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Joana D’Arc entre a História e a Literatura: de Jules Michelet a Érico Veríssimo Julia Matos 1 Professor em todo o momento, trabalhando para formar homens franceses, tinha pressa em escrever (...) a história de Joana D‟arc, a pátria francesa „nascendo do coração de uma mulher, de sua ternura, de suas lágrimas e de seu sangue‟. Emile Bourgeois A Literatura como conceito surgiu a partir do século XVI. Isso não significa que anteriormente a literatura fosse inexistente, apenas sua conceituação foi feita a posteriori. Nesse processo de desenvolvimento, seu significado mudou através dos tempos. No entanto, algo permanece dado em seu conceito: literatura é aquilo que num dado momento histórico é considerado literatura. Em seu núcleo principal se encontra o ficcional e esse seria o caráter fundamental que a distingue da História. Em contrapartida, a História teria o objetivo de alcance da verdade histórica. Se ela alcança ou não a veracidade em suas pesquisas não é importante, pois o que a difere da Literatura é que seus eventos fundantes são verificáveis. A História busca uma compreensão que é interpretativa, mas seu compromisso é com a verdade. Com certeza, em seu trabalho a interpretação é o central, mas, isso não a qualifica como simples narrativa. Ao seu lado, constantemente comparada por especialistas, encontrar-se-ia a própria Literatura. Essa diferentemente da História, não estaria preocupada com a verdade, mas com a verossimilhança (que não é a verdade, mas aquilo que é aceitável em determinado momento histórico). Entretanto, a literatura também pode apresentar largas distâncias com a verossimilhança, (como é o caso da obra “Alice no país das maravilhas”, narrativa fantástica, mas que é rica e significados), pois seu cerne é a ficção. No entanto, Literatura e História se relacionam. A narrativa literária possui uma densidade discursiva que de forma explícita ou implícita se relaciona com a história. Isso, porque a narrativa, base da composição literária, é um tipo de discurso (porque sempre

Joana D'Arca Entre História e a Literatura

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  • Joana DArc entre a Histria e a Literatura:

    de Jules Michelet a rico Verssimo

    Julia Matos1

    Professor em todo o momento, trabalhando para formar

    homens franceses, tinha pressa em escrever (...) a

    histria de Joana Darc, a ptria francesa nascendo do corao de uma mulher, de sua ternura, de suas

    lgrimas e de seu sangue. Emile Bourgeois

    A Literatura como conceito surgiu a partir do sculo XVI. Isso no significa que

    anteriormente a literatura fosse inexistente, apenas sua conceituao foi feita a posteriori.

    Nesse processo de desenvolvimento, seu significado mudou atravs dos tempos. No entanto,

    algo permanece dado em seu conceito: literatura aquilo que num dado momento histrico

    considerado literatura. Em seu ncleo principal se encontra o ficcional e esse seria o carter

    fundamental que a distingue da Histria. Em contrapartida, a Histria teria o objetivo de

    alcance da verdade histrica. Se ela alcana ou no a veracidade em suas pesquisas no

    importante, pois o que a difere da Literatura que seus eventos fundantes so verificveis. A

    Histria busca uma compreenso que interpretativa, mas seu compromisso com a verdade.

    Com certeza, em seu trabalho a interpretao o central, mas, isso no a qualifica como

    simples narrativa. Ao seu lado, constantemente comparada por especialistas, encontrar-se-ia a

    prpria Literatura. Essa diferentemente da Histria, no estaria preocupada com a verdade,

    mas com a verossimilhana (que no a verdade, mas aquilo que aceitvel em determinado

    momento histrico). Entretanto, a literatura tambm pode apresentar largas distncias com a

    verossimilhana, (como o caso da obra Alice no pas das maravilhas, narrativa fantstica,

    mas que rica e significados), pois seu cerne a fico.

    No entanto, Literatura e Histria se relacionam. A narrativa literria possui uma

    densidade discursiva que de forma explcita ou implcita se relaciona com a histria. Isso,

    porque a narrativa, base da composio literria, um tipo de discurso (porque sempre

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    acrescenta opinies). Portanto, toda a narrativa possui um narrador e todo o escritor quer dizer

    algo. Claro que precisamos considerar os interesses econmicos de alguns autores, da mesma

    forma, que muitos almejam comunicar algo para a sua poca. Nessa interseco, entre o

    anseio de comunicao, a narrativa e o contexto, encontramos a produo o romance

    histrico. Muitos dos falseamentos histricos ou poderamos dizer mitos, so constitudos a

    partir da literatura, a qual pode ser to detalhista e rica em contexto que o leitor teria

    dificuldade em separar real de ficcional.

