36
João Bosco Machado "Mercosul: Processo de Integração: Origem, evolução e crise", São Paulo, Ed. Aduaneiras Ltda., 2000, Capítulo 1, p. 19-58.

João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

  • Upload
    doanbao

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

João Bosco Machado "Mercosul: Processo de Integração: Origem, evolução e crise",

São Paulo, Ed. Aduaneiras Ltda., 2000, Capítulo 1, p. 19-58.

Page 2: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

C A P Í T U L O I

TEORIAS DA INTEGRAÇÃO

I.1. Integração econômica: definição, formato e etapas

A integração econômica pode ser definida como o processo de eliminação de fronteiras e

barreiras de natureza econômica entre dois ou mais países (= mercados)1. As fronteiras

econômicas estabelecem obstáculos aos fluxos de mercadorias, serviços e fatores de

produção entre países, o que significa que as condições de produção, a regulação local

e outros fatores internos operam em geral como os principais determinantes dos preços

das mercadorias, serviços e fatores no âmbito do mercado nacional. Neste sentido, é

possível afirmar que o objetivo primordial dos processos de integração consiste na

criação de mercados maiores, tomando como base a sugestão clássica de que os

mercados maiores operam de forma mais eficiente do que os menores2.

O engajamento dos países em processos de integração responde a diversas motivações.

Como extrair vantagens de um processo ou como auferir determinados benefícios que

um país não conseguiria alcançar isoladamente? A ampliação do mercado, por meio da

eliminação de obstáculos ao fluxo de mercadorias, serviços e fatores de produção,

deveria propiciar não só melhor alocação de recursos como um incremento da

concorrência, o que significaria preços mais baixos, melhoria da qualidade dos produtos

e aumento da produtividade dos fatores de produção3. No que respeita às relações com

terceiros mercados, o aumento do poder de barganha dos países na esfera das

negociações comerciais ou políticas é um resultado igualmente almejado pelos países.

Processos de integração também podem gerar custos para os países participantes

1 A unidade geopolítica não define necessariamente as fronteiras econômicas. Todavia, como regra geral, é possível associar as fronteiras territoriais de um país não engajado em processos de integração às suas respectivas fronteiras econômicas, as quais demarcam o mercado nacional. 2 O pressuposto implícito nesta afirmativa é o de que “mercados internos” maiores funcionam de maneira mais eficiente do que mercados menores. Por certo, economistas defensores do livre comércio destacariam nesta assertiva que os benefícios do mercado ampliado seriam multiplicados se o país estivesse disposto a integrar-se no mercado mundial, mas que, independentemente do tamanho do mercado interno, sua eficiência dependeria, em última instância, do grau de integração da economia doméstica ao mercado mundial. 3 Neste ponto, quando se discute os possíveis benefícios gerados pela integração econômica, não se está fazendo referência à relação entre os condicionantes reais e os resultados supostamente garantidos pela teoria. Embora os países busquem engajar-se em processos de integração porque esperam extrair daí algum benefício, não existe, evidentemente, garantia de que tais expectativas se cumprirão. Como se verá nas seções seguintes, não há consenso entre os teóricos da integração no tocante à existência de

1

Page 3: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

quando agentes privados ou governos nacionais (ou ambos, de forma concertada)

empreendem ações incompatíveis com os interesses dos demais sócios4.

Segundo o alcance das normas e dos acordos estabelecidos entre as partes, a

integração econômica5 pode apresentar pelo menos sete formas ou etapas distintas,

dispostas com base em ordenamento que pressupõe graus crescentes de integração

econômica e política6:

• A zona preferencial de comércio (ou acordos de cooperação comercial)

caracteriza-se pela eliminação parcial das barreiras alfandegárias em geral, sob a

forma de concessões mútuas (ou não) de redução de alíquotas, com ou sem fixação

de cotas de importação, abarcando parte do universo tarifário sem que se tenha

necessariamente de reduzir ou eliminar outras restrições ao comércio. Esses

acordos, embora violem a cláusula de nação mais favorecida (MFN) do GATT-OMC,

são admitidos entre países em desenvolvimento e são praticados pelos países

desenvolvidos por intermédio do Sistema Geral de Preferências (SGP), gerido pela

UNCTAD, que abriga reduções tarifárias discriminadas com vistas a facilitar o acesso

das exportações provenientes dos países em desenvolvimento;

• A zona de livre comércio caracteriza-se pela eliminação de tarifas aduaneiras e

outras restrições ao comércio entre os países participantes do acordo. Todavia,

cada país preserva sua autonomia na gestão da política comercial em relação a

terceiros países, mantendo tarifas aduaneiras diferenciadas. Em geral, essa forma de

integração comercial demanda a instituição de um regime de origem, com o fim de

evitar a triangularização das importações;

• A união aduaneira caracteriza-se pela ausência de barreiras ao comércio entre os

países participantes do acordo, combinada com a criação de uma tarifa externa

comum (TEC). A operação de uma união aduaneira plena pressupõe ainda a

harmonização dos instrumentos da política comercial e um elevado grau de

motivações de natureza econômica que induzam os países a se engajar em processos de integração. Sequer é possível garantir que os benefícios resultantes serão maiores que seus custos. 4 Um problema correlato estaria relacionado com a capacidade dos governos nacionais de avaliar as pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, de forma que o atendimento de demandas específicas (por proteção, por exemplo) não impeça a sociedade e os demais parceiros comerciais de auferir os benefícios do processo de integração. 5 Embora se estejam discutindo a natureza e as formas da integração econômica, nunca é demais salientar que tal processo não envolve apenas a integração dos mercados no sentido puramente econômico. No mundo real, a integração econômica é também um processo político; envolve agentes sociais distintos, afeta a abrangência e condiciona a gestão das políticas nacionais. 6 Uma classificação semelhante é sugerida por Balassa (1961).

2

Page 4: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

convergência em relação aos efeitos de outras políticas nacionais que possam afetar

o fluxo de comércio entre os países7;

• O mercado comum caracteriza-se pela supressão de barreiras ao intercâmbio de

mercadorias e fatores de produção. Seu funcionamento pressupõe a harmonização

dos instrumentos da política comercial, fiscal, financeira, trabalhista e de previdência

social ou, pelo menos, a convergência de resultados em termos da gestão das

políticas que possam afetar direta e indiretamente o fluxo intra-regional de fatores de

produção;

• A união econômica caracteriza-se pelo estabelecimento de uma autoridade

supranacional que vela pela aplicação das políticas comuns, define critérios e

identifica novas políticas objeto de harmonização e procura garantir convergência de

resultados para o caso das políticas geridas em âmbito nacional. Evidentemente que

esse estágio da integração envolve perda de soberania nacional na gestão de

determinadas políticas. A coordenação de políticas cambiais com vistas a garantir

maior estabilidade entre as paridades cambiais e a livre conversibilidade entre as

moedas implica restringir a autonomia dos Estados nacionais na gestão de

determinadas políticas;

• A integração econômica total caracteriza-se pela criação de uma moeda única e de

um banco central regional independente, configurando a formação de uma união

monetária. Este estágio pressupõe a perda total de autonomia dos estados nacionais

na gestão da política monetária;

• A união política caracteriza-se pela instituição de uma federação de Estados com

autoridade política unificada ou formação de uma confederação de Estados na qual

apenas as áreas acordadas passam a ser objeto de controle de instituições

supranacionais. Em geral, a formação de uma união política deve envolver

cooperação em termos da política externa e de defesa.

Quanto maior a ambição em termos do grau de aprofundamento da integração

econômica, maior o conjunto de políticas envolvidas no processo de negociação e maior

a necessidade de alcançar harmonização ou buscar convergência/simetria de resultados.

Neste sentido, a integração econômica deve acomodar sempre um processo de

integração política cuja abrangência é proporcional à cessão de soberania dos governos

nacionais. Evidentemente que o aprofundamento do processo de integração econômica

implicará “compartilhamento” de soberanias, ou seja, diversos estados nacionais passam

7 A união aduaneira, juntamente com a zona de livre comércio, constitui e exemplifica a essência da definição do GATT aplicada aos processos de integração econômica.

3

Page 5: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

a ser responsáveis pela gestão conjunta e concertada de um conjunto crescente de

políticas e instrumentos comuns.

Muito embora a integração comercial em bases preferenciais contrarie o princípio da

“cláusula de nação mais favorecida”, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT)

prefere tratar com pragmatismo o fenômeno da integração. O GATT faz provisões legais

- detalhadas no artigo XXIV do Acordo - nas quais são definidas as condições a que os

processos de integração comercial devem submeter-se para serem referendados pelo

órgão: (i) as barreiras comerciais incidentes sobre as importações extra-regionais não

devem ser, no geral (“on the whole”), mais altas do que as vigentes antes do

estabelecimento do acordo de comércio; (ii) as barreiras comerciais devem ser

eliminadas para parte substancial das trocas (“substantially all trade”) entre os países

associados; e (iii) os arranjos preliminares ou acordos relacionados com o processo de

integração devem viabilizar a criação de uniões aduaneiras ou áreas de livre comércio

em um período razoável de tempo8. Tem sido freqüente o recebimento pelo GATT de

notificações sobre a criação de acordos preferenciais de comércio9. Todavia, mesmo

dispondo de mecanismos para o exame da compatibilidade dos acordos com o regime

multilateral de comércio, a ausência de parâmetros específicos de desempenho (níveis

de proteção, magnitude relativa dos efeito criação e desvio de comércio, por exemplo)

dificulta e aumenta a subjetividade das avaliações feitas.

