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João Baptista Bastos Gestão democrática 3ª edição Coleção O Sentido da Escola Digitalização e Arranjos Rosangela Maria moresco Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem, etc. Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal art. 184 e §§) com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais - arts. 122, 123, 124 e 126). DP&A editora Rua Joaquim Silva, 98, 2º andar - Lapa 20.241-110 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL Tel./Fax. (21) 2232-1768 e-mail: [email protected] home page: www.dpa.com.br SEPEIRJ Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação Rua Dr. Satamini, 14 - Tijuca CEP 20.270-230 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL Tels.: (21) 2254-4433 e (21) 2254-4380 e-mail: [email protected] Impresso no Brasil 2002 Sumário Gestão democrática da educação: as práticas administrativas compartilhadas,

João Baptista Bastos - Gestão Escolar

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A gestão democrática e participativa nas escolas como ferramenta de integração social, através de projetos e conselhos escolares.

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João Baptista Bastos

Gestão democrática3ª ediçãoColeção

O Sentido da Escola

Digitalização e ArranjosRosangela Maria moresco

Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem, etc. Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais.A violação dos direitos autorais é punível como crime

(Código Penal art. 184 e §§)com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais - arts. 122, 123, 124 e 126).DP&A editoraRua Joaquim Silva, 98, 2º andar - Lapa 20.241-110 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASILTel./Fax. (21) 2232-1768e-mail: [email protected] page: www.dpa.com.br

SEPEIRJSindicato Estadual dos Profissionais de EducaçãoRua Dr. Satamini, 14 - TijucaCEP 20.270-230 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL Tels.: (21) 2254-4433 e (21) 2254-4380 e-mail: [email protected] no Brasil2002

SumárioGestão democrática da educação: as práticas administrativas compartilhadas,

Cinco enganos e a cidade democrática, Chico Alencar

Educação, gestão democrática e participação popular, Marília Pontes Spósito

Administração escolar e qualidade do ensino:o que os pais ou responsáveis têm a ver com isso?,

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Vitor Henrique Paro

Grêmio estudantil:construindo novas relações na escola, Juçara da Costa GrácioRegina Célia Ferreira Aguiar

Orçamento participativo e democracia, Tarso Genro

Gestão democrática na escola pública:uma leitura sobre seus condicionantes subjetivos, Maria Lúcia de Abrantes Fortuna

A gestão democrática que começa na sala de aula,Antônio Eugênio do Nascimento

Gestão democráticada educação: as práticas administrativas compartilhadasJoão Baptista Bastos

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas "originais "; significatambém, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, "socializá-las" por assim dizer;transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral.(Gramsci, 1981, p. 13)IBLIOTE

A gestão democrática da educação, reivindicada pelos movimentos sociais durante o período da ditadura militar, tornando-se um dos princípios da educação na Constituição Brasileira de 1988, a ser aplicada apenas ao ensino público, abriu uma perspectiva para resgatar o caráter público da administração pública. A gestão democrática restabelece o controle da sociedade civil sobre a educação e a escola pública, introduzindo a eleição de dirigentes escolares e os conselhos escolares, garante a liberdade de expressão, de pensamento, de criação e de organização coletiva na escola, e facilita a luta por condições materiais para aquisição e manutenção dos equipamentos escolares, bem como por salários dignos a todos os profissionais da educação.

Nota de rodapé* Professor adjunto IV da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).* Fim de nota de rodapé

No entanto, o patrimonialismo, o clientelismo e a burocracia enraizados no sistema político e econômico, continuam emperrando as transformações necessárias à administração da educação. A transição para a democracia política não conseguiu abolir o regime de correlação de forças desiguais entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e as secretarias de educação, entre estas e as escolas. Esta correlação de forças desiguais vem se explicitando a cada momento, ora pela imposição de processos e técnicas de gestão, ora pelo controle do conhecimento na escola, ora pelo arrocho salarial dos professores e funcionários, ora pelo sucateamento dos equipamentos da escola. Para inverter esta situação é necessário a formação de um controle social da sociedade civil sobre o Estado, através de uma permanente participação popular nas decisões da coisa pública, da criação de um novo senso comum que substitua os velhos princípios tayloristas e fordistas por novos princípios e novas práticas participativas de administração.

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A política educacional brasileira está permeada por essa correlação de forças desiguais (NEVES, 1998, p. 18). A apresentação de dois planos nacionais de educação, um do governo e outro da sociedade civil, evidencia o atual estágio da correlação de forças no final dos anos de 1990, explicitando o acirramento do conflito entre duas propostas de sociedade e de educação - a propostaliberal-corporativa e a proposta democrática de massas - que vêm se confrontando desde o final dos anos de1980, no processo de definição da política educacional brasileira para os anos iniciais do século XXI. A gestão da educação e da escola pública é um dos itens dessa política educacional, e um dos mecanismos em torno do qual há uma acirrada disputa entre os que trabalham na escola, e aqueles que ocupam cargos nas várias instâncias de poder: município, estado e união. Para a sociedade, e para trabalhadores em educação, a democracia da e na escola é o único caminho para reconstruir a escola pública de qualidade. Os dirigentes políticos não negam teoricamente esse caminho, mas na prática, apresentam um projeto de gestão de acordo com a agenda neoliberal, inviabilizando a reconstrução de uma escola pública de qualidade para todos. Neste cenário, professores, funcionários, alunos, pais e comunidade sentem-se divididos. De um lado os déficits históricos da escola, exigindo uma participação intensa de todos para que a escola funcione, e do outro imposições das secretarias de educação com métodos, processos e técnicas administrativos, em função da Lei da Autonomia, como condição para o repasse das verbas para a manutenção da escola. Em síntese, as reformas neoliberais de educação preconizam um novo estilo de administrar - o controle da qualidade total - que para nós é uma reedição do antigo modelo sistêmico de administração (APPLE, 1976, p. 159-184). Para analisar esta disputa presente nas escolas, proponho organizar este texto, servindo-me das categorias de análise de Antônio Gramsci: dirigente e dirigidos, correlação de forças e hegemonia (Gramsci, 1978, p. 164). Aproximo-me também do paradigma indiciário de Ginsburg, por ter enriquecido minhas observações, estando atento aos indícios e sinais das reações de diretores e funcionários das escolas, e daqueles que participam dos conselhos de escola- comunidade. Como obra de inspiração, sirvo-me da Educação na Cidade de Paulo Freire, escrito quando Secretário de Educação da cidade de São Paulo. Para compreender melhor esta questão, distingo três momentos, a saber: o debate sobre gestão democrática, o movimento de democratização da administração da educação, e as práticas administrativas compartilhadas. Distingo o debate dos movimentos e das práticas, porque os atores sociais que participam do debate nem sempre são os mesmos que constroem os movimentos, e aqueles que se comprometem com os movimentos nem sempre são os mesmos que constroem as práticas administrativas compartilhadas. Na realidade social, estes três momentos aparecem imbricados entre si, e em constante movimento, e podem eventualmente surgir isolados, dependendo da conjuntura. A construção de uma proposta hegemônica de gestão democrática pressupõe movimentos de participação na escola e na comunidade, acompanhados de debate em assembléias, e a organização de práticas compartilhadas nas decisões das esferas administrativa e pedagógica. O meu aprofundamento nesta temática se deve ao permanente diálogo com diretores, professores e funcionários das escolas públicas e comunidade, e com os alunos dos cursos de pedagogia e da pós-graduação lato e stricto sensu da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF); às inúmeras conferências e seminários promovidos pelo Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE/RJ); ao trabalho de pesquisa e de extensão realizado em várias escolas públicas.

Debate sobre a gestão democrática O debate sobre gestão democrática pode ser entendido a partir de três questões:Quais sujeitos ou atores sociais constroem o debate? Quais temáticas são objeto do debate? Em que espaços sociais o debate vem acontecendo? A primeira questão diz respeito tanto aos sujeitos ou atores sociais que dirigem o debate ou que participam dodebate, como também aos que devem dirigir e não dirigem, aos que devem participar e não participam. A segunda questão diz respeito às temáticas discutidas e às temáticas que deveriam ser discutidas, e ainda não o são. A terceira questão diz respeito aos espaços sociais que estão sediando o debate, e aos espaços sociais que deveriam sediar o debate. Respondendo à primeira questão, podemos afirmar que o debate sobre gestão democrática não pode ser

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desvinculado da divisão que atravessa o debate nacional de educação. Hoje, como afirma Paul Singer, existem duas visões, ou duas óticas, ou dois grupos que defendem propostas antagônicas de educação. Uma que ele chama de civil democrática, a serviço da construção da cidadania, e outra de produtivista, a serviço do mercado globalizado. O debate, portanto, não surge espontaneamente, mas é construído por sujeitos históricos conscientes dos direitos negados e das contradições que se manifestam numa determinada conjuntura política e econômica. Os trabalhadores, as classes populares e os seus intelectuais têm sido os sujeitos responsáveis pelo debate da gestão democrática. Na medida em que os fóruns de educação - nacional, estadual e municipal - foram desativados pelos atuais governos neoliberais, o debate na perspectiva civil democrática, ficou sem uma coordenação nacional, e as entidades dos trabalhadores em educação assumiram a construção dessa perspectiva em vários estados e municípios. Por outro lado a proposta produtivista tem encontrado amplo espaço de apoio nas entidades empresariais e nos grandes centros de decisão dos governos. Dois desafios têm sido apontados aos sujeitos deste debate: quem representa as entidades dos trabalhadores, e como conseguir a participação de um maior número de pessoas nele. Se um debate é conduzido pelo secretário de educação, representante das entidades dos trabalhadores, representante das associações de moradores, tem toda a possibilidade de conseguir a adesão da maioria e se tornar um debate hegemônico. Ao contrário, se o Secretário de Educação cerceia o debate, restringe o processo eleitoral a certas escolas, é óbvio o debate tende a ser limitado e restrito a certos grupos. Tal situação foi muito bem registrada nos editoriais "Melhor no Município" (Denise R. Lobato) e "O diretor cidadão" (Moacyr de Góes).' A Diretora de Assuntos Jurídicos e Funcionais do Centro Estadual de Professores (CEP), professora Denise Rosa Lobato, no citado editorial, dá a sua opinião sobre as restrições que a Secretaria Estadualde Educação impôs ao processo eleitoral e, em contrapartida, menciona o avanço do processo de gestão democrática no município do Rio de Janeiro, quando o debate envolveu cerca de 966 escolas da rede. No outro editorial, o então Secretário de Educação do Município do Rio de Janeiro, Moacyr de Góes, apresenta dados da participação do debate sobre gestão democrática:

O voto para diretor, diretor adjunto e secretário não chega à escola através de um "pacote" administrativo.O processo eleitoral foi criado pela discussão e votação dentro da escola, através das assembléias dos Conselhos-Escolas- Comunidade e, fora dela, pela participação atuante do Centro Estadual de Professores (CEP), da Famerj, da Faferj e do Sindicato dos Professores. Foi a discussão desse processo eleitoral, administrado pela Secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro, que criou o espaço educativo para o aprendizado da democracia. Por exemplo, no dia 14 de novembro último, foram realizadas assembléias dos Conselhos-Escolas-Comunidade em 910 escolas, o que significa 93% da rede municipal. Esta construção democrática envolveu, diretamente, em números redondos, 25 mil pais e responsáveis, 20.500 alunos, 16.500 professores, 6,500 funcionários e 650 representantes de Associações de Moradores, de acordo com as atas das assembléias dos CECs.Segundo um documento da Coordenadoria de Apoio ao Educando (CAE), da Secretaria de Educação, "todo o produto dos debates nas escolas foi sistematizado por uma comissão composta por Relatores-Representantes-Eleitos de 24 Regiões (correspondentes aos E-DECs) e pelo CEP. O trabalho dessa comissão se estendeu por mais de 50 horas"

Nota de rodapé1 LOBATO, 1987; Góes, 1987, nos Editoriais de O Globo, RJ, de 17 de dezembro de 1987.2 Famerj - Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro. Faferj - Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro.Fim de nota de rodapé

É fundamental democratizar o debate, de tal forma que todos nas escolas públicas possam ser sujeitos dele. A gestão democrática somente será um modelo hegemônico de administração da educação, quando, no cotidiano da escola, dirigentes e dirigidos participarem desse debate tanto nas reuniões administrativas e pedagógicas quanto nas aulas.

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A pesquisa de Tavares (1990), realizada nos anos de 1988-1990, portanto na conjuntura determinada pelas conquistas da Constituição de 1988, chamou a atenção para os deputados denominados de "Centrão" que determinaram a inclusão da gestão democrática como princípio apenas destinado ao ensino público, tal como ficou redigido na Constituição Federal de 1988:

Ninguém teve a ousadia de negar a gestão democrática enquanto princípio, talvez porque o próprio processo de elaboração da nova Constituição representava o resgate da democracia no País. No entanto, mesmo sem ser negado, este princípio sofre restrições com referência ao seu campo de atuação: limita-se ao ensino público como resultado de um acordo de lideranças com os setores privativos, na época nitidamente fortalecidos (p. 49).

Respondendo à segunda questão, podemos constatar as temáticas que mais foram objeto do debate sobre gestão democrática. Entre as mais discutidas estão "As eleições diretas para dirigentes escolares", "Autonomia da gestão administrativa e pedagógica da escola", "A participação das entidades nas políticas públicas de educação", "Mais verbas para a educação", "A democracia na sociedade e na escola." Hoje, pós-LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação - as temáticas continuam as mesmas, e os problemas foram agravados em função das políticas neoliberais de educação. O princípio da gestão democrática não foi definido na forma da lei; em alguns estados e municípios as autoridades continuam vetando as eleições diretas para dirigentes escolares, alegando a inconstitucionalidade das eleições diretas para provimento do cargo de direção nas escolas; as condições de trabalho estão mais acirradas, a autonomia da escola está transformando a gestão pedagógica da escola em uma gerência de recursos financeiros; a participação cidadã dos pais e da comunidade está se transformando numa participação de colaboração com a direção da escola, e a formação dos profissionais da escola mais aligeirada e mais despolitizada. Respondendo à terceira questão sobre os espaços onde se deve concretizar o debate, constatamos que os conselhos - nacional, estadual, municipal e escolar - constituem os locais privilegiados para a coordenação desse debate, e em qualquer espaço social deve servir para ele. No entanto, os governos neoliberais estão cerceando os espaços do debate, restringindo-o apenas à escola em suas reuniões administrativas e pedagógicas. O depoimento de uma mãe numa das oficinas do I Fórum Municipal de Educação Cidadania Presente: "Um caminho para a gestão democrática", (11 e 12 de dezembro de 1998, em S. Gonçalo - RJ), mostra como o debate pode ser construído nas reuniões da igreja. Essa mãe relatou que depois de ter participado de uma oficina sobre o funcionamento do conselho de escola foi, já cansada mas satisfeita, para o culto. Iniciada a oração pelo pastor, ela pediu apalavra e disse:

"Hoje, passei o dia todo debatendo a educação de nossos filhos, O conselho de escola e comunidade é uma reunião que deveria existir em todas as escolas, pelo menos uma vez por mês. A diretora precisa prestar contas aos pais e à comunidade, sobre o que ela decide na escola, e sobre o que os professores ensinam. E direito dos pais e da comunidade saber a educação que a escola dá aos nossos filhos. A diretora e os professores não gostam que os pais entrem na escola. Mas a gente fica sabendo de tudo quando entra na escola. Eu escutei uma das mães falar que foi difícil entrar no portão da escola. E quando chegou à secretaria, ficou na porta esperando a ordem para entrar. Então viu a diretora no computador, de costas para a porta onde eu estava. Perguntou à diretora se podia falar com ela. Gritou ela para a mãe: "Não está vendo eu trabalhar no computador?" Aí ela respondeu: A senhora não está trabalhando, a senhora está jogando paciência!"Essa mãe tinha ido à escola para saber por que seu filho já faltara três dias às aulas e a escola não tinha mandado nenhum aviso para a família do menino.

O debate no final da década de 1980 se consolidou em quatro instâncias: em escolas públicas, em a secretarias de educação, nos Sindicatos dos Profissionais da Educação, e no Fórum da Educação da Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito.

QuadrinhoSEI NÃO! DEMOCRACIA NA EDUCAÇÃO PODE VICIAR.

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Quando me refiro a essas diferentesinstâncias, é preciso insistir que o debate era alimentado pelos movimentos mais amplos de democratização do Estado e da sociedade civil. A população representada pelas associações de moradores, pelas comunidades eclesiais de base, pelos partidos políticos de esquerda participava de abaixo- assinados, reivindicava mais vagas nas escolas públicas, e mais verbas para a educação. O debate avançou no bojo dos grandes movimentos de democratização do Estado e da sociedade brasileira. Outro exemplo de debate sobre gestão democrática, pode ser exemplificado no município de Niterói, como ocorreu em 1989, foi organizado por quatro representações: a rede escolar municipal, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Ensino do Rio de Janeiro- Núcleo de Niterói (SEPE), a Federação de Associações de Moradores de Niterói (FAIVINIT) e a Secretária de Educação, professora Satié Mizubuti. O debate realizado em assembléias públicas ganhou a dimensão de um fórum de educação, de tal forma que a Câmara Municipal aprovou a Lei 748, de 22 de agosto de 1989, estabelecendo: Art. 2º "O sufrágio é universal, direto, livre e secreto para o provimento dos cargos de diretores de escolas" A partir das eleições diretas nas escolas municipais de Niterói, novas conquistas foram alcançadas: arealização de concursos públicos para professores e funcionários e as matrículas nas próprias escolas,dispensando as cartas de apresentação. Ainda, outro exemplo de debate que alcançou grande participação da Sociedade, foi o do município de Angra dos Reis sob a direção da Secretaria Municipal de Educação, durante o primeiro governo petista (1989-92), conforme descreve o Documento 1/fev./1997:

"Durante os meses de novembro e dezembro/92, foram realizadas 6 plenárias com até 400 participantes, estando representadas todas as categorias escolares das escolas e AM's. Ao final destas, encaminhamos ao executivo municipal nosso "modelo de gestão democrática" (p. 4).

Concluindo, é importante ressaltar que as propostas de gestão democrática que conseguiram se implantar, foram aquelas em que o debate alcançou um compromisso efetivo de representações da secretaria de educação, do sindicato da categoria, das unidades escolares e das comunidades.

Movimentos de participação na gestãoda escola pública

Os movimentos de participação na gestão da escola pública foram e continuam sendo ações políticas organizadas pelos sindicatos de profissionais da educação, pelos partidos de esquerda e pela população, por exemplo, grupo de mães mobilizado contra a cobrança da taxa na hora da matrícula (RIBEIRO, 1986, p. 11-24). Osmovimentos não possuem registros, a não ser quando conseguem espaço nas reportagens dos jornais, ou quando um pesquisador atento se detém para analisá-los. A gestão democrática, tendo sido institucionalizada parcialmente como princípio ou diretriz constitucional, e não tendo sido definidos os mecanismos participativos, abriu uma brecha para futuras lutas e movimentos dos profissionais da educação (GOHN, 1997). Os movimentos pela gestão democrática não surgem isolados, mas no interior de ações pela melhoria das condições de trabalho, e por melhores salários dos professores e funcionários públicos. Em algumas secretarias de educação de partidos de esquerda, o movimento de gestão democrática constituía parte integrante de todo o programa de administração municipal. O grande móvel do movimento foram os conselhos populares. Em suas discussões semanais as decisões do orçamento participativo, do saneamento básico, eleições de diretores de escola, estabelecimento das passagens de ônibus, transporte urbano, apropriação do solo urbano, construção de postos de saúde, produziram profundas transformações na vida urbana. Foi na pesquisa em Angra dos Reis que começamos a distinguir o movimento de democratização das propostas de gestão democrática. Três grandes movimentos sociais mobilizaram a população:

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a apropriação do solo urbano, o movimento ecológico motivado pela instalação de usinas nucleares e de portos terminais da Petrobrás, e o movimento sindical contra a falência dos estaleiros da Verolme. O movimento de gestão democrática no município é herdeiro destes movimentos (BASTOS, 1996/97). Os primeiros movimentos de participação na gestão da escola pública que se tem notícia, foram dos estudantes secundaristas no antigo Distrito Federal, durante a gestão de Anísio Teixeira, como Secretário de Educação, nos anos de 1931-1935:

A abertura das escolas para o mundo urbano tornou-se palco de conflitos e disputas. Em algumas escolas secundárias, o regime de self-government através do qual a gestão escolar era realizada pelos próprios alunos, organizados em conselhos, nos quais decidiam sobre sanções disciplinares, estímulos aos colegas retardatários, apoio aos menos ajustados, programas e estudos supletivos, atividades curriculares e extracurriculares, etc, foi lido como exercício de "anarquia" que, sem sólidas raízes no círculo familiar dos alunos, invertia a hierarquia da autoridade escolar, promovendo a desordem (NUNES, 1992, p. 168).

Anísio Teixeira (1997, p. 33-35) foi o primeiro administrador a relacionar democracia com administração da educação. Seu projeto de educaçãoconcebia a escola como o único caminho para a democracia. A democracia é o regime capaz de fornecer os instrumentos necessários ao controle social da sociedade sobre a coisa pública. O movimento de democratização foi vetado pelas forças políticas que preparavam o Estado Novo. Na década de 1970, os movimentos democratizantes da administração do sistema educativo recomeçaram no interior das lutas populares por mais vagas, e movidos pela eleição de diretores de escolas. Em algumas cidades e em alguns estados, cujos prefeitos ou governadores se sentiam pressionados pelos movimentos populares, particularmente pelas comunidades eclesiais de base as eleições para diretores de escola se efetivaram. Três municípios foram pioneiros na construção do movimento de democratização da gestão local e especialmente na gestão das escolas públicas. São eles: Boa Esperança, no Estado do Espírito Santo, cujo prefeito eleito pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA) em 1976, conseguiu implantar por influência das comunidades eclesiais de base o planejamento participativo; Lages, no Estado de Santa Catarina (prefeito do Movimento Democrático Brasileiro - MDB), em 1976, também implantou uma administração municipal participativa, a escola conseguiu grandes transformações no currículo, descobrindo a história local contada pelos moradores; Piracicaba (SP, prefeitura do MDB), em 1976, conseguiu inúmeras realizações comunitárias com a participação da população (CUNHA, 1991, p. 110-119). Para compreender os movimentos de "gestão democrática" no cenário político da transição democrática, é necessário considerar por que a luta pela democracia no Brasil se tornou o principal objetivo dos trabalhadores. A luta pela democracia, no Brasil moderno, pode ser interpretada a partir das concepções de esquerda marxista. Uma concepção de "tradição terceiro- internacionalista não se manifestava somente na concepção geral do marxismo, fortemente economicista, mas também no próprio modo de interpretar a realidade brasileira" (C0UTINH0, 1988, p. 104). O Brasil era considerado um Estado com uma formação social "atrasada", semicolonial e semifeudal, que para superar as contradições e encontrar o caminho do progresso social, necessitava de uma revolução "democrática-burguesa" ou de "libertação nacional". Coutinho ainda explica que esta foi à posição do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde os anos de 1930. E os grupos que se afastaram do PCB, a partir de 1964, não participaram da mesma orientação política e interpretação da realidade brasileira, escolheram o caminho da luta armada. Outra concepção cabe à difusão do pensamento de Antônio Gramsci, conforme escreve Coutinho:

Gramsci conquistou um espaço próprio na vida intelectual, tornando-se uma força viva e um ponto obrigatório de referência no complexo processo de renovação teórica e política que hoje envolve a esquerda brasileira (idem, p. 105).

