas ela. Curiosamente,
por este caminho não apenas se terminou colocando em contradição que Jesus Cristo
seja o único Senhor, como também os títulos em virtude dos quais Jesus é professado
pela Igreja, com toda razão, como tal.
7. Porém não é verdade que a Bíblia é a fonte principal do conhecimento de
Jesus Cristo? Como pode, então, converter-se em um obstáculo para compreender
verdadeiramente sua história?
O problema não foi a Bíblia, senão a maneira equivocada como foi empregada. A
Bíblia é o testemunho escrito mais autorizado do acontecimento de Jesus Cristo. Porém,
como qualquer texto escrito, ela se presta a diversas interpretações. Quem queira
compreendê-la bem, terá que lê-la no espírito e no contexto em que foi escrita. Do
contrário poder-se-á fazê-la dizer coisas muito diferentes e inclusive contraditórias entre
si. Pois bem, a matriz espiritual do que a Bíblia nos diz sobre Jesus Cristo há que buscá-
la na Igreja. Foram aquelas testemunhas autorizadas e enviadas pelo próprio Jesus, e
seus sucessores e discípulos, que constituíram a Igreja, as que escreveram, transmitiram
e interpretaram o que aconteceu com Jesus. Voltaremos a falar disto.
Aqueles que propuseram o princípio de “só a Escritura” esqueceram isto. Deixaram de
lado o fato de que a Escritura só fala corretamente de Jesus Cristo quando vem unida à
Tradição eclesial, isto é, ao meio ambiente próprio de sua origem e de seu sentido. Esta
grave lacuna do protestantismo tornou-se algo bastante trágico para a história do
cristianismo, pois se constituiu em um dos pontos fracos melhor aproveitados para o
ataque dos iluministas e de seus epígonos a Jesus Cristo e à sua Igreja. Isto é: o
biblicismo protestante converteu-se em um inesperado aliado do positivismo
materialista no interior da Igreja.
8. Como foi aproveitado o positivismo moderno do biblicismo?
Os protestantes acreditaram fazer da Bíblia um baluarte contra o abuso da autoridade na
Igreja. É verdade que a Sagrada Escritura é para todos, inclusive os Pastores do Povo de
Deus, critério imprescindível ao qual devem submeter seus julgamentos e suas
condutas. Nada na Igreja pode estar legitimamente contra a Palavra de Deus escrita.
Pois bem, a Escritura não é uma espécie de “poder contrário” plantado na Igreja contra
os enviados pelo Senhor, isto é, contra a autoridade apostólica.
O protestantismo, por outro lado, quis ver na Bíblia uma letra sempre “clara” contra as
condutas freqüentemente obscuras da Igreja. Lutero falava da “clareza da Escritura”
supondo que sua interpretação ficava sempre a salvo de qualquer disputa possível; ela é
–dizia- “a intérprete de si mesma”. Por trás deste modo de pensar estava a idéia de que o
próprio Deus seria o autor imediato de cada uma das palavras da Bíblia, já que ele as
9
havia inspirado uma por uma a seus autores humanos. É a chamada teoria da
“inspiração verbal”. Também compartilhavam dela alguns católicos, porém estes não a
separavam da idéia da Tradição.
Chegou um momento em que a teoria da inspiração verbal entrou em crise. Foi
precisamente na época do Iluminismo, quando começaram a ser estudados em mais
detalhe os textos bíblicos e foram constatadas divergências que pareciam tornar
impossível atribuir a autoria imediata de todos os textos ao próprio Deus. Em que
apoiar-se então para continuar asseverando que a Escritura é “clara” no sentido aludido,
isto é, fonte única na Igreja de conhecimento seguro sobre Jesus Cristo e sobre sua obra
de salvação? Muitos protestantes não viram alternativa à “inspiração verbal” e
mantiveram essa teoria dando origem, com freqüência, a formas de fundamentalismo
biblicista Porém muitos outros acreditaram encontrar nos métodos de investigação
histórica, que então começavam a ser utilizados com rigor, o instrumento providencial
para compreender o que a Bíblia queria dizer com clareza, para além das aparentes ou
reais divergências e dos diversos gêneros literários presentes nela.
Agora vejamos, os métodos históricos vinham, por seu lado, inspirados pelo positivismo
materialista. Teria sido necessário livrá-los deste lastro para poder ser bem empregados
em teologia. Porque o positivismo exclui por princípio tudo aquilo que não seja
controlável pelos métodos das ciências empíricas, isto é, tudo aquilo que não seja
susceptível de medida e quantificação. Como empregar, então, estes métodos para
comprovar que Jesus é o Filho de Deus, conforme a Tradição da Igreja? Muitos
buscaram soluções mais ou menos voluntaristas (ou fideistas). Porém, para salvar a
autonomia da Bíblia como instância única de sentido na Igreja, não poucos protestantes
pareciam estar dispostos a prescindir de tal visão de Jesus como o Filho de Deus. Assim
o biblicismo se converteu em um aliado mais ou menos involuntário do positivismo
materialista.
9. Porém o problema fundamental foi o materialismo moderno, não é mesmo?
Não há dúvida de que o problema básico para entender bem a história de Jesus foi e é
hoje para muitas pessoas o materialismo que impregna, de certo modo, por todos os
lados nossa cultura ocidental. Quem afirma que só é real o mensurável e o regulado
pelas leis da natureza, convertidas em autoridade absoluta do que pode ser e do que não
pode ser, terá enormes dificuldades para entender algo tão básico na história de Jesus
como são seus milagres ou sua própria ressurreição. Dirá que essas coisas não são
históricas porque simplesmente não podem ocorrer: nem então nem agora; ou melhor:
não ocorreram então porque não podem ocorrer agora. Tratar-se-ia de fatos declarados
impossíveis “cientificamente”. Partindo desta perspectiva será impossível ou muito
difícil compreender a verdade sobre a história de Jesus de Nazaré.
Contudo, se procuramos as razões que explicam ser esta mentalidade hoje tão difundida
e se torne para muitos uma espécie de muro intransponível no momento de conhecer
Jesus, devemos retornar novamente aos motivos intraeclesiais profundos da
contraposição entre Jesus e a Igreja. Esta contraposição surgida no interior do
cristianismo não apenas tornou possível a mencionada aliança entre biblicismo e
materialismo, como também agiu como caldo de cultura de uma mentalidade positivista
à qual não se torna nada fácil abrir-se à realidade em toda sua riqueza.
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10. De modo que é tão importante não separar Jesus de seus testemunhos?
Sem sombra de dúvida: separar Jesus de seus testemunhos significa acabar perdendo o
Jesus real e verdadeiramente interessante para nós. Demonstrou-o a história de muitas
tentativas deste tipo. A imagem de Jesus que se pode obter pelo mero estudo e análise
de textos, embora sejam os textos sagrados da Bíblia, resulta pobre; com freqüência, um
reflexo das idéias e desejos do pesquisador, em lugar de um retrato fiel do original. É
um perigo que espreita a investigação de qualquer personagem histórico. Porém no caso
de Jesus não será apenas um perigo, senão um fato quase inevitável. Porque Jesus é uma
figura absolutamente singular. Em sua pessoa cruzam-se os caminhos do Céu e da terra,
de Deus e do homem, do Infinito e do limitado, do Poder criador e da debilidade do
escravo. Que método histórico ou científico poderá servir-nos para conhecer o que se
passa realmente em uma pessoa como esta, se realmente é assim? Certamente não
poderá servir nenhum método que não seja capaz de abrir-nos o caminho para todas
essas realidades tão diversas. Os textos bíblicos refletem, é certo, toda esta riqueza e
complexidade. Porém nem sequer eles são suficientes para expressá-la por si sós em
toda sua profundidade. Tão único é aquilo que testemunham! Os textos devem ser
amparados e iluminados pelo próprio acontecimento de que falam. Caso contrário,
ficarão resumidos, como acontece aos leitores do Evangelho bem intencionados, porém
solitários, que não os lêem à luz do lar eclesial; ou sofrerão o maltrato de métodos que,
em última análise, não alcançarão mais que fazê-los dizer o que em realidade os textos
não querem dizer, como sucedeu quase sempre que a crítica histórica moderna os
apartou do ambiente vital próprio deles.
11. Que contribui o testemunho da Igreja para o conhecimento de Jesus?
O testemunho eclesial permite dar unidade aos elementos, tão diversos, que configuram
a pessoa de Jesus. Isto é, permite captar a singularidade de sua figura e evita que seja
interpretada parcialmente, de um modo redutivo. A singularidade de Jesus está nos
textos, porém é necessário captá-la. Trata-se, em definitivo, da unidade concreta
conformada em Jesus Cristo por sua história humana e sua transcendência divina; uma
unidade que constitui sua pessoa. É a unidade que testemunha sempre a Tradição da
Igreja.
A Igreja existe na história como uma comunidade de comunicação em várias direções.
Nela encontram-se em diálogo os que conviveram com Jesus e foram testemunhas de
sua ressurreição com aqueles que hoje abrimos as páginas do Evangelho em um meio
secular adverso a toda linguagem sobre Deus. Porém nela encontram-se também em
comunicação os cristãos de uma mesma geração, entre eles e com os homens de seu
tempo. Nela encontra-se, em fim, em comunicação com todas as gerações o próprio
Jesus Cristo por meio de seu Espírito. A Igreja contribui pois para o conhecimento de
Jesus por meio de comunicações ou testemunhos vitais de ordem histórica,
antropológica e teológica. Tudo isto está implícito no que se chama a Tradição eclesial.
12. Que se entende por testemunho histórico da Igreja para o conhecimento de
Jesus?
A Igreja é uma comunidade que se estende no tempo abarcando mais de vinte séculos.
Jesus de Nazaré continua hoje vivo por meio dela. Por isto ele não é simplesmente uma
figura da história como o são, por exemplo, Alexandre Magno ou Napoleão. Estes
11
deixaram, certamente, a lembrança de seus feitos. Porém passaram à história. Nenhuma
comunidade humana de hoje se remete a eles como sua razão de ser atual e futura.
Nenhum ser humano encontra neles o sentido de sua existência. A Igreja, ao contrário,
proclama que a única razão de ser de sua existência é comunicar Jesus Cristo aos
homens de cada geração, também aos de hoje. Os membros da Igreja, por seu lado, são
exatamente aqueles que foram atingidos por ele no mais íntimo de suas vidas.
Nada estranho, pois, que não seja possível conhecer a peculiaridade do próprio Jesus,
sem conhecer este fenômeno, também único na história, como o próprio Jesus, que é sua
Igreja. De fato, qual é a fonte principal do interesse que hoje, como sempre, se
manifesta por Jesus? Podemos imaginar o que teria sido da memória deste judeu
crucificado no século I, se a Igreja não a tivesse perpetuado ao longo do tempo? A
quem, senão a ela devemos a presença de Jesus em nossa história e em nossa vida?
Inclusive quem adere mais ou menos ao slogan de “Jesus, sim; Igreja, não” terá que
reconhecer que o interesse vivo por Jesus Cristo em nossos dias não se deve tanto às
bibliotecas e aos historiadores que estudam o chamado “Jesus histórico”, quanto às
comunidades que celebram os sacramentos de Jesus e àqueles que, em seu seio, fizeram
de suas vidas um prolongamento íntimo da vida de Jesus Cristo.
Agora vejamos, neste lar da memória viva de Jesus, que é sua Igreja, não apenas se
manteve vivo o interesse por sua figura, conservam-se também numerosas chaves de
interpretação de sua pessoa que não se encontram em nenhum outro lugar. Pensamos
tanto em detalhes particulares de seu perfil biográfico, como na interpretação global de
sua figura. Por exemplo, a pergunta pela família de Jesus (como foi sua Mãe, quem
foram seus “irmãos”, etc.) ou a questão do sentido de sua morte na cruz (destino fatal ou
redenção querida por Deus) não trarão solução certa mais que à luz das notícias
conservadas na memória viva da comunidade eclesial.
A Igreja, pois, desperta e mantém o interesse pela figura histórica de Jesus e, além do
mais, oferece chaves fundamentais para entendê-la.
13. E que entendemos através do testemunho antropológico eclesial para o
conhecimento da verdade sobre a história de Jesus?
A Igreja não apenas apresenta Jesus às diversas gerações como uma figura histórica
com presença viva, como também, inversamente, apresenta, por assim dizer, aos
homens e mulheres de cada época o Jesus Cristo que vive nela. Com isto queremos
dizer algo muito simples.
Se desejamos conhecer alguém temos que nos apresentar, ou nos hão de apresentar a
ele. Se nunca se nos oferece esta oportunidade e nos mantemos à distância, não
poderemos chegar a conhecer alguém desconhecido. Para tanto temos que dispor de
condições adequadas de aproximação.
Não nos será possível conhecer a verdade sobre Jesus se nos faltam as condições
adequadas para tanto. Devemos estar preparados para o encontro com ele. É certo que,
se nos aproximássemos dele com uma mentalidade que repele o que é religioso, e ainda,
saturados de materialismo ou de puro ceticismo sobre a verdade acerca do homem,
dificilmente poderíamos construir uma idéia correta de Jesus.
12
A Igreja é uma comunidade de comunicação em que o ser humano se sente
continuamente interpelado a respeito de sua verdadeira condição humana, o que
equivale dizer, sobre a intensidade de sua esperança. Quem participa do diálogo que se
estabelece entre os membros da Igreja, e entre estes e aqueles que se põem em contacto
com ela, não poderá dar tranqüilamente soluções meramente intra-mundanas a suas
aspirações e desejos. Porque na Igreja fala-se da dimensão eterna da existência humana,
da profunda orientação para o Infinito, para Deus, dos anseios mais arraigados no
coração do homem. Nela se desmascara o engano que supõe a instalação perfeita no
bem-estar material ou a abdicação pretensamente “moderada” da pergunta por Deus.
Deste modo a Igreja dá testemunho do dinamismo mais profundo do ser humano, de sua
insaciável sede religiosa, e assim torna possível a compreensão de Jesus em sua
realidade de máxima abertura do homem ao mistério insondável e atraente de Deus e,
por sua vez, de medida daquela máxima aproximação de Deus ao ser humano desde que
este é atraído ao divino de maneira insuperavelmente íntima a seu ser, ao mesmo tempo
que externa a ele.
Aí está o trabalho antropológico – de disposição do ser do homem enquanto tal – que se
realiza na comunidade de fé cristã para o conhecimento adequado de Jesus. É um
trabalho que pode ser realizado também em outros lugares. Porém a Igreja de Jesus o
faz explicitamente – embora nem sempre e em todo momento assim – para facilitar o
encontro com ele. É sua tarefa própria, à qual é movida pelo Espírito de Jesus.
14. E o testemunho teológico?
“Ninguém conhece o Filho senão o Pai. E ninguém conhece o Pai senão o Filho e
aquele a quem o Filho o queira revelar” (Mt 11, 27).Não é possível conhecer Jesus
como Filho de Deus, sem o testemunho do próprio Deus. Para alguns isto parece muito
difícil de entender; pensam que se trata de um círculo vicioso, isto é, uma espécie de
artifício lógico através do qual já se pretende dar por suposto precisamente aquilo a que
a investigação deveria chegar. Entre estes estão aqueles que supõem que o recurso aos
textos e aos métodos históricos poderia oferecer-lhes um conhecimento mais apropriado
de Jesus do que aquele que têm dele os crentes que, em comunhão com a Igreja,
reconhecem em Jesus de Nazaré o Filho de Deus. Tacham estes de precipitados e
submissos, porque pensam que antes de ter percorrido por si mesmos , com paciência e
tenacidade, o caminho do conhecimento histórico, já teriam submetido seu julgamento
ao veredicto tutelar da Igreja.
É compreensível esta postura por parte de quem não se tenha detido para considerar o
significado do testemunho histórico e antropológico do que acabamos de falar. Ao
contrário, quem tenha refletido com certo vagar sobre as condições que o próprio
conhecimento histórico de Jesus exige, não emitirá tão facilmente o julgamento de
precipitação por parte daqueles que tenham feito o percurso histórico até Jesus sem
ignorar todavia o testemunho qualificado da Igreja sobre ele. E aqueles que tenham
pressentido a chave antropológica de abertura do espírito humano à divindade, se
mostrarão dispostos a compreender que é o próprio Deus quem se dará a conhecer ao
espírito finito, se este não quiser ver-se condenado a permanecer encerrado em seus
próprios limites. História e transcendência estão unidas e se condicionam mutuamente
também na maneira de acesso à pessoa de Jesus, na qual em que precisamente a unidade
de ambas encontra sua realidade original e mais singular.
13
A realidade de Deus não é accessível ao ser humano senão por meio do próprio Deus:
não há conhecimento do Deus vivo sem que ele se revele. Isto já ocorre com qualquer
pessoa: quem pode conhecer bem um ser humano sem o auxílio dele próprio, sem que
manifeste a si mesmo de alguma maneira? Com muito mais razão será necessário contar
com Deus para conhecê-lo, pois ele, enquanto verdadeiramente Infinito pessoal, nunca
pode ser considerado como um objeto à disposição de nossas capacidades
cognoscitivas. “Só Deus fala bem de Deus”, escrevia Pascal.
Pois bem, a Igreja faz parte da linguagem própria de Deus no mundo. Ela é certamente
uma comunidade humana de vida e comunicação. Porém antes disto é um meio de
comunicação de Deus com o homem; o Espírito de Deus a conduz e ilumina: “Ele vos
conduzirá à verdade completa”. Antes de tudo, à verdade completa sobre a história de
Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. Como se poderia compreender esta verdade de outra
maneira, sem a revelação de Deus?
15. Pois bem, qual é exatamente o testemunho da Igreja sobre Jesus de Nazaré?
Poderíamos dizer resumidamente que se encontra formulado no Credo. Porém o
testemunho da Igreja sobre Jesus não se reduz a nenhum texto escrito. Na verdade se
identifica com toda a riqueza multiforme de sua vida em sua expressão litúrgica,
profética e de caridade. Onde pode-se melhor conhecer Jesus do que no culto que ele
próprio oferece ao Pai na liturgia como atualização constante da oferta única de sua
pessoa? Onde melhor que no anúncio do Reino de Deus que a Igreja realiza com sua
pregação e em seu ensinamento? Onde, se não na participação do amor de Jesus aos
pecadores, isto é, a cada ser humano, débil e necessitado?
Entretanto, é necessário perguntar-se também a respeito da verdade da liturgia, do
anúncio e da caridade. Porque poderia ocorrer engano em tudo isto. Situamo-nos assim
ante a questão da doutrina da fé, isto é, ante a identificação precisa do que conhecemos
como objeto da revelação que Deus faz de si mesmo em seu Filho, Jesus Cristo.
Por isso, temos que voltar ao Credo, à formulação ponderada e escrita da consciência
que a Igreja adquiriu, sob ação do Espírito Santo, do acontecimento de Jesus de Nazaré
em sua integridade.
O Credo, por sua parte, remete, tanto à história dramática daquele homem que “padeceu
sob o poder de Poncio Pilatos”, como à inserção de seu acontecer biográfico na grande
obra que Deus realiza com o mundo: obra de criação, redenção e consumação.
Aí encontra-se novamente a unidade entre história e transcendência, característica do
testemunho da Igreja sobre Jesus. A mesma unidade que encontramos no Novo
Testamento, esse conjunto de escritos em que se purifica o primitivo testemunho
eclesial autorizado sobre Jesus Cristo.
14
2. OS ESCRITOS: JESUS E O NOVO TESTAMENTO
16. Deixou Jesus algo escrito sobre sua vida e sua obra?
São raros os personagens da antiguidade que deixaram escritos sobre si mesmos e sobre
suas obras. Nem sequer de grandes filósofos, como Sócrates, conservamos algum
escrito de seu próprio punho. Contudo, isto não é obstáculo para que possamos ter um
conhecimento seguro sobre seu pensamento e sua vida. Porque conservam-se
testemunhos deles provenientes de seus discípulos ou de outras fontes, que, estudados
com cuidado, fornecem informações válidas e bastante completas. No caso mencionado
de Sócrates, é através de Platão, seu grande discípulo, que podemos conhecer o mestre..
É quase certo que Jesus de Nazaré – como veremos mais adiante – sabia ler e escrever.
Porém não dedicou os poucos anos de sua vida a estudar ou escrever, mas a orar, a
trabalhar manualmente e a anunciar o Reino de Deus a Israel com palavras inflamadas e
obras maravilhosas. Não temos nenhum documento escrito por Jesus.
17. Quais são então as fontes confiáveis acerca de sua vida?
Os documentos escritos que nos informam com maior amplitude e segurança acerca de
Jesus de Nazaré são o conjunto de obras chamado Novo Testamento, isto é, a parte da
Bíblia redigida pelos discípulos de Jesus. O nome “Novo Testamento”, em
contraposição ao “Antigo” (a Bíblia dos Judeus), começou a ser usado no final do
século II. Parece que foi Tertuliano, por volta do ano 200, quem primeiro o empregou.
Porém as obras ou “livros” que contém esta coleção são de data muito anterior, como
veremos.
Além desses testemunhos bíblicos, devidos a pessoas que acreditavam ser Jesus o Filho
de Deus, há também alguns outros documentos escritos por autores não crentes que nos
dão alguma notícia do Nazareno. É importante este fato que confirma, não só a
existência histórica de Jesus, como também alguns acontecimentos de sua vida. Porém
as fontes não cristãs contribuem na verdade muito pouco para o conhecimento da figura
de Jesus. Delas falaremos no próximo capítulo.
Quanto aos chamados “evangelhos apócrifos” – que não fazem parte do Novo
Testamento – trata-se de escritos também do âmbito cristão, porém de datas posteriores
aos evangelhos bíblicos; são interessantes para diversos estudos comparativos, porém
enquanto fontes históricas não acrescentam praticamente nada aos escritos
neotestamentários, dos quais – segundo Méier, por exemplo – dependem por completo
no que se refere aos dados históricos recolhidos.
18. Qual é o valor histórico do Novo Testamento?
O Novo Testamento não é um livro de história nem uma biografia de Jesus. Nele
encontra-se antes o testemunho plural e reconhecido da Igreja sobre a realidade e o
significado último de Jesus de Nazaré como o Filho eterno de Deus, feito homem para a
salvação de cada ser humano. Exatamente por isto, contém dados históricos suficientes
para que seus leitores possam fazer uma idéia sobre a verdade da história daquele judeu
do século I, chamado Jesus, que se confessa como o Cristo e Filho de Deus. De modo
que o valor histórico do Novo Testamento é grande embora indireto.
15
Entretanto, do ponto de vista de sua orientação mais ou menos histórica, o Novo
Testamento contém duas espécies diversas de escritos: alguns que podemos chamar de
históricos e outros exortativos, isto é, por um lado os quatro evangelhos e os Atos dos
apóstolos e, por outro, as cartas de São Paulo e demais autores.
19. Os escritos de São Paulo são menos históricos?
Os escritos exortativos são os menos interessados em oferecer dados históricos. Trata-se
sobretudo das cartas em que o apóstolo Paulo e outros autores lembram “o evangelho”
às comunidades cristãs às quais eles próprios o haviam pregado verbalmente em data
recente. Por exemplo, lê-se na primeira Carta de São Paulo aos Coríntios:
“Irmãos, lembro-vos o evangelho que vos preguei, o que recebestes, no qual vos
mantéis firmes e pelo qual estais a caminho da salvação se o guardais como vo-lo
preguei...Pois vos transmiti o que por minha vez recebi: que Cristo morreu por nossos
pecados conforme as Escrituras; que foi sepultado; e que ressuscitou ao terceiro dia
conforme as Escrituras; que se deixou ver por Cefas; depois pelos Doze; depois deixou-
se ver por mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maioria continua viva até
agora e alguns já morreram; depois deixou-se ver por Tiago...; por último deixou-se ver
também por mim...” (I Cor 15, 1-8).
Eis aí o kerygma ou o anúncio de primeira origem que recebem e em que se baseiam as
primeiras comunidades cristãs. Este é o Evangelho: a boa nova da salvação por Jesus, o
Cristo. Os escritos exortativos se limitam a recordá-lo, a explicá-lo e a considerar suas
conseqüências para a vida dos cristãos.
Entre estes escritos, que chamamos exortativos, estão as obras mais antigas do Novo
Testamento, isto é, os primeiros documentos cristãos de que dispomos. As cartas aos
Tessalonicenses foram escritas por Paulo por volta do ano 50 e, ao longo dos cinqüenta,
as dirigidas aos Coríntios, aos Gálatas, aos Romanos e aos Filipenses. Nesta época,
haviam-se passado apenas vinte anos desde a morte de Jesus que, como veremos,
morreu provavelmente no ano 30.
Todas as cartas pressupõem a vida de Jesus, além de sua morte e ressurreição, porém
apenas nos falam dela, isto é, da origem, pronunciamentos e atos do Nazareno. Eram
acontecimentos muito recentes e as testemunhas, não apenas da ressurreição, como
também da vida de Jesus, ainda viviam. Por isso, durante aqueles primeiros vinte anos
não se havia sentido tanto a necessidade de escrever algo assim como uma vida de
Jesus, quanto mais proclamar o formidável acontecimento de sua morte e ressurreição e
a alvissareira mudança de perspectivas que aquilo significava para a fé de Israel. Esta
era a urgência absoluta e prioritária.
Aqueles vinte anos que se seguiram à Páscoa de Jesus foram anos de enorme atividade
missionária e espiritual entre os cristãos. Conduzidos pelo Espírito, chegaram a
compreender de modo admirável o mistério encerrado naquele condenado pelos
romanos à cruz. Em sua carta aos Filipenses, São Paulo compila um hino litúrgico que
aparentemente já era conhecido na época, isto é, que deveria ter sido composto, o mais
tardar, aos 15 ou 20 anos após a morte de Jesus Cristo. E diz coisas espantosas para uma
mente judia, embora também para a grega ou qualquer outra:
16
“Jesus Cristo,
embora de condição divina,
não se considerou presa arrebatada ao ser igual a Deus,
antes despojou-se de si mesmo,
tomando forma de escravo,
fazendo-se semelhante aos homens;
e apresentando-se como homem,
rebaixou-se a si mesmo fazendo-se obediente até à morte,
e uma morte de cruz!
Por isto Deus o elevou sobre tudo
e lhe deu o nome sobre todo nome,
de modo que ante o nome de Jesus dobrem os joelhos todos os
seres do céu, da terra e do abismo,
e toda língua confesse,
para glória de Deus Pai,
que Jesus Cristo é Senhor” (Flp 2, 6-11)”
A compreensão de Deus que denota este hino pressupõe uma revolução para todo o
mundo. Tal terremoto é o que se nota nas cartas de Paulo e na rápida expansão por todo
o Mediterrâneo da fé em Jesus como o Senhor. Trata-se, naturalmente, de um
acontecimento histórico de grande magnitude. Neste sentido, os documentos exortativos
do Novo Testamento são documentos históricos que atestam as conseqüências
transcendentais da vida de Jesus. São imprescindíveis para estudar o nascimento e
primeiro desenvolvimento da fé da Igreja. Porém os acontecimentos recentes e a
impressão causada por eles em suas testemunhas vivas permitem-nos compreender
porque aqueles escritos ocasionais, que eram as cartas, não falavam da vida de Jesus
mas do que encerra o kerygma. São Paulo pregava o Evangelho sem necessidade
contudo de contar com os evangelhos.
20. Quando apareceram os evangelhos?
Os quatro evangelhos do Novo Testamento têm um caráter mais histórico que as cartas.
São redigidos precisamente quando o testemunho sobre o que Jesus fez e disse, assim
como os dados de sua vida, ia-se fazendo mais difícil, quer por causa das distâncias,
pois os cristãos iam-se estendendo cada vez mais pelo Mediterrâneo, quer por causa do
desaparecimento progressivo da primeira geração, aquela dos que haviam visto Jesus
ou, pelo menos, haviam conhecido uma testemunha imediata dele. É então que surge a
necessidade de apoiar o anúncio do kerygma, ou do Evangelho, em relatos mais
pormenorizados da vida de Jesus. É então, com esta finalidade, que são compostos os
quatro evangelhos. Deste modo os cristãos velavam pela integridade de sua fé em Jesus
Cristo, que se remete à história de um homem, de Jesus, sem a qual não é possível
entender bem o mistério de Deus.. Era necessário prevenir-se contra a negação da
verdadeira humanidade do Filho de Deus.
Embora não haja consenso absoluto, existe, entretanto, um acordo entre os especialistas
quanto a estabelecer a data de aparecimento dos evangelhos na segunda metade do
século I. Em definitivo, o evangelho segundo São Marcos, nos anos sessenta; os de São
Mateus e São Lucas, juntamente com os Atos, nos anos setenta; e o de São João na
última década do século.
17
21. Até então nada havia sido escrito sobre a vida de Jesus?
Os evangelhos que conhecemos não surgiram apenas da mente e da pena de seus
autores. Estes utilizaram matérias orais e, muito provavelmente também, escritos que
compilavam fatos, pronunciamentos e diversas tradições sobre Jesus, provenientes do
testemunho dos que haviam estado com ele desde o princípio.
Prova disto é que entre os três primeiros evangelhos – os de São Mateus, São Marcos e
São Lucas – existem enormes coincidências. Como utilizam até as mesmas palavras
para descrever ou relatar as mesmas coisas, os estudiosos pensam, com razão, que
usaram fontes orais e escritas comuns, em diversa medida, aos três. Por esta razão são
chamados evangelhos sinópticos: porque podem ser comparados uns aos outros em um
quadro sinóptico que permite comprovar com uma vista de olhos coincidências e
diferenças entre eles, tanto em seu plano geral, como, sobretudo, no texto de cada uma
das passagens ou elementos que os integram. Por outro lado, o evangelho de São João,
que é posterior, segue um plano próprio e utiliza matérias próprias, quase sempre
diferentes daquelas da chamada tradição sinóptica.
Este dado é importante para avaliar a confiabilidade histórica dos evangelhos. É verdade
que o evangelho de São Marcos, o mais antigo, foi escrito cerca de trinta anos após a
morte de Jesus e o de São João, o mais recente, cerca de sessenta anos. Porém todos eles
estão escritos sobre a base de tradições e textos anteriores e de época tão antiga quanto
as cartas de Paulo e até mesmo anteriores. De maneira que nos encontramos perante
obras muito próximas à época dos acontecimentos de que falam: tanto os evangelhos
como, particularmente, as fontes que utilizam.
22. A chamada “fonte Q” é um desses relatos primitivos utilizados pelos autores
dos evangelhos?
A fonte dos evangelhos, a fonte Q não é um documento que se conserve como tal nem
ao qual façam referência os escritores antigos. Falaremos eventualmente dela porque é
um dos descobrimentos mais interessantes da exegese moderna. Não se trata mais que
de uma hipótese de trabalho, porém muito bem fundamentada. Fundamentada em que?
No estudo comparado dos evangelhos sinópticos. Viu-se com exatidão que Mateus e
Lucas coincidem, apenas entre eles, mais ou menos em 60%. A coincidência ocorre
tanto na seqüência da narração como no vocabulário que empregam. Por outro lado, nos
restantes 40% ambos coincidem com Marcos. Pois bem, muitos estudiosos supõem que
na elaboração dos evangelhos de São Mateus e São Lucas foi utilizada, de maneira
distinta, uma fonte comum, hipótese que explicaria o alto grau de coincidência que se
observa entre eles e só entre eles. A essa fonte comum chamou-se “a fonte Q” (Q é a
primeira letra da palavra alemã “fonte”: Quelle.
18
A FONTE “Q”
I Início
Pregação do Batista Lc 3, 7-9. 16-17 = Mt 3, 7-12
Relato das tentações Lc 4, 1-13 = Mt 4, 1-11
II Sermão inaugural
Marco inicial Lc 6, 17. 20a =Mt 5, 1-2
Bem-aventuranças Lc 6, 20b-23 = Mt 5, 3-12
Sobre a vingança Lc 6, 29-30 = Mt 5, 39b-42
Amor ao inimigo Lc 6, 27-28. 32-36 = Mt 5, 44-48
Regra de ouro Lc 6, 31 = Mt 7, 21
Sobre o julgamento Lc 6, 37. 38 = Mt 7, 1. 2
Guias cegos Lc 6, 39 = Mt 15, 14
Mestre e discípulos Lc 6, 40 = Mt 10, 24. 25
Sobre a hipocrisia Lc 6, 41. 42 = Mt 7, 3-5
Árvore e frutos Lc 6, 43. 44 = Mt 7, 16-20
Tesouro do coração Lc 6, 45 = Mt 12, 34b. 35
Parábola do construtor Lc 6, 46-49 = Mt 7, 21. 24-27
III Jesus e sua geração
A fé do centurião Lc 7, 1-10 = Mt 8, 5-10. 13
O Batista e Jesus Lc 7, 18-28. 31-35 = Mt 11, 2-11. 16-19
IV Seguimento e missão
Sobre o discipulado Lc 9, 57-60 = Mt 8, 19-22
Missão Lc 10, 1-12 = Mt 9, 37-10, 15
Aviso contra aldeias da Galiléia Lc 10, 13-15 = Mt 11, 21-23
Louvor pela revelação Lc 10, 21-22 = Mt 11, 25-27
Bem-aventurança da testemunha Lc 10, 23. 24 = Mt 13, 16. 17
V Oração
Pai Nosso Lc 11, 2-4 = Mt 6, 9-13
Confiança na oração Lc 11, 9-13 = Mt 7, 7-11
VI Controvérsias
Disputa sobre Belzebu Lc 11, 14-23 = Mt 12, 22-30
Retorno do espírito imundo Lc 11, 24-26 = Mt 12, 43-46
O sinal de Jonas Lc 11, 29-32 = Mt 12, 38-42
A lâmpada e o óleo Lc 11, 33-36 = Mt 5, 15; 6, 22. 23
Contra os fariseus Lc 11, 39-44, 46-52 = Mt 23, 25-31.34-36
VII Sobre o testemunho
Proclamar Jesus Lc 12, 2-12 = Mt 10, 19. 26-23
VIII Sobre a ansiedade e o juízo futuro
Preocupações e o tesouro Lc 12, 22-34 = Mt 6, 25-33. 19-21
O amor e o ladrão Lc 12, 39-46 = Mt 24, 43-51
Divisão na terra Lc 12, 51-53 = Mt 10, 34-36
19
Os autores discutem sobre o caráter exato de Q: se tratava-se de um escrito ou antes de
uma tradição oral, assim como o lugar e a data de sua composição. Em todo caso, a
existência desta fonte nos faz retroagir a datas talvez mais próximas da vida de Jesus
que as dos evangelhos. Alguns autores pensam que Q, uma coleção de pronunciamentos
de Jesus que não compila os relatos da paixão, foi confeccionada por volta do ano 50,
isto é, vinte anos após a crucificação do Senhor. Teria sido um excelente prontuário para
a pregação original que, a seguir, seria aproveitada por São Lucas e São Mateus.
23. Porém, não estarão permeados pela fé todos estes escritos cristãos?
Há uma noção, em que não cabe dúvida, de que os evangelhos estão “permeados” pela
fé. Provêem dela e a ela querem conduzir. Isto é, os evangelistas, ao empreender suas
obras, não tinham um interesse meramente biográfico ou histórico, senão kerygmático e
teológico. Foram movidos a escrever por sua fé em Jesus como o Filho de Deus e o
desejo de dá-la a conhecer. São João o diz de maneira bem clara ao final de seu
evangelho: “escrito para que creiais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20, 31).
Contudo, a não ser que partamos de uma desconfiança prévia contra a fé e os crentes,
não temos motivo para pensar que o que foi escrito pelas primeiras gerações de
discípulos de Jesus esteja permeado por sua fé a ponto de que nos apresentem os fatos
da vida de seu Mestre de maneira alterada. Ao contrário, há diversas razões que nos
induzem a confiar na veracidade e exatidão histórica do que nos relatam.
24. O que levou a suspeitar a confiabilidade histórica dos evangelhos?
Em primeiro lugar, o mero fato de que sejam livros, como dissemos, da fé para a fé.
Para a mentalidade positivista materialista, só este fato já levanta suspeita, pois parte do
pressuposto de que aqueles que têm fé, já não em Jesus como o Filho de Deus, porém
em algo mais que possa ser captado e percebido pelos sentidos, estão incapacitados de
fazer um julgamento objetivo sobre a realidade. Os crentes retrocederiam, incorrendo
em um certo defeito cognoscitivo que os induziria a interpretar fantasiosamente os fatos.
É evidente que este julgamento contrário à fé se mostra excessivamente distante da
realidade, para ser levado em conta em sua generalidade. Pode-se aceitar que o
entusiasmo que, em certas ocasiões, resulta da fé, possa dar lugar a certos exageros ou
inclusive a equívocos. Porém isto não é específico da fé religiosa. É algo que ocorre
também com os entusiasmos de qualquer tipo, por exemplo, filosófico ou político.
Deixando, pois, de lado os preconceitos, dever-se-á analisar os fatos. Sobre a
mentalidade materialista voltaremos a falar mais detalhadamente quando tratarmos dos
milagres, no capítulo 7.
Em segundo lugar, há alguns motivos mais concretos, de ordem teológico-literária, que
levaram à suspeita da exatidão histórica dos evangelhos. Os estudos dos dois últimos
séculos sobre a composição dos evangelhos permitiram verificar, com nova acuidade,
que se trata de obras de um gênero literário muito particular, tanto que, segundo alguns
estudiosos, é um gênero único: o evangélico. Com isto assevera-se o que já dissemos:
que são obras escritas sob a impressão da Páscoa de Cristo e ante a urgência da missão.
Não são, pois, biografias neutras – como se supõe que são as modernas – pois narram a
vida do homem Jesus, o crucificado, sobre o fundo dourado de sua glória de
Ressuscitado e Vivente atualmente. E é verdade que os discípulos releram e
20
reinterpretaram a vida do Nazareno desde a experiência da Páscoa de ressurreição que
lançou uma luz nova sobre os acontecimentos que haviam vivido com Jesus, sem jamais
entendê-los totalmente. Porém isto não significa necessariamente que a nova visão da
vida de Jesus, adquirida com a Páscoa, não fosse acertada, isto é, não respondesse a seu
verdadeiro significado, oculto até então para eles. E muito menos significou aquela nova
visão que seus protagonistas se tivessem convertido em falsários e em apólogos de fatos
não acontecidos. De todo modo, será importante compreender o estilo kerygmático e
teológico dos evangelhos para bem entendê-los.
