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PILARES HEURÍSTICOS DA TEORIA MARXISTA EM DEBATE: fundamentos da teoria do valor trabalho
Jetson Lourenço Lopes da Silva1
RESUMO: É de certo ainda atual o debate na produção
acadêmica sobre a validade dos fundamentos da tradição inaugurada pela teoria marxiana para compreensão de fenômenos da sociedade capitalista dos finais do século XX e limiar do século presente. Os problemas hodiernos, pretensamente, encontrados na inconsistência dos fundamentos do marxismo estão direcionados especialmente sobre a validade da teoria valor trabalho. Por isso, aqui se busca contextualizar o debate que tenta informar os fundamentos da tradição marxista, ao mesmo tempo em que apresenta considerações que refutam tal debate e repõe a força da teoria marxiana para compreensão das transformações societárias contemporânea. Palavras-chave: Marxismo; Transformações societárias;
Valor trabalho. .
ABSTRACT: It is certainly still current the debate in academic production about the validity of the foundations of the tradition inaugurated by the Marxian theory for understanding phenomena of capitalist society in the late twentieth century and the threshold of the present century. The present problems, allegedly found in the inconsistency of the foundations of Marxism, are especially directed at the validity of labor value theory. For this reason, the paper seeks to contextualize the debate that attempts to inform the foundations of the Marxist tradition, while at the same time presenting considerations that refute such debate and restores the strength of Marxian theory to understand contemporary societal transformations. Keywords: Marxism; Corporate Transformations; Work
value.
1 Estudante de Pós. Universidade Federal de Pernambuco. [email protected]
1 INTRODUÇÃO
Esse texto assume como pretensão fazer contraponto a algumas perspectivas
teóricas, que no terreno do pensamento social apresentam considerações infirmativas
à teoria valor trabalho desenvolvidas por Karl Marx. Portanto, aqui será retomada a
arquitetura de seus fundamentos, para apontar que tais perspectivas teóricas incorrem
no deslocamento do trabalho (em especial a forma abstrata) como condição basilar
para acumulação, exploração e reprodução capitalista. Ainda em tais perspectivas se
ventila, de um lado, uma dificuldade contemporânea de controle do capital sobre o
trabalhador, de outro a possibilidade da transformação capitalista mediada por um
diálogo consensual.
Para que o contraponto sugerido se efetive, é apresentado como se constitui e
organiza a teoria valor trabalho como estruturante da sociedade burguesa, em que a
mercadoria assume o status imperativo de elemento regente das relações sociais
sobre os sujeitos históricos. Nessa trilha, é que se apresenta como central o trabalho
abstrato, além da irrefutabilidade da validade dos fundamentos teóricos do valor
trabalho para o exato escrutínio da sociedade capitalista hodiernamente.