Nas demais seções deste capítulo é apresentada uma resenha das teorias da integração

econômica.

I.2. A teoria clássica da integração econômica

A teoria da integração pode ser definida como o ramo da teoria da proteção que trata dos

efeitos da discriminação das barreiras alfandegárias entre países e seus impactos sobre

o fluxo e o padrão de comércio (Lipsey [1960]), diferenciando-se da teoria da proteção

que trata em geral dos efeitos da discriminação entre bens. Ou, segundo uma

conceituação mais ampla - porém menos precisa (sugerida por Andic & Teitel [1977]) -, a

8 A primeira condição parece ser essencial para evitar a ocorrência de desvio de comércio; a segunda parece garantir a prevalência do efeito criação de comércio sobre o efeito desvio de comércio; e, finalmente, a terceira funciona como garantia contra a violação das condições anteriores, evitando atraso na implementação dos acordos de integração (Wonnacott & Lutz [1989] e Lächer [1989]). 9 Entre 1990 e 1994 o GATT recebeu 33 notificações de novos acordos preferenciais de comércio.

4

Page 6: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

teoria da integração, como ramo da teoria do comércio internacional, se ocuparia de

analisar os agrupamentos de mercados nacionais.

O objeto analítico da teoria da integração está basicamente restrito ao estudo dos

impactos da formação de uniões aduaneiras ou mercados comuns sobre o bem-estar

econômico. Não constitui objeto da teoria o estudo dos efeitos gerados pela integração

econômica sobre o nível de atividade, o balanço de pagamentos ou a taxa de inflação, e

tampouco o exame dos problemas relacionados com a harmonização de políticas em

espaços econômicos integrados. Como a criação de mercados comuns, uniões

econômicas e outras formas mais profundas de integração envolve a harmonização de

políticas e as discussões em torno do estabelecimento de mecanismos institucionais

supranacionais, a teoria da integração, em sua forma pura, se restringe à discussão dos

impactos econômicos resultantes da formação de zonas de livre comércio e uniões

aduaneiras. Por isso, nos manuais e textos sobre o assunto a teoria da integração é

usualmente denominada “teoria das uniões aduaneiras”.

Os impactos sobre o bem-estar gerados pela integração econômica podem decorrer de

um número significativo de fatores: (i) a especialização da produção de acordo com as

vantagens comparativas de cada país, o que constitui o caso clássico de ganhos

derivados do comércio analisados com base na teoria das vantagens comparativas; (ii) o

surgimento e a capacidade de aproveitamento de economias de escala; (iii) as

alterações nos termos de troca; (iv) os ganhos de eficiência resultantes do incremento da

competição; e (v) as mudanças na taxa de crescimento de produto. Os fatores (i), (ii) e

(iii) constituem o principal objeto da teoria da integração. Conforme antes salientado, o

fator (v) não é tratado pela teoria. O estudo do fator (iv) foi renegado pela teoria com

base no pressuposto de que a integração econômica ocorre sob condições técnicas

eficientes e dadas (Lipsey, op.cit). Neste sentido, a teoria da integração econômica utiliza

as medidas clássicas da economia do bem-estar - considerando-se os impactos da

formação de zonas de livre comércio e uniões aduaneiras sobre a alocação de recursos -

para avaliar os custos e benefícios de um caso de second best em relação à situação de

livre comércio.

A constatação desses impactos conduziu, durante algum tempo, à consolidação da tese

segundo a qual a integração econômica gera sempre um ganho, em termos de bem-

estar, na medida em que representa uma aproximação mesmo que imperfeita do regime

de livre comércio. O fundamento da tese estava assegurado pelos resultados dos

5

Page 7: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

modelos clássicos de comércio internacional baseados no conceito ricardiano de

“vantagens comparativas”. Se o livre comércio gera melhor alocação global de recursos

em comparação com os regimes comerciais autárquicos, a formação de áreas de livre

comércio ou uniões aduaneiras constitui um movimento em direção ao livre comércio e,

portanto, induz a um aumento do bem-estar, mesmo que este efeito não seja comparável

ao obtido caso vigorassem as condições ideais (= livre comércio). Segundo Habeler

(1936), Beers (1941) e Hawtrey (1944), que vêem os acordos preferenciais como uma

aproximação do regime de livre comércio, esses acordos podem acarretar efeitos

qualitativamente análogos à liberalização comercial não condicionada, mas que dela

serão certamente diferentes em termos quantitativos. Portanto, uma redução das

barreiras comerciais aplicada a um conjunto restrito de países é sempre melhor do que

nenhuma redução, embora uma redução não discriminatória ainda seja melhor do que a

primeira opção.

A tese de que os acordos preferenciais de comércio constituem fonte de benefícios para

os países que deles participam também é defendida por teóricos adeptos do

protecionismo. Baseado na idéia de que os acordos regionais permitem criar um

mercado ampliado e protegido da concorrência das firmas estabelecidas em outros

países, List, por exemplo, defendia desde 1817 o estabelecimento de uma união

aduaneira entre os estados germânicos. Em seu Sistema Nacional de Economia Política,

List apresentou argumentos em favor da implementação de acordos comerciais

voluntários, especialmente quando um país não dispõe de território adequado para o

desenvolvimento das atividades industriais: se a dimensão do mercado local opera como

obstáculo ao crescimento econômico, as uniões aduaneiras constituem o melhor meio de

superá-lo.

Todavia, o argumento segundo o qual os acordos preferenciais não asseguram

necessariamente benefícios para os países que deles participam foi sugerido pelo

próprio Ricardo. Em Os Princípios de Economia Política e Tributação, o autor argumenta

que o país importador pode ter de arcar com custos decorrentes da compra de

mercadorias provenientes de parceiro comercial a preços mais altos do que os vigentes

no mercado internacional10.

10 David Ricardo afirma que “(...) o inconveniente do tratado para o país importador seria, por exemplo, a obrigação da França de comprar produtos da Inglaterra pelo preço natural, quando talvez pudesse compra-los por um preço natural muito mais baixo em outro país. O tratado (= acordo preferencial de comércio) provoca, portanto, uma desvantajosa distribuição do capital geral, que se reflete principalmente no país que é obrigado pelo mesmo a comprar no mercado menos produtivo.”

6

Page 8: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Há relativo consenso entre os economistas no sentido de que a teoria clássica da

integração aduaneira tem como referência seminal a obra de Viner, The Customs Union

Issue. Sua principal contribuição foi demonstrar que, em determinadas circunstâncias, a

formação de áreas de livre comércio ou uniões aduaneiras não constitui

necessariamente um movimento em direção ao livre comércio; ou seja, processos de

integração econômica podem gerar mais custos do que benefícios, reduzindo o nível de

bem-estar em lugar de aumentá-lo.

Os benefícios gerados pelo processo de integração dependeriam da magnitude do efeito

“criação de comércio”, enquanto seus custos estariam associados à magnitude do efeito

“desvio de comércio”, não existindo a priori meios que permitam identificar qual dos dois

efeitos deve prevalecer. As noções de criação e desvio de comércio podem ser

apresentadas utilizando-se um modelo de comércio com três países (A, B e C) que

comercializam um bem específico, trigo por exemplo. Os pressupostos do modelo são os

seguintes: (i) os preços do produto no resto do mundo estão dados; (ii) o sócio “B” do

processo de integração tem preços constantes para os produtos em que o país “A”

apresenta-se como importador potencial, ou seja, admite-se a existência de retornos

constantes de escala no país exportador; (iii) a demanda para os bens que o país “A”

exporta é perfeitamente elástica; (iv) tanto o país “A” quanto o “B” produzem

domesticamente alguns bens a custos maiores do que os do resto do mundo (país “C”);

(v) existe pleno emprego dos fatores de produção; (vi) não há alteração nos termos de

troca; e (vii) não existem custos de transporte e seguro. De forma implícita, o modelo

também assume que os bens são consumidos segundo uma proporção fixa,

independentemente da estrutura de preços relativos, o que permite desconsiderar o

efeito substituição entre os bens. O estabelecimento de tais pressupostos permite que

Viner focalize sua análise nos impactos em termos de bem-estar gerados pelas

alterações de “localização” da produção induzidas pela instituição de uma união

aduaneira.

O modelo apresentado a seguir resume os principais resultados da teoria clássica da

integração econômica. Todos os países produzem trigo, e as importações, quando

existentes, suprem a diferença entre a demanda do mercado nacional e a oferta dos

produtores domésticos. O quadro abaixo reúne informações relativas ao custo de

produção e a tarifas sobre a importação de trigo.