Em terceiro lugar, os estudos minuciosos puseram cada vez mais em relevo algo de há
muito conhecido: que os relatos evangélicos diferem entre si, às vezes em questões de
certa importância. Por exemplo, segundo os sinópticos, a última ceia de Jesus com os
seus teria sido a ceia pascal judaica daquele ano, enquanto segundo o evangelho de São
João os judeus teriam comido a ceia pascal quando Jesus já estava morto. E assim,
muitíssimas diferenças de detalhe que, para alguns, mais que quanto à honradez das
testemunhas e respeito às diversas tradições argüiriam a favor da tabulação mais ou
menos controlada.
Porém, à medida que os estudos foram avançando, também entre os críticos cresceu a
confiança de que os evangelhos, embora sem ser apenas crônicas ou biografias, são
documentos de séria base histórica que permitem um conhecimento abalizado da
verdade sobre a história de Jesus de Nazaré.
25. Porque os evangelhos são confiáveis do ponto de vista histórico?
As razões que inspiram confiança em que os evangelhos permitem conhecer o
fundamental da história de Jesus, juntamente com seu sentido teológico, são de natureza
diversa. Algumas referem-se a aspectos externos a eles próprios, como a conservação
dos textos ou a autoria das obras. Outras baseiam-se antes em avaliar seus próprios
conteúdos, comparando os que oferecem as diversas fontes neotestamentárias entre si
com o contexto histórico do ambiente cristão, judaico ou pagão.
A convergência de todos estes dados permite pensar que os evangelhos e os dados que
oferecem sobre Jesus não são fruto de uma mera imaginação religiosa mais ou menos
exaltada, mas refletem uma realidade histórica certa, embora o grau de certeza não seja
o mesmo em cada caso particular.
26. O que quer dizer que os evangelhos são textos bem conservados?
Uma boa parte dos escritores antigos não são mais conhecidos senão através de cópias
de suas obras feitas na Idade Média. É o caso, por exemplo, de autores tão famosos
como Cícero ou César. Que aconteceu nos séculos transcorridos sem nenhum
testemunho escrito de suas obras? Como estamos seguros da medida em que as obras
que temos são de sua autoria? Ninguém põe em dúvida por diversos motivos, que não
são aqui o caso.
Em contrapartida, conservamos manuscritos antiqüíssimos dos evangelhos, muito
próximos da época de sua composição. O chamado Códice Vaticano e o chamado
Códice Sinaítico datam, mais ou menos do ano 350. Este último contém todo o Novo
Testamento, o primeiro praticamente, também. E como se não bastasse, contamos
21
também com papiros, feitos no Egito no século XX, que trazem fragmentos de escritos
do Novo Testamento, e que se aproximam ainda mais às datas de sua composição.
Assim, por exemplo, o papiro Rylands 457 traz quatro versículos do evangelho de São
João datados por volta do ano 135; e os papiros Chester Beatty, muito mais extensos,
são, aproximadamente dos anos 205/215.
O trabalho de fixação do texto do Novo Testamento que foi feito na base de todos os
papiros, códices e citações antigas, não tem paralelo em nenhum outro texto da
Antiguidade. De modo que, se lemos Cícero com confiança, com muito mais confiança
podemos ler o Novo Testamento, no que toca à autenticidade do texto.
Que se tenham conservado textos tão antigos dos evangelhos é uma prova significativa
da veneração e fidelidade com que esses relatos foram tratados pela tradição cristã.
27. E o que se pode dizer a respeito dos autores dos evangelhos?
Não temos plena certeza sobre a pessoa que tenha redigido cada um dos evangelhos
nesta etapa do desenvolvimento do cristianismo em que iam faltando testemunhas da
vida de Jesus. Sabemos sim que em cada um dos evangelhos apresenta-se o único
evangelho ou boa nova de Jesus Cristo, em cada caso, segundo Mateus, Marcos, Lucas
e João. São quatro versões do mesmo acontecimento, segundo ou de acordo com quatro
tradições diversas. Cada uma delas remete, por testemunhos cristãos do século II (
Papias e outros autores compilados pelo historiador Eusébio) a personagens importantes
do início do cristianismo. Entretanto devemos levar em conta que os próprios
evangelhos não tinham “a assinatura” de ninguém: não dizem que sejam “de” um
determinado autor.
O testemunho dos autores antigos parece mais verossímil no caso de Marcos e Lucas.
Por outro lado, conforme os conhecimentos atuais das tradições evangélicas, é menos
provável que tenham sido Mateus e João em pessoa, os apóstolos do grupo dos Doze
que seguiram Jesus, que tivessem escrito os evangelhos que levam seus nomes.
São Marcos é apresentado como discípulo de São Pedro; e São Lucas, como discípulo e
companheiro de São Paulo. São, pois, personagens importantes da segunda geração
cristã que podiam agir como guardiões da transmissão do evangelho. Além do mais o
que sabemos de suas biografias não é incoerente com os escritos evangélicos que lhes
são atribuídos: ambos estariam capacitados, por sua língua e cultura grega, para a
redação dessas obras.
São Mateus e São João, por outro lado, são discípulos imediatos de Jesus, de língua e
cultura aramaica e, sobretudo, no caso de João, com menos capacidade prévia para
escrever em linguagem teológica tão elevada: era um jovem pescador Galileu, sem
formação especial nem conhecimento do grego. Por isto nada impede que os evangelhos
que levam os seus nomes tenham sido redigidos por pessoas que se encontravam em
estreita relação de discipulado com aquelas testemunhas da primeira hora, guardiões da
veracidade do que foi documentado. Assim, por exemplo, fala-se dos círculos jônicos,
em que os discípulos de São João teriam elaborado e aprofundado os ensinamentos de
seu mestre.
22
A confiabilidade do quádruplo testemunho acerca do único evangelho de Jesus é posta
em relevo justamente quando se presta atenção ao fato incontrovertível de que, em meio
à clara diversidade das tradições evangélicas brilha uma notória unidade no que se
refere ao fundamental, tanto no que toca aos fatos narrados como à sua interpretação.
28. Como se percebe a unidade básica do testemunho histórico dos evangelhos?
Os autores modernos desenvolveram os chamados critérios de historicidade, cuja
aplicação ao estudo dos evangelhos permite comprovar a exatidão histórica de suas
narrações.
O critério do testemunho múltiplo conduz à certeza moral da exatidão histórica de um
relato com base na coincidência fundamental existente entre fontes que se pressupõem
independentes entre si. Assim, por exemplo, o fato de que Jesus tenha sido batizado por
João é testemunhado tanto pelos três sinópticos, como pelo quarto evangelho e pelos
Atos dos Apóstolos. Esta convergência de dados de procedência distinta, se impõe sobre
as divergências de detalhe que cada fonte oferece como matizes próprios do fato básico,
cuja historicidade dificilmente poderia ser negada. Precisamente as faltas de
coincidência falam a favor de um fato básico historicamente incontrovertível, porque
ressaltam que nos encontramos diante de testemunhos independentes que não foram
harmonizados de maneira mais ou menos forçada. Em suma: uma leitura atenta dos
evangelhos apresenta-os como testemunhos diversos de um mesmo acontecimento. A
diversidade – que, em algumas ocasiões se aproxima de uma possível divergência – é
prova da independência e da originalidade dos testemunhos. Não são, em absoluto,
testemunhos falsificados.
29. Porém, não poderia ocorrer que a falsificação se fizesse já em um estágio
absolutamente primitivo do qual se alimentariam as diversas fontes ou tradições
evangélicas, contaminando todas elas desde sua origem?
A verdade é que os estudiosos pensam que as fontes são realmente independentes entre
si. O fato comum de que todas se alimentam é o acontecimento de Jesus, sua vida,
morte e ressurreição. Até esse veio originário remontam – cada uma por sua parte – as
diversas tradições evangélicas particulares identificadas pelos especialistas. Este é o
pressuposto em que se apóia o critério mencionado do testemunho múltiplo.
Não obstante existem também outros critérios complementares que ajudam a superar a
possível suspeita de que tivesse sido produzida uma falsificação originária por parte dos
intérpretes ou primeiras testemunhas do acontecimento do Nazareno. Assim, em
particular, o chamado critério de descontinuidade.
Com efeito, há fatos que contrastam de tal modo com aquilo que se poderia esperar de
um falsário, que se torna necessário supor que não puderam ser construídos pela
imaginação ou interesse de um fabulador comum. O contraste ou a “descontinuidade”
pode referir-se ao ambiente geral em que viviam aqueles homens, em nosso caso, aos
costumes e à religiosidade judaica; ou ainda, ao ambiente particular do grupo cristão
inicial, em definitivo, aos possíveis interesses da igreja primitiva.
Assim, por exemplo, que Jesus corrigisse Moisés quando asseverava “porém eu vos
digo”; que fora ele quem escolhera seus discípulos e que entre seus seguidores houvesse
23
mulheres; que se lhe tenha reconhecido, ao menos implicitamente uma categoria divina,
etc. são fatos que estão tão em descontinuidade com o habitual no mundo judaico e em
sua religião estritamente monoteísta, que dificilmente podiam ser fruto dos hábitos de
pensamento de um possível fabulador.
Exemplos relativos ao contraste com os “interesses” da igreja nascente há também
muitíssimos: a simples lembrança de que Jesus houvesse sido condenado a uma morte
infamante pelos pagãos (mais ainda a forte e constante ênfase deste fato) era capaz de
arruinar por si só a propaganda mais sofisticada acerca de um novo “deus”; a descrição
reiterada das debilidades e até das traições dos discípulos contrastam com sua possível
idealização ou auto-glorificação interessada; o relato de fatos difíceis de integrar a
proclamação de Jesus como Filho de Deus, quais sejam, sua ignorância a respeito de
certas coisas, sua debilidade física, etc. Estes e muitos outros fatos “chocantes” falam a
favor da veracidade de testemunhas que se mostram incapazes de escamotear qualquer
coisa, nem mesmo assuntos que poderiam parecer comprometedores para as próprias
testemunhas.
30. E não poderia ser que algo tão “original” e tão “chocante” fosse, na
realidade, uma fábula muito bem composta por algum grande gênio poético?
Como hipótese poderia ser. Porém realmente é pouco verossímil. Poderia ser se
levássemos em conta apenas o critério de descontinuidade. Porém isto seria uma
abstração, no sentido de que seria uma operação que prescindiria injustificadamente dos
demais critérios, que devem ser considerados todos ao mesmo tempo. A
descontinuidade não é de um gênio, mas de muitos: isto é o que nos diz o critério do
testemunho múltiplo, que os fatos “chocantes” são comprovados por diversas fontes
independentes, fato que tira força à idéia de alguma ocorrência contrária .
Além do mais há que considerar o critério de conformidade ao qual os estudiosos
recorrem para mostrar que o mais original de Jesus se encontra, ao mesmo tempo, em
certa coerência com o meio ambiente. Isto é, que os relatos evangélicos compilam
descrições de problemas, costumes e propostas religiosas que respondem ao que
conhecemos como histórico daquela época. Isto é, que o extraordinário ou o chocante se
dá em um quadro absolutamente real, não imaginário.
Além disso, a conformidade ou coerência também pode ser estudada com relação ao
conjunto da figura de Jesus e de seu ensinamento. Assim, por exemplo, suas parábolas,
sua pregação do Reino e a interpretação que ele fez de sua morte na cruz estão unidas
por um fio condutor que apresenta a figura de Jesus como a de um personagem dotado
de uma harmonia e coerência tão espantosa quanto original.
31. Qual é o conteúdo dos evangelhos? Estão redigidos todos segundo o mesmo
esquema e a mesma concepção?
Não. Tanto o esquema como a concepção de cada um dos evangelhos são diferentes. É
esta sua riqueza como conjunto. A maior diferença é a que existe entre os três sinópticos
e o evangelho de São João. Este último apresenta uma interpretação da verdade de Jesus
mais desenvolvida e com conceitos absolutamente seus. Porém sem deixar por isto de
ser também histórico.
24
O esquema dos quatro evangelhos pode ser visto mais adiante no capítulo 7, perguntas
113, 114 e 115.
32. Porém por que somente estes escritos incluídos no Novo Testamento seriam
as fontes confiáveis para conhecer a verdade sobre a história de Jesus?
Somente estes foram acolhidos pela comunidade das testemunhas como expressões
autênticas de seu próprio testemunho sobre Jesus. Isto é o que significa, em última
análise, que os escritos compilados no Novo Testamento sejam escritos “canônicos”,
isto é, que atuam como “regra” da interpretação que a Igreja sempre fez e continua a
fazer da história de Jesus de Nazaré.
Neste sentido, apenas os textos neotestamentários são plenamente confiáveis para
compreender a verdade de Jesus. As razões desta afirmação apresentamos no primeiro
capítulo, ao falar de Jesus e suas testemunhas.. Só se entendem bem os textos em seu
contexto próprio. A Igreja é o contexto próprio dos textos mais originais que temos
acerca de Jesus de Nazaré.
Porém é verdade que contamos também com outros textos sobre Jesus. Os do Novo
Testamento não são os únicos. A sobrevivência de algum testemunho não cristão sobre
Jesus é uma prova adicional sobre sua figura, embora praticamente apenas como
referência a sua existência histórica. Na continuação dedicamos um breve capítulo a
esta questão.
33. E os evangelhos apócrifos? Constituem fontes históricas confiáveis?
Chamam-se apócrifos alguns relatos acerca da vida de Jesus que circularam nas
comunidades cristãs, porém que não chegaram a ser reconhecidos pela Igreja universal
como testemunho próprio autorizado.
A maioria dos autores coincide em que não aportam conhecimentos novos confiáveis.
São de data posterior aos evangelhos canônicos e deles retiram os dados fundamentais.
Em geral são narrações lendárias que procuram responder à base de fantasia
curiosidades para as quais os evangelhos não dão resposta. Por exemplo, acerca da
infância de Jesus ou da vida de seus amigos e discípulos.
25
3. A HISTÓRIA: JESUS E OS HISTORIADORES
As fontes evangélicas constituem testemunhos históricos de grande valor.
Comprovamos isto. Procedem de cristãos que querem dar a conhecer Jesus de Nazaré
como o Filho de Deus. Constituem o testemunho seleto, canônico, da comunidade dos
seguidores de Jesus, na qual se perpetuará sua memória viva. Este seu caráter
testemunhal e “evangelizador”, não faz aos evangelhos perder sua exatidão histórica.
Assim demonstrou precisamente a investigação rigorosa, e até mesmo inclemente, à
qual foram submetidos durante séculos, especialmente pela chamada investigação
histórico-crítica dos três últimos séculos. Se os historiadores antigos não cristãos não
tivessem feito nenhuma referência a Jesus, bastar-nos-iam os evangelhos e o testemunho
secular da Igreja para estarmos seguros do fundamental acerca de Jesus. Porém há mais,
embora não seja muito: alguns historiadores profissionais dos anos posteriores a Jesus
referem-se a ele. É surpreendente, porém contamos também com esta confirmação,
concisa, porém muito interessante.
34. Por que é surpreendente que houvesse algum historiador não cristão que se
tenha ocupado de Jesus pouco depois de sua morte?
Jesus morreu crucificado e seus discípulos se dispersaram. Ninguém defendeu sua
causa. Supostamente ninguém lutou em seu favor. Ele não fora nenhum libertador
político de Israel que tivesse reunido sequer um pequeno grupo de resistência digno de
aparecer nos anais da multidão de guerrilhas e escaramuças organizadas contra Roma.
Por outro lado, tampouco pode-se dizer que como líder ou reformador religioso tivesse
obtido demasiado êxito. Nenhum dos grupos religiosos de seu tempo aceitou seus
ensinamentos. Nem mesmo seus seguidores, gente de pouca cultura e influência,
estavam seguros do que significava realmente aquele “profeta” Galileu. Admiravam-
no, porém não o entendiam. Na verdade, aquele homem estranho e extraordinário
parecia condenado a desaparecer da memória histórica comum, da mesma forma como
aqueles que o condenaram à morte acreditavam que seu desaparecimento de cena ia ser
definitivo. Quem iria se preocupar com sua sorte e sua memória?
35. Quem escreveu, então, sobre Jesus naquela época sem ser cristão?
Foi um compatriota seu, chamado Flavio Josefo, que escreve sobre Jesus mais ou menos
ao mesmo tempo em que estava sendo composto o evangelho de São João. Seu
testemunho, portanto, é muito antigo e, segundo os especialistas, independente das
fontes cristãs.
Seu nome era José ben Matias, nasceu por volta do ano 38 e morreu, mais ou menos,
após o ano 100. Era um judeu aristocrata, de família sacerdotal, que começou lutando
contra os romanos e, feito prisioneiro, acabou sendo favorecido pelos imperadores
Flavios, de quem adotou o nome e a quem servia com seus escritos.
Entre suas obras, a mais extensa se chama Antiguidades judaicas, escrita por volta do
ano 93. É uma história de Israel em que trata de apresentar as peculiaridades de seu
povo de modo que pudessem ser de certo modo, compreendidas a partir de Roma.
Chegando às épocas mais recentes, fala também de alguns personagens típicos, como
eram os messias políticos – sobre os quais conta várias histórias – ou de outras figuras
para ele curiosas, como João Batista ou Jesus. Um historiador judeu escrevendo para
26
Roma foi, pois, o escolhido a deixar para a posteridade um testemunho não cristão de
Jesus da primeira época e de primeira mão.
36. E que diz Flavio Josefo de Jesus?
Nas Antiguidades Jesus é mencionado em duas passagens. A mais importante delas é a
chamada testimonium flavianum, em que Josefo faz um livre retrato de Jesus quando
narra a história do governador romano da Palestina Poncio Pilatos.
Alguns eruditos negam que essas linhas sobre Jesus tenham sido escritas por Josefo.
Pensam que são um acréscimo introduzido no texto original por copistas cristãos. Não
conservamos o texto saído da mão do historiador judeu, apenas cópias muito
posteriores. São muito numerosos os estudos sobre este assunto. Os autores estão
inclinados a pensar que de fato houve inserções feitas pelos cristãos, porém que a
passagem é fundamentalmente de Josefo. Suprimindo o que seriam os acréscimos, o
texto original fica assim:
“Naquele tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Porque foi autor de feitos
assombrosos, mestre de gente que recebe com agrado a verdade. E atraiu muitos judeus
e muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita pelos
principais homens entre nós, o condenou à morte, os que antes o haviam amado não
deixaram de fazê-lo. E até agora a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele,
não desapareceu” (Antiguidades judaicas, capítulo 18).
Trata-se, como se pode ver, de um texto sóbrio. As inserções cristãs acrescentam
algumas considerações próprias da fé cristã ou próximas a ela. Josefo, por outro lado,
mantem um tom neutro em nada incompatível com a fé judaica. Foi precisamente esta
sobriedade com a qual fala de “um homem sábio”, que pareceu pobre para algum
copista cristão, que não resistiu em acrescentar: “se é que basta chamá-lo homem”. Mais
adiante foi acrescentado também: “era o Cristo”. Porém pode-se perfeitamente
prescindir desta e de outras inserções. É inverossímil que tenham saído da pena de
Josefo. O que ele escreveu já parece suficiente.
37. Concorda Josefo com os evangelhos?
É fácil notar que as poucas informações que o historiador judeu oferece de Jesus
coincidem com alguns traços importantes de sua figura que conhecemos através dos
evangelhos: Jesus atraiu a atenção e ganhou a admiração das pessoas por suas palavras e
seus atos, ensinou com sabedoria e operou milagres; tanto judeus quanto gregos
seguiram-no; foi acusado pelos notáveis de Israel e condenado a morrer na cruz pelo
governador romano, Pilatos; seus seguidores se mantiveram fieis a ele e como tais,
continuam presentes no mundo quando Josefo escreve sua história no final do século I.
O historiador oferece deste modo uma descrição externa da vida de Jesus. Nota-se que
não tem as chaves para interpretar a verdade dessa vida. Escreve à distância. Não dá
ouvidos nem às palavras de Jesus nem às de seus seguidores. Nem sequer fala da
ressurreição. Contudo, sua descrição do que Jesus fez e do que aconteceu com ele
concorda basicamente com aquilo que os evangelhos narram, desenvolvem e
interpretam nas chaves da fé.
27
38. Qual o principal valor do testemunho de Flavio Josefo?
O testemunho do historiador judeu permite responder afirmativamente à pergunta sobre
a existência de alguma outra prova acerca da existência de Jesus diversa dos escritos
cristãos: sim, a história profana, independente das fontes cristãs, registrou a presença de
Jesus no mesmo contexto e com alguns dos traços fundamentais que aparecem também
nos evangelhos.
Na verdade, Josefo não aporta nada que não tenhamos pelas fontes cristãs. Porém seu
testemunho independente se torna importante e surpreendente.
39. Não há outros historiadores antigos que mencionem Jesus?
Sim, há referências a Jesus, ou ao Cristo, em vários autores: Mará Bar Sarapion, Tácito
(56-120) e Luciano de Samosata (por volta de 115-200). É interessante que em datas tão
precoces se mencione Jesus nas histórias gerais ou em cartas entre personagens não
cristãos. Deste modo confirma-se a rapidez com que o cristianismo se estendeu. De fato
todos esses autores falam de Jesus quando têm que falar dos cristãos. E se referem a ele
de um modo muito simples, como o iniciador do movimento cristão.
40. Qual o valor histórico dessas menções dos historiadores?
Pensa-se que, talvez com exceção de Tácito, esses autores não dispunham de fontes de
informação próprias para falar de Jesus. Dizem o que era sabido por aqueles que
conheciam os cristãos, normalmente a partir do que os próprios cristãos comunicavam a
respeito de si mesmos. Os autores pagãos reinterpretam com despeito ou ironicamente a
fé dos cristãos.
No caso de Tácito é possível que contasse com outras fontes diretas de informação, pois
ele havia sido governador da Ásia até o ano 112. Em todo caso, o que diz acerca de
Jesus quando narra a história de Nero em sua obra Anais é, após Josefo, o mais
detalhado que um autor não cristão da época escrevera sobre Jesus. Alguns suspeitam
que Tácito tenha lido Josefo. Ele escrevia assim:
“Portanto, para calar o rumor (de que era o próprio Nero o causador do incêndio de
Roma), Nero criou bodes expiatórios e submeteu às mais refinadas torturas aqueles que
o vulgo chamava de cristãos, odiados por seus crimes abomináveis. Seu nome provém
de Cristo, que, sob o reinado de Tibério, foi executado pelo procurador Poncio Pilatos”.
(Anais, capítulo 15)
Nem Tácito nem os demais historiadores trazem notícia alguma sobre a vida de Jesus
que não conheçamos através das fontes cristãs.
41. Então os judeus, exceto Josefo, não escreveram sobre Jesus?
Não. O Talmude (comentário da Bíblia feito por mestres notáveis) é uma fonte
importante para conhecer o mundo religioso judaico. Faz algumas alusões a Jesus.
Porém, segundo os autores mais sérios, estas alusões foram acrescentadas a partir do
século IV às tradições talmúdicas que apresentavam alguma analogia com sua pessoa ou
sua mensagem. Trata-se de alusões polêmicas feitas pelos autores judeus quando a
28
presença do cristianismo no mundo antigo já era totalmente inquestionável. Porém
então, o mundo judaico já não guardava qualquer lembrança concreta e autônoma sobre
a existência de Jesus na Palestina. Tudo o que dizem é reação às fontes e à vida cristãs.
29
II
O QUE CONHECEMOS DA VERDADEIRA HISTÓRIA
DE JESUS DE NAZARÉ?
Conhecemos muito sobre a história verdadeira de Jesus de Nazaré. Sabemos com
bastante exatidão as datas mais importantes de sua vida: a de sua morte, seu
aparecimento público e seu nascimento. Sabemos também qual foi sua cultura, seu
estilo de vida, sua atividade e o conteúdo de seu ensinamento. Sobretudo, podemos nos
aproximar com suficiente segurança das razões que motivaram sua existência e o
conduziram à morte e à vitória sobre ela. Sabemos também como valorizou seu caminho
neste mundo e com que consciência o percorreu.
Entretanto, não são poucos os que hoje lêem - aparentemente com prazer - livros
empenhados em fazê-los crer que Jesus é, de fato, um desconhecido. Propaga-se a idéia
de que é incerto, senão mesmo falso, quase tudo o que sabemos dele pelo Novo
Testamento e pelo testemunho da Igreja. Nada mais longe da realidade. O que acontece
é que não se acerta ou não se quer acertar o caminho que conduz à verdade de Jesus.
Parte-se de preconceitos que impedem a aproximação dele, como os do positivismo e do
materialismo. Além disso, selecionam-se arbitrariamente as fontes que são tratadas de
modo inapropriado. Em realidade, Jesus permanece desconhecido apenas para quem não
quer conhecê-lo.
Nos capítulos seguintes forneceremos um compêndio do que sabemos sobre a verdade
da história de Jesus. Não é, em absoluto, tudo. Trata-se de um panorama que nos
permite ter ante os olhos um conhecimento básico da figura única do Nazareno.
Naturalmente seguimos o caminho que traçamos nos primeiros capítulos.
Começaremos pelo final de Jesus na cruz, iluminada por sua ressurreição. Em seguida,
voltaremos ao início de sua vida terrena e, depois, a percorreremos em seus traços mais
importantes. Se alguém se surpreende com este modo de proceder, que dê por favor,
uma olhada nas ilustrações do esplêndido Livro de Jesus Cristo; qual a imagem que
mais se repete? Que figura de Jesus veneram, antes de tudo, os fieis cristãos nas
centenas de santuários e invocações a Cristo que permeiam toda a geografia religiosa da
Espanha? Não é precisamente a imagem comovente de Jesus recém-nascido ou de Jesus
menino. É a de Jesus Cristo na cruz, ou nos passos de sua paixão a que a fé de nosso
povo professa uma veneração emocionada e permanente. O Nascimento tem seu
momento específico no ano litúrgico. A Cruz, por outro lado, está sempre, dia após dia,
na abside de todas nossas igrejas, no alto de nossos santuários e, também sobre nossos
leitos e nossas tumbas.
Por isso começamos nosso relato por aí. O final dramático e glorioso de Jesus foi o
momento decisivo de sua vida. A cruz e a ressurreição esclareceram definitivamente o
que ele havia sido naqueles breves anos palestinos, tão cheios de incompreensões; da
cruz e da ressurreição procede a luz que ilumina, ao longo dos séculos, os seguidores de
Jesus. Naquele final se encerra o significado de toda sua vida. É um dado teológico de
primeira magnitude. Por outro lado, constitui também o mais firme ponto de partida
histórico, do qual se conservam, inclusive, testemunhos antigos exteriores ao meio
cristão.
30
4. O FINAL: PAIXÃO E RESSURREIÇÃO
42. Quando morreu Jesus de Nazaré?
Há uma notável coincidência entre os especialistas sobre o ano e, inclusive, sobre o dia
da morte de Jesus. Aquele acontecimento, terrível e grandioso ao mesmo tempo, teve
lugar em uma sexta-feira, segundo a grande maioria dos estudiosos, no dia 7 de abril (14
do mês judaico de Nissan) do ano 30.
43. Como sabemos a data da morte de Jesus?
Os dados que permitem fixar com muita aproximação a data mencionada são de três
campos: da história geral, da cronologia evangélica interna e do cálculo astronômico.
Cada uma dessas fontes de informação, por si só, fornece dados menos exatos, porém a
combinação de todas elas apresenta um resultado preciso com altas possibilidades de
exatidão histórica.
Ninguém deve se surpreender de que sejam necessários muitos cálculos para garantir
esta ou outras datas da vida de Jesus. Há que lembrar de que naquela época não existiam
registros públicos de nascimento nem de falecimento, nem sequer para as
personalidades importantes do mundo. Menos ainda para o filho de um carpinteiro da
obscura aldeia de Nazaré que acabaria seus dias sentenciado.
Entretanto é importante ressaltar que, no campo da história geral, a morte de Jesus na
cruz está testemunhada de forma independente ao menos por um historiador não cristão
em uma história de Israel escrita até o ano 93 e intitulada Antiguidades judaicas. Trata-
se de Flávio Josefo, um judeu que escrevia em Roma para seus protetores, os Flavios, e
que não tinha nenhum interesse em mostrar uma imagem de seu país de origem como
terra propícia ao aparecimento de messias revoltosos que devessem ser castigados pela
autoridade imperial. Entretanto, Josefo diz de Jesus, entre outras coisas, que "seguindo
as instigações das pessoas proeminentes de nosso povo foi condenado por Pilatos a
morrer na cruz; contudo, seus adeptos anteriores não deixaram de amá-lo".
O testemunho de Josefo corrobora o que atesta o Novo Testemunho de maneira
unânime; que Jesus foi condenado por Pilatos ao suplício da cruz. Este exerceu seu
mandato de prefeito da Judéia do ano 26 ao ano 36, o espaço de tempo mais amplo em
que, portanto, deve ter acontecido a morte de Jesus. Não é pouco o que a história geral
nos apresenta através desses dados exatos, quando de numerosos personagens da época
não temos senão referências muito mais vagas; por exemplo, do próprio Flávio Josefo
sabemos apenas que morreu após o ano 100.
Porém a cronologia evangélica nos permite afirmar ainda que a morte de Jesus deve ter
acontecido mais exatamente entre os anos 27 e 32. É o lapso de tempo que resulta da
somatória das datas mais recente e mais afastada possíveis do início da vida pública de
Jesus (os anos 26 e 29 respectivamente) a duração mais breve e mais longa possível de
sua atividade, a saber: um ou três anos. De como são deduzidos estes dados dos
evangelhos, falaremos no próximo capítulo.
31
Os quatro evangelhos coincidem também em afirmar que a morte de Jesus ocorreu em
uma sexta-feira de Nissan, mês em que se celebrava a Páscoa, sempre no dia 15. Isto
permite aos especialistas fazer cálculos astronômicos para afirmar, em quais dos anos
que entram em questão, a sexta-feira coincidiu com o dia da Páscoa ou com o de sua
preparação. As duas possibilidades devem ser levadas em conta, pois, conforme os
Sinóticos, Jesus morreu no dia de Páscoa e, segundo São João, no dia de preparação da
Páscoa.
Pois bem, tal coincidência se deu apenas nos anos 27, 30, 33, e 34. Dentre eles escolhe-
se o ano 30 pelos motivos seguintes: é o mais coerente com o que diz São Lucas, que
"Jesus teria cerca de trinta anos ao iniciar" (Lc 3, 23) seu ministério público, pois,
conforme nosso entender, teria tido então cerca de trinta e três anos; e, por outro lado,
aquela sexta-feira era dia 14, ou seja, o dia da preparação da Páscoa, que é o
mencionado por São João como o da morte do Senhor e o mais aceito pelos estudiosos.
44. Jesus previu sua morte de cruz?
Não há dúvida: Jesus não apenas previu sua morte violenta (possivelmente de cruz, já
que era o castigo que os romanos aplicavam a quem consideravam uma ameaça séria a
seu poder), como viveu assumindo-a conscientemente, preparou seus amigos para essa
morte e, chegado o momento, quis antecipar-se a ela de modo solene em uma
celebração muito especial que chamamos a Última Ceia.
João Batista já havia sido executado por Herodes Antipas (provavelmente na primavera
do ano 29) e o cerco de seus próprios detratores, os saduceus e os fariseus, se estreitava
cada vez ameaçador em tomo dele, quando Jesus contou uma parábola importantíssima:
a dos vinhateiros homicidas (Mc 12,1-12). Nela revela indiretamente que considerava a
si próprio como "O Filho", o "último" dos enviados de Deus, diante de quem, portanto,
era urgente e decisivo tomar posição, Além do mais, assevera que naquele momento já
contava com uma morte violenta pelas mãos do mesmo povo que havia repelido um
após outro os mensageiros de Deus. Os investigadores mais sérios e competentes
consideram que esta parábola reflete a consciência que Jesus tinha de seu final e que é
necessário considerá-la para bem interpretar o que fez e disse na última ceia.
Nos evangelhos Jesus prediz várias vezes que vai padecer e morrer de modo violento;
assim o faz pela segunda vez no relato de São Marcos (9, 30-32):
"Saindo dali iam caminhando através da Galiléia, e não queria que ninguém soubesse,
pois ia instruindo seus discípulos e lhes dizia: 'o Filho do homem vai ser entregue nas
mãos dos homens; e o matarão; e já morto, após três dias ressuscitará'. Porém eles não
entenderam aquelas palavras, e temiam perguntar-lhe ".
Alguns exegetas interpretaram esses anúncios como meras composições literário-
teológicas feitas após os acontecimentos do Gólgota e, a seguir postas nos lábios de
Jesus pelos evangelistas. Porém não é possível negar que refletem o fato de que Jesus
previa sua paixão.
32
Os evangelistas cercam esses anúncios de uma atmosfera de segredo. Conforme os
exegetas mencionados, tratar-se-ia de um recurso literário para ocultar a suposta
ignorância de Jesus a respeito de seu peculiar messianismo e de seu desenlace
dramático. Porém o que antes queriam explicar ou justificar era a incapacidade dos
discípulos para entender a figura do Mestre. Isto é o que, em realidade, perseguem os
autores sagrados com o chamado "segredo messiânico". Jesus os advertiu repetidamente
sobre sua condição de Messias sofredor. Porém eles não o compreenderam naquela
época e os evangelistas põem sobre aquela pertinaz incompreensão dos discípulos o
manto impregnado de pudor do segredo. Querem dizer algo como o seguinte: Jesus
falava de sua paixão, porém, ao mesmo tempo, ocultava sua condição messiânica,
mandando calar e não divulgar seus ensinamentos a respeito; por isso seus amigos
terminaram por não compreendê-lo até depois da ressurreição.
45. Quando teve lugar a Última Ceia? Foi a ceia habitual de Páscoa?
Não parece que Jesus tenha celebrado exatamente a mesma ceia pascal que a maioria
dos judeus festejava na noite anterior ao do dia solene da Páscoa.
Conforme os três primeiros evangelhos. Jesus celebrou a ceia pascal na quinta-feira à
noite, véspera do dia de sua morte: "Onde queres que façamos os preparativos para que
comas o cordeiro pascal?" (Mc 14, 12-17). Por outro lado, segundo São João, os judeus
celebraram a ceia pascal na sexta-feira, quando Jesus já estava morto: "não entraram no
pretório para não se contaminarem e poderem comer o cordeiro pascal" (Jo, 18,28)
naquela noite, a do dia "da Preparação da Páscoa" (19,14e31).
Há, pois, uma diferença de um dia entre os sinóticos e o quarto evangelho no momento
de estabelecer o dia da morte de Jesus: o dia 15 ou 14 de Nissan respectivamente; isto é,
o dia da Páscoa, segundo os sinóticos, ou o dia da Preparação, segundo São João. A
questão é importante, pois, no primeiro caso, a ceia que Jesus celebrou com seus
discípulos no dia antes de padecer, teria sido, sem dúvida alguma, a ceia ritual da
Páscoa, que os judeus celebravam na noite anterior a esta festa solene. Por outro lado,
se, como diz São João, Jesus foi crucificado no dia antes da Páscoa, já teria estado
morto quando os judeus celebravam a ceia pascal, naquela noite. Em realidade, como
aconteceram as coisas?
Conforme já adiantamos, pensamos que o Evangelho de São João é o que relata o curso
real dos acontecimentos. Jesus foi aprisionado no dia 13 de Nissan, quinta-feira, e
crucificado no dia 14, sexta-feira, véspera da Páscoa, que, naquele ano, coincidia com o
sábado ou sabbat, porém que era sempre celebrada no dia 15. Se assim aconteceu, a ceia
que teve lugar na quinta-feira não pode ter sido a ceia ritual de páscoa, celebrada pelos
judeus normalmente no dia 14.
46. Por que não deixaram Jesus celebrar aquela Páscoa com todos?
Há dois motivos - um estratégico e outro religioso - que falam a favor do que diz o
Evangelho de São João.
33
Os dirigentes já estão decididos a encerrar o assunto de Jesus. Não querem arriscar que
o suposto provocador e blasfemo acabe por suscitar a simpatia do povo; e decidem detê-
lo, aproveitando que está em Jerusalém. Porém têm que fazê-lo logo: melhor "antes da
festa", como diz o segundo evangelho (Mc 14, 2). Assim exige a mais elementar razão
estratégica de não se exporem a revoltas ou resistências do povo. Alguns entendem esta
precisão de Marcos em sentido espacial, não temporal, isto é: não antes da festa, senão
em segredo, fora do lugar escolhido para a festa.. Porém mesmo que este fosse o sentido
- menos provável - de suas palavras, o evangelista estabelece assim uma objeção quanto
a fazer coincidir a prisão e morte de Jesus com a festa de Páscoa, que reunia multidões
fervorosas em Jerusalém.
Os dirigentes podiam temer que alguns judeus piedosos apoiassem o Nazareno; mais
ainda se o julgassem e executassem no dia soleníssimo da Páscoa, quando a Lei proibia
estritamente essas e outras atividades. Tampouco os saduceus queriam nem tinham
porque alterar as disposições legais de maneira tão chamativa, precisamente eles que
iam julgar Jesus como transgressor da Lei. Este motivo religioso é acrescentado ao
estratégico a favor da cronologia de São João. É certo que seriam os romanos - a quem a
Lei judaica não obrigava - que pronunciariam e executariam a sentença, porém não sem
a iniciativa e a colaboração ativa de pessoas e poderes judaicos.
O próprio Marcos aporta outros dados que tornam inverossímil que o dia da morte de
Jesus fosse o da festa da Páscoa. Diz que Simão de Cirene vinha do campo e que se lhe
impõe um trabalho ainda mais desagradável que o trabalho agrícola: levar a cruz de
Jesus (Mc 15, 21); e diz que José de Arimateia compra um sudário para o enterro de
Jesus (Mc 15, 46). Nenhuma dessas atividades eram permitidas no dia da Festa. Como
tampouco parece lógico que se desse uma anistia pascal, soltando um preso$ (Mc 15, 6),
no mesmo dia da Páscoa, quando o agraciado já não ia poder celebrar a ceia pascal. Isto
teria sido feito no dia anterior.
47. Então que sentido Jesus deu àquela refeição derradeira?
Embora não pudesse celebrar a Páscoa no momento marcado pelo costume ritual, Jesus
celebrou com seus discípulos o banquete pascal previsto pela Lei para comemorar a
libertação de Israel da servidão do Egito e o estabelecimento da Aliança entre Deus e
seu Povo. Porém o fez, segundo parece, adiantando sua celebração de um dia. É para
nós a explicação mais convincente para conciliar, de um lado, o que os Sinóticos
afirmam: que Jesus celebrou com seus discípulos a ceia de Páscoa, e, de outro lado, a
cronologia mais verossímil, fornecida por São João. São João Crisóstomo já dava essa
explicação, que ajuda a compreender como ambas as tradições evangélicas têm seu
fundamento histórico. São João relata o transcorrer dos acontecimentos e os Sinóticos
mantêm a memória da ceia pascal. Ninguém inventa nada.