2 DESENVOLVIMENTO
O desmoronamento do Muro de Berlim no final dos anos 80 do século passado
representou o fim da experiência socialista russa. O passo seguinte a isso foi decorreu
num virulento ataque aos fundamentos filosóficos, econômicos e ideopolíticos, que do
ponto de vista teórico montaram base a essa experiência societária. Alguns teóricos,
equivocadamente ou acintosamente, se arvoraram na revogação de qualquer
formulação no plano do pensamento social que colocasse em xeque as estruturas de
produção e reprodução do capitalista. Dessa forma, conceberam que
o capitalismo é a forma mais perfeita de organização da sociedade, forma na qual o homem realizaria sua essência [...].O mundo capitalista seria inevitável e a única coisa a fazer é obter pequenas mudanças, por meio de lutas parciais e fragmentárias. De certa maneira concordam [...] pelo menos no sentido de que uma divindade superior teria decretado o fim da história. (CARCANHOLO, 2007, p. 10)
De acordo com essa perspectiva, com o esfacelamento da experiência
socialista a história tratou de comprovar empiricamente a insustentabilidade dos
fundamentos desenvolvidos e inaugurados pela teoria marxiana com seu horizonte
político e societário de superação da sociedade burguesa. Do ponto de vista teórico
isso representa a “crise do marxismo” que se expressa numa crise entre essa matriz
teórica e a política
porque é acompanhada da “crise da teoria da revolução proletária”, na medida em que são postas em xeque as anteriores certezas teleológicas de um socialismo concebido como a realização de uma missão histórica, ditada como tarefa “ontológica” a ser cumprida pelo proletariado, o “sujeito revolucionário”. E, também, é crise teórica, com conseqüências na amplificação da crise política, porque a dinâmica da realidade tornou-se impermeável a suas categorias explicativas. (SADER, 1986 apud EVANGELISTA, 2002, p. 17)
Na mesma quadra histórica em que se decreta o “fim da história” e a “crise do
marxismo”, se processa a crise estrutural capitalista. Essa crise foi determinante para
impor transformações no padrão de produção e reprodução capitalista, o que
estudiosos chamaram de “Reestruturação produtiva” ou “Regime de acumulação
flexível”. Na esteira do processo em que se estabelece o regime de acumulação
flexível é possível observar uma retração do setor industrial e uma dilatação do setor
de serviços, por conseguinte uma diminuição do trabalhador fabril, conforme Ricardo
Antunes (2007). O regime de acumulação flexível determinou uma grande
incorporação no sistema produtivo de bases tecnológicas através da microeletrônica,
da automação, da robótica, da nanotecnologia, etc.; além de reconfigurar os padrões
da relação entre o capital e o trabalho com a pulverização e descentralização das
unidades produtivas.
É precisamente nesse contexto que ganha terreno a batalha teórica de
desqualificação dos fundamentos da tradição marxista. Essa batalha passa a ter
suporte nos desdobramentos da reestruturação produtiva e nos desdobramentos
ideopolíticos e teóricos da derrocada da experiência socialista.
O feixe dos condicionantes históricos e produtivos oportunizou que se
erguessem teses que apontam para a incongruência do arcabouço teórico marxista na
contemporaneidade, enquanto chave explicativa do funcionamento da sociedade
capitalista. Para os defensores dessa tese a frouxidão da teoria marxista, está tanto no
anacronismo que assume no contexto societário atual, quanto dos seus fundamentos
que se arranjam sob a forma do trabalho abstrato, do trabalho produtivo, da mais-
valia, da alienação, etc.; fundamentos que dá corporeidade a teoria valor trabalho, pois
essa teoria já não tem validade na sociedade (capitalista) vigente.
Daí decorre as teses da ação comunicativa2 e na tese do trabalho imaterial3
salientam a propalada crise da tradição marxista - só para citar duas teses dentre
algumas outras na mesma perspectiva. Os pressupostos do deslocamento da
centralidade do trabalho à linguagem, ou os pressupostos do imaterial, lograram
importância ideológica, acintosa ou involuntariamente – dado os equívocos teóricos –
porque em suas linhas gerais, em primeira instância, colocam supostamente em
xeque os fundamentos da teoria valor trabalho. E, portanto, como num efeito cascata
suas chaves heurísticas esfumam as contradições da sociedade capitalista:
exploração, pauperização, luta de classes, alienação, etc. Com isso, em última
instância decretam como conseqüência irrefutável, no campo ideopolítico, a
acomodação à ordem burguesa cuja alternativa remete no máximo a sua
humanização consensual ou a reformas pontuais.
Na linha que segue a tese do trabalho imaterial de André Gorz e a tese da
ação comunicativa de Habermas, o escopo toma, em alguma medida, como
perspectiva epistemológica, o desatar de um nó górdio através da invalidação e do
estabelecimento resoluto de um anacronismo que recai sobre uma das principais
chaves heurísticas marxiana: o valor.