7

Page 9: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Quadro I.1

Criação e Desvio de Comércio

País A B C

Preço do trigo (US$/t) 140 110 90

Imposto de Importação (%) 60% 30% 0%

Custo de internação para o trigo importado

(proveniente do país C)

144

117

-

União Aduaneira A + B

Criação de Comércio substituição da oferta de trigo do país “A” pela

importação de trigo proveniente do país “B”

Desvio de Comércio substituição da importação de trigo proveniente do país

“C” pela importação de trigo proveniente do país “B”

Se os países “A” e “B” decidirem estabelecer entre eles uma união aduaneira, parte ou a

totalidade dos recursos domésticos de “A” empregados na produção de trigo serão

deslocados para a produção de outros bens, como resultado da substituição da

produção local de trigo pela importação mais barata proveniente de “B”. Quando forem

eliminadas as barreiras alfandegárias entre “A” e “B” ocorrerá “criação de comércio”, pois

parte (ou a totalidade) da produção de trigo no país “A” será substituída pela oferta de

trigo produzido no país “B”. Neste caso, o aumento do bem-estar decorre tanto dos

impactos em termos da melhoria na alocação de recursos, como do aumento do

excedente do consumidor resultante da redução do preço do trigo. O efeito “desvio de

comércio” é resultado do deslocamento da oferta do resto do mundo (no caso acima, do

país “C”) que apresenta custos de produção menores do que os do país sócio (país “B”).

Dado que este é menos eficiente na produção de trigo, ainda que o preço interno do trigo

no país “A” tenha caído como resultado da formação da área de livre comércio, o custo

social líquido agora é maior. Neste exemplo, depois de instituída a união aduaneira, o

país “A” estará, indiretamente, “subsidiando” o país “B”, no caso o ofertante de trigo, pela

diferença entre o preço do trigo que este último país oferece e o preço internacional do

trigo. Essa diferença representa para o país “A” um custo em termos de “desvio de

comércio”.

O modelo apresentado acima descreve apenas um dos casos possíveis derivados da

formação de uma união aduaneira: ambos os países estão produzindo determinado bem,

8

Page 10: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

no caso o trigo, em condições de menor eficiência relativa vis-à-vis o resto do mundo e,

portanto, sob proteção aduaneira. Quando forem eliminadas as barreiras comerciais

entre os dois países (A e B), as exportações de trigo proveniente do país “B” capturarão

mercado no país “A”. Tal evento tipifica a “criação de comércio”.

Duas outras situações possíveis devem ser analisadas. Na primeira, apenas o país “A”

produz trigo sob proteção aduaneira, e o país “B” importa o produto do resto do mundo.

Se a união aduaneira entre os dois países implicar a adoção de níveis de proteção

suficientes para eliminar a concorrência estrangeira contra os produtores estabelecidos

no país “A”, então toda a demanda de trigo do país “B” passará a ser suprida pelas

exportações provenientes de “A”. Neste caso ocorrerá exclusivamente “desvio de

comércio”. Na segunda situação, ambos os países dependem exclusivamente das

importações de trigo do resto do mundo para suprir a demanda doméstica. A formação

de uma união aduaneira não provocará qualquer mudança no padrão do comércio

internacional, na medida em que não há nem criação nem desvio de comércio.

Da análise dos resultados do modelo de Viner é possível extrair a seguinte conclusão.

Os processos de integração tenderão a gerar ganhos em termos de bem-estar:

• quanto maior forem as barreiras comerciais entre os parceiros na etapa que precede

o início do processo;

• quanto menor forem as barreiras comerciais incidentes sobre importações de

terceiros países após a integração;

• quanto maior forem as barreiras comerciais em terceiros mercados;

• quanto menor forem os custos relativos de transporte entre os parceiros quando

comparados com o mesmo custo contabilizado na importação de bens provenientes

de terceiros mercados;

• quanto maior for o grau de coincidência entre as pautas de produção dos países

envolvidos e quanto menos semelhantes forem as estruturas de custos de produção

de uma mesma indústria estabelecida em distintos parceiros (Makoner & Morton

[1953])11.

11 Os autores definem, ainda, economias competitivas como sendo aquelas que têm custos de produção similares, e economias complementares como aquelas em que os custos de produção diferem entre si. Portanto, a formação de uniões aduaneiras entre economias complementares tendem a gerar maiores ganhos do que entre economias competitivas.

9

Page 11: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

A ocorrência dessas condições deverá garantir a prevalência do efeito “criação de

comércio” sobre o efeito “desvio de comércio”. É importante salientar que, das cinco

condições citadas, apenas as duas primeiras constituem variáveis nas quais os gestores

de política econômica dos parceiros da união aduaneira podem intervir diretamente. As

demais são variáveis exógenas ou referem-se às características estruturais das

economias.

I.3. Os modelos de segunda geração

Uma das principais limitações do modelo de Viner diz respeito à hipótese segundo a qual

os bens são consumidos em proporções fixas, independentemente da estrutura de

preços relativos12. A segunda geração de modelos de integração (Meade [1956], Gehrels

[1957] e Lipsey [1958]) tratou de eliminar esta hipótese, discutindo os efeitos da

instituição de uniões aduaneiras sobre os termos de troca das economias. Havendo

mudanças nos preços relativos, deve-se esperar alguma alteração nos fluxos de

comércio decorrente da “substituição” entre os bens. O efeito substituição no consumo

de bens (i) tenderia a aumentar o volume das importações provenientes do país sócio e

a diminuir as provenientes de terceiros mercados; e (ii) levaria os consumidores a

substituir o consumo do bem produzido localmente pela compra do bem importado do

país sócio, caso a instituição da união aduaneira alterasse favoravelmente o preço

relativo entre os dois bens. Portanto, ao examinar o impacto da formação de uniões

aduaneiras caberia considerar não apenas o efeito sobre a produção, como o fez Viner,

mas também o efeito sobre o consumo, eludido no modelo pela adoção da hipótese

simplificadora sobre a taxa de transformação entre os bens.13 Como se verá a seguir, a

alteração dos preços relativos resultante da formação de uma união aduaneira pode

compensar os custos gerados pelo “desvio de comércio” por meio do aumento do

12 Krauss (1972) minimiza esta crítica afirmando que a interpretação correta do modelo de Viner requer que se assuma o pressuposto segundo o qual seu propósito não era o estabelecimento de uma lei universal sobre as uniões aduaneiras, mas a concentração de esforços no exame de um aspecto particular do problema, especificamente em que medida o estabelecimento de uma união aduaneira provoca alterações na alocação da produção de bens em um país específico, considerando-se as relações comerciais modificadas com o país associado e com terceiros mercados. 13 Na verdade, Lipsey (1960) chama a atenção para o fato de que a distinção entre efeitos sobre o produto e sobre o consumo não é suficiente para apreender todos os impactos decorrentes da formação de uniões aduaneiras. Seria necessário considerar que os próprios efeitos sobre o consumo geram mudanças na produção. Nesse sentido, uma distinção mais satisfatória entre os dois efeitos poderia ser alcançada pela introdução de duas novas categorias analíticas: a “substituição entre países” e a “substituição entre produtos”. A primeira englobaria os efeitos de criação e desvio de comércio segundo a abordagem clássica de Viner; a segunda estaria relacionada exclusivamente com a investigação dos impactos sobre o consumo e a produção gerados por mudanças nos preços relativos e de seus efeitos cruzados.

10

Page 12: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

consumo do bem produzido na região, dado que os consumidores passam a ser capazes

de ajustar a demanda à taxa de transformação definida pelo mercado, hipótese

evidentemente descartada pelo modelo de Viner.

O gráfico abaixo demonstra a importância do efeito substituição e seus impactos sobre o

consumo doméstico. O país “A” produz o bem “Y” e importa o bem “X” produzido no país

“C”. Em condições de livre comércio, a taxa de substituição entre “X” e “Y” é definida pela

relação de preços entre os dois bens (linha AC). O equilíbrio de livre comércio está

representado pelo ponto e, interseção entre a curva de indiferença II e a reta de restrição

orçamentária AC. A imposição pelo país “A” de uma tarifa sobre a importação do bem “Y”

modifica a taxa de transformação entre os bens (linha A´C´) : os consumidores passarão

a consumir menos do produto importado “X” e aumentarão a demanda pelo bem “Y”,

produzido localmente. A posição de equilíbrio do país “A” se moverá para o ponto h, no

qual os consumidores ajustaram sua demanda à nova taxa de transformação entre os

bens. Mantendo-se os níveis de proteção sobre as importações, caso os países “A” e “B”

formem uma união aduaneira, é possível que, mesmo ocorrendo “desvio de comércio”,

haja ganho em termos de bem-estar. O país “A” passaria a importar o produto “X” do

país “B”, com base nos termos de troca definidos pela linha AB, ou seja, a instituição de

uma união aduaneira não reduz o bem-estar no país “A” comparativamente com a

situação em que o mercado está protegido. O desvio de comércio decorrente da

formação de uma união aduaneira entre os dois países só reduzirá o bem-estar no país

“A” se os termos de troca com o país “B” definirem uma reta de transformação que esteja

abaixo da linha AB. Quaisquer outros termos de troca entre “A” e “B”, gerados pela

formação de uma união aduaneira, que estejam acima da curva de indiferença II e

abaixo da linha AC aumentarão o bem-estar no país “A”, mesmo que o efeito líquido da

eliminação de tarifas entre os países se manifeste pela ocorrência de “desvio de

comércio”.