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Esta interpretação foi trabalhada amplamente por Gramsci, que percebeu as diferenças da formação social e política da Itália em relação à Rússia. O pensamento de Gramsci é assim sintetizado por Luciano Gruppi, quando escreve:

Diz Gramsci: no Oriente, isto é, na Rússia, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e fluida, eis a questão. Enquanto isso, no Ocidente, havia uma justa relação entre Estado e sociedade civil; assim que se produzisse uma vacilação do Estado, percebia-se uma sólida estrutura da sociedade civil. O Estado, então, era apenas uma trincheira avançada, atrás da qual existia uma sólida linha de fortalezas e fortins, mais ou menos diferente de um Estado para outro. Mas, para conhecer isso, era preciso conduzir uma cuidadosa exploração do terreno nacional (idem, p. 79).

Essas interpretações podem ajudar a compreender os erros e os acertos das estratégias de luta pela democracia do Estado e da sociedade brasileira. Naquele contexto histórico uma interpretação nos ajuda a compreender que a orientação da luta democrática para implantar o socialismo dependia essencialmente de um partido organizado. No contexto mais recente,quando a luta pela democracia atingiu os mais diferentes setores da sociedade, e os aglutinou em torno da eleição direta para a Presidência da República, a orientação desta luta assumiu novos contornos teóricos e práticos. Ainda estamos muito distantes da utopia, a construção da sociedade democrática, mas a sociedade civil saiu fortalecida, no sentido de que avança a consciência dos direitos sociais. A gestão democrática da escola pública deve ser incluída no rol de práticas sociais que podem contribuir para a consciência democrática e a participação popular no interior da escola. Esta consciência e esta participação, é preciso reconhecer, não têm a virtualidade de transformar a escola numa escola de qualidade, mas tem o mérito de implantar uma nova cultura na escola: a politização, o debate, a liberdade de se organizar, em síntese, as condições essenciais para os sujeitos e os coletivos se organizarem pela efetividade do direito fundamental: acesso e permanência dos filhos das classes populares na escola pública.Se um amplo movimento de toda a sociedade em geral, e especificamente dos trabalhadores em educação, da população e das lideranças de alguns partidos de esquerda, conseguiu articular, nas décadas de 1970-1980, o esboço de um projeto político, cujas estratégias e práticas tinham objetivo de garantir a participação da população nas decisões da administração pública, na esfera da educação estas estratégias e práticas se concretizavam em maior ou menor grau, com a participação de entidades dos trabalhadores. O cenário político no Brasil e no mundo, hoje, não é mais o da década 1970-1980. A sociedade civil não está aglutinada em torno da democratização do Estado e da sociedade, mas na grande luta pelo emprego e pela subsistência. A crise do socialismo real provocou outras crises no poder político e nos mercados. A estabilidade financeira da moeda e da inflação aliada aos grandes índices de desemprego, coloca como problema prioritário: garantir o emprego para sobreviver. E a luta pela democracia parece ter alcançado um patamar satisfatório, na medida em que os governos eleitos garantem um mínimo de representatividade popular. Em 1996, o real, a inflação, as reformas da previdência social e administrativaocupavam este cenário. No conjunto da América Latina, o cenário político brasileiro ainda apresenta sinais de movimentos populares vigorosos, como o Movimento dos Sem-Terra (MST), grupos específicos que lutam pelos direitos humanos, municípios com processos avançados de participação popular. Mas as políticas neoliberais impostas pelos países centrais estão levando de arrastão as empresas públicas produtivas, no programa de privatização, condicionando os empréstimos sob a tutela do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Se no cenário político da transição democrática no Brasil, a democratização da sociedade e do Estado, constituía um foco que aglutinava todas as lutas, hoje no cenário atual, já não se pode afirmar que exista um foco que as concentre. A globalização trouxe grandes complicadores para as lutas dos trabalhadores. O que significa, hoje, gestão democrática para a administração pública, quando a população está ameaçada pela fome, pela doença e pelo desemprego, quando a mídia deturpa o público e proclama a solução de todos os problemas econômicos pela iniciativa privada?

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As práticas administrativas compartilhadas

A escola em seu cotidiano é um lugar de inúmeras e diversificadas práticas. Essas, por sua vez, não se sustentam sem uma concepção de sociedade ou de mundo. Portanto, esta diversidade de práticas está em permanente movimento no cotidiano da escola, seja para seu êxito seja para seu fracasso. As práticas de gestão fazem parte desse cotidiano, e historicamente têm servido mais para controlar do que para estimular os novos conhecimentos. Elas procuram materializar as relações de poder na esfera administrativa - organização do trabalho, burocracia e pessoal. Mas as relações de poder vão para além desse "administrativo". Estão presentes no pedagógico, materializam-se nas relações profissionais do professor com os alunos e a comunidade, permeiam o currículo, mediante a seleção de conteúdos e atividades extraclasse, o sistema de avaliação e o planejamento pedagógico. Neste sentido, Marília Spósito alerta para que assim como a administração atinge a totalidade da escola, a gestão democrática não pode ser uma proposta de democratizar apenas a esfera da administração da escola. E fundamental que atinja todas as esferas da escola e chegue à sala de aula. Enquanto a democracia não chegar ao trabalho de sala de aula, a escola não pode ser considerada democrática. A sala de aula não é só lugar do conteúdo, é também o lugar da disputa pelo saber, é o lugar da construção da subjetividade, é o lugar da educação política.

A introdução do processo eleitoral para escolha dos dirigentes escolares e dos membros dos conselhos de escola e comunidade, a partir das décadas de 1970 e 1980, trouxe para dentro da escola a disputa política, os conflitos e as divergências inerentes ao processo democrático. O voto é um direito adquirido na modernidade e, como tal, é o melhor caminho para a escolha de dirigentes:

Para Norberto Bobbio, a partir do momento em que se conquistou o direito universal do voto, deve-se estendê-lo a todos os rincões da sociedade. Deve-se passar a votar na fábrica, na igreja, na burocracia, nos quartéis, nas redações, nas escolas, nos hospitais- em suma, em todos os lugares em que o homem joga o seu destino e, portanto, tem o direito de ser senhor dele.

Nota de rodapéS Emir. Prefácio do livro de Ana Angélica Rodrigues de Oliveira A eleição para diretores e a gestão democrática da escola pública: democracia ou autonomia do abandono? São Paulo: Alfa-Omega, 1996, p. 13.Fim de nota de rodapé

É possível este processo, determinado pela conjuntura, ser desvalorizado pela comunidade, porque os eleitos não correspondem às expectativas dos eleitores. No final de 1998, quando houve eleições para dirigentes escolares, procurei visitar algumas escolas com a finalidade de observar a participação dos diferentes segmentos da escola. Percebi que as eleições estavam vinculadas ao profissionalismo dos candidatos. Eram desvalorizadas, quando os candidatos eram descomprometidos com o trabalho na escola. Assim afirmou o presidente do grêmio, durante a sua entrevista:

Estamos reconduzindo a diretora, porque ela vem garantindo o funcionamento dos cursos profissionalizantes. Ela não é pedagoga, mas é uma professora de teatro que se interessa por tudo na escola, O grêmio está em processo eleitoral, e existem duas chapas concorrendo. Na escola nenhum candidato está concorrendo com a atual diretora, e se concorrer perde.

Em outra escola, o clima do processo eleitoral era totalmente diferente. Nas entrevistas, percebi as divergências. Os professores se esquivavam de falar. A candidata elogiava a escola. Mas na opinião dos alunos, "as eleições eram uma farsa, seria bem melhor discutir as eleições gerais: O que aconteceria se Lula ganhasse?" E na opinião de uma das mães, que acabara de votar "a escola não possui proposta pedagógica. Esta escola é uma escola vazia. Minha filha permanece aqui, porque suas amigas estão aqui"

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O voto popular, porém, é uma fonte, mas não a única fonte de participação da sociedade ou da comunidade na democratização do poder. Existe outra fonte de democracia, decorrente do voto, que é a participação nas decisões:...buscar um conceito de democracia no qual a conquista do governo, por meio do voto popular, não esgote a participação da sociedade, mas ao contrário, permita iniciar um outro processo, gerando dois focos de poder democrático: um, originário do voto; outro, originário de instituições diretas de participação (GENRO, 1997, p. 18-19). Durante o último processo eleitoral ocorrido no final de 1998, observamos a restrição do tempo para o debate dos candidatos com a comunidade. Mas agarantia do processo eleitoral estabeleceu a primeira etapa da democratização do poder na escola.

A propósito da escolha dos dirigentes escolares:A grande frustração com relação à regulamentação da gestão democrática do ensino público pela LDB 9.394/96 deriva da ausência de regras que pelo menos acenem para uma mudança estrutural da maneira de distribuir-se o poder e a autoridade no interior da escola. (...)É neste sentido que a escolha dos dirigentes, acima de qualquer solução burocrática ou clientelista, deve passar necessariamente pela manifestação da vontade dos dirigidos, de modo a comprometer-se de fato com os que fazem a educação escolar e, acima de tudo, com os usuários diretos (alunos) e indiretos (pais e comunidade em geral) de seus serviços (Paro p. 11-12).

Os conselhos de escola e comunidade trouxeram para o cotidiano escolar vozes diferentes e discordantes,- assustam a direção, o corpo docente e os técnicos das secretarias de educação -, mas importantes no conjunto das relações democráticas, porque fazem refletir, e provam que a realidade não é homogênea e está sempre em movimento. As iniciativas se multiplicam nas escolas, quando os conselhos são atuantes, os direitos e os deveres passam a fazer parte do cotidiano. A confiança na coisa pública como bem comum é restabelecida.

O que se pode esperar de um dirigente eleito pelo voto?

O debate, o movimento e as práticas administrativas compartilhadas estão sinalizando três posturas distintas no cotidiano escolar. Há aqueles dirigentes que se posicionaram conscientemente em relação às práticas compartilhadas no administrativo e no pedagógico, e procuram construir coletivamente um novo projeto de escola pública. Assumem esta postura dirigentes escolares, que partilham o poder com todos os que constroem a escola. Esses caminham na direção da construção democrática de um novo projeto de educação. E se alinham a um coletivo resistente e histórico comprometido com a construção social e política da democracia no Brasil. Existem outrosdirigentes que não discordam da participação e do ambiente criativo desencadeado pela gestão democrática, mas temem que a escola não esteja preparada para a prática das decisões compartilhadas. Para esses dirigentes, as normas constituem a base do funcionamento da escola. A Lei da Autonomia fortalece a autoridade do dirigente escolar como um gestor dos recursos financeiros. O plano prioritário da escola é o de gestão. Esta postura favorece a implantação de pacotes provenientes das políticas neoliberais de educação. "Por que não aceitar as sugestões que vêm dos governos" indagam. E finalmente, podemos observar que o cotidiano escolar é propício para a manutenção de um bom grupo de dirigentes que foram eleitos, por não haver ninguém que queira assumir a direção da escola. São dirigentes céticos em relação às propostas de gestão democrática. E fundamental compreender esta postura de indiferença e ceticismo reinante no cotidiano escolar. As condições materiais desumanas do trabalho escolar podem gerar não só o conformismo, mas também o sentimento de impotência. A perspectiva da gestão democrática abre para a comunidade da escola o compromisso de reeducar o seu dirigente, e colocar diante dele a necessidade de administrar a escola com as representações de todos os segmentos dela. Os profissionais da educação, os alunos, pais e comunidade conscientes da necessidade de um projeto democrático de educação podem constituir "núcleos de pressão" e exigir do diretor eleito o compromisso com a participação de todos na construção de uma escola democrática.

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Referências bibliográficasAPPLE, Michael. Ideologia e Currículo. São Paulo: Brasiliense, 1976.BASTOS, J. Baptista e PEREZ, Luís A. Gestão Democrática da EscolaPública em Angra dos Reis (RJ): Um projeto em construção. 1996-1997. (Relatório de Pesquisa.)COUTINHO, Carlos N. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. In: Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.CUNHA, Luiz A. Educação, Estado e Democracia no Brasil. São Paulo:Cortez, 1991.FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.GÓES, Moacyr de. O diretor-cidadão. O Globo. Rio de Janeiro, 17/dez.1987. Editorial.G0HN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais. Paradigmasclássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.GT A. Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.GUINSBERG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1991.Lobato, Denise R. Melhor no Município. O Globo. Rio de Janeiro, 17/ Dez.1987. Editorial.NEVES, Lúcia M. Wanderley. Relações de Poder no Brasil dos anos 90 e dois Planos Nacionais de Educação. Caxambu: 21ª Reunião Anualda ANPED, 1998.NUNES, Clarice. História da Educação Brasileira: novas abordagens de velhos objetos. Teoria e Educação, 6, 1992.OLIVEIRA, Ana A. Rodrigues. A eleição para diretores e a gestão democrática da escola pública: democracia ou autonomia do abandono? São Paulo: Alfa Omega, 1996.Paro, Vitor H. O princípio da gestão escolar democrática no contexto daLDB. Apostila s/d.RIBEIRO, Vera Masagão. O Caminho da Escola. Cadernos do CEDI. São Paulo, n. 15, 1986.TAVARES, Maria G. Medeiros. Gestão Democrática do Ensino Público: como se traduz este princípio? Tese de Mestrado em Educação, IESAE, 1990.TEIXEIRA, Anísio. Educação para a Democracia. Introdução d Administração Educacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UJFRJ, 1997.

Cinco enganos e a cidade democrática

Chico Alencar

Não me importo de dizer coisas contestáveis, desde que esteja levantando questões vitais.(Roger Garaudy)

Engano 1: "a grande cidade é uma confusão, vivemos no caos urbano"

Cidade, que vem da polis grega e da civitas romana, é concentração populacional com funções de reprodução material e espiritual (cultural) da vida social. Seu formato atual, com a hegemonia das grandes metrópoles, pólos do dinamismo econômico e das contradições de classe, é conseqüência do desenvolvimento capitalista urbano-industrial. No Brasil deste fim de século, por exemplo, 50% da população está reunida nas 10 maiores regiões metropolitanas, e este foi um processo de atração desenvolvido nos últimos 20 anos. Eric Hobsbawm chega a afirmar que, no decorrer do próximo século, que já chega, a mutação das sociedades agrárias e de pequenos burgos

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em sociedades de aglomerados urbanos, de conurbações, será considerada a maior alteração na vida da humanidade, entre os séculos XV e XX...

Nota de rodapéChico Alencar é professor de Prática de Ensino de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Fim de nota de rodapé

A cidade, portanto, e especialmente a grande cidade - aquela que reúne mais de cem mil pessoas - é um modelo social e historicamente produzido pelo desenvolvimento capitalista, e seu aparente "caos", seu nervosismo, sua agitação é resultante da sociedade competitiva, de classes, que assume uma nova dinâmica da reprodução cotidiana dos meios econômicos e ideológicos de viver. Nesse sentido, o "caos urbano" é a ordem de classes no processo de desenvolvimento citadino, ordem esta que reitera a desigualdade no uso do espaço (os pobres na árida periferia ou nas grimpas dos morros, os ricos perto do mar, da floresta ou damontanha) e na fruição dos serviços coletivos (equipamentos urbanos de transporte, saúde, iluminação, saneamento e coleta de lixo, cultura, lazer e educação sobrando para alguns e faltando para muitos). A cidade partida do capitalismo está no epicentro da crise e nenhuma mudança social acontecerá à margem dela. A ordem urbana tem sempre um nexo, um sentido, e oferece possibilidade de compreensão para quem consegue pensar o todo e suas inter-relações, como o Marco Polo de Italo Calvino em As Cidades Invisíveis:

"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra:- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublal Khan.- Aponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco - mas pela curva do arco que estas formam.Kublai permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.Polo responde:Sem pedras o arco não existe."

Entretanto, mesmo com pedras, cimento, aço e a nada abstrata curvatura do arco de sustentação, cidade alguma é estática, como paralisada não estão as sociedades humanas e ao fim não chegou a História, apesar do imaginário neoliberal da absolutização do presente tentar nos convencer disto. Palco de contradições e demandas, de pressões e engodos, a cidade é um ente vivo que nos ensina diariamente a buscar novas formas de convivência. E sim, não e talvez; são dias claros, noites escuras, auroras e crepúsculos. Espaço vivido! Engalfinhada luta pela sobrevivência, relógio acelerado do tempo girado por mil atores, de ascensoristas a garis, de operários a cozinheiros, de aposentados a jovens mães com seus bebês, nas mesmas praças. Do bandido que, na ânsia do consumo e do inconformismo, rouba para sair da sua condição, ao policial, seu igual, pago para defender a ordem que o exclui. As grandes regiões metropolitanas brasileiras vivem o drama contemporâneo da decadência do modelo desenvolvimentista, que faliu. Pólos de atração e oferta de possibilidades de ascensão social e vida melhor, elas caracterizam a estagnação da mobilidade social. A indústria taylorista-fordista fecha postos de trabalho, a freqüência à escola pública não garante mais a superação da exclusão. Polis e Civitas, a cidade é constante desafio ao reencontro da nossa dimensão política e civilizatória. Viver em cidades educa e reeduca, saber lê-las é alfabetizar-se, para poder transformá-las.

Engano 2: "a cidadania é uma noçãoque nem todos assimilam"

É no espaço urbano que se faz também a construção do imaginário hegemônico na sociedade inteira. Através dos meios eletrônicos de comunicação e da publicidade - que absorvem dois de cada cinco dólares investidos em

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negócios no mundo! - formula-se uma educação egóica para o consumo que tem expressão social dominante. Este imaginário está, mais do que nunca, neste fim de século, marcado por símbolos ideologicamente escolhidos. Sucesso, prestígio, notoriedade são metas, hoje, infinitamente mais mobilizadoras que fé, esperança e caridade... Ter não é mais que o ser: ter é o próprio ser. Descartes foi descartado. A regra é a do "compro, logo existo". É neste ambiente da hegemonia do individualismo consumista que nós, educadores, nos movemos. "Olhar no olho da tragédia é o primeiro passo para superá-la", dizia o grande dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, na sua luta contra o câncer e contra o obscurantismo do regime militar. O recorrente lamento que reverbera o "ninguém é cidadão", enfatizando nossa sina de "Haiti é aqui", serve para constatação de um aspecto da realidade, mas pode nos jogar numa espécie de "conformismo esclarecido". O que precisa ser problematizado é a noção de cidadania com a qual trabalhamos, pois ninguém, da extrema-direita à ultra-esquerda, vai negar este conceito. Cabe perguntar: qual cidadania? Maria Vitória Benevides, no artigo Democracia e Cidadania (Revista Polis, n. 14, 1994), destaca que, na Revolução Francesa, quando uma nova concepção de cidadania, teoricamente extensiva a todos, surgiu - diferente daquela da Antiguidade greco-romana, onde se assumia a não-cidadania de escravos, mulheres, estrangeiros e prisioneiros de guerra -,

a principal diferença entre o cidadão passivo e o ativo era justamente a participação em todos os assuntos que diziam respeito ao interesse comum. Este, aliás, foi um dos grandes debates da revolução, quando a idéia concreta da soberania popular, ou a participação direta do povo, acabou sendo derrotada, predominando uma idéia de democracia estritamente ligada à representação da nação, encarnada pela Assembléia.

Embora vivamos numa sociedade com cerca de cem milhões de subcidadãos, sem direito à informação e à digna condição de vida, quarenta a cinqüenta milhões de cidadãos - como nós, que escrevemos e lemos este livro - e dez a quinze milhões de pós-cidadãos, "acima de qualquer suspeita" e vivendo do marajanato, do luxo, do desperdício e do jato, espalhar em corações e mentes a noção de cidadania e torná-la horizontalmente ativa, galvanizando a ascensão da massa a povo, é condição fundamental para a transformação social. Cabe destacar que estaremos atingindo, no alvorecer do século XXI, o extraordinário número de 110 milhões de eleitores, chamados bienalmente a escolher 58 mil vereadores, 5.500 prefeitos, 1.200 deputados estaduais, 27 governadores, 513 deputados federais, 81 senadores e 1 presidente da República. Ou seja, a maior democracia representativa formal do Ocidente!Cidadania capilarizada? Só na concepção liberal, que reduz ao voto e à simples delegação despolitizada seu exercício... Governos, afinal, legitimados? Só se for pela simpatia apática, ou pela apatia simpática; legitimação pelo desinteresse, pelo "não é comigo", pela compreensão torta de que o exercício da política e do mando é algo "para especialistas". Na democracia (mais acidental que ocidental) brasileira, de 1984 para cá, a partir da transição pelo alto, ainda vigora, na prática, o princípio colonial escravista que afirma que uns poucos nasceram para mandar e outros, a maioria, para obedecer. Possibilitar que crescentes camadas sociais - pela organização, pela luta e pela fruição da educação libertadora - superem os estágios da carência e da necessidade e ingressem na compreensão dos interesses de classe e na cultura dos direitos é tarefa fundamental dos educadores cidadãos, que aliam competência a compromisso político.

Engano 3: "e socialismo não têm a ver com o cotidiano da escola"

A tradição teórica e prática da esquerda fez dicotomia pior: desvincular democracia de socialismo. Entendendo, muitas vezes, a democracia como mero instrumento para se chegar à socialização dos meios de produção. Hoje já é predominante o pensamento que compreende - e o fracasso dos regimes burocráticos do Leste Europeu contribuiu para isso - que é fundamental também socializar os meios de governar e os bens culturais. Sem esta revolução integral, que democratiza pão e beleza, nenhum novo sistema justo, fraterno e igualitário prosperará. O socialismo permite se atingir a plena democracia, política e econômica. A democratização, que é sempre um processo, vai forjando espaços socializados e gerando, no interior do velho, o novo: é a antiga lei da dialética, que ainda não foi revogada pelo globalitarismo reinante.