Sob as bases do pressuposto da preponderância do trabalho imaterial sobre o
trabalho produtivo, Gorz na sua obra “O imaterial” anuncia que a objetivação da
2 A ação comunicativa é uma chave heurística das teses de Habermas.
3 Pressupostos da tese de preponderância do trabalho imaterial são apresentados por André
Gorz, dentre tantos outros pensadores. Os pressupostos apontados por esse pensador são em alguma medida refutados por Ludmila Abílio (2014).
substância do valor a partir da mensuração e controle do tempo de trabalho já não tem
lastro concreto na realidade atual. Isso se comprovaria pelo aumento do capital
constante sobre o trabalho vivo vide complexa inovação e incorporação tecnológica na
produção.
Em suma, esse quadro de revolução e integração tecnológica na produção,
revela empiricamente que o trabalho imaterial assume centralidade através da:
preponderância da ciência sobre o trabalho vivo, superestimação da subjetividade do
trabalhador como elemento produtivo, mudança substancial no perfil constitutivo da
força de trabalho. Destarte, tudo isso representa uma mudança qualitativa no processo
de valorização do capital que não mais se estabelece pelo controle do tempo de
trabalho, mas ganha agora substância através do conhecimento e saber, o que
também impõe paradoxalmente ao próprio capital uma maior dificuldade no controle
do trabalho imaterial.
Numa outra ponta de tensão com os fundamentos marxistas, a arquitetura do
pensamento habermasiano, estruturada a partir da mediação da ação comunicativa,
explicita que o trabalho é lateralizado em prol da centralidade da linguagem na
construção e determinação do ser social. Para tanto, pressupõe a fraqueza vigente da
tradição teórica fundada por Marx com base no trabalho abstrato e na alienação (ou
reificação), categorias fundamentais à tradição da teoria do valor.
Habermas, quando situa a esfera da comunicação como fundante e, portanto,
como mediação “transformadora” do ser social, requer estabelecer que chegou ao fim
a utopia4 da sociedade do trabalho,
porque essa utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a força estruturadora e socializadora do trabalho abstrato [...] as condições da vida emancipada e digna do homem já não devem resultar diretamente de uma reviravolta nas condições de trabalho, isto é, de uma transformação do trabalho heterônomo [alienado] em autoatividade [...] onde a objetividade do capital será dissolvida e o mundo da vida, que havia sido capturada pelos ditames da lei do valor retornará a sua espontaneidade (HABERMAS, 1990, apud REESE-SCHAFER, 2012, p. 62).
4 Ao fazer referência ao fim da utopia da sociedade do trabalho Habermas tem uma intenção
ideológica e ao mesmo tempo de desqualificação da teoria marxista, pois existe uma intenção pejorativa quanto ao uso do termo utopia, que em seus arranjos aparece semanticamente não como possibilidade ou télos de transformação concreta da realidade social, mas como quimera, equívoco e ilusão teórica.
Com isso, tais pressuposições golpeiam a suposta fragilidade de como se
esclarece a alienação a partir da teoria valor, pois para Habermas ela se apresenta
abstrata/especulativa, imprecisa e confusa, já que não apresenta bases que distinga
sua manifestação concreta naquilo que chama de “Mundo da Vida” (leia-se sociedade
civil). Uma vez que a alienação para Marx é condicionada na sociedade capitalista
também pela mediação do trabalho abstrato, isso implica que a partir da teoria valor
[...] o conceito de alienação perde sua determinação, [...] fala em abstrato sobre a vida e suas possibilidades vitais, [...] no contexto histórico de suas investigações, o conceito de alienação permanece peculiarmente ambíguo (HABERMAS, 1990, apud REESE-SCHAFER, 2012, p. 64).