Jesus celebrou antecipadamente a ceia de Páscoa porque previa que os acontecimentos
se iam precipitar. Por isso organiza os preparativos com tanto mistério e segredo. Envia
seus amigos de Betânia com instruções precisas para que entrem em contato com o
dono de urna casa em Jerusalém, cujo nome não lhes dá. Este teria tudo preparado.
Possivelmente também o cordeiro, que, segundo Flávio Josefo, dada a quantidade
enorme de peregrinos, podia ser obtido no templo, ritualmente sacrificado, dias antes da
Páscoa.
34
Jesus manifestou o grande desejo que tinha de celebrar aquela Páscoa com seus
discípulos. Era a hora suprema que não voltaria a soar até seu retorno glorioso: "Tive
grande desejo de comer este cordeiro pascal convosco antes de padecer. Pois vos digo
que já não o comerei até que venha seu cumprimento no Reino de Deus" (Lc 22,15).
São palavras que os especialistas consideram um reflexo muito fiel da consciência
escatológica de Jesus, isto é, de que considerava iminente uma ação transcendental de
Deus no mundo através de sua morte. Era necessário, pois, antecipar a Páscoa e celebrá-
la como expressão de sua própria passagem ao Pai.
48. Então Jesus entendeu sua morte como instrumento de uma Nova Aliança de
Deus com seu Povo?
Tudo o que vimos dizendo aponta nessa direção. Entretanto R. Bultmann, um exegeta
protestante do século XX, sustentou que Jesus se encontrou com a morte como com um
destino fatal, e, mais ainda, que muito possivelmente se teria desesperado diante dela.
Garante que isso em nada afetaria sua fé de que Deus atuou naquela morte -considerada
por Jesus como absurda - convertendo-a em fonte de salvação para os homens. Como
protestante, pensa que Deus salva fazendo simplesmente que o pecado -neste caso o
desespero - não conte, isto é, sem nenhuma colaboração humana. Além do mais, dessa
maneira, Bultmann crê encontrar uma tábua de salvação para a fé cristã, que ficaria
assim como que blindada ante qualquer escândalo que pudesse ser descoberto pela
investigação histórica da história de Jesus. Que maior contra-senso que seu suposto
desespero final! Entretanto os romancistas e pseudo-historiadores que difundiram essas
teorias, fazendo-as chegar até às telas do cinema e da televisão, não eram tão piedosos
quanto Bultmann. O que eles daí extraíram não foi nenhuma suposta blindagem para a
fé, senão o contrário absoluto. Propalaram aos quatro ventos que o Jesus fracassado e
desesperado era o Jesus que a Igreja havia se empenhado em ocultar ao mundo,
enquanto que o Jesus real e simpático havia sido um ser humano esmagado, como tantos
outros, por um grande ideal de fraternidade, que a natureza impiedosa deste mundo sem
sentido se teria encarregado de desmascarar como impossível.
Estes intérpretes não estão encegueirados apenas pela aversão à fé cristã ou pela repulsa
anti-eclesial. Contam também para suas fantasias com matéria proporcionada por uma
exegese que se havia extraviado afastando-se da interpretação eclesial da Escritura e,
por sua vez, da própria Escritura.
Porque, conforme a Sagrada Escritura, a verdade da história de Jesus foi outra: que ele
assumiu sua morte dando-lhe um sentido salvador transcendente.
49. Como foi capaz de dar um sentido ao que parecia um fracasso final?
Exegetas católicos competentes mostraram como os gestos e as palavras de Jesus na
Última Ceia ressaltam sua consciência de que Deus, o Pai, agiria também de modo
extraordinário através de sua morte, do mesmo modo como havia agido durante toda
sua vida em suas obras e em sua mensagem.
O que Jesus fez naquela ceia, isto é, seus gestos, bastaria para dar a entender - conforme
pensa H. Schürmann, como também o protestante R. Stulhmacher - que estava
consciente do significado salvador de sua morte próxima. Que fez Jesus? Introduziu
dois novos gestos no rito da ceia pascal que denotam a mencionada consciência da nova
35
e definitiva intervenção de Deus. A saber: as palavras sobre o pão ázimo, antes de
comer o cordeiro; e a distribuição de um único copo após o prato principal. São os
únicos gestos de que falam os evangelhos que narram a ceia do Senhor. Não precisavam
narrar toda a ceia, porque admitiam que seus destinatários, que eram judeus ou
próximos a eles, conheciam bem o rito pascal. Pode-se ver no esquema anexo o
transcorrer do ritual pascal e os momentos em que Jesus fez suas intervenções especiais
(figura 2).
Ambos os gestos são chamados pelos especialistas "ações messiânicas simbólicas", isto
é, expressões dramatizadas de que ali se está pondo em jogo a ação definitiva do
enviado de Deus. Significam realmente que o banquete que os profetas haviam previsto
como expressão da nova situação de paz entre Deus e seu povo para o fim dos tempos,
está se realizando ali. O que habitualmente ocorria no ritual judaico era que cada um
bebesse de seu copo. Jesus, ao contrário, no momento do chamado "copo da benção",
faz que todos bebam do mesmo copo: o único grande copo de benção do qual os rabinos
esperavam que Israel iria beber no banquete final (Sal 116, 13). Com este gesto Jesus
está dizendo que o final operado por Deus está a ponto de chegar antecipadamente.
As palavras com as quais acompanha seus gestos explicam em que consiste o final
vislumbrado por Jesus, esta ação definitiva de Deus através de seu enviado. Os exegetas
- R. Pesch particularmente, porém também o protestante M. Hegel - perceberam que o
Nazareno interpretava a si próprio como o "Servo de Javé" do qual o livro de Isaias
havia falado misteriosamente (Is 52, 13-53, 12). A profecia que fora até então
considerada uma espécie de corpo estranho na tradição de Israel, ocupa um lugar central
no Novo Testamento. Jesus pensava nela quando dizia que o copo que dava a beber era
o de seu "sangue da aliança, derramado por muitos" (Mc 14, 23). De fato o profeta
havia previsto um "varão de dores entregue à morte e contado entre os malfeitores,
porque levou os pecados de muitos e intercedeu pelos pecadores". Assim entende Jesus
sua morte: como a do Servo que padece em lugar dos pecadores para lhes dar a
comunhão com Deus. Jesus pode dar sentido à sua morte porque ele foi o grande
intérprete das Escrituras. Ele as cumpriu. Falavam dele. Jesus esteve muito distante de
ser um homem desorientado ante o mistério do mal e da morte.
50. Porém aquela morte vergonhosa não contradizia sua pregação sobre a bondade
de Deus? Como é que o bom Pai permitia um final assim para seu Filho amado?
Há quem faça uma idéia talvez demasiado romântica da pregação de Jesus. O Nazareno
seria - conforme pensam alguns - o profeta do amor, compreendido como a
condescendência do homem com suas próprias tendências, supostamente bondosas em
si; esse amor conta com a cumplicidade de um Deus bonachão, de modo algum desejoso
de inquietar muito quem quer que seja.
A morte livremente aceita por Jesus contradiz esta visão simplista das coisas. O Deus de
Jesus não é esse Deus "leve", sem peso próprio. Tampouco é, naturalmente, um Deus
justiceiro e sedento de sangue. A morte de Jesus nos alerta acerca da verdadeira situação
da humanidade, por um lado, e nos revela o verdadeiro rosto do Pai, por outro.
Deus Pai não deseja a morte de suas criaturas. Ele é verdadeiramente justo e bom: faz
brilhar o sol sobre justos e injustos; ele próprio sai todos os dias pelo caminho à espera
que volte à casa o filho que se extraviou e corre perigo; após muitas tentativas para
36
atraí-lo, oferece-lhe agora, com a presença do Filho, uma última oportunidade de
regresso à casa.
O Filho sabe que veio para servir e entende seu caminho para a morte como a meta de
seu serviço: "o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida
em resgate por muitos" (Mc 10,45). É "o Servo", de Isaías, que suporta e cala.
Mas a pergunta continua: Por que? Por que é necessário esse "resgate" sangrento? Não
bastava o serviço da palavra, do convite para o Reino? Parece que não. A morte de Jesus
mostra até que ponto a liberdade do homem é respeitada por Deus, inclusive quando ele
se extravia. Por isso é reveladora tanto da verdadeira situação de perdição da
humanidade, por seu afastamento crônico de Deus, como da verdadeira
"condescendência" divina: a que o leva a padecer com os homens as conseqüências
mortais da perdição.
Deus "permite" a morte do Filho porque assim mostra aos humanos a seriedade de seu
amor na loucura de nosso afastamento culpado dele. "Permite-a" porque antes, como
Criador, havia embarcado na gloriosa e pesada aventura da liberdade.
51. Qual foi, finalmente, o motivo da sentença de morte contra Jesus? Um decreto
eterno de Deus ou a maldade dos homens?
O Criador sempre esteve disposto a assumir as conseqüências de ter criado seres livres.
Isto porém não significa que ele tivesse programado a morte de Jesus. Devemos antes
pensar que o que Ele programou em sua eternidade foi que os homens respondessem
com amor a seu Criador. Entretanto, não podia conceder uma resposta de amor sem
arriscar-se a que a resposta não fosse essa; isto é, estava-se aventurando pelo caminho
da liberdade criada.
Jesus foi sentenciado à morte como conseqüência de um determinado exercício da
liberdade humana que se afastava de sua própria razão de ser e do desígnio primeiro de
Deus. Porém o Criador tem, como veremos, mais recursos.
A sentença de morte foi pronunciada pelo prefeito romano, Poncio Pilatos. Entretanto
parece claro que não foi ele quem tomou a iniciativa de prender e processar Jesus. Ao
contrário, tudo aponta no sentido de ter procurado evitar aquela sentença. Contudo,
condenou Jesus à morte mesmo não estando convencido de sua culpabilidade. Mais que
a justiça e a veracidade, pesaram em seu ânimo ponderações referentes a seu próprio
prestígio e futuro profissional: "Se soltas este, não és amigo de César".
Conforme o testemunho dos evangelhos e também, de Flávio Josefo, foram as
autoridades judaicas, isto é, os saduceus e o Sumo Sacerdote em particular, que
planejaram a morte de Jesus e instigaram a autoridade romana a executá-la, já que esta
se reservava o direito geral da pena capital.
Jesus pode ter sido submetido à lapidação. Ele próprio havia salvo uma mulher de
morrer apedrejada. Este castigo parece que era de competência das autoridades judaicas
para determinados delitos especificamente previstos pelas leis religiosas, como o
adultério ou a blasfêmia. Esta última parece que foi a acusação que as autoridades
religiosas lhe imputavam: pensavam que era um blasfemo porque se atribuía poderes e
37
atributos divinos. Contudo quiseram dar à sua acusação contra Jesus o caráter de um
assunto político: entregaram-no a Pilatos sob a acusação de rebelde e de conspirador
contra o poder de Roma. Por que?
O fato é bastante claro. Na inscrição da cruz constava o motivo da condenação: por ser
um suposto "rei dos judeus". Menos clara é a razão pela qual os saduceus levantaram
essa calúnia contra Jesus e assim se aliaram aparentemente a seu inimigo oficial: o
poder romano que os submetia e controlava. Acaso seria para evitar entrar seriamente na
discussão suscitada no sanedrin por aqueles que censuravam o possível caráter
verdadeiramente divino da ação de Jesus? Fazendo-o matar como mais um exaltado
rebelde, desviava-se certamente a atenção do fundo misterioso da verdadeira intenção
de Jesus. Deste modo adiantavam-se a possíveis divisões no seio do Povo, que esperava
uma intervenção divina em sua história desditosa. A seguir protestaram contra Pilatos,
que tendo-lhes pego pela palavra, fizera cravar na cruz aquele título régio, que também
os humilhava. Além do mais a divisão do Povo se consumaria do modo mais dramático.
Finalmente, a causa da condenação à morte de Jesus foi a mentira: a calúnia das
autoridades judaicas e a corrupção do prefeito romano. A liberdade atuando contra a
verdade.
52. Então, a cruz de Jesus significou a morte da Verdade?
O corpo asfixiado e exangue de Jesus pendia da cruz às três da tarde do dia 14 de
Nissan, a poucos metros das muralhas de Jerusalém, na saída para o noroeste pela porta
chamada de Efraim (veja-se o plano da figura 3). Seu aspecto devia ser deplorável e
lastimoso, "sem figura humana", segundo a assombrosa profecia de Isaias. Havia sido
cruelmente açoitado por Pilatos, para ver se com aquele castigo seus acusadores davam-
se por satisfeitos e podia soltá-lo; embora os condenados à cruz devessem ser flagelados
para debilitar sua resistência. Alguns até morriam destruídos pelas varas ou correias,
terminadas em pontas metálicas que arrancavam os ossos do tórax da vítima à vista dos
verdugos. Além do mais Jesus havia sido "coroado" como rei com espinhos, da espécie
que cresce nos arredores de Jerusalém e são capazes de perfurar as malas dos peregrinos
que procuram levá-los para casa como lembrança piedosa da realeza do Nazareno.
A cena era aterradora. Porém a sensibilidade das pessoas estava acostumada àqueles
espetáculos que pretendiam ensinar possíveis criminosos. Eram muitos os que passavam
por ali e paravam por curiosidade. Aqueles que não o conheciam certamente diziam:
- Algo terá feito...
Mais dilacerantes ainda eram os comentários burlescos dos que o tinham visto antes ou
haviam ouvido falar do profeta de Nazaré e de sua obra: - "Vai! Tu que destróis o
santuário e o edificas em três dias, salva-te a ti mesmo baixando da cruz" (Mc 15,29).
Enquanto isso, os que o haviam seguido de perto, convidados por ele a compartilhar sua
vida e sua missão, os apóstolos, distinguiam-se por sua ausência cega. Que sinceridade
a dos evangelhos! Não são certamente um relato fraudulento destinado a glorificar a
nascente comunidade cristã.
Dor, abandono, fracasso... morte! Aparentemente, mais uma vez, a verdade era
silenciada e esmagada pela mentira do mundo. Nem agora havia sido possível o triunfo
38
da vida e da verdade? Também Jesus de Nazaré havia sido um ingênuo ao anunciar que
sua morte significaria um novo começo e uma Nova Aliança? Também ele havia sido
um tolo, agora derrotado, que havia fabricado uma idéia megalômana de si mesmo e
havia induzido, com alguma razão, seus adversários a considerá-lo um blasfemo e um
perigo para a ordem social?
Jesus morreu na cruz e as trevas cobriram a terra.
53. Se morreu acusado pela legítima autoridade religiosa do Povo de Deus, como
sabemos que Jesus não era culpado da impostura blasfema que lhe imputavam
seus juizes?
Esta é uma pergunta muito séria. Há quem se apresse a dizer que Jesus era realmente
"culpado", se não de blasfêmia, de sedição contra Roma e de desobediência aos poderes
religiosos de seu tempo. Jesus teria sido um herói da libertação social, exemplo para
todos os inconformistas e rebeldes da história, para todos os condenados legalmente
pelas leis e poderes injustos.
Certamente Jesus foi vítima de um abuso do poder. Já o dissemos. Porém apenas no
pensamento de determinados intérpretes políticos de sua figura poder-se-á encontrar
uma base para pensar que ele não reconhecesse as autoridades religiosas que o acusaram
ou inclusive que recusasse em absoluto a autoridade do prefeito romano que ditou sua
sentença. Ao contrário, no momento do julgamento no pretório, Jesus reconhece que
Pilatos tem uma certa autoridade que lhe foi dada "do alto", da mesma forma como
antes havia reconhecido a César um espaço de competência diverso daquele que ele
próprio considerava como objeto específico de sua missão: "daí a César o que é de
César".Os testemunhos de que Jesus aceitava as leis e as autoridades de seu Povo são
muitos: por exemplo, paga o imposto do templo, ordena aos leprosos curados que se
apresentem aos sacerdotes ou, em particular, aceita a autoridade do Sumo Sacerdote que
o julga, rebatendo a acusação de falta de respeito que ele recebe.
Nem Jesus nem seus juizes consideravam que o que estava em jogo era uma simples
causa de sedição ou de rebeldia social. Era muito mais que isso. A causa de Jesus era a
mesma causa de Deus, eram os caminhos que o Criador havia traçado para levar adiante
seu plano de salvação para uma humanidade encegueirada pela rebelião contra ele.
Porém seus juizes o sabiam? Podiam sabê-lo? Tinham razão ao condená-lo como
blasfemo, como suposto manipulador de Deus?
Parece que Jesus, a partir do patíbulo, desculpava aqueles que o haviam levado à morte
porque "não sabiam" o que faziam. A mesma coisa diz São Pedro em um de seus
primeiros discursos após Pentecostes: "não conheciam" aquele que haviam crucificado.
Porém, quererá isto dizer que Jesus não teria explicado com clareza a missão que trazia
da parte de Deus? Não havia mostrado suas credenciais? Mais adiante voltaremos a
estas questões quando repassarmos a maneira como Jesus se apresentou diante do povo
com suas obras e palavras.
O que agora temos que dizer é que, como Jesus previa, após sua morte aconteceu algo
que veio a dar-lhe razão diante de seus juizes: sua ressurreição de entre os mortos. Esta
foi a última credencial divina de Jesus. Se Jesus não foi abandonado na morte pelo Pai,
nisto temos uma confirmação decisiva, a parte do próprio Deus, de que Jesus tinha
39
razão. Longe de ser um blasfemo, Jesus tinha vivido e interpretado corretamente sua
vida e seu destino como ação divina para a salvação dos homens. Jesus ressuscitado sai
vencedor da mentira e da morte.
54. Como sabemos que Jesus realmente ressuscitou?
Há duas ordens de argumentos sobre o fato da ressurreição de Jesus. Algumas lógicas
outras históricas. A combinação de ambas oferece uma altíssima credibilidade para a
afirmação central e mais antiga da pregação da Igreja: "que Cristo morreu por nossos
pecados, conforme as Escrituras; que foi sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia
conforme as Escrituras; e que se deixou ver por Cefas; depois pelos Doze" (1 Cor 15, 3-
4).
A lógica exige supor que algum acontecimento verdadeiramente extraordinário deve ter
sucedido para que a morte de Jesus não tenha significado o fim de sua causa. Foram
muitos os judeus que tinham sido condenados por revoltas contra o poder estabelecido.
Todos caíram imediatamente no esquecimento e, supostamente, nenhum deles contou,
nem de longe, com seguidores que chegaram a se constituir em um vigoroso grupo
religioso, como o foi a comunidade cristã desde cedo.. Um fato assim exige uma razão
suficiente que o explique. Tanto mais quanto sabemos que o grupo humano que foi o
gérmen da Igreja, se havia manifestado pouco ou nada compreensivo para com a causa
de Jesus. É verdade que o admiravam, porém não o compreendiam. Não haviam
entendido de todo em que consistia sua missão salvadora. Haviam resistido em aceitar
os ensinamentos de Jesus a respeito da rejeição contra ele e a respeito de sua morte.
Quando chegou o momento da verdade, um deles o traiu e os demais o abandonaram
vergonhosamente, fugindo novamente para sua pátria da Galiléia.
O historiador há de se perguntar qual a causa da mudança radical ocorrida pouco tempo
depois da crucificação de Jesus: o que conseguiu converter aqueles rudes e covardes
galileus em clarividentes e decididas testemunhas da causa de Jesus em Jerusalém, em
Roma e em "todo o mundo"? A que pode dever-se aquela mudança tão chocante? A
lógica histórica pede que se procure uma razão suficiente, capaz de explicar aquela
metamorfose inesperada de todos que levou a Igreja de Jesus Cristo a percorrer os
caminhos da história até o dia de hoje.
Quem, do ponto de vista do historiador, se faça perguntas como essas, deparará com os
argumentos históricos que subjazem à pregação cristã: o túmulo vazio e as aparições do
Ressuscitado. Encontrar-se-á também com a argumentação filosófíco-religiosa que
interpreta aquele acontecimento, que não tem qualquer parâmetro histórico, no
horizonte da fé da Igreja..
55. Descobriu-se vazio o túmulo de Jesus?
Claro. Caso contrário não teriam sido possíveis a pregação cristã nem o
desenvolvimento da Igreja! Os adversários do Evangelho teriam podido apontar com o
dedo a falsidade do anúncio cristão da ressurreição e o teriam tornado inviável desde o
princípio; teriam tido a contra-prova: - "Aí tendes o túmulo com o cadáver desse que
dizem ter ressuscitado".
De fato, todas as tradições evangélicas falam do achado do túmulo vazio; também a
tradição de São João, de modo independente dos sinóticos. E verdade que os
40
testemunhos mais antigos acerca da ressurreição não mencionam expressamente esse
fato. Por exemplo, o capítulo 15 da primeira Carta aos Coríntios, citado na pergunta
anterior. Porém é que davam por suposto que se o "sepultado" (coisa que mencionam
expressamente) se havia deixado ver fora do sepulcro, é porque já não se encontrava ali.
Seu interesse era anunciar o fato, contudo de maneira concisa e mesclada de assombro,
medo e alegria. Apenas mais tarde, ante os ataques e objeções dos adversários, foi
necessário falar expressamente do achado do túmulo vazio.
56. Mas, é suficiente o tumulo vazio para demonstrar que Jesus ressuscitou?
Não era suficiente. Prova disso é que embora reconhecendo o fato de que Jesus já não
estava no sepulcro, os judeus davam uma explicação diferente do mesmo, embora
tivessem que recorrer à simples suposição de uma fraude: diziam que os discípulos o
haviam feito desaparecer. O fato não era negado, porém procuravam dar-lhe uma outra
explicação, já que se tratava de um dado realmente incômodo, sobretudo, se além de já
não estar no túmulo, Jesus se mostrava vivo às pessoas. Isto exigia uma explicação
alternativa para aqueles que não aceitavam a versão cristã dos fatos; e lançaram mão do
mais simples: os discípulos do crucificado dizem que o "vêem", porque roubaram o
cadáver. Contudo, aparentemente, não lograram demonstrá-lo, já que as supostas
testemunhas dos fatos - os estranhos guardas de um sepulcro - estavam dormindo!... Por
outro lado, também outras explicações posteriores de romancistas e racionalistas mais
fantasiosas não pareciam possíveis à vista dos acontecimentos: Jesus havia morrido à
vista de todos e estava bem morto; dificilmente se teria recuperado daquele suplício
pelo frescor benfazejo do túmulo, partindo, em seguida, de viagem para a Índia.
O tumulo estava vazio, mas por que? Qual o sentido desse fato empírico?
57. Que significa que o crucificado "foi levantado" do sepulcro e "se deixou ver"
pelos discípulos?
Em linguagem bíblica as construções em forma passiva "foi levantado" e "se deixou
ver", da mesma forma que o detalhe "ao terceiro dia", remetem a uma ação do próprio
Deus em e após a morte de Jesus. O escândalo da morte havia rompido a relação dos
discípulos com Jesus, porém não a relação de Jesus com Deus e, vice-versa, do Pai com
ele. Naturalmente, como toda ação divina, aquela intervenção de Deus na ressurreição
de Jesus não pode ser reduzida a um acontecimento classificável empiricamente como
um dado a mais dos atos intramundanos. Tampouco pode-se tentar explicar como uma
pura experiência subjetiva de algumas pessoas mais ou menos impressionadas por
acontecimentos dramáticos e interessadas neles. A não ser, é claro, que se pretendesse
excluir absolutamente como impossível toda ação de Deus, o Criador, em e com o
mundo; uma exclusão que é dificilmente explicável perante a razão verdadeiramente
humana e não limitada por preconceitos materialistas ou racionalistas.
As aparições do ressuscitado são comprovadas também por todas as tradições
evangélicas. Há divergências entre estas. Não é possível, por exemplo, fazer coincidir
facilmente a narração de Marcos, que situa todas as aparições em Jerusalém, com as de
João, que só fala de aparições na Galiléia. Em todo caso, trata-se de elaborações da
tradição antiga que relatava o fato das aparições do Senhor Ressuscitado a Cefas, aos
Doze, a mais de quinhentos irmãos, como Paulo atesta na primeira carta aos Coríntios.
41
58. Porém, em que consistiam as aparições? Era um Jesus retornado à vida de
antes aquele que lhes ia ao encontro?
Não. Jesus não havia ressuscitado como ressuscitou Lazaro, por exemplo, a quem ele
havia chamado de novo a esta vida, porém a quem os judeus planejavam matar também,
porque muitos seguiam Jesus por sua causa. A Jesus ressuscitado ninguém pode matar
de novo; já não mais morre porque sua vida é a vida da glória de Deus. A ressurreição
não devolveu Jesus a este mundo temporal e corruptível, mas o assumiu na vida
imperecível própria de Deus.
Os que se encontravam com Jesus ressuscitado experimentavam um acontecimento
muito diverso da visão de um cadáver simplesmente reanimado. As aparições não eram
visões de um morto. Eram uma revelação do próprio Deus na pessoa de Jesus Cristo, o
Filho eterno.
59. Então Jesus ressuscitado é um espírito sem corpo?
São Paulo fala que o Ressuscitado tinha um "corpo espiritual". Talvez por isso nem
sempre seus amigos o reconheciam à primeira vista. Estava transformado. Porém não
era um puro espírito, nem um fantasma, mas um corpo glorioso, cujas características
físicas já não eram as do espaço e tempo finitos. Contudo, continuava sendo o mesmo.
É
o que assinalam os relatos que insistem em que Jesus pedia aos seus que o tocassem e
que comia com eles. A mentalidade grega não podia entender de maneira alguma esta
idéia de "corpo glorioso” porque era dualista, isto é, considerava que os corpos não
podem fazer parte do mundo divino, mas formam parte inevitavelmente do mundo
material, considerado contraposto ao espiritual. Por outro lado, embora nem todos
acreditassem na ressurreição, os judeus podiam compreender que Deus, o Criador de
tudo, também da matéria e dos corpos humanos, quisesse que não se perdesse nada do
que havia criado e que desejasse recuperar em sua vida eterna não apenas a alma, como
também o corpo de suas criaturas, para que estas pudessem gozar para sempre de tudo o
que havia sido parte de seu ser e de sua vida no tempo. Em Jesus Cristo esse mundo
novo, transformado pelo poder de Deus, já começou. Seu corpo glorioso, já para sempre
em Deus, é o começo da nova criação.
60. Porém, para nós, homens do século XXI, a ressurreição dos mortos tem algum
sentido? Podemos considerá-la como algo além de um sonho impossível, pré-
científico?
O fato da ressurreição de Jesus adquire nova credibilidade quando pensamos mais em
algo que já dissemos: que as aparições eram uma forma de revelação que Deus fazia de
si mesmo aos homens.
Encontrar-se com Jesus ressuscitado não era a mesma coisa que encontrar um objeto
material, por exemplo, um livro que tenhamos perdido e voltemos a encontrar. Aquele
encontro significava um certo desvelamento do mistério de Deus propiciado,
naturalmente, pelo próprio Deus. Já dissemos que a vida de Jesus era então, com seu
"corpo espiritual", uma vida assumida em Deus, mais ainda, neste caso, a vida do
próprio Deus. Portanto, se alguém se negasse a aceitar a possibilidade da revelação de
Deus, dificilmente poderia entender o que acontece com o Ressuscitado. Por isso torna-
42
se tão difícil para alguns de nossos contemporâneos. Porque se encerram em seu
pequeno mundo, no qual supostamente não há lugar para Deus.
Porém o espírito humano está por si próprio aberto a Deus. Os homens, diversamente
das máquinas ou dos animais, estamos sempre, quer saibamos ou não, experimentando e
pensando em algo assim como Deus, no divino. É o que alguns atualmente chamam
experiência transcendental ou abertura ao Infinito. É o que nos constitui como seres
humanos e nos diferencia basicamente de todas as demais criaturas. Se assim não fosse,
por que estamos sempre desejando, por exemplo, um amor verdadeiro, isto é,
confiável,não limitado? Não é porque temos uma idéia do que pode ser o Infinito, o
Eterno?
Pois bem, se não acionássemos esta capacidade de conhecimento e de abertura
existencial ao verdadeiramente Infinito, não poderíamos entender o que significa a
ressurreição. Porém se não reprimimos esta capacidade, então o anúncio da ressurreição
de Jesus Cristo encontra um eco maravilhoso no coração e na mente do homem,
também no homem do século vinte e um ou pós moderno. Se assim não fosse, por que
está tão difundida hoje em dia, por exemplo, a crença na reencarnação? Não revelam
esta e outras crenças "pós modernas" que o desejo de vida em plenitude que grita no
fundo dos seres humanos continua vigente e necessita encontrar uma resposta
adequada?
61. Por que é mais adequada ou verdadeira a ressurreição que a reencarnação?
Os gregos repeliam a ressurreição porque consideravam que o que reaparece é uma
minus-valia do corpo semelhante ao anterior. Aqueles que consideram uma
sobrevivência do espírito ou da alma reencarnada em outros corpos, pensam que aquilo
que propriamente identifica o ser humano é esse espírito que emigra de corpo em corpo
e, ao mesmo tempo, acreditam que o corpo é algo secundário e que a alma poderia se
alojar hoje em um corpo e amanhã em outro.
Por outro lado, a fé na ressurreição toma a sério tanto a alma imortal de cada homem
como seu corpo. Este não é um simples envoltório da alma ou um alojamento mais ou
menos incômodo para ela. Não. O corpo faz parte da identidade da pessoa tanto quanto
a alma.Como poderíamos continuar sendo nós mesmos com o corpo de outros? De
quem então seríamos filhos e irmãos? A que povo pertenceríamos? Por meio do corpo o
ser humano se insere em uma rede de relações no espaço e no tempo que fazem parte de
sua identidade. Essas relações não são prescindíveis para a pessoa. Tampouco o são
para Deus. Ele nos chama a compartilhar sua vida, não a deixar a nossa. Para viver a
vida de Deus não precisamos deixar nosso corpo como se fosse uma casca inútil. Porque
o corpo é criatura de Deus e ele é poderoso para fazê-lo capaz da vida eterna.
A fé na ressurreição responde ao anelo de vida eterna da pessoa inteira. Não apenas de
uma parte dela, do espírito, senão de toda a realidade completa de sua identidade, que
inclui também o corpo e tudo o que de positivo recebemos por meio dele.
62. A ressurreição de Jesus é um fato histórico?
Não há dúvida: o sepulcro de Jesus ficou vazio, em Jerusalém, muito provavelmente no
dia 16 de Nissan do ano 30. Da ressurreição, como de todo fato histórico, pode-se
43
asseverar o lugar e a data em que aconteceu. Por outro lado trata-se de um fato que
deixou sua marca na história; marcou-a talvez de maneira mais profunda que nenhum
outro acontecimento nos anais da humanidade.Daquele primeiro domingo da história
surge o impulso definitivo que põe a caminho a Igreja e abre um horizonte de esperança
para todos os mortais, em particular, para os que sofrem e são abatidos por uma morte
aparentemente absurda. O fato e seus efeitos no mundo são, pois, comprováveis. Trata-
se de um acontecimento histórico.
Porém também há que dizer que se trata de um acontecimento sem comparação: não é
um fato histórico como os demais. Porque a ressurreição de Jesus Cristo é precisamente
o ponto em que confluem o tempo e a eternidade, o espaço deste mundo e o céu de
Deus. Precisamente por isso não é um acontecimento que pertença ao domínio do
meramente empírico, que se pode experimentar sob as condições da física usual, o qual
é, por definição, interior a este mundo. A ressurreição não pode ser compreendida a
fundo senão através da fé, isto é, da abertura à revelação de Deus. Neste sentido, trata-se
de um acontecimento que poderíamos chamar de meta-histórico, ou seja, que vai além
dos fatos históricos habituais.
Contudo, há que manter o caráter histórico da ressurreição do Senhor. Do contrário, isto
é, se afirmamos que não é um fato histórico, induziríamos a pensar erradamente que é
menos que histórico, ou seja, irreal; porém na realidade, conforme acabamos de dizer, a
ressurreição de Jesus é um acontecimento mais que histórico, ou seja, real em grau
superlativo.
44
5. O COMEÇO: NASCIMENTO E FAMÍLIA
63. Quando Jesus nasceu?
Curiosamente Jesus nasceu, com toda probabilidade, no ano 5 ou 6 antes de Cristo, isto
é, há cerca de 2011 anos e não os 2006 contabilizados até agora pelo calendário cristão,
embora este parta de seu nascimento, convertido na referência mais universalmente
aceita para o cômputo dos anos. O relógio do tempo humano marca um "antes" e um
"depois" de Jesus Cristo.
64. Por que não coincide o ano do calendário com o do nascimento de Jesus?
Como sabemos quando nasceu realmente Jesus de Nazaré?
Naturalmente, quando Jesus nasceu, contava-se o tempo de outra maneira. Só bem mais
tarde, quando sua figura já se havia convertido em uma referência universal, surgiu a
idéia de contar o tempo em relação com seu nascimento. Então foi necessário fazer
cálculos para passar do antigo ao novo sistema de contar. E cometeram-se alguns erros
ao fixar o momento do nascimento de Jesus no calendário que havia sido o mais usual
até então, que era o que havia contado os anos a partir da fundação de Roma.
De fato, foi no século VI que um monge romano, chamado Dionísio o Exíguo, fez os
cálculos mencionados. Para tanto tomou como ponto de referência fundamental a morte
do rei Herodes, que se situava no ano 754 da fundação de Roma. Supôs que neste
mesmo ano havia ocorrido o nascimento de Cristo e começou a contar a nova era cristã
a partir do ano 755. Porém equivocava-se tanto quanto à data de morte do rei, quanto
em fazer coincidir o nascimento de Cristo com aquele mesmo ano.
Conforme Flávio Josefo, Herodes morreu na primavera do ano 750. Hoje praticamente
todo mundo considera acertada esta data. Com isto temos que já adiantar o nascimento
de Jesus em quatro anos em relação ao cômputo inaugurado por Dionísio, isto é, o ano 4
antes de Cristo. Além do mais, os evangelhos de Mateus e Lucas coincidem ao afirmar
que Jesus nasceu “no tempo do rei Herodes”; ou seja, há que retroceder aquém, pois o
mais normal é que o “tempo” de Herodes não se reduza ao ano de sua morte. De fato, o
que é costume é adiantar o nascimento de Jesus de pelo menos um ano, seguindo, para
isto, o indício fornecido pela ordem dada pelo tirano de matar todos os meninos
menores de dois anos, com a finalidade de se assegurar de que entre eles estivesse o
temido messias. É assim que nos situamos no ano 5 ou 6 antes de Cristo para o
nascimento de Jesus; ou seja, no ano 748 da fundação de Roma.
Esses cálculos admitiriam de per si uma maior flexibilidade. É bastante certo que Jesus
nasceu anteriormente ao ano 4 antes de Cristo. Porém alguns adiantam a data até o ano
8, deixando margens mais amplas nos últimos anos do rei Herodes; não conferem
exatidão à referência dos dois anos mencionados no evangelho de Mateus. Entretanto,
os anos mencionados, de 5 ou 6 antes de Cristo, são os mais seguros, pois concorrem
também em seu favor outras referências cronológicas da vida de Jesus que se
harmonizam muito bem com essa data e, assim, a confirmam; levamos em conta,
particularmente, o início de sua atividade pública.
45
65. Sabemos quando Jesus deixou Nazaré para iniciar sua atividade pública?
Sim, é o momento sobre o qual os Evangelhos nos dão os dados cronológicos mais
precisos. Por isso essa data já nos serviu de referência na ocasião de apontar o ano da
morte de Jesus e agora volta a nos servir também para melhor determinar a de seu
nascimento.
Duas tradições evangélicas distintas – a de Lucas e a de João – fornecem dados
coincidentes que nos permitem situar com bastante segurança o início da vida pública
de Jesus entre os anos 27e 28 da era cristã.
São Lucas (3, 1) se preocupa em determinar o aparecimento público de João Batista e,
com ele o de Jesus, no marco da história universal: “No décimo quinto ano do governo
do imperador Tibério, quando Poncio Pilatos governava a Judéia, quando Herodes era
tetrarca da Galiléia”, etc.
Qual é esse décimo quinto ano de Tibério? Se contamos a partir do ano 14, em que
morreu Augusto – o imperador anterior – seria o ano 29 da era cristã. Porém sabemos
que Tibério partilhou o poder nas províncias ocidentais do Império com seu predecessor
durante quase três anos, isto é, já desde o ano 12. Caso Lucas se referisse a essa data, o
ano décimo quinto do governo de Tibério seria então o ano 26. Os anos 26 e 29 são,
pois, respectivamente, o mais cedo e o mais tardio possível para o início da vida pública
de Jesus. Podemos precisar melhor recorrendo à tradição de São João.
Este, com efeito, coloca o começo da atividade de Jesus quarenta e seis anos após o
início da reedificação do templo: “Em quarenta e seis anos este santuário foi edificado e
tu o reerguerás em três dias?” (Jo. 2, 20). Sabendo que as obras do templo haviam sido
iniciadas por Herodes no ano 20/19 antes de Cristo, a partir dessa observação podemos
deduzir que Jesus faz seu aparecimento público no ano 27/28. A correspondência com
os dados de São Lucas é bastante exata. Assim, podemos dar por assentado que esta é a
data em que Jesus deixa Nazaré para percorrer os caminhos da Palestina. É a data muito
aproximada de seu batismo por João, de que falaremos no próximo capítulo.
66. Quantos anos permaneceu então Jesus em seu povoado de Nazaré?
São Lucas diz que “Jesus começava aos trinta anos” (3, 23) sua atividade fora de
Nazaré. Outro dado que confere perfeitamente com os anteriores e que nos inclina a não
ir além do ano 6 antes de Cristo no momento de estabelecer o nascimento de Jesus.
A expressão flexível “aos trinta anos” permite contar com uma margem de dois ou três
anos em torno dos trinta. Se Jesus nasceu no ano 6 antes de Cristo e começou sua vida
pública no ano 27, tinha para esta última data 32 ou 33 anos. Longos anos de
obscuridade e ocultamento (veja-se a figura 5).