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A palavra chave desta nova concepção de organização social é participação. Elemento constitutivo da noção de cidadania ativa. Diria mesmo que, na construção da hegemonia socialista, a participação popular tem o mesmo peso que, no âmbito econômico, mercado e lucro têm para o sistema capitalista. Participação permanente, isto é, cidadã, é aprendizado intelectual e vivencial, inserção na "sociedade política", ocupação de espaços de questionamento e deliberação, tomada coletiva de decisões. E tarefa espontânea da vida e deliberada da escola. E recuperação da idéia, igualmente bicentenária e hoje tão desvanecida pela indução à apatia, de que todos somos agentes, sujeitos da História, e não espectadores do seu desenrolar, que foge ao nosso controle. A educação cidadã não pode ficar fora deste debate fundamental para o próximo milênio. Vivemos uma profunda crise civilizatória, com significativas parcelas da humanidade regressando à barbárie, que assume diversos nomes: xenofobia, intolerância religiosa, faxinas étnicas, genocídios, epidemias induzidas, endemias, inempregabilidade, precarização de direitos, subnutrição, poluição. Como afirmou César Benjamin no Encontro Nacional de Educadores do PT, em outubro de 1999, realizado no Rio de Janeiro,"ingressamos na era da insegurança e da incerteza, e no universo ideológico da maioria perdeu-sea idéia da vida como algo sólido, continuado, relacionado, que comporta projetos". É preciso combater o desencanto e a despolitização. Relembrando Antônio Gramsci, é necessário opor ao diagnóstico cético uma ação sempre otimista. Uma visão e uma prática cidadãs pressupõem resgate da perspectiva histórica e percepção holística, ecológica, cooperativa, embasadas na generosa crença socialista e no autêntico compromisso democrático. O veículo para a inculcação desta nova cultura, libertária e solidária, é a educação política para a cidadania, que se dá na escola e fora dela, como processo abrangente que se dissemina em várias frentes. Também os partidos políticos de corte socialista e popular têm que ser agentes desta educação, não meramente doutrinária, mas criadora das luzes de uma consciência crítica em meio à massificação e à messianização do mercado. Esta educação, que se abastece na rua, nos embates e esperanças da vida, ganga bruta do experimentado na existência, tem na escola - formal, seqüencial, ou alternativa, sindical - o lugar da sua lapidação. O papel do educador-cidadão (intelectual orgânico da classe trabalhadora) é devolver ao povo, como matéria trabalhada, o que dele recebeu como vivência empírica. Um processo que combina realidade e teoria, práxis e formulação, escola e vida, educador e educando, cujos papéis várias vezes - e sadiamente! - se misturam, pois, como ensinou Paulo Freire, "ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar"

Engano 4: Estado não pode fazerpraticamente nada" Também aí a ideologia neoliberal do estado mínimo transita, com grande poder de convencimento. Voltamos ao liberalismo "puro e duro" e à desregulamentação absoluta. Cidades e sociedades irão, pouco a pouco, prescindindo do poder público. Este mesmo poder que, no Brasil, constituiu a força da aristocracia escravocrata e da burguesia industrial. Este mesmo Estado - continuamente autoritário, com espasmos democráticos, cheio de interesses particulares embutidos - que foi o principal agente coordenador das políticas desenvolvimentistas dos anos 30 aos anos 80 do século XX. Agora, a ordem - para o progresso dos "de cima" - é enfraquecê-lo. Destruir sua capacidade de formular e implementar políticas públicas. Torná-lo, mais doque nunca, um mero "diplomata" dos negócios privados. Reforçar seus "anéis burocráticos" (a expressão é daquele tido como "príncipe dos sociólogos" de antes que agora assemelha-se mais a um "sociólogo dos príncipes"...): anéis da promiscuidade entre o público e o privado, do trânsito imediato dos gerentes estatais para as empresas transnacionais e vice-versa. Estado minimalizado, gerido empresarial e "tecnicamente", propagador da despolitização da política e da sofisticada especialização dos governantes, reprodutor da exclusão. "Parceiro" de organizações não governamentais e de conglomerados privados que vão, poucoa pouco, tirando suas responsabilidades como gestor do bem comum.

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A própria idéia de nação já começa a ser dispensada pelas elites, que dela não mais precisa. O globalitarismo é uma nova forma da divisão internacional do fluxo de capitais, renda e produtos, que estabelece, no hemisfério sul, um novo colonialismo. O Estado globalitário está, até agora, indiferente ao esgarçamento do tecido social. Este, na falta de projetos utópicos de sociedade e com o declínio das políticas sociais, vai se recompondo na forma de guetos, gangues, violentas "tribos" de delinqüência e sobrevivência. A desumanização como caminho, a cultura egóica e o individualismo extremado como combustível: para parcelas crescentes, principalmente de jovens. Nesse mundo o Estado não existe ou só aparece com farda, repressão e morte. E a sociedade, para além de sua "Auschwitz" sem forno crematório, também não existe. E o supremo desinteresse pelo outro, pelas relações sociais. Entre os muito ricos, nos seus condomínios de muros altos e vigilância armada, Estado, sociedade e nação também são consideradosdesnecessários. O controle de espaços de poder dentro do Estado, para transformar seus viciados mecanismos, é uma importante disputa. Ocupar estes espaços, sem desvincular-se dos movimentos sociais e da mobilização permanente, é decisivo para a implementação de políticas públicas para as maiorias e, conseqüentemente, para uma intervenção mais contínua e conseqüente na sociedade. Mesmo este poder, que não é um lugar que se ocupa mas uma relação que se estabelece, onde teremos mais força para ir forjando a contra-hegemonia socialista ao capitalismo, tem forte conteúdo pedagógico e cidadão: é poder de convencimento, de disputa de idéias na sociedade, de consecução prática do afirmado no discurso, de persuasão, de congregação e acumulação de forças, de indução à solidariedade e à cooperação.

Engano 5: "escola não muda a sociedade" Educação existe desde que o ser humano surgiu na face da Terra. Revelar ao outro a produção e conservação do fogo, fundamental para a sobrevivência da espécie, era educação. Ensinar o manejo de um porrete para controlar uma mina d'água, expulsando outros grupos do acesso a esse bem comum, e inaugurando a apropriação privada, também era educação. Por isso educação é cultura e ideologia, e pode servir para aproximar e afastar pessoas e classes sociais. Plagiando Antônio Gramsci, que dizia que "somos todos filósofos", podemos afirmar que todos somos educadores! De dois séculos para cá, educação passou a ser considerada um direito universal. O fim do Absolutismo e do domínio da aristocracia custou luta, guerra, revolução. Mas, depois disso, quase todo mundo entendeu que ler, escrever e contar é o melhor caminho para se virar pessoa, cidadão. Educação, então, passou a ser sinônimo de civilização e de saída da barbárie. Instrumento inicial da realização do princípio que diz que todos são iguais. Dever do Estado. A própria ascensão da burguesia e as relações capitalistas de produção exigiam isso. Só a partir daí vai se solidificando a noção moderna de escola. Seja como aparelho ideológico do Estado, para reproduzir as condições sociais de existência na sociedade de classes, seja como atendimento à pressão das massas trabalhadoras por informação e formação. Escola como espaço de contradições, como a cidade... Escola como serviço público, que o Estado tem a obrigação de oferecer - com gratuidade e qualidade. Aí é que aparecem, gritantes, as nossas deficiências: o serviço público educação no Brasil não atende à crescente demanda. O tempo escolar do nosso povo é um dos menores do mundo! Para ficar na América do Sul, basta dizer que a média de escolaridade em países como Uruguai, Paraguai, Venezuela, Chile, Argentina e Colômbia é maior que a nossa. Nossos trabalhadores ficam na escola 2 ou 3 anos.., e só. Somos 23 milhões de analfabetos, a partir dos 11 anos de idade. De 100 crianças que entram na primeira série, apenas 33 concluem a oitava. Três milhões de crianças estão totalmente fora da escola, abandonadas e em situação de risco. De cada 10 jovens maiores de 18 anos, apenas um ingressa na Universidade. A qualidade do que é ensinado também tem a ver com a repetência e com a desistência: como não sair de uma escola onde a realidade, com sua cruz e sua luz, não entra? Como curtir a aventura da leitura de livros que falam de um outro mundo, distante e estranho? Quem não lê sabe menos, e nossas elites querem é isso mesmo. Quem está desinformado é mais facilmente explorado.

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A revolução científica e técnica desse fim de século não está alterando para melhor este quadro. Em alguns casos, inclusive, a parafernália eletrônica de sons, publicidade e imagens está produzindo uma espécie de desalfabetização. E mais cômodo ver e ouvir - ser videota - do que entregar-se à operação intelectual da leitura e da reflexão. E mais fácil receber idéias prontas, de largo consumo mundial, do que criar as suas próprias, reinventando o conhecimento. O Brasil produz também a "miséria das capacidades" e o analfabetismo político. Como denuncia a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), estamos envolvidos por "uma cultura superficial, violenta, sem ética, sem sentido". Sai o cidadão, entra o cliente, o freguês, o consumidor. O deus - mercado é onipresente. Como considerar, então, a educação formal e a instituição escolar como autônomas, independentes da sociedade? Que a crise da Educação seja uma indagação a todos nós, cidadãos educadores (professores ou não), sobre os ensinamentos que temos transmitido aos outros, através de exemplos, gestos cotidianos, palavras sinceras e... militância política consciente. Que elaestimule os que escolheram a educação como ofício (aí sim, professores e pessoal de apoio) a redescobrir seu papel de garimpeiros, magistralmente definido num diálogo recolhido há meio século pelo professor Fernando Azevedo: "moço, eu estou nesse negócio de catar pedras faz bem uns cinqüenta anos. Muita gente me dizia para largar disso - cadê coragem? Cada um tem que viver procurando alguma coisa. Tem quem procure paz, tem quem procure briga. Eu procuro pedras. Mas foi numa dessas noites da minha velhice que entendi porque eu nunca larguei disso: só a gente que garimpa pode tirar estrelas do chão!" Não há garimpo na educação escolar sem a compreensão do veio, do aluvião, do leito do rio da sociedade. A parte só o é porque inserida no todo. Sempre contém seus elementos, jamais está inteiramente dissociada. Superemos a visão fragmentária e institucional: sociedade e escola transformam-se mutuamente no processo social, e a escola, como aparelho ideológico, é sempre mais conservadora, mais lenta na mudança. Mais ainda assim, decisiva.

Educação,gestão democráticae participação popular

Marília Pontes Spósíto

Dentre os caminhos para a efetiva democratização do ensino público, um deles tem sido apontado com muita força, nas últimas décadas, por educadores e forças progressistas:a democratização da gestão do sistema educativo, envolvendo a participação dos setores mais amplos, como pais, moradores, movimentos populares e sindicais.Embora a necessidade dessa participação tenha se transformado em uma corrente, quase um lugar comum, é preciso aprofundar a reflexão, pois a questão envolve maior grau de complexidade do que aparenta. As dificuldades de democratização do sistema público quanto às suas formas de gestão, as tentativas de aproximação da população com a escola, em sua maioria evidenciando o fracasso, demonstram que a natureza dos problemas encontrados e a superação deles não se limitam à troca ou proposta de canais mais adequados tendo em vista a gestão democrática capaz de envolver, efetivamente, professores, alunos e pais.

Nota de rodapé Artigo publicado na revista Educação e Realidade. Porto Alegre: Faculdadede Educação da UFRGS, 15(1): 52-56, Jan./Jun., 1990.Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).Fim de nota de rodapé

Atualmente, a bandeira pela democratização da gestão escolar acompanha a luta dos setores mais progressistas da área da educação, encontrando respaldo nas associações e sindicatos de professores. A sua defesa torna-se um dos eixos fundamentais para a realização de mecanismos que incidam sobre o processo de democratização da

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educação pública no Brasil, possibilitando estender o atendimento, assegurar maiores recursos para a escola pública, transformar a qualidade do ensino que é efetivamente oferecido e, sobretudo, fazer da educação um serviço público, ou seja, transformá-la a partir do eixo central da res publica, e não dos interesses privados, patrimoniais, clientelistas ou meramente corporativos. No entanto, torna-se preciso orientar a análise em torno dos pressupostos teóricos e políticos que acompanharam as propostas, particularmente as que nasceram no interior dos aparelhos do Estado. Sob este ponto de vista, gostaria de enfatizar os aspectos que dizem respeito aos problemas subjacentes à participação dos usuários dos serviços públicos educativos, pais - cidadãos e trabalhadores - de uma sociedade, tradicionalmente marcada pela subordinação econômica e pela exclusão política e cultural. Participação sob a ótica da tutela

De início, é preciso ressaltar que a presença dos pais, famílias e demais usuários no interior da escola não constitui novidade histórica. Ela tem sido estimulada há muitas décadas no âmbito de várias concepções pedagógicas, abrigando orientações políticas extremamente conservadoras. As teses reformistas educacionais no Brasil, a partir dos anos de 1920 e, sobretudo, nos anos iniciais da década de 1930, defenderam em grande parte a abertura da escola para seus usuários, entendidos como pais, famílias e a denominada "comunidade". Essas propostas, no entanto, sempre estiveram voltadas apenas ao sistema de instrução elementar, a educação destinada às "massas". Para esses educadores reformistas, o ensino das elites, a antiga escola secundária, por sua natureza e função, não precisava estar criando canais de difusão da prática educativa, já que prevalecia a harmonia entre o conteúdo da ação pedagógica e os setores sociais que a ela tinham acesso. Tal harmonia decorria, primordialmente, das condições sociais dos alunos, recrutados de famílias privilegiadas da sociedade. Somente a escola para os pobres precisou ser redefinida, tendo em vista sua abertura para a população. Por essas razões, as principais orientações dessa denominada "integração" incidiram em torno de iniciativas sanitárias, melhoria do nível de higiene e saúde dessas populações, e de educação moral e cívica - despertar os pais para a necessidade de moralização dos costumes e hábitos de seus filhos. Alguns educadores reformistas, como Lourenço Filho e Fernando de Azevedo, não desconheciam o potencial disciplinador e a capacidade de formação de mentalidades que a ação pedagógica encerra. Tratava se de estendê-la aos pais e à família. A presença de pais e usuários continuou a integrar o ideário pedagógico nas últimas décadas. Tal participação foi considerada tão importante para o regime autoritário, que passou a ser compulsória a partir da década de 1970, mediante a regulamentação e a obrigatoriedade da criação de alguns canais, como as Associações de Pais e Mestres, tuteladas por regras burocráticas, ou seja, estabelecendo uma condição de "cidadania sob controle" Embora o ideal escolanovista já esteja distante, é preciso ressaltar que as propostas de aproximação da escola com a população que a ela tem acesso muito pouco se alteraram ao longo do tempo, embora aparecessem revestidas de explicações mais modernas como a idéia de "carência cultural", a necessidade de "melhorar o nível cultural de famílias pobres". Tais intenções foram, em geral, traduzidas, em um conjunto de práticas assistenciais, sanitárias ou de caráter cívico, extremamente harmoniosas com orientações autoritárias para a organização da sociedade, privilegiando a tutela e a subordinação política e cultural dos setores desprivilegiados.

Redefinindo a participação A efetiva defesa da participação popular no interior da unidade escolar exige as explicitações claras de outros "pressupostos" por parte daqueles que a defendem. O primeiro pressuposto diz respeito ao "caráter público" da atividade educativa que é mantida pelo Estado. Trata assim, de desprivatizar a gestão da res publica. Em conseqüência, implica, também, a democratização e desprivatização do Estado. Os serviços públicos carregam consigo, sobretudo na área da educação os traços arraigados de clientelismo, aSubordinação dos interesses privatistas - entendidos em sentido mais amplo do que a iniciativa particular, pois compreendem a concepção e realização de políticas sob a égide de interesses privados ou particularistas, os favores

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pessoais, o interesse de pequenos grupos, as vantagens ou ganhos imediatos em detrimento de propostas mais amplas. Assim a natureza da res publica exige a transparência nas decisões e a real possibilidade de interferência, condições básicas para a democracia e a participação. O segundo diz respeito ao caráter dessa participação. Mais do que "integração da escola com a família e a comunidade" ou "colaboração dos pais", é preciso entender essa presença como mecanismo de representação e participação política. E evidente que o entendimento da gestão da escola sob a ótica da representação política constitui já um avanço, particularmente para os setores docentes que, em seus movimentos, lutam por uma ampliação de sua participação nas decisões que dizem respeito ao sistema educativo e aos processos incidentes sobre a realização das políticas desse setor. Será, também, um avanço para se criarem condições efetivas de participação dos trabalhadores, cidadãos e usuários dos sistemas públicos de ensino: a gestão tenderá a ser concebida como direitos concretos de cidadania e não como dádiva de uma ou outra escola, em relação aos usuários. No entanto, é preciso avançar a reflexão apontando algumas contradições ou, como afirma Bobbio, alguns paradoxos da democracia representativa, para que essa possibilidade de gestão democrática não se esgote nos mecanismos formais e ritualistas da representação. A primeira dificuldade que aponto, já analisada por Bobbio, reside na incompatibilidade existente entre modelos burocráticos e práticas democráticas. Não há democratização possível, ou gestão democrática da educação ao lado de estruturas administrativas burocratizadas e, conseqüentemente, centralizadas everticalizadas, características rotineiras dos organismos públicos no Brasil, na área da educação. Efetiva descentralização e autonomia para as unidades escolares são condições mínimas para a ampliação da perspectiva de democratização da gestão escolar. E sob esse ponto de vista que ocorre um nítido divisor de águas entre as intenções dos agentes e suas práticas. Não há canal democrático de gestão - a título de exemplo, os Conselhos de Escola - que possa ser viabilizado sem uma profunda alteração administrativa das estruturas dos organismos ligados à educação:federais, estaduais e municipais. Sob esse ponto de vista, as concepções sobre a gestão democrática não se esgotam na criação de canais no plano das unidades escolares. Enfim, torna-se preciso redefinir o âmbito dessa participação. Por essas razões, os canais a serem implantados deverão atingir as esferas intermediárias e superiores que tenderão a oferecer as maiores resistências. Tradicionalmente, as propostas mais concretas resumiram-se em mecanismos que não transcendem o nível da unidade escolar, o locus mais frágil, uma vez que sempre deteve o menor poder de decisão. Assim, reiterando o tradicional "empurra-empurra", as instâncias intermediárias e centrais dos organismos educativos lutam para permanecer "a salvo" dessa participação mais ampla; por sua vez as escolas, em geral sem poder efetivo de decisão e de autonomia, justificam as dificuldades da participação, pela estrutura hierarquizada e autoritária do sistema de ensino. A segunda dificuldade reside na distância entre representantes e representados. A prática democrática não se resume na indicação de representantes que imediatamente se desligam de seus representados. Mais ainda, dadas as condições frágeis das organizações existentes no âmbito da burocracia pública, sem uma tradição democrática enraizada, em geral submetida aos interesses privados e clientelistas, questionam-se, em nosso caso, os processos que em geral norteiam as eleições de representantes - professores, alunos e pais - sobretudo quando essas práticas estão sob a égide de organismos públicos. Em São Paulo, por ocasião das eleições para os primeiros Conselhos Deliberativos nas unidades escolares, tanto municipais como estaduais, em 1985, uma mãe de aluno de escola de bairro periférico apontava com clareza o critério adotado: ao invés de eleições democráticas foram eleições "dedocráticas" conduzidas pelas hábeis mãos de diretores de escola. Torna-se também preciso, aliar as práticas representativas com práticas de democracia direta, no sentido da ampliação do espaço de discussão e decisão a envolver setores mais amplos do que um Conselho, muitas vezes constituído sem possibilidade de ampla participação. Mais ainda, os eventuais representantes dos pares que constituem os colegiados, sobretudo no âmbito da escola professores, alunos e pais ou moradores - devem criar mecanismos e canais constantes de interação para que esse debate amplo possa ocorrer.

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O último pressuposto diz respeito à constituição e organização dos atores, no caso da unidade escolar, professores, alunos e pais. Tal pressuposição significa que é preciso ter em conta a possibilidade real de serem tomadas decisões e, sobretudo, o reconhecimento da responsabilidade de competências e da diversidade de interesses das partes envolvidas. Não obstante a existência, sob o ponto de vista estratégico, de interesses comuns, a luta pela real democratização da educação destinada à classe trabalhadora, à maioria da população, é preciso reconhecer que os sujeitos envolvidos - pais, alunos e professores - são diversos, A constituição desses atores como sujeitos coletivos, envolve o conflito entre as partes e a diversidade de orientações deve ser explicitada. As relações entre os protagonistas das atividades educativas devem estar abertas ao conflito; se o pressuposto for a harmonia e a mera adesão - não obstante o caráter progressista das propostas - estaremos exprimindo apenas uma nova modalidade de subordinação político- cultural e qualquer orientação deixará de ser inovadora, reiterando o fracasso. O consenso não é ponto de partida para a interação dos protagonistas, pois apenas obscurece a diversidade; ele deve ser buscado numa trajetória que comporte a discussão, o conflito; enfim, o consenso e as decisões devem ser construídos coletivamente. Nesse quadro da constituição dos atores coletivos - professores, alunos e população - as maiores dificuldades residem na relação do interior da unidade escolar com os estudantes e suas formas de organização, em grande parte inexistentes ou veladamente proibidas. Mas residem, principalmente, entre pais, moradores e demais forças sociais, que atuam nos movimentos populares e sindicais. Esses setores que trazem diretamente as questões concretas da sociedade para o âmbito da escola são tradicionalmente excluídos ou incluídos, apenas quando as regras da participação já foram delineadas. Resta aos pais e moradores apenas a colaboração na prestação de pequenos serviços, a contribuição financeira ou o encargo de assumir penas disciplinares "compartilhadas" com professores e direção, uma vez que a atividade educativa torna-se tarefa cada vez mais complexa diante da qual os educadores tendem a não encontrar respostas inovadoras e preferem assumir muitas vezes as saídas mais fáceis. Por essas razões, a constituição desses protagonistas da atividade educativa enquanto atores coletivos envolve a necessidade de sua organização independente, sendo importante, sobretudo, para alunos, pais e demais forças que atuam nas organizações dos bairros. Torna-se precisa a criação de esferas próprias de expressão, garantindo sua liberdade de organização, devendo esta ser, mesma, assegurada por lei. Assim, se é importante a criação de canais institucionais capazes de viabilizar essa participação democrática, é ainda na escola e, muitas vezes ultrapassando suas fronteiras, que a luta maior deve ser travada. Qualquer possibilidade de uma presença popular mais efetiva no sistema educativo exige a organização independente como sustentação e instância de aprofundamento dessa participação.