A funcionalidade ideológica que já aludimos da tese do trabalho imaterial e da
ação comunicativa como escudo para a ordem do capital, logra tanto menos êxito
quanto mais se expõe os equívocos teóricos na empreitada de desqualificação dos
fundamentos da teoria do valor. O reconhecimento da vitalidade da teoria valor ante a
sociedade da mercadoria, da reificação e do trabalho abstrato exige passar em revista
alguns dos fundamentos e categorias chaves que lhes dão sustentabilidade, ao passo
que quando colocados no sentido da crítica a crítica das teses que decretam a crise
do marxismo, logo emerge a inversão do efeito: a teoria valor espelha fundamentos e
categorias teóricas não tão somente qualificadas, mas precipuamente incontornáveis
para satisfatória leitura das transformações e movimento da realidade contemporânea,
enredados à produção e reprodução capitalista.
Na forma social cuja riqueza “configura-se como uma imensa acumulação de
mercadorias, sendo a mercadoria isolada a forma elementar dessa riqueza” (MARX,
2008, p. 51), as relações sociais de produção dessa riqueza não só coloca a
inquestionável centralidade do trabalho para sua realização, quanto aponta - ao
contrário dos pressupostos construídos por Gorz e Habermas -, o relevo do trabalho
abstrato como mediação para compreensão do movimento atual de acumulação
capitalista estabelecido pela exploração via tempo de trabalho não pago. Além disso, a
forma social orientada para produção de mercadorias que organiza o processo de
trabalho oferece, a partir de fundamentos interpretativos da teoria valor, elementos
que ensejam problematizar a alienação concreta vivenciada pelos sujeitos sociais.
Nesse sentido, problematizar a alienação exige repor no terreno do debate a
dimensão que assume o valor de troca e a mercadoria como categorias econômicas
que determinam a relação entre os sujeitos históricos, ou melhor, que condicionam as
relações sociais capitalistas e por isso auxiliam na sua compreensão.
O problema da alienação na tradição marxista não se apresenta nem
abstrato/especulativo, ou tampouco com viés empiricista na busca de apontá-lo como
fenômeno isolado aqui ou ali na vida social dos sujeitos históricos. Para tradição
marxista essa problemática revela-se abissal na totalidade das relações sociais
capitalistas, porque busca capturar a essência de suas determinações, o que per si
possibilita problematizar a manifestação concreta da alienação na forma social em que
o valor e a mercadoria dominam os sujeitos históricos.
Em prosseguimento as considerações que alcança, no mesmo compasso que
anuncia a sociedade capitalista como a sociedade da mercadoria, Marx (2008, p. 51)
conclui que “cada mercadoria se manifesta sob duplo aspecto de valor de uso e valor
de troca5”. O valor de uso é a forma constitutiva de todo produto do trabalho6 humano
independente da forma social em que se estabelece o ato de trabalhar. Também o
valor de uso na sociedade da mercadoria se constitui como correia de transmissão
para o valor de troca. Entretanto, nessa sociedade, o valor de troca ganha
proeminência histórica e social sobre o valor de uso7.
No terreno social em que se desenvolvem as relações de troca entre as
diversas mercadorias com grandezas e naturezas distintas, o valor de troca se
sobrepõe socialmente ao valor de uso invariavelmente inerente a cada mercadoria.
5 Para um melhor aprofundamento acerca dos termos valor de uso e valor de troca, bem como
para uma adequada compreensão da distinção existente entre os dois conceitos se exige impreterivelmente recorrer a leitura do capítulo I – a mercadoria – do Livro I de O Capital, uma vez que na obra Contribuição à crítica da economia política Karl Marx não elucida bem os termos, pois nessa obra conforme indica Carcanholo (2008, p. 15) “Marx não distingue terminologicamente valor de valor de troca. Embora uma leitura atenta permita perceber essa distinção [...]. o autor muitas vezes fala em valor de troca quando deveria referir-se a valor. A terminologia mais precisa só virá à luz n’O Capital”. 6 Dado os limites e o propósito específico desse texto, não está no elenco dos objetivos
esclarecer a riqueza dos conceitos e categorias elaboradas e/ou desenvolvidas por Marx. Dito isso, recomendamos para compreender sobre a categoria trabalho é imprescindível recorrer a leitura do capítulo V – Processo de Trabalho e Processo de produzir mais valia – do Livro I de O Capital. Salientamos também que a leitura desse capítulo poderá desanuviar alguns outros pontos obscuros que possam existir ao longo do nosso percurso discursivo. 7 Nos estudos onde revela a arquitetura da economia política burguesa Marx observa que, assim como a
mercadoria, o trabalho também apresenta um a duplicidade. Constitui-se útil quando cria sempre valor de uso no produto resultante do trabalho, mas nesse mesmo produto se expressa como fonte de valor de troca. Mais adiante trataremos dessa questão porque ela é chave para desmistificar as teses de Habermas, mas, sobretudo de Groz.