11

Page 13: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Gráfico I.1 Efeito Substituição e Consumo Doméstico

B

em Y

Bem X O B C

C’

I

I

e

I’’

h

A’

A

I’’

O desenvolvimento e os resultados dos modelos de segunda geração levaram um dos

seus autores (Gehrels [1957]) a concluir que era possível reestabelecer a premissa

anterior a Viner segundo a qual processos de integração econômica sempre produzem

ganhos de bem-estar em relação à autarquia porque constituem um movimento em

direção ao livre comércio14. Lipsey (1956-57) argumenta que a assertiva proposta por

14 Embora se inclua na linhagem das teorias de segunda geração, diferentemente do modelo de Gehrels, o modelo de Meade (1956) não reconhece a existência de ganhos tout court derivados da formação de uniões aduaneiras. Segundo esse autor, a análise das conseqüências da formação de uma união aduaneira deve-se concentrar nos fatores que aumentam ou diminuem o comércio internacional. Evidentemente, se as influências que determinam uma redução do comércio predominarem sobre aquelas que geram um aumento, a formação de uniões aduaneiras reduzirá, de fato, o nível de bem-estar. A principal limitação da análise de Meade decorre do fato de se medirem os impactos sobre o bem-estar considerando apenas alterações marginais nas tarifas aduaneiras, o que significa que as curvas de oferta e demanda em cada um dos diferentes mercados de produtos podem ser consideradas fixas. No entanto, caso a instituição de uma união aduaneira implique mudanças significativas dos níveis de proteção, é possível que venham a ocorrer deslocamentos das curvas de oferta e demanda. Nessas circunstâncias, os impactos sobre o bem-estar deixam de ser óbvios.

12

Page 14: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Gehrels só se sustenta porque seu modelo trata dos efeitos de consumo considerando a

existência de apenas dois bens - um produzido localmente e outro importado.

Conclusões definitivas só poderiam ser extraídas se os impactos decorrentes da

formação de uniões aduaneiras fossem analisados levando em conta três tipos de bens:

(i) os produzidos internamente; (ii) os importados do país sócio; e (iii) os importados de

terceiros países. O quadro abaixo apresenta as estrutura de preços relativos entre essas

três classes de bens para as situações de livre comércio, mercado protegido e união

aduaneira.

Quadro I.2

Preços Relativos e Comércio Internacional (*)

Livre comércio Mercado Protegido (A) União Aduaneira (A + B)

$Ad / $Bd = $Ai / $Bi $Ad / $Bd < $Ai / $Bi $Ad / $Bd = $Ai / $Bi

$Ad / $Cd = $Ai / $Ci $Ad / $Cd < $Ai / $Ci $Ad / $Cd < $Ai / $Ci

$Bd / $Cd = $Bi / $Ci $Bd / $Cd = $Bi / $Ci $Bd / $Cd < $Bi / $Ci

(*) As letras maiúsculas representam os países de origem dos bens; a letra “d” o preço no mercado doméstico do país “A”, e a letra “i” o preço do mercado internacional.

Sob condições de livre comércio, os preços domésticos e internacionais estão alinhados,

o que configura uma situação de ótimo paretiano nos três mercados (países). No caso de

o país “A” estabelecer uma tarifa uniforme contra as importações provenientes de

terceiros países, os preços dos produtos importados aumentarão em relação aos preços

dos bens produzidos domesticamente, o que reduzirá o bem-estar no país que optou por

empregar uma política protecionista, mas não afetará o nível de bem-estar nos países

“B” e “C”. Finalmente, no caso de “A” e “B” decidirem formar uma união aduaneira,

ocorrerá um alinhamento dos preços entre os dois países, o que se expressa pela

condição de ótimo da primeira linha. Portanto, do ponto de vista do país “A”, tanto a

associação com o país “B” como a manutenção do mercado doméstico protegido

representam situações subótimas (desigualdades paretianas). De modo geral, é muito

difícil afirmar em qual dos dois casos o nível de bem-estar é maior15.

15 Melvin (1969) contesta a hipótese de Gehrels e Lipsey, os quais identificam os termos de intercâmbio de equilíbrio com a taxa marginal de transformação entre os bens produzidos no país especificado e seu sócio no processo de integração. Esse autor argumenta que tal identidade só é válida sob condições muito especiais; em geral, a taxa de transformação entre bens numa união aduaneira encontra-se em algum ponto entre a taxa preexistente e a nova taxa que surge após o seu estabelecimento. Este ponto é definido pelas condições de demanda que passam a vigorar a partir da instituição do mercado unificado.

13

Page 15: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Ainda na mesma linha dos modelos de segunda geração, outros autores, como Bhagwati

(1971), tentaram relaxar o pressuposto do modelo de Viner segundo o qual os custos de

produção são constantes em um país específico, hipótese que permite,

simultaneamente, representar a taxa de transformação entre os bens com base numa

função côncava e abandonar a curva de transformação linear adotada no modelo de

Lipsey.

O Gráfico I.2 resume o argumento anterior. A curva TT representa a fronteira de

possibilidades de produção de um país específico e OZ a linha de expansão do produto,

que é exatamente igual à linha de consumo e de preços, se as taxas de transformação

entre os distintos bens consumidos forem consideradas fixas. Os termos de troca estão

representados pela inclinação da reta To. Portanto, sob condições de livre comércio, a

quantidade produzida domesticamente corresponderá a Q3, e a quantidade consumida,

a C3. A diferença entre consumo e produção será suprida por meio das importações. A

imposição de uma tarifa às importações sem discriminação de origem (autarquia) altera

os termos de troca da economia e provoca um deslocamento da produção para Q1 e do

consumo para C1, o que representa uma redução do bem-estar. Se o país considerado

formar uma união aduaneira com outro país, cujos termos de troca estejam definidos

pela inclinação da linha Q2C2, haverá um aumento do bem-estar em comparação com a

situação de autarquia.

Gráfico I.2 Fronteira de Possibilidades de Produção e Expansão do Produto

X O T

Y

T

Z

Q1

t

t

c1

To

c2’

Q2

Q3

c3

c2

.

..

..

.

.

14

Page 16: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

O aumento do consumo de C1 para C2 pode ser decomposto em dois efeitos. O

primeiro, que representa os “ganhos de produção”16 gerados pelo estabelecimento da

união aduaneira, está representado pelo deslocamento de C1 para C2´, e as perdas

derivadas do desvio de comércio estão representadas pelo deslocamento do consumo

de C2´ para C2. Portanto, quando se avaliar os resultados do modelo, abandonando a

hipótese de custos constantes, mesmo que se considere os coeficientes de consumo

como sendo fixos, caso os ganhos de produção sejam maiores do que os efeitos sobre o

consumo derivados do desvio de comércio, o estabelecimento da união aduaneira

provocará um aumento do bem-estar.

Duas formas de generalização da teoria da integração podem ser formuladas a partir dos

resultados dos chamados modelos de segunda geração:

• A primeira, de caráter geral, aplica-se a qualquer posição de subótimo examinada

pela teoria do second best (Lipsey & Lancaster [1956-57]) nos termos que se

seguem: quando no âmbito de uma união aduaneira se estabelece uma mudança

dos níveis de proteção para um conjunto restrito de produtos, cresce a possibilidade

de que ocorra um aumento do bem-estar se as tarifas aduaneiras incidentes sobre

esses produtos diminuírem, em lugar de serem completamente eliminadas. Isto

significa que, se pequenas alterações na estrutura de proteção deslocarem a

economia para uma posição próxima ao ponto de subótimo - e se esta posição de

equilíbrio é única -, então grandes variações dos níveis de proteção terão maior

probabilidade de gerar uma redução do nível de bem-estar. A hipótese subjacente

nesta proposição é a de que a consistência do equilíbrio de second best estaria

garantida em razão da pequena magnitude do efeito preço gerado por alterações

pouco significativas dos níveis de proteção;

• A segunda generalização está relacionada com a proposição de Lipsey (1956-57)

sobre a magnitude dos gastos nos três tipos de bens - os produzidos no próprio país,

os importados do país associado e os importados de terceiros mercados. Quanto

maior for a proporção da renda despendida na compra de bens domésticos em

relação à compra de bens provenientes do resto do mundo, tanto maior será a

probabilidade de que a instituição de uma união aduaneira produza aumento de

bem-estar. Isto significa que os países que devem negociar a formação de uniões

16 Os chamados ganhos de produção configuram, do ponto de vista do país especificado, uma redução da quantidade produzida (de Q1 para Q2), representando, portanto, o efeito “criação de comércio”.

15

Page 17: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

aduaneiras serão preferentemente os que realizarem uma proporção elevada de seu

comércio com o país associado e concentrarem uma proporção elevada de seus

gastos na compra de bens produzidos domesticamente.

I.4. A teoria das uniões aduaneiras na década de sessenta: a ampliação do escopo analítico

A década de sessenta caracteriza-se por uma mudança de abordagem da teoria das

uniões aduaneiras, marcada pela ampliação e pelo refinamento de sua estrutura

analítica17. A abordagem de Viner concebia a união aduaneira como fenômeno não

econômico, de forma que se pudesse concentrar a análise em seus efeitos econômicos

propriamente ditos. Tal concepção foi preterida em favor de uma investigação

aprofundada das razões que justificariam o surgimento dos processos de integração.