Gestão democrática equalidade de ensino

Finalizando, aponto alguns elementos para a discussão, ao examinar as relações da gestão democrática do ensino. Setores não desprezíveis que atuam na educação resistem à idéia da gestão democrática por não acreditarem que a ampliação dos mecanismos da participação seja capaz de oferecer um novo patamar para a elevação da qualidade do ensino e sua efetiva extensão aos setores oprimidos da nossa sociedade. No entanto, a experiência histórica já demonstrou suficientemente que o modelo atual, centralizado, burocrático, mutilador do trabalho dos professores em sala de aula e isolado do conjunto das forças que atuam na sociedade, aniquilou a educação pública no Brasil. A curto prazo, se essa gestão vier a se concretizar, ela criará condições mais efetivas de controle público sobre as orientações do Estado em suas políticas educacionais. Este, inegavelmente, será um grande avanço, se considerarmos a nossa trajetória recente. Mas a gestão democrática poderá constituir um caminho real de melhoria da qualidade de ensino se ela for concebida, em profundidade, como mecanismo capaz de alterar práticas pedagógicas. Não há canal institucional que venha a ser criado no sistema público de ensino que, por si só, transforme a qualidade da educação pública, se não

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estiver pressuposta a possibilidade de redefinição e se não existir uma vontade coletiva que queira transformar a existência pedagógica concreta. A gestão democrática deve ser um instrumento de transformação das práticas escolares, não a sua reiteração. Este é o seu maior desafio, pois envolverá, necessariamente, a formulação de um novo projeto pedagógico. A abertura dos portões e muros escolares deve estar acompanhada da nova proposta pedagógica que a exija. Se as escolas não estiverem predispostas a essa mudança, a gestão e a melhoria da qualidade serão expressões esvaziadas de qualquer conteúdo substantivo. Por essas razões, neste momento, a ação dos professores torna-se fundamental. A sua organização e o seu compromisso com a escola pública poderão criar as condições para uma ampla reformulação da prática escolar, em busca de um novo modelo pedagógico. Se o modelo buscado estiver calcado numa concepção genuinamente democrática do processo educativo, pressuporá ampliar a participação para se tornar factível e real, e será construído a partir de um projeto coletivo que não possa mais ser gestado sem a presença efetiva de outros protagonistas: alunos, pais e demais forças sociais. Não há o que temer diante dessa possibilidade de abertura e maior participação para os que têm o compromisso com a democracia, com a escola pública e que exercem o seu trabalho com seriedade. Certamente, serão os primeiros a ser reconhecidos por alunos, pais e moradores por esse compromisso e por sua competência profissional. A trajetória poderá ser permeada por avanços e recuos, existirão dificuldades nessa interação, será preciso romper com práticas enraizadas. Mas, certamente, esse processo enriquecerá a atividade educativa desenvolvida pela escola, uma vez que os problemas concretos enfrentados na sociedade por seus protagonistas alunos e pais - trabalhadores estarão alimentando a reflexão e prática pedagógica. O conjunto de observações desenvolvidas indica que se torna necessário constituir um espaço público de participação que, não obstante envolva o sistema escolar, certamente o ultrapasse. Como afirma Bobbio, a luta pela democracia opera num amplo quadro de condições desfavoráveis à sua implantação. A gestão democrática da escola apresenta-se como mais um dentre outros desafios para a construção das novas relações sociais, constituindo um espaço público de decisão e de discussão não tutelado pelo Estado. É preciso, assim, ousar lutar por um novo projeto que estamos delineando, e construí-lo ao lado de uma trajetória recentemente iniciada. Trata-se do processo de democratização da sociedade e de ruptura dos mecanismos e das armadilhas da dominação política, tradicionalmente originados no âmbito do Estado.

Administração escolare qualidade do ensino:

o que os pais ou responsáveis têm a ver com isso?Vítor Henrique Paro

A questão da participação da população usuária na gestão da escola básica tem a ver, em grande medida, com as iniciativas necessárias para a superação da atual situação de precariedade do ensino público no País, em particular o ensino fundamental. Diante da insuficiência da ação do Estado no provimento de um ensino público em quantidade e qualidade compatíveis com as necessidades da população, propugna-se pela iniciativa desta no sentido de exigir os serviços a que tem direito. E a população usuária que mantém o Estado com seus impostos e é precisamente a ela que a escola estatal deve servir, procurando agir de acordo com seus interesses.

Nota de rodapéTrabalho apresentado no 18º Simpósio Brasileiro de Política eAdministração da Educação, realizado em Porto Alegre e publicado em Simpósio Brasileiro de Política e Administração, 18, 1997, Porto Alegre.Anais: sistemas e instituições: repensando a teoria na prática. ANPAE,1997, v. 1, p. 303-314.Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

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Fim de nota de rodapé Por outro lado, cada vez mais se toma consciência de que o caminho para uma sociedade democrática não pode restringir-se ao voto nas eleições periódicas para ocupantes de cargos parlamentares e executivos do Estado. Uma efetiva democracia social (B0BBIO, 1989) exige o permanente controle democrático do Estado, de modo a levá-lo a agir sempre em benefício dos interesses dos cidadãos. Esse controle precisa exercer-se em todas as instâncias, em especial naquelas mais próximas à população, onde se concretizam os serviços que o Estado tem o dever de prestar, como é o caso da escola pública. Daí a importância de que esta preveja, em sua estrutura, a instalação de mecanismos institucionais que estimulem a participação em sua gestão não só de educadores e de funcionários mas também dos usuários, a quem ela deve servir. Ao lado dessa questão, um importante elemento tem sobressaído, que, embora tenha a ver com o conceito de participação enquanto instrumento de controle democrático do Estado, extrapola-o, em certo sentido:trata-se da percepção de que, para funcionar a contento, a escola necessita da adesão de seus usuários (não só de alunos, mas também de seus pais ou responsáveis) aos propósitos educativos a que ela deve visar, e que essa adesão precisa redundar em ações efetivas que contribuam para o bom desempenho do estudante. A seguir apresento discussão teórica sobre o assunto seguida de breves referências à maneira como uma escola pública fundamental de periferia urbana da cidade de São Paulo, onde realizei pesquisa sobre o tema, começa a enfrentar a questão.

A noção de qualidade do ensino

Quando se discute o ensino público no Brasil, hoje, o senso comum costuma identificar duas características como configuradoras de sua má qualidade: a má preparação para o mercado de trabalho e a ineficiência em levar o aluno à universidade. Infelizmente, também entre políticos e administradores da educação, e mesmo em círculos acadêmicos onde se discutem políticas educacionais, o assunto não costuma elevar-se muito acima do senso comum, em direção a um tratamento mais rigoroso da questão. Entretanto, por mais importante que seja a preparação para o mercado de trabalho e para o ingresso no ensino superior, cumpre indagar se não existiriam outros valores a informar os fins que se devem buscar com a escola pública fundamental. Será que, tendo em vista apenas o setor produtivo, como querem os empresários e como apregoam os apologistas do mercado, estaremos contribuindo para uma sociedade mais democrática, mais livre e produtora de relações civilizadas entre pessoas e grupos? Será que, quando nos preocupamos apenas com a preparação para o ensino superior como fazia a escola pública "de qualidade" de algumas décadas atrás ou a escola particular de hoje que atende às camadas privilegiadas, estaremos promovendo a melhoria no nível de bem-estar geral da sociedade?

Nota de rodapépesquisa contou com o financiamento do CNPq e está relatada em Paro, 1998.

É certo que a escola pública existente há três ou quatro décadas não tinha a homogeneidade, que se pretende quando se fala de suas virtudes. Entretanto, na representação da maioria dos saudosistas da escola pública de antigamente, o que aparece é uma escola de alta qualidade que tinha êxito em passar um conteúdo preparatório para a universidade. Esta era precisamente a escola que servia a uma ínfima minoria de alunos procedentes prioritariamente das camadas privilegiadas da população e que, embora considerada paradigmaticamente, por muitos, como "de qualidade", utilizava métodos tão ou mais retrógrados que os da escola pública de hoje. De qualquer modo, toda vez que mencionar a escola pública de antigamente é a esse estereótipo de escola que me estarei referindo.Fim de nota de rodapé

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Embora não se deva minimizar a importância desses dois elementos, parece-me que as discussões que restringem a eles os objetivos da escola pública têm omitido o essencial. A escola, como locus da educação sistematizada, não pode passar ao largo do próprio conceito de educação em sua inteireza, enquanto apropriação da cultura. Esta tem a ver com a própria concepção de homem que constrói sua especificidade e se constrói como ser histórico à medida que transcende o mundo natural pelo trabalho. Ao transcender a mera natureza (tudo aquilo que não depende de sua vontade e de sua ação), o homem ultrapassa o nível da necessidade e transita no âmbito da liberdade. A liberdade é, pois, o oposto do espontaneísmo, da necessidade natural; é algo construído pelo homem à medida que constrói sua própria humanidade (Paro 1997, p. 107-114). Na produção material de sua existência, na construção social de sua história, o homem produzconhecimentos, técnicas, valores, comportamentos, atitudes, tudo enfim que configura o saber historicamente produzido. Para que isso não se perca, para que a humanidade não tenha que reinventar tudo a cada nova geração, fato que a condenaria a permanecer na mais primitiva situação, é preciso que o saber esteja permanentemente sendo passado para as gerações subseqüentes. Essa mediação é realizada pela educação, entendida como a apropriação do saber produzido historicamente. Disso decorre a centralidade da educação enquanto condição imprescindível da própria realização histórica do homem. E, pois, pela educação, que o homem tem a possibilidade de construir-se historicamente, diferenciando-se da mera natureza (idem, ib.).

Nota de rodapéTambém a escola particular não possui a homogeneidade que se pretende quando se lhe atribui uma qualidade superior à da escola pública atual. Mas o estereótipo é sempre a escola que abriga os filhos das camadas mais ricas. Embora uma visão crítica consiga identificar a grande semelhança entre a didática utilizada aí e a que vige na escola pública atual, para o senso comum é considerada de ótima qualidade. E a este esteriótipo que estarei me referindo quando falar da atual escola particular.Fim de nota de rodapé

A escola, então, ao prover educação, precisa tomá-la em todo o seu significado humano, não em apenas algumas de suas dimensões. Por isso, pode-se dizer que a escola pública tem baixa qualidade sim, mas não pelas razões que normalmente são levantadas para isso (porque não consegue fazer o que faz a escola particular ou o que fazia a "boa" escola de antigamente). A escola pública tem baixa qualidade, antes de tudo e principalmente, porque não fornece o mínimo necessário para a criança e o adolescente construírem-se como seres humanos, diferenciados do simples animal. Quando se fala em educação para a formação do cidadão é esse pressuposto que deve estar por trás: o de que, como condição para elevar-se a um nível humano de liberdade, diferenciando-se da mera necessidade natural, o indivíduo precisa atualizar-se historicamente pela apropriação de um mínimo do saber alcançado pela sociedade da qual ele faz parte. Essas reflexões não se fazem presentes, em geral, na prática cotidiana de nossas escolas públicas fundamentais, onde os professores, ainda influenciados pela ideologia liberal burguesa (segundo a qual é possível, igualmente a todos, subir na escala social por meio do esforço pessoal, via educação escolar), continuam buscando, para as atuais camadas sociais usuárias da escola pública, a mesma meta de ingressar na universidade, que era objetivo da escola pública de três ou quatro décadas atrás. Mas a população escolar mudou, e as crianças e adolescentes que freqüentam hoje a escola pública já não trazem o background dos estudantes da antiga escola pública ou da atual escola privada. Junte-se a isso a consideração das precárias condições de funcionamento das escolas mantidas pelo Estado e se terá o quadro de ineficáciadelas diante de suas obrigações sociais (idem, p. 83-105). O educador escolar, em especial o professor, pouco tem conseguido fazer diante da falta de material pedagógico, das classes abarrotadas (que desafiam qualquer bom senso pedagógico), da faltade assistência pedagógica, enfim, das inadequadas condições de trabalho em geral. Entre estas, seu ínfimo salário, que o obriga a mais de uma jornada de trabalho, é um dos elementos mais marcantes, condicionante inclusive de sua baixa competência profissional.

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Nessas condições, a escola pública brasileira tem produzido altos índices de reprovação e de evasão e baixo nível de conhecimento mesmo dos que conseguem ser aprovados. A culpa, na grande maioria das vezes, cai sobre o "produtor final", o professor, acusado de incompetência e de pouco empenho profissional. Este reclama do salário mas, no íntimo, massacrado pela evidência dos fracos resultados de seus serviços, se considera mesmo um profissional pouco qualificado, responsável pela má qualidade do ensino. Quando sua baixa consciência política não lhe permite perceber as condições de que é refém, prefere, em defesa de sua auto-estima, pôr a culpa no aluno, acusando-o de não querer aprender. Mas a alegação da falta de interesse do aluno como justificativa para o mau desempenho escolar precisa ser combatida de forma radical porque ela implica a própria renúncia da escola a uma de suas funções mais essenciais. Os equívocos a esse respeito geralmente advêm da atitude errônea de considerar a "aula" como o produto do trabalho escolar. Nessa concepção, desde que o professor deu uma boa aula, a escola cumpriu sua obrigação, apresentou o seu produto, tudo o mais sendo responsabilidade do aluno. Mas, se consideramos o conceito de trabalho humano como "atividade adequada a um fim" (Marx s.d., p. 202), a aula ou a "situação de ensino" constitui o próprio trabalho, não seu produto. Se a escola tem que responder por produtos, estes só podem ser o resultado da apropriação do saber pelos alunos. Se estes não aprenderam, a escola não foi produtiva. Dizer que a escola é produtiva porque deu boa aula mas o aluno não aprendeu é o mesmo que dizer que a cirurgia foi um sucesso mas o paciente morreu.

Querer aprender como preocupação didática A consideração, porém, do processo pedagógico escolar enquanto processo de trabalho nos ajuda também a compreender melhor a situação especial do próprio objeto envolvido nesse processo. Não há dúvida de que o aluno é verdadeiramente o objeto de trabalho pois é ele que é objeto da ação educativa. Como em qualquer outro processo de trabalho, o educando é quem "sofre" as ações com que se pretende alcançar o objetivo e é ele, transformado (em sua personalidade viva, pela apreensão do saber), que se constituirá no produto desse trabalho, ou seja, o "aluno educado" (ou o aluno com a "porção" de educação que se pretendeu oferecer). Todavia, há aqui um elemento que diferencia radicalmente o objeto de trabalho pedagógico do objeto de trabalho na produção material. Nesta, o objeto reage à própria transformação apenas enquanto objeto, opondo resistências meramente passivas. Na produção pedagógica, entretanto, temos um objeto que é também sujeito, posto que se trata de um ser humano, dotado de vontade. E eis aí uma das peculiaridades mais importantes desse processo de trabalho: ele não pode dar-se à revelia do objeto. Seu objeto-sujeito precisa querer para que a produção se realize. Se o aluno não quiser, o aprendizado não se dará. Ora, o "querer aprender" é também um valor cultivado historicamente pelo homem e, pois, um conteúdo cultural que precisa ser apropriado pelas novas gerações, por meio do processo educativo. Não cabe, pois, à escola, enquanto agência encarregada da educação sistematizada, renunciar a essa tarefa. Por isso é que não tem sentido a alegação de que, se o aluno não quer aprender, não cabe à escola a responsabilidade por seu fracasso. Cabe sim, e esta é uma de suas mais importantes tarefas. Levar o educando a "querer aprender" é o desafio primeiro da didática, do qual dependem todas as demais iniciativas (Paro 1995).

Nota de rodapéObserve-se que, como me referi anteriormente, estou tomando o conceito de saber de modo bastante amplo, referindo-se, tanto a conhecimentos e técnicas, quanto a comportamentos, valores, atitudes, enfim, tudo o que configura a cultura humana, passível de ser apropriada na educação.Fim de nota de rodapé

Parece que essa predisposição para aprender que existia no aluno da escola pública de décadas atrás e que está presente em grande medida no aluno da escola privada de hoje é a chave para se explicar, pelo menos em parte, a aparência de maior competência dessas duas escolas comparadas à atual escola pública. Um aluno que já quer aprender depende muito pouco da competência da escola. Por isso, a instituição escolar que pode selecionar seus alunos entre aqueles que já têm os pré-requisitos culturais adequados para o ensino (cf. BARRETO, 1992) pode

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prescindir de grande competência, bastando ocupar-se em despejar "conteúdos", contando com o esforço dos alunos que, em grande medida, aprendem não por causa da escola, mas apesar dela. Mas a escola pública, que não pode selecionar seus estudantes - o que seria um absurdo - não pode dar- se ao luxo de falhar nessa tarefa, porque seus alunos não estão preparados para aprender apesar dela; assim, diferentemente da antiga escola pública e da atual escola privada, sua incompetência aparece. Mas, se a escola pública precisa ser competente, deve também levar em conta a necessidade de que seus alunos sejam seduzidos pelo desejo de aprender. Não há dúvida de que a escola pouco ou nada tem feito para tornar o ensino prazeroso, condição mais que necessária para despertar o interesse do educando. Mas é verdade também que há muito a fazer que não depende exclusivamente da escola. E aqui é preciso voltar à complexidade do objeto de trabalho com o qual ela lida. Como sujeito humano, o aluno não vive apenas na escola e não forma apenas aí seus valores. A escola tem falhado não só por estar mal aparelhada, com métodos inadequados e professores mal formados, embora não se possa menosprezar o enorme peso desses fatores. A escola tem falhado também porque não tem dado a devida importância ao que acontece fora e antes dela, com seus educandos. Uma postura positiva com relação ao aprender e ao estudar não acontece de uma hora para outra nem de uma vez por todas: é um valor cultural que precisa ser permanentemente cultivado. Começa a formar-se desde os primeiros anos de vida, precisa de ambiente favorável para desenvolver-se e carece de estímulos permanentes durante a infância e a adolescência. Como a escola só tem acesso direto ao educando durante as poucas horas que este freqüenta suas atividades, ela precisa começar a voltar a atenção para os períodos em que ele está fora de seu abrigo. Assim, a escola que toma como objeto de preocupação levar o aluno a querer aprender precisa ter presente a continuidade entre a educação familiar e a escolar, buscando formas de conseguir a adesão da família para sua tarefa de desenvolver nos educandos atitudes positivas e duradouras com relação ao aprender e ao estudar. Grande parte do trabalho do professor é facilitado quando o estudante já vem para a escola predisposto para o estudo e quando, em casa, ele dispõe da companhia de quem, convencido da importância da escolaridade, o estimule a esforçar-se ao máximo para aprender. É aqui que entra o tema da participação da população na escola, pois dificilmente será conseguida alguma mudança se não se partir de uma postura positiva da instituição com relação aos usuários, em especial com os pais e responsáveis pelos estudantes, oferecendo ocasiões de diálogo, de convivência verdadeiramente humana, em suma, de participação na vida da escola. Levar o aluno a querer aprender implica um acordo tanto com educandos, fazendo-os sujeitos, quanto com seus pais, trazendo-os para o convívio da escola, mostrando-lhes quão importante é sua participação e fazendo uma escola pública de acordo com seus interesses de cidadãos (P 1995). É isso que justifica investigar, no âmbito da escola pública fundamental, as dimensões de uma possível participação da família na promoção, junto a seus filhos estudantes, de valores favoráveis ao estudo e à aquisição do saber, bem como na adoção de posturas e comportamentos diante deles que contribuam para a melhoria da qualidade de seu aprendizado. Em termos de política educacional, a relevância de estudo dessa natureza está em que, ao pesquisar a colaboração que os pais podem dar, em casa, para o processo pedagógico, pode-se fornecer importantes subsídios para a tomada de decisões que ensejem a inclusão de elementos facilitadores da melhoria da educação escolar, até hoje desconsiderados no planejamento do ensino público. Qual o sentido de encaminhar políticas restritas ao sistema de ensino, e em particular à escola, se parte essencial da solução pode estar nas famílias ou em instituições outras, fora do sistema regular de ensino? Esse tipo de questão leva à necessidade de dimensionar as potencialidades de contribuição das famílias dos alunos, procurando conhecer, em especial, o que pensam eles a respeito do ensino e quais suas predisposições em colaborar com a escola no desenvolvimento de valores favoráveis à aquisição do saber. É mister ter bem claro, todavia, que uma tal iniciativa não pode cair no equívoco de delegar aos pais e à comunidade aquilo que compete ao Estado, por meio da escola, realizar. A crítica que se ouve com freqüência é a de que medidas com vistas à participação dos pais na escola acabam redundando em mais um ônus às famílias desprivilegiadas usuárias do ensino público, já tão sobrecarregadas de trabalho e de necessidades. Mesmo entre alguns pais se ouve a alegação de que a obrigação de ensinar é da escola e que eles, pais e mães, não têm tempo nem conhecimento para isso. Um corolário dessa objeção é a afirmação de que chamar os pais a "ajudarem" o

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professor e a escola seria uma forma a mais de explorá-los, eles que já pagam o ensino com seus impostos e que já são tão explorados em seu trabalho. Entretanto, não se trata, nem de os pais prestarem uma ajuda unilateral à escola, nem de a escola repassar parte de seu trabalho para os pais. O que se pretende é uma extensão da função educativa (não doutrinária) da escola para os pais e adultos responsáveis pelos estudantes. E claro que a realização desse trabalho deverá implicar a ida dos pais à escola e seu envolvimento em atividades com as quais não estão costumeiramente comprometidos. Mas, em contra partida, além de terem melhores condições de influir nas tomadas de decisão a respeito das ações e objetivos da escola, eles estarão investindo na melhoria da qualidade da educação de seus filhos bem como na melhoria de sua própria qualidade de vida, na medida em que esses adultos estarão mais capazes, intelectualmente, de usufruir melhor de bens culturais a que têm direito e que antes não estavam a seu alcance. Com isso, a escola não estará, na verdade, passando parte de suas tarefas aos pais, mas aumentando seu próprio trabalho e responsabilidades, na expectativa, é bem verdade, de facilitar seu trabalho educativo com os estudantes. Isto, porém, denota somente uma preocupação com a qualidade de seus serviços que, em última análise, reverter-se-á em benefício dos próprios usuários. No que concerne à administração das unidades escolares, as implicações de medidas visando a adequação desse problema dizem respeito tanto às questões propriamente organizacionais quanto aos assuntos relativos à gestão do pessoal escolar. Com relação ao primeiro ponto, e tendo em vista o fim específico de promover a adesão (e a colaboração) dos pais com os propósitos educativos da instituição escolar, trata-se de refletir sobre como se configurará a participação dos pais na escola e qual o papel reservado a eles em colegiados como o conselho de escola e os conselhos de classe e de série. Quanto à gestão do pessoal escolar, supõe-se que novos elementos precisarão ser incluídos na definição do papel desses servidores frente às famílias usuárias da escola, a partir da exigência de um contato qualitativamente novo e provavelmente muito mais freqüente do que o atual. Especialmente com relação aos professores, supõe-se que isso poderá exigir mecanismos permanentes de assessoria, orientação e treinamento com o propósito de mantê-los capacitados a desenvolver um trabalho com novas atribuições.

Alguns elementos do trabalho de campo

A unidade escolar em que realizei a pesquisa antes referida apresenta aspectos bastante interessantes para o estudo desse tema. Embora as dimensões deste trabalho não permitam um tratamento mais extensivo do assunto, é possível mencionar, ainda que de passagem, alguns pontos que ressaltam do exame da questão no interior da escola. O primeiro deles refere-se à crença, unânime entre professores, coordenadores pedagógicos, funcionários e direção, na importância da ajuda dos pais para o bom desempenho dos alunos na escola. E bastante recorrente, especialmente no discurso do corpo docente, a afirmação da dependência do professor em relação ao que é feito, antes, na família. Quanto à natureza dessa ajuda, embora muitos reclamem a própria assessoria dos mais velhos no estudo e na realização de lições de casa, o que todos consideram mais importante é a atenção e o estímulo que devem ser propiciados aos estudantes. Isto tem a ver, já, com o segundo aspecto relevante a se observar: embora considere difícil que os pais, em sua maioria, pela própria condição de semi-letrados, não sejam capazes de ensinar os conteúdos escolares ou de auxiliar eficazmente na solução dos problemas de aprendizagem apresentados pelos alunos, a maioria dos professores enfatizam que todos os pais podem muito bem estimular seus filhos, interessando-se por seus estudos, verificando os cadernos, reforçando a auto- estima, enfim, levando-os a perceber a importância do aprender e a sentirem-se bem estudando. Uma professora de 3º ano deu o exemplo de sua mãe, que mesmo sendo analfabeta sabia estimulá-la a estudar quando criança.Minha mãe era analfabeta mas ela olhava meu caderninho. Eu nem percebia que ela não sabia nada. Até os dez anos, pra mim, ela sabia tudo. Ela olhava, discutia se tava bonito [ se não tava bonito. (...) Então, a ajuda dos pais é nesse sentido: meu filho, que cê tá fazendo, deixa eu ver o que que é que tem", né.