    Em direo a reflexo sobre os mitos construdos e legitimados na historiografia

    podemos perceber que o personagem Joana DArc e tudo que envolve sua biografia esto

    imersos em nvoas que separam a imaginao, o romance e a histria. A jovem Joana e sua

    saga foram por muito perpetuadas por poetas, literatos e historiadores. Logo aps sua morte,

    julgada em tribunal inquisitrio, recebeu de Cristine de Pizan2, um poema de exaltao ao seu

    grande feito de bravura3. O mito da jovem virgem que surgiria entre camponeses para guiar os

    exrcitos franceses contra os ingleses, at alcanar a vitria e a coroao do Delfim Carlos em

    Reims como Carlos II, faz parte no apenas da mentalidade popular como da prpria histria

    da Frana. Desta forma, sua imagem transitou entre o real e o imaginrio, o histrico e o

    ficional. Primeiramente, a jovem foi condenada como hertica; vinte anos aps a sua morte,

    entre 1450-1456, foi novamente julgada, absolvida da acusao de bruxaria, a pedido de

    Carlos VII4 e canonizada como santa.

    Com o intuito de perceber como a literatura e a Histria se entrelaam de forma

    imbricada na biografia de Joana DArc, o presente artigo se prope a anlise os objetivos de

    Jules Michelet, na Frana do sculo XIX e, rico Verssimo, no Brasil da era Vargas, ao

    construrem a imagem de sua herona.

    Sob um primeiro olhar poderia parecer absurdo qualquer aproximao entre Jules

    Michelet vivendo na Frana do sculo XIX e rico Verssimo, natural de Cruz Alta, morador

    de Porto Alegre nos anos de 1930. O que ligaria um escritor, brasileiro, contratado pela

    Editora Globo ao historiador chefe da seo histrica do Arquivo Nacional Francs? S h

    uma resposta: A herona Joana Darc.

    Michelet como professor e chefe do Arquivo Nacional preocupou-se na formao da

    identidade nacional francesa. A histria no sculo XIX, se firmava como Mestra da vida, ou

    seja, legitimadora do presente, constituidora de heris, modelos a serem seguidos, tipos ideais

    que cristalizassem em torno de si a identidade nacional. Sendo assim, ps-se a escrever a

    Histria da Frana5, buscou na personalidade de Joana Darc, a herona, a libertadora e

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    transformou-a na imagem da prpria Frana. Empenhado em formar jovens franceses fiis e

    orgulhosos de sua ptria, de suas origens, transmitiu a vivacidade da herona como exemplo a

    ser seguido. Em outra obra Imagens da Frana, descreveu a Frana com as feies de

    formas de uma mulher, a qual seria exemplificada por Joana Darc.

    A biografia da jovem guerreira, que se tornou um tomo da histria da Frana,

    inaugurou uma nova maneira de ver a histria e sua representao das sociedades. Para

    Michelet a regra a priori do mtodo histrico dar preferncia aos testemunhos, aos

    sentimentos compartilhados por um povo, suas emoes e esperanas. Ele almejava fazer

    reviver os mortos, faze-los falarem. Esse objetivo era traado a partir de compromissada

    pesquisa em arquivos, museus e viagens. As viagens eram estruturadas de acordo com um

    roteiro montado a partir da histria de Joana. Ao chegar nos locais como Donremy, o

    historiador entrevistava as pessoas locais, procurava colher entre o povo suas crenas e

    imaginrio sobre a jovem guerreira.

    A obra de Michelet, antes de ser histrica poltica. O historiador soube resgatar o

    mito para construir uma identidade. Michelet acreditava na verdade e sua preocupao com a

    seriedade na seleo das fontes revela isto. Ele cria na possibilidade de ressurreio da vida

    integral. Sua explorao dos sentimentos devia-se a sua nsia por trazer a tona todos os

    aspectos da vida dos personagens eleitos. Sua obra poltica no pelo contedo, mas por sua

    ao na formao do sentimento nacional francs. A Frana foi um pas que atravs de

    personalidades como o historiador Jules Michelet soube trabalhar muito bem a construo da

    idia de nao.