Essa alteração de curso representa um duplo questionamento acerca da capacidade da

teoria clássica de explicar: (i) por que os governos nacionais adotam opções em termos

de política econômica distintas da de livre comércio18; e (ii) o interesse cada vez maior

dos países em desenvolvimento pelos processos de integração econômica como meio

de superar os obstáculos domésticos e estruturais ao crescimento econômico.

De acordo com a teoria clássica do comércio internacional, não haveria razão para que

os países buscassem associar-se a processos de integração se eles pudessem, em vez

disso, optar por uma redução unilateral dos níveis de proteção. Portanto, como

instrumento de liberalização do comércio, uma política de proteção baseada na aplicação

de tarifas não preferenciais é qualitativamente superior, em termos da alocação de

recursos, à instituição de uniões aduaneiras. Neste caso não há razão para criá-las,

como tampouco há justificativas de natureza econômica que expliquem a funcionalidade

da adoção de políticas protecionistas, se o livre comércio garante um nível de bem-estar

superior à qualquer forma de autarquia. Em termos teóricos aqui se colocam, antes

mesmo de examinar o impacto (segundo a abordagem original de Viner) do

17 Krauss (1972), no meu entender, sugere, exageradamente, que a teoria das uniões aduaneiras tenha sofrido durante a década de sessenta uma “mudança radical de orientação teórica”. O que parece ter ocorrido com a análise teórica não resulta de uma mudança de seus fundamentos, mas, antes, da percepção dos limites da abordagem tradicional inspirada por Viner que não havia dispensado nenhuma atenção aos elementos que explicariam a “preferência” dos governos pela adoção de esquemas de liberalização comercial preferencial em relação a processos de liberalização comercial não condicionados. 18 Neste particular, do ponto de vista estrito da teoria ortodoxa do comércio internacional, a análise clássica de Viner poderia ser considerada como um exercício de avaliação das conseqüências econômicas da “irracionalidade do governo”, uma vez que a referência da best practice é a adoção do livre comércio .

16

Page 18: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

estabelecimento de uniões aduaneiras sobre o bem-estar, as motivações de natureza

econômica que podem induzir os países a optar por esquemas preferenciais de

liberalização comercial vis-à-vis um processo de liberalização não condicionada. De

fato, a discussão colocada em novos termos requer uma teoria econômica do

protecionismo, cujos fundamentos permitiriam comparar esquemas de proteção

alternativos - a autarquia pura versus a união aduaneira -, em lugar de simplesmente

confrontar o problema da proteção com a situação de livre comércio.

Cooper & Massel (1965) foram os autores que mais se destacaram ao analisar a questão

das uniões aduaneiras sob esse novo ângulo. Se uma alocação mais eficiente de

recursos não é produto da instituição de uma união aduaneira, por que os países optam

pela adoção de políticas protecionistas em bases preferenciais? A partir dessa premissa,

os autores citados procuraram investigar os fundamentos analíticos para o

estabelecimento de uma união aduaneira fundada na hipótese de que a ação deliberada

de dois países na busca de espaço para a concertação no âmbito da política tarifária

pode constituir uma opção mais vantajosa, em termos de resultados, do que as ações

individuais dos países19. Evidentemente que essa abordagem constitui, em termos

teóricos, uma certa ruptura dos modelos tradicionais de integração econômica, dado que

os “custos e benefícios” da união aduaneira deixam de ser analisados exclusivamente do

ponto de vista de seus impactos sobre a produção e o consumo privados de bens.

Se, de fato, não se pode tomar a melhoria da alocação de recursos como uma

justificativa para a instituição de esquemas de liberalização articulados entre um conjunto

restrito de países, então outras fontes potenciais de benefícios explicariam o

estabelecimento de uniões aduaneiras. A teoria sugere a existência de duas fontes

distintas: (i) os efeitos dinâmicos passíveis de serem analisados no âmbito da teoria

clássica da integração; e (ii) as alterações nos termos de troca.

Os chamados efeitos dinâmicos são apresentados sob a forma de dois elementos

distintos. O primeiro refere-se aos efeitos da proteção sobre a eficiência de determinada

empresa, dadas a estrutura de mercado e a tecnologia. A redução dos níveis de

proteção eleva a renda dos fatores intensivos na produção de bens exportáveis, ao

mesmo tempo que reduz a renda dos fatores intensivos na produção de bens

19 Segundo sugere Krauss (1972), a idéia de que a cooperação entre países no âmbito da política tarifária pode produzir melhores resultados do que a opção individual pela liberalização comercial constitui, em última instância, uma impossibilidade, se fossem considerados os pressupostos da economia convencional segundo os quais a utilidade só é derivada do consumo de bens.

17

Page 19: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

importados. Do ponto de vista da empresa individual, à medida que se reduzem as

tarifas, os fatores intensivos na produção de bens exportáveis tornam-se “menos

eficientes” do que os fatores empregados intensivamente na produção de bens

importados. Neste caso, o efeito global sobre a eficiência das empresas dependerá da

ponderação dos efeitos renda e substituição decorrentes da alteração do preço relativo

dos fatores e, evidentemente, do efeito líquido sobre as empresas “ganhadoras” em

relação às “perdedoras” (Corden, [1970]). Mesmo nos casos em que o efeito líquido

decorrente da formação de uma união aduaneira seja o aumento da eficiência das

empresas, considerados todos os condicionantes descritos anteriormente, ainda assim

não há como apresentar argumentos que favoreçam a eficácia da redução tarifária

preferencial em relação à liberalização comercial não condicionada. O segundo elemento

estaria relacionado com o aproveitamento de economias de escala no âmbito de uma

união aduaneira. A possibilidade de geração de economias de escala dependerá do

padrão de concorrência em cada indústria. Caso a estrutura de mercado se caracterize

pela existência de um grande número de produtores para cada bem (i.e. concorrência

perfeita), não será possível estabelecer uma relação entre ampliação de mercado e

custos decrescentes, a não ser no caso pouco provável da ocorrência de economias

externas às firmas e internas à indústria20.

Não obstante, alguns autores (Wonnacott & Wonnacott [1967] e Willianson [1971])

agregaram à análise clássica de criação e desvio de comércio a avaliação dos efeitos

decorrentes da geração de economias de escala. Neste particular, dois efeitos devem

ser considerados, quando se analisa o surgimento de economias de escala no âmbito de

espaços econômicos integrados. O primeiro, de redução dos custos por unidade de

produção doméstica, gera aumento do bem-estar se a união aduaneira provocar uma

expansão do mercado; e o segundo efeito, de supressão do comércio, resulta da

substituição de importações de um fornecedor externo, mais eficiente, pela produção

doméstica, menos eficiente. Corden (1972) sugere que a agregação do fenômeno das

economias de escala à análise da teoria clássica das uniões aduaneiras deva fazer a

discriminação entre o efeito de redução de custos e o efeito de criação de comércio

20 Se uma estrutura de mercado for considerada competitiva, a análise dos impactos das economias de escala dependerá do nível de custo médio mínimo de longo prazo da empresa que opera no mercado local. Mesmo que a formação de uma união aduaneira viabilize a redução de custos pelo aproveitamento de economias de escala, a manutenção de proteção em relação às importações provenientes de terceiros mercados pode ser necessária caso os custos mínimos do produto estejam acima do preço vigente no mercado internacional.

18

Page 20: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

propriamente dito21. As economias de escala geram reduções de custos, mas estas são

de natureza distinta das propiciadas pela criação de comércio, a qual não implica

melhoria de eficiência da fonte interna de abastecimento, mas apenas a substituição da

produção local menos eficiente pela oferta mais eficiente oriunda do país associado.

Segundo tal interpretação, as economias de escala constituem um fenômeno que

deveria ser analisado de forma complementar aos efeitos de criação e desvio de

comércio22. Todavia, se o pressuposto ricardiano de retornos constantes de escala for

abandonado, torna-se praticamente impossível dissociar os dois eventos. No caso da

criação de comércio, quando há produção em ambos os mercados e a formação de uma

união aduaneira viabiliza a substituição da produção do país sócio pela oferta local a

preços menores, a redução de custos e a criação de comércio são, em última instância,

fenômenos difíceis de separar. De maneira semelhante, a formação de uma união

aduaneira só produzirá desvio de comércio no caso de a ampliação do mercado propiciar

- via economias de escala -, uma redução dos custos de produção.

Portanto, se considerados os efeitos dinâmicos - o impacto sobre a eficiência das

empresas e o aproveitamento de economias de escala -, seria problemático sustentar a

hipótese segundo a qual o estabelecimento de uniões aduaneiras possui alguma

vantagem sobre o regime de liberalização não condicionada, respeitados os

pressupostos do modelo clássico. Veremos, a seguir, se as alterações nos termos de

troca podem constituir um elemento gerador de benefícios capazes de explicar o

surgimento das uniões aduaneiras.

