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PILARES HEURÍSTICOS DA TEORIA MARXISTA EM DEBATE: fundamentos da teoria do valor trabalho Jetson Lourenço Lopes da Silva 1 RESUMO: É de certo ainda atual o debate na produção acadêmica sobre a validade dos fundamentos da tradição inaugurada pela teoria marxiana para compreensão de fenômenos da sociedade capitalista dos finais do século XX e limiar do século presente. Os problemas hodiernos, pretensamente, encontrados na inconsistência dos fundamentos do marxismo estão direcionados especialmente sobre a validade da teoria valor trabalho. Por isso, aqui se busca contextualizar o debate que tenta informar os fundamentos da tradição marxista, ao mesmo tempo em que apresenta considerações que refutam tal debate e repõe a força da teoria marxiana para compreensão das transformações societárias contemporânea. Palavras-chave: Marxismo; Transformações societárias; Valor trabalho. . ABSTRACT: It is certainly still current the debate in academic production about the validity of the foundations of the tradition inaugurated by the Marxian theory for understanding phenomena of capitalist society in the late twentieth century and the threshold of the present century. The present problems, allegedly found in the inconsistency of the foundations of Marxism, are especially directed at the validity of labor value theory. For this reason, the paper seeks to contextualize the debate that attempts to inform the foundations of the Marxist tradition, while at the same time presenting considerations that refute such debate and restores the strength of Marxian theory to understand contemporary societal transformations. Keywords: Marxism; Corporate Transformations; Work value. 1 Estudante de Pós. Universidade Federal de Pernambuco. [email protected]

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PILARES HEURÍSTICOS DA TEORIA MARXISTA EM DEBATE: fundamentos da teoria do valor trabalho

Jetson Lourenço Lopes da Silva1

RESUMO: É de certo ainda atual o debate na produção

acadêmica sobre a validade dos fundamentos da tradição inaugurada pela teoria marxiana para compreensão de fenômenos da sociedade capitalista dos finais do século XX e limiar do século presente. Os problemas hodiernos, pretensamente, encontrados na inconsistência dos fundamentos do marxismo estão direcionados especialmente sobre a validade da teoria valor trabalho. Por isso, aqui se busca contextualizar o debate que tenta informar os fundamentos da tradição marxista, ao mesmo tempo em que apresenta considerações que refutam tal debate e repõe a força da teoria marxiana para compreensão das transformações societárias contemporânea. Palavras-chave: Marxismo; Transformações societárias;

Valor trabalho. .

ABSTRACT: It is certainly still current the debate in academic production about the validity of the foundations of the tradition inaugurated by the Marxian theory for understanding phenomena of capitalist society in the late twentieth century and the threshold of the present century. The present problems, allegedly found in the inconsistency of the foundations of Marxism, are especially directed at the validity of labor value theory. For this reason, the paper seeks to contextualize the debate that attempts to inform the foundations of the Marxist tradition, while at the same time presenting considerations that refute such debate and restores the strength of Marxian theory to understand contemporary societal transformations. Keywords: Marxism; Corporate Transformations; Work

value.

1 Estudante de Pós. Universidade Federal de Pernambuco. [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

Esse texto assume como pretensão fazer contraponto a algumas perspectivas

teóricas, que no terreno do pensamento social apresentam considerações infirmativas

à teoria valor trabalho desenvolvidas por Karl Marx. Portanto, aqui será retomada a

arquitetura de seus fundamentos, para apontar que tais perspectivas teóricas incorrem

no deslocamento do trabalho (em especial a forma abstrata) como condição basilar

para acumulação, exploração e reprodução capitalista. Ainda em tais perspectivas se

ventila, de um lado, uma dificuldade contemporânea de controle do capital sobre o

trabalhador, de outro a possibilidade da transformação capitalista mediada por um

diálogo consensual.

Para que o contraponto sugerido se efetive, é apresentado como se constitui e

organiza a teoria valor trabalho como estruturante da sociedade burguesa, em que a

mercadoria assume o status imperativo de elemento regente das relações sociais

sobre os sujeitos históricos. Nessa trilha, é que se apresenta como central o trabalho

abstrato, além da irrefutabilidade da validade dos fundamentos teóricos do valor

trabalho para o exato escrutínio da sociedade capitalista hodiernamente.