Dessa forma, nos deparamos com problemas semelhantes em que chegou o
formulador da tradição marxista no percurso de sua pesquisa: diante de mercadorias
que se distinguem entre si em grandeza, formas e qualidades específicas, como
podem entrar em relação umas com as outras? Como se configura essa substância
social, o valor de troca entre mercadorias? Como se mensurar a grandeza do valor
mercadoria?
Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho neles corporificados [...] reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho abstrato. Por meio da quantidade da “substância criadora de valor nele contida”, o trabalho. A quantidade de trabalho, por sua vez, mede-se pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho por frações do tempo, como hora, dia etc. [...]. Todavia, o trabalho que constitui a substância dos valores é o trabalho humano homogêneo, dispêndio de idêntica força de trabalho. (MARX, 2012, p. 60)
Embora possa parecer a priori uma mera relação contingente, uma
manifestação desprovida de qualquer regularidade processual e sem realização
factual nas relações de produção e reprodução da vida social, o valor expressa uma
relação social objetiva, portanto concreta na sociedade capitalista. O valor como
substância que vem a ser mediação para relação de troca, se incorpora na mercadoria
unicamente por meio do trabalho humano. Torna-se para teia constitutiva da
sociedade burguesa um condicionante basilar de suas relações sociais.
No valor está, portanto, o ponto didático/teórico (por isso abstrato) que espelha
dialeticamente o dado concreto em que se apresenta o aspecto da matéria, a
mercadoria. Acerca disso Marx (2012, p. 72) esclarece que:
Ao dizermos que, como valores, as mercadorias são trabalho humano cristalizado, nossa análise as reduz a uma abstração, a valor, mas não lhes dá forma para esse valor, distinta de sua forma física. A questão muda quando se trata da relação de valor entre duas mercadorias. Aí a condição de valor de uma se revela na própria relação que estabelece com a outra.
A partir do trabalho, elemento chave condicionante para o desenvolvimento do
ser social e das relações dele emergentes, Marx logrou desatar o ponto nodal da
ordem burguesa, posto que desvelou a constituição do valor enquanto substância que
potencia a dimensão do real na sociedade capitalista, ou seja, as relações de troca
entre mercadorias. Porém, é o trabalho na sua forma abstrata que homogeniza o
dispêndio da força de trabalho humano e, por conseguinte, determina a equivalência
entre mercadorias distintas, com isso se estabelecem as bases que possibilitam,
dentro dos marcos da sociedade burguesa, o intercâmbio entre tais mercadorias por
meio de relações de troca. Assim, a constituição produtiva e reprodutiva essencial
dessa sociedade depende da realização dessa relação.
a relação de valor, existente nessa expressão, determina que a casa seja qualitativamente igualada à cama e que, sem essa igualização não poderiam coisas de aparências tão diversas ser comparadas como grandezas comensuráveis [...]. A casa representa, perante a cama, uma coisa que a iguala à cama, desde que represente o que é realmente igual em ambos: o trabalho humano. [...] Ao adquirir a idéia da igualdade humana a consistência de uma convicção popular é que se pode decifrar o segredo da expressão valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, por que são e enquanto são trabalho humano em geral. E mais, essa descoberta só é possível numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral do produto, e, em conseqüência, a relação dos homens entre si como possuidores de mercadoria é a relação social dominante. (MARX, 2012, p. 81-82)
O trabalho abstrato é o aspecto determinante do valor, nele se estabelece a
convenção social que possibilita a realização da troca entre as mercadorias.