Os modelos até aqui analisados assumem implicitamente a hipótese de que o país em

foco é pequeno (small country) se comparado com o resto do mundo, ou mesmo com o

país associado. Nestas circunstâncias ele é a única parte beneficiada ou prejudicada

21 Aqui, os ganhos associados ao aproveitamento de economias de escala são analisados considerando-se a existência de apenas um produtor na indústria. Mesmo sob o paradigma da concorrência perfeita, o tratamento teórico conferido ao fenômeno deve se limitar ao caso raro da ocorrência de economias externas à firma e internas à indústria, dada a incompatibilidade lógica entre a ocorrência de rendimentos internos à firma e o equilíbrio competitivo (Sraffa [1988]). 22 O próprio Viner (1950) atribui importância, embora secundária, aos impactos decorrentes da formação de uma união aduaneira sobre as economias de escala, especificamente a possibilidade de que a ampliação do mercado propicie a redução dos custos unitários de produção. De novo, os impactos sobre o bem-estar dependerão neste caso da magnitude do efeito “desvio de comércio”, ou seja, do deslocamento da oferta de terceiros países pela exportação proveniente do parceiro comercial de dentro da área de livre comércio, combinado com a possibilidade de que ocorra “supressão de comércio”, na medida em que a redução dos custos unitários de produção permita a determinado país alcançar a escala mínima de produção requerida para iniciar a produção doméstica e fazer cessar as importações de terceiros mercados. À propósito, esse autor afirma: “(...) it does not seem probable that prospects of a reduction in unity-costs of production as a result of enlargement of tariff area are ordinarily substantial, even when the individual member countries are quite small in economic size.”

19

Page 21: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

pelo estabelecimento de uma união aduaneira, pois não é factível conceber qualquer

alteração nos termos de troca entre as partes associadas e o resto do mundo. Todavia,

se um país for suficientemente grande para afetar os termos de troca e se apenas o

resto do mundo operar com custos crescentes, então a imposição de tarifas em relação a

terceiros países melhorará a posição relativa do país. De forma alguma o componente de

criação de comércio derivado da criação de esquemas de proteção preferenciais é

afetado pela alteração dos termos de troca; mas o desvio de comércio que deveria

implicar perda de bem-estar para o país interessado é compensado pela melhoria dos

termos de troca (Johnson, [1962]). Neste caso, o estabelecimento de uma união

aduaneira operaria no sentido de redistribuir o bem-estar mundial, melhorando a posição

do país interessado em relação ao resto do mundo23.

Restaria ainda investigar as razões pelas quais os efeitos sobre os termos de troca

poderiam constituir uma justificativa para o estabelecimento preferencial de uma união

aduaneira vis-à-vis o processo de liberalização não condicionada. O argumento

econômico em favor da integração econômica decorreria da constatação de que a

redução não preferencial das tarifas pode reduzir os termos de troca, enquanto no caso

do estabelecimento de uma união aduaneira, desde que preservado o intercâmbio

comercial com terceiros mercados, a melhoria dos termos de troca pode compensar as

perdas geradas pelo desvio de comércio. Tais perdas serão menores quanto mais

significativa for a melhoria nos termos de intercâmbio (Cooper & Massel [op.cit]). Assim

como a alteração dos termos de troca constitui um dos poucos casos de exceção à regra

de livre comércio, o mesmo argumento também é válido para justificar a opção pelo

estabelecimento de uma união aduaneira. A assertiva anterior apresenta, todavia, uma

série de condicionantes: a demanda do país deve ser grande o suficiente para afetar os

preços internacionais, a produção do resto do mundo deve apresentar retornos

decrescentes de escala, e os custos do país associado não devem apresentar variações

significativas. Mesmo assim, o resultado líquido da implementação da união aduaneira

dependerá da conjugação dos ganhos derivados da criação de comércio e da melhoria

dos termos de troca, deduzidas as perdas associadas ao efeito desvio de comércio e,

23 O mesmo autor introduziu uma sofisticação analítica no modelo ao considerar a hipótese de que o país associado opere com retornos crescentes de escala. Se o preço do país associado aumenta como resultado do desvio de comércio, a perda para o país interessado será maior quando comparada com uma situação em que o primeiro país opere com custos constantes de escala. A magnitude do desvio de comércio será, entretanto, menor quanto menos elástica for a curva de oferta do país associado. Uma situação limite é explorada por Melvin (1969). Nela, nenhum comércio com o resto do mundo subsiste após o estabelecimento da união aduaneira. Neste caso, como toda a demanda direcionada ao resto do mundo é desviada para o país associado, o país em questão perde toda a vantagem potencial derivada da melhoria dos termos de troca que seria de fato aproveitada caso se optasse pela adoção de tarifas não preferenciais.

20

Page 22: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

afinal, da comparação do impacto total da união aduaneira sobre o bem-estar com os

efeitos resultantes de uma redução tarifária unilateral.

Poucos autores concentraram atenção nos impactos da alteração dos termos de troca e

sua relação com o estabelecimento de uma tarifa externa comum no âmbito de uma

união aduaneira. Arndt (1968) salienta a possibilidade da existência de conflitos de

interesse entre as partes associadas, especialmente quando as tarifas prévias ao

estabelecimento da união aduaneira forem distintas. Seu principal argumento é o de que,

se a adoção de uma tarifa externa comum exigir que o país associado eleve suas tarifas

enquanto seu parceiro mantém a mesma estrutura de proteção, então o segundo país

obterá uma vantagem com o estabelecimento da união aduaneira que se expressa na

melhoria dos termos de troca.

A análise tradicional dos impactos da formação de uniões aduaneiras sobre os termos de

troca assume implicitamente que as estruturas tarifárias dos países não diferem no

momento que antecede o início do processo de integração. Na hipótese, porém, de que

os países mantivessem políticas tarifárias ótimas antes do estabelecimento da união

aduaneira, ficariam eliminados os incentivos para que buscassem integrar seus

mercados (Arndt [op.cit.]).

A importância dos processos de integração como instrumento capaz de incrementar o

poder de barganha dos países associados frente a outros parceiros comerciais constitui

um fator desprezado pela literatura tradicional, quando esta examina as possíveis

motivações que levariam um conjunto de países a buscar formas articuladas de gestão

da política comercial. Quanto maior o número de países associados e suas respectivas

participações no comércio mundial, maior o poder de pressão sobre os parceiros

comerciais no sentido de buscar-se o atendimento de concessões solicitadas em termos,

por exemplo, do acesso privilegiado a determinados mercados. A contrapartida exigida

dos países associados é o estabelecimento de consenso em torno da melhor política

comercial a seguir, da política que atenda ao interesse do conjunto dos parceiros.

Evidentemente que, quanto maior for o número de países que compõem a união

aduaneira, menor será a possibilidade de consenso entre as partes em relação à política

comercial que representa o interesse coletivo.

A característica que define a abordagem tradicional da teoria das uniões aduaneiras

refere-se à estimação do bem-estar da comunidade como função exclusiva da

21

Page 23: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

quantidade de bens privados disponíveis para o consumo. Quando os gestores de

política e a comunidade atribuem algum valor aos “bens públicos”, então a avaliação

desses bens explicaria ações que, do ponto de vista da teoria ortodoxa, são

consideradas irracionais.

Seguindo nessa direção, autores como Johnson (1960)24 passaram a abordar a proteção

como um objetivo “não econômico”, porém desejado pela comunidade. Considerações

sobre a autarquia como um bem público permitiriam tratar o problema do manejo das

políticas governamentais segundo critérios tradicionais de maximização; ou seja, o bem

público assume a forma de uma preferência coletiva, de um objetivo a ser alcançado

com o menor sacrifício possível em termos de redução da renda real da comunidade e

que será submetido igualmente aos condicionantes e às restrições de ordem política e

econômica. Esse objetivo coletivo pode ser avaliado (quantitativamente), por exemplo,

pela produção industrial doméstica, a qual gera alguma satisfação para a comunidade

independentemente do maior ou menor nível de consumo de bens privados garantido

pela combinação entre a oferta local e os produtos importados. Como se verá a seguir, o

argumento desenvolvido por esse autor permite demonstrar que, em circunstâncias

restritas, determinadas ações governamentais, como, por exemplo, a negociação de uma

união aduaneira, são preferíveis à liberalização unilateral ou mesmo à liberalização

comercial recíproca.

O gráfico I.3 ilustra o argumento acima. Nele são apresentadas as condições de

funcionamento do mercado doméstico supondo a existência de uma demanda coletiva

por produção industrial. As ofertas mundial e doméstica estão representadas,

respectivamente, pelas curvas 1Sf e ShSh. Supondo que o preço corresponde a Sf e a

curva de demanda do mercado doméstico é DD, então o equilíbrio de livre comércio

implica uma quantidade demandada igual a 1A, parte suprida pela produção local OM e

o restante via importações na quantidade correspondente a PA. A demanda coletiva por

produção industrial doméstica está representada pela reta VV e o custo de seu

abastecimento pela reta ShPSh+u. Para a quantidade 1P produzida domesticamente, o

valor marginal do bem público supera o custo marginal de produção no valor

correspondente a PK. Nestas circunstâncias, se o governo quer maximizar a preferência

coletiva por produção doméstica, ele será obrigado a proteger a indústria local, fixando

24 Este autor não estava preocupado explicitamente com o problema da gestão da política comercial submetida às restrições impostas pela implementação de uma união aduaneira, mas, antes, com a discussão mais ampla das razões pelas quais os governos podem adotar políticas econômicas irracionais quando avaliadas do ponto de vista da teoria econômica tradicional.