2 DESENVOLVIMENTO

O desmoronamento do Muro de Berlim no final dos anos 80 do século passado

representou o fim da experiência socialista russa. O passo seguinte a isso foi decorreu

num virulento ataque aos fundamentos filosóficos, econômicos e ideopolíticos, que do

ponto de vista teórico montaram base a essa experiência societária. Alguns teóricos,

equivocadamente ou acintosamente, se arvoraram na revogação de qualquer

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formulação no plano do pensamento social que colocasse em xeque as estruturas de

produção e reprodução do capitalista. Dessa forma, conceberam que

o capitalismo é a forma mais perfeita de organização da sociedade, forma na qual o homem realizaria sua essência [...].O mundo capitalista seria inevitável e a única coisa a fazer é obter pequenas mudanças, por meio de lutas parciais e fragmentárias. De certa maneira concordam [...] pelo menos no sentido de que uma divindade superior teria decretado o fim da história. (CARCANHOLO, 2007, p. 10)

De acordo com essa perspectiva, com o esfacelamento da experiência

socialista a história tratou de comprovar empiricamente a insustentabilidade dos

fundamentos desenvolvidos e inaugurados pela teoria marxiana com seu horizonte

político e societário de superação da sociedade burguesa. Do ponto de vista teórico

isso representa a “crise do marxismo” que se expressa numa crise entre essa matriz

teórica e a política

porque é acompanhada da “crise da teoria da revolução proletária”, na medida em que são postas em xeque as anteriores certezas teleológicas de um socialismo concebido como a realização de uma missão histórica, ditada como tarefa “ontológica” a ser cumprida pelo proletariado, o “sujeito revolucionário”. E, também, é crise teórica, com conseqüências na amplificação da crise política, porque a dinâmica da realidade tornou-se impermeável a suas categorias explicativas. (SADER, 1986 apud EVANGELISTA, 2002, p. 17)

Na mesma quadra histórica em que se decreta o “fim da história” e a “crise do

marxismo”, se processa a crise estrutural capitalista. Essa crise foi determinante para

impor transformações no padrão de produção e reprodução capitalista, o que

estudiosos chamaram de “Reestruturação produtiva” ou “Regime de acumulação

flexível”. Na esteira do processo em que se estabelece o regime de acumulação

flexível é possível observar uma retração do setor industrial e uma dilatação do setor

de serviços, por conseguinte uma diminuição do trabalhador fabril, conforme Ricardo

Antunes (2007). O regime de acumulação flexível determinou uma grande

incorporação no sistema produtivo de bases tecnológicas através da microeletrônica,

da automação, da robótica, da nanotecnologia, etc.; além de reconfigurar os padrões

da relação entre o capital e o trabalho com a pulverização e descentralização das

unidades produtivas.

É precisamente nesse contexto que ganha terreno a batalha teórica de

desqualificação dos fundamentos da tradição marxista. Essa batalha passa a ter

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suporte nos desdobramentos da reestruturação produtiva e nos desdobramentos

ideopolíticos e teóricos da derrocada da experiência socialista.

O feixe dos condicionantes históricos e produtivos oportunizou que se

erguessem teses que apontam para a incongruência do arcabouço teórico marxista na

contemporaneidade, enquanto chave explicativa do funcionamento da sociedade

capitalista. Para os defensores dessa tese a frouxidão da teoria marxista, está tanto no

anacronismo que assume no contexto societário atual, quanto dos seus fundamentos

que se arranjam sob a forma do trabalho abstrato, do trabalho produtivo, da mais-

valia, da alienação, etc.; fundamentos que dá corporeidade a teoria valor trabalho, pois

essa teoria já não tem validade na sociedade (capitalista) vigente.