67. Porém são confiáveis todas essas datas baseadas nos Evangelhos?
Alguns exegetas não confiam. Dizem, por exemplo, que atribuir a Jesus “uns trinta
anos” quando inicia sua atividade, é simplesmente um recurso literário que alude a uma
idade de vitalidade máxima julgada ideal para este empreendimento: a idade típica de
outros personagens bíblicos como Davi ou José em tais circunstâncias (cf. 2 Sam 5, 3 e
46
Gn 41, 46). No que se refere aos dados da infância de Jesus relatada por Mateus e
Lucas, não são poucos os que consideram puramente simbólicos ou tipológicos.
É certo que, se Lucas fazia esse tipo de alusões tipológicas nos relatos da infância, podia
fazê-lo também ao falar dos trinta anos aludidos. Porém isso não é razão suficiente para
negar que o conjunto dos dados cronológicos apresentados, baseados em referências à
história geral profana e na cronologia relativa inerente aos evangelhos, forneça um
panorama coerente e altamente confiável. Para negar em conjunto sua confiabilidade,
seriam necessárias razões que pusessem em contradição cada elemento desse conjunto.
Além de ter que mostrar que fazer alusões tipológicas seja algo absolutamente
incompatível com refletir, ao mesmo tempo, fatos históricos.
68. E sobre o dia do nascimento de Jesus podemos dizer algo exato?
Não sabemos o dia do nascimento de Jesus. Porém isto não é nada estranho. Deve-se
levar em conta que, na época, não havia registros civis nem paroquiais, não havia atas
de nascimento nem de batismo. Estas não começaram a ser feitas com regularidade
senão no século XVII! Os registros civis são ainda mais recentes. Por isso não
conhecemos o dia do nascimento de muitos personagens que já nasciam como príncipes
ou filhos da classe dominante, que seriam escritores ou pessoas influentes no mundo.
Jesus já nasceu, é certo, como “príncipe!”, porém como um príncipe muito especial que
o era na pobreza e na obscuridade de uma família humilde. Não era de esperar que se
registrasse em lugar algum a data de seu nascimento. Não a conhecemos.
69. Por que então celebramos seu nascimento no dia de Natal?
A celebração do nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro tem uma origem e um
sentido litúrgico, isto é, não pretende tanto festejar um “aniversário”, quanto celebrar o
que aquele acontecimento significa também hoje para o cosmos e para a humanidade.
Por isso a data do Natal foi estabelecida (no século III) com dupla referência: uma
cósmica e outra histórica.
A referência ao cosmos parte da comparação de Cristo com o sol. O “dia do sol”, o
primeiro dia da semana, se impusera como o dia da celebração da Páscoa cristã, em
oposição à data fixa, de 14/15 de Nissan, em que os judeus a celebravam. Era o dia da
ressurreição daquele que havia sido crucificado quando se sacrificava o cordeiro pascal.
Então deduzia-se também que Cristo teria sido concebido, simbolicamente, no próprio
dia em que o sol havia sido criado. Uma tradição das comunidades cristãs do norte da
África apontavam para a criação do sol em 25/23 de março. Além disso, esta data era
também atribuída à morte de Cristo na cruz, da mesma maneira como os judeus
pensavam que nesse dia Abraão se dispusera a sacrificar seu filho Isaac.
Pois bem, a referência ao acontecimento histórico da cruz e da ressurreição foi
determinante. Contando nove meses a partir desse momento, em que a tradição fazia
coincidir a comemoração da concepção e da morte do Senhor, chega-se a 25 de
dezembro, dia em que começou-se a celebrar o nascimento de Jesus.
Mais tarde, a meio caminho entre a Anunciação (março) e o Natal (dezembro),
introduziu-se a festa do nascimento de João Batista, a 24 de junho, quando o sol, que
havia começado a ganhar espaço sobre as trevas em março, começava novamente a
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retroceder, para voltar a correr vitorioso desde o solstício de inverno, no Natal. Dava-se
assim uma encenação cósmica à afirmação profética do Batista: “Eu tenho que diminuir
para que ele cresça”.
Deste modo, a história da salvação, marcada pela Páscoa do Senhor, integrava em seu
ritmo e em sua finalidade salvífica os ciclos do devir do cosmos. O Natal não nasce
como uma mera réplica ao culto imperial do sol, mas como expressão do cumprimento
do fim da criação em Cristo.
70. Jesus nasceu realmente de uma mulher virgem?
O Credo da Igreja proclama que Jesus “se encarnou por obra do Espírito Santo, da
Virgem Maria”. Contudo, o Novo Testamento é, na verdade, muito sóbrio quando narra
a concepção e, mais ainda, o nascimento de Jesus. Decorre daí que algumas
interpretações exegéticas, procurando estar em bons termos com o chamado sentido
comum (na verdade com o empirismo materialista), neguem que Jesus tenha sido
concebido e nascido de maneira extraordinária. Este é um dos casos em que a tradição
eclesial se mostra decisiva quanto à correta interpretação dos textos bíblicos.
Com efeito, apenas em duas passagens do Novo Testamento fala-se expressamente que
a concepção de Jesus foi obra do Espírito Santo, isto é, do próprio Deus. Somente
nessas duas passagens está também dito que nenhum varão teve parte na geração de
Jesus. Trata-se dos evangelhos de Mateus (1, 18-25) e de Lucas (1, 34-35).
Além do mais, Mateus conclui sua genealogia de Jesus excluindo José da ação geradora,
ao contrário do que havia feito com todos seus predecessores varões, e introduz
inesperadamente Maria para dizer que dela nasceu Jesus (cf. Mt 1, 16).
71. São históricos esses poucos relatos que falam da concepção virginal de Jesus?
Qual seria sua fonte de informação?
Os primeiros capítulos de Mateus e Lucas, precisamente os únicos que dizem ter Jesus
sido concebido por obra do Espírito Santo, são considerados por alguns como
desprovidos de qualquer base histórica. Dizem que são composições literárias
tipológicas, construídas para demonstrar, no caso de Mateus, que em Jesus cumprem-se
as profecias do Antigo Testamento, entre elas a de Isaias que falava de uma virgem ou
donzela mãe (Is 7, 14), ou então, no caso de Lucas, o paralelismo entre os nascimentos
prodigiosos de Jesus e João.
Certamente são composições literárias com uma intenção teológica. Porém, pode-se
afirmar, somente por isto, que carecem de toda base histórica? Se não são dadas outras
razões, receamos que esse tipo de contraposição entre teologia e história não é senão um
reflexo do preconceito cognoscitivo que tende a identificar as afirmações teológicas
com construções puramente mentais e irreais e, a considerar, por outro lado, que o
histórico é igual ao mensurável e passível de constatação empírica, identificado com o
real. Porém é necessário abandonar os preconceitos e ater-se aos fatos. Entre esses, os
exegetas reconhecem os seguintes.
Em primeiro lugar que as narrações de Mateus e Lucas são independentes uma da outra.
Não foram copiadas, conforme demonstram, entre outras coisas, o fato de que seguem
projetos literários muito diferentes e apresentam múltiplas divergências concretas.
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Entretanto, em segundo lugar, entre os dados em que coincidem estão os referentes à
concepção virginal de Jesus por obra do Espírito Santo. Este duplo testemunho é prova
de que ambos dependem de uma tradição mais antiga que têm interesse em compilar e
transformar em elemento central de suas composições narrativas. Em terceiro lugar,
notou-se também que não é exato que aquilo que dizem os evangelhos responda
inteiramente ao esquema dos mitos ou lendas de algumas religiões sobre heróis ou semi-
deuses procedentes da relação carnal de determinados deuses com algumas mulheres;
nem sequer reproduzem os esquemas de certos nascimentos prodigiosos que aparecem
na Bíblia. A narração evangélica fala de outra coisa muito distinta e sem qualquer
paralelo, como veremos a seguir.
Estes dados são suficientes para que não se possa de qualquer modo dizer que o
conjunto dos capítulos evangélicos em questão sejam meras composições literárias sem
qualquer confiabilidade histórica. Além do mais, o que dizem da concepção de Jesus
constitui o centro do interesse histórico de ambos os relatos.
Não há unanimidade na hora de determinar a origem da tradição histórica compilada
pelos evangelistas. Schürmann, por exemplo, a faz retroceder a uma “íntima tradição
familiar”, na qual, sem dúvida, o testemunho de Maria teria desempenhado um papel
importante. Outros preferem referir-se a uma comunidade primitiva, sem mais detalhes;
isto é, àquela mesma comunidade na qual se desenvolveu a primeira compreensão
elaborada da figura de Jesus como o Filho de Deus.
72. Por que não há mais testemunhos da concepção virginal de Jesus no Novo
Testamento, tratando-se de algo tão original e maravilhoso?
Naturalmente é preciso lembrar que o silêncio não é, de modo algum, um argumento
contrário. Além do mais é explicável que nem São Paulo, nem São Marcos, nem São
João falem da concepção virginal. Esses testemunhos da tradição partem de outros
pressupostos para dizer o mesmo que Mateus e Lucas desenvolvem falando da
concepção de Jesus por obra do Espírito Santo. Eles partem “de cima”, isto é, de que a
pessoa de Jesus, o Logos, já existia no seio de Deus e se faz homem. Assim o
Evangelho de João começa, em seu conhecido prólogo, com a afirmação taxativa: “No
princípio era o Verbo...e o Verbo se fez carne”. São Marcos começa também falando do
“Filho de Deus” (1, 1), do mesmo que é “Filho de Maria” (6, 3). De sua parte, São
Paulo, pouco após a morte de Jesus, recolhia a interpretação que a comunidade
primitiva havia feito de sua figura como o Filho preexistente de Deus que se despojou
assumindo a carne do pecado (Rom 1, 3; 8, 3; Fil 2, 6). Por outro lado, Mateus e Lucas,
adotam outra perspectiva, pois partem “de baixo”, isto é, não do Logos enquanto Deus
no seio do Pai, mas enquanto homem no seio de Maria.
73. Que diz a concepção virginal sobre a verdade da história de Jesus?
A história da concepção virginal de Jesus não é nem um mito nem um espiritualismo
que desmereça a corporalidade e a sexualidade humana. Não é um mito em que o
Espírito Santo atue como se fosse um princípio gerador que substituísse a paternidade
biológica habitual, como acontece na união entre deuses e mulheres que considera, por
exemplo, a mitologia grega. O Espírito de Deus atua, antes no plano que lhe é próprio,
isto é, como força divina criadora, da qual tudo procede, que não tem necessidade de
quebrar as leis da natureza por ele criada, porém que também pode atuar de maneira que
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as transcenda: “para Deus nada é impossível”. Com isto já se percebe que o objetivo
desta ação especial do Espírito não é evitar a geração humana normal, como se essa
fosse indigna de Jesus ou de sua mãe, por tratar-se de um meio impuro ou menos bom,
conforme algumas concepções espiritualistas pensavam erroneamente. O corpo humano
e seus dinamismos sexuais são, ao contrário, também obra do Criador e, portanto, de per
si, dignos e puros.
Que o Espírito Santo “cubra com sua sombra” Maria,não é uma expressão de conotação
sexual, mas teológica. A finalidade de tal ação divina, como no caso da nuvem que
“cobria” o Sinai ou da tenda da teofania (Ex 40, 35), quando Deus se revelava, é
manifestar a realidade de Deus. Por isso o Criador atua aqui de modo transcendente às
causalidades humanas comuns: para mostrar a especial e única pertença da humanidade
de Jesus à divindade de Deus.
A concepção virginal de Jesus o apresenta como Filho de Deus, em sua humanidade,
desde a raiz e o começo de seu ser como criatura.
De modo que pode-se dizer que Jesus não é Filho de Deus por haver sido concebido
virginalmente, senão que, ao contrário, foi concebido virginalmente porque ele era o
Filho eterno de Deus. Nisto se baseia precisamente a verdade profunda de sua história: o
Logos, a razão de ser de tudo o que existe, cria, por seu Espírito, um novo começo, ao
aparecer no mundo como criatura humana.
74. Como se coaduna este fato tão extraordinário no próprio começo da vida de
Jesus com o qual todos, inclusive sua mãe, parece que não chegaram a
compreender quem ele era até depois da ressurreição?
Muito provavelmente, a concepção virginal de Jesus não foi um fato de domínio
público. Antes fez parte do mistério que Maria guardava em seu coração. Ela o partilhou
com seu esposo José (instruído também por Deus a esse respeito) e ambos o guardaram
como parte de sua intimidade pessoal e de sua relação pessoal com Deus. Também eles
precisavam de tempo para compreender. Além do mais como teriam podido ser
entendidos por parentes, vizinhos ou amigos se tivessem pretendido explicar uma
realidade tão maravilhosa que nem eles próprios, em sua intimidade com Deus, haviam
podido desvendar completamente?
O sentido completo daquele acontecimento prodigioso foi sendo revelado a Maria e
José à medida que seu filho lhes ia sendo mostrado como o Filho de Deus. É verdade
que eles já sabiam desde o princípio: Jesus não era filho de José. José era, nem mais
nem menos, o escolhido para incluí-lo legalmente na genealogia de Davi.Porém
somente isto. Aquele menino encerrava em si um mistério infinitamente maior que o de
qualquer menino que vem a este mundo. Suas palavras, seus atos e, sobretudo, sua
morte e ressurreição iam manifestando isso plenamente. Eram também necessários
paciência e olhos para ver.
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75. Porém não é pouco crível que uma menina palestina tivesse o propósito de
manter sua virgindade naquela cultura que tanto valorizava a maternidade e a
paternidade? Não já estava de fato prometida?
Era certamente muito pouco comum, mas não absolutamente impensável. A procriação
e a prole abundante eram sinais da benção de Deus. Porém tampouco deixou de haver
em Israel pessoas, e inclusive grupos inteiros que se abstinham das relações conjugais
como sinal de uma especial dedicação a Deus ou como resposta a um seu chamado
particular. Entre os primeiros contam-se alguns profetas, entre os quais, João Batista.
Também na época de Jesus, os grupos chamados de essênios se abstinham das relações
conjugais por motivos religiosos, pois esperavam uma imediata intervenção de Deus
que implantaria seu Reino e daria por completado este tempo da criação.
Maria estava prometida a José. Porém ela se havia feito o propósito de consagrar sua
virgindade a Deus. Isto se infere de sua surpresa ante a anunciada concepção de Jesus:
“como será isto, pois não conheço varão?” (Lc 1, 34). Ela não desconfia do poder de
Deus; manifesta sua perplexidade ante uma situação que lhe parecia contraditória com o
que o próprio Deus lhe havia pedido e ela lhe havia oferecido. Maria, a Virgem de
Nazaré, representa, com seu “faça-se” (fiat), o assentimento radical da Humanidade
inteira ao convite divino à união com Deus.. Maria era uma jovem excepcional por sua
vida interior com Deus, porém comum por seu modo de vida na remota aldeia de
Nazaré. Por isso precisava estar prometida a um futuro esposa, que a protegesse e que
desse regularidade social a sua vida. José havia sido escolhido para isto. Esta a razão
porque Mateus o faça também destinatário direto da revelação de Deus. Ele teve suas
dificuldades para reconhecer sua vocação e para entender o que acontecia com sua
prometida. Porém sua abertura aos desígnios divinos foi também exemplar e sua
missão, única.
76. Nasceu Jesus em Belém? Por que então o chamavam “o Nazareno”?
Alguns livros que pretendem ser exatos – e em outras coisas o são – afirmam
taxativamente que Jesus não nasceu em Belém de Judá, como se acreditou até agora,
mas em Nazaré da Galiléia. Em que se baseiam? Fundamentalmente em dois
argumentos. O mais simples é que todo mundo o conhecia como “o nazareno” e, ao
contrário nunca é apelidado o belemita. O outro argumento tem novamente a ver com os
relatos evangélicos que narram o nascimento de Jesus em Belém, que são os capítulos
de Mateus e de Lucas chamados “evangelhos da infância”, dos quais acabamos de falar.
Não seriam relatos históricos, senão meras demonstrações teológicas e, por isso
localizam o nascimento de Jesus em Belém, mais por uma necessidade teológica que
por uma realidade histórica. São Mateus, particularmente, conseguiria assim
demonstrar, à sua maneira, que Jesus é da descendência de Davi, cuja cidade era Belém.
Precisava disto para garantir sua condição messiânica, pois, segundo a tradição mais
arraigada, o messias deveria ser um descendente daquele grande rei.
Novamente encontramo-nos aqui com provas que, se algo comprovam, são, a nosso
modo de ver, certos preconceitos sobre a excessiva liberdade criativa daqueles primeiros
teólogos que foram os evangelistas. Como se explica que tanto Mateus como Lucas
coincidam na mesma “invenção” teológica do nascimento de Jesus em Belém, sendo
escritores independentes um do outro? Novamente seu duplo testemunho atesta a
existência de uma tradição anterior a suas elaborações teológico-literárias. Tanto mais
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quanto suas narrações apresentam certas incongruências que, entretanto, deixam sempre
a salvo o dado do nascimento em Belém. Assim, Mateus não menciona que Maria e
José vieram de Nazaré a Belém, senão que os supõe desde o princípio em Belém,
enquanto Lucas explica essa viagem por causa de um censo imperial. Todavia há,
atualmente, uma terceira referência independente acerca do nascimento de Jesus em
Belém no Evangelho de São João (7, 42).
Por que não dar crédito então ao que os dois evangelistas receberam da tradição
primitiva sobre Jesus, indubitavelmente integrado por eles em seus respectivos e
diferentes relatos? Não é fácil encontrar o referente histórico do censo de que fala
Lucas. Alguns pensam a seguir que esta dificuldade é um dado a mais a favor da
artificiosidade do relato de Belém. Porém esse detalhe, na verdade secundário, não
obsta para o fato principal possa ser admitido: Jesus nasceu em Belém, seja qual for a
razão pela qual seus pais ali se encontravam naquele momento. De resto, para o famoso
censo de Quirino é possível fornecer diversas explicações que não o tornam de todo
inverossímil. Entre elas, a que fornecem García Pérez e Mariano Herranz, que
mencionamos ao responder a pergunta seguinte.
Que Jesus fosse chamado “o Nazareno” é normal, se, tanto seus pais como ele haviam
residido longos anos em Nazaré, embora houvesse nascido acidentalmente em Belém.
77. Por que José e Maria foram de Nazaré a Belém?
Uma medida administrativa deve ter sido o que os obrigou a deslocar-se, estando Maria
grávida. Alguns autores indicam que a ausência permitiu que o nascimento de Jesus
ficasse providencialmente a salvo dos olhos perscrutadores dos vizinhos da aldeia,
deixando bem amparada a reputação de ambos, dadas as circunstâncias excepcionais da
concepção de Jesus e o momento em que começaram a conviver, quando ela já havia
concebido seu filho. Porém além destas considerações piedosas, os autores
mencionados na pergunta anterior encontram uma solução para a razão externa que os
teria obrigado (ou brindado a ocasião “providencial”) para viajar, embora esperando um
filho.
A explicação é lingüística. Tudo coincide, si se traduz bem o texto evangélico. Este nos
falaria de um recenseamento do tempo de Quirino, o qual nos levaria pelo menos ao ano
6 depois de Cristo (demasiado tarde), mas que se trataria de “um primeiro
recenseamento, antes de Quirino ser governador da Síria”. De algo a esse respeito há
comprovação epigráfica extra-bíblica , no ano 3 antes de Cristo, que, segundo vimos, é a
época aproximada do nascimento de Jesus. Nessa época Augusto havia estabelecido um
juramento de fidelidade, ordenado diretamente em cada lugar pela autoridade local, em
nosso caso por Herodes. Para anuir a este os chefes da casa de Davi, em Belém,
convocaram insistentemente todos os seus a comparecerem ali. Deste modo podiam
apresentar listas mais completas ao rei Herodes. Por isso José se teria deslocado até a
Judéia podendo assim prestar o juramento no distrito principal mais próximo de Nazaré,
que era Séforis, capital da Galiléia. “Sua cidade” porém era Belém e ali era conhecido e
para ali chamado. Não podia defraudar os seus.
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78. Onde e em que trabalhavam José e Jesus?
José, ou talvez já seus pais, se tinha deslocado de Belém para Nazaré provavelmente por
motivos de trabalho. Veremos porque atualmente se pensa assim. Os vizinhos de Jesus o
chamam, em tom um tanto depreciativo, “o filho do carpinteiro”. Este é um dado
confiável. Porém o que quer dizer exatamente “carpinteiro”?
A palavra tekton que se pode traduzir por “carpinteiro”, foi tradicionalmente entendida
como referente ao artesão popular, isto é, alguém que era capaz de todo tipo de
trabalhos de construção em um ambiente rural elementar: desde o manuseio de
instrumentos de lavoura até de elementos para tecer e para a construção das humildes
vivendas. José (Mt 13, 55) e o próprio Jesus (Mc 6, 3) teriam desempenhado essas
funções na pequena aldeia de Nazaré.
Hoje preferem-se outras interpretações, que se apóiam nos avanços da arqueologia. As
escavações puseram a descoberto como era então o povoamento de minúsculas aldeias
como Nazaré. As casas eram escavadas quase completamente na rocha e contavam com
poucos móveis. Os utensílios do campo, muito elementares, eram fabricados pelos
próprios camponeses. Nazaré, pois, não podia dar trabalho a uma família de
“carpinteiros” ou artesãos no sentido em que se veio a compreender esse termo. Por isso
especialistas, como González Echegaray, pensam que tekton era simplesmente o
operário da construção. Porém em que obras podiam trabalhar Jesus e José em Nazaré?
A arqueologia pôs a descoberto nos últimos anos as ruínas de duas grandes cidades que
foram, uma após outra, capitais da Galiléia na época de Jesus: Séforis, que chegou a
contar com cerca de 50.000 habitantes e depois Tiberíades, mais nova e menor. Ali
houve trabalho em abundância para os operários da região, como José e Jesus.
Séforis está localizada apenas a cinco quilômetros ao norte de Nazaré. Podia-se ir e
voltar em um dia (veja-se o mapa da figura 6, pág. 150). Era uma cidade do tipo greco-
romano, com seu grande teatro – construído possivelmente no início do século I –
bairros de traçado retangular, banhos etc. Tinha sido destruída no ano 4 antes de Cristo
por ocasião de um levante contra Roma; a seguir Antipas começou a reconstruí-la como
capital de seu território. Os trabalhos, aparentemente febris, devem ter atraído operários
inclusive da Judéia, como parece ser o caso de José e seus pais. Estabelecido em
Nazaré, José, como judeu piedoso, preferiu viver naquele lugar menos contaminado
pelo paganismo que a grande Séforis. Este seria também o motivo pelo qual os
evangelhos não mencionam essa cidade e apenas uma vez, de passagem, nomeiam
Tiberíades (Jo 6, 23). Não eram lugares suficientemente convenientes para a fé
hebraica.
Tiberíades foi fundada por Antipas por volta do ano 22 para ali trasladar sua capital.
Estava nas margens do mar da Galiléia ao qual acabaria dando seu nome: Tiberíades. A
distância a partir de Nazaré era maior. Não obstante, González Echegaray pensa que
Jesus passou a viver ali, quando já sozinho, após o falecimento de seu pai, em busca de
trabalho. Não se pode excluir isso. Porém tampouco parece que haja razões suficientes
para afirmá-lo. Que indícios há? Que teria podido ocasionar que Jesus se decidisse a ir
viver em um lugar pagão inclusive no nome?
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79. Qual era o nível social da família de Jesus?
Não eram pobres. Tampouco eram ricos. Não eram operários peões ou jornaleiros. Para
esses trabalhos empregava-se no grego do Novo Testamento a palavra ergates. Ao
contrário José e Jesus são chamados sempre pela palavra tekton, que designa o operário
especializado no setor da construção. Diversamente do que ocorria nas sociedades
greco-romanas, o exercício de um ofício manual não era mal visto no mundo judaico em
que nasceu e viveu Jesus. Ao contrário, os ofícios gozavam de apreço social, como
atesta o fato de que a maioria dos escribas, naquela época, exercia algum tipo de ofício.
80. Que idioma ou idiomas Jesus falava?
É muito provável que Jesus dominasse dois idiomas. Não era estranho entre os orientais
e menos ainda naquela Palestina em que se cruzavam os caminhos do oriente e do
ocidente. Todo mundo está de acordo em que o idioma materno de Jesus era o aramaico,
uma forma dialetal do hebraico. Há palavras aramaicas que, por assim dizer, permearam
a tradução grega que conservamos de seus ensinamentos no Novo Testamento. Abba
(pai, papai) ou talita kumi (menina levanta-te) são formas aramaicas. É seguro afirmar
que, como Pedro, Jesus falava o aramaico de maneira e com sotaque galileus.
Também é provável que Jesus falasse grego. Esta era a língua franca de então no
mediterrâneo, algo assim como o inglês em nosso mundo atual. Muita gente se defendia
em grego, sobretudo os comerciantes, os soldados e, certamente, os intelectuais.
Também os artesãos qualificados que trabalhavam em cidades mais ou menos
cosmopolitas, como Séforis.
Além do mais é quase certo que Jesus podia entender algo do hebraico que era lido na
sinagoga. Era o idioma oficial do culto.
Jesus podia inclusive entender algo do latim. Era o idioma da burocracia oficial romana,
embora esta utilizasse também o grego. Há quem pense que Jesus falou diretamente
com Pilatos em latim ou, então, em grego.
81. Escrevia, lia? Qual era a formação de Jesus?
Jesus não era um intelectual, já o sabemos. Tampouco era de modo algum um
analfabeto. Muito provavelmente não escreveu nenhuma obra literária. Porém quase
certamente sabia ler e escrever. Entre os judeus observantes o grau de alfabetização e de
cultura era bastante mais alto que entre a média da gente de então. Nas famílias e nas
sinagogas ensinava-se meninos e meninas a ler a Lei e os profetas. Assim foi no caso de
Jesus, que certamente aprendeu a ler com seus pais e na sinagoga, que sabemos que
existia em Nazaré.
Os evangelhos mostram-nos Jesus lendo na sinagoga de seu povo (Lc 4, 16 s) e também
perguntando a seus ouvintes: “Não haveis lido...?” (Mc 2, 25), fórmula que supõe
obviamente que ele próprio sabia ler.
Jesus era tratado como rabi. Muito provavelmente não era considerado como um
“escriba” com estudos formais, porque ele não havia estudado (ver Jo 7, 15); porém
reconhecia-se que era um “mestre”, por sua penetração e compreensão da Escritura e
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porque se dedicava a explicar seu sentido como um autêntico “mestre”, com grande
capacidade comunicativa, tanto por seus recursos retóricos e literários, como sobretudo,
pela “autoridade” com que aparecia e se expressava. Mais adiante voltaremos a esta
questão.
Em resumo, podemos dizer, que Jesus tinha uma formação própria de um judeu de
família piedosa de sua época que não visitou escolas “superiores”. Foi o suficiente para
converter-se em um verdadeiro mestre admirado por todos, amigos e adversários.
82. Jesus teve irmãos carnais?
A tradição histórica sobre Jesus fala expressamente, como vimos, que o poder criador
de Deus atuou de forma muito especial em sua concepção virginal, para manifestar que
aquela humanidade do menino que nasceria de Maria, era a do Filho eterno do Pai. Ao
contrário, não fornece nenhuma reflexão especial sobre a existência de possíveis irmãos
carnais de Jesus. Porém o Novo Testamento faz algumas menções, de passagem, a
“irmãos” e “irmãs” de Jesus que suscitam a questão a respeito de ter tido a família de
Nazaré outros filhos além dele.
Alguns pensam que inclusive o primeiro capítulo de São Mateus forneceria a imagem
de uma família com mais filhos além de Jesus quando diz que “ele (José) não teve
relação com ela até que deu à luz seu filho (Mt 1, 25). Porém esta frase não vai além de
dizer que José “não se uniu a ela antes que desse à luz”; não prejulga nada acerca de
possíveis relações maritais posteriores entre ambos.
Por outro lado, a passagem do evangelho de Marcos que relata a reação negativa dos
vizinhos de Jesus diante de seu ensinamento, parece supor que Jesus tinha irmãos que
eram filhos de Maria. Os nazarenos só chamam a ele expressamente “o filho de Maria”,
porém acrescentam imediatamente que é “irmão de Santiago, de José, de Judas e de
Simão”; e que também conhecem “seus irmãos” (Mc 6, 3). São Paulo se refere a um
Santiago, “irmão do Senhor” (Gal 1, 19). Como, além do mais, em outras ocasiões fala-
se também vinculando de modo semelhante a “sua mãe e seus irmãos” (3, 32), autores
antigos e modernos (Tertuliano ou os protestantes liberais, porém também alguns
católicos) pensam que, segundo o Novo Testamento, Jesus teve irmãos que eram filhos
de Maria.
Entretanto essas aparências podem enganar. Ninguém tem necessariamente que chegar a
essa conclusão partindo dos dados do Novo Testamento. Este antes dá margem à
interpretação católica que entende que Maria não apenas concebeu Jesus virginalmente,
senão que permaneceu sempre virgem. Vejamos três tipos de razões neste sentido.
Primeiro, algumas razões de coerência geral. Se a família de Nazaré tivesse sido
realmente uma família com vários filhos, não se teria extraído nenhuma conseqüência
notável disto? Por exemplo, não teria dado este fato margem a considerar até que ponto
o Filhos de Deus se fez realmente irmão de todos os homens, que alguns, de nomes
conhecidos, são inclusive seus irmãos carnais? Não teria a comunidade cristã primitiva
prestado a estes uma atenção e inclusive uma veneração – semelhante àquela prestada a
Maria e José – que teria afastado toda dúvida quanto ao fato de sua existência?
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Por outro lado, se Maria tivesse contado com uma prole mais ou menos numerosa, não
teria tido muito menos sentido o gesto de Jesus quando do alto da cruz a confia ao
discípulo amado, convertendo-a deste modo em mãe de todos os discípulos e em figura
da Igreja? Teria sido aquele gesto realmente possível, ou, ao menos, tão carregado de
sentido, se Maria não tivesse ficado só, em sua velhice, após a morte de Jesus?
Segundo, indícios exegéticos. O evangelho de Marcos (15, 40) diz que junto à cruz
achava-se uma certa Maria, a qual identifica como “a mãe de Tiago e de José”. Como
observa Fitzmayer, não é nada provável que o evangelista utilizasse este estranho
circunlóquio par designar a mãe daquele que pendia ali mesmo da cruz, isto é Jesus.
Neste caso a cena teria exigido uma designação direta de “a mãe de Jesus”. Então, se
aquela Maria não era a mãe de Jesus, Tiago e José e os demais que Marcos menciona na
cena de Nazaré, não eram irmãos carnais de Jesus.
Terceiro, interpretações alternativas. Os dados bíblicos, pois, não são imperativos.
Permitem e inclusive pedem que se interprete o sentido que podem ter as alusões aos
“irmãos” e “irmãs” de Jesus. Essas interpretações , muito diversas, existem. Algumas
delas remontam ao início do século II, quando o evangelho apócrifo de Tiago diz que se
tratava de filhos de José, trazidos por ele de um matrimônio anterior a sua união com
Maria. São Jerônimo, no século IV, se opõe a essa explicação e indica outra, de natureza
filológica, que permite entender os “irmãos” de Jesus em um sentido mais amplo como
“parentes” sem ter que determinar o tipo nem o meio concreto de parentesco. É a
explicação que se tornou dominante na Igreja Católica.
São Jerônimo se deu conta de que o termo aramaico aha ou o hebraico ah significavam
tanto irmão carnal como primo, sobrinho ou parente em geral. Por exemplo: Abraão
disse a Lot (sendo este propriamente sobrinho daquele): “Não haja contenda entre tu e
eu, nem entre meus pastores e teus pastores, já que somos irmãos (ah) (Gen 13, 8). Este
mesmo seria o uso que o Novo Testamento retrata ao falar dos irmãos do Senhor em um
contexto em que – como já assinalamos – é óbvio entender que não se trata de irmãos
carnais.
Aqueles que refutam que ah nem sempre significa parente, mas que também pode
significar irmão, têm razão na mera constatação lingüística, porém esquecem que a
explicação jeronimita parte dos textos neo-testamentários sobre os “irmãos de Jesus” e
apresentam uma dificuldade ou uma dúvida que deve ser esclarecida. Esses ao contrário,
supõem de início, um tanto criticamente, que é óbvio que o Novo Testamento fala de
irmãos carnais de Jesus.
Os que, na mesma linha de objeção à explicação jeronimita afirmam com ênfase que o
Novo Testamento conhece e emprega um termo específico para indicar “primo”
(anepsios: cf. Col 4, 10) , alegando que poderia ter sido empregado caso se tratasse de
primos e não de irmãos de Jesus, esquecem duas coisas. De um lado, que também em
outros casos o Novo Testamento emprega o termo “irmão” (adelphos) em sentidos
diversos de irmão carnal: pode significar “meio irmão” (Mc 6, 17-18: Herodes Antipas
em relação com Herodes Filipo), “vizinho” (Mt 5, 22-24: com quem há que se
reconciliar) ou “correligionário” (Rom 9, 3: Paulo chama assim todos os judeus); de
modo que não tinha necessariamente de tratar-se de primos, questão que pode ficar
aberta. Por outro lado, esquecem esses intérpretes que tanto desejam aperfeiçoar em
termos lingüísticos, que, conforme aponta vivamente Raymond E. Brown, o grego do
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Novo Testamento poderia refletir perfeitamente o uso estereotipado do aramaico feito
pelas comunidades cristãs, nas quais, à maneira semítica, chamavam repetidamente,
com frase feita, “irmãos de Jesus” àqueles que todos conheciam como seus parentes,
inclusive, especificamente, como primos ( o aramaico não tem nenhum termo específico
para significar “primo”). Esta expressão – “irmãos de Jesus” – teria sido, pois, traduzida
para o grego neo-testamentário como frase feita de procedência aramaica e, neste caso,
adelphos poderia significar também primo, mesmo quando o vocabulário grego neo-
testamentário contasse, em outros contextos, com um termo próprio para esse tipo de
parentesco.
Estendemo-nos um pouco na resposta a essa pergunta. Não tanto porque com ela está
em questão a virgindade perpétua de Maria, senão porque está em voga afirmar
categórica e criticamente que Jesus teve irmãos carnais, inclusive que se encontrou o
sepulcro de um deles (que incredulidade “científica”!); tais afirmações e achados são
apresentados como uma prova tangível da falsidade da imagem de Jesus que a Igreja
nos tem transmitido. Chega-se a sugerir que a seguinte descoberta da ciência será a do
sepulcro de Jesus, com seus restos mortais... Quanta fantasia anti-cristã! A verdade da
história de Jesus é mais simples. Contudo, aqueles que colocam Jesus em confronto com
sua Igreja não têm acesso a ela. Perdem a história e perdem a verdade de Jesus.
83. Não teria sido mais estimulante para a imagem cristã da família que Jesus
tivesse tido irmãos?
O fato histórico da virgindade de Maria, a que temos claro acesso graças à memória e à
interpretação da figura de Jesus que devemos à comunidade de seus seguidores, a sua
Igreja, tem a ver antes de tudo com a verdade da filiação divina de Jesus. Já o dissemos
em uma pergunta anterior ao falar da concepção virginal ( em o número 73). Porém,
naturalmente, como também já ficou assentado, a esse novo começo que significa para o
mundo o aparecimento nele da humanidade do próprio Filho eterno de Deus,
corresponde também uma determinada realidade humana por parte da mãe, de Maria,
que há de mostrar o sinal da novidade das coisas definitivas de Deus. Falamos de sua
consagração total, em corpo e alma, à maternidade divina. O desejo de consagração
virginal de Maria a Deus, não ficou restrito à etapa anterior à concepção e ao
nascimento de Jesus, mas foi uma constante de toda sua vida. Ela cumpriu
antecipadamente o convite de Jesus à virgindade “pelo Reino dos Céus”. Não é portanto
por acaso que a Igreja descobrisse em plenitude o dom da virgindade perpétua de Maria,
quando ela própria compreendia o sentido da vida consagrada em virgindade como
cumprimento do convite de Jesus, isto é, ao tempo que, no século IV, o monacato foi se
consolidando como estado de vida reconhecido na Igreja..
Portanto, surpreendentemente, que Jesus fosse o filho único de Maria, diz muito acerca
da imagem que há de adotar toda família cristã e do modo de vida de seus membros, em
particular dos cônjuges. Estes, como Maria e José, hão de saber colocar sua vida inteira,
em corpo e alma, a serviço de sua missão no plano salvador de Deus. Eles não foram
levados à virgindade, porém tampouco terão de reservar-se coisa alguma na realização
de sua missão de colaboradores do Criador na paternidade e maternidade.
Se Jesus tivesse tido mais irmãos, Maria não teria sido o protótipo da consagração de
toda pessoa que pede e suscita a proximidade de Deus a suas criaturas. A virgindade de
Maria não diminui o sentido cristão da maternidade e da paternidade humanas como
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modo específico de consagração a Deus, senão que está, de certo modo, a seu serviço;
aponta o caminho do definitivo, isto é, daquela proximidade suprema de Deus que Jesus
anunciou e instaurou como seu Reinado.
84. E os chamados “anos obscuros” de Jesus em Nazaré? Ter-se-á Jesus dedicado a
viajar nesse tempo?
Escreveram-se coisas muito fantasiosas sobre os chamados “anos obscuros”! de Jesus.
Alguns supõem que nesse tempo aprendeu a magia com os sacerdotes do Egito, outros
preferem levá-lo até a Índia. Em realidade, não existe documentação alguma que
permita fazer tais afirmações. A imaginação é livre. Porém a coerência com os demais
dados que temos acerca de Jesus, nos leva a excluir tais aventuras.
Há alguns evangelhos apócrifos (veja-se a pergunta 33) que contam maravilhosas cenas
da infância de Jesus. Por exemplo, falam dos milagres que fazia para impressionar seus
pequenos companheiros de folguedos e coisas semelhantes. Assim ocorre no chamado
proto-evangelho de Tiago ou no evangelho da infância de Tomé. Porém essas lendas
populares carecem de fundamento histórico. A sobriedade dos evangelhos canônicos
reflete o pensamento da Igreja acerca dos “anos obscuros” de Jesus: foram,
efetivamente, anos de silêncio e de solidariedade com as pessoas trabalhadoras de seu
povoado; manteve-se “submisso” a seus pais, aprendendo deles e preparando-se para o
momento em que soasse a hora de manifestar-se a Israel.
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6. A LUZ: BATISMO, TENTAÇÃO E TRANSFIGURAÇÃO
O Evangelho de João põe nos lábios de Jesus uma afirmação que se reproduzirá uma e
outra vez nas páginas abertas do livro com o qual se representa Jesus Cristo em
numerosos ícones: Eu sou a luz do mundo (Jo, 8, 12).