    Mas e a pequena Joana Darc brasileira, que chegou em 1935 s mos das crianas

    porto-alegrenses atravs das sbias mos de nosso imortal rico Verssimo, publicada

    pela Editora Globo?

    A dcada de 30 foi conturbada, aps a Revoluo de 1930, que colocou Getlio

    Vargas no governo provisrio, diante da ausncia da proclamao de uma nova Constituio

    Federal So Paulo se levantou em armas e empreendeu a Revoluo Constitucionalista. Seu

    derradeiro final levou o governo a convocar a Assemblia para a elaborao da to sonhada

    Constituio. No entanto, esta nova Constituio serviu aos interesses do governo varguista,

    pois previa eleies indiretas em 1934, quando Getlio Vargas foi ento eleito, pela

    Assemblia, Presidente do Brasil. No passado muito da legitimao de Vargas no poder,

    tivemos a rpida Intentona Comunista, que almejava tomar o poder federal e implantar o novo

    tipo de governo sovitico que dividia opinies no mundo inteiro. O mundo estava, desde a

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    Revoluo Russa de 1917, divido entre pases capitalistas e comunistas. No Brasil o

    comunismo era pregado como uma ameaa s liberdades individuais e por isso o governo

    Vargas configurou-se como anticomunista.

    O Brasil assumira as feies de um pas revolucionrio. Aquela velha cara de pas

    pacato6, nos anos 20 e 30 cara por terra. Durante o movimento tenentista jovens deram suas

    vidas pela causa do Brasil, na Revoluo Constitucionalista, novamente foi juventude que se

    alistou e entrou nas frentes de batalha. Sabemos que por trs de tudo isso havia a guerra entre

    as elites brasileiras, que lutavam por poder poltico e dirigente, meros personalismos, como

    diria Srgio Buarque de Holanda.7

    Em meio a tudo isso, rico Verssimo escolheu ofertar ao pblico infantil uma

    biografia de Joana Darc, a libertadora da Frana, a revolucionria das causas justas. No

    prefcio da obra, edio de 1960, escreveu Verssimo:

    Vinte anos depois decidia eu escrever a histria da Donzela para crianas. Mergulhei

    na leitura dos principais livros que existiam sobre o assunto ao mesmo tempo que

    comeava minha narrativa num estilo simples e potico altura da compreenso de

    meninos e meninas entre seis e treze anos. medida, porm, que ia conhecendo

    melhor a histria de Joana d'Arc, eu me convencia de que seria uma pena ter de

    reduzir a narrativa a menos duma centena de pginas - conforme ficara combinado

    com o editor - e a um limitado nmero de episdios, como convinha ao gosto da

    clientela a que o livro se destinava. Acabei mandando para o diabo todas as

    limitaes e escrevi a histria como achei que devia escrev-la, sem pensar em

    convenincias tipogrficas nem na idade de seus possveis leitores. O resultado este livro em que a vida da Donzela aparece romanceada at onde me foi possvel

    fazer isso sem trair a verdade histrica (VERSSIMO, 1960).

    Na citao do autor, vemos duas preocupaes centrais na produo da Joana

    brasileira, a preservao da histria da guerreira e o romance. Algumas estudiosas da obra de

    Verssimo: como Ana Mariza R. Filipouski e Regina Zilberman, preferiram excluir este livro

    anlise do conjunto literrio produzido pelo escritor dedicado s crianas. No entanto,

    analisaram que no trabalho literrio de rico Verssimo esto presentes dois paralelos ... s

    constries que recebe o artista, de um lado, de uma tradio cultural (...), de outro, das

    imposies que a prpria trama fabrica, trama esta que serve ao artista para expressar sua

    viso de mundo (FILIPOUSKI & ZILBERMAN, 1982, p. 20). A preservao da viso de

    mundo do autor, vemos na prpria escolha do personagem, pois publicado o livro em 1935, o

    Brasil vivia sob o governo de Getlio Vargas e seus combates com a esquerda comunista.

    Esse ano foi repleto de embates, a Intentona comunista e a Lei de Segurana Nacional.