22

Page 24: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

uma tarifa sobre as importações. A tarifa que maximiza o bem-estar público deverá

elevar o custo do produto internado para Sf × (1+t). O ponto de maximização está

representado por S, no qual o valor marginal do bem público (produção doméstica) se

iguala a seu custo marginal. O ganho, em termos de bem-estar representado pela

maximização da preferência coletiva, é definido pelo triângulo PKS. A demanda

total do mercado será de 1+tA´, a quantidade produzida localmente aumenta de OM

para OM´, e o novo volume de importações corresponde a P´A´.

Consideremos agora uma situação um pouco mais complexa. O país em foco deixa de

produzir apenas um bem uniforme e passa a produzir um conjunto heterogêneo de bens

com distintos graus de eficiência em relação aos demais competidores, alguns dos quais

devem ser protegidos para que se mantenha o nível ótimo de produção doméstica,

enquanto outros são competitivos e, portanto, dispensam proteção e podem ser

exportados. Nesse contexto, qualquer redução unilateral dos níveis de proteção gera

uma perda de bem-estar, a não ser que o país consiga obter uma contrapartida em

termos de acesso ao mercado de outros países, como compensação pela abertura de

seu próprio mercado. O aumento da oferta de bens para exportação - representado pelo

deslocamento da curva ShSh para a direita - compensa a redução da produção

doméstica resultante da redução das tarifas de importação, preservando a quantidade do

bem coletivo.

23

Page 25: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Gráfico I.3 Produção Doméstica como Bem Público

O

V

D

D

A

A’

Sh

V

K

P

I

P’

S

Sh + u

Sh

l+ t

l Sf

M M’ M’’’ M’’

O mesmo argumento utilizado para assinalar as vantagens de uma redução tarifária

envolvendo reciprocidade com outros parceiros comerciais em relação a uma redução

unilateral presta-se para demonstrar as vantagens de concessões preferenciais de

acesso a mercado negociadas no âmbito de uma união aduaneira em relação a uma

simples redução recíproca das tarifas de importação. Se a instituição de uma união

aduaneira implica a ocorrência de desvio de comércio, quer isto dizer que cada parceiro

pode oferecer ao país associado um incremento das exportações (e de sua respectiva

produção industrial), sem que haja perda representada pela diminuição da oferta do bem

público.

Portanto, o que confere vantagem à liberalização comercial negociada no âmbito de uma

união aduaneira é o fato de que toda a redução tarifária preferencial gera impactos

positivos exclusivamente sobre o país associado. Nesse caso, o aumento das

importações do país em foco corresponde exclusivamente a um aumento das

exportações do país associado. Como contrapartida, as perdas sofridas pelo país que

reduz suas tarifas serão compensadas pelo aumento da produção doméstica e das

exportações direcionadas para o mercado do país associado com o qual se negociou o

24

Page 26: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

acesso preferencial ao seu mercado. Distintamente, a manutenção do nível de bem-estar

público no país em foco requereria maior diminuição da produção industrial de um

parceiro comercial específico, caso uma redução tarifária fosse negociada em bases não

preferenciais, ou seja, envolvendo um conjunto amplo de parceiros comerciais.

As vantagens da união aduaneira sobre qualquer outra forma de liberalização comercial

estão definidas por sua capacidade de satisfazer à demanda da sociedade pelo bem

público com o menor sacrifício possível em termos do consumo de bens privados. Isto é

possível mediante uma alteração na alocação doméstica de recursos, a qual permite a

substituição de produção doméstica menos eficiente pelas exportações mais eficientes

do país associado. Os impactos negativos sobre a produção doméstica são

compensados pelo aumento das exportações para o país associado e pela melhoria na

alocação de recursos decorrente da transferência de capital dos setores que competem

com as importações para setores competitivos e exportadores. Mutatis mutandis, o

mesmo argumento pode ser reproduzido para o país associado25.

Um modelo com resultados semelhantes foi desenvolvido por Cooper & Massell [op.cit.]

para a análise de economias em desenvolvimento. Constatada a existência de algo a

que os autores chamam de “preferência social por atividades econômicas específicas” -

as quais poderiam ser classificadas como indústrias -, tratou-se de investigar como

essas atividades são impactadas por formas alternativas de gestão da política comercial.

O modelo, que é bastante simples, supõe a existência de duas economias que produzem

bens diferenciados com rendimentos constantes de escala e custos de produção não só

diferentes para cada um dos distintos bens, como maiores do que os vigentes no

mercado internacional. Evidentemente que, nessas circunstâncias, as indústrias locais só

manterão oferta suficiente para atender o mercado nacional se estiverem protegidas.

Dado que os níveis de eficiência são distintos, cada indústria deve contar com tarifas

suficientes para compensar a diferença entre o custo doméstico e os preços

internacionais do produto em questão. O custo de produção de determinado bem em

cada mercado representa uma medida do custo privado que é sacrificado para a

elaboração de uma unidade do bem cotado a preços internacionais.

25 No entanto, o mesmo Johnson demonstra que, caso os governos locais tenham a alternativa de conceder subsídios diretos à produção, a instalação de uma união aduaneira deixa de ser o mecanismo mais eficiente para garantir a maximização do bem público.

25

Page 27: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Caso os dois países negociem a formação de uma união aduaneira, os bens passarão a

ser produzidos no país que tenha custos mais baixos. Ademais, as indústrias de menor

custo poderão operar com um nível de produção maior que o preexistente, uma vez que

agora cada uma delas atenderá não só à demanda do mercado local, mas também à do

país associado. Portanto, com a instituição da união aduaneira, cada país deve

especializar-se na produção dos bens em que estão concentradas suas vantagens

comparativas vis-à-vis o parceiro comercial, prática que, em última instância, viabiliza em

ambos os países uma redução do produto privado, sacrificado para a produção de cada

um dos diferentes bens. O que o modelo permite extrair como conclusão é que uma

política tarifária gerida conjuntamente por dois países é sempre preferível à proteção

comercial unilateral, especialmente quando os parceiros preservam (= desejam

preservar) atividades industriais que apresentam menor eficiência em relação à oferta

mundial competitiva.

Da análise dos modelos de Johnson e Cooper & Massel deve-se depreender a

fragilidade dos modelos com bens públicos como fundamento das justificativas de

natureza econômica para o estabelecimento de uniões aduaneiras. Se, de um lado, a

análise dos efeitos econômicos das uniões aduaneiras foi preterida em favor de uma

investigação aprofundada das razões que justificariam o surgimento dos processos de

integração, do outro, os resultados apontados pelos modelos sugerem que as vantagens

econômicas que podem ser auferidas da instituição de uniões aduaneiras dependem de

um amplo conjunto de condicionantes. Em conseqüência dos parcos resultados gerados

pela teoria durante a década de sessenta, reestabeleceu-se de alguma forma o

paradigma de Viner segundo o qual as uniões aduaneiras devem ser concebidas

basicamente como um fenômeno não econômico.

I.5. A “nova teoria do comércio internacional” e a integração econômica Até o final da década de setenta, os desdobramentos da investigação teórica do

fenômeno da integração econômica estiveram subordinados ao referencial analítico

desenvolvido no âmbito da teoria convencional do comércio internacional, dominado

pelos paradigmas microeconômicos de concorrência perfeita e retornos decrescentes de

escala. O fluxo de comércio entre os países refletiria a existência de diferenças

tecnológicas ou na dotação de fatores, o que estimularia a especialização produtiva nos

bens em que os custos de produção fossem relativamente mais baixos (Ricardo [1817] e

26

Page 28: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Ohlin [1933]). Nessas condições, as vantagens comparativas (custos relativos de

produção) determinariam as pautas de exportação e importação dos países e,

conseqüentemente, o padrão de inserção das economias no comércio internacional. A

instituição de áreas de livre comércio ou de uniões aduaneiras não afeta as vantagens

comparativas estabelecidas, representando apenas uma “etapa” em direção ao

estabelecimento do regime de livre comércio. Neste sentido, segundo o paradigma de

Viner, o objeto da teoria das uniões aduaneiras é a análise dos custos e benefícios da

integração econômica tendo por base a avaliação da substituição do regime de autarquia

pelo acesso preferencial (e recíproco) a determinado mercado, bem como de seus

impactos sobre a alocação doméstica de recursos e sobre os fluxos de comércio entre

países associados e não associados.

Os novos rumos tomados pela teoria da organização industrial a partir de princípios da

década de oitenta alteraram de forma substancial os fundamentos dos modelos de

comércio internacional e, de maneira direta, afetaram as reflexões teóricas a respeito do

fenômeno da integração econômica. Os modelos de comércio passam a incorporar as

hipóteses de retornos crescentes de escala26 e diferenciação de produto. Esses fatores

definem uma nova relação entre estrutura de mercado e padrão de comércio.