Daí decorre as teses da ação comunicativa2 e na tese do trabalho imaterial3

salientam a propalada crise da tradição marxista - só para citar duas teses dentre

algumas outras na mesma perspectiva. Os pressupostos do deslocamento da

centralidade do trabalho à linguagem, ou os pressupostos do imaterial, lograram

importância ideológica, acintosa ou involuntariamente – dado os equívocos teóricos –

porque em suas linhas gerais, em primeira instância, colocam supostamente em

xeque os fundamentos da teoria valor trabalho. E, portanto, como num efeito cascata

suas chaves heurísticas esfumam as contradições da sociedade capitalista:

exploração, pauperização, luta de classes, alienação, etc. Com isso, em última

instância decretam como conseqüência irrefutável, no campo ideopolítico, a

acomodação à ordem burguesa cuja alternativa remete no máximo a sua

humanização consensual ou a reformas pontuais.

Na linha que segue a tese do trabalho imaterial de André Gorz e a tese da

ação comunicativa de Habermas, o escopo toma, em alguma medida, como

perspectiva epistemológica, o desatar de um nó górdio através da invalidação e do

estabelecimento resoluto de um anacronismo que recai sobre uma das principais

chaves heurísticas marxiana: o valor.

Sob as bases do pressuposto da preponderância do trabalho imaterial sobre o

trabalho produtivo, Gorz na sua obra “O imaterial” anuncia que a objetivação da

2 A ação comunicativa é uma chave heurística das teses de Habermas.

3 Pressupostos da tese de preponderância do trabalho imaterial são apresentados por André

Gorz, dentre tantos outros pensadores. Os pressupostos apontados por esse pensador são em alguma medida refutados por Ludmila Abílio (2014).

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substância do valor a partir da mensuração e controle do tempo de trabalho já não tem

lastro concreto na realidade atual. Isso se comprovaria pelo aumento do capital

constante sobre o trabalho vivo vide complexa inovação e incorporação tecnológica na

produção.

Em suma, esse quadro de revolução e integração tecnológica na produção,

revela empiricamente que o trabalho imaterial assume centralidade através da:

preponderância da ciência sobre o trabalho vivo, superestimação da subjetividade do

trabalhador como elemento produtivo, mudança substancial no perfil constitutivo da

força de trabalho. Destarte, tudo isso representa uma mudança qualitativa no processo

de valorização do capital que não mais se estabelece pelo controle do tempo de

trabalho, mas ganha agora substância através do conhecimento e saber, o que

também impõe paradoxalmente ao próprio capital uma maior dificuldade no controle

do trabalho imaterial.

Numa outra ponta de tensão com os fundamentos marxistas, a arquitetura do

pensamento habermasiano, estruturada a partir da mediação da ação comunicativa,

explicita que o trabalho é lateralizado em prol da centralidade da linguagem na

construção e determinação do ser social. Para tanto, pressupõe a fraqueza vigente da

tradição teórica fundada por Marx com base no trabalho abstrato e na alienação (ou

reificação), categorias fundamentais à tradição da teoria do valor.

Habermas, quando situa a esfera da comunicação como fundante e, portanto,

como mediação “transformadora” do ser social, requer estabelecer que chegou ao fim

a utopia4 da sociedade do trabalho,

porque essa utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a força estruturadora e socializadora do trabalho abstrato [...] as condições da vida emancipada e digna do homem já não devem resultar diretamente de uma reviravolta nas condições de trabalho, isto é, de uma transformação do trabalho heterônomo [alienado] em autoatividade [...] onde a objetividade do capital será dissolvida e o mundo da vida, que havia sido capturada pelos ditames da lei do valor retornará a sua espontaneidade (HABERMAS, 1990, apud REESE-SCHAFER, 2012, p. 62).

4 Ao fazer referência ao fim da utopia da sociedade do trabalho Habermas tem uma intenção

ideológica e ao mesmo tempo de desqualificação da teoria marxista, pois existe uma intenção pejorativa quanto ao uso do termo utopia, que em seus arranjos aparece semanticamente não como possibilidade ou télos de transformação concreta da realidade social, mas como quimera, equívoco e ilusão teórica.