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Apesar de muitos professores acharem que os pais não cumprem essa função porque não têm tempo diante da vida de trabalho duro que levam, a maioria concorda que o que falta é um bom esclarecimento a eles a respeito da forma de desempenhar seu papel e da importância de fazê-lo. Concordam que esse esclarecimento deve caber à escola, mas consideram que a maior dificuldade é trazer os pais para participarem. Não acreditam que essa orientação possa ser proporcionada aos pais, contando apenas com as vias institucionais existentes: reuniões de pais, conselho de escola e associação de pais e mestres. E aqui aparece outro elemento praticamente consensual na concepção do pessoal entrevistado da referida escola: sempre que são instados a apresentar uma solução para a situação, os professores indicam como alternativa a instituição de algo como uma "escola de pais" em que se procuraria ensinar aos pais a melhor forma de lidar com seus filhos para que estes tenham um melhor desempenho escolar. Entre as inúmeras implicações de uma tal iniciativa, pode-se destacar, por um lado, o perigo de se adotar uma posição "catequética" com relação aos pais que se suporiam passíveis de ser educados pelos professores, por outro, a dúvida a respeito da possibilidade de eles educadores conseguirem, com os pais, aquilo que reclamam não conseguir com os filhos, ou seja, o interesse e empenho no estudo por parte destes últimos. Em que pesem estas e outras questões, a escola em exame na pesquisa de campo apresentou-se como local privilegiado para o estudo do assunto pelo especial motivo de estar começando a implementar, naquele momento, uma experiência a respeito. Tratava-se de um projeto de formação para pais autorizado pela delegacia de ensino e com previsão de recursos para a execução. Mas o mais auspicioso para a experiência é que ela foi concebida e teria a liderança de uma direção escolar vivamente interessada na participação de pais e mães na escola, no duplo aspecto de direito dos usuários e de necessidade da escola para o bom desempenho de suas funções. Não se trata de esquecer o enorme caminho a ser percorrido no interior da própria escola, em termos da adequação de seus objetivos e de seu aparelhamento material, humano e metodológico. Não se pode, em absoluto, estar alheio a isto. Mas, trata-se, também, de reconhecer algo a que a teoria educacional tem prestado pouca atenção. Por pequena que seja, em comparação com tudo o que há por fazer na escola, a contribuição que os pais podem dar para o processo pedagógico escolar precisa ser levada em conta para evitar o risco de se ignorar algo que é imprescindível para o bom desempenho dos alunos.

Referências bibliográficasBARRETO, Elba Siqueira de Sá. O novo diálogo com a privatização na área da educação. Em Aberto. Brasília, v. 10, n. 50/51, p. 81-88, abr./set., 1992.B0BBI0, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.Marx, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s.d., v. 1. PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. São Paulo: Atica, 1997Gestão democrática: participação da comunidade na escola. Nosso Fazer. Curitiba, ano 1, n. 9, ago. 1995a, p. 1. Participação escolar e qualidade do ensino público fundamental: o papel da família no desempenho escolar, São Paulo:FEUSP, 1998 (Relatório de Pesquisa).

Grêmio estudantil:construindo novas relaçõesna escola

Juçara da Costa Grácio Regina Célia Ferreira Aguiar

"Se o capital divide os homens entre si e os torna estranhos e agressivos com o próprio mundo em que vivem, a democracia reconcilia os homens entre si e com o mundo onde vivem, e nesse sentido é a maior das utopias".(Herbert de Souza)

Alunos: parceiros indispensáveis

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A gestão democrática introduz na escola movimentos importantes como: participação de alunos,funcionários, professores, pais e comunidade; desconstrução nas relações hierarquizadas de poder e dominação; ruptura com os processos de exclusão de grupos nas decisões sobre os rumos da escola. Leva-nos a refletir sobre o processo eleitoral dos representantes dos diferentes grupos e, também, sobre como esses representantes participam na gestão da escola, na vigilância das decisões tomadas e no controle das aplicações dos recursos. A gestão democrática deve garantir: o acesso igualitário às informações a todos os segmentos da comunidade escolar e a aceitação da diversidade de opiniões e interesses. O grêmio estudantil é caracterizado pelo Regimento Básico como um espaço do exercício de cidadania:[ grêmio] é o órgão representativo do corpo discente de cada unidade escolar e tem por finalidade favorecer o desenvolvimento da consciência crítica, da prática democrática, da criatividade e da iniciativa. Os alunos, participantes dos grupos de discussão sobre gestão da escola, envolvidos em grêmios organizados ou interessados em sua organização, assim o descrevem:principalmente a participação dos alunos representantes .um grupo de alunos que promove atividades culturais um grupo de pessoas que participa das 'coisas'. Tenta resolver os problemas de cada turma. Para conseguir isso, deve saber se comunicar com os colegas e com a direção. Os alunos, reconhecem como pertinentes ao grêmio:o debate, a participação nas decisões, a escolha da representatividade, a comunicação entre os membros da comunidade escolar, o exercício do trabalho coletivo, a valorização da cultura e a autonomia do grupo. O movimento para a organização do grêmio inicia-se com a aglutinação de alunos com interesses em comum, prossegue com a formação de chapas e a mobilização de outros alunos em torno de projetos que pretendam implementar após as eleições. Nas plataformas eleitorais se comprometem a realizar atividades bem diversificadas: torneios e campeonatos de diferentes modalidades esportivas (vôlei, basquete, futebol, skate, xadrez); manifestações artísticas (mostra de arte, festival de música, apresentações teatrais, concursos de bandas, mostra de poesias); festas comemorativas; gincanas; excursões (pontos turísticos, programas de TV); mutirão de limpeza; estacionamento de bicicletas; direito de entrar na segunda aula; recursos de comunicação (quadro de avisos, jornal, jornal mural, rádio). A articulação dos alunos para a organização do grêmio estudantil gira em torno de atividades lúdicas e de ações que visam solucionar problemas ligados à gestão da escola que os atinge diretamente. Tais propostas servem para reforçar o sentimento de grupo; socializar as informações; favorecer o surgimento de novas lideranças; estreitar a comunicação dos alunos entre si e com os outros participantes da comunidade escolar; aumentar a auto-estima; valorizar habilidades e conhecimentos desconsiderados na avaliação formal; interferir no processo pedagógico e, principalmente incluir o prazer, tão pouco freqüente no ambiente escolar. As eleições produzem efervescentes períodos pré-eleitorais, momentos privilegiados de favorecimento à discussão, à troca de idéias, aos questionamentos, à explicitação de conflitos e funcionam como processo pedagógico do "ser cidadão". O exercício, da cidadania não se extingue no dia das eleições. E preciso prosseguir, ampliar o debate, manter viva a participação dos alunos nos rumos do grêmio e da escola. Em nossa opinião, as eleições do grêmio, como as de diretores e a dos conselhos, são fundamentais para a gestão participativa, mas o ato da eleição em si, isoladamente, não garante a gestão democrática.

Limites e possibilidades O interior da escola abriga situações que favorecem ou dificultam a organização dos alunos, a formalização e a atuação dos grêmios. Destacamos alguns determinantes, mais freqüentemente observados:

Posição do diretor em relação ao grêmio Apesar do grêmio ter seu espaço garantido por lei (nos âmbitos federal, estadual e municipal), na estrutura da escola sua formalização é atravessada pelo desejo das equipes dirigentes de incluí-lo ou não. Algumas explicitam claramente a exclusão, outras o excluem de forma mais velada quando, por exemplo, omitem qualquer referência ao grêmio em suas plataformas eleitorais. Entretanto, há equipes que estimulam, apóiam e procuram parceria com os

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alunos organizados. A diretora de uma escola, de classe de alfabetização à quarta série, percebendo as dificuldades de participação dos alunos, iniciou um projeto de discussão de representatividade nas turmas, apoiou a escolha de representantes e promoveu, periodicamente, reuniões com os representantes eleitos pretendendo que o grupo fosse se fortalecendo e adquirindo maior autonomia. Existem, ainda, outras demonstrações de interesse, como essas inserções, nas plataformas eleitorais de diretores candidatos à reeleição: Estimular a formação do grêmio desta escola.Incentivar a ação do grêmio que foi criado no ano passado.Incentivar a criação, dentro do grêmio, de um espaço específico para a participação de ex-alunos da escola.

Nota de rodapéBrasil. Lei Federal 7.398/85, art. PEstado do Rio de Janeiro. Constituição Estadual, art. 305, X. Lei 1.949/92.Município do Rio de Janeiro. Resolução da Secretaria Municipal de Educação 672 de 3/05/1999.Fim de nota de rodapé

Nível de escolaridade dos alunos As tentativas de imobilização utilizam como argumento a falta de maturidade e de capacidade de organização das crianças, de turmas da classe de alfabetização à quarta série, desconsiderando a possibilidade delas se organizarem em torno de seus interesses e dentro de seus padrões de desenvolvimento.

Como, por exemplo, a criação da gibiteca da escola com as revistinhas 'arquivadas' em caixas de sapatos, funcionando na base de troca e não de empréstimo. O aluno traz uma revista e retira outra facilitando, assim o controle, a guarda e a preservação do acervo. Ou ainda, ao compararem os preços da cantina com os preços do supermercado, da loja de doces, dos vendedores da porta da escola, reivindicam redução dos preços de doces, balas, chicletes e refrigerantes; conseguem saber a que se destina o lucro das vendas e solicitam participação nas decisões sobre como utilizar os recursos conseguidos.Uso do espaço físico As escolas sofrem, em sua maioria, com a precariedade de instalações. O espaço físico é muito disputado e a ocupação está diretamente relacionada ao poder e ao prestígio das pessoas ou grupos. As argumentações para justificar as dificuldades de conseguir local para acolher o grêmio e suas atividades muitas vezes são até aceitáveis mas desacompanhadas da preocupação em solucionar o caso. Por outro lado, geram a necessidade de se rediscutir a ocupação dos espaços da escola e a descoberta de local para o uso do grêmio. Freqüentemente conseguem um "cantinho" em local menos nobre na escola ou passam a dividir uma sala com outras pessoas ou grupos. Mas o movimento prossegue e a instalação da mesa de pingue-pongue é um exemplo, já clássico, de conquista de espaço.

Representação do aluno O papel dos representantes de turma é importante para a atuação do grêmio visto que compõem o Conselho de Representantes com direito a assento, voz e voto nas reuniões. Na eleição dos representantes nem sempre é respeitada a autonomia dos alunos. Muitas vezes essa escolha sofre interferência da direção ou de outros segmentos da comunidade escolar. Como, por exemplo, na escola onde a diretora determina o representante baseando-se em lista tríplice apresentada pela turma. Ou em outra, em que os alunos os elegem de acordo com o perfil estabelecido pela direção, comprometendo a autonomia da escolha. A expectativa em relação ao papel do representante de turma em algumas escolas é: manter o bom comportamento da turma, quando o professor não se encontra em sala; recolher e distribuir cadernetas; responsabilizar-se pela chave da sala. Em contrapartida, há escolas onde os representantes de turma participam dos conselhos de classe na tentativa de contribuir com o processo político-pedagógico da escola.

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Algumas vezes os alunos, ao elegerem os representantes, simplesmente delegam-lhes o poder de resolver todos os problemas da turma, recusando-se a participar de novas discussões. E comum, ouvirmos dos representantes queixas sobre a dificuldade em dialogar com seus colegas após as eleições.

Relações de poder As relações de poder favorecem as falas e ações que reafirmam a dificuldade e a incapacidade dos alunos se organizarem até que eles próprios incorporem como de sua responsabilidade a situação de fracasso, se submetam às normas instituídas sem discuti-las e desistam de se organizarem. No cotidiano de uma escola os alunos utilizavam somente colheres para merendar, porque facas e garfos eram proibidos por serem considerados objetos perigosos. O problema emergiu quando alunos de quinta a oitava séries questionaram a proibição, principalmente, quando o cardápio era espaguete com ovo. Não aceitaram as justificativas apresentadas e conseguiram, depois de muito diálogo, o direito de usar o garfo. Os alunos organizados têm mais chance de subverter esta relação hierarquizada de submissão aosadultos e são percebidos como ameaça ao poder instituído.

Finalizando o textoe prosseguindo no caminhar O grêmio é um espaço coletivo, social e político, de aprendizagem da cidadania, de construção de novas relações de poder dentro da escola, ultrapassando as questões administrativas e interferindo no processo pedagógico. O grêmio organiza-se, com mais facilidade, quando a escola encontra-se num momento de gestão democrática, em que a correlação de forças é menos desigual e tem vínculos firmes com a comunidade e com outras instituições. Quando o processo de eleição dos representantes acontece naturalmente, sem a interferência de outros segmentos, notamos maior facilidade na ação dos grêmios uma vez que as lideranças surgidas nas turmas favorecem essa situação. A organização dos alunos deve surgir autonomamente e com livre participação mas eles próprios, muitas vezes, não sabem exatamente o "porquê" e o "para quê" do grêmio. Em outras situações não sabem como começar para se estruturarem como grupo representativo do aluno. A participação do aluno no grêmio é favorecida quando ele pertence a uma família ou comunidade que tem envolvimento em movimentos sociais: em associações de moradores, igrejas ou partidos políticos. Uma forma de estimular o surgimento de grupos organizados de alunos é fomentar a criação de uma ampla rede de discussão sobre o tema entre as unidades escolares.

Referências bibliográficasFREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.LAPASSADE, Georges. Autogestion Pedagógica. Barcelona: Gedisa, 1977.PASO, Vitor Henrique. Por dentro da escola pública. São Paulo: Xamã, 1995.PATTO, Maria Helena de Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990.

Orçamento participativo e democraciaTarso Genro A importância das cidades modernas, no que se refere a novas experiências políticas e à criação de novas instituições, acentuou-se muito ultimamente. As cidades nunca foram tão debatidas, não só no âmbito das universidades e nos meios políticos, mas também entre milhares de organizações não-governamentais que passaram a estudá-las e a propor soluções para os seus inúmeros "dramas" Tal situação ocorre não só porque o processo de globalização econômica reduz a força dos Estados nacionais (o que "chama a atenção" para o âmbito local), mas também porque as cidades estão sobrecarregadas de problemas, diante da crescente urbanização do mundo nos últimos trinta anos. Os governos locais são obrigados, então, a responder a dezenas de questões, e os seus gestores são pressionados de forma cada vez mais intensa.

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Nota de rodapéTexto publicado na Parte 1 do livro: "Orçamento Participativo: A Experiência de Porto Alegre. de Tarso Genro e Ubiratan de Souza. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2 ed., 1997. p. 9-41. A publicação deste texto foi autorizada pelo autor e pela Ed. Fundação Perseu Abramo.Prefeito de Porto Alegre - RS (1993-1996).Fim de nota de rodapé

As respostas locais aos novos dilemas urbanos são freqüentemente mais efetivas; as respostas chegam ao núcleo das realidades locais, baseadas nas percepções locais, nas suas motivações e cultura (RUBLE, 1996, p. 1),dizem os acadêmicos que se dedicam a estudar o assunto, traduzindo algo que hoje é consenso: "o ponto de partida 'local' é básico para políticas sociais eficientes".

As soluções "nacionais"- normalmente planejadas por burocratas que não vivem o cotidiano da população - são cada vez mais impotentes. Os sociólogos, economistas e demais cientistas sociais aprofundaram nas últimas décadas os estudos sobre o novo papel das cidades no novo contexto mundial. Este esforço é também necessário para reconstruir o Estado nacional, não somente a partir "de cima", mas também a partir "de baixo", ou seja, a partir de um novo tipo de descentralização e de novos processos de democratização, que possam ser experimentados fundidos ao cotidiano da população. Também é consenso entre os estudiosos mais importantes das questões urbanas que "o governo local capaz de dar resposta aos atuais desafios urbanos e de construir um projeto de cidade, assim como de liderá-lo, tem de ser um governo promotor" (CASTELLS, BORJA, 1996, p. 158). O governo local deve fazer, empreender, intervir, não somente "administrar" serviços. A formulação é justa, mas insuficiente. Na verdade, não basta ser um governo "promotor", pois os próprios investimentos podem dividir ainda mais a sociedade e aumentar as suas diferenças sociais. O correto seria perguntar: promotor de quê? de quem? de que projeto de sociedade? Quais as experimentações que podem ser realizadas na cidade, até mesmo para conceituar um novo tipo de Estado? Bolonha e Barcelona são dois belos exemplos de cidades que passaram a pensar no futuro de forma estratégica, planejando o seu desenvolvimento econômico, a cultura e os seus espaços urbanos, a partir de novos conceitos e mesmo de um novo tipo de cidadania. Os "modelos" para repensar o futuro das cidades evidentemente têm fundamentos ideológicos e políticos e a "forma", bem como o "conteúdo" das propostas dos governos locais, estão vinculados à seguinte pergunta: "quem são os seus destinatários?" A experiência realizada pela cidade de Porto Alegre com o Orçamento Participativo é incomum. Não se tratou simplesmente de "incentivar" a participação popular de uma forma espontânea, "fazer obras" ou simplesmente "azeitar" os mecanismos da democracia formal. Na verdade, foi criado um novo "centro decisório" que, juntamente com o Poder Executivo e o Legislativo, democratizaram efetivamente a ação política e integraram os cidadãos comuns num novo "espaço público". Um espaço público não-tradicional, que potencializou o exercício dos direitos da cidadania e instigou os cidadãos a serem mais exigentes e mais críticos. Esse novo centro decisório, que incidiu diretamente sobre o caráter e a oportunidade dos investimentos públicos, foi fundamental para gerar distribuição de renda e contribuir para a "socialização da política". Distribuir renda sem socializar a política é muito pouco e pode ensejar um certo tipo de paternalismo, que é nocivo à afirmação da autonomia dos indivíduos e das organizações de base da sociedade. Socializar a política, sem tocar na renda pode promover o desalento com a própria eficácia da luta política e a "retirada" das pessoas para o âmbito cada vez mais privado das suas existências. Na raiz da experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre está um certo tipo de resposta à chamada "crise do Estado":

A crise do estado, porém, não está assentada somente na sua fragilidade para dar respostas materiais às demandas de parcelas importantes da sociedade. Está assentada, também, no aprofundamento da sua intransparência e impermeabilidade para lidar com uma realidade social que se estilhaça e produz incessantemente novos conflitos e

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novos movimentos, os quais se constroem em torno de novas identidades e buscam criar alternativas para contrapor-se ao brutal isolamento dos indivíduos. A desestruturação do modo de vida moderno, que na destruição do mundo fabril tradicional (típicos da Revolução Industrial) e da estrutura de classes que ele ensejava por seu exemplo paradigmático, e a fragmentação das relações parecem haver radicalizado a impotência burocrática do Estado, que já não consegue relegitimar-se perante os cidadãos. Se a previsibilidade do voto a cada quatro anos, que é, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da representação, sempre conferiu um traço de insuficiência à legitimidade dos mecanismos da democracia formal, hoje o faz muito mais, porque a complexidade, a fluidez e a dinâmica do tecido social exigem uma permanente confirmação da legitimidade do poder (UTZIG, p. 213).

A longa citação tem razão de ser. Nos dias que correm, o Estado em geral, e o Estado brasileiro emparticular (com raras exceções) esteve majoritariamente ocupado por interesses privados. A crise social que hoje se espalha por toda a humanidade, com o desemprego, a violência e a falta de credibilidade das instituições políticas, é sentida pelo cidadão comum como uma "impotência do Estado". O cidadão comum sente que o Estado é omisso em relação às suas necessidades e ele, em conseqüência, torna-se uma presa fácil da ideologia neoliberal. Suas carências passam a ser resultado de Estado "incompetente", que só sabe "tirar" recursos da sociedade. O processo do Orçamento Participativo na cidade de Porto Alegre certamente não é perfeito, nem resolve tal dilema histórico. Aliás, o Orçamento Participativo não só deve estar em constante mutação (para renovar-se e adaptar-se ao próprio crescimento da consciência da cidadania), mas deve ser visto como a abertura de um caminho. Um caminho que deve ser aprimorado constantemente para, de uma parte, recuperar a credibilidade do Estado mediante uma experiência de nível local e, de outra, para mostrar que é possível reformá-lo radicalmente. (Reformá-lo, no sentido de transformar a relação Estado X Sociedade e também para tensionar o próprio Estado, colocando-o a serviço dos interesses populares).

Luta por uma opinião pública livre É importante notar que, ao lado da luta para desmoralizar o Estado (promovida pela ideologia neoliberal), a crise social que emerge do "modo de vida" desta mesma economia faz crescer "a ameaça da repressão, enquanto decresce a importância que tem a opinião de uma cidadania, a qual só se consulta esporadicamente e através de um sistema (...) conduzido pelos empresários da comunicação" (Com 1996, p. 4-5). Este fenômeno, o da indução da opinião pública para defesa de um "sistema de um modo de vida" que é prejudicial à própria população, tem sido também uma característica dos tempos atuais. O processo do Orçamento Participativo é também um instrumento de luta contra essa uniformização totalitária da opinião pública. Eis outro aspecto profundamente modernizador do Orçamento Participativo: por meio dos Conselhos Populares implantados nas diversas regiões da cidade, ele "cria estruturas de formação e de reprodução de uma opinião pública independente". As comunidades, pelo exercício direto da ação política, passam a ter, até um juízo crítico sobre o próprio poder que as classes privilegiadas exercem sobre o Estado, pois passam a conviver com a própria pressão exercida pelos meios de comunicação para realizar determinados investimentos, pautados por interesses elitistas ou socialmente minoritários. Ao democratizar as decisões e, ao mesmo tempo, democratizar a informação sobre as questões públicas, o Orçamento Participativo é capaz de gerar uma nova consciência cidadã. Por meio dela, as pessoas compreendem as funções do Estado e os seus limites, e também passam a decidir com "efetivo conhecimento de causa". Cria-se, dessa forma, um espaço aberto por meio do qual surgem condições para a formação de um novo tipo de cidadão: um cidadão ativo, participante, crítico, que se diferencia do cidadão tradicional, o qual só se afirma mediante demandas isoladas ou que apenas exerce a sua cidadania por meio de revoltas isoladas e impotentes.