Convenção que se expressa concretamente sob a forma do tempo de trabalho
necessário à produção de uma determinada mercadoria. Por intermédio do trabalho
abstrato é que se equalizam as diversidades úteis dos trabalhos concretos, com todas
suas diferenças qualitativas.
O tempo de trabalho necessário realizado na produção de determinadas
mercadorias é a substância que faz delas “valores de troca, e, por conseguinte,
mercadorias, mas também a medida de seu valor determinado. Consideradas como
valores de troca, as mercadorias não são mais que medidas determinadas de tempo
de trabalho cristalizado” (MARX, 2008, p. 55).
O resultado do trabalho humano na sociedade capitalista tem que se constituir
necessariamente em mercadoria para entrar em relação com outras, assim, conforme
aponta Marx (2012, p. 69), como mercadoria
só encarnam valor na medida em que são expressões de uma mesma substância social, o trabalho humano; seu valor é, portanto, uma realidade social, só podendo manifestar-se, evidentemente, na relação social em que uma mercadoria se troca por outra.
A mensuração da grandeza do valor contida numa determinada mercadoria,
que a priori aparenta ser casual, abstrata e especulativa, dessa forma, materializa-se
pela quantificação do dispêndio de tempo necessário à produção enquanto convenção
social. É também por meio dessa convenção emergente das relações sociais de
produção da sociedade capitalista que o valor de troca não suprime o valor de uso –
porque não pode suprimir -, mas se sobrepõe a ele nos resultados dos produtos do
trabalho humano, dado que “nenhuma coisa pode ser valor se não é útil; se não é útil,
tampouco será o trabalho nela contido, o qual não conta como trabalho e, por isso,
não cria valor” (MARX, 2012, 63). Isso expõe o caráter duplo da mercadoria na medida
em que como produto do trabalho tem que guardar uma natureza útil e constituir-se,
sobretudo, como do valor de troca.
Como fonte criadora de mercadoria e, portanto, de valor, chegamos naquilo
que para produção e reprodução do capital é o ponto principal do duplo caráter que
guarda o trabalho, o de ser mediação para o valor de troca. É, portanto, nesse sentido
que se visualiza a imprescindibilidade do trabalho para produção, reprodução e
transformações contemporâneas da sociedade capitalista, em especial para a
dinâmica de acumulação que a movimenta. Nada pode entrar em relação de troca
nessa sociedade se não assumir a forma mercadoria e como mercadoria só pode se
constituir enquanto tal se tiver como sua fonte criadora o trabalho humano.
O trabalho não é apenas central para o ser social, é o condicionante
fundamental para sua constituição, aquilo que potencializa a dinâmica de seu
desenvolvimento, aquilo que aciona as forças do seu movimento histórico. Mas,
quando temos em vista a sociedade capitalista, a ação laborativa humana na
manifestação de sua forma abstrata lhe é vital; ou seja, o trabalho abstrato torna-se
essencial para acumulação de capital.
Por isso, é improcedente e equivocado deslocar o trabalho da centralidade que
assume para o ser social, em particular a forma social em que o valor (de troca) é a
determinação que potencia as bases da sociedade contemporânea. Tanto quanto
improcedente e equivocado é a afirmação de que o trabalho abstrato não é mais a
fonte essencial de valorização do capital.
Quando vai tratar acerca do processo de valorização, ao passo que revela
também o segredo da acumulação burguesa vide exploração da força de trabalho,
Marx desvela esse processo com base na produção de mais-valia absoluta e relativa8.