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Com isso, tais pressuposições golpeiam a suposta fragilidade de como se

esclarece a alienação a partir da teoria valor, pois para Habermas ela se apresenta

abstrata/especulativa, imprecisa e confusa, já que não apresenta bases que distinga

sua manifestação concreta naquilo que chama de “Mundo da Vida” (leia-se sociedade

civil). Uma vez que a alienação para Marx é condicionada na sociedade capitalista

também pela mediação do trabalho abstrato, isso implica que a partir da teoria valor

[...] o conceito de alienação perde sua determinação, [...] fala em abstrato sobre a vida e suas possibilidades vitais, [...] no contexto histórico de suas investigações, o conceito de alienação permanece peculiarmente ambíguo (HABERMAS, 1990, apud REESE-SCHAFER, 2012, p. 64).

A funcionalidade ideológica que já aludimos da tese do trabalho imaterial e da

ação comunicativa como escudo para a ordem do capital, logra tanto menos êxito

quanto mais se expõe os equívocos teóricos na empreitada de desqualificação dos

fundamentos da teoria do valor. O reconhecimento da vitalidade da teoria valor ante a

sociedade da mercadoria, da reificação e do trabalho abstrato exige passar em revista

alguns dos fundamentos e categorias chaves que lhes dão sustentabilidade, ao passo

que quando colocados no sentido da crítica a crítica das teses que decretam a crise

do marxismo, logo emerge a inversão do efeito: a teoria valor espelha fundamentos e

categorias teóricas não tão somente qualificadas, mas precipuamente incontornáveis

para satisfatória leitura das transformações e movimento da realidade contemporânea,

enredados à produção e reprodução capitalista.

Na forma social cuja riqueza “configura-se como uma imensa acumulação de

mercadorias, sendo a mercadoria isolada a forma elementar dessa riqueza” (MARX,

2008, p. 51), as relações sociais de produção dessa riqueza não só coloca a

inquestionável centralidade do trabalho para sua realização, quanto aponta - ao

contrário dos pressupostos construídos por Gorz e Habermas -, o relevo do trabalho

abstrato como mediação para compreensão do movimento atual de acumulação

capitalista estabelecido pela exploração via tempo de trabalho não pago. Além disso, a

forma social orientada para produção de mercadorias que organiza o processo de

trabalho oferece, a partir de fundamentos interpretativos da teoria valor, elementos

que ensejam problematizar a alienação concreta vivenciada pelos sujeitos sociais.

Nesse sentido, problematizar a alienação exige repor no terreno do debate a

dimensão que assume o valor de troca e a mercadoria como categorias econômicas

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que determinam a relação entre os sujeitos históricos, ou melhor, que condicionam as

relações sociais capitalistas e por isso auxiliam na sua compreensão.

O problema da alienação na tradição marxista não se apresenta nem

abstrato/especulativo, ou tampouco com viés empiricista na busca de apontá-lo como

fenômeno isolado aqui ou ali na vida social dos sujeitos históricos. Para tradição

marxista essa problemática revela-se abissal na totalidade das relações sociais

capitalistas, porque busca capturar a essência de suas determinações, o que per si

possibilita problematizar a manifestação concreta da alienação na forma social em que

o valor e a mercadoria dominam os sujeitos históricos.

Em prosseguimento as considerações que alcança, no mesmo compasso que

anuncia a sociedade capitalista como a sociedade da mercadoria, Marx (2008, p. 51)

conclui que “cada mercadoria se manifesta sob duplo aspecto de valor de uso e valor

de troca5”. O valor de uso é a forma constitutiva de todo produto do trabalho6 humano

independente da forma social em que se estabelece o ato de trabalhar. Também o

valor de uso na sociedade da mercadoria se constitui como correia de transmissão

para o valor de troca. Entretanto, nessa sociedade, o valor de troca ganha

proeminência histórica e social sobre o valor de uso7.

No terreno social em que se desenvolvem as relações de troca entre as

diversas mercadorias com grandezas e naturezas distintas, o valor de troca se

sobrepõe socialmente ao valor de uso invariavelmente inerente a cada mercadoria.