Democracia e Orçamento Participativo É consenso hoje nos círculos da ciência política que "o campo de intervenção do Estado nacional não pára de diminuir" (Touraine 1996, p. 36). Na verdade, isto é correto somente em parte. O Estado nacional continua "regulando" o desenvolvimento econômico, só que hoje ele está submetido principalmente a diretrizes que correspondem aos interesses do capital financeiro ("volátil"). Este "monitora" o desenvolvimento

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econômico do mundo, em regra para preservar a acumulação de imensas riquezas nas mãos de algumas centenas de instituições financeiras poderosas. As políticas "nacionais", que são aplicadas pelos governos neoliberais de cada país, organizam as funções do Estado de maneira que "este permaneça de acordo com as diretrizes do capital financeiro". São essas diretrizes que permitem uma acumulação cada vez maior, pelos grandes conglomerados financeiros do mundo, para que aquilo que eles chamam de "progresso" solidifique- se como característica da nova "ordem internacional": um progresso com concentração de renda e poder. A democracia política tem na doutrina da "soberania popular" o seu elemento central, ou seja, por ela os governantes recebem por meio do voto um mandato, que deve ser cumprido durante um determinado período. Qual o resultado histórico desse processo? E o de uma democracia que traduz, ao mesmo tempo, a possibilidade do acesso do cidadão comum à política e que também limita a sua participação. Pela força do poder econômico, as classes privilegiadas da sociedade, cujos representantes aliás têm o acesso aos meios de comunicação facilitado, participam dos processos eleitorais de uma forma muito mais favorável. Isso - é óbvio - não invalida a necessidade de um novo projeto emancipatório que incorpore eleições periódicas e universais, com regras justas e previsíveis, mas obriga a que pensemos também em novas e criativas formas de influir no poder, para torná-lo sempre mais democrático. Estes fatos também não tornam a democracia menos importante, nem apontam para a "necessidade"de um tipo de regime político autoritário ou ditatorial. Mesmo que esse regime apresente-se como "defensor" dos interesses da população e dos trabalhadores. O de que se trata é de democratizar radicalmente a democracia, de criar mecanismos para que ela corresponda aos interesses da ampla maioria da população e de criar instituições novas, pela reforma ou pela ruptura, "que permitam que as decisões sobre o futuro sejam decisões sempre compartilhadas". "Compartilhar" quer dizer, no que se refere à democracia, permitir que entre os eleitos pelo sufrágio universal (representantes políticos) e os indicados por outras formas de participação direta (oriundos diretamente do movimento social), sejam acordadas novas formas de "decidir". O Orçamento Participativoé um exemplo que vai nessa direção, como veremos porsua história e por seu método. As definições criadas pela intelectualidade democrática, formada na doutrina republicana tradicional, afirmam que existe democracia "onde há vários grupos em concorrência pela conquista do poder através de uma luta que tem por objeto o voto popular" (B0BBI0, 1986, p.326). A definição é correta, mas insuficiente. O ideal democrático tradicional não se preocupou em constituir "formas efetivas" de "participação igual" ou pelo menos "mais igual", nas decisões públicas. Este é um desafio a que devemos responder. Na verdade, a realidade do mundo moderno e a grande exclusão social proporcionada por regimes tanto democráticos como autoritários apontam a necessidade de mudar esse conceito. Para, principalmente, buscar um conceito de democracia no qual a conquista do governo, por meio do voto popular, não esgote a participação da sociedade, mas, ao contrário, permita iniciar um outro processo, gerando dois focos de poder democrático: um, originário do voto; outro, originário de instituições diretas de participação.

Este seria um método de decidir e, ao mesmo tempo, de gerar "controles" sobre o Estado e o governo, criando instituições capazes de gerar políticas que tenham um grau cada vez maior de aceitação e legitimidade social. Políticas que sejam produto de "consensos" e que venham a emergir de "conflitos", que, por seu turno, possam abrir a cena pública para que transitem - se quiserem - os interesses de todos os cidadãos. A democracia, por meio dessa visão, não pode ser separada da liberdade, e a liberdade não pode ser isolada de uma igualdade mínima de oportunidades, para criação de decisões que objetivem uma crescente supressão da desigualdade existente entre as classes sociais. Desigualdade para influir e para decidir sobre a própria desigualdade social.

A crítica da liberdade e o Orçamento Participativo

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A crítica marxista da liberdade no capitalismo (como mera liberdade de "quem pode mais") é correta, embora as soluções apontadas pelo marxismo tradicional tenham se mostrado historicamente ditatoriais. A visão marxista tradicional também não criou instituições capazes de afirmar crescentemente a liberdade dos indivíduos e - a par disso - promover uma igualdade estável, capaz de gerar uma sociedade nova. A crítica marxista da liberdade no capitalismo diz que, em regra, a liberdade é a "liberdade do proprietário" e não a verdadeira liberdade de ter propriedade. Não a liberdade de comerciar, mas "a liberdade anárquica e egoísta que gera os monopólios" e a própria deformação do poder do Estado. Não a "emancipação dos indivíduos", mas "a emancipação do capital", que passa a pairar como uma força incontrolada e tende a gerar cada vez mais diferenças, exclusão social e corrupção do poder (Bloch). As experiências revolucionárias realizadas até hoje - embora no início constituíssem tendências orientadas no sentido de reduzir as diferenças sociais - acabaram por transformar "um mundo de abundância para poucos, num mundo de pouco para todos" (DAHRENDORF, 1992, p. 23). As revoluções populares deste século não melhoraram o Estado nem aumentaram ou aprofundaram a democracia e a participação política. Não promoveram o cidadão comum à condição de um cidadão voltado para o conjunto da sociedade, nem acabaram com a exploração, o egoísmo, o racismo e as discriminações contra a mulher. Foram ensaios históricos que não frutificaram, embora seus ideais originários fossem elevados. É óbvio que o Orçamento Participativo não é a solução total desse problema, mas seguramente é uma experimentação altamente positiva para o "poder local" e também aponta para "uma forma universal de dirigir o Estado e de criar um novo tipo de Estado". Um Estado que "combine a representação política tradicional" (ou seja, eleições periódicas e previsíveis) com a "participação direta e voluntária dos cidadãos" (criando formas de "co-gestão), para que os representantes eleitos pelo sufrágio universal e os participantes da democracia direta e voluntária gerem decisões cada vezmais afinadas com os interesses da maioria. O processo do Orçamento Participativo faz a "crítica prática da liberdade" meramente formal, mediante a qual o cidadão vota e volta para casa. Por meio dele os cidadãos podem, direta e concretamente, operar a luta por seus direitos, combinando a decisão individual (querer participar) com a participação coletiva (que gera decisões públicas).

A implantação e as dificuldades A idéia do Orçamento Participativo na cidade de Porto Alegre começou com a campanha para a Prefeitura, em 1988. Naquele momento, o programa de governo do Partido dos Trabalhadores propunha democratizar as decisões de uma nova gestão, a partir de Conselhos Populares. O objetivo era permitir que cada cidadão pudesse interferir na criação das políticas públicas e nas demais decisões de governo que tivessem importância para o futuro da cidade. A proposta era assentada muito mais em princípios gerais, originários da Comuna de Paris e dos sovietes, do que propriamente em experiências colhidas na realidade local. A visão dominante no Partido dos Trabalhadores e também nos demais partidos que sustentaram a candidatura da esquerda, naquela oportunidade (1988), era realizar uma espécie de "transferência" de poder, para a classe trabalhadora organizada. Com isso seria gradativamente "substituída" a representação política tradicional, vinda das urnas, pela democracia direta. Era sem dúvida uma visão progressista e positiva, embora extremamente simplista. O programa de governo não desenhava como essa transferência de poder iria se operar, como surgiriam as novas instituições de poder popular e como seria "resolvida" a própria relação com a Câmara de Vereadores, a quem constitucionalmente é atribuída uma enorme soma de competências, além de ser um organismo com evidente legitimidade política. No primeiro ano do governo que emergiu com a vitória da esquerda, ocorreu uma grande afluência da população em todas as plenárias populares de bairro. Nas dezesseis regiões do Orçamento Participativo, as comunidades mais pobres afluíam maciçamente às reuniões. Elas, mediante sua participação direta, teriam a missão de decidir sobre investimentos que eram demandados havia décadas. Mas

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"todos queriam tudo ao mesmo tempo". Exigiam que o governo resgatasse as "promessas" eleitorais e iniciasse "imediatamente" as obras destinadas a melhorar a qualidade de vida naquelas regiões, historicamente abandonadas pelo poder público municipal. O governo, porém, não tinha recursos nem projetos. Era preciso, antes, fazer uma profunda reforma tributária, gerar uma poupança local (por meio dos próprios impostos locais) e assim potencializar o governo da cidade para responder às demandas e criar um nível mínimo de credibilidade. Era necessário dialogar com a cidade, criar condições políticas para que os cidadãos acreditassem nos novos métodos de governar, os quais, pela primeira vez na história da cidade, "incluiriam os cidadãos comuns". Por meio de uma difícil negociação com a Câmara de Vereadores, com grande participação dos "delegados" e "representantes" do Orçamento Participativo, realizou-se a primeira grande reforma tributária. Outras modificações tributárias foram feitas ao longo dos dois governos do Partido dos Trabalhadores e da Frente Popular. Tais modificações tiveram como conseqüência o aumento da capacidade arrecadadora do município (arrecadação própria), que subiu gradativamente de 25% da receita total (arrecadados no primeiro ano, 1989) para algo em torno de 51% da receita total (em 1996). Esta marca foi alcançada no último ano do segundo governo da Frente Popular na cidade, que findou em 31 de dezembro de 1996. O "dinheiro em caixa", porém, também não fazia as obras aparecerem imediatamente, porque era necessário, antes, pagar as contas pendentes do governo anterior. A intensa participação das comunidades, que ocorreu em 1989, caiu consideravelmente no ano seguinte, nas reuniões do Orçamento Participativo destinadas a "discutir a receita" e "programar as obras". A decepção era grande. A reforma tributária (procedida ao longo do primeiro ano de governo) só fez surtir efeitos sensíveis para a população a partir de 1992. Nesse ano foi iniciada a maioria das obras decididas ao longo dos dois primeiros anos de Orçamento Participativo. Mesmo com a escassa participação da cidadania nas plenárias de 1990 (segundo ano do primeiro governo), a prefeitura assim mesmo respeitou as decisões tomadas pela população. Quando os investimentos começaram, embora com atraso, circulou nos bairros das classes populares, e principalmente naqueles em que moravam e moram os trabalhadores de mais baixa renda, que "aquelas obras tinham sido decididas com a participação de várias entidades comunitárias". De fato, a natureza e o tipo da obra já expressavam o grau de consciência de cada região e o nível de organização alcançado pela comunidade até aquele momento. A resposta concreta às demandas colocadas pela própria população teve um efeito extraordinário.

O crescimento

A partir do fim do segundo ano de governo (1990), o Orçamento Participativo já se desenhava como um novo fato político, estruturador de uma nova relação política do Estado com a sociedade em Porto Alegre. Com as obras aparecendo, com as informações que circulavam "boca a boca" e também com as informações veiculadas por meio de um programa de TV, orientado pela Coordenação de Comunicação Social da Prefeitura, as comunidades começaram a ter consciência de que "valia a pena ir no Orçamento". A cidade começou a ter consciência de que o governo realmente reconhecia, nos seus cidadãos, a fonte das suas decisões mais importantes. "Algo de novo", na maneira de governar, estava efetivamente acontecendo. Esse "algo de novo", que era o cumprimento das decisões tomadas por uma base social pobre e mobilizada, somada à transparência nas informações, começou a formar um novo imaginário popular. Na periferia da cidade, as lideranças mais identificadas com o "clientelismo" e com o exercício de influências pessoais, ou foram ficando sem audiência ou começaram a mudar seu comportamento. Ao longo da implantação do Orçamento Participativo, o governo fez um esforço permanente para deixar claro que não discriminava a presença de qualquer cidadão. Nem por convicções ideológicas, nem por compromissos de natureza partidária. Sempre ficava reiterado que o processo era um "processo aberto", que todos eram iguais perante o governo, podendo exercer livremente a sua influência e lutar pelos investimentos que achassem necessários. Para isso, bastava que mostrassem capacidade de mobilização e proporcionassem a participação ativa dos interessados nos novos processos decisórios.

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Papel dos coordenadores regionais

As plenárias do Orçamento Participativo são precedidas de um conjunto de informações transmitidas pelas associações comunitárias, por meio dos jornais de bairro, dos boletins das entidades e mesmo de panfletos especialmente redigidos pelo governo municipal, convocado para a assembléia. O governo, caso seja solicitado, coloca à disposição dos delegados e conselheiros da região um carro de som para passar nos principais locais dos bairros e das vilas, nos dias que precedem a reunião, informando local e horário e que é aberta a qualquer cidadão. A primeira etapa da plenária é o "credenciamento" de cada um dos participantes. Eles dão o nome e endereço para que fique registrado o quórum, composto exclusivamente por pessoas residentes na região em que se realiza a sua plenária. Para que a comunidade não se canse com a "espera", como é comum em reuniões desse tipo, a Secretaria Municipal da Cultura providencia uma programação, normalmente teatralizações que informam a comunidade a respeito das questões sociais da cidade e do país. Isso é feito por meio de teatro de bonecos, música ou de pequenas peças relacionadas com assuntos relevantes para a cidadania. E também normal que seja mostrado um vídeo com informações sobre o andamento dos Planos de Investimento, para as quais, além dos representantes do governo, também contribuam lideranças da região. Uma plenária é sempre precedida de uma certa tensão política, não só porque a presença do prefeito e dos secretários municipais excita e estimula críticas e apresentação de demandas, mas também porque existem contradições entre as próprias lideranças da região, que disputam entre si um papel mais efetivo no processo. O esforço feito pelos Coordenadores Regionais do Orçamento Participativo (CROPs) é para que a lista de oradores seja trabalhada por consenso, privilegiando cada uma das microrregiões e procurando fazer com que expresse a pluralidade das posições políticas na região. Quem decide, porém, quais serão os oradores, são as próprias entidades comunitárias, representadas por suas lideranças mais expressivas. Maria Eunice de Andrade Araújo, coordenadora da região Sul e Leste de Porto Alegre entre os anos de 1992 a 1996, dá seu depoimento sobre a atuação desses agentes do Orçamento Participativo. Eunice é formada em filosofia e pedagogia, com especialização em educação popular. Conta-nos de sua experiência:

Os Coordenadores Regionais do Orçamento Participativo são quadros políticos do governo, vinculados à Coordenação de Relações com a Comunidade. Atuam desde 1991 e têm três tarefas básicas:1) Monitorar, em cada região do Orçamento Participativo, o processo de discussão do orçamento, sem interferir diretamente nas decisões, mas garantindo o debate democrático e prestando esclarecimentos quanto aos critérios que norteiam a definição dos investimentos. São também uma das fontes de informações sobre a execução do Plano de Investimentos, estimulando a criação de comissões de acompanhamento de obras.2) Globalizar as ações de governo na região, incidindo assim contra a fragmentação da estrutura administrativa. O CROP ajuda a programar o contato da população com o governo, por meio de reuniões como as dos fóruns de serviços, que trata da conservação e da manutenção. Ao longo do tempo, fomos assumindo papéis além das questões apenas de orçamento. O CROP passou a ser um "centro administrativo ambulante", principalmente nas regiões onde não havia - à época - Centros Administrativos constituídos.3) Outra tarefa do CROP é preservar e difundir determinados valores. O Orçamento Participativo exige que se tenha a intenção de construir processos cooperativos e de solidariedade, caso contrário estabelece-se a lógica da competição e do "levar vantagem", do ganho a qualquer preço, gerando processos de exclusão. Portanto, negociações inspiradas numa prática solidária devem ser uma constante na ação pedagógica que o CROP exerce entre a cidadania. É fundamental, para a tarefa do CROP, que ele conheça o interior do governo e a dinâmica da máquina administrativa. Ele não substitui as lideranças comunitárias, mas auxilia na relação entre poder público e população, "encurtando caminhos".Outro atributo importante no CROP deve ser, além do respeito que necessita ter entre o primeiro escalão do governo, a capacidade de interlocução com todos os setores da sociedade, pois em situações de conflito muitas vezes é chamado a uma ação mediadora. Portanto, é uma função que exige qualificação, bom senso e dedicação e, por isso, deve ser exercida pelos melhores quadros políticos.

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Não há cursos ou outra forma de qualificação para a tarefa. A vida, a ação e os constantes momentos de reflexão crítica formam nossa escola formadora.Podem ocorrer problemas e desvios no trabalho do CROP. Por exemplo, assumir o papel de dirigente comunitário, desrespeitando a autonomia dos movimentos organizados, ou fazer paternalisticamente tarefas que cabem à comunidade, são desvios para os quais precisamos sempre estar atentos. Relações de tutela, geradoras de subordinação e dependência, ainda estão presentes em nossa cultura política. Outro desvio, mediado por uma história de militância anterior na região, é assumir atitudes de parcialidade, contrariando o perfil de isenção e universalidade que a função exige. Por isso, a Coordenação de Relações com a Comunidade adotou uma regra: CROP não pode exercer seu trabalho na região onde mora. Por outro lado, recai sobre ele a árdua tarefa de ser a "cara" visível do poder municipal mais próxima da população, recebendo os impactos positivos e negativos das ações do governo nos seus acertos e erros.Ao longo dos anos, temos presenciado a participação cada vez maior da população da cidade no Orçamento Participativo. Mesmo com a transitoriedade de um grande número de pessoas, característica presente no movimento comunitário, são visíveis os sinais de ampliação e qualificação do movimento organizado de Porto Alegre. Cada vez mais, determinados temas de caráter universal da cidade são colocados em discussão (em pautas dos grupos temáticos, o Plano Diretor, entre outros exemplos) e a população tem respondido positivamente. E importante reconhecer que esta conquista é fruto, também, da ação militante dos CROPs na Administração Popular.

As lideranças comunitárias Como testemunha pessoal deste processo ao longo de oito anos, posso afirmar a ocorrência de três fenômenos, em relação às lideranças comunitárias das regiões do Orçamento Participativo.a) Um primeiro grupo de lideranças efetivamente esgota a sua participação comunitária neste processo. Acostumado a trabalhar de maneira clientelista, não consegue superar essas limitações e passa a ser paulatinamente rejeitado pela comunidade.b) Um segundo grupo de lideranças efetivamente transforma-se durante o processo. Adquire uma nova linguagem, recicla-se, e as lideranças passam a fazer uma verdadeira intermediação entre os desejos da sua base e o Estado, modulando a tensão política de acordo com o objetivo que pretendem alcançar: ou seja, realmente disputam as obras que a comunidade precisa, contrastadas com as demandas colocadas pelas outras microrregiões.c) Um terceiro grupo de lideranças poderia ser classificado como de "lideranças emergentes", ou seja, aqueles líderes comunitários que surgiram com o próprio Orçamento Participativo e formaram-se por meio dos métodos de trabalho que ele ensejou. São os que adquirem maior prestígio.

É necessário compreender que assim como a comunidade forja o processo do Orçamento, o fato de que as demandas entre as regiões sejam concorrentes e disputadas na cena pública também transforma as lideranças. Estas passam a compreender não só os limites do poder público, como também a própria "relatividade" das suas necessidades, comparando-as com outras mais urgentes e importantes. O processo do Orçamento Participativo não se choca somente com a estreiteza e as limitações da democracia representativa. Ele também se diferencia do "conselhismo puro", aquele processo não-regrado, em que os mais hábeis e ativos levam vantagem. E também do "populismo tradicional", meramente consultivo, no qual a participação popular é um simples elemento de conhecimento, para que o Executivo tome as decisões que lhe pareçam mais convenientes. O fato de o Orçamento Participativo ser regrado, com previsibilidade, e ao mesmo tempo aberto (ou seja, qualquer cidadão pode dele participar), efetivamente cria uma cultura e uma psicologia nas quais as lideranças precisam ter conhecimento das regras do processo. Devem respeitá-las e também ativar a participação do maior número de pessoas possível, procurando aumentar a sua influência nos resultados. O "populismo consultivo" estimula a submissão porque, em última instância, é o líder que tem poder decisório. O "conselhismo tradicional" estimula apenas a habilidade política para ganhar plenárias e emocionar seus integrantes pelo discurso, porque ele não tem regras - nem autônomas nem do Estado - que organizem de forma democrática as disputas.

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No processo do Orçamento Participativo a decisão tem um percurso determinado, que necessariamente precisa ser articulado com demandas de outras regiões, as quais também têm o seu peso e se fazem respeitar. O número de participantes, a habilidade em conversar, o respeito às regras consensuais e aos demais líderes combinam-se num mesmo processo, até a decisão final.

O Orçamento Participativo e a imprensa O processo do Orçamento Participativo jamais teve estímulo e aceitação plena na imprensa local. Pode-se dizer até mesmo que foi ignorado pelos principais meios de comunicação da cidade, não só por ser identificado como "coisa do PT" (o que evidentemente prestigiaria o partido de forma "demasiada"), mas também pelo fato de que o processo socializa a influência sobre o Estado e, sobretudo, retira o Estado da influência exclusiva dos formadores de opinião e dos grupos econômicos. Ou seja, a influência sobre o Estado passa a ser exercida de baixo para cima, e os privilegiados são os que se dispõem a participar, não mais os que têm influência junto à mídia, ou junto aos indivíduos que compõem a própria administração pública. Foram raros os comunicadores que se dispuseram a participar das Assembléias do Orçamento Participativo, mas os que o fizeram ficaram com uma impressão altamente favorável, como os jornalistas Raul Moreau, Affonso Ritter e outros poucos como eles que, mesmo não tendo qualquer ligação com o PT, passaram a simpatizar com o processo e o divulgaram conforme as suas possibilidades. Quando o Orçamento Participativo foi selecionado para o Habita II (Segunda Conferência Mundial sobre Assentamentos Urbanos) da ONU, em Istambul, os meios de comunicação e os formadores de opinião que o rejeitavam, ficaram numa situação extremamente constrangedora, já que ele passou a ter dimensão internacional. Mesmo assim, muitos jornalistas continuaram dedicando-lhe críticas infundadas e preconceituosas, não perdendo a oportunidade de desmoralizá-lo. Indicavam-no como se ele fosse apenas um "nascedouro de pequenas obras" sem maior importância para o futuro da cidade. À medida que o Orçamento Participativo aprovou também grandes obras, como a reforma do Mercado Público, a Estação de Tratamento de Esgotos de Ipanema e a construção de cinco vias estruturais - obras estratégicas para o futuro da cidade - os argumentos desses comunicadores foram se tornando cada vez mais débeis. Fortemente influenciados por sua ideologia conservadora, passaram a admitir que os "vileiros" tinham discernimento público apenas para decidir sobre investimentos que eram de seu interesse imediato. O jornalista Pedro Luiz da Silveira Osório, coordenador de Comunicação Social da Prefeitura de1993 a 1996, analisa a relação da mídia com o Orçamento Participativo:São conhecidos os critérios assumidos pelas empresas jornalísticas para a publicação de notícias. Em linhas gerais, eles dizem respeito a aspectos como a proximidade do fato, seu ineditismo e sua repercussão social, seus aspectos pitorescos, espaço disponível nos noticiosos, gastos para obter a notícia, atenção ao desempenho da concorrência relativamente a um assunto, adequação à cultura do leitor. São critérios tipicamente jornalísticos, que assumem hierarquia diferenciada conforme a linha editorial adotada pelas organizações noticiosas. Em Porto Alegre, a desconsideração jornalística pelo Orçamento Participativo deve.se, basicamente, ao reconhecimento, pelas empresas, do potencial revolucionário e transformador contido nas suas práticas, flagrantemente contrárias aos seus interesses e aos grupos sociais que representam. Até hoje, os jornais (à exceção dos mais de 40 jornais de bairros e comunidades, que abriram suas páginas às notícias do Orçamento Participativo), rádios e televisões da capital gaúcha praticamente não noticiaram o extraordinário fato jornalístico que é o Orçamento Participativo. Entretanto, trata-se de um acontecimento de características ainda inéditas, reúne milhares de pessoas, ocorre na cidade sede das empresas jornalísticas (não gerando, portanto, custos extraordinários de cobertura), tem importância social periódica e publicamente confirmada, já foi noticiado pela imprensa do eixo Rio-São Paulo e de outras regiões, teve e tem reconhecimento e repercussão internacionais e diz respeito ao cotidiano de milhares de porto-alegrenses (justificando, se necessário fosse, sua inserção no noticiário local). Se tais evidências sociais fossem ainda insuficientes para justificar a atenção das empresas jornalísticas, poderia-se dizer que o Orçamento Participativo oferece cenas singularmente pitorescas, instantaneamente reveladoras, ao olhar profissional, de possibilidades imensas e extraordinárias de pautas, matérias, reportagens e fotos. As reuniões do Orçamento Participativo poderiam ser pontos de partida tanto para notícias e matérias sobre a administração

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municipal - pois lá estão expostas suas debilidades e seus eventuais méritos - como, e principalmente, para reportagens sobre a cidade e seu povo. Por fim, nunca será demais lembrar que os gaúchos destacam-se por sua politização, e os debates estimulados pelo Orçamento participativo estão de acordo com a índole e a cultura locais. São tão grandes as obviedades jornalísticas que só mesmo uma forte pressão empresarial, movida por interesses políticos e econômicos, pode determinar a permanência do silêncio em torno do Orçamento Participativo. Mas, transcorridos oito anos, qualquer jornalista deve também perguntar se seus colegas não tiveram ou têm dificuldades em discernir o que empregadores hábil e rapidamente perceberam. A distância que os jornalistas mantêm do Orçamento Participativo decorre unicamente da pressão patronal e dos funcionários subservientes? Os jornalistas não estarão, nos últimos tempos, caudatários de uma visão social simplificada e nülista? Não estarão cativos de uma postura que privilegia a denúncia como a prática que dá significado às suas trabalhosas vidas profissionais? Em que medida foi percebido, de fato, o significado político e social do Orçamento Participativo? Por certo, um debate sobre o lugar do jornalismo e do jornalista na sociedade contribuiria para enfrentar o cerco imposto pelas empresas de comunicação. Pois, entre os muitos motivos que elas possuem para desrespeitar cotidianamente as regras do bom jornalismo e o público do qual vivem, há um motivo que certamente as preocupar muito: essa "mania" de controle público pode "pegar" e logo os meios de comunicação estarão prestando contas à sociedade sobre os seus desmandos.