Jesus de Nazaré ilumina, efetivamente, o mundo com a luz de sua vida: tão potente que
dissipou as trevas da morte. Sua ressurreição é a lâmpada principal da qual procedem os
raios da Luz da Vida eterna que banham as vidas frágeis e efêmeras dos homens ao
longo dos século. Porém a Luz de Cristo começou já a brilhar antes de sua Páscoa, nos
dias de seu caminhar por este mundo. Sua própria presença, sua palavra e sua atuação
fascinaram seus contemporâneos e, em especial, seus amigos e discípulos. A
“transfiguração”, contada pelos evangelhos sinópticos, é o ponto mais forte de luz no
caminho de Jesus para Jerusalém, para a cruz. Mas a luz já estava sobre o monte desde o
começo de sua missão pública, desde o batismo no Jordão. Jesus deve ter resistido,
soberanamente, ao assédio e à tentação das trevas, que pretenderam ingenuamente
extinguir aquela Luz de Vida afastando-a de seu caminho, talvez deslumbrando-a com
sua própria luz. Porém “a luz brilha nas trevas”.
Neste capítulo apresentamos três acontecimentos importantes da vida de Jesus que o
manifestam como a Luz. De um ou de outro modo já se refletia antecipadamente neles a
glória da ressurreição. Considerando-os conjuntamente, após já ter falado da Páscoa e
antes de contar os fatos e pronunciamentos de sua vida, obtemos uma visão profunda da
obra de Jesus à semelhança de uma espécie de prelúdio musical sintetizador de toda a
peça.
85. Jesus foi batizado por João Batista?
O evangelho de São Lucas – já o sabemos – situa o começo da missão pública de Jesus
no tempo em que João apareceu pregando seu batismo de conversão. Era o ano 27/28.
Não há dúvida que Jesus se aproximou dele e se submeteu ao batismo que praticava.
Por um lado, Flavio Josefo, como fonte extra-bíblica, confirma a pregação e a atividade
do Batista. Por outro lado, os quatro evangelhos mencionam o acontecimento. Fazem-
no com diversas variantes, que longe de ser obstáculo para a historicidade do mesmo,
robustecem-na. Por exemplo, Lucas e João não dizem expressamente que João Batista
tenha batizado Jesus, porém pressupõem-no. Em seus relatos há explicação para seu
silêncio: no de Lucas, porque acaba-se de narrar o encarceramento do Batista; no de
João, porque é salientado, desde o prólogo, que a função do Batista a respeito de Jesus é
a de dar testemunho da identidade do Nazareno com o Logos.
O Evangelho de Mateus traz um diálogo entre Jesus e João em que este resiste em
batizá-lo. Aqui aflora a dificuldade que se apresentava à comunidade primitiva ante
aquele fato insólito: por que Jesus, em cujo nome os cristãos eram batizados, já que ele
era o Senhor, se havia deixado batizar por João, se este não era mais que seu precursor?
O fato de que, apesar desta questão embaraçosa e difícil de responder, o testemunho
sobre o batismo de Jesus por João seja unânime, não apenas não nos permite duvidar de
que o batismo teve lugar, como nos faz pensar que a relação de Jesus com João deve ter
sido de notável importância.
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86. João foi um essênio?
Muito foi escrito sobre João Batista. Chama atenção a quantidade de hipóteses feitas
sobre sua figura. Alguns dizem que se tinha formado na famosa comunidade dos
essênios de Qumran, ao norte do Mar Morto. Naquela espécie de mosteiro, afastado da
vida ordinária dos judeus, praticavam-se diariamente os banhos rituais para a
purificação dos pecados e se preparavam para uma pronta intervenção de Deus. João
também esperava uma ação iminente de Deus e pregava a conversão aos que desejassem
subsistir perante Ele, que estava a ponto de aparecer como Juiz terrível. Porém essas
coincidências são demasiado genéricas para provar uma vinculação biográfica de João
com os essênios. Não basta para isto a indicação evangélica de que permaneceu no
deserto até que saiu a pregar. Além do mais, o estilo e o conteúdo do que João diz e faz
têm um selo próprio evidente.
O Batista não evita as pessoas nem lhes pede que se retirem para uma vida afastada
como único modo de estar preparados para a intervenção de Deus.. Ao contrário,
procura o encontro com todos para lhes pedir que ajam com justiça em suas profissões
habituais: no balcão de impostos, no exército ou, também na interpretação da Lei e no
templo conforme diz com muita autoridade e até dom ira aos escribas e aos sacerdotes.
Seu batismo, por outro lado, é algo muito diverso da purificação que os essênios
praticavam. A água com a qual João lavava os que se aproximavam dele no Jordão, era
um sinal extraordinário e ocasião de uma conversão de vida que devia acontecer de uma
vez por todas, dada a premência dos tempos de Deus.
87. Jesus foi discípulo de João Batista?
Alguns autores consideram a possibilidade de que Jesus tivesse deixado sua casa e seu
trabalho para incorporar-se ao grupo de discípulos que João Batista havia reunido à sua
volta. Havia abandonado Nazaré levado pelo anúncio que o Batista fazia da imediata
intervenção de Deus e por seu chamado à conversão. Tal advertência que corria de boca
em boca e de povoado em povoado, teria retirado Jesus do monótono decorrer de seus
longos anos de vida nazarena e o teria feito descobrir sua vocação de pregador
itinerante.
Jesus, certamente, não apenas se submeteu ao batismo de João, como o admirou e
sempre o defendeu. Chama-o “o maior dos nascidos de mulher”; repreende os escribas
que não deram crédito a suas palavras, e, inclusive, ao responder a seus adversários
sobre sua própria autoridade, de certo modo, coloca a si próprio em paralelo com João,
cuja missão tampouco havia tido êxito entre os dirigentes do povo e havia terminado
sendo decapitado (cf. Mc 11, 27-33).
Contudo, não temos dados firmes para pensar que Jesus tivesse sido mais um discípulo
de João durante algum tempo. Tudo indica que Jesus se aproximou de João e quis ser
batizado por ele, porém logo se afastou desse rito de água, que ficava superado “pelo
batismo de Espírito e fogo” que ele iria inaugurar. Isto é o que nos transmitem suas
testemunhas, a comunidade que, todavia, após a ressurreição e o mandamento do
Senhor de batizar todos os povos, voltará a utilizar o sinal da água como um de seus
próprios distintivos. Porém o fará em nome de Jesus, de Deus Pai e do Espírito. Porque
Jesus, em sua vida, ao contrário de João, perdoava ele próprio os pecados (Mc 2, 7) sem
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nenhuma mediação de água ou de templo. Uma pretensão jamais sustentada pelo
Batista, que, ao contrário , suscitou para si a ira da classe sacerdotal de Jerusalém
porque, com seu batismo, entrava em competição com o templo, como o único lugar e
fonte do perdão divino.
88. Porém, em realidade, não começou Jesus batizando como João?
Méier e outros afirmam que Jesus também batizava, como João. Consideram isso como
um dado fundamental para construir a teoria de que Jesus foi discípulo de João.
Somente o quarto evangelho afirma que Jesus batizava (3, 22) porém com a ressalva de
que não o fazia ele mesmo, senão que os que propriamente batizavam eram seus
primeiros discípulos (4, 2). Pois bem, para sustentar que Jesus batizava supõe-se que
esta ressalva não é do evangelista, mas de uma mão posterior, de um redator, que,
relendo o texto original, ter-se-ia dado conta de que um Jesus que batizava não coincide
bem com o resto do evangelho de São João. Que sentido teria tido aquele batismo antes
que Jesus houvesse morrido na cruz e o Espírito Santo tivesse soprado sobre o mundo?
Afirmar que Jesus batizava iria contra a teologia do “batismo com Espírito e fogo”, que
se tornaria o batismo cristão, procedente da cruz e ressurreição. Aquele que
supostamente houvesse feito a correção ter-se-ia dado conta de tudo isto e, então, teria
inventado que Jesus não batizava pessoalmente, senão que o faziam seus discípulos. De
modo que o “histórico” teria sido que Jesus batizava, precisamente porque é um dado
que se teria unido ao evangelho de João, já que coincide com sua teologia do batismo no
Espírito.
Em que tipo de interpretação geral dos evangelhos se baseia esta argumentação tão
complicada e tão dependente de acréscimos? O pressuposto geral deste modo de
argumentar é que os escritores do Novo Testamento fizeram-se uma imagem de Jesus
tão elevada, após sua ressurreição, que, de forma geral desfiguraram em boa medida o
que havia sido a vida de Jesus; escreveram relatos enaltecidos de glória que exigem de
nós estar vigilantes para perceber os vislumbres de realidade histórica que algumas
vezes se lhes escapam sob suas auréolas. Por isso chega-se à estranha conclusão de que
exatamente o que não se ajusta no relato é o que deveria ser considerado mais próximo
da história real de Jesus. Pressupõe-se que o relato está tão condicionado por uma visão
“pós pascal”, que o normal é que não reflita a história real de Jesus nem dos
personagens próximos a ele.
É, sem dúvida, mais sensata a postura de muitos exegetas que sustentam que se deve
proceder de maneira inversa. Isto é, há que pressupor a confiabilidade histórica básica
dos relatos evangélicos e mostrar, em cada caso, com razões específicas, o que não seja.
Voltemos ao suposto batismo ministrado por Jesus. Se Jesus realmente batizou,
contrariamente ao que dizem os evangelhos, seria necessário mostrá-lo com argumentos
mais sólidos que a hipótese geral de que os evangelistas “cristologizam” ou aureolam
seus relatos a partir da ressurreição, hipótese sustentada, neste caso, no frágil indício
lingüístico de que em Jo 4, 2 aparece uma palavra que nunca é usada no resto do
evangelho; com isto os críticos se crêem autorizados a firmar que esse versículo foi
escritor por alguém que fez a “correção”.
61
89. Qual foi então a relação entre João Batista e Jesus?
João foi, de fato, para alguns judeus do século I, uma espécie de “prólogo” ou
“introdução” para Jesus, como bem diz Meier. Porém este, juntamente com outros
especialistas em crítica histórica, nega que João jamais tenha sido conscientemente o
“precursor”, conforme no-lo apresentam os evangelhos. Opinam que é muito duvidoso
que João alguma vez tivesse reconhecido Jesus como o enviado definitivo de Deus.
Todavia ao final de sua vida, a partir da prisão, enviou alguns discípulos para que
perguntassem a Jesus se era ou não o esperado; muito menos teria sabido, por
inspiração, que Jesus era o Filho de Deus quando o vira aproximar-se dele no Jordão
para que fosse batizado.
Não podemos menos que nos perguntarmos se terá acontecido também a João o mesmo
que – conforme já vimos – alguns críticos se empenhavam em dizer que havia sucedido
com Jesus: que morreu sem haver chegado a ser consciente de quem ele realmente era e
porque morria. A verdade é que, no caso de João, há menos materiais históricos para
solucionar a dúvida. A questão tampouco é tão relevante quanto no caso de Jesus.
Pensamos porém que os evangelhos refletem a situação de fato e também de
consciência de João em seus traços básicos.
Jesus se aproximou de João para começar sua vida pública, porque a figura e a
mensagem do Batista eram um prelúdio de sua própria missão e de seu próprio destino:
os dos profetas enviados por Deus e silenciados pelo mundo. Em João culmina a
tradição profética do Povo eleito. Esta a razão do imenso respeito que Jesus mostra por
ele. Quando prendem João, Jesus se retira para a Galiléia, pressentindo talvez seu
próprio futuro.
João teve a felicidade de reconhecer Jesus como o último enviado de Deus. Alguns
críticos se fixam na contradição que encontram entre a afirmação de João: “eu não o
conhecia, porém ele me enviou me disse...” e os dados de outras tradições evangélicas
acerca do parentesco entre João e Jesus; então, se eram parentes como não o
conheceria? perguntam-se, para, a seguir, deduzir que nada disto é confiável para o
historiador. Não se sentem confortáveis com a solução mais simples: os primos se
conheciam, porém João só chega a descobrir o mistério que se encerrava em Jesus sob a
iluminação do espírito profético que se foi apoderando progressivamente dele; até então
não o havia conhecido senão superficialmente.
De qualquer maneira, seu conhecimento de Jesus não podia ser consumado. Carregando
sobre seus ombros ascéticos a expectativa secular de Israel, João viu em Jesus o
esperado revelador do plano de Deus. Porém essa expectativa tinha que ser purificada e
iluminada pela morte e ressurreição de Jesus. João não viveu para ver aquela Páscoa
culminante do êxodo de Israel. Por isso não é de estranhar que tampouco pudesse
compreender plenamente a maneira como Jesus ia realizar sua missão. Decorre daí o
envio das perguntas que faz chegar a Jesus, carregadas de dúvidas.
Em todo caso, João é apresentado, com acerto, como o “amigo do esposo”, que se
alegra que este por fim chegue. É, sem dúvida, também o amigo da Humanidade, que
representa em sua expectativa.
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90. Que significou para Jesus um batismo que estava destinado à conversão dos
pecadores? Acaso Jesus era mais um pecador?
João não queria batizá-lo. Naturalmente os críticos mencionados apresentam esse
episódio como um sinal a mais da reelaboração da vida de Jesus feita após sua
ressurreição. João – pensam eles – não o conhecia e o batiza como a mais um. Logo, no
próprio batismo, nada de vozes do céu. Prova disto seria a discrepância existente entre
os diversos evangelhos que não estão de acordo quanto a dizer quem teria ouvido a voz
do Pai: se o próprio Jesus (Mt e Mc), todos os presentes (Lc) ou apenas o Batista (Jo). O
que se queria dizer com essas narrações do batismo é que, em um determinado
momento de sua vida, Jesus teria tido uma forte experiência interior que o teria feito
descobrir sua vocação.
Porém o evangelho diz muito mais. Não se pode ignorar a coincidência no fundamental.
Já o dissemos: Jesus foi realmente batizado por João. Aqui devemos acrescentar: e João,
de alguma maneira, se deu conta de que aquele não era um penitente que necessitasse
implorar o perdão por seus próprios pecados. Que justiça se fazia ali? A procedente de
um mistério insondável para o Batista, porém pressentido por ele.
Jesus baixa às águas do Jordão, nas quais eram lavados os pecados; portanto essas águas
continham toda a sujeira do mundo. Porém ele não baixa às águas para deixar ali os
pecados que não tem, senão para purificá-las, para fazer com que a água possa se
converter em real sinal de perdão e salvação definitivos. Porque baixando, isto é,
passando-se por mais um daqueles pobres homens, colocando-se mesmo em seu lugar, é
como ele os liberta de suas misérias e os coloca no caminho da vida. Abre-se o céu com
a Luz da Vida e o Pai da glória reconhece ali em baixo seu Filho eterno, aquele que
temo Espírito Santo vivificador. Era o caminho da humilhação do Filho que terminaria
na cruz. Todavia isto não o podia entender o Batista: o enviado último de Deus era o
Filho, porém na pobreza.
O batismo, pois, não significa para Jesus um simples despertar de sua consciência para a
missão que o Pai lhe confia. Menos ainda é o momento em que é aceito como Filho pelo
Pai. Como já sabemos, Jesus já era, desde sua concepção, o Filho eterno do Pai, em
carne humana concebida do Espírito Santo por Maria. No momento do batismo o
mesmo Espírito apresenta Jesus diante de todo Israel como quem verdadeiramente é: o
Filho eterno, a quem devem escutar. Este é o sentido fundamental do acontecimento do
batismo de Jesus por João. Aquilo certamente aconteceu apenas para alguns; antes de
tudo para o próprio João Batista. Porém também para alguns dos discípulos deste, que,
em seguida, se unirão a Jesus, para escutá-lo e segui-lo. Os evangelhos utilizam esta
cena como carta de apresentação de Jesus, sobretudo os sinóticos; porém também João.
É uma utilização narrativa conforme o acontecimento que relatam.
Por sua parte, Jesus, o “homem do Espírito”, é habilitado para sua missão salvífica.
Aquele homem humilhado é o Filho em sua condescendência. Assim foi apresentado
diante do último e maior dos profetas. A luz começa a resplandecer diante do mundo,
embora ainda suavemente, com “os alvores da aurora”.
63
91. Jesus foi tentado pelo mal?
Sim, Jesus experimentou a sedução do mal, porque sendo o Filho eterno, era, ao mesmo
tempo, o filho de uma mulher, isto é, verdadeiro homem. Que ser humano não é
confrontado com as armadilhas que se lhe apresentam em um mundo construído
também à base de mentira desde os alvores da Humanidade?
Os três primeiros evangelhos são concordes em afirmar que, antes de começar sua
missão pública, Jesus foi levado ao deserto pelo mesmo Espírito que havia descido
sobre ele de modo novo no batismo; e que ali sofreu os enganos do Tentador.
Também a Carta aos Hebreus afirma que Jesus foi tentado (cf Hb 4, 14ss).
92. Jesus se retirou realmente para o deserto?
Alguns exegetas radicais pensam que “os quarenta dias no deserto” são uma alegoria
que não pretende transmitir que Jesus tenha realmente estado no deserto, senão apenas
apresentá-lo idealmente como um novo Moisés, aquele que havia conduzido Israel pelo
deserto durante quarenta anos.
Porém não há nada que nos obrigue a pensar que se trate de uma alegoria sem realidade
alguma. Ao contrário, a coincidência das tradições evangélicas nos leva a pensar que se
trata de uma realidade eivada de sentido teológico e simbólico. É verdade que, pelo
motivo indicado, o termo “deserto” está carregado de sentido religioso para o Povo
eleito: é o lugar do encontro com Deus em meio à prova; é o lugar da confrontação
solitária com o chamado de Deus; é o lugar da intimidade com o Criador sem nenhuma
distração das criaturas. Porém isto não quer dizer que o deserto não tenha sido também
uma vez uma realidade física – e dura realidade – para Israel, e que não tenha sido
também para Jesus o cenário de um momento decisivo ao iniciar seu caminho de
anúncio do Reino de Deus. Alguns também diziam que o “deserto” em que se formou o
Batista era um mero “lugar teológico”. Porém, como bem lembraram Echegaray e Meier
recentemente, não há porque contrapor a geografia e a história reais ao sentido teológico
e espiritual das coisas.
Não há nada de estranho que Jesus se tenha retirado para a solidão do deserto a fim de
preparar-se ali durante um tempo prolongado para sua árdua missão. O Espírito que fez
soar para ele a hora da ação evangelizadora, o conduz antes à passividade do jejum e da
oração prolongada. O “homem do Espírito”, que é Jesus, não resiste. Este quarentena
será o prelúdio das muitas noites e horas de solidão que permearão toda sua atividade. É
uma solidão habitada intensamente pela Presença Daquele de quem será o Mensageiro
final.
93. Foi tentado pelo diabo, ou antes, vítima de sua imaginação?
Naturalmente, esta alternativa não é obrigatória. A imaginação pode ser o meio através
do qual o tentador aja. Porém, os evangelhos, de fato, falam aqui do tentador, do
adversário ou do diabo. Conforme certas maneiras de pensar, o intérprete moderno da
Bíblia deveria entender que essa linguagem é o próprio de uma visão do mundo ainda
não ilustrada pela ciência, que se imaginava o cosmos povoado de espíritos, uns bons e
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outros maus. Estes seriam”mitos” dos quais se poderia e se deveria despojar a fé sem
que esta nada perdesse de sua substância.
Entretanto, na realidade, as coisas não são tão simples. É verdade que algumas
determinadas concepções do tentador e de suas ações pertencem a uma visão pré-
científica do mundo. Por exemplo, as que atribuíam ao diabo todo tipo de enfermidades
indiscriminadamente ou certos fenômenos naturais. Porém não é possível negar o
núcleo do que a Sagrada Escritura afirma sobre o tentador sem deturpar seu sentido.
Tampouco é possível entender a vida de Jesus sem compreender que, de algum modo,
toda ela foi uma luta contra o poder de Satanás. “Se eu expulso os demônios com o
dedo de Deus, é que o Reino dos céus chegou para vós”: Aí estão as credenciais que ele
apresenta para legitimar sua missão; sua obra liberta a Humanidade do poder do mal,
um poder que tem suas raízes além da imaginação ou do coração do homem, no príncipe
das trevas. Senão, como explicar a resistência sistemática que Jesus experimentou entre
os seus e que continua experimentando hoje o anúncio do Evangelho em todo o mundo?
Simplesmente, a maldade dos homens? E essas manifestações verdadeiramente
diabólicas do mal, como os absurdos massacres por supostos motivos ideológicos ou
pseudo-religiosos, ou as guerras conduzidas no século XX em nome do progresso, a que
ou a quem se devem? Somente a mentes humanas depravadas? E o engano que
sofremos quando não fazemos o que queremos, mesmo quando o ato não nos pareça
bom nem desejemos fazê-lo?
Pois bem, ao iniciar sua missão, justamente quando em seu espírito já se perfila com
proximidade e precisão o ápice de sua tarefa e de seu caminho messiânico, Jesus tem
que se ver cara a cara com o tentador.
94. Como podemos saber algo tão íntimo de Jesus qual sejam as tentações que
sofreu?
O evangelho de Marcos relata concisamente o fato da batalha vitoriosa de Jesus contra o
tentador. Por outro lado, a chamada fonte Q, levantada independentemente por Mateus e
por Lucas, relata o conteúdo das tentações. O mais seguro é que se trate de uma das
catequeses que o próprio Jesus ministrou a seus discípulos quando se dedicava a
prepará-los para entender sua morte na cruz e para capacitá-los como futuras
testemunhas suas. Pode também ser um resumo de todos seus ensinamentos a esse
respeito. Jesus transmite aos doze sua própria experiência em um assunto tão decisivo
como é o discernimento de espírito, isto é, a capacidade de ver e apreciar a luz do bem
distinguindo-a das argúcias do mal, que pretendem obscurecer o entendimento com suas
trevas. Este precioso ensinamento foi compilado na coleção de pronunciamentos de
Jesus que chamamos Q.
A catequese está construída com base em três cenas, seguramente imaginárias, em que o
Tentador procura seduzir Jesus com falsas interpretações da Sagrada Escritura e este lhe
responde em cada ocasião citando também a Lei, concretamente o livro do
Deuteronômio (8, 3; 6, 16; 6, 13). O Tentador procura apresentar-se com propostas
aparentemente boas, ou, em palavras de Santo Inácio de Loyola: “como se fosse um
anjo de luz”, camuflando assim sua verdadeira condição tenebrosa. O melhor para fingir
a bondade de suas propostas era apresentá-las nada mais, nada menos, que como
Palavra de Deus. O Tentador é hábil em exegese sombria. Por isso Jesus apresenta sua
catequese como uma espécie de debate exegético. O mais provável é que a ordem
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original das três cenas seja a que apresenta Mateus (deserto, templo e monte), que
mantém a seqüência descendente das citações do Deuteronômio feitas por Jesus em suas
respostas ao Tentador. Lucas, por outro lado, põe no final a cena do templo, em
Jerusalém, que é também o ponto de confluência de toda a narração de seu Evangelho.
95. De que foi tentado Jesus?
Jesus teve que resistir à proposta agradável, porém falsa, de converter-se em um messias
triunfador com as armas e a eficácia materialista da magia religiosa e da idolatria do
poder. Estes caminhos lhe são apresentados como os melhores, e mais ainda como os
supostamente queridos por Deus, para levar a cabo sua tarefa. São tentações que estarão
sempre à espreita ao longo de sua vida, até o último momento da cruz. No deserto,
enfrentando solitário a Verdade suprema de sua vida, Jesus as experimenta todas de uma
vez e de maneira especialmente violenta. Era um momento decisivo. Era a oportunidade
de ouro que o poder das trevas soube aproveitar. Seria capaz de uma nova vitória como
a obtida nos alvores da história humana? Seria possível seduzir exatamente o próprio
Filho eterno de Deus em sua humanidade débil e finita, como é a de todo homem?
Precisava tentá-lo. O Tentador bem sabia que era sua última oportunidade para
conseguir que as trevas se apoderassem definitivamente do mundo.
96. Por que o diabo tenta Jesus com a eficácia materialista?
Jesus havia jejuado. O jejum significa precisamente uma suspensão da base material da
própria vida. Deste modo a atenção do espírito humano experimenta uma ajuda para se
concentrar no que constitui a razão última da existência, que não se reduz a suas meras
condições materiais. Não vivemos para comer, senão, ao contrário, comemos para viver
e para viver com sentido profundamente humano nossa vida. Isto, que é tão elementar,
esquecemos todos com freqüência. Os pobres, porque têm que afanar-se para subsistir.
Os ricos, porque nunca se dão por satisfeitos. Os intermediários, porque sempre se pode
melhorar.
O tentador aproveita a fome de Jesus para sugerir-lhe que mostre seu poder fazendo
algo eficaz: converter em pão as pedras do deserto. Se é o Filho de Deus, não vai ser ele
menos que Moisés, que conseguiu que chovesse o alimento do céu para o povo faminto
no deserto.
É como um desafio:”Se és o Filho de Deus...” e, ao mesmo tempo, uma exigência de
algo que parece obvio e natural. Diz o ditado: “primeiro viver e depois filosofar”.
Entretanto Jesus resiste em empregar seu poder de fazer pão. Não era esta sua missão. O
pão é muito bom. Ele o converterá no sacramento de seu corpo. Contudo não se deve
colocá-lo acima daquilo que é superior: o sentido da vida, a vida espiritual, a escuta da
Palavra de Deus, a amizade com Ele. O tentador faz pouco caso das coisas, e,
provavelmente fazia alusão ao maná, não o interpreta corretamente, como dádiva do
céu, mas como conquista do homem. Por isso Jesus responde com o Deuteronômio:
“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”.
Um dos sinais messiânicos realizados por Jesus será multiplicar poucos pães para dar de
comer a uma multidão. Diz o evangelho que, vendo aquilo quiseram, em seguida,
proclamá-lo rei. Porém ele fugiu a isso, retirou-se para a solidão e passou a noite em
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oração. A eficácia material tem de pronto recompensa política. Porém o caminho de
Jesus não era esse. Ele não tinha vindo para satisfazer os estômagos e governar as
cidades, mas para outorgar aos homens um novo ponto de apoio sobre o qual construir
suas vidas em abertura à Luz da Vida eterna.
Se a tentação da eficácia material tivesse seduzido Jesus, o tentador teria conseguido
colocar no mundo mais um líder social; talvez inclusive um reformador ou um
revolucionário; porém teria frustrado a missão do mensageiro escatológico do Criador
teria posto a perder os planos da salvação de Deus. Teria podido fazê-lo? Ao menos
tinha que tentá-lo.
97. E a tentação de magia religiosa? O que era?
Não podendo entrar pelo flanco social, então o diabo atacou pelo lado religioso,
acuando Jesus no beiral do templo e instando-o a fazer uma demonstração espetacular
de seu poder, ali, no santuário de Javé, lançando-se no vácuo. Apresenta-lhe aquele
espetáculo como uma obra do próprio Deus em seu favor, pois ele prometera enviar
seus anjos para que o pé do messias não tropece em pedra alguma. Assim interpreta o
tentador o Salmo 91.
Porém Jesus lhe responde: “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus”.
O operário de Nazaré não tentará a Deus: não lhe exigirá intervenções assombrosas para
deslumbrar o povo e impor sua vontade. Ao contrário, ele seguirá em tudo o caminho
traçado pelo Pai. Não procurará forçar ninguém: nem Deus nem os homens.
A magia e a falsa religiosidade procuram controlar Deus, pô-lo a serviço dos interesses
dos atores religiosos, concebidos, em geral, com economia de visão. Porém a quem
realmente subjuga essa falta de respeito à divindade de Deus, a seu infinito mistério,
inalcançável para qualquer criatura, é a quem procura manipulá-lo. O manipulador de
Deus põe a si mesmo fora do feixe de Luz da Vida que brota daquela Luz divina que
nos ilumina para ver a luz. Pretende ele próprio iluminar a Deus, apontando-lhe o
caminho e, então, é claro, permanece nas trevas da morte.
Jesus tampouco cedeu a essa tentação. Se o fizesse ter-se-ia convertido em mais um
charlatão, daqueles que vendem futuro em bolas de cristal.
98. A idolatria do poder foi o auge das tentações de Jesus?
Assim parece conforme o relato da fonte Q. A eficácia materialista e a manipulação do
religioso atingem a última oferta do Tentador. Mal pode camuflá-la sob aspecto de bem.
Apela quase diretamente ao instinto mais primitivo de possuir, de ter tudo, incluídos,
certamente, a honra, a glória e o poder que o mundo outorga àqueles que têm. Ao
contrário, o engano é bastante notório: “Dar-te-ei tudo isto... todos os reinos do mundo e
seu esplendor”. Afirma que pode dá-lo, que tudo é seu, sem justificá-lo; simplesmente o
assevera: não apresenta nenhum título de propriedade. E, em contrapartida, pede
submissão absoluta: adoração!
Jesus responde imperativamente, mostrando indício de saturação: “Vai-te, Satanás!
Porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele darás culto”.
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Esta citação do Deuteronômio contém o cerne da fé de Israel. Só o Criador é digno de
adoração. Tudo o mais é relativo. Jesus vai morrer para dar testemunho da verdade desta
fé. Em nada pôs a confiança que só Deus merece. Nada neste mundo é digno da entrega
plena e total do coração, senão Deus. Quem põe essa confiança em qualquer outra coisa
que não seja Ele, está-se, de fato, fabricando um deus à sua medida, isto é, um ídolo. O
poder é o deus de barro após o qual os homens correm: o “esplendor” do mundo, a
honra e o orgulho que começa a colher nas pequenas façanhas da imposição da própria
opinião sobre os irmãos e termina por se engrandecer no poder econômico e político dos
“reinos do mundo”. É a adoração perversa de Satanás. Jesus era exatamente o homem
que, pela primeira vez, não iria, plena e decididamente, sucumbir a tal delírio.
99. Qual o sentido da vitória de Jesus sobre o tentador?
Nas brevíssimas linhas que Marcos dedica às tentações, escreve que Jesus “estava entre
as feras e os anjos o assistiam”. Ele quer dizer que começou a instauração da ordem
prevista por Deus desde o princípio.
A harmonia do homem com a natureza e com o céu, com as feras e os anjos, havia sido
interrompida desde o princípio, pelo pecado. Porém esse plano de Deus começa agora a
se realizar de um modo definitivo e pleno. É a hora do messias, muito mais radical que a
da eficácia materialista, a magia ou o poder do mundo. É a hora da pobreza evangélica,
da obediência filial e da humildade da verdade.
Lucas porém, salienta que “depois que o diabo terminou todas suas tentações, retirou-se
até outro tempo oportuno”. Aquele não havia sido senão o começo. Jesus tinha que
percorrer passo a passo o caminho até Jerusalém, até à cruz; o caminho da
incompreensão e do desprezo dos seus. Por trás de tudo isto estava a obra do tentador e
suas vitórias sobre a mente e as ações dos homens. A Luz da Vida teria que surgir da
escuridão de um sepulcro: o de Cristo.
100. O que foi a “transfiguração”?
Foi uma antecipação da vitória da Luz a meio caminho da cruz. “A transfiguração é o
relâmpago luminoso da ressurreição vindoura do Senhor” (Guardini). Certo dia, Jesus
subiu a um monte alto, conforme contam os três primeiros evangelhos e, levando
consigo Pedro, Tiago e João, “transfigurou-se” diante deles. Seu rosto resplandecia
como o sol (Mt), suas vestes também se tornaram resplandecentes, de uma brancura sem
igual (Mc), como a luz (Mt). A seu lado apareceram Moisés e Elias. Lucas diz que
falavam com Jesus sobre o êxodo que iria realizar em Jerusalém, isto é sobre sua morte
e ressurreição, sua Páscoa ou sua volta ao Pai.
Então de modo semelhante àquele como é descrita a cena do batismo, ouviu-se também
no monte, partindo de uma “nuvem luminosa”, a voz do Pai que indica Jesus como o
“Filho amado” (o “único”) (Mc e Mt) ou o “Eleito” (Lc) e intima os discípulos a escutá-
lo.
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101. Pode ser histórica uma cena tão “fantástica”?
Certamente a descrição do acontecimento é feita lançando mão de certos recursos
redacionais e teológicos, carregados de um significado claro para os afeitos à linguagem
bíblica, porém um tanto enigmáticos para nós. O “monte alto” faz referência, muito
provavelmente, ao Sinai, sobretudo porque o acréscimo da “nuvem luminosa” foi
também ali o lugar da teofania ou Manifestação de Javé a Moisés. Este aparece como
representante da Lei da Antiga Aliança e, junto a ele, Elias, a quem Javé se havia
igualmente manifestado no monte Horeb e que era esperado como precursor do
Messias. Com estes e outros recursos os evangelistas explicam o significado de um fato
histórico: a manifestação da glória de Deus em Jesus para seus discípulos, em um
determinado momento de seu caminho.
Porém a linguagem em que o explicam, supõe a realidade do fato explicado. Houve
quem tenha feito uma leitura hiper-crítica e, portanto, ingênua desta cena da vida de
Jesus. Alguns, os racionalistas mais modestos, falam de fenômenos solares naturais ou
coisas desse gênero. Outros, os exegetas radicais, como Bultmann, presumiram que se
trata de uma simples transposição de uma visão pascal do Ressuscitado ao centro da
vida de Jesus. Porém a observação das fontes nos permite falar da transfiguração como
de um fato histórico particular, com sua própria realidade e peculiaridade.
São diversas e independentes as testemunhas que nos falam do acontecimento: por um
lado Marcos e Mateus, por outro, Lucas. Este utilizou uma fonte distinta que lhe permite
destacar com maior clareza o lugar que o episódio ocupa no caminho de Jesus. Além do
mais, a segunda carta de Pedro, compila também um testemunho, sem dúvida antigo, no
qual o primeiro dos apóstolos é apresentado como testemunha do acontecimento (cf.
2Pe 1, 16-18).
Em favor do caráter histórico do acontecimento fala também sua perfeita integração
com o que conhecemos, por outros caminhos, acerca da maneira pela qual Jesus foi
instruindo os seus sobre o sentido de sua obra messiânica; e, em particular, é muito
significativo que não se retoque nem se suavize a resultante imagem nada positiva dos
discípulos, que são apresentados como duros de entendimento e não solidários com o
destino do Mestre. Se a cena da transfiguração tivesse sido uma mera reconstrução dos
acontecimentos, feita à luz da ressurreição posterior, teria sido muito natural apresentar
os discípulos “transfigurados” também em pessoas que acreditam em uma peça. Não é
este o caso: os fatos se refletem substancialmente em sua realidade, embora pouco
“gloriosa” para seus transmissores e testemunhas.
102. Por que aparecem precisamente Moisés e Elias junto a Jesus?
O misterioso acontecimento da transfiguração deixou transluzir de modo especial a Luz
da Vida eterna que emanava de Jesus, se bem que de forma geralmente discreta; foi uma
manifestação da glória de Deus nele. Moisés e Elias, que haviam sido também
testemunhas de importantes manifestações da glória de Javé para o Povo eleito,
aparecem como testemunhas desta nova e superior revelação de Deus. Neles a Lei e os
Profetas, de um modo cifrado, se abrem ao Legislador e Profeta da Aliança perfeita.
Além do mais, como muito bem observou Guardini, Moisés e Elias, têm algo em
comum entre eles e com Jesus que os torna idôneos para manter com ele aquela
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conversa pedagógica sobre a Páscoa que seria celebrada em Jerusalém, isto é, sobre a
morte e ressurreição de Jesus. Ambos são mediadores pacientes e sofredores
entre Deus e seu Povo.
Moisés teve que suportar a resistência de um Povo de cabeça dura que se negava a
confiar na libertação de Deus e se aferrava obstinadamente a suas supostas
conveniências; até o ponto em ele mesmo teve que compartilhar a sorte daqueles
homens que se mostraram indignos de dar início à nova existência na Terra prometida e
morreram antes de poder pisá-la. Elias, por seu lado, teve que confrontar a idolatria e a
perversidade de Ajab e de sua corte, até ser arrancado da terra no monte Horeb.
Jesus também foi rejeitado pelos dirigentes de seu Povo. Sua missão mediadora não foi
recebida. Então ele mesmo se dispõe a sofrer, em sua própria pessoa, as conseqüências
que tal rejeição de Deus acarretaria para o Povo.
103. O que diz a transfiguração aos discípulos?
Os três evangelhos sinóticos situam a cena da transfiguração em um momento decisivo
da vida de Jesus:quando se inteirou definitivamente que sua missão havia sido rejeitada
e teria que assumir a morte sofrida tantas vezes pelos profetas.
Imediatamente antes dessa cena os três sinóticos também narraram a confissão de Pedro
em Cesareia de Filipo. O primeiro dos discípulos confessou que Jesus é o Messias, o
Filho de Deus vivo. Porém, em seguida e misteriosamente, passa a exercer o trabalho de
Satanás, tentando Jesus para dissuadi-lo de sua decisão de assumir a morte como
caminho messiânico. Jesus repele energicamente invectiva de Pedro.
Estes episódios refletem a tensão que o curso dos acontecimentos imprimiu no seio
daquela igreja nascente. Todavia, sobre o monte da transfiguração, Pedro volta a tomar
a palavra como se procurasse frear o curso dos acontecimentos: “”Mestre, é melhor
ficarmos aqui; e vamos colocar três tendas...! (Lc 9, 33). Entretanto é Pedro quem
“confessa” Jesus como o Filho e ordena que seja escutado.
A transfiguração ensina aos discípulos que o destino de morte que Jesus lhes anuncia é
o misterioso caminho da glória. A luz do rosto de Jesus no monte ilumina as trevas do
escândalo que seus discípulos sofriam quando lhes falava do caminho da cruz.
104. A transfiguração glorifica a morte? Jesus foi um desesperado que se refugiou
na morte?
Em certo sentido sim, a transfiguração glorifica a morte. Jesus nunca fala apenas de sua
morte, mas acrescenta, em seguida, a perspectiva da ressurreição. No monte da
transfiguração o caminho do sofrimento se ilumina, porque é colocado na perspectiva da
luz e da glória.
Desse modo, Jesus mostra que ele não quer a morte por si mesma, senão que a assume
por outra razão. Jesus mostra aos seus que nem se quer a morte imposta pelo mal é
motivo de desespero.
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Contudo, parece que os discípulos não entenderam completamente a mensagem da
transfiguração. Deixariam o Mestre sozinho, após traí-lo.
105. Então, teria servido de algo aquela visão da glória de Jesus?
Não podemos responder esta pergunta do ponto de vista da psicologia dos discípulos.