5 Para um melhor aprofundamento acerca dos termos valor de uso e valor de troca, bem como

para uma adequada compreensão da distinção existente entre os dois conceitos se exige impreterivelmente recorrer a leitura do capítulo I – a mercadoria – do Livro I de O Capital, uma vez que na obra Contribuição à crítica da economia política Karl Marx não elucida bem os termos, pois nessa obra conforme indica Carcanholo (2008, p. 15) “Marx não distingue terminologicamente valor de valor de troca. Embora uma leitura atenta permita perceber essa distinção [...]. o autor muitas vezes fala em valor de troca quando deveria referir-se a valor. A terminologia mais precisa só virá à luz n’O Capital”. 6 Dado os limites e o propósito específico desse texto, não está no elenco dos objetivos

esclarecer a riqueza dos conceitos e categorias elaboradas e/ou desenvolvidas por Marx. Dito isso, recomendamos para compreender sobre a categoria trabalho é imprescindível recorrer a leitura do capítulo V – Processo de Trabalho e Processo de produzir mais valia – do Livro I de O Capital. Salientamos também que a leitura desse capítulo poderá desanuviar alguns outros pontos obscuros que possam existir ao longo do nosso percurso discursivo. 7 Nos estudos onde revela a arquitetura da economia política burguesa Marx observa que, assim como a

mercadoria, o trabalho também apresenta um a duplicidade. Constitui-se útil quando cria sempre valor de uso no produto resultante do trabalho, mas nesse mesmo produto se expressa como fonte de valor de troca. Mais adiante trataremos dessa questão porque ela é chave para desmistificar as teses de Habermas, mas, sobretudo de Groz.

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Dessa forma, nos deparamos com problemas semelhantes em que chegou o

formulador da tradição marxista no percurso de sua pesquisa: diante de mercadorias

que se distinguem entre si em grandeza, formas e qualidades específicas, como

podem entrar em relação umas com as outras? Como se configura essa substância

social, o valor de troca entre mercadorias? Como se mensurar a grandeza do valor

mercadoria?

Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho neles corporificados [...] reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho abstrato. Por meio da quantidade da “substância criadora de valor nele contida”, o trabalho. A quantidade de trabalho, por sua vez, mede-se pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho por frações do tempo, como hora, dia etc. [...]. Todavia, o trabalho que constitui a substância dos valores é o trabalho humano homogêneo, dispêndio de idêntica força de trabalho. (MARX, 2012, p. 60)

Embora possa parecer a priori uma mera relação contingente, uma

manifestação desprovida de qualquer regularidade processual e sem realização

factual nas relações de produção e reprodução da vida social, o valor expressa uma

relação social objetiva, portanto concreta na sociedade capitalista. O valor como

substância que vem a ser mediação para relação de troca, se incorpora na mercadoria

unicamente por meio do trabalho humano. Torna-se para teia constitutiva da

sociedade burguesa um condicionante basilar de suas relações sociais.

No valor está, portanto, o ponto didático/teórico (por isso abstrato) que espelha

dialeticamente o dado concreto em que se apresenta o aspecto da matéria, a

mercadoria. Acerca disso Marx (2012, p. 72) esclarece que:

Ao dizermos que, como valores, as mercadorias são trabalho humano cristalizado, nossa análise as reduz a uma abstração, a valor, mas não lhes dá forma para esse valor, distinta de sua forma física. A questão muda quando se trata da relação de valor entre duas mercadorias. Aí a condição de valor de uma se revela na própria relação que estabelece com a outra.

A partir do trabalho, elemento chave condicionante para o desenvolvimento do

ser social e das relações dele emergentes, Marx logrou desatar o ponto nodal da

ordem burguesa, posto que desvelou a constituição do valor enquanto substância que

potencia a dimensão do real na sociedade capitalista, ou seja, as relações de troca

entre mercadorias. Porém, é o trabalho na sua forma abstrata que homogeniza o

dispêndio da força de trabalho humano e, por conseguinte, determina a equivalência

entre mercadorias distintas, com isso se estabelecem as bases que possibilitam,

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dentro dos marcos da sociedade burguesa, o intercâmbio entre tais mercadorias por

meio de relações de troca. Assim, a constituição produtiva e reprodutiva essencial

dessa sociedade depende da realização dessa relação.