Referências bibliográficasB0BBI0, Norberto et alii. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: Editorada UnB, 1986.CASTELLS, Manuel e BORJA, Jordi. As cidades como atores políticos. Novos Estudos. São Paulo, CEBRAP, n. 45, jul. 1996.CORREAS, Óscar. El neoliberalismo en el imaginário jurídico. In: Direitoe neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar.Curitiba: Editora do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos,1996.DAHRENDORF, Raif. O conflito social moderno - um ensaio sobre a política da liberdade. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora da USP/Jorge Zahar, 1992.GENRO, Tarso e Souza, Ubiratan. Orçamento Participativo: A Experiência de Porto Alegre. 2. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997.RUBLE, A. Blair et alii. Introduction: Globalism and Local Realities - Five Paths to the Urban Future. In: Prepari ngfor the Urban Future...Washington, Woodrow Wilson Center Special Studies, 1996.TOURAINE, Alain. Carta aos Socialistas. Lisboa: Ed. Terramar, 1996.UTZIG, José Eduardo. Notas sobre o governo do PT em Porto Alegre.Novos Estudos. São Paulo, CEBRAP, 45, jul. 1996.

Gestão democrática na escola pública:uma leitura sobre seuscondicionantes subjetivosMaria Lúcia de Abrantes Fortuna

Desde os anos de 1970, tenho-me envolvido com as questões da gestão escolar, tanto como atividade profissional, quanto como objeto de estudo. No transcurso desse período, sobretudo pela vivência pessoal e pela observação empírica, venho suspeitando da necessidade, para compreensão dos contraditórios caminhos das práticas de gestão escolar, em especial as proclamadas como democráticas, de articular matrizes teóricas. Na realidade, no início dos anos de 1990, uma pergunta muito me intrigava: qual o lugar dos condicionantes subjetivos nos processos de democratização da gestão da escola? Foi instigada por esta pergunta que realizei um estudo de caso, de cunho etnográfico, quando procurei

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investigar o lugar ocupado pelos condicionantes subjetivos nos chamados processos de democratização da gestão na escola pública. Representou uma tentativa de articular matrizes teóricas da ciência política, com os conceitos desenvolvidos pela psicanálise, em especial a matriz freudiana. Tratou-se de um esforço para compreender a dimensão do sujeito nos chamados processos de gestão democrática da escola, em especial a pública, bem como a dinâmica do sujeito no grupo e, ainda, tentar entender qual o significado que pode ter a democracia em toda essa dinâmica. Estudos realizados no transcurso da década de 1980 questionaram o chamado perfil teórico dos administradores escolares adotado durante a década de 1970. Isto porque aquela matriz procurava enfatizar a dimensão técnica "neutra" da administração, o que tem orientado a ação administrativa em direção ao centralismo burocrático, ocultando sua dimensão política intencional, oposta ao trabalho participativo. Constatou-se que a chamada "teoria geral da administração" nada mais é do que uma "teoria capitalista da administração". Seu chamado conteúdo "geral" e "universal", não passa de uma forma ideologizada de apresentar a administração como uma prática neutra e inofensiva, escamoteando seu caráter de instrumento de controle e de exploração na organização do trabalho alheio, em benefício dos interesses do capital (P 1986). A administração, no seu sentido geral, é uma atividade produzida pelo homem, capaz de orientar ações com vistas a fins pré-estabelecidos. Como uma forma particular de trabalho, se ocupa com a organização do esforço coletivo, isto é, com a organização do trabalho na sociedade. Por ser uma ação social e política, gera práticas contraditórias, uma vez que tanto serve para organizar o trabalho de forma autoritária, quanto para fazê-lo de maneira democrática e participativa. No Brasil, a prática administrativa, em especial a administração escolar, apresenta- se continuamente conformada com a situação, fundamentando-se na imposição e na coação legal e burocrática. Essa tradição possui também suas raízes no autoritarismo da sociedade política e nos interesses dominantes. Entretanto, a partir de 1978, as pressões dos professores organizados e da sociedade civil em geral, assim como a resistência e contestação dos alunos, exigiram novos rumos às práticas administrativas da educação, interferindo e requerendo do administrador uma revisão de suas posturas, procurando a reavaliação delas e o abandono do autoritarismo burocrático em benefício da representação democrática. A partir dessas lutas, o provimento dos cargos administrativos de direção nos diferentes níveis de ensino foi se fazendo, em alguns estados e municípios, por meio de eleições diretas, exigindo do eleito representatividade e compromisso com o nível de ensino que administra. Do ponto de vista do discurso, geralmente os diretores eleitos pretendiam qualificar os fins de sua administração no sentido de uma gestão democrática, o que deveria significar a democratização das relações de poder no interior da área administrada e a ampliação dos espaços participativos de decisão que, saindo de um único centro de poder, culminassem com o exercício de uma administração colegiada. Administração esta que exigiria o envolvimento de todos nos processos de tomada de decisões. Porém, este movimento foi engendrado no conjunto da sociedade, no chamado período de "abertura política", recebendo no seu transcurso a influência das práticas políticas do país, freqüentemente marcadas pelo clientelismo político e pelo corporativismo de interesses. No sentido restrito da administração, seu caráter contraditório é reforçado pelo confronto dos interesses de classe no interior dos processos de trabalho coletivo. O que vai definir o perfil de uma administração, se autoritária ou democrática, se "reiterativa e conservadora ou criativa e progressista" (PAR0,1986, p. 28), será a qualificação de seus fins e a escolha dos processos utilizados. Reconhecemos, entretanto, que a gestão democrática faz parte de um processo coletivo e totalizante, cujo requisito principal é a participação efetiva de todos. E óbvio que somente a prática reiterativamente vivenciada no cotidiano demonstrará o conteúdo de uma gestão dessa natureza. Assim, pelo caráter de suas ações, confirma-se que a administração é uma prática social e política, e, por isso, contraditória e parcial, podendo gerar formas autoritárias ou participativas. Por esse motivo, acredita-se em um crescente imbricamento entre a dimensão social e subjetiva, na construção das regras do jogo democrático e no exercício das práticas administrativas. Principalmente, porque já não se concebe mais a democracia como um produto acabado, mas como um processo em permanente construção, historicamente definido e eternamente inacabado. Assim como também, mantendo a matriz marxista, supera-se a concepção única de Estado como o

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instrumento de dominação da classe hegemônica, passando a ser visto como o campo de luta dos interesses antagônicos de classe, sendo modelador e produto das relações objetivas de classe. Estado e democracia passam a ser vistos como um pré-requisito necessário à emancipação humana, ficando a autonomia de cada um relativizada pelo papel fundamental que assume a luta dos homens e mulheres no cotidiano de suas vidas na sociedade. O que parece estar perturbando os processos de democratização, nesse particular das gestões escolares, é exatamente uma certa concepção de democracia, herdada do processo brasileiro, pouco dinâmica, sobrecarregada de um tipo de verdade única, que a contradiz conceitualmente e desde seu nascedouro. Em geral os dirigentes protagonizam uma proposta de gestão, identificando como democrático "um processo de convencimento mútuo que construa um ponto de vista ideal para a escola", conforme declara, no estudo empírico, um dos diretores da escola. Talvez, o que não esteja claro, é sobre a relatividade desse "ponto ideal" que, dependendo do novo contexto e da circularidade dos membros do grupo, altera-se. Observando assim, a presença de uma insatisfação constante com os processos de democratização, especialmente na realidade escolar, levanto a hipótese de que os sujeitos decepcionam-se com a democracia, porque esperam dela um resultado, um fato acabado, uma conclusão. No entanto, mesmo insatisfeitos e aparentemente de forma contraditória, continuam lutando por ela. Por quê? Diante disso, tenho tentado buscar uma instrumentalização teórica que me possibilite compreender, nesse emaranhado de relações, a dimensão do sujeito, que, em geral, fica sucumbida, submersa e, principalmente, negada no jogo dinâmico das relações entre a educação, o Estado e as próprias concepções de democracia. Pelo que observo, essa dimensão seria uma das variáveis condicionantes da ação de cada um, e, conseqüentemente, com ressonâncias naquilo que se define como ação coletiva. Isto porque não existem estruturas organizacionais em abstrato. Elas se fazem e se apresentam em sujeitos concretos, que nelas escrevem parte de suas histórias de vida pessoal, e que, em co-autoria, escrevem também a história da instituição. Os acontecimentos que se sucedem e se cruzam, fortemente marcados pelos condicionantes sociais, políticos e econômicos, em tempos e espaços que lhes circundam, integram os referenciais identificatórios dos sujeitos individuais e do sujeito coletivo. Diante deste quadro, não se pode desconsiderar a dimensão subjetiva das práticas desses atores, com seus valores, suas concepções, suas imagens, seus desejos, seus fantasmas, enfim, com toda a sua história de vida, que entra como o dote que cada um traz consigo para o intercâmbio entre essas relações. Nessa troca, se inscreve a história coletiva, se constrói, se forma o sujeito coletivo. Por outro lado, o que cada um desses sujeitos traz inscrito sofreu a determinação impressa pela relação parental, que reedita as bagagens cultural e social que lhes são pertinentes (AULAGNIER, 1979). Este conjunto de enunciados, referentes muitas vezes ao passado, muitos deles foram recalcados em nome mesmo da construção da identidade do sujeito. Isto significa dizer que os desejos provenientes do sistema inconsciente encontram-se em permanente disposição para uma expressão consciente, no que são impedidos pela censura. Esta, no entanto, pode ser burlada na medida em que o desejo inconsciente transfira sua intensidade para um impulso do consciente cujo conteúdo ideativo funcione apenas como indicador do desejo original. Assim, uma das características fundamentais do inconsciente, como também de qualquer conteúdo dele, é a indestrutibilidade. Torna-se, portanto, inegável a marca da história de vida pessoal de cada sujeito na definição de suas opções no presente, esteja ele atuando em qualquer espaço de sua existência. Como também torna-se difícil deixar de reconhecer que, nesse projeto identificatório, é a relação entre o sujeito e o outro que está sempre em causa, em todos os tempos da construção da identidade. Especialmente no caso dos profissionais da educação suponho que as referências identificatórias provenientes do seu meio escolar, impressas no tempo que eram estudantes, encontrem campo fértil de atualização na escola onde hoje atuam. Isto porque no conjunto sucessivo de vozes identificatórias do meio, no contexto de uma sociedade letrada, a escola muito cedo ocupa um lugar de substituição primeira e imediata dos referenciais parentais. Mas essa substituição não significa eliminação, pois, no inconsciente, o passado conserva-se integralmente e, na realidade, se mantém sempre atuando na construção permanente do sujeito. Essas imagens da infância, muitas delas pouco recordadas, estão impregnadas de muita ambivalência, uma vez que despertam alternadamente, sentimentos de ódio e amor. Assim,

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os adultos, em especial os professores, são tratados com a mesma ambivalência da relação parental, uma vez que se transformam em dublês das relações familiares. Por isso pondera-se que, na escola, a personalidade dos mestres exerce maior influência sobre nós do que as ciências que eles nos ensinam. Ou, ainda, que as disciplinas de nossas preferências são as mesmas que são lecionadas pelos professores mais queridos. No caso dos colegas, a disputa pelo amor preferencial do mestre ("pai") é contornada pelo estabelecimento de regras de convivência que garantam a igualdade de tratamento, nos mesmos moldes exigidos na relação fundadora. Em "Psicologia de grupo e a análise do ego" (1921), Freud conclui que o mesmo processo ocorre, de maneira geral, com os grupos, que, para desenvolver o sentimento comunal, "a primeira exigência feita por essa formação reativa é a de justiça, de tratamento igual para todos." (FREUD, 1976, vol. XVIII, p. 152) Como conseqüência desse processo, o sujeito desloca o sentimento de ciúme e rivalidade por um movimento de aceitação do grupo como um todo. Provocando um retorno a esse investimento libidinal, estabelece um vínculo de cumplicidade com o líder, revestido da figura de poder, criando laços identificatórios com os demais membros do grupo. Segundo ele, os laços intensos que prendem o indivíduo ao grupo constroem em duas direções: ao líder como substituto do ideal de ego, e aos companheiros, por identificação. Assim, cria-se uma relação com as figuras de autoridade (professor - diretor - líder - pai), baseado nas suas vivências anteriores. O sentimento de grupo, presente inicialmente nas relações parentais e depois se reproduzindo nos demais grupos aos quais passamos a pertencer, é a derivação do originário.

Nota de rodapéSegundo Laplanche & Pontalis (1986, p. 258), formação reativa é uma "atitude ou hábito psicológico de sentido oposto a um desejo recalcado e constituído em reação contra ele. E um contra-investimento de um elemento consciente, de força igual e de direção oposta ao investimento inconsciente."Freud formula a seguinte definição de libido: "é expressão extraída da teoria da afetividade. Damos esse nome à energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora não seja atualmente mensurável), das pulsões que se referem a tudo o que pode ser abrangido sob o nome de amor" (FREUD, 1976, vol. XVII, p. 115).Fim de nota de rodapé

Os estudos de Freud sobre a estrutura libidinal nos grupos sugeriram-me a hipótese de que nas escolas, em especial nas públicas, principalmente depois da instalação das chamadas práticas de gestão democrática, cuja marca principal tem sido o processo eletivo para a nomeação dos seus dirigentes, ocorra nos indivíduos a mesma diferença econômica identificada por Freud na Igreja. Isto porque, também na escola, os professores ligam-se ao diretor como representante do pai, da autoridade, na relação de substituto do ideal de ego, mas também são solicitados a identificarem-se com ele, uma vez que é um professor como os demais, sobretudo antes e depois do mandato, tendo, mesmo, ingressado no quadro da categoria pelo mesmo sistema de concurso público, numa declarada igualdade condições. Esta situação também deve estar presente quando se trata da ocupação do cargo por indicação, ou mesmo por concurso, pois, em geral, exige-se do candidato pertencer anteriormente ao quadro de docentes. Porém, nestes últimos casos, devido ao prolongado período em que, geralmente, osocupantes do cargo ficam em exercício e aos mecanismos usados para sua manutenção nele, parece que acaba por reforçar uma relação de propriedade da função e conseqüente distanciamento da identidade do pro fessor. Acredito que a diferença econômica a que Freud se refere tornou-se mais presente com as eleições, uma vez que elas fixam períodos de mandatos, introduzindo a possibilidade de um rodízio maior entre os professores, na ocupação da função. Por essa mesma lógica, também é solicitado ao dirigente, após ter sido o foco da escolha objetal dogrupo, enquanto representante do ideal de ego de cada um, que desocupe esse lugar e volte a ligar-se ao mesmo grupo, como um igual, pelo laço da identificação. Nesse sentido, também o grupo tem que substituir sua escolha objetal para o novo diretor eleito e também o laço de ligação do antigo diretor, pelo da identificação. Do ponto de vista do investimento psíquico, estas alterações não são tão simples como podem, aparentemente parecer, do ponto de vista funcional. Talvez por isso seja mais confortável para todos odesaparecimento do antigo diretor. Ou, arriscando-me nas hipóteses sobre a formação de grupo e a horda primeva, "o assassinato do pai", que muitas vezes mantém-se vivo em outro grupo.

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Na realidade, para Freud, as limitações e as alterações observadas na personalidade do indivíduo num grupo devem-se ao fato de estar ligado por laços emocionais intensos naquelas duas direções, concluindo que "a essência de um grupo reside nos laços libidinais na escola públicaque nele existem" (FREUD, 1976, vol. XVTII, p. 122). Nesse sentido, continua Freud, a desintegração grupal explica-se pela dissolução dos laços libidinais entre os membros e/ou em relação ao líder. Essa dissolução pode ocorrer provocada por diversos fatores, como, por exemplo, quando há a perda do líder, ou em situação que gere desconfiança, ou, ainda, quando, pela comprovação científica e/ou de realidade, algo de caráter ideológico é questionado. No caso da escola escolhida como campo empírico para o estudo acima referido, pertencente à rede pública estadual do Rio de Janeiro, com mais de trinta anos de existência, nunca permaneceu no quadro docente um professor que tenha exercido a função de direção. Durante o período o cargo foi exercido por nove professores diferentes, sendo que há oito anos o provimento tem sido feito pelo processo eletivo. Tanto os três indicados, quanto os seis eleitos, pediram suas transferências ao encerrarem seu tempo de direção. Todos os mandatos findaram-se permeados por ressentimentos mútuos. Mas ainda existe outro aspecto das ligações libidinais num grupo, apontado por Freud, que também pode ser identificado, no estudo empírico realizado. Trata-se do componente narcísico destas relações. Segundo Freud, "há uma catexia libidinal original do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais" (idem, 1974, vol. XIV, p. 91-92). Freud postula "a existência de um narcisismo primário em todos", uma vez que originalmente o ser humano tem dois objetos sexuais: ele próprio e a pessoa que cuida dele. Em conseqüênciados processos repressivos a que fica sujeito nas fases de organização da libido, sobretudo pela formação dos complexos de Édipo e de castração, o que o indivíduo "projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal". Assim o ideal do ego surge pela influência crítica dos pais, "aos quais vieram juntar-se, à medida que o tempo passou, aqueles que o educaram e lhe ensinaram, a inumerável e indefinível corte de todas as outras pessoas de seu ambiente - seus semelhantes - e a opinião pública" (idem, p. 104-113). É nessa direção que também forma-se a "idealização", quando o objeto de escolha, engrandecido na mente do indivíduo, "está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo que (...) uma quantidade considerável de libido narcísica transborda para o objeto". Em outras palavras "nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo" (idem, 1976, vol. XVIII, p. 143). Assim, "o narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor" (idem, 1974, vol. XIV, p. 111). Em relação ao novo diretor, parece que o temor maior está na chegada de alguém que nunca pertenceu ao grupo, alguém de fora. Nesse particular, há uma argumentação coincidente entre Lefort, filósofo político, e Freud. O primeiro, em texto escrito em 1979, sob o título "A imagem do corpo e o totalitarismo", reflete sobre a necessidade, para a constituição do "povo-Uno", da "produção incessante de inimigos", do "Outro" que vem de fora, "o emissário do estrangeiro" (LEFORT, 1987, p. 113). Parece que realmente nada ameaça tanto, quanto a possibilidade de vir alguém de fora. No estudo empírico realizado, há quase uma unanimidade entre os entrevistados neste sentido: "nós não podemos deixar chapa de fora, tem que ser uma chapa daqui de dentro", pensam não só professores, como alunos e funcionários. No entanto, além da imagem do inimigo de fora, que sem dúvida fortalece a possibilidade de união do grupo, reforçando os laços entre eles, não se pode esquecer que esses laços são de identificação, que, segundo Freud, é "a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa", apresentando a característica de ambivalência desde o início, podendo "tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo de afastamento de alguém". Assim ocorre, porque a identificação está na origem do complexo de Édipo, já que a história primitiva é marcada por dois laços distintos: "uma catexia de objeto sexual e direta com a mãe e uma identificação com o pai que o toma como modelo" (FREUD, 1976, vol. XVIII, p. 133). Esses laços subsistem lado a lado por um tempo, até que, no avanço da organização libidinal, no sentido da unificação da vida mental, a identificação assume um colorido hostil, mesclando a figura de modelo com a do censor. Assim a identificação está na origem da formação do ideal do

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ego, na constituição da figura de autoridade interna de cada um. Neste sentido, percebo inteiramente justificável que os grupos tenham mais facilidade em colocar no lugar de futuro representante de ideal do ego, alguém com quem já tenham tido um laço de identificação, assim como foi, remotamente, na sua relação parental, quando se constituiu o protótipo de autoridade. Para Freud as relações grupais são libidinais, isto é, carregadas de energia sexual, mas inibidas em seu objetivo, o que a diferencia do "estar amando". Toda essa lógica reforça, a meu ver, a hipótese de que o preenchimento do cargo de dirigentes das escolas públicas, pelo critério eleitoral, fortalece essa convergência de escolha objetal em torno do diretor eleito, que na realidade começa a se formar desde o momento da organização da chapa, propagando-se durante a campanha eleitoral e finalmente consagrando-se no grande dia da eleição, da escolha pública do grupo, quando todos os membros projetam nele seu ideal, depositam nele a possibilidade de realizar sua ilusão, no caso, a gestão democrática, que a cada eleição renasce dos limites de realização daquele que o antecedeu. Assim, penso ser este o ardil pelo qual o grupo se mantém vivo e unido: "é a ilusão de que o líder (que, a cada eleição personifica a esperança, sempre renovável, do ideal democrático) ama todos os indivíduos de modo igual e justo" (ibidem, vol. XVII, p. 158). Por esse motivo a democracia precisa ser mantida como um produto inacabado, uma utopia em permanente construção, um desejo irrealizável em permanente estado de pulsão, instrumentalizando, pelo seu conteúdo inconcluso, a possibilidade de manutenção do grupo, que sobrevive sustentado pela ilusão do ideal democrático: um desejo em permanente estado de pulsão. Penso ser esta a razão pela qual esse ideal não morre, pois como pulsão, para se manter em estado de desejo, não pode realizar-se: a pulsão ao alcançar seu objetivo, perde energia e expira. Assim o impulso do desejo democrático, carregado de catexia afetiva, projeta-se a cada nova eleição, reabastecendo os laços identificatórios do grupo em direção a um novo ideal de ego, para onde convergem as energias libidinais, em busca do preenchimento daqueles espaços de falta. Nesse sentido, resguardando todos os limites de uma possível generalização no campo de estudos das ciências humanas e sociais, penso poder tirar algumas conclusões. Uma delas refere-se à importância do método eleitoral como mecanismo de escolha dos dirigentes escolares, em duas direções. Primeira, porque a cada processo eleitoral, o grupo sereorganiza, e reestimula, em cada um, a utopia democrática que os sustenta. Segunda, a que os mandatos devem permanecer com tempo definido não reconduzíveis, exatamente pela possibilidade que essa fórmula traz, em direção do ideal de ego não ficar preso à pessoa do diretor e, em conseqüência, poder ser transferido para o ideal democrático. Outra conclusão refere-se à concepção de democracia como um processo inacabado, em permanente construção, assim como o próprio ser humano. Concebê-la como um desejo que se renova a cada dia, como uma pulsão que garante a sobrevivência do grupo, que a cada dia define seu contorno, acredito ser essencial para a própria sobrevivência da democracia, que certamente morrerá se concretizada em uma verdade única. Assim, para a sobrevivência dos grupos e da própria democracia, penso ser essencial concebê-la como um desejo, uma pulsão. Na construção deste trabalho tive a clara percepção da sua inconclusão. Parecia que, ao tentar responder às questões por ele mesmo levantadas, muitas ficavam sem repostas e outras transformavam-se em novas hipóteses de trabalho. Mesmo assim, espero que, ao menos uma porta tenha sido aberta em direção às várias possibilidades de reflexão, sobre os condicionantes subjetivos da chamada gestão democrática.