8 O capital apresenta duas formas de processar a produção de valor e a exploração que Marx
problematizou chamando de mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A primeira forma se manifesta através da ampliação da jornada de trabalho, a segunda é resultante do
A partir daí, o fundador da teoria valor consegue chegar à conclusão que é inerente à
dinâmica da acumulação capitalista: a exigência de uma constante incorporação do
desenvolvimento técnico e científico no processo de produção
da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. Ela supõe, portanto, um modo de produção especificamente capitalista, que com seus métodos, meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da subordinação forma do trabalho ao capital. No lugar da formal surge a subordinação real do trabalho ao capital. (MARX, 2011, p. 578)
Disso decorrem duas questões: a primeira é que se trata de uma contradição
própria do capital a necessidade de incorporação da técnica e da ciência no processo
de geração de riqueza para acumulação em detrimento do trabalho vivo, que ora
condiciona a subsunção real9 do trabalhador no modo de produção capitalista; ou seja,
é intrínseco ao modo de produção capitalista o aumento de sua composição orgânica.
E a segunda, de que nos tempos atuais em nada se alterou o processo de
acumulação vide exploração nos marcos da sociedade capitalista, que invariavelmente
ocorre determinada a partir da condição de subordinação formal do trabalhador ao
capital.
3 CONCLUSÃO
Dentro do marco histórico da sociedade capitalista, o arsenal heurístico
presente nos fundamentos da teoria valor possibilita problematizar com clarividência a
concreticidade em que se realiza: a exploração de classe; a subsunção real e formal
dos trabalhadores; o processo de valorização e acumulação do capital; a problemática
desenvolvimento das forças produtivas que possibilita a diminuição do tempo de trabalho social necessário. A melhor compreensão da questão exige passar em vista o capítulo X – conceito de mais-valia relativa – e o capítulo XIV – mais-valia absoluta e mais-valia relativa - do Livro I de O Capital. 9 As formas de subsunção formal e subsunção real que vivencia o trabalhador são tratadas por
Marx na obra O Capital para dar conta do controle do capital sobre o processo de trabalho. O primeiro termo diz respeito ao processo em que os trabalhadores se subsumiram formalmente ao controle do capital ao serem destituídos dos meios de trabalho, já o segundo termo refere-se ao controle e uma alienação ainda mais intensa do produtor direto da mercadoria vide a produção de mais-valia relativa, que se efetiva pela incorporação dos avanços tecnocientíficos à produção.
da alienação que atravessa a sociedade capitalista, em especial a classe
trabalhadora, porquanto a mercadoria se sobrepõe aos sujeitos na orientação das
relações sociais; a mediação incontornável que assume o trabalho (abstrato) para
arquitetura da sociedade burguesa, dentre outras tantas contradições dessa ordem
social.
Decretar o fim da validade dos fundamentos teóricos da teoria do valor trabalho
desenvolvida por Marx só se torna possível quando a questão salta do terreno
epistemológico para o terreno estritamente ideológico e mistificador, com o necessário
disfarce de debate teórico. Isso, posto que as “leis”, categorias e chaves heurísticas
elaboradas no plano teórico da abstração marxiana para iluminação do movimento e
transformações do real estão mais que atuais e vivas na reprodução da sociedade
capitalista contemporânea.
REERÊNCIAS
ABÍLIO, L. C. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Ed. Boitempo, 2014.
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CARCANHOLO, R. Prefácio para Contribuição à crítica da economia política. In: Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Ed. Expressão Popular,
2008. EVANGELISTA, J. A. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. São
Paulo: Ed. Cortez, 2002. MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2008. _______. O Capital (crítica da economia política). Livro 1 v. 1. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2012.
_______. O Capital (crítica da economia política). Livro 1 v. 2. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2011. REESE-SCHAFER, W. Compreender Habermas. Petrópolis: Ed. Vozes, 2012.