a relação de valor, existente nessa expressão, determina que a casa seja qualitativamente igualada à cama e que, sem essa igualização não poderiam coisas de aparências tão diversas ser comparadas como grandezas comensuráveis [...]. A casa representa, perante a cama, uma coisa que a iguala à cama, desde que represente o que é realmente igual em ambos: o trabalho humano. [...] Ao adquirir a idéia da igualdade humana a consistência de uma convicção popular é que se pode decifrar o segredo da expressão valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, por que são e enquanto são trabalho humano em geral. E mais, essa descoberta só é possível numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral do produto, e, em conseqüência, a relação dos homens entre si como possuidores de mercadoria é a relação social dominante. (MARX, 2012, p. 81-82)

O trabalho abstrato é o aspecto determinante do valor, nele se estabelece a

convenção social que possibilita a realização da troca entre as mercadorias.

Convenção que se expressa concretamente sob a forma do tempo de trabalho

necessário à produção de uma determinada mercadoria. Por intermédio do trabalho

abstrato é que se equalizam as diversidades úteis dos trabalhos concretos, com todas

suas diferenças qualitativas.

O tempo de trabalho necessário realizado na produção de determinadas

mercadorias é a substância que faz delas “valores de troca, e, por conseguinte,

mercadorias, mas também a medida de seu valor determinado. Consideradas como

valores de troca, as mercadorias não são mais que medidas determinadas de tempo

de trabalho cristalizado” (MARX, 2008, p. 55).

O resultado do trabalho humano na sociedade capitalista tem que se constituir

necessariamente em mercadoria para entrar em relação com outras, assim, conforme

aponta Marx (2012, p. 69), como mercadoria

só encarnam valor na medida em que são expressões de uma mesma substância social, o trabalho humano; seu valor é, portanto, uma realidade social, só podendo manifestar-se, evidentemente, na relação social em que uma mercadoria se troca por outra.

A mensuração da grandeza do valor contida numa determinada mercadoria,

que a priori aparenta ser casual, abstrata e especulativa, dessa forma, materializa-se

pela quantificação do dispêndio de tempo necessário à produção enquanto convenção

social. É também por meio dessa convenção emergente das relações sociais de

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produção da sociedade capitalista que o valor de troca não suprime o valor de uso –

porque não pode suprimir -, mas se sobrepõe a ele nos resultados dos produtos do

trabalho humano, dado que “nenhuma coisa pode ser valor se não é útil; se não é útil,

tampouco será o trabalho nela contido, o qual não conta como trabalho e, por isso,

não cria valor” (MARX, 2012, 63). Isso expõe o caráter duplo da mercadoria na medida

em que como produto do trabalho tem que guardar uma natureza útil e constituir-se,

sobretudo, como do valor de troca.

Como fonte criadora de mercadoria e, portanto, de valor, chegamos naquilo

que para produção e reprodução do capital é o ponto principal do duplo caráter que

guarda o trabalho, o de ser mediação para o valor de troca. É, portanto, nesse sentido

que se visualiza a imprescindibilidade do trabalho para produção, reprodução e

transformações contemporâneas da sociedade capitalista, em especial para a

dinâmica de acumulação que a movimenta. Nada pode entrar em relação de troca

nessa sociedade se não assumir a forma mercadoria e como mercadoria só pode se

constituir enquanto tal se tiver como sua fonte criadora o trabalho humano.

O trabalho não é apenas central para o ser social, é o condicionante

fundamental para sua constituição, aquilo que potencializa a dinâmica de seu

desenvolvimento, aquilo que aciona as forças do seu movimento histórico. Mas,

quando temos em vista a sociedade capitalista, a ação laborativa humana na

manifestação de sua forma abstrata lhe é vital; ou seja, o trabalho abstrato torna-se

essencial para acumulação de capital.

Por isso, é improcedente e equivocado deslocar o trabalho da centralidade que

assume para o ser social, em particular a forma social em que o valor (de troca) é a

determinação que potencia as bases da sociedade contemporânea. Tanto quanto

improcedente e equivocado é a afirmação de que o trabalho abstrato não é mais a

fonte essencial de valorização do capital.