Não dispomos de dados suficientes para isto. Talvez possamos aventurar que, sem a
transfiguração, aqueles homens nem sequer teriam acompanhado o Mestre até pouco
antes do final, como de fato fizeram, colocando-se com ele na boca do lobo. Sem a
transfiguração, talvez o reconhecimento de Jesus ressuscitado lhes teria sido menos
factível. O ressuscitado era o Jesus de sempre, porém definitivamente transfigurado na
Luz. Após isto, aquele acontecimento único das vitória do ressuscitado podia ser
esperado com algum fundamento.
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7. OS ATOS: MILAGRES E ESCOLHA
A atividade pública de Jesus foi breve porém intensa. São João conclui seu evangelho
com uma confissão de impotência ante o empreendimento de relatar a obra completa do
Mestre: se fosse escrito tudo o que ele fez e ensinou, os livros não caberiam no mundo –
diz com um tom de exagero semítico – que entretanto reflete a real dificuldade de
abarcar Jesus de Nazaré na completa extensão de seu acontecer e na profundidade de
sua pessoa.
Neste capítulo perguntamo-nos a respeito dos fatos mais significativos da vida de Jesus.
Estes e as palavras com as quais se explicou – e a que daremos especial atenção no
próximo capítulo – nos darão mais chaves sobre sua morte e ressurreição,
acontecimentos culminantes de sua existência, pelos quais iniciamos nossa pequena
busca sobre aq verdade da história do Nazareno.
É algo artificiosa a separação que fazemos entre atos e pronunciamentos. Em hebraico
há uma só palavra – dabar – para indicar ambas as coisas. E, de fato, os atos humanos
nunca são mudos: dizem sempre algo sobre seus autores; significam, interpelam, falam;
e, por sua vez, as palavras também são, de várias maneiras, acontecimentos carregados
de realidade: Pode haver ato mais mudo que aquele proferido por lábios que dizem
palavras como estas: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino
dos céus” ou ainda: “Levanta-te, toma tua cama e vai para tua casa!”?
Jesus, em quem a Palavra eterna de Deus se identificava com o jovem operário de
Nazaré, era e é o acontecer da Palavra por excelência: a comunicação de Deus em umaq
existência humana única. Aproximamo-nos agora de alguns dos atos que configuram a
trama daquela vida.
106. Em poucas palavras, que fez Jesus?
Ricciotti o diz muito bem, lançando um olhar retrospectivo no final de sua Vida de
Jesus Cristo: “Durante trinta anos ninguém sabe quem é, salvo duas ou três pessoas tão
mudas quanto Ele próprio. De repente, passados trinta anos, apresenta-se em público e
começa a agir. Não dispõe de meios humanos de qualquer espécie: não tem armas, nem
dinheiro, nem conhecimento acadêmico, nem poder estético, nem argumentos políticos.
Anda quase sempre em meio a gente pobre, pescadores e camponeses, e procura com
especial solicitude publicanos, meretrizes e demais parias da sociedade decente. Entre
essa gente opera milagres em grande número e de várias espécies. Associa a ele um
pequeno grupo de pescadores que o seguem constantemente como seus discípulos
particulares. E atua durante menos de três anos.
Sua atividade consiste em pregar uma doutrina que não filosófica nem política, mas
exclusivamente religiosa e moral. Esta doutrina é o mais inaudito que jamais foi
pregado no mundo [...] O que para o mundo é mal, para Jesus é bem; o que para o
mundo é bem, pa\ra Jesus é mal. A pobreza, a humildade, a submissão, o suportar
silenciosamente as injúrias, o afastar-se para deixar passar os outros, coisas que são
sumos males para o mundo, são sumos bens para Jesus, e, ao contrário, as riquezas, as
honras, o domínio sobre os outros e todas as outras coisas que constituem a felicidade
para o mundo, representam para Jesus um dano, ou ao menos um perigo gravíssimo.
Jesus é a antítese do mundo”.
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107. Como sabemos quanto tempo Jesus dedicou a sua atuação como pregador?
A verdade é que não é exata a duração da atividade pública da Jesus. Alguns pensam
que o testemunho dos três primeiros evangelhos indicaria que não se estendeu por mais
de um ano. Ao contrário, conforme o Evangelho de São João, Jesus teve cerca de três
anos para o anúncio do Reino de Deus a Israel.
A maioria dos autores, como Ricciotti, inclina-se em seguir as indicações do Evangelho
de São João que tampouco são exatas. Devemos lembrar mais uma vez que os
evangelhos não são crônicas ou biografias no sentido moderno do termo mas retratos do
essencial sobre a figura absolutamente extraordinária de Jesus.
Os sinóticos, por seu lado, não fornecem qualquer referência cronológica semelhante.
Por conseguinte, aqueles que pensam que deles se poderia deduzir um ministério
público de um ano, ou talvez menos, apóiam-se em conjecturas menos fundadas. Além
do mais, estes evangelhos em nada contradizem o que parece deduzir-se do Evangelho
de João; apenas respondem a outra técnica narrativa. Ao contrário, algumas de suas
expressões, dão a entender que Jesus subiu a Jerusalém várias vezes e não apenas uma;
é o caso da exclamação: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis reunir teus filhos e
tu não quiseste!...”
As indicações que fornecemos nos capítulos anteriores sobre as datas da morte,
nascimento e começo do ministério público de Jesus, se coadunam perfeitamente com o
panorama das três Páscoas apresentado por João. Do ano 27/28, data do aparecimento
de Jesus no Jordão, ao ano 30, data de sua morte no Calvário, transcorrem, de fato,
cerca de três anos.
108. Jesus teve algum plano de ação?
O plano de Jesus era anunciar a seu Povo, Israel, que a hora de Deus havia soado, que
havia chegado o momento anunciado pelos profetas e esperado por aqueles que
confiavam nas promessas de Javé. Finalmente ia ser possível instaurar um modo de vida
de acordo com o desígnio do Criador, isto é, havia chegado o momento da paz com
Deus e entre os homens. Era o tempo do Reino de Deus! Uma nova situação de
comunhão com Deus que o próprio Deus oferecia agora por meio de seu enviado
escatológico, definitivo: seu próprio Filho.
Jesus dirigia, portanto, sua advertência a seu Povo. “Fui enviado para chamar as ovelhas
desgarradas de Israel”. Porém o fez de tal maneira que aquilo que propunha era na
verdade uma volta “ao princípio”, isto é, à origem do que provém não apenas de Israel,
mas também de todos os homens e todos os povos. Ele tinha autoridade para fazê-lo,
pois sendo, em pessoa, o Logos eterno de Deus, a criação havia sido feita por mediação
sua. Por isso, Ele conhecia “o princípio” do qual todos nós homens provimos.
Israel não aceitou a nova advertência de Deus, antes repeliu seu enviado: primeiro o
fizeram seus dirigentes e, após eles o povo em seu todo. Apenas um pequeno resto
acolheu o anúncio de Jesus e deu crédito à sua missão.
Quando Jesus se deu conta de que o anúncio do Reino havia fracassado por causa de
uma oposição pertinaz, parece que introduziu uma certa alteração em seus planos. Se
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Israel recusava acolher a salvação de Deus e assim converter-se em intermediário dela
para todos os povos, seria necessário pensar em um novo caminho pelo qual Deus
pudesse oferecer no futuro sua Vida à humanidade. Então Jesus começou a preparar
seus discípulos primeiro para que compreendessem qual ia ser esse caminho, ou seja, o
da cruz e ressurreição e, segundo, para fazer deles o “novo Israel”, encarregado a seguir
de oferecer a salvação a todos os homens.
109. Será então verdade que “Jesus pregou o Reino e logo a seguir veio a Igreja?
Esta afirmação de A. Loisy quase converteu-se na bandeira daqueles que pretendem que
a contraposição entre Jesus e a Igreja, propalada por eles, remonta ao próprio Jesus.
Dizem que Jesus anunciou apenas o Reino de Deus e nunca a Igreja. Esta, ao contrário,
não teria sido prevista por Jesus, mas foi uma criação posterior de seus discípulos,
baseada fundamentalmente em interesses de domínio e poder. A Igreja pois, teria vindo
interpor-se entre o Reino querido por Jesus e os homens aos quais ela o ocultaria
perversamente. Tal ocultamento se teria realizado precisamente distorcendo a vontade
do Nazareno e manipulando sua figura, isto é, substituindo o que ele pregava – o Reino
– pelo mito facilmente manipulável, de um “homem-Deus” convertido em redentor, do
qual a Igreja teria declarado a si própria administradora.
Talvez Loisy não quis dizer tanto. Sua famosa frase não era, em sua pena, o compêndio
de tantos disparates. Ele se limitava a manifestar a diferença existente entre o que
supunha ser a consciência de Jesus, de um lado, e de outro, o resultado de sua obra que
não teria chegado a vislumbrar, como homem de conhecimento limitado. Ou seja, a
frase tem originalmente um sentido muito diferente daquele de confrontar Jesus e a
Igreja cimo magnitudes praticamente incompatíveis. Ao contrário, para Loisy, isto sim,
a Igreja é conseqüência objetiva da obra de Jesus, embora não prevista por ele.
Por tanto, conforme indicamos na resposta anterior, tudo parece antes indicar que Jesus
previu e quis a Igreja como um novo Israel que preparasse a humanidade para acolher o
Reino de Deus repelido por Israel ao qual ele havia sido enviado. Apenas nesse sentido
a frase mencionada corresponde à verdade da história de Jesus.
110. Então a quem se dirigia Jesus em sua missão? A Israel ou à Igreja?
Não há dúvida de que Jesus se reconhecia enviado a Israel, a todo o povo de Israel e
apenas a ele. À medida que se tornava evidente que Israel não o acolhia, Jesus começou
a pensar que outros povos viriam ocupar o lugar que correspondia a Israel como eleito
de Deus para levar a salvação a todos: “Virão do oriente e do ocidente e se sentarão à
mesa no banquete do Reino... porque não reconheceste...”.
Isto porém de modo algum significa que Jesus rejeitava seu Povo. Antes era seu Povo
que o repelia. O Deus sempre fiel às suas promessas utilizaria as pedras desta rejeição
vergonhosa para pavimentar o caminho da salvação universal, também para Israel: a
cruz se converteria por obra de Deus em nova fonte de salvação para todos sem
exceção.
“Os últimos serão os primeiros”. Os últimos eram os primeiros na atenção de Jesus. Os
últimos eram toda espécie de pecadores, pobres e ricos. Despojados escandalosa e
precisamente em nome de Deus de sua dignidade de filhos de Deus por uma
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interpretação objetivamente blasfema da Lei. Jesus se dirigia, de preferência, aos
últimos porque ele era o enviado do Criador de todos.
Por último Jesus se dirigiu à Igreja como representante dos “últimos”, daqueles a quem
o Israel de então fechava de fato as portas de acesso a Deus ao rejeitar seu enviado.
111. É justo então pensar que Jesus deu suporte ao anti-semitismo que deprecia
Israel?
O verdadeiro cristianismo não é anti-semita. Ao contrário, juntamente com São Paulo,
sabe que a Igreja nunca substitui absolutamente Israel, mas o prolonga em sua missão
medianeira da fidelidade de Deus para com a humanidade. Era o que Jesus pretendia ao
pensar na Igreja como continuadora de sua própria obra.
É verdade que Israel repeliu Jesus. Porém Jesus não rejeitou Israel. E a ninguém deu o
suposto direito de rejeitá-lo em seu nome. Jesus viveu e morreu como judeu. Sua vida e
sua aspiração devem ser entendidas como o marco das promessas e da fé de Israel. Por
isso São Paulo diz às novas comunidades cristãs que não devem orgulhar-se e procurar
absurdamente rejeitar o tronco da antiga oliveira em que elas foram enxertadas. Com
essa bela comparação refere-se a Israel e à Igreja. Israel permanece sempre como aquela
antiga oliveira, objeto das promessas de um Deus que nunca aboliu sua aliança com ele.
A Nova Aliança não revoga a Antiga, antes a plenifica.
112. Onde se desenvolveu a pregação e a atividade de Jesus?
Jesus tinha uma consciência tão viva de haver sido enviado a Israel, que sua missão se
desenvolveu quase exclusivamente em sua terra. Apenas por breve tempo aproximou-se
das redondezas de Tiro e Sidon ou, em outro momento, de Cesareia de Filipo. A esses
lugares, que não faziam parte da terra de Israel, parece que Jesus se retirou exatamente
em ocasiões em que se fazia mais intensa a pressão da rejeição que sofria entre os seus.
Jesus não pregou em cidades maiores, como Séforis ou Tiberíades. Esta última, capital
da Galiléia no tempo de seu ministério, era uma cidade de instituição nova, fundada por
Herodes Antipas na margem ocidental do lago. Seu ambiente era um tanto pagão,
conforme indicado por seu próprio nome, escolhido em honra do divinizado imperador
romano Tibério. Jesus preferia freqüentar as vilas e povoados onde esperava encontrar
mais eco da sua mensagem entre as pessoas simples, instruídas na tradição de Israel e,
em todo caso, conhecedoras das promessas de Deus a seu Povo.
O lugar escolhido por Jesus como base de sua missão parece que foi Cafarnaum,
pequena cidade de pescadores localizada na margem norte do mar da Galiléia. A partir
dali realizava sua atividade na Galiléia e dali subiu em diversas ocasiões a Jerusalém.
113. Conhecemos o tempo e o lugar das atividades de Jesus ao longo de sua
atuação pública?
A maioria dos especialistas está de acordo em que não é possível reconstruir com
segurança o quadro cronológico e topográfico exato da atividade pública de Jesus. As
fontes mais confiáveis com as quais contamos, que são, como sabemos, os evangelhos
canônicos, relatam muitos atos e pregações de Jesus, porém não os colocam em uma
75
ordem precisa de tempo e lugar, antes agrupam-nos de modos diversos que respondem
antes a determinadas concepções literário-teológicas. Assim, por exemplo, o evangelho
de São Mateus organiza os atos e pregações de Jesus em cinco grandes “discursos” ou
“instruções” entre as quais intercalam-se quatro “sessões narrativas”. Esse corpo
principal do evangelho é precedido de uma introdução que consta dos relatos da
infância e da preparação do ministério público e é encerrado com o que poderíamos
chamar de epílogo, constituído dos relatos da paixão e ressurreição. Salta à vista que
não se trata de seguir a vida de Jesus acompanhando com exatidão sua trajetória no
tempo e no espaço, mas antes de organizar seus gestos e suas palavras para ressaltar
como com Ele se torna presente o Reino de Deus entre os homens. A Bíblia de
Cantera/Iglesias assim apresenta a estrutura do Evangelho de São Mateus:
I.Infância e preparação (1-4).
II. Primeira instrução: a lei do reino (5-7).
III. Primeira sessão narrativa (8-9).
IV. Segunda instrução: os pregadores do reino (10-11,1).
V. Segunda sessão narrativa (11,2-12).
VI. Terceira instrução: o mistério do reino (13,1-53).
VII. Terceira sessão narrativa (13,54 – cap. 17).
VIII. Quarta instrução: organização dos “Filhos do reino” (18).
IX. Quarta sessão narrativa (19-22).
X. Quinta instrução: crise ante a manifestação definitiva do reino(23-25).
XI. Epílogo: Paixão e Ressurreição (26-28).
114. Não podemos, ao menos, fazer uma idéia global da seqüência dos
acontecimentos?
Os evangelhos de São Marcos e São Lucas organizam suas narrativas em três cenários:
Galiléia, uma região entre Galiléia e Jerusalém e a cidade de Jerusalém. Para Marcos
esta espécie de itinerário da Galiléia a Jerusalém aparece sujeito ao descobrimento
progressivo da verdade sobre Jesus como Messias, Filho do homem e Filho de Deus.
Veja-se o esquema deste Evangelho que oferece a Bíblia de Cantera/Iglesias:
I.Preparação (1,1 – 1,13).
II. Mistério do Messias
A) Na Galiléia (1,14 – 7,23).
B) Fora da Galiléia (7,24 – 8,30).
III. Mistério do Filho do homem
A) Fora de Jerusalém (8,31 – cap. 10)
B) Em Jerusalém (11 – 13).
IV. Mistério do Filho de Deus. Paixão e Ressurreição (14 – 16,8).
V. Apêndice (16,9-14).
O Evangelho de São Lucas adota também uma disposição que apresenta a atividade de
Jesus como uma espécie de peregrinação da Galiléia a Jerusalém. A vida pública de
Jesus como um caminho entre sua pátria galiléia e seu destino jerosolimitano fica
registrada de maneira muito mais decidida por Lucas, conforme se pode ver no esquema
de seu Evangelho, organizado pela própria Bíblia exclusivamente segundo o critério
deste itinerário:
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Prólogo-Dedicatória (1,1-4)
I.Introdução. Infância de Jesus (1,5 cap. 2).
II. Preparação do ministério profético de Jesus (3 -4,15).
III. Ministério profético de Jesus na Galiléia (4,16 – 9,50).
IV. Ministério profético de Jesus a caminho de Jerusalém (9,51 – 19,27).
V. Ministério profético de Jesus em Jerusalém (19,28 – cap.21).
VI. Epílogo. Paixão, Ressurreição, Ascensão (22 -24).
O transcorrer completo dos acontecimentos, assinalado com ênfase diversa pelos dois
evangelhos de Marcos e Lucas, revela a tensão subjacente que existe na vida de Jesus:
um primeiro momento de maior aceitação de sua mensagem e de sua pessoa,
representado pelo período da Galiléia e uma fase final em que a rejeição se vai tornando
cada vez mais patente até culminar em sua morte de cruz em Jerusalém.
115. Porém o Evangelho de São João não fala de várias viagens de Jesus a
Jerusalém?
De fato, e, como já dissemos, há indícios que permitem pensar seja a cronologia
indicada por São João a que melhor reflita o curso histórico dos acontecimentos. Jesus
teria subido várias vezes a Jerusalém em anos sucessivos para celebrar as festas
prescritas pela Lei. O esquema do quarto Evangelho está organizado, em boa parte, em
torno das quatro ou cinco subidas a Jerusalém:
Prólogo (1,1 -18)
I.Revelação de Jesus ao mundo (1,19 – cap.12).
A) Primeira festa em Jerusalém (2,13 – cap.4).
B) Segunda festa em Jerusalém (5 – 6).
C) Terceira festa em Jerusalém (7 – 10, 21)
D) Quarta festa em Jerusalém (10,22 – 11,53)..
E) Quinta festa em Jerusalém (11,54 – cap. 12).
F) Revelação de Jesus à Igreja (13 – 21).
Porém , como vemos, também o Evangelho de São João dá especial relevância a
Jerusalém, onde acontece a última “revelação de Jesus à Igreja”, exposta a partir do
capítulo 13, isto é, abrangendo quase a segunda metade do Evangelho. Deste modo,
embora empregando outro esquema para a composição geral de sua obra, possivelmente
mais de acordo com o tempo real da vida de Jesus, também São João destaca a
polaridade Galiléia-Jerusalém como dois centros de gravidade da atividade pública de
Jesus.
116. Que significa “subir da Galiléia a Jerusalém” na vida de Jesus?
Falou-se da “primavera da Galiléia” e do “inverno de Jerusalém” na vida de Jesus. A
primeira indicaria uma época de êxito, o segundo o tempo do malogro. Esta referência
não é absolutamente exata. Jesus também foi rejeitado na Galiléia por seus próprios
concidadãos de Nazaré. Por outro lado, em Betania, nas imediações de Jerusalém, vivia
a família de seu amigo Lázaro; e na mesma cidade, tinha também seus seguidores,
inclusive pessoas de destaque pertencentes aos círculos mais poderosos, como era o
caso de Nicodemo. O que parece exato é que a enorme autoridade de suas palavras e o
assombro suscitado por seus milagres angariaram a Jesus uma audiência significativa e
77
entusiasta, embora nunca isenta de incompreensões. A boa fama de Jesus cresceu por
algum tempo. Porém, em certo momento do caminho, a cruz começou a ser delineada
quase como certeza no horizonte de sua vida. Jesus não se subtraiu àquele destino que
aceitou como parte integrante de sua missão querida por Deus Pai. Foi quando começou
a repetir com mais freqüência a seus discípulos: “É necessário que o Filho do homem
seja entregue...”
117. Porém que havia feito Jesus para que as coisas fossem retorcidas daquela
maneira?
De fato podemos dizer em linguagem coloquial que “as coisas se retorceram contra
Jesus”. Ele não viera exatamente para morrer na cruz. O que buscava não era a morte
mas a vida. Tampouco quis sua morte mais do que como preço voluntário pago pelo
amor que professava ao Pai providente e aos homens, seus obstinados irmãos. Aceitou a
morte violenta, porém não a planejou. O que havia planejado era antes dirigir o
chamado definitivo ao Povo eleito por Deus para que se convertesse a Ele, ao Deus da
Vida. Fez o chamado à conversão não apenas com palavras, mas com gestos que
falavam tanto ou mais que seus discursos: seus milagres e a escolha de seus amigos e de
seus discípulos. Estes atos, tão evidentes e eloqüentes, contribuíram poderosamente para
suscitar a rejeição e oposição que acabaram conduzindo Jesus à cruz.
118. Que nos induz a pensar que Jesus praticou milagres?
Seus contemporâneos não duvidavam de que Jesus era um homem poderoso não apenas
em palavras, mas também “em atos”.
Os evangelhos narram cerca de trinta acontecimentos milagrosos realizados por Jesus:
exorcismos, curas, salvações, dons, ressurreições. Não se trata de algo acidental para os
evangelistas. Ao contrário, os milagres ocupam um lugar central em suas obras tanto do
ponto de vista da quantidade como da qualidade. São muitas as páginas dedicadas à
narração de acontecimentos milagrosos. A esse respeito basta dizer que do espaço
dedicado por São Marcos ao ministério público de Jesus, isto é, dos dez primeiros
capítulos de seu evangelho, quase a metade (exatamente 209 dos 425 versículos) é
empregada em narração de milagres. Quanto ao Evangelho de São João, sua estrutura
está tão marcada pelo ritmo festivo jerosolimitano quanto pelos sete grandes “sinais”
que relata em sua primeira parte. Além do mais, tanto a autoridade e o conteúdo do
ensinamento de Jesus como a identidade de sua própria pessoa encontram nos milagres
uma de suas principais justificações. Assim, por exemplo, a interpretação que Jesus faz
do preceito sabático como sendo orientado para o bem do homem, justifica-se com a
cura em dia de sábado do homem da mão seca (Mc. 3,1-6).
Herodes desejara ver algum portento dos que sabia serem realizados por Jesus. Seus
inimigos não negam o fato das curas ou exorcismos, o que questionam é a interpretação
que Jesus lhes dá (Mt. 12,24). São Pedro apelará ao caráter público e reconhecido dos
milagres de Jesus quando diz a seus ouvintes judeus, após a ressurreição, que eles
próprios sabem que aconteceram (Atos 2,2).
Há fontes extra-bíblicas que também testemunham que Jesus fazia coisas prodigiosas.
Flavio Josefo, o historiador judeu que já conhecemos, em seu livro Antiguidades
Judaicas qualifica de “falsos profetas”, “charlatães” e “tapeadores” determinados
personagens de sua época com pretensões messiânicas, como Teudas ou “o egípcio
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inominado”, que haviam prometido sinais milagrosos de libertação. De João Batista, de
quem fala extensivamente e com muito respeito, não diz que tenha realizado nada de
prodigioso. Ao contrário, de Jesus relata concisamente que “foi autor de fatos
assombrosos” (Ant. 18,3.3). Por outro lado, também a tradição judaica posterior, já
marcada por uma reação negativa contra Jesus e o cristianismo, fala que Jesus foi
condenado “por ter praticado magia e ter seduzido Israel” (Talmude babilônico,
Sanedrin, 43a); isto é, interpreta como magia certos atos extraordinários inegáveis cuja
facticidade não podia obstar.
Contamos pois com um testemunho múltiplo e inequívoco sobre uma característica
fundamental da atividade de Jesus: realizava coisas assombrosas, era um “taumaturgo”.
119. Porém, podemos hoje, os homens do século XXI, levar a sério que Jesus tenha
realizado milagres?
Diversamente dos contemporâneos de Jesus, muitos daqueles em nossos dias que se
consideram mais cultos ou mais “críticos” pensam que os milagres não existem.
Dizemos “muitos”: um grupo muito influente, certamente, na maneira de pensar atual.
Contudo nem todas as pessoas cultas pensam assim, nem tampouco a maioria de uma
sociedade tão “moderna” como a norte-americana, por exemplo. Uma pesquisa
realizada nos Estados Unidos pela agência Gallup, em 1989, revela que 82% dos
consultados afirma que “inclusive hoje os milagres são realizados pelo poder de Deus”.
Ao contrário apenas 6% rejeita de modo absoluto esta idéia.
A influente minoria que nega a possibilidade de que exista qualquer tipo de milagre, e
que portanto exclui a possibilidade de que Jesus tenha podido realizar milagres, justifica
sua negativa baseada em uma concepção do mundo que soe chamar racionalista ou
naturalista. Segundo esta filosofia (mais ou menos desenvolvida explicitamente), o
mundo seria um todo fechado em si mesmo que se rege por leis ou normas próprias que
dão lugar a que nada ocorra fora delas e, menos ainda contra elas. A razão humana
estaria, em princípio, em condições de conhecer essas “leis naturais” e de explicar tudo
o que acontece de acordo com elas. Se acontecem coisas para as quais não se encontra
uma explicação deste tipo, seria porque todavia não se teria chegado a conhecer
perfeitamente a realidade total do mundo, segundo os mais deterministas, ou então
porque, dentro da natureza, haveria uma ampla margem para o imprevisível, por causa
do acaso que, conforme os menos deterministas, também faz parte do sistema fechado
do mundo.
Este modo de ver as coisas, chamado “moderno” ou “racional” e “científico”, não se
verifica apenas entre aqueles que se confessam não cristãos, como, por exemplo, o
filósofo Espinosa, que é um dos patronos de tal mentalidade; também certos cristãos,
que podemos chamar “hiper críticos”, consideram a priori que os milagres não são
possíveis. R. Bultmann é um dos exegetas que mias contribuíram para difundir esta
mentalidade entre os cristãos. A ele se deve a famosa frase de que “é impossível utilizar
a luz elétrica e a radiofonia e servir-se dos modernos avanços médicos e cirúrgicos e, ao
mesmo tempo, crer nas palavras do Novo Testamento sobre os milagres”.
Contudo, não é apenas a maioria dos americanos que há muitos anos utilizam a luz
elétrica e os serviços de seus modernos hospitais, que continuam pensando que os
milagres são, em princípio, possíveis. Também acreditam os cientistas – de diversos
79
credos – que intervêm nas investigações que são realizadas concernentes a
acontecimentos extraordinários que ocorrem desde muito tempo em Lourdes, ou dos
fatos inexplicáveis que se apresentam em processos de canonização dos santos do
mundo todo. Tampouco eles estão convencidos de que o mundo se baste a si mesmo de
maneira tão concludente que fique excluído a priori qualquer fato não derivável e não
compreensível a partir do mundo enquanto tal. Ao contrário, são muitos os casos
concretos em que comitês de especialistas se viram obrigados a concluir que se
encontravam ante acontecimentos para os quais pensam que nem encontram nem é
possível encontrar explicação alguma no âmbito da ciência. Pensemos, por exemplo, em
uma lesão cerebral grave que, por si, levaria à morte e que, de fato, não apenas não
conduz a esse desenlace, como é superada de tal maneira que a pessoa afetada recupera
o ritmo absolutamente normal da vida, sem padecer qualquer seqüela de natureza
psicológica ou fisiológica. É caso documentado, como outros semelhantes, em que
apenas uma ordem natural diversa da existente e conhecida, poderia tornar inteligível o
que acontece; ou então, a ação de alguma causa de natureza diversa das que atuam
imanentemente no mundo.
Se, também hoje determinados acontecimentos podem ser e são de fato entendidos, em
determinadas circunstâncias, como milagres, não seria necessário recorrer a
“desmitologizar” o Novo Testamento eliminando de antemão tudo o que nele aparece
como milagroso. Dever-se-á prestar atenção ao que ali se diz a respeito e à crítica
histórica verdadeiramente crítica, isto é, não dirigida pelos pressupostos supostamente
inquestionáveis do racionalismo.
120. O que seria propriamente um milagre?
O milagre é um fato prodigioso, que suscita assombro e que é perceptível, em princípio,
por qualquer observador atento e imparcial; não pode ser atribuído racionalmente quer
às capacidades humanas, quer a outras forças de nosso mundo e, portanto, haveria de ser
atribuído a um poder transcendente ao cosmos, que é justamente, o que se faz em um
contexto religioso, ao considerá-lo como uma obra especial da onipotência de Deus.
Deve-se notar que nem todo fato extraordinário ou inexplicável é, propriamente, um
milagre, senão apenas aquele que possa ser entendido religiosamente como obra
especial de Deus. Neste sentido, é verdade que nem a física, nem a medicina, nem a
história, como tais, estão capacitadas a afirmar que um determinado acontecimento seja
realmente um milagre. A competência dessas disciplinas se reduz ao intra-mundano.
Que se trate de uma ação divina é algo que elas não podem afirmar ou negar
diretamente. Para discernir o que mereça ser chamado um milagre é necessário contar
também com critérios diversos daqueles das mencionadas ciências, isto é, há que
recorrer a sinais que nos permitam identificar o modo próprio de agir de Deus; para
tanto, será necessário, em última análise, submeter-se à revelação divina. Porém as
ciências empíricas e históricas prestam uma ajuda insubstituível em tal discernimento,
pois fornecem os dados necessários para compreender como e em que sentido um
determinado fato supera o racionalmente explicável no contexto da experiência do
mundo, que é o que lhe compete.
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121. Não pertencem os milagres de Jesus ao mesmo gênero de fraudes que são
narradas em alguma literatura antiga?
A ciência histórica está hoje em condições de mostrar que o que o Novo Testamento e
as outras fontes mencionadas consideram como ações milagrosas de Jesus são
realidades de natureza diversa dos prodígios atribuídos aos chamados homens-divinos
da antiguidade.
Alguns autores do início do século XX, que se agrupam sob o nome de “escola da
história das religiões”, entre os quais o mais conhecido e influente foi Rodolfo
Bultmann, não apenas viam as coisas sob uma ótica racionalista, negadora a priori do
milagre, como, além do mais, buscavam razões que explicassem o fato inegável de que
a tradição cristã crê que Jesus realizou milagres. Sua teoria era a seguinte: o simples
profeta de Nazaré, como os profetas mais comuns da Bíblia, nunca havia feito milagres.
O que o havia distinguido era unicamente o chamado urgente a já se decidir, pois o
tempo deste mundo estava para ser concluído e Deus chegava para julgar. Esta
advertência a uma decisão existencial teria sido o fundamental e continuaria sendo
válida para a figura de Jesus também atualmente. Apenas mais tarde, após a
ressurreição, os discípulos teriam convertido aquele humilde pregador profético em um
poderoso homem-divino. Este distanciamento da realidade histórica de Jesus teria
ocorrido quando a Igreja nascente procurava implantar-se no mundo helenístico. Nesse
mundo da cultura greco-romana teria sido corrente a figura do chamado homem-divino
(aner theios), encarnada em personagens caracterizados por possuir alguma espécie de
filiação divina e por ser capazes de realizar prodígios.
Os discípulos teriam assemelhado Jesus a esse tipo de personagens divinos e fazedores
de milagres.
Pois bem, a teoria da “escola da história das religiões” carece na verdade de base
histórica pelos motivos seguintes.
Em primeiro lugar, como demonstraram D. L. Tiede e C. H. Holladay, o conceito de
homem-divino, existente certamente no mundo grego do primeiro século, não está
necessariamente vinculado ao poder de fazer milagres, mas a uma certa sabedoria
especial ou sobre-humana; neste sentido tal conceito é aplicado a Sócrates por Plutarco
e Sêneca. No ambiente judaico Flavio Josefo e Filon jamais vinculam o poder
taumatúrgico a uma suposta natureza divina de Moisés, a quem apresentam também
como sábio conforme o padrão estóico; apenas neste sentido o chamam (somente uma e
três vezes respectivamente!) “homem-divino” sem fazer intervir para nada neste
contexto o poder de fazer milagres.
Contudo, em segundo lugar, é necessário reconhecer que o maravilhoso exercia uma
poderosa atração no mundo helênico, sobretudo nas classes populares. Daí que, por
exemplo, Filóstrato narre em sua vida de Apolônio, um sábio do primeiro século, cerca
de vinte prodígios desse personagem. Apolônio será considerado como um
“competidor” de Jesus Cristo já no século III: e no século XX alguns investigadores o
tomam como exemplo prototípico daqueles homens-divinos aos quais teria sido
assemelhado tardiamente o profeta de Nazaré. Entretanto as coisas não são tão simples.
Antes de tudo porque Filóstrato dedica uma atenção muito reduzida aos “milagres” de
Apolônio (apenas em 3% de sua obra); seu interesse fundamental é mostrá-lo como um
81
sábio e em absoluto relaciona suas supostas obras portentosas com o qualificativo de
homem-divino. Além do mais, é necessário levar em conta que a Vida de Apolônio foi
escrita por volta do ano 217, isto é, mais de cem anos após a morte de seu protagonista;
uma considerável lacuna temporal, carente de fontes, que, conforme salientado por
Méier, não permite atribuir a esses relatos a confiabilidade histórica que possui a
tradição evangélica, à qual se podem acrescentar testemunhos sérios que datam apenas
de vinte, trinta ou quarenta anos após a morte de Jesus. O próprio Méier supõe que
Filóstrato conhecia os Evangelhos e que é muito provável que tivesse escrito sua obra
sob sua influência. De modo que a “divinização” não teria ido de Apolônio a Jesus,
senão ao contrário de Jesus a Apolônio, o qual, entretanto, acabaria convertendo-se em
rival de seu protótipo, a serviço da propaganda pagã.
Em terceiro lugar, é importante constatar que o Novo Testamento jamais utiliza o
conceito grego de homem-divino. O título Filho de Deus nada tem a ver com este
conceito. Os milagres de Jesus não se devem à sua suposta assimilação aos homens-
divinos, desconhecidos para a Bíblia e inclusive – no sentido de homens milagreiros –
também para os escritos helenísticos. Jesus fez milagres porque era o Filho de Deus e
lhes deu um significado único, ao qual faremos referência a seguir. Suas obras
prodigiosas foram um dos motivos importantes pelos quais se destacou entre os muitos
pretendentes a messias do mundo palestino daqueles anos e constituíram também uma
razão básica da rápida expansão de sua fama no mundo grego. Além do mais, seu poder
de fazer milagres tinham herdado também seus discípulos.
Pode-se pois responder, com a história em mãos, e de um modo um tanto “periodístico”
à teoria da escola da história das religiões o seguinte: não foi uma hipotética atribuição
de supostos poderes milagrosos a Jesus de Nazaré o que o divinizou, conforme um
suposto padrão helênico, mas, ao contrário, a real capacidade de Jesus de realizar obras
maravilhosas, derivada de sua condição de Filho de Deus, constituiu-se em um dos
fatores que contribuíram notavelmente para a difusão do Evangelho e da Igreja no
mundo grego.
122. Em que se diferencia a atividade taumatúrgica de Jesus da magia?
Os evangelhos relatam muitas acusações contra Jesus procedentes de seus inimigos,
como, por exemplo: ébrio, infrator do sábado, amigo de pecadores, impostor, blasfemo,
aliado do diabo... Do que nunca o acusam é de ser um mago. O exercício das práticas
mágicas não tinha sempre boa fama, pois podia ser dirigido em prejuízo de algumas
pessoas. Somente a partir do século II começará também a ser lançada esta acusação
contra Jesus em ambientes pagãos e judaicos. Por que tão tarde e não já em vida de
Jesus? Porque a diferença entre as feitiçarias ou práticas mágicas e os milagres de Jesus
era tão evidente que dificilmente se poderia acusar o Nazareno de ser um mago.
Contudo a falsa acusação não deixou de ter seu eco e inclusive atualmente autores de
tanto êxito como John Dominic Crossan continuam a propagá-la.
No tempo de Jesus a prática da magia estava difundida. Há testemunho disso nos
chamados papiros mágicos que foram conservados. Porém os milagres de Jesus se
diferenciam das práticas que são relatadas nesses papiros em muitos aspectos
importantes. Entre eles os seguintes.
82
Quanto a seu objeto, as ações prodigiosas de Jesus jamais são dirigidas no sentido de
prejudicar alguém, ao contrário têm sempre efeitos positivos para as pessoas: liberação
de possessos, curas de enfermos, ressurreições de mortos, proteção contra os elementos,
etc. Ao contrário as práticas mágicas são dirigidas com certa freqüência no sentido de
causar dano, por exemplo, a um rival nos negócios, no amor ou nos tribunais. Há
feitiços para causar enfermidades, insônias ou eliminar inimigos.
Quanto aos meios empregados, Jesus age de modo absolutamente simples que consiste
quase sempre em uma simples palavra ou em um elementar gesto simbólico. A magia,
ao contrário, recorre constantemente a complicados conjuros (discursos intermináveis
cheios dos nomes de todos os deuses e poderes conhecidos pelo mago, assim como de
palavras ininteligíveis) e a encantos ou misturas de substancias exóticas e até de
procedência duvidosa.
Quanto à maneira, a atividade de Jesus se realizava publicamente à vista de todos. O
segredo que impõe às vezes, mandando “não dizer nada a ninguém” é uma
peculiaridade do evangelho de São Marcos, que, conforme já vimos em outro lugar tem
sua explicação própria. Ao contrário a magia tende sempre ao ocultismo e ao
esoterismo.
Quanto ao tipo de relação pessoal, o que acontece no caso de Jesus é a gratuidade
própria de um encontro de amizade e compaixão. Ao contrário, o mago é um
profissional ao qual acorrem os clientes por um preço. A Deus não se compra nem se
pode forçá-lo. Tampouco Ele força ou explora suas criaturas.
Quanto à finalidade, Jesus não persegue outra razão que não a de ajudar a que os seus e,
em geral, todo o povo, possa dar crédito a sua missão, isto é, trata de suscitar a fé na
obra que Deus faz por ele e nele. Ao contrário, os feiticeiros ou magos perseguem fins
puramente intra-mundanos, positivos ou prejudiciais e, com freqüência, não
transcendentes, inclusive alcançáveis pelos próprios homens, como ganhar uma corrida
de cavalos ou conseguir parceiro.