Referências bibliográficasAULAGNIER, Piera. A violência da interpretação: do pictorama ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979.CALLIGARIS, Contardo. Helio Brasil! Notas de um psicanalista europeuviajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991.COSTA, Jurandir Freire. Narcisismo em tempos sombrios. In: FERNANDES, Heloisa Rodrigues et al. Tempo do desejo: sociologia e psicanálise.São Paulo: Brasiliense, 1991.Sobre a geração AI-5: violência e psicanálise. Violência epsicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984.ENRIQUEZ, Eugêne. Da horda ao Estado: psicanálise do vínculo social.Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

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FORTUNA, Maria Lucia de Abrantes. A democratização da gestão na escola pública: uma possibilidade de reflexão sobre seus condicionantes subjetivos; Tese de Doutorado - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 1998.O perfil do administrador escolar: uma perspectiva estadual.Dissertação de Mestrado - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 1979.FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.LAPLANCHE, J e Pontalis J.B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo:Martins Fontes, 1970.LEFORT, Claude. A invenção democrática. Os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.P Vitor Henrique. Administração escolar. Introdução crítica. SãoPaulo: Cortez, 1986.PRZEWORSKI, Adam. Ama a incerteza e serás democrático. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 9, julho, 1984.SOUZA, Octavio. Reflexões sobre a extensão dos conceitos e da prática.In: ARAGÃO, Luiz Tarlei de et al. Clínica do social. São Paulo: Escuta, 1991.

A gestão democráticaque começa na sala de aulaAntônio Eugênio do Nascimento

A democratização da gestão, até bem pouco tempo, sinônimo de processo de escolha dos que vão dirigir, faz parte de nossas preocupações mais recentes, indicando a necessidade de um olhar crítico para as nossas práticas cotidianas na esperança de que elas possam funcionar como elementos fomentadores de ações mais afinadas com as linhas de uma escola comprometida com os interesses dos filhos da classe trabalhadora.

Uma experiência de democratização A gestão democrática deve estar impregnada por uma certa atmosfera que se respira na escola, na circulação das informações, na divisão do trabalho, no estabelecimento do calendário escolar, na distribuição das aulas, no processo de elaboração ou de criação de novos cursos ou de novas disciplinas, na formação de grupos de trabalho, na capacitação dos recursos humanos etc.

Nota de rodapéProfessor da Rede Pública de Angra dos Reis e autor do livro: "A Escola do aluno caminhador".Fim de nota de rodapé

A gestão democrática é, portanto, atitude e método. A atitude democrática é necessária, mas não é suficiente. Precisamos de métodos democráticos de efetivo exercício da democracia. Ela também é um aprendizado, demanda tempo, atenção e trabalho (G p. 4).

A expressão "gestão democrática" já está incorporada ao glossário pedagógico da escola pública brasileira. De uma forma ou de outra a maioria dos governantes vem, desde o início da década de oitenta, promovendo discussões que apontam para formas mais participativas de escolha dos diretores e de propostas de trabalho que viabilizem a distribuição das responsabilidades no ambiente escolar. É evidente que os primeiros empurrões para o exercício de um novo modelo de gerir e de tratar a coisa pública foram dados pelas organizações que já se encontravam engajadas na luta pelo restabelecimento da democracia, na década de 1970. Mesmo assim, raramente encontrava-se uma instituição cujos membros, unanimemente, considerassem como prioritária a implementação deste novo tipo de gestão. As incertezas refletiam as dúvidas de alguns, as inseguranças de outros e o corporativismo de determinadas categorias preocupadas com a possibilidade de perda dos espaços conquistados, nem sempre de maneiras muito lícitas.

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Em Angra dos Reis, a discussão sobre o tema é introduzida pelo primeiro governo do Partido dos Trabalhadores que tomou posse em 1989, seguindo as diretrizes contidas no programa original de gestão dos equipamentos públicos com vistas à implementação de um novo modo de governar, capaz de estimular o povo a uma participação mais efetiva e promotora de uma melhor distribuição dos benefícios que são adquiridos com as verbas públicas. Vencidos, em 1993, o que nos pareciam os últimos obstáculos a um projeto que mexia com velhas relações de poder, presentes nas escolas e na secretaria de educação, partimos para a realização da primeira eleição dos diretores que deveriam tomar posse em 1994, com um projeto inevitavelmente prenhe de inconsistências. Queríamos eleger os nossos representantes mas as formas de encaminhamento desse processo permitiram que a Câmara dos Vereadores vetasse o projeto e apresentasse à justiça um pedido de anulação dos pleitos que já estavam em andamento. Aprendemos com os erros. Baixada a poeira e contabilizadas as perdas, o Governo Municipal tomou a decisão que nos pareceu mais salutar: prorrogou a maioria dos mandatos e indicou os diretores eleitos no pleito anulado pela Câmara. Os dois anos seguintes foram consumidos em discussões setoriais e articulações junto ao legislativo municipal em busca de um acordo que pudesse viabilizar a realização das eleições, que, por uma série de razões, só voltariam a acontecer em 1996, para o biênio 1997/ 1998 e mais recentemente para a escolha dos que estarão à frente das direções das escolas até o final do ano 2000.

A implantação da gestão A estrutura básica do corpo dirigente das escolas passou a ser composta por:a) uma diretoria cujos membros devem pertencer ao magistério da rede municipal,b) um conselho de escola de natureza paritária entre os funcionários da administração pública e os usuários, na proporção de 50% para cada lado.

Processo eleitoralDa direção das escolas• Estrutura hierarquizada pela presença de um diretor geral e de outros auxiliares de direção, deacordo com o número de alunos da unidade escolar.• Todos os membros do magistério municipal são candidatos potenciais.• As direções eleitas podem recandidatar-se indefinidamente.• Votam pais, alunos a partir da terceira série, funcionários e o corpo docente.• Quorum mínimo: 50% mais um.• Candidaturas apresentadas em chapas completas.• Dois anos é o tempo de cada mandato.• Qualidade do voto: proporcional.

Do conselho de escola• Constituído de forma paritária com no mínimo seise no máximo dezoito membros.• As vagas dos representantes da administração pública são distribuídas entre a direção, osprofessores e o pessoal de apoio.• As vagas dos usuários são distribuídas entre as associações de moradores, os pais e os alunos.• o tempo do mandato é de dois anos.• Funções: consultiva, fiscalizadora e de deliberação colegiada.• Qualidade do voto: proporcional.

Avaliando os primeiros resultados

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... a democracia que defendemos não se limita aos procedimentos eleitorais. E necessário assumir a construção da hegemonia popular no dia-a-dia, mediante participação individual e coletiva da população; como também possibilitar situações e criar canais onde a população formule, decida, implemente e fiscalize as políticas públicas.

Seis anos se passaram desde o dia em que ocupamos a Secretaria Municipal de Educação com as urnas proibidas e, em seguida, nos pusemos a tentar todas as formas possíveis de comunicação com as unidades escolares, objetivando, por determinação da justiça, a suspensão do primeiro escrutínio. Ultimamente temos nos debruçado sobre alguns dados que nos possibilitem visualizar os avanços decorrentes das ações implementadas a partir do estabelecimento das metas que garantiriam a democratização do espaço escolar. Estamos certos de que precisamos fazer uma análise crítica daquilo que podemos considerar como avanços e de que rotas precisam ser reparadas se quisermos realmente superar os vícios arraigados nas pequenas estruturas de poder.

Nota de rodapéTrecho da tese enviada ao Segundo Congresso de Educação de Angra dos Reis, que consta do documento.Fim de nota de rodapé

Lembro-me bem das primeiras discussões que realizamos nas instâncias sindicais, lá nos idos de 1970, quando nascia em nós a esperança de ver a esquerda no poder, o que nos fazia antecipar os caminhos que haveríamos de percorrer até que a democracia se consolidasse. Nossa esperança vinha acompanhada da certeza da necessidade de nos engajarmos na luta pela construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Vinte anos depois nos encontramos afogados em um pântano de desilusões, pragmaticamente inertes, evitando a asfixia total. Conquistamos a democracia política, mas na qualidade de componentes de um grupo social maior, contribuímos muito pouco para o aprimoramento das instituições criadas com o objetivo de livrar as classes menos favorecidas dos níveis de pauperização, aos quais, há anos, estão submetidas. Muito embora ainda não possamos incluir a decantada gestão democrática no rol das perdidas ilusões, as reflexões que ora realizamos nos permitem concluir que o retorno social desse investimento foi, tirando o ganho político, bastante tímido. Também ficaram para trás os sonhos de que pudéssemos eleger pessoas mais comprometidas com as classes populares para o exercício do poder. É preciso inclusive ressaltar que, na maioria dos casos, sequer fomos capazes de indicar os companheiros nos quais acreditávamos, nem nos lançamos à luta pela ocupação dos espaços. Os anos de ditadura criaram, na maioria de nós, uma espécie de ojeriza ao poder que nos deixou incapacitados para o exercício de atividades que exigem capacidade de liderança. Lemos demasiadamente Brecht, mas esquecemos de que era também muito importante assumir os postos de comando. Pode ser também que os escrúpulos que introjetamos nos tenham afastado das disputas mais legítimas. Cometemos erros e acertos mas fomos excessivamente ingênuos ao aprovar determinados instrumentos que legitimaram, nos cargos de direção, uma legião de pessoas acostumadas a fazer troça da democracia e cansadas de ocupar os espaços pelas vias que contrariam as mais simples regras do jogo democrático. Ainda assim, temos dificuldades de dizer aos nossos companheiros que direção é um cargo de confiança do coletivo e de natureza transitória. A perpetuação de qualquer forma de poder contraria os mais elementares princípios de convivência solidária, cria vícios que interferem na qualidade das relações interpessoais, não educa e não favorece o desenvolvimento de novas lideranças. Sabemos de tudo isso, mas aprovamos a indefinição do número de vezes que um determinado grupo de companheiros pode candidatar-se à direção de um órgão público. As vezes, num lapso de lucidez, reclamamos do sociólogo que quis ficar na presidência por mais um período. Mas isto é apenas um lapso. Outra questão, que nos parece pertinente, está ligada ao entendimento do que seja uma verdadeira gestão democrática e aos encaminhamentos que precisamos propor para que as primeiras organizações intra-escolares se desenvolvam a partir das relações estabelecidas pelo contato diário entre docentes e discentes. A escola que faz opção por um tipo de gestão pautada em princípios democráticos não pode deixar que seu "rebanho" se afaste da

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luta pela democratização do acesso, pela criação de condições que favoreçam a permanência dos alunos na escola até a terminalidade dos estudos e pela valorização dos profissionais da educação. A solução do problema que se apresenta passa pela construção de algumas ações que não são encontradas nos meandros das escolas que promovem a competição. Enfatizamos a toda hora que a educação deve ser o instrumento que a sociedade precisa utilizar para a promoção do exercício da cidadania fundamentada nos ideais de igualdade, solidariedade e justiça social. Mas, quais são as estratégias que utilizamos no cotidiano da sala de aula para que os nossos alunos não se tornem adeptos da famosa Lei de Gérson em que "é preciso levar vantagem"? Que tipo de ação estamos desenvolvendo para que as crianças não se agarrem à máxima popular (Cada um por si e Deus por todos. que incentiva a produção individual e o descompromisso com o coletivo? Sabemos da importância desses princípios, mas esquecemos de provocar nossos alunos no sentido de levá-los a compreender que o grupo que caminha junto o faz com mais segurança, por se tornar mais forte. E exatamente a esse movimento que damos o nome de cooperação. O homem é um animal que co-opera, opera com, e qualquer modelo de gestão orientado pelos princípios da democracia carece de determinadas formas de produção coletiva que começam no lar, passam pela sala de aula e são alimentados nos fóruns de organização que movimentam as esferas democráticas de poder. No caso especifico do município de Angra dos Reis, chegamos a tentar a implantação de algumas estruturas colegiadas de gestão, mas esbarramos em resistências corporativas que acabaram por inviabilizar o processo. A gestão democrática é como um conjunto de engrenagens dependente do perfeito funcionamento de cada uma, mas a maioria dos sujeitos que vivenciam o cotidiano da escola pública ainda não se percebe como uma parte que pode contribuir para a democratização dos espaços, elege os seus representantes e garante ao corpo escolar a autonomia que reivindicamos frente às estruturas de poder.

As estruturas cooperativas Vindo das habitações cheias Das ruas escuras das cidades em conflitoVocês se encontram para juntos lutar E aprendem a vencerCom os centavos da privação Compram as canoasO dinheiro para o transporte Poupam do alimentoAprendem a vencer!Saindo da luta extenuante pelo necessário Por algumas horasVocês se encontramPara juntos lutarAprendam a vencer.Bertold Brecht

O mundo todo preparou o foguetório que explodiu, ao apagar das luzes de 1999, saudando a entrada mágica do ano em que este país comemorou os 500 anos da chegada dos portugueses à nossa terra, mas ainda está longe o dia em que conseguiremos nos livrar das mazelas produzidas pela qualidade perversa de seu processo civilizatório. Portanto não nos causa estranheza a incômoda existência de um sistema escolar promotor de um tipo sutil de apartheid social fomentador de práticas que caracterizam, em todo o mundo, a escola que privilegia a competição. Em contrapartida, o que nos felicita, em Angra dos Reis e em outros municípios é a existência de um bom número de educadores que ainda insiste na edificação de uma escola de qualidade para os filhos dos setores menos favorecidos. As barreiras que a cada dia temos que superar, e que em certos momentos, se apresentam comoobstáculos intransponíveis, também nos estimulam a realizar ações promotoras do crescimento coletivoe do aprimoramento dos nossos níveis de solidariedade. Sabemos que não nos livraremos com muita facilidade de alguns problemas relacionados a outros fatores de ordem social, mas optamos pela adoção radical dos princípios que orientam a escola cooperativa. Os índices que

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medem a evasão, a multi-repetência e a distorção série/idade estão, há muito, apontando para a necessidade de elaboração de propostas de ensino diversificado cujas linhas gerais estejam alicerçadas no trabalho coletivo. Por outro lado acreditamos que os bons resultados que colhemos em algumas escolas da rede ou nos programas especiais da Secretaria Municipal de Educação são frutos da determinação dos que compreendem a gestão democrática tomo algo a ser construído a partir das ações desenvolvidas no cotidiano. O estatuto contendo algumas regras que orientam o processo de escolha dos diretores e do conselho de escola está pronto, mas as práticas que viabilizam uma verdadeira gestão democrática dependem da melhoria da capacidade de cada um de gerir a si próprio e a seu trabalho e do grau de autonomia que o coletivo estabeleceu como meta de conquista. A escola que reivindica autonomia não pode retirar, por exemplo, o papel higiênico do banheiro, alegando que as crianças o consomem em exagero ou estragam o que deveria ser moderadamente utilizado. Tampouco pode suspender a oferta de frutas durante as refeições devido ao acúmulo de cascas que a meninada deixa pelo chão do refeitório. Este não é o procedimento que adotamos com os que nos são próximos, nem é a melhor estratégia de uma escola comprometida com a construção da cidadania dos filhos das classes menos privilegiadas. Quando ocorrem fatos dessa natureza, é porque a escola está aplicando a lei do menor esforço, sem se preocupar com a construção da responsabilidade individual e da autonomia que ela, como instituição, também vive a reivindicar. O professor no seu espaço de trabalho também comete erros semelhantes. Nem sempre incentiva a produção em grupo alegando que as crianças falam muito quando estão umas de frente para as outras ou se justificam alegando que o profissional que varre a escola não agüenta mais retornar os móveis para a posição original. Resistimos muito pouco às tentações, mas nos embrenhamos em dezenas de reuniões acreditando ser esse o caminho para construirmos sistemas mais progressistas de avaliação, mesmo sabendo que o que corrói a qualidade é, mais que tudo, o distanciamento entre aquilo que queremos alcançar e as nossas práticas cotidianas. As vezes erramos sozinhos, outras em dupla. O erro em dupla ou no coletivo acontece sempre que nos calamos diante de determinados procedimentos que contrariam o que aprendemos em centenas de horas de "capacitação", quase sempre financiadas com verbas públicas. Não raro, deixamos de questionar o engenheiro que mandou pintar a sala de aula com um tom azul-marinho, quase negro, aceitando o argumento de que os alunos sujam com muita facilidade as paredes de cores claras. Não expomos as produções dos meninos porque os nossos companheiros de trabalho reclamam que eles estão escrevendo muito errado e que assim fazendo, estaríamos ensinando errado aos demais alunos. Mantemos o horário da merenda entre nove e dez horas da manhã, porque os professores de matemática e português precisam dar três tempos de aulas consecutivos ou porque qualquer retardamento que atenda ao relógio biológico dos alunos prejudica o horário de saída do pessoal de apoio, que cuida da limpeza e do preparo das refeições. Todos nós aprendemos que a criança precisa de um meio fértil para a continuação de seu desenvolvimento cognitivo e que um ambiente agradável, emético e policromático contribui para o aguçamento dos sentidos e conseqüentemente, para o pleno desenvolvimento da inteligência. Fica mos tristes com a pobreza dos espaços residenciais em que vivem as crianças das classes subalternas, mas também colaboramos muito pouco para que a nossa sala de aula se transforme em um espaço propiciador do surgimento de um alunado mais crítico e criativo, mais participativo e mais solidário.

A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado (Paulo Freire, p. 47).

As frágeis democracias capitalistas do continente latino-americano estão completando vinte primaveras, mas o povo ainda não teve acesso aos benefícios prometidos. Por outro lado, a preparação para o exercício dos deveres e dos direitos, em uma sociedade acostumada a viver sob a égide dos regimes ditatoriais, não é algo muito simples. Somos mais lentos que as raposas e dispensamos boa parte de nosso tempo na organização da sociedade. As raposas, por sua vez, se adaptam com uma incrível velocidade às novas situações que não contrariam diretamente

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os seus interesses. Esta é a razão pela qual, momentaneamente, nos assustamos com o avanço daqueles que jamais acreditaram na democracia e com a desenvoltura que demostram ter ao chegarem sempre à frente daqueles que dedicaram parte de suas vidas à causa pública. Não cabe nesse espaço uma discussão mais aprofundada de como se chegar à construção de uma escola cujo grau de organização possa contribuir para a implantação de um modelo de gestão democrática promotor da melhoria do padrão de ensino, nem cremos que existam fórmulas estanques para a solução desse tipo de problema. Temos visto, país afora, algumas experiências interessantes que estão sendo desenvolvidas dentro dos limites concedidos pelos poderes que lhes dão suporte. No caso específico do Município de Angra dos Reis, o grau de autonomia conquistado pelas unidades escolares favorece a criação de projetos pedagógicos afinados com a realidade que envolve as escolas. Mas a timidez no trato com a liberdade de produzir ainda as impede de caminhar para novas realizações. Muito embora, não caiba nesse texto o relato do conjunto das boas experiências realizadas ultimamente, estamos certos de que algumas delas podem serconsideradas como bastante satisfatórias. A implantação das salas-laboratório na Escola Municipal Benedito dos Santos Barbosa, a experiência de uma nova grade curricular para o ensino regular noturno, a proposta de ensino diversificado para os alunos multi-repetentes e o trabalho desenvolvido com os alunos que apresentam deficiência visual e auditiva possuem em comum a crença no trabalho cooperativo e a certeza de que qualquer proposta de gestão democrática bem- sucedida é fruto de um processo interativo que não se esgota na eleição dos que vão dirigir, nem na indicação daqueles que terão a obrigação de fiscalizar. Acompanhamos de perto o nascimento dos primeiros projetos e estatutos para o gerenciamento dos equipamentos públicos, e passamos por, pelo menos, quatro experiências de gestão em escolas da rede oficial de ensino. Contabilizamos vitórias e fracassos mas continuamos acreditando no caminho que escolhemos. E chegada a hora de chamar a sociedade para um balanço dos resultados que conseguimos alcançar. De imediato, precisamos rever a relação do professor e do aluno com os vários tipos de conhecimento - o local, o global, a cultura em seu sentido mais amplo, construindo um currículo que responda efetivamente às possibilidades e necessidades dos alunos das classes populares. É fundamental que a escola sintonize com os movimentos sociais e se descubra como parte de um coletivo capaz de controlar socialmente o poder, caminho para o atingimento de uma democracia, pois que na verdadeira democracia é a sociedade que controla o poder.

Referências bibliográficasCH M. Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1989.DEMO, P. Educação e qualidade. Campinas: Papirus, 1995.FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.GADOTTI, M. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. São Paulo: Cortez, 1980.HOFFMAN, J. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Mediação, 1995.LUCKESI, CC. Avaliação da aprendizagem na escola: estudos e proposições.São Paulo: Cortez, 1996.MARSHALL,T. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.NASCIMENTO, A. E. A escola do aluno caminhador. Rio de Janeiro:Oficina do Autor, 1997.PROPOSTAS CURRICULARES das seguintes prefeituras: Porto Alegre, Belo Horizonte e Angra dos Reis.PROPOSTAS DE GESTÃO das seguintes prefeituras: Porto Alegre e Angra dos Reis.VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

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