Quando vai tratar acerca do processo de valorização, ao passo que revela

também o segredo da acumulação burguesa vide exploração da força de trabalho,

Marx desvela esse processo com base na produção de mais-valia absoluta e relativa8.

8 O capital apresenta duas formas de processar a produção de valor e a exploração que Marx

problematizou chamando de mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A primeira forma se manifesta através da ampliação da jornada de trabalho, a segunda é resultante do

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A partir daí, o fundador da teoria valor consegue chegar à conclusão que é inerente à

dinâmica da acumulação capitalista: a exigência de uma constante incorporação do

desenvolvimento técnico e científico no processo de produção

da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. Ela supõe, portanto, um modo de produção especificamente capitalista, que com seus métodos, meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da subordinação forma do trabalho ao capital. No lugar da formal surge a subordinação real do trabalho ao capital. (MARX, 2011, p. 578)

Disso decorrem duas questões: a primeira é que se trata de uma contradição

própria do capital a necessidade de incorporação da técnica e da ciência no processo

de geração de riqueza para acumulação em detrimento do trabalho vivo, que ora

condiciona a subsunção real9 do trabalhador no modo de produção capitalista; ou seja,

é intrínseco ao modo de produção capitalista o aumento de sua composição orgânica.

E a segunda, de que nos tempos atuais em nada se alterou o processo de

acumulação vide exploração nos marcos da sociedade capitalista, que invariavelmente

ocorre determinada a partir da condição de subordinação formal do trabalhador ao

capital.

3 CONCLUSÃO

Dentro do marco histórico da sociedade capitalista, o arsenal heurístico

presente nos fundamentos da teoria valor possibilita problematizar com clarividência a

concreticidade em que se realiza: a exploração de classe; a subsunção real e formal

dos trabalhadores; o processo de valorização e acumulação do capital; a problemática

desenvolvimento das forças produtivas que possibilita a diminuição do tempo de trabalho social necessário. A melhor compreensão da questão exige passar em vista o capítulo X – conceito de mais-valia relativa – e o capítulo XIV – mais-valia absoluta e mais-valia relativa - do Livro I de O Capital. 9 As formas de subsunção formal e subsunção real que vivencia o trabalhador são tratadas por

Marx na obra O Capital para dar conta do controle do capital sobre o processo de trabalho. O primeiro termo diz respeito ao processo em que os trabalhadores se subsumiram formalmente ao controle do capital ao serem destituídos dos meios de trabalho, já o segundo termo refere-se ao controle e uma alienação ainda mais intensa do produtor direto da mercadoria vide a produção de mais-valia relativa, que se efetiva pela incorporação dos avanços tecnocientíficos à produção.

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da alienação que atravessa a sociedade capitalista, em especial a classe

trabalhadora, porquanto a mercadoria se sobrepõe aos sujeitos na orientação das

relações sociais; a mediação incontornável que assume o trabalho (abstrato) para

arquitetura da sociedade burguesa, dentre outras tantas contradições dessa ordem

social.

Decretar o fim da validade dos fundamentos teóricos da teoria do valor trabalho

desenvolvida por Marx só se torna possível quando a questão salta do terreno

epistemológico para o terreno estritamente ideológico e mistificador, com o necessário

disfarce de debate teórico. Isso, posto que as “leis”, categorias e chaves heurísticas

elaboradas no plano teórico da abstração marxiana para iluminação do movimento e

transformações do real estão mais que atuais e vivas na reprodução da sociedade

capitalista contemporânea.

REERÊNCIAS

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CARCANHOLO, R. Prefácio para Contribuição à crítica da economia política. In: Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Ed. Expressão Popular,

2008. EVANGELISTA, J. A. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. São

Paulo: Ed. Cortez, 2002. MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2008. _______. O Capital (crítica da economia política). Livro 1 v. 1. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2012.

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_______. O Capital (crítica da economia política). Livro 1 v. 2. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2011. REESE-SCHAFER, W. Compreender Habermas. Petrópolis: Ed. Vozes, 2012.