Quanto ao contexto, os milagres de Jesus se inserem na visão bíblica de uma história de
salvação conduzida por Deus, cujo sentido e finalidade se expressa ou se antecipa neles.
As intervenções mágicas, por outro lado, permanecem como atos isolados.
Por fim, quanto a seus efeitos, os milagres de Jesus contribuem para consolidar o
círculo dos discípulos, que terminam vinculados entre si como uma associação estável:
a Igreja. Ao contrário, como muito bem assinala Durkheim, sobre a magia nenhuma
igreja é fundada. Seus clientes permanecem normalmente isolados e desconhecidos
entre si.
As visões sociologistas da vida de Jesus, como a do mencionado Crossan, deveriam
estar mais de acordo com a sociologia, isto é, com a descrição diferenciada dos
acontecimentos sociais.
123. Qual o sentido que Jesus dava a seus milagres?
Sobre a realidade da atividade de Jesus como um notório criador de milagres contamos
não somente com as narrações e notícias de fontes diversas e independentes que
83
remontam a datas muito próximas dos fatos. Uma destas, a chamada “fonte Q”, que está
datada em torno do ano 50, relata também três pronunciamentos de Jesus que
esclarecem a compreensão que ele próprio tinha de seus milagres. Deve-se levar em
conta que esses pronunciamentos são mais antigos que as narrações dos atos milagrosos
que trazem os evangelhos. Isto significa que os milagres adquirem seu sentido de Jesus,
não de seus narradores posteriores.
Àqueles que o acusam de agir em confabulação com Satanás, Jesus lhes responde:
“Porém se expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é sinal de que o Reino de Deus
chegou a vós” (Mt 12,28). Com isto lembra a seus adversários que está cumprindo as
profecias de Isaias (35, 5s) e de Jeremias (31, 34): estão-se realizando os sinais que os
profetas previram como manifestação do triunfo de Deus sobre o mal e é ele, Jesus,
quem os realiza. Uma perigosa identificação indireta de sua pessoa com o próprio poder
de Deus!
Em outro momento, Jesus se refere à rejeição experimentada inclusive na Galiléia,
quando também ali a chamada “primavera” da acolhida entusiasta começou a declinar: “
Então começou a repreender as cidades em que a maioria de seus milagres se tinham
realizado, porque não haviam feito penitência: Ai de ti Corazim, ai de ti Betsaida,
porque se em Tiro e Sidon tivessem sido realizados os milagres que se fizeram em
vós!... E tu, Cafarnaum, serás acaso elevada ao céu? No inferno afundarás!...” (Mt 11,
20-24). Esta severa afirmação reconhece, como a anterior, o insucesso dos milagres de
Jesus. Os compiladores da fonte Q são fieis a uma dura realidade, não estão inventando
nenhuma glorificação artificial de Jesus. Entretanto, em meio a sua debilidade, a ação de
Jesus se mostra como determinante para o futuro daquelas cidades e do povo inteiro.
Nem sequer os milagres “podem” quebrar a resistência da liberdade humana, porém
neles está agindo o Reino de Deus.
O próprio “precursor”, João Batista, duvidava se Jesus era “o que devia vir”, isto é, se
era ele o anunciado pelos profetas. Tampouco neste caso as fontes evangélicas se
omitem em mostrar em toda sua crueza a dúvida daquela grandiosa figura do “maior dos
profetas”: nada de invenções artificiosas para indicar Jesus como o Messias! Não. João
não compreende o sentido em que Jesus possa ser o messias, pois este não mostra seu
poder nem se vinga em nome de Deus pela infidelidade de Israel, conforme o Batista
pensava que faria o messias: “És tu o que há de vir ou temos que esperar outro? – Jesus
responde: Ide e contai a João o que tendes visto: os cegos vêem, os coxos andam, os
leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são
evangelizados. Feliz quem não se escandalize de mim” (Mt 11, 2-6). Como sempre
fazia, Jesus não responde com uma afirmação direta e acabada à pergunta sobre se ele é
o Messias. Fá-lo com delicadeza e lembrando certos fatos que, de acordo com a tradição
profética, podem ser interpretados no sentido de que o Reino de Deus já chegou: esses
fatos são seus milagres. Porém seus milagres o apresentam como um messias um tanto
diverso do que esperavam João e muitos de seus contemporâneos, inclusive seus
próprios discípulos: revelam-no mais como um messias de misericórdia que de juízo,
disposto a manifestar antes o amor que a justiça de Deus. Será o que aparecerá de
maneira suprema na Cruz.
Assim, Jesus pensa que suas obras portentosas de misericórdia atestam que o Reino que
ele prega é algo mais que palavras. Jesus pensa que o Reino da graça e da misericórdia
já está mostrando sua força peculiar através de seus milagres. Por isso, no fundo, ao
84
explicar o sentido de seus milagres, está dizendo que Ele próprio é o Reino de Deus
para quem o queira ver. É Ele quem age. Seus milagres são seus. Diversamente dos
fatos extraordinários de que falam as narrações antigas e inclusive dos milagres
realizados pelos discípulos de Jesus e pelos santos, Jesus age em nome próprio, por Ele
mesmo, não invoca o poder de Deus.
124. Por que não bastaram os milagres para “convencer” seus adversários?
Jesus se entristece com a obstinação daquele povo, porém parece como se a tivesse
previsto. Não reage como aqueles seus discípulos que, ante a rejeição de alguns
povoados, mostram-se dispostos a pedir que o fogo do céu os destrua. Ele se conforma
em ser acolhido por alguns. Os milagres não são atos brutais que ponham em jogo a
liberdade dos homens. São atos de misericórdia que por si não ameaçam nem compelem
ninguém, antes convidam a compreender a figura de Jesus em sua integridade.
Assim esta figura é a revelação suprema de Deus como o poder do amor. O que está em
curso na vida de Jesus é a manifestação de que Deus é todo-poderoso precisamente por
ser o Amor criador. Todavia a Igreja continua compreendendo dia a dia até hoje. As
obras de Jesus eram um começo chamativo desta verdade: que o Deus vivo ama com
liberdade absoluta aqueles a quem criou por amor; que seu poder não tem limites nesse
sentido: nem sequer os limites traçados por ele próprio à sua criação, já que esta não
tem outra finalidade que a comunhão com ele. Aqueles milagres de Jesus, como os que
hoje continuam sendo realizados em seu nome, não são mais que um sinal da liberdade
própria do amor do Criador. Porém, aqueles que não se mostram verdadeiramente
abertos a entender e acolher esta verdade de Deus, como o próprio Jesus advertiu: “não
acreditarão nem mesmo que ressuscite um morto”. Se tivessem que fazê-lo, já não
seriam capazes de responder com amor ao convite divino. Porque amar só é possível em
liberdade.
125. E seus amigos, por que abandonaram Jesus tendo visto seus milagres? Para
que lhe serviram?
Alguns críticos dizem: Jesus não fez milagres; se os tivesse feito seus amigos não o
teriam abandonado, como de fato fizeram no momento da traição e da crise que o
conduziu a ser executado; ao contrário, teriam acreditado nele e o teriam seguido até
morrer com ele.
Certamente a solidão de Jesus na cruz é um mistério tremendo. “Todos o abandonaram
e fugiram” – reconhecem laconicamente os evangelistas -. Somente após a ressurreição
e de ter recebido a força do Espírito Santo mostraram-se capazes aqueles homens débeis
e covardes de voltar, e até mesmo de arriscar sua vida e chegar a entregá-la pelo
Evangelho.
Como dissemos no caso dos adversários, vemos que também a liberdade dos amigos de
Jesus foi eliminada ou subjugada pelo poder dos milagres do Mestre. Porém a
contemplação daqueles sinais parciais da presença do Reino de Deus preparou os
discípulos para acolher, quando chegasse, o grande sinal que Jesus lhes havia
profetizado: “o sinal de Jonas”(Mc 8, 11-12), isto é, sua ressurreição dentre os mortos
ao terceiro dia.
85
Jesus não foi um “milagreiro”; seus milagres não eram para ele mais que isto: um sinal
de algo mais fundamental que não podia ser substituído pelo assombro. Negava-se a
satisfazer a curiosidade pelo espetacular e não fazia milagres para o consumo das
massas, nem de Herodes, nem de ninguém. O fundamental era a confiança na ação de
Deus.
Podemos pois dizer que esta confiança foi sendo cultivada em seus discípulos. Foram
fracos, abandonaram-no. Porém na hora da verdade, isto é, no momento de outorgar sua
confiança ao “sinal de Jonas”, a ação suprema de Deus na ressurreição de Jesus, não a
recusaram. Então compreenderam também os prodígios que haviam contemplado,
conforme o verdadeiro sentido das explicações que tinham ouvido de Jesus. E eles
próprios realizaram prodígios em nome do Senhor Jesus.
Assim acontece também hoje conosco. Os milagres de Jesus adquirem seu sentido pleno
à luz de nossa fé em Jesus Cristo ressuscitado. Porém esses atos de graça e misericórdia,
por seu lado, nos ajudam também a compreender Jesus e seu mistério. Da mesma forma
como ajudaram os pagãos da primeira hora a acolher a Boa Nova de que Jesus havia
ressuscitado.
126. Que outros fatos tiveram um significado especial na vida de Jesus, além de
seus milagres?
Sem dúvida alguma suas refeições com os transviados, com os pecadores, por um lado,
e a escolha dos Doze, por outro. São dois fatos muitos distintos, porém que, como os
milagres, também têm a ver com a realização do Reino de Deus e com a morte violenta
sofrida por seu mensageiro.
127. É certo que Jesus se reunia em refeições com pecadores?
Não cabe dúvida a respeito. Jesus era admirado pela autoridade especial com a qual
ensinava e agia. Porém também tinha má fama de “comilão, ébrio e amigo de
publicanos e pecadores” (cf. Mt 11, 19). Os evangelhos, ao transmitir-nos esta
percepção negativa que alguns tinham de Jesus, estão reproduzindo algo que realmente
aconteceu; a comunidade cristã não teria transmitido nem aceito algo que pudesse
prejudicar a imagem de Jesus e inclusive a sua própria, se não se tivesse visto obrigada
a isto pelos fatos.
Os fatos mostram que, diversamente de João Batista ou dos essênios, que seguiam um
estilo de vida ascético e afastado das relações sociais, Jesus costumava deixar-se
convidar, juntamente com seus discípulos, e tampouco recusava compartilhar a mesa
com personagens de reputação duvidosa, inclusive entre os judeus piedosos mais
normais, como os fariseus. É um comportamento novo não apenas em Israel, senão que
carece também de paralelo entre os personagens fundadores de religiões.
Um exemplo interessante é o do banquete em casa de Levi, onde, segundo Marcos,
“muitos publicanos e pecadores estavam à mesa com Jesus e seus discípulos” (Mc 2,
15).
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128. Que significado tinham aqueles banquetes de Jesus com os transviados?
Da mesma forma que os milagres, a participação de Jesus em refeições com pecadores,
significa que o Reino de Deus se aproximou dos homens e, em particular, dos mais
afastados, os “impuros” e pecadores. Comer com alguém continua sendo hoje em dia
um gesto particular de amizade e inclusive de intimidade. No contexto religioso da
época de Jesus isto era ainda mais. As refeições tinham com freqüência um sentido
ritual, por exemplo, e sobretudo a ceia de páscoa. Os profetas haviam imaginado o
Reino de Deus como um banquete “para todos os povos no monte Sion: um festim de
suculentos manjares, um festim de vinhos generosos” (Isaias 25, 6).
Pois bem, Jesus concebe que esse festim já se está realizando; que Deus convida todos
para sua mesa, portanto também e precisamente aos arrecadadores de impostos, às
prostitutas, aos cegos e aos coxos. Assim o explica em suas parábolas, nas quais tantas
vezes recorre à imagem do banquete para todos (cf. Mt 14, 21; 21, 31); assim o
manifesta também com os milagres realizados para dar de comer a multidões,
multiplicando o pão. Definitivamente essas “transgressões” de Jesus são uma maneira
de proclamar bem alto que Deus está à procura dos transviados, custe o que custar.
Porém Jesus sabe também que nem todos estão dispostos a entender seu clamor e a vir à
sua mesa. Foi em casa de um dos fariseus, pelos quais também se deixava convidar,
onde desmascarou o destino inapelável da auto-suficiência. Por isso, um dia, sentado à
mesa com seus discípulos, lhes falará de um “vinho novo” do qual se beberá no Reino
de seu Pai (cf.Mc 15, 25). Naquela ocasião, de que já falamos, ao abordar seu dramático
fim, Jesus, prevendo sua morte próxima, instituirá um novo modo de comensalidade
para os seus em torno da mesma pessoa transfigurada pela ressurreição. Será o convite
do corpo e do sangue do Senhor, que, de algum modo, já estava prefigurado nas
refeições celebradas por Jesus com os pecadores. Havia-se deixado devorar por eles, até
a cruz. Ia continuar deixando-se comer, porém então, em sua glória, seria ele quem os
iria transformar em homens novos pelo mistério de sua presença vitoriosa sobre a auto-
suficiência do pecado. Seria o banquete para o Novo Israel, a Igreja.
129. Escolheu Jesus um grupo especial de Doze discípulos?
Os três evangelhos sinóticos trazem uma lista de doze homens aos quais Jesus associou
estreitamente sua missão. As narrações e a escolha não são totalmente coincidentes e
aparecem estilizadas como uma espécie de exemplos para ilustrar o que teriam de ser as
atitudes dos cristãos como seguidores de Jesus, também chamados por ele, como
aqueles homens. Porém isto não quer dizer que Jesus não tivesse realmente escolhido
aquele grupo que o acompanhou em sua pregação a Israel desde o princípio. Alguns
críticos supuseram que a escolha dos Doze teria sido antes uma invenção posterior da
Igreja nascente em seu afã de justificar a si própria como o novo Israel fundado por
Jesus. Porém há indícios suficientes que, apesar de certa idealização dos relatos,
revelam um fundamento histórico indubitável.
É verdade que há divergências no relato da escolha dos Doze no momento de descrever
o lugar em que aconteceu ou inclusive o número exato daqueles homens. O evangelho
de Lucas, em lugar de Tadeu do qual falam os outros dois evangelistas, menciona um
certo Judas de Santiago. Porém estas mesmas pequenas incoerências falam a favor de
que nos encontramos diante de testemunhos conservados em ambientes diversos e não
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forçados por nenhum afã de unificação oficial apologética; ao contrário mostram
despreocupação a esse respeito e seu caráter de testemunhos globalmente fidedignos.
Além do mais, também é certo que se mostram unânimes em nomear sempre em
primeiro lugar Pedro e em último Judas Iscariotes, assim como Felipe em quinto lugar e
Tiago de Alfeu em nono. Os demais mencionados são Tiago e João, André, Bartolomeu,
Mateus, Tomé e Simão o Cananeu. Esta ordem um tanto fechada quer dar a entender a
existência de uma certa hierarquia, pelo menos no que toca o papel especial de Pedro
como cabeça do grupo. Porém, ao mesmo tempo, remete à realidade daquele grupo de
Jesus, de maneira alguma elaborado pela Igreja mais tarde, pois esta dificilmente teria
mantido sistematicamente entre seus “chefes ideais” Judas, o traidor. A lista obscurece
tanto quem havia escolhido com tão pouco acerto, como a comunidade que se
submetera àqueles doze, que incluía um traidor e vários covardes. A lista só pode ter
sido histórica. Jesus certamente escolheu alguns pobres homens. Nenhum herói nem
tampouco, logo no início, nenhum santo...
Um terceiro indício sobre a historicidade do grupo dos doze é constituído pelas
peculiaridades do tipo de discipulado próprio daquele grupo, que não admite paralelo
com o que costumava ser habitual entre os “mestres” da Lei e seus discípulos. Jesus é
considerado também rabi ou mestre; porém ele, diversamente dos rabis, não esperava
que os discípulos viessem a ele, mas era ele quem os escolhia conforme sua vontade
soberana: “escolheu os que quis” (Mc 3, 13); e além do mais os compromete com ele de
um modo que não tem nada a ver com uma relação de aprendizagem normal ou
inclusive de especial autoridade de algum mestre peculiar; Jesus transforma suas vidas:
“farei de vós pescadores de homens” (Mc 1, 17) e os associa a seu próprio destino
pessoal de um modo permanente: “segui-me e deixai os mortos enterrar os mortos” (Mt
8, 22).
Os Doze eram todos varões. Porém outra peculiaridade daquele Mestre tão especial, a
quem os seus acabariam reconhecendo como o Senhor, isto é, o próprio Deus, era que
admitia as mulheres entre seus discípulos, algo impensável entre os rabis de seu tempo e
do tempo posterior.
Todas essas peculiaridades tornam muito difícil pensar que fora a Igreja que teria
imaginado um quadro especial para justificar a si própria. Eram todas coisas ou
impensáveis ou desfavoráveis a ela. Foi Jesus quem escolheu os seus daquele modo tão
especial.
130. Por que escolheu exatamente Doze?
Com a mesma autoridade com a qual os havia escolhido, inconfundível com a de
nenhum outro mestre, Jesus associa os Doze à sua missão de já pregar o Reino de Deus,
de torná-lo presente com suas próprias obras (dá-lhes poder de expulsar demônios e
curar enfermos em seu nome), e de acompanhá-lo até o final em sua consumação. “De
minha parte – lhes diz Jesus – disponho o Reino para vós, como meu Pai o dispôs para
mim, para que comais e bebais à minha mesa em meu Reino e vos senteis em tronos
para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22, 29-30).
Reunir a Israel disperso fazia parte da esperança messiânica. O que não seria possível
em vida de Jesus, ele o remete à futura vinda do Filho do homem para julgar. A este
88
juízo final associa aqueles Doze, que assim já representam simbolicamente o povo que
será reunido. Ou, se preferirmos, formam o gérmen do Novo Israel.
131. Foram os Doze o começo da Igreja?
De “Igreja” Jesus fala diretamente apenas uma vez nos evangelhos, precisamente no
momento de constituir Pedro cabeça dos Doze, rocha sobre a qual construir sua Igreja
(cf. Mt 16, 18). Aquele grupo de homens fracos e assustados iria compreender após a
ressurreição o sentido simbólico do grupo que Jesus havia constituído com eles. O
Espírito Santo enviado por ele após sua ressurreição ia capacitá-los para a missão de
anunciar o Reino, isto é, anunciar Jesus Cristo ressuscitado, a todos os povos. E ia
conduzir seus passos de Igreja de Jesus. Os chefes de Israel teriam visto como ameaça, a
seu estatuto pessoal e a sua compreensão da natureza da religião, a pregação dos
discípulos. Porém já anteriormente tinham visto como ameaça aquele pregador do
Reino de Deus que havia associado a si um grupo de Doze discípulos para julgar as
doze tribos de Israel.
89
8. AS PREGAÇÕES: A FELICIDADE DA SALVAÇÃO DE
DEUS
Jesus de Nazaré foi um extraordinário pregador e um taumaturgo sem par. Suas
palavras e seus atos alteraram seus planos de conseguir a pronta conversão de Israel à
salvação de Deus, primordialmente porque pareciam muito chocantes para a
sensibilidade humana e religiosa “normal’ e, em particular, para os judeus mais
piedosos ou mais acomodados à piedade então usual e a suas implicações sociais. Os
atos e os pronunciamentos de Jesus o apresentavam como o autor de uma nova
compreensão de Deus. Porém não de mais uma doutrina de tantas que se opunham umas
às outras sobre a mais exata interpretação da Lei. O que finalmente estava em jogo era
que tipo de relação pessoal podia ter aquele homem com Deus que lhe permitia falar e
agir de maneira tão diversa e, sobretudo, tão divina, ou, ao contrário, de aparência tão
blasfema.
Seus ouvintes e também seus adversários reconheciam: “Este modo de ensinar com
autoridade é novo!”. E, a seguir, perguntavam-se: “Quem é este?” Isto significa que as
palavras de Jesus tinham a virtude de levar seus ouvintes a se perguntarem pela
verdadeira identidade daquela pessoa que lhes falava de Deus de maneira admirável.
Ao abordar neste capítulo os pronunciamentos de Jesus, se queremos alcançar nosso
propósito de captar a verdade de sua história, não podemos permanecer apenas em uma
exposição sistemática de sua doutrina. Jesus, certamente, transmitiu certas idéias sobre
Deus e sobre o homem; de suas palavras pode-se deduzir uma teologia e uma
antropologia, assim como uma moral. Porém se suas doutrinas ou seus “valores”
mostram-se realmente interessantes, é exatamente porque é ele, o Filho eterno de Deus,
quem os ensinou. Não é que as coisas que Jesus disse não sejam em si belas, portanto
inteligíveis para qualquer um. Porém que Deus seja realmente como ele nos diz e o
homem se encontre perante a Divindade como Jesus nos mostra, isto é algo de que
apenas o próprio Deus nos poderia falar com garantias de total competência. Isto é
precisamente o que a fé da Igreja crê: que aquele que falava do Reino de Deus era
justamente seu Filho eterno, de sua mesma natureza divina.
Neste capítulo vamos, pois, mostrar que a frase de um famoso teólogo alemão do século
XIX, Adolfo Harnack, só é verdade se a considerarmos ao contrário. Afirmava ele que
nos evangelhos há lugar para o Pai, porém não para o Filho, querendo dizer que Jesus
aparece neles como um pregador do Reino de Deus, porém de modo algum como o
próprio Deus na pessoa do Filho. Este último teria sido uma interpretação errada feita
mais tarde pelo dogma da Igreja. Pois bem, não são poucos nem de segunda categoria os
teólogos, católicos e também protestantes, que ao longo do passado século XX
mostraram como a pregação de Jesus sobre Deus vincula o pregador com o próprio
Deus de maneira única; um vínculo que, por exemplo, E. Jüngel e E. Schweizer
caracterizam dizendo que o próprio Jesus é, em pessoa, “a palavra de Deus”.
Perguntamo-nos, pois, primeiro sobre a maneira tão especial que Jesus tinha de falar de
Deus e, a seguir, acerca de alguns dos conteúdos centrais de sua mensagem.
90
A) Como falava Jesus?
132. O que deu fama a Jesus de ser um orador extraordinário?
O “profeta” de Nazaré se tornou conhecido não apenas por seus milagres, mas também
por suas palavras. Era voz corrente de que falava como ninguém jamais o havia feito.
Não há dúvida de que seus ouvintes ficavam fascinados com o que lhes dizia acerca de
Deus e do extraordinário poder de seu amor. Deste poder davam testemunho os
extraordinários atos com os quais Jesus corroborava seu anúncio. Porém havia mais.
Neste contexto, as histórias que contava exerciam um efeito tão impressionante quanto
o dos próprios milagres. Eram narrações cheias também de um poder especial: as
parábolas. Nenhum rabino havia contado nada assim. Jesus se tornou famoso por suas
parábolas.
133. Porém não conhecemos também parábolas dos rabinos judeus?
Propriamente não. Os mestres da Lei contavam histórias para ilustrar um princípio
doutrinal ou para tornar compreensível uma exortação moral. Esse tipo de narrações
difere muito das parábolas de Jesus. As parábolas são algo muito distinto de meros
recursos pedagógicos. Os especialistas dizem que a originalidade das parábolas é um
dos critérios que falam a favor de sua historicidade, isto é, de que foram uma das
características mais próprias da figura histórica de Jesus.
134. Por que são tão únicas as parábolas de Jesus?
Alguns teólogos do século XX perceberam muito bem o caráter especial das histórias
com as quais Jesus fascinava seus ouvintes. As parábolas de Jesus, diversamente das
histórias pedagógicas dos rabinos, não estão a serviço de nenhuma doutrina especial;
não são nenhum elemento auxiliar de uma explicação que, uma vez realizada, se poderia
relegar ao esquecimento, porque já teria cumprido sua função esclarecedora do princípio
ou da moral correspondente. Não, as parábolas são antes ações através das quais, com
sua própria palavra, Jesus introduz seus ouvintes em uma realidade nova: a realidade do
Reino de Deus. Sem essa preciosa ação verbal, não ocorreria a comunicação pretendida.
São imprescindíveis. Por isto, antes que meios de comunicação ou de esclarecimento de
doutrinas, as parábolas são uma espécie de colocação em cena em que os ouvintes se
encontram confrontados com aquilo que mais importa a Jesus: que o Reino de Deus já
aconteceu e que soou a hora de entrar nele. Pode-se dizer que as parábolas são o próprio
Reino de Deus em forma de advertência lingüística concreta. Esta conexão tão estreita
do estilo parabólico com o interesse primordial de Jesus pelo Reino é outro dos indícios
a favor de que o falar em parábolas já foi realmente peculiaridade histórica sua. Algo
original de Jesus (ninguém como ele falava assim), a serviço do que é mais
propriamente seu (o Reino de Deus): decorrem então dois critérios de historicidade que
se cumprem nas parábolas.
135. O que significa dizer que as parábolas são o Reino de Deus em ação?
Quando conta suas parábolas, Jesus coloca seus ouvintes ante a novidade inimaginável
do Deus a quem ele chama de Pai. Para isto não estabelece em primeiro lugar nenhuma
tese ou doutrina sobre qualquer assunto. O que faz é criar uma tensão cênica entre uma
realidade próxima e conhecida daqueles que o escutam, de um lado, e, de outro, o que
91
acontece quando Deus age em seu Reino. O contraste e a surpresa agem sobre o que
ouve e o envolve na narração. Primeiro fica deslumbrado e mesmo comovido; a seguir
vê-se na contingência de ter que optar, rejeitando o novo, negando sua crença na
narração e no narrador, ou então, oferecendo sua confiança à novidade e a quem a
apresentou. Acontece algo semelhante ao que ocorre com os sinais milagrosos de Jesus:
enchem de admiração e exigem um comprometimento, de confiança ou rejeição.
Pois bem, o indutor de todo este movimento desencadeado pela palavra de Jesus é
precisamente o poder do Reino que se faz presente por meio dela. Assim, as parábolas
são o Reino de Deus em ação.
136. Algum exemplo de como age a presença do Reino nas parábolas?
Certa vez Jesus contou com todo detalhe a história de alguns operários que foram sendo
contratados ao longo de todo um dia para ir trabalhar em uma vinha (cf. Mt 20, 1-15).
Isto era algo normal. Seus ouvintes sabiam que era o que ocorria com freqüência na
época de trabalho duro da vindima. O relato mostra até aqui uma concessão ao que é de
conhecimento geral, que capta a atenção dos ouvintes, ao mesmo tempo em que lhes
inspira confiança no que é conhecido. Porém logo ocorre o inesperado. Ao terminar o
dia de trabalho, o patrão não paga a cada um de acordo com o tempo em que esteve
trabalhando, mas os que foram chamados por fim recebem o mesmo salário que aqueles
que haviam agüentado a jornada inteira sob o sol. Ocorreu na cena a novidade: é o
mesmo que acontece com o Reino de Deus – sugere Jesus a seus admirados ouvintes -.E
ninguém permanece impassível perante o forte contraste apresentado entre os critérios
comuns e os novos. “Injusto!” – protestarão alguns. “Que maneira de agir tão estranha é
esta?” – perguntar-se-ão outros. Todos se sentirão implicados na história e tenderão a
reagir ante ela. Confiarão neste modo de ver as coisas? Ou melhor, darão crédito a quem
assim se lhes apresenta? Será realmente Deus poderoso para agir como aquele patrão
que deseja inesperadamente mostrar sua bondade dando a todos sem ser injusto com
ninguém? Será que, além da justiça distributiva que, entre os homens, dá a cada um o
que lhe caba, existe também, entre Deus e os homens, uma justiça superior que é a da
absoluta gratuidade de seus dons – para todos? Será que ninguém pode ganhar o amor
de Deus, senão que ele o oferece a todos nós com abundância desproporcionada a
nossos méritos? É este o poder do Reino? Pode-se confiar neste Deus? Quem pode falar
assim Dele com suficiente autoridade? Não foram poucos os que desconfiaram de que
Jesus tivesse tal autoridade. Para eles seu modo de falar era tão novo quanto “perigoso”.
Em contraposição, aqueles que lhe outorgaram confiança começaram a ver-se livres de
uma visão legalista e,de certa forma, comercial da religião e começaram a entender o
que significa a salvação de Deus.
Algo semelhante acontece quando Jesus conta a parábola do pai generoso a quem seu
filho caçula pediu certo dia sua parte de herança e saiu de casa para desfrutar livremente
dela (cf Lc 15, 11-32). A narração dos excessos do rapaz incomoda de certa maneira os
ouvintes e os predispõe contra ele. É natural. Como também parece natural a reação do
filho mais velho quando, um belo dia, seu irmão regressa à casa paterna, uma vez que já
esbanjou tudo. O admirável e inesperado foi a maneira de reagir que teve o pai. Porque
ele, além de haver estado esperando todos os dias a volta de seu filho com a vista
perdida no caminho pelo qual poderia regressar, quando, por fim, volta, oferece-lhe um
banquete com uma tal acolhida que o “senso comum” leva a pensar que aquele homem
perdeu a cabaça: porque dá a impressão de que o trata como se regressasse de uma
92
missão a serviço da família em lugar de ter esbanjado a herança. Os ouvintes se
encontrarão novamente surpreendidos... e felizes... ou, ao contrário, decepcionados.
Jesus os convida, naturalmente, a sentir-se felizes com a salvação de Deus; coloca-os
diante da realidade do comportamento de Deus Pai para com os pecadores. Porém é
possível que alguns não sejam capazes de aceitar esta realidade alvissareira, presos
como estão nas redes de uma religiosidade da mera eficiência humana, do controle e dos
critérios estreitos sobre a bondade de Deus. De fato, foi este último critério que foi
adotado por muitos dos ouvintes de Jesus. Não se decidiram a confiar nele e o
abandonaram quando os interesses político-religiosos decidiram levá-lo ao suplício da
cruz.
137. Porém, as parábolas eram sempre tão claras? Por que então os discípulos
pediam a Jesus que as explicasse?
Os evangelhos nos apresentam, de fato, Jesus explicando o sentido de alguma parábola
àqueles mais próximos dele: aos Doze e a outros seguidores seus (cf. Mc 4, 10ss). E
mais, põem em sua boca uma frase, que nas traduções usuais, soa tão severa como esta:
“a vós o mistério do Reino de Deus foi comunicado; mas aos de fora tudo lhes é
apresentado em parábolas para que mirem porém não vejam; ouçam sem contudo
entenderem; não venham a se converter e sejam perdoados”.
Duas observações a respeito.
As explicações que Jesus oferece de algumas parábolas aos mais próximos a ele
refletem uma realidade de sua vida: que aos discípulos e aos Doze Jesus falava também
com freqüência de outra maneira distinta daquela das parábolas, como veremos a seguir.
De qualquer maneira, alguns especialistas pensam que as explicações concretas dos
termos das parábolas que aparecem nos evangelhos, são, com muita probabilidade
produto da reflexão dos evangelistas ou de suas comunidades acerca da história
parabólica que Jesus teria contado sem tais detalhes. As parábolas não necessitam
explicações demasiado detalhadas.
Por outro lado, parece que, efetivamente, Jesus empregou as parábolas antes de tudo
para causar impacto aos “de fora”, isto é, àqueles que não pertenciam ao círculo mais
ligado a ele e que colocavam objeções acerca de sua compreensão de Deus e da Lei.
Eram seu objetivo missionário primordial. De todo modo, seu êxito foi apenas relativo
no começo e praticamente nulo à medida que se aproximava a cruz. Desta situação
surpreendente da dureza da mente humana é que parece quererem dar conta os
evangelhos com a frase mencionada. É uma frase de estilo semítico que é necessário
entender bem. Não se trata de que Jesus empregasse suas parábolas precisamente para
ocultar o mistério do Reino aos de fora. O real é o contrário: queria conquistá-los e
convertê-los com o poder de Deus. Porém este poder não avassala a liberdade de
ninguém, Segundo J. Jeremias, uma tradução cuidadosa, que leve em conta o substrato
aramaico da frase, seria esta: “A vós Deus concedeu o mistério do Reino; porém para os
que estão fora tudo é enigmático, de modo que vêem e não vêem, ouvem e não
entendem, a não ser que se convertam e Deus lhes perdoe”. Fica assim claro que, sendo
advertências fortíssimas e claras, as parábolas precisam ser acolhidas favoravelmente
para serem entendidas; tampouco elas produzem automaticamente a conversão. Porém
os que se convertem e outorgam sua confiança a Jesus, começam a entender o mistério
do Reino.
93
138. De que outras maneiras especiais falava Jesus aos seus?
O mestre de Nazaré era um rabino muito especial. Já vimos como escolheu seus
discípulos: tomava a iniciativa e agia com a soberania própria de quem se considerava
capaz de fazer depender completamente dele a vida dos seus. Seu modo de lhes falar
estava também imbuído dessa mesma soberania.
Jesus, ao contrário dos mestres usuais, explicava aos seus discípulos como viver de
acordo com a Lei de Deus sem recorrer à autoridade das interpretações compartilhadas
pelos rabis mais famosos de uma determinada escola. Jamais recorre a qualquer outro
mestre para fundamentar seus pontos de vista.
Porém há algo que chama mais ainda a atenção. Nem sequer baseia seus ensinamentos
diretamente em Moisés ou nos profetas. Nunca os contradiz. Mais ainda, aconselha seus
ensinamentos àqueles que dizem segui-los. Por exemplo, ao jovem rico que lhe
pergunta sobre o caminho para a vida eterna, Jesus lhe aconselha as Dez Palavras ou
mandamentos dos livros de Moisés. Em outro momento diz que ele não veio para abolir
a Lei de Moisés. Porém argumenta e ensina sempre como quem tem outra fonte de
autoridade própria, diferente daquela dos grandes mestres e profetas a quem Israel
venerava como transmissores autorizados da vontade divina.
Em suas parábolas Jesus falava com autoridade própria; porém também e de modo
ainda mais claro, na interpretação que faz da Lei para instruir seus discípulos.
139. Há alguns traços na forma de ensinamento de Jesus que denotem a particular
autoridade com a qual se sabia investido ao falar?
Sim. Jesus nunca introduz suas frases como faziam os rabinos: “Assim está escrito, e
isto significa, segundo mestre N., tal e tal...” Nem mesmo o faz ao estilo dos profetas,
que se confiavam à autoridade de Deus: “Isto diz o Senhor...” Não. Jesus diz com
freqüência: “Porém eu vos digo...” contrapondo inclusive seus ensinamentos aos de
Moisés. Ou então: “De verdade vos digo que...” Estas maneiras de falar supõem – como
dizem os especialistas – uma “cristologia implícita”, isto é, que embora não o diga
expressamente, Jesus está sugerindo que ele é o Filho de Deus, não apenas um mestre e
nem mesmo um profeta. A única alternativa a esta suposição é que – como seus
inimigos interpretaram – Jesus fosse um blasfemo que usurpava o lugar de Deus, pelo
menos indiretamente.
140. Há algum indício em sua maneira de falar sobre a origem da consciência que
Jesus tinha de sua autoridade?
“Nosso pai e nosso rei” é uma fórmula com a qual, na tradição judaica, o povo ou a
assembléia podia se dirigir a Deus. Também é possível encontrar a fórmula “meu pai”
em alguns comentários bíblicos antigos. Porém o absolutamente singular é que Jesus em
todas as orações atestadas pelos evangelhos dirigia-se a Deus invariavelmente
designando-o como “pai”. Há somente uma aparente exceção: quando grita da cruz
“meu Deus, meu Deus!”. Porém aqui trata-se da citação de um salmo. E inclusive neste
salmo, conforme crê J. Jeremias, a fórmula grega dá margem a pensar que reflita uma
utilização da palavra original aramaica abba.
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Esta palavra, abba, que se pode entender como a expressão de suma confiança que uma
criança utiliza em relação a seu pai, deve ter sido tão característica de Jesus que foi
mantida em sua forma aramaica nos escritos do Novo Testamento dirigidos a
comunidades de fala grega (cf. Rom 8, 15; Gal 8, 6).
Além do mais, é também muito significativo que Jesus nunca incluía a si próprio na
invocação que ensina seus discípulos a utilizar: “Pai nosso”. Chega mesmo a diferenciar
expressamente sua relação com o Deus Pai daquela própria de seus discípulos: “Pai meu
e pai vosso”.
O modo de falar de Jesus denota que se sentia vinculado a Deus como seu Pai de uma
maneira absolutamente íntima, original e incomparável. Nisto parece consistir a fonte
da autoridade que denota sua linguagem. Ele fala de Deus como alguém que goza de
autoridade divina para tanto.
B) Que dizia Jesus?
Aproximamo-nos da maneira de falar de Jesus, tão original e tão reveladora de uma
consciência de autoridade divina. Naturalmente, ao fazê-lo já nos temos encontrado
também com o conteúdo fundamental do que dizia. Contudo é possível e conveniente
investigar melhor este ensinamento avalizado por tal pessoa e confirmado
definitivamente como proveniente do próprio Deus por sua ressurreição dentre os
mortos.
Sem pretensão de tudo dizer, porém procurando alcançar clareza, distribuímos em cinco
grandes temas o conteúdo do ensinamento de Jesus: 1) o Reino de Deus se aproxima; 2)
Deus é o Pai de todos; 3) A Lei continua sendo válida como caminho até Ele; 4) Porém
é o Filho quem oferece a salvação; 5) e abre um novo caminho de liberdade e felicidade
no amor a Deus e ao próximo.
141. Qual era o objeto principal da pregação de Jesus?
Jesus falava sobre Deus continuamente. Porém, se queremos ser mais precisos, devemos
dizer que não falava Dele como quem examina com curiosidade meramente teórica um
objeto ou uma vida interessante. Não, Jesus falava sobre Deus de modo enérgico, ou
melhor, falava de um Deus ativo, presente com poder no mundo desde sempre, como
sua origem contínua e providente orientador do futuro: empenhado em alcançar que
suas criaturas mais queridas, “seu Povo” vivesse em harmonia com Ele e entre si. Por
isso o objeto principal da pregação de Jesus era o Reino de Deus, isto é, a ação poderosa
de Deus em favor de seu Povo. E que dizia Jesus a respeito desse Reino? O seguinte:
“Já se cumpriu o tempo. O Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na boa
notícia” (Mc 1, 14-15).
142. Que podiam entender aqueles que ouviam Jesus repetir que o Reino de Deus
havia chegado? Conheciam eles algo sobre esse Reino?
Provavelmente sim. Contudo, segundo Lucas, após a cruz e a ressurreição de Jesus, a
caminho para o monte da Ascensão, os seus lhe perguntam: “é agora que vais
restabelecer o Reino de Israel?” (Atos, 1, 6). Conheciam alguma coisa de um Reino.