    Assim, no difcil para ns percebermos em Verssimo, assim como em Michelet, o

    carter didtico de sua obra. Em A vida de Joana Darc de rico Verssimo, percebemos o

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    cuidado do literato em passar aos leitores lies de vida. Concordando com Diana Maria

    Marchi, esta obra inaugurou o segundo perodo da literatura infantil gacha, que classificou

    de narrativas didticas com qualificao histrica. Para Marchi, o carter religioso, cristo,

    moralista e disciplinador que mais se destacam na narrativa do autor. Mas, esta postura no

    combina com um escritor que dois anos mais tarde teve seu programa de rdio denominado

    Amigo Velho, no qual difundia literatura infantil, censurado pela poltica do Estado Novo,

    ... que considerou perigosas as histrias (MARCHI, 2000, p. 105). A idia de revoluo

    contra o governo dominante, mesmo que diluda em histrias para crianas, era ameaadora

    demais para o Estado Novo, fato que levou o programa de rdio estrelado por rico Verssimo

    censura.

    rico Verssimo, assim como Michelet, deixou de lado o imagem de santa da jovem

    Joana e colocou-a no centro da histria como propulsora e testemunha das atrocidades

    acometidas pelos governos de sua poca. A vida de Joana Darc instiga no leitor, mesmo

    criana, a reflexo crtica do mundo em que vive, fornece-lhe condies para estabelecer

    ligaes entre a vida da herona e sua prpria histria. A Joana Darc de rico Verssimo foi

    capaz de negar-se como mulher para lutar por sua ptria, para defender sua causa.

    Desta forma, vemos como a Joana Darc de rico Verssimo foi exemplo para a

    gerao infantil brasileira que se formava a partir da leitura de sua obra, assim como a

    juventude francesa formou-se debruada sobre os escritos de seu mestre Jules Michelet.

    Sendo assim, tanto uma gerao quanto a outra foram capazes de sonhar com um mundo

    diferente, no qual elas mesmas poderiam ser as Joanas Darc.

    Fonte

    VERSSIMO, rico. Joana Darc. Porto Alegre: Editora do Globo, 1960.

    Referncias bibliogrficas

    FILIPOUSKI, Ana Mariza R. & ZILBERMAN, Regina. rico Verssimo e a literatura

    infantil. 2 ed. Porto Alegre, Ed. da Universidade, UFRGS, 1982.

    HOLANDA, Srgio Buarque. Razes do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro. Livraria Jos Olympio

    Editora, 1973.

    MARCHI, Diana Maria. A literatura infantil gacha: uma histria possvel. Porto Alegre. Ed.

    Universidade, UFRGS, 2000.

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    TORRESINI, Elizabeth Wenhausem Rochatel. Editora Globo: uma Aventura Editorial nos

    anos 30 e 40. So Paulo. Editora da Universidade de So Paulo, Com-Arte; Porto Alegre.

    Editora da Universidade, UFRGS, 1999.

    1 Professora de Histria da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, formada em Histria Licenciatura pela

    Universidade Estadual do Oeste do Paran (2002), possui especializao em Teologia com habilitao para

    Ensino Religioso, mestrado em Histria pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (2005) e

    doutorado pelo Programa de Ps-graduao em Histria da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do

    Sul (2008). Tem experincia na rea de Histria, com nfase em Histria Social das Idias Polticas, atuando

    principalmente nos seguintes temas: Identidade Brasileira, Historiografia e Introduo a Histria do Brasil

    Repblica. 2 Escritora italiana que viveu na corte francesa, autora de o Livro das trs Virtudes, traduzido para o portugus com o ttulo o Espelho de Cristina, sculo XV. 3 Joana Darc lutou contra o domnio Ingls sobre a Frana. Aps inmeras batalhas Calos VII foi, finalmente, coroado Rei da Frana. Joana entrou para a histria como a libertadora do povo francs, a salvadora da ptria. 4 Carlos VII era o Delfim francs, que foi coroado Rei da Frana, graas bravura de Joana Darc e suas vitrias blicas. 5 Obra que ficou em apenas seis volumes escritos por suas mos, devido a sua destituio do cargo em meio aos

    desajustes do governo francs. 6 Exaltada por muitos historiadores e tericos da histria e poltica nacionais. Como exemplo podemos citar a

    obra Porque me ufano de meu pas do Conde Afonso Celso. 7 Conforme, HOLANDA, Srgio Buarque. Razes do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro. Livraria Jos Olympio Editora,

    1973.