95
Porém, como podemos ver, mais que do “Reino de Deus” de que falava Jesus,
pensavam no “Reino de Israel” de sua tradição judaica.
Jesus falava de um Reino diferente do esperado pela maioria. Isto é enfatizado pelo
próprio termo empregado por ele: “Reino de Deus”, que não se encontra como tal nos
primeiros escritos do Antigo Testamento e apenas de maneira semelhante nos seguintes,
sob a fórmula “o Reino de Javé”. Por outro lado, a idéia de que Deus reina, porque é
poderoso na história, era comum em todo o Antigo Testamento. Porém o que se pensava
era que Deus exercia seu reinado dando prosperidade social, econômica e política ao
Reino de Davi, o rei por antonomásia de seu povo, a quem havia prometido uma
descendência bem sucedida e eterna.
É verdade que os fatos se opuseram obstinadamente, anos após anos, àquela esperança.
O exílio, a corrupção interna e as sucessivas ocupações estrangeiras, até a romana dos
tempos de Jesus, pareciam contradizer a promessa. Entretanto o povo da Aliança, apesar
de seus pecados e de suas infidelidades, sempre manteve a fé na intervenção divina a
favor de Israel. Ao menos como suspiro dos mais piedosos, sempre houvera alguém que
perguntasse aflita e confiantemente a Javé, com o autor do salmo 74: “Até quando,
Senhor?”.
Ao ouvir Jesus falar de um Reino novo, muitos acreditaram que, por fim, havia chegado
a restauração do Reino de Davi, independente e livre de tudo, para o culto de Deus, com
a expulsão dos odiados ocupantes romanos da terra santa de Israel.
Havia facções armadas que pretendiam colaborar com Deus nesta liberação: eram os
chamados zelotas, uma espécie de guerreiros piedosos. Outros, entre eles a maioria dos
apóstolos, deixava antes o assunto nas mãos de Deus. Seria necessária a vinda do
Espírito Santo, em Pentecostes, para abrir-lhes os olhos de modo definitivo ao que Jesus
anunciava. Entretempo, faziam cálculos dos benefícios pessoais que lhes traria a
restauração político-religiosa do Reino e disputavam entre eles o primeiro lugar na
corte.
De modo que os discípulos sabiam muito pouco sobre o que Jesus pregava ao anunciar a
súbita vinda do Reino de Deus. Ele porém os manteve em expectativa com suas
palavras e seus gestos de poder, preparando-os para compreender um dia o sentido
último de seu reinado.
143. Qual era o sentido último do Reino anunciado por Jesus?
Jesus recusou aceitar diretamente o título de Messias, porque sabia que estava ligado,
nas expectativas de muita gente, à restauração político-religiosa do Reino de Davi. Não
nega que seja o Messias, porém tampouco o aceita explicitamente e, muito menos, o
apregoa. Porque seu messianismo é diverso. O Evangelho de São João (18, 33ss) assim
interpreta a atitude de Jesus: “Meu Reino não é deste mundo”.
O Reino chega com Ele e se estabelece com sua morte e ressurreição, isto é,
precisamente pela transposição de uma esperança intra-mundana a outra realmente
escatológica.
96
O Reino é o do Pai, anunciado e tornado presente pelo Filho, que um dia será
consumado pelo Espírito; com o qual, como veremos, a salvação de Deus adquire um
caráter plenamente transcendente, pois alcança a comunhão com Deus em sua própria
eternidade (o que significa que nada tenha a ver com o tempo da criação e da história) e
chega a ser verdadeiramente universal, pois fica expressamente aberto a todos os
homens e a todos os povos sem a mediação direta de Israel e de sua Lei (o que
tampouco significa que a Aliança de Deus com seu Povo seja abolida).
144. Que significa que Jesus anuncia e instaura o Reino do Pai?
É verdade que Jesus não prega a si próprio, senão a Deus que chega com poder. Neste
ponto ele se vincula com as expectativas de Israel. Jesus anuncia uma intervenção de
Deus. Porém não no sentido do messianismo puramente histórico-político dos zelotas,
nem tampouco no sentido de um fim absoluto e abrupto da história do mundo, como
pensavam os essênios de Qumran ou o próprio João Batista. O Nazareno apresenta uma
visão própria da ação de Deus que acabará levando-o à cruz. Contudo, sua mensagem,
no essencial, podia referir-se à fé de Israel no Deus criador e salvador, a quem ele
sempre chama de Pai.
As versões dos zelotas e dos essênios não eram as únicas possíveis na interpretação da
tradição de Israel. Os profetas haviam previsto a implantação de um reinado universal
de Deus sobre todos os povos, que teria lugar no final dos tempos, por meio de Israel
(cf. Isaias 52, 7 e Salmos 96, 10 e 97). É precisamente esta hora final que Jesus anuncia
como já presente ou a ponto de chegar, inclusive sem a mediação de um Povo que não
esteve à altura de sua missão.
De fato, o futuro de Deus se faz atual para aqueles que acolhem o chamado de Jesus.
Assim o manifestam seus milagres e patenteiam suas parábolas. Porém, ao mesmo
tempo, não perde seu caráter de futuro que vem e que há de ser procurado e esperado.
Porque o chamado de Jesus está orientado no sentido de tornar realidade a exigência
fundamental da Lei: “Escuta, Israel: o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás ao
Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua força” (Dt 6,
4s). A Deus, que é único, há que entregar-se tudo. Tanto mais, quanto ele se manifesta
como o único digno de confiança, como o único amor incondicional, como o atiba. Daí
decorre que o importante seja buscar a ele, que vem como Pai: “Buscai primeiro o
Reino de Deus” (Mt 6, 33).
O Pai é o Criador que faz brilhar o sol sobre bons e maus e que, em sua bondade suma e
incompreensível, busca com especial cuidado aqueles que se afastam dele.
145. Que sentido continua tendo, então, a Lei para Jesus?
Como vemos, a Lei constitui um elemento de orientação intocável para Jesus. Já
sabemos como se referia ao Decálogo para quem lhe perguntava sobre o caminho da
Vida. Os escribas lhe faziam perguntas sobre o melhor modo de cumpri-la.
Certa ocasião um deles lhe perguntou qual o primeiro de todos os mandamentos. Jesus
lhe respondeu que era o de amar, sem condições, citando o escuta, Israel, de que
falávamos na pergunta anterior. E, por sua conta, acrescentou qual era o segundo: o de
amar o próximo como a si mesmo. A resposta de Jesus pareceu acertada ao escriba, que
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se sentiu confirmado em suas idéias: esse duplo amor – replicou, citando um profeta –
“é mais que todos os holocaustos e sacrifícios” (cf. Mc 12, 28ss).
Resumir a Lei naqueles dois preceitos era, aparentemente, algo conhecido entre os
rabinos da época de Jesus; não era totalmente original do Nazareno. O próprio dele era o
contexto em que fazia valer a Lei assim resumida; a saber: aludindo ao Reino de Deus
que ele anunciava, isto é, ao poder de Deus Pai que se mostra bom para com todos e
oferece a salvação àqueles que se convertam agora a Ele, da mesma forma como se
havia mostrado excessivamente generoso com todos em sua obra criadora.
O rabino estava de acordo com Jesus acerca da Lei. Entretanto, Jesus reagiu dizendo
concisamente: “Não estás longe do Reino de Deus”. Porque lhe faltava compreender
que era o revelado, a base em que a própria Lei se fundamenta: o amor de Deus que o
próprio Jesus anuncia e que se mostra nele.
A Lei deve ser cumprida, porém não por ela mesma e por sua mera tradição legal, mas
por sua fonte permanente, que é o poder do amor de Deus. Jesus, aludindo ao único
Deus, colocava a Lei em seu lugar: ela não é fonte, somente meio de salvação. Só Deus
salva. Nisto o Pai é único: só ele tem esse poder real. “E Javé será rei sobre toda a terra:
naquele dia Javé será único e único seu nome” (Zacarias 14, 19).
Se Jesus, em algumas ocasiões, se sentia autorizado a corrigir, ou melhor, a completar
Moisés, com seus famosos “eu porém vos digo”, era porque falava a partir da própria
fonte da Lei: o poder do amor do Pai. A Lei é para Jesus um indicador imprescindível
para seguir o caminho da Vida, para poder entrar no Reino. Porém não é ela mesma que
conduz à meta, mas o próprio Deus Pai.
146. Algum exemplo de como Jesus interpretava a Lei?
O chamado Sermão da Montanha é uma composição em que São Mateus, nos capítulos
5 e 6, compila algumas interpretações do Decálogo ou de outros preceitos ou costumes
legais de Israel que Jesus havia feito em diversas ocasiões.
Sobre o Decálogo, por exemplo Jesus pontua: “Ouvistes que se disse aos antigos: Não
matarás (...). Eu porém vos digo que todo o que se encolerize com seu irmão será réu
diante do tribunal”. O mandamento da Lei prescreve um mínimo que nunca se deve
transgredir. Porém, por si própria, aponta para o amor ao irmão, que não é compatível
com a cólera contra ele. É esse amor o que dinamiza o caminho apontado pela Lei; um
amor que só se encontra ali onde se acolhe o Reino de Deus que chega.
Sobre outras disposições da tradição legal judaica lemos em São Mateus: “Ouvistes que
se disse: Amarás teu próximo e desprezarás teu inimigo. Eu porém vos digo: amai
vossos inimigos e rogai pelos que os perseguem; para que sejais filhos de vosso Pai que
está nos céus, que faz brilhar o sol sobre maus e bons e chover sobre justos e injustos”.
Aqueles que entram no Reino de Deus se tornam capazes de um amor universal, como o
do Criador e Pai de todos, a quem Jesus apresenta acercando-se exatamente com mais
empenho dos pecadores e dos “inimigos”.
98
A chave para Jesus sempre se encontra no amor de Deus Pai, que é quem deu a Lei e
quem, com o poder de seu Reinado, se aproxima precisamente daqueles que se opõem a
ele.
147. Que significa para o próprio Jesus o que ele faz ao anunciar o Reino?
Um teólogo contemporâneo expressou de maneira gráfica o que acontecia com Jesus
quando anunciava o Reino de Deus e dava sinais de sua proximidade com seus
milagres, suas refeições com os pecadores e seus ensinamentos. O que Jesus fazia e
dizia revertia sobre sua própria pessoa, isto é, lançava sobre ele uma luz que o
apresentava como o mediador da chegada do Reino de Deus e de seu amor que perdoa.
Não era necessário que Jesus pregasse diretamente a si próprio como o Filho de Deus,
nem sequer como o Messias. O que fazia e o que dizia o expunha perante todos como
uma figura absolutamente excepcional, unido a Deus e agindo com autoridade divina.
Jesus ensinava que se reconhece as pessoas por suas obras. Algo semelhante pode-se
dizer neste caso: o que fazia e dizia dava-o a conhecer como o enviado definitivo do
poder criador e redentor de Deus.
Porém podia um homem fazer algo assim sem incorrer em uma pretensão blasfema?
Nisto se fundamenta a causa do drama de Jesus. Ele sempre pregou o Pai. Porém o fazia
de uma maneira tão nova e tão radical, que se expunha à acusação de ser um impostor
que se outorgava autoridade divina.. E foi o que aconteceu.
A ressurreição abriu os olhos aos discípulos e, com a ajuda do Espírito Santo, eles
mesmos tiraram todas as conseqüências do que Jesus havia feito: “Verdadeiramente este
era o Filho de Deus”. A frase que o centurião pronunciou ante o crucificado era um
prenúncio da confissão de fé da Igreja, totalmente amparada na história de Jesus de
Nazaré. Deste desenvolvimento da fé em Jesus como o Filho de Deus e de suas
implicações trata-se em outro capítulo contido em O Livro de Jesus Cristo. É o objeto
da chamada cristologia dogmática.
148. Então Jesus não sabia que ele era o Filho de Deus? A Igreja descobriu a seguir
por ele?
Jesus se sabia unido ao Pai de um modo único. Por isto podia falar e agir como fez. Ele
conhecia bem sua identidade. Já falamos disto ao comentar o sentido dado à sua morte.
Lembramos a parábola dos vinhateiros homicidas, que então citávamos a propósito:
“por fim enviou-lhes seu filho... e disseram entre si: matemo-lo”.Em outras parábolas,
das quais, como desta, quase ninguém duvida que tenham saído de seus lábios, Jesus se
apresenta como o enviado único do Deus único para salvar os transviados. Lembremos
a do pastor que vai em busca da ovelha perdida (Lc 18, 4-7).
Jesus conhecia bem quem era e qual sua missão. Algo diferente é que, enquanto homem
entre os homens, não poderia nem talvez deveria manifestar isto de maneira aberta.
Podia um homem colocar-se à altura de Deus sem contradizer sua missão de
obediência? Porém manifestou-se com clareza através de seus ensinamentos e de suas
obras.
99
A tarefa de desenvolver o conhecimento da pessoa de Jesus e das conseqüências de sua
vida e morte competia aos seus, após a ressurreição e a vinda do Espírito Santo. “Vos
convém que eu vá”, diz o Jesus do evangelho de João. Somente com sua ausência se
fecharia o ciclo de sua presença com o testemunho supremo da ressurreição seguida do
testemunho do Espírito Santo.
Foi todo este processo que permitiu aos crentes no Deus único de Israel atreverem-se a
dar o passo que deviam dar: associar a Jesus a divindade de Deus como o Filho. Era
uma novidade inaudita. Porém não era uma invenção. Que judeu imaginaria algo assim?
Como iriam tantos crentes piedosos de Israel, não apenas os Doze, mas também o
perseguidor Paulo, abdicar de seu monoteísmo e de sua reverência a Deus, tão
arraigada, que nem sequer seu nome santo queriam pronunciar para não profaná-lo? Um
homem, Filho de Deus? A vida daquele Nazareno apontava chocantemente nesta
direção.
A primeira comunidade cristã não inventou após a ressurreição a fé cristã em Jesus
como o Filho de Deus, mas encontrou-se então em condições de tirar todas as
conseqüências do que havia sido a vida de Jesus de Nazaré. Aqueles que propalam a
idéia da invenção não conhecem bem a verdade da história de Jesus.
149. Se Jesus só prega o Reino de Deus é ele quem oferece a salvação?
Jesus é o pregador do Reino de Deus. Porém este não é um anúncio qualquer. Implica,
como sabemos, autoridade divina para quem o realiza. Que Jesus tinha realmente tal
autoridade é o que se manifesta de modo definitivo com sua ressurreição. A partir de
fatos da Páscoa, a fé cristã compreenderá que a divindade de Deus, sem deixar de ser
única, está compartilhada por três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Os três agem
associados em tudo. Por isto Jesus não é um mero anunciador de uma salvação dada por
outro, senão que é ele próprio quem a oferece. O pregador do Reino, com parábolas e
milagres, é, em realidade, ele mesmo o Reino cuja proximidade prega: sua vida morte e
ressurreição aproximam de modo insuperável Deus ao mundo, e vice versa, o mundo a
Deus. O caminho da salvação está aberto a todos, em sua pessoa, para todos os que
abrem suas vidas à sua mensagem, à sua influência e a seu Espírito, em resumo, ao que
São Paulo e a teologia chamarão a graça de Cristo.
150. Há uma prática e um ensinamento particular de Jesus sobre a oração?
Jesus pratica a oração com muita freqüência. Jesus ora no começo de sua vida pública
de modo prolongado e solitário; ora antes de escolher os Doze; ora antes da
transfiguração e também antes da traição e a partir da cruz. Dirige-se a Deus sempre
como seu Pai, em todos os lugares e em todas as horas: durante a noite e à luz do dia; no
campo e nas sinagogas. O evangelista Lucas enfatiza muito a figura de Jesus orante. São
João relata uma grande oração, que situa no momento da despedida, em que sintetiza as
grandes preocupações de Jesus em forma de oração de intercessão. Aponta assim para o
fato de que a vida inteira do Nazareno é uma grande oração.
Neste nível de vida é onde se realiza o principal ensinamento de Jesus sobre a oração:
mais que nas palavras, em sua vida de relação de confiança filial constante com o Pai.
Naturalmente sua confiança é aquela própria do Filho eterno, diferente daquela das
criaturas. Porém, enquanto homem, Jesus vive de uma oração que provém da própria
100
intimidade do seio de Deus, no qual é o Filho. Nesta oração Jesus inicia seus discípulos,
recomendando-lhes evitar o palavrório e outorgar firme confiança em Deus.
A oração do Pai Nosso é a peça mestra de oração pensada por Jesus para os seus.
Resume seu ensinamento e sua própria vida. Conservam-se duas versões dela: uma mais
longa em São Mateus (6, 9-13) e outra mais breve em São Lucas (11, 2-4). É possível
que esta última tenha sido a fórmula empregada pelo próprio Jesus:
“Pai
que teu nome seja santificado,
que teu reino venha,
dá-nos cada dia nosso pão cotidiano,
e perdoa-nos nossos pecados,
pois também nós perdoamos a todo aquele que nos deve;
e não nos deixes em tentação”.
Esta fórmula simples converteu-se na oração mais conhecida do mundo, embora,
normalmente, na versão de São Mateus que é a adotada pela Igreja em sua oração
litúrgica.
151. O Pai Nosso é uma oração judaica ou cristã?
Não é necessário explicitar assim a alternativa. Alguns aproximam-se também de Jesus
com um tal afã dissecador (Wellhausen, Bultmann). Era Jesus cristão – perguntam-se –
ou antes um judeu piedoso e excepcional?
O Pai Nosso pode ser rezado pelos judeus. De fato assim ocorreu em alguns atos de
oração comum entre cristãos e judeus. Só que eles terão alguma dificuldade em aceitar
que a glorificação do Pai e a vinda de seu Reino que Jesus propõe pedir ao próprio Pai,
se tenham cumprido de modo perfeito no próprio Jesus, em sua vida, morte e
ressurreição. É o que pensa a Igreja quando reza a oração de Jesus. Vemos assim como
a oração de um judeu se converte em oração cristã. Tal é possível porque a vida daquele
judeu era, nem mais nem menos, que a do Filho de Deus.
Jesus foi certamente um judeu piedoso; porém por ser o Filho de Deus naquela carne
judaica, é, ao mesmo tempo, o iniciador e o consumador da fé cristã. Neste sentido ele
não é um cristão, senão objeto da fé dos cristãos. Como bom judeu, ele acreditava em
Deus, porém sendo o Filho de Deus na carne, estava unido a ele, como seu Pai, com um
vínculo muito diverso daquele da fé que une os cristãos ao Pai, ao Filho e ao Espírito.
152. O ensinamento de Jesus não se torna, às vezes, um tanto radical ou
extremista?
Aqueles que fazem uma imagem de Jesus como de um simples protótipo excelente de
humanidade tendem, com freqüência, a silenciar as extraordinárias exigências de seu
ensinamento. Há muitas vidas de Jesus escritas por racionalistas que, além de eliminar
como “não histórico” tudo aquilo que lhes parece “não científico” ou excessivamente
maravilhoso, apresentam-no como se fora um filósofo do “sentido comum” e um
representante do pensamento mais em voga ou mais ao gosto de um determinado
escritor ou grupo. Pensemos, por exemplo, em certas imagens de Jesus que o fazem
101
passar por um democrata “tolerante”, por um revolucionário “comprometido” ou por um
guru da “meditação profunda”.Porém a verdade da história de Jesus não se coaduna com
essas imagens deformadas de sua extraordinária e única personalidade. A história de
Jesus no-lo apresenta, antes , como uma pessoa inqualificável, que nos arranca de
nossos esquemas prévios e nos abre horizontes insuspeitados. Por isso encontramo-nos
com freqüência com afirmações sobre o Nazareno que nos parecem chocantes e mesmo
escandalosas. Não se deve passar por cima delas ou ignorá-las, Assim, procuramos,às
vezes, justificar a imagem reduzida ou deformada de Jesus que nos fizemos ou que nos
foram transmitidas. Mas o interessante é deixar-se interpelar por tudo o que sabemos a
respeito de Jesus: por seu nascimento, seus milagres, sua morte e ressurreição e,
também, por suas surpreendentes palavras. Algumas dessas palavras poderiam ser as
seguintes:
“Muitos são os chamados, porém poucos os escolhidos” (Mt 22, 14).
“Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai, sua mãe, sua mulher, seus
filhos...e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 26).
“Quem queira salvar sua vida, a perderá; porém quem a perca por mim e pelo
evangelho, a salvará” (Mc 8, 30).
“Os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus”(Mt 21,31).
“Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer à terra paz, mas guerra” (Mt 10,
34).
“Ali haverá pranto e ranger de dentes” (Mt 8, 12, etc.).
“A quem te dê um tapa na face direita, apresenta-lhe também a outra”(Mt 5, 39).
“Ao que tem será dado e ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado (Mc 4, 24).
“Se tua mão é ocasião de pecado, corta-a...; se teu pé é ocasião de pecado, corta-o...; se
teu olho é ocasião de pecado, arranca-o... (Mc 9, 43-48).
Estas e outras palavras de Jesus sempre nos parecem estranhas. Em parte por causa de
seu estilo semítico, que utiliza o contraste e o exagero para colocar em relevo uma idéia.
Porém a razão fundamental do espanto quanto ao ensinamento de Jesus, não é nem sua
formulação nem uma suposta radicalidade. É que são palavras que nos levam ao
mistério da pessoa mais excepcional da história da humanidade. São palavras que nos
confrontam com o mais definitivo, com a razão de ser ou de não ser de nossa vida, com
o próprio Deus. Por isso às vezes nos inquietam, porém devemos encarar com coragem
a advertência. Vale a pena.
153. Como se explica o contraste entre a certa dureza da pregação de Jesus e a
promessa de paz e felicidade que tanto repete?
Certo dia Jesus contou uma parábola que responde sobejamente esta pergunta.
“O Reino dos céus se assemelha a um tesouro oculto no campo, que um homem
encontrou e escondeu; e muito alegre por tê-lo encontrado, vai e vende tudo o que tem
para comprar aquele campo” (Mt, 13, 44).
O tesouro tem seu preço. A paz e a felicidade também. Jesus não é um radical da ascese
e dos jejuns e penitências. Jesus nada nega do que é verdadeiramente humano. Porém
Jesus oferece um tesouro tão valioso, que, como é natural, é necessário que aquele que
deseje possuí-lo esteja também disposto a pagar o preço.
102
É necessário bem distinguir: primeiro é a descoberta do tesouro e a enorme alegria que
o achado traz. Somente depois se terá desejo e coragem de vender tudo e ir comprar
aquele campo que esconde tão valioso achado.
Quem não tenha encontrado o tesouro do Reino dos céus, se conformará em procurar a
felicidade preenchendo sua conta bancária e/ou exercendo algum tipo de poder sobre os
outros. E, certamente, não encontrará nenhum sentido em renunciar a tudo o que se
imagina o ajudará a conseguir esses objetivos.
No Sermão da Montanha, São Mateus relata uma série de pronunciamentos de Jesus que
expressam as condições segundo as quais é possível a felicidade do Reino de Deus, isto
é, aquela que não engana nem desmerece:
“Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus! Felizes os aflitos,
porque serão consolados! Felizes os mansos porque eles herdarão a terra! Felizes os
que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados! Felizes os misericordiosos,
porque obterão misericórdia! Felizes os puros de coração, porque verão a Deus!
Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus!
Felizes sereis quando vos insultarem e perseguirem e disserem toda sorte de
calúnias contra vós por causa de mim! Alegrai-vos e regozijai-vos, porque grande será
vossa recompensa nos céus”. (Mt. 5,1-11).
103
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115-264.
105
INDICE
SUMARIO........................................................................................................................2
INTRODUÇÃO: Conhecer Jesus.....................................................................................3
I) COMO CONHECEMOS JESUS DE NAZARÉ?.......................................................6
1) .–Os testemunhos: Jesus e a Igreja............................................................................6
1.Creio em Jesus porém não na Igreja?”...........................................................................6
2. Já livres da tutela e da condução da Igreja para conhecer Jesus?.................................6
3. Quando começou-se a pensar em um Jesus sem Igreja?............................................. 7
4. Eram ateus os que assim pensavam?............................................................................ 7
5. Eram cristãos os que começaram a separar Jesus da Igreja..........................................7
6. Que princípios protestantes estão na base do confronto moderno entre Jesus e a
Igreja?...........................................................................................................................8
7. Porém não é verdade que a Bíblia é a fonte principal do conhecimento de Jesus
Cristo? Como pode então converter-se em um obstáculo para entender
verdadeiramente sua história?...........................................................................................8
8. Como foi aproveitado o positivismo moderno do biblicismo?.....................................8
9. Porém, não é verdade que o problema fundamental foi o materialismo moderno?.....9
10. De modo que é tão importante não separar Jesus de seus testemunhos?..................10
11. Que aporta o testemunho da Igreja para o conhecimento de Jesus?.........................10
12. Que se entende do testemunho histórico da Igreja para o conhecimento de
Jesus?..............................................................................................................................10
13. E que entendemos do testemunho antropológico eclesial para o conhecimento
da verdade sobre a história de Jesus?............................................................................ 11
14. E o testemunho teológico?.......................................................................................12
15. E ainda, qual é de fato o testemunho da Igreja sobre Jesus de Nazaré?..................13
2– Os escritos: Jesus e o Novo Testamento................................................................14
106
16. Deixou Jesus algo escrito sobre sua vida e sua obra?.......................................14
17. Quais são então as fontes confiáveis acerca de sua vida?.................................14
18. Qual o valor histórico do Novo Testamento?...................................................14
19. São menos históricos os escritos de São Paulo?...............................................15
20. Quando apareceram os evangelhos?.................................................................16
21. Até então nada havia sido escrito sobre a vida de Jesus?.................................17
22. A chamada “fonte Q” é um desses relatos primitivos utilizados pelos autores
dos evangelhos?......................................................................................................17
23. Porém não estarão influenciados pela fé todos esses escritos cristãos?...........19
24. Que levou à suspeita a competência histórica dos evangelhos?.......................19
25. Por que são confiáveis os evangelhos do ponto de vista histórico?.................20
26. Que significa dizer que os evangelhos são textos bem conservados?..............20
27. E que se pode dizer dos autores dos evangelhos?............................................21
28. Como se percebe a unidade básica do testemunho histórico dos evangelhos?.22
29. Porém não poderia acontecer que a falsificação já tivesse sido feita em um
estágio absolutamente primitivo do qual se alimentariam as diversas fontes ou
tradições evangélicas, contaminando-as todas desde sua origem?........................ 22
30. E não poderia acontecer que algo tão “original” e tão “chocante” fosse, em
realidade, uma fábula extraordinariamente composta por algum grande gênio
poético?...................................................................................................................23
31. Qual o conteúdo dos evangelhos? Estão todos relatados conforme o mesmo
esquema e a mesma concepção?.............................................................................23
32. Porém por que esses e apenas esses escritos incluídos no Novo Testamento
seriam as fontes confiáveis para conhecer a verdade sobre a história de Jesus?....24
33. E os evangelhos apócrifos? Constituem fontes históricas confiáveis?.............24
3 – A história: Jesus e os historiadores...............................................................25
34. Por que é surpreendente que houvesse algum historiador não cristão que se
tenha ocupado de Jesus pouco após sua morte.......................................................25
107
35. Quem escreveu, então, sobre Jesus naquela época sem ser cristão.................25
36. E que diz Flavio Josefo sobre Jesus?...............................................................26
37. Concorda Josefo com os evangelhos?.............................................................26
38. Qual o principal valor do testemunho de Flavio Josefo?................................27
39. Não há outros historiadores antigos que mencionem Jesus?...........................27
40.Qual o valor histórico dessas menções dos historiadores?...............................27
41. Os judeus, além de Josefo, não escreveram naquela época sobre Jesus?........27
II) QUE CONHECEMOS SOBRE A HISTÓRIA VERDADEIRA DE
JESUS DE NAZARÉ?.............................................................................29
4 – O final: paixão e ressurreição..................................................................30
42. Quando morreu Jesus de Nazaré?...................................................................30
43. Como sabemos a data da morte de Jesus?......................................................30
44. Previu Jesus sua morte de cruz?..................................................................... 31
45. Quando teve lugar a Última Ceia? Foi a habitual ceia de Páscoa?.................32
46. Por que não deixaram Jesus celebrar aquela Páscoa com todos?...................32
47. Porém que sentido Jesus deu a aquela celebração derradeira.........................33
48. Entendeu então Jesus sua morte como instrumento de uma Nova Aliança de
Deus com seu Povo?.............................................................................................34
49. Como foi capaz de dar um sentido ao que parecia um fracasso final.............34
50. Porém não contradizia aquela morte vergonhosa sua pregação acerca da
bondade de Deus? Como é que o bom Pai permitia um final assim para seu Filho
amado?..................................................................................................................35
51. Finalmente, qual foi o motivo da sentença de morte contra Jesus? Um decreto
eterno de Deus ou a maldade dos homens?..........................................................36
52. Então, a cruz de Jesus significou a morte da Verdade?..................................37
53 Se morreu acusado pela legítima autoridade religiosa do Povo de Deus, como
sabemos que Jesus não era culpado da impostura blasfema que lhe imputavam seus
juizes?....................................................................................................................38
108
54. E como sabemos que Jesus realmente ressuscitou?........................................39
55.Descobriu-se vazio o túmulo de Jesus?...........................................................39
56.Porém basta o túmulo vazio para demonstrar que Jesus ressuscitou?.............40
57.Que significa que o crucificado “foi levantado” do sepulcro e “se deixou ver”
pelos discípulos?...................................................................................................40
58.Porém em que consistiam as aparições? Era um Jesus retornado à vida anterior e que
lhes ia ao encontro?..............................................................................................41
59. Então Jesus ressuscitado é um espírito sem corpo?.......................................41
60. Porém, para nós, homens do século XXI, tem algum sentido esse caso da
ressurreição dos mortos? Podemos considerá-lo como algo além de um sonho
impossível, pré-científico?...................................................................................41
61. Por que é mais adequada ou verdadeira a ressurreição do que a reencarnação?42
62. A ressurreição de Jesus é um fato histórico?..................................................42
5 – O início: nascimento e família.....................................................................44
63. Quando Jesus nasceu?....................................................................................44
64. Por que não coincide o ano do calendário com o do nascimento de Jesus?
Como sabemos quando Jesus de Nazaré realmente nasceu?................................44
65. Sabemos quando Jesus deixou Nazaré para iniciar sua atividade pública?....45
66. Então, quantos anos Jesus permaneceu em seu povoado de Nazaré?............45
67. Porém são realmente confiáveis todas essas datas baseadas nos Evangelhos?45
68. E sobre o dia do nascimento de Jesus podemos dizer algo exato?..................46
69. Por que celebramos, então, seu nascimento no dia de Natal?.........................46
70. Jesus nasceu realmente de uma mulher virgem?.............................................47
71. Esses poucos relatos que falam da concepção virginal de Jesus são históricos?
Qual seria sua fonte de informação?.....................................................................47
72. Tratando-se de algo tão original e maravilhoso, por que não há mais
testemunhos da concepção virginal de Jesus no Novo Testamento?....................48
73. Que diz a concepção virginal sobre a verdade da história de Jesus?..............48
109
74. Como conciliar este fato tão extraordinário no início da vida de Jesus
através do qual todos, inclusive sua mãe, parece que não chegaram a compreender
quem ele era até depois de sua ressurreição?.......................................................49
75. Porém não é pouco crível que uma jovem palestinense tivesse o propósito de
manter sua virgindade naquela cultura que tanto valorizava a maternidade e a
paternidade? Já não estava prometida?................................................................50
76. Jesus nasceu em Belém? Por que então o chamavam “O Nazareno”?...........50
77. Por que José e Maria foram de Nazaré a Belém?...........................................51
78. Onde e em que trabalhavam José e Jesus?......................................................52
79. Qual era o nível social da família de Jesus?....................................................53
80. Que idioma ou idiomas Jesus falava?............................................................. 53
81. Escrevia? lia? Qual era a formação de Jesus?.................................................53
82. Jesus teve irmãos carnais?...............................................................................54
83. Não teria sido mais estimulante para a imagem cristã da família que Jesus
houvesse tido irmãos?...........................................................................................56
84. E os chamados “anos obscuros” de Jesus em Nazaré? Ter-se-á Jesus
dedicado a viajar nesse tempo?............................................................................57
6 – A luz: batismo, tentação e transfiguração..................................................58
85. Jesus foi batizado por João Batista?...............................................................58
86. João foi um essênio?........................................................................................59
87. Jesus foi discípulo de João Batista?................................................................ 59
88. Porém, de fato, não começou Jesus batizando, a exemplo de João?...............60
89. Qual foi então a relação entre João Batista e Jesus?........................................61
90. Que significou para Jesus um batismo que estava destinado à conversão
dos pecadores? Acaso era Jesus mais um pecador?..............................................62
91. Jesus foi tentado pelo mal?.............................................................................63
92. Jesus retirou-se realmente para o deserto?......................................................63
93. Foi tentado pelo diabo ou, antes foi vítima de sua imaginação......................63
110
94. Como podemos conhecer algo tão íntimo de Jesus qual seja as tentações
que sofreu..............................................................................................................64
95. De que Jesus foi tentado?................................................................................65
96. Por que o diabo tenta Jesus com a eficácia materialista?................................65
97. E a tentação de magia religiosa? O que era?...................................................66
98. A idolatria do poder foi o auge das tentações de Jesus?.................................66
99.Qual o sentido da vitória de Jesus sobre o tentador?.......................................67
100. Que foi a “transfiguração”?..........................................................................67
101.Pode ser histórica uma cena tão“fantástica”? .....................................68
102. Por que aparecem precisamente Moisés e Elias junto a Jesus?....................68
103. Que significa a transfiguração para os discípulos?.......................................69
104.A transfiguração glorifica a morte? Jesus foi um desesperado que se
refugiou na morte?...............................................................................................69
105. Então serviu para algo aquela visão da glória de Jesus?...............................70
7 – Os atos: milagres e escolha………………………………………………. 71
106. Em poucas palavras, que fez Jesus?..............................................................71
107. Como sabemos o tempo que Jesus dedicou a sua atividade como
pregador?..............................................................................................................72
108. Jesus teve algum plano de ação?..................................................................72
109. Será então verdade que “Jesus pregou o Reino e a seguir veio a Igreja”?.. 73
110. Então a quem Jesus se dirigia em sua missão? A Israel ou à Igreja?...........73
111. É lícito, pois, pensar que Jesus deu origem ao anti-semitismo que
despreza Israel?....................................................................................................74
112. Onde se desenvolveu a pregação e a atividade de Jesus?............................74
113. Conhecemos o tempo e o lugar de cada uma das atividades de Jesus ao
longo de sua missão pública?...............................................................................74
111
114. Não podemos sequer fazer-nos uma idéia global do transcorrer dos
acontecimentos?.................................................................................................75
115. Porém o Evangelho de São João não relata várias viagens de Jesus a
Jerusalém?..........................................................................................................76
116. Que significa, na vida de Jesus, “subir da Galiléia a Jerusalém?...............76
117. Porém que fazia Jesus para que as coisas fossem deturpadas dessa
maneira?..............................................................................................................77
118. Que nos leva a pensar que Jesus realizou milagres?...................................77
119. Porém pode o homem do século XXI levar a sério que Jesus tenha
realizado milagres?..............................................................................................78
120. Que seria propriamente um milagre?..........................................................79
121. Não pertenceriam os milagres de Jesus ao mesmo gênero de feitiçarias
que são narradas em alguma literatura antiga?...................................................80
122. Em que se diferencia a atividade taumatúrgica de Jesus da magia?...........81
123. Qual o sentido que Jesus dava a seus milagres?......................................... 82
124. Por que não bastaram os milagres para “convencer” seus adversários?......84
125. E seus amigos? Por que abandonaram Jesus tendo visto seus milagres?
Para que lhes serviram?.......................................................................................84
126. Que outros fatos tiveram significado especial na vida de Jesus, além de
seus milagres?.....................................................................................................85
127. È certo que Jesus se reunia nas refeições com pecadores?.........................85
128. Que significado tinham aqueles banquetes de Jesus com os transviados?.86
129. Jesus escolheu um grupo especial de Doze discípulos?.............................86
130. Por que escolheu exatamente Doze?..........................................................87
131. Foram os Doze o começo da Igreja?..........................................................88
8 – As pregações: a felicidade da salvação de Deus......................................89
a) Como Jesus falava?................................................................................90
132. Que fama obteve Jesus por ser um orador extraordinário?.......................90
112
133 Porém não conhecemos também parábolas dos rabinos judeus? ……….90
134. Por que são tão únicas as parábolas de Jesus?.........................................90
135. Que significa serem as parábolas o Reino de Deus em ação?.................90
136.Algum exemplo de como age a presença do Reino nas parábolas? ........91
137. Porém as parábolas eram sempre tão claras? Por que então os discípulos
pediam a Jesus que as explicasse?...................................................................92
138. De que outras maneiras especiais Jesus falava aos seus?.......................93
139. Há alguns sinais da forma de ensinamento de Jesus que denotem a
autoridade particular com a qual se sabia investido ao falar?........................93
140. Há algum indício em seu modo de falar sobre a origem da
consciência que Jesus tinha de sua autoridade?.............................................93
b) Que dizia Jesus?..................................................................................94
141. Qual o objeto principal da pregação de Jesus?......................................94
142. Que podiam entender aqueles que ouviam Jesus repetir que o Reino de Deus
havia chegado? Conheciam eles algo sobre esse Reino?.......................94
143. Qual era o sentido último do Reino anunciado por Jesus?.....................95
144. Que significa que Jesus anuncia e instaura o Reino do Pai?..................96
145. Que sentido continua tendo, então, a Lei para Jesus?............................96
146. Algum exemplo de como Jesus interpretava a Lei?...............................97
147. Que significa para o próprio Jesus o que ele faz ao anunciar o Reino?.98
148. Então Jesus não sabia que ele era o Filho de Deus? A Igreja descobriu
a seguir por ele?.............................................................................................98
149. Se Jesus só prega o Reino de Deus é ele quem oferece a salvação?......99
150. Há uma prática e um ensinamento particular de Jesus sobre a oração?.99
151. O Pai Nosso é uma oração judaica ou cristã?......................................100
152. O ensinamento de Jesus não se torna, às vezes, um tanto radical ou
extremista?...................................................................................................100
113
153. Como se explica o contraste entre a certa dureza da pregação de
Jesus e a promessa de paz e felicidade que tanto repete?..........................101