De maneira bastante simplificada, o argumento pode ser assim detalhado. Ao contrário

do que atesta o modelo tradicional de Ricardo/Heckscher-Ohlin, mesmo quando a

tecnologia e as preferências dos consumidores são estritamente semelhantes, há ainda

assim espaço para trocas internacionais, na medida em que a especialização da

produção em determinados produtos (ou linhas de produtos) garante a geração de

ganhos de escala que de outra forma não seriam obtidos se o país optasse pela

produção de uma variedade maior de bens. Caso os mercados funcionem sob condições

de concorrência imperfeita e neles os rendimentos de escala desempenharem um papel

significativo na determinação dos custos de produção, as firmas deverão definir um vetor

de produção que maximize os lucros no curto prazo. Nessas condições e sob um regime

de livre comércio, as importações do país corresponderão àquela variedade ou conjunto

de bens que as firmas decidiram não produzir localmente, o que dará origem a

intercâmbio do tipo intra-industrial (Krugman [1979, 1980 e 1981], Helpman [1981 e

1984] e Helpman & Krugman [1985]). Portanto, os ganhos potenciais do comércio são

26 Conforme destacado na “nota 21”, embora a teoria clássica da integração admitisse a ocorrência de retornos crescentes de escala, essa análise só podia tratar de casos particulares e restritos, compatíveis com a lógica do equilíbrio concorrencial.

27

Page 29: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

ainda maiores num mundo em que prevalecem indústrias com retornos crescentes de

escala27. Quanto maior o tamanho do mercado, mais intensas as economias de escala e,

portanto, mais baixos tenderão a ser os custos de produção. No caso oposto, em que

todos os países decidem proteger determinado segmento industrial, o resultado será

uma fragmentação dos mercados, e as indústrias operarão com escalas de produção

ineficientes. A existência desse trade-off indica que a melhor estratégia de política

econômica é aquela que assegura a especialização da indústria local na produção de

bens em que as economias de escala sejam mais intensas.

Deve-se ainda considerar o problema da distribuição dos custos e benefícios do

comércio no âmbito da nova teoria. O surgimento de imperfeições de mercado

associadas, por exemplo, às inovações tecnológicas e às economias de aprendizado

torna assimétrica a apropriação dos ganhos derivados do comércio: fatores de produção

estabelecidos em determinado país podem gerar remuneração extraordinária, não

passível de ser eliminada pelo processo de concorrência. Dessa maneira, incrementos

importantes de bem-estar podem concentrar-se em um país, enquanto outros parceiros

comerciais incorrem em perdas (Brander [1987]).

A especialização intra-industrial e a geração de economias de escala permitem que

países, mesmo tendo estruturas industriais concorrentes28, se beneficiem do comércio

internacional. Conseqüentemente, num mundo em que a alocação da produção não

segue mais de forma exclusiva a regra das vantagens comparativas, a regulação dos

fluxos de comércio não pode ser contestada como estratégia de política econômica.

Daí a possibilidade de que a instituição de áreas de livre comércio ou de uniões

aduaneiras produza uma expansão do mercado que permite incrementar a eficiência

produtiva e alterar o padrão de inserção internacional das economias, especialmente

quando predominam estruturas industriais oligopolísticas nas quais as economias de

27 É importante destacar que os novos modelos de comércio internacional não descartam o papel das vantagens comparativas na determinação do padrão de troca entre países. Isso significa que o padrão de comércio entre países passa a ser “duplamente” determinado, não só pelos custos relativos de produção/dotação dos fatores, mas também pela existência de estruturas oligopolísticas de mercado nas quais a possibilidade de aproveitamento das economias de escala torna-se o fator determinante dos custos de produção e, portanto, induz à segmentação produtiva entre países, dando origem ao intercâmbio do tipo intra-industrial. 28 Indústrias concorrentes significam estruturas produtivas estabelecidas em países diferentes que produzem os mesmos bens com tecnologia semelhante, ou seja, combinando fatores segundo proporções quase idênticas (Krugma n & Helpman [1985]).

28

Page 30: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

escala desempenham um papel preponderante na determinação dos custos de

produção29.

Do ponto de vista da relação entre o processo de integração e a alocação intersetorial de

recursos, a nova teoria de comércio internacional amplia os resultados analíticos da

teoria convencional. O efeito criação de comércio implicaria exclusivamente a

especialização setorial da produção, segundo a dotação de fatores existentes em cada

país, gerando o desaparecimento de certas indústrias e a transferência de capital e

emprego para outras. A ocorrência de comércio intra-indústria induz à especialização da

produção no interior de cada setor, o que significa que os impactos da integração

econômica sobre a distribuição das atividades econômicas entre os países não levariam

necessariamente ao desaparecimento de setores, mas apenas à redefinição das pautas

de produção das firmas e à especialização destas em linhas específicas de produto o,

que sem dúvida minimiza o impacto reestruturante do processo de integração quando se

comparam tais resultados com os previstos pela teoria tradicional de comércio.

Apresentados sob a forma de um “novo paradigma”, os resultados da nova teoria do

comércio internacional parecem mais abrangentes do que na realidade o são. Na

verdade, os modelos oferecem resultados restritos, condicionados pelas hipóteses

empregadas e cujas dificuldades de generalização definem um escopo de aplicação

bastante limitado. Mesmo assim, as reflexões teóricas acerca do fenômeno da

integração econômica ganham nova dimensão na medida em que a avaliação dos custos

e benefícios decorrentes da formação de uma união aduaneira deixa de ficar restrita à

analise clássica de criação e desvio de comércio.

Em síntese, os modelos da chamada “nova teoria do comércio internacional” permitem

lidar com fenômenos associados ao processo de integração econômica, tais como a

ampliação das escalas de produção, a redução de distorções de mercado, a ocorrência

de comércio intra-indústria e a diversificação da pauta de bens disponíveis para o

consumo, muito embora não façam referência explícita aos impactos decorrentes da

formação de mercados regionais unificados. Esses modelos operam com base nas

hipótese de concorrência imperfeita e retornos crescentes de escala e permitem,

portanto, analisar os processos de integração em termos de seus impactos sobre o

29 Segundo sugere Krugman (1991), as vantagens da expansão do mercado (e da produção) deverão superar os efeitos distributivos (negativos) gerados pela proteção; nestes casos, tanto os proprietários de recursos escassos quanto os de recursos abundantes estarão em melhor situação.

29

Page 31: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

tamanho dos mercados, escalas e pautas de produção, o que caracteriza situações de

interdependência e efeitos cruzados no processo de concorrência entre as firmas

localizadas em distintos mercados nacionais.

Os primeiros estudos inspirados na “nova teoria do comércio internacional” que abordam

especificamente o problema da integração econômica datam de meados da década de

oitenta. A contribuição original de Venables (1987) analisa o caso em que a formação ou

a ampliação de uma união aduaneira determina simultaneamente: (i) a intensificação da

competição entre as firmas estabelecidas no mercado regional; e (ii) o aumento da

escala de produção dessas mesmas firmas. Trabalhando com um modelo de

concorrência oligopolística, as firmas produzem um bem homogêneo com retornos

crescentes de escala. Como existe livre entrada, a quantidade de firmas que operarão no

mercado regional será determinada endogenamente e dependerá do tamanho desse

mercado e das escalas de produção que viabilizam, em termos econômicos, a operação

das firmas.

Seguindo essa mesma linha de argumentação, Smith & Venables (1988) formalizam um

modelo de equilíbrio parcial baseado na teoria dos jogos que trata de avaliar os

impactos da criação de mercados regionais integrados sobre a capacidade das firmas de

discriminar preços em distintos países. Na verdade, os autores supõem que, num estágio

que precede a efetiva integração dos mercados - como decorrência da existência de

barreiras ao comércio intra-regional -, as firmas se deparam com distintas curvas de

demanda em cada país. Se as firmas detiverem o poder de discriminar preços e,

ademais, atenderem a uma parcela elevada da demanda doméstica, os preços do

produto tenderão a ser mais elevados, quando comparados com um mercado em que os

custos de arbitragem são mais baixos.

A eliminação dos obstáculos à arbitragem entre países constitui, de fato, o principal

impacto dos processos de integração regional. Com a eliminação das barreiras ao

comércio, muda o comportamento das firmas. A quantidade a ser produzida pela firma

será determinada levando-se em conta a existência do “mercado ampliado” no qual a

oferta das firmas concorrentes está dada. Portanto, como conseqüência dessa alteração

no ambiente econômico, as firmas perdem capacidade de discriminar preços entre os

diferentes mercados nacionais. O resultado é que os preços diferenciados cobrados em

distintos mercados apresentarão tendência à uniformização. Evidentemente, se os

custos de arbitragem forem nulos, os preços ao produtor serão idênticos,

30

Page 32: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

independentemente do local em que se vendam as mercadorias. A redução do poder de

mercado obriga as firmas a praticar preços mais baixos. As firmas terão lucros menores

e tenderão, conseqüentemente, a expandir a oferta com vistas a ampliar a parcela do

mercado local por elas atendida30. Tal movimento deverá, por sua vez, causar um

impacto negativo sobre os fluxos de comércio intra-regionais31.

Numa extensão da análise de Smith & Venables (op.cit.) desenvolvida por Cavalcanti

(1994) é explorada a possibilidade de as firmas tomarem decisões acerca da localização

de suas plantas. Esse autor desenvolveu um modelo no qual a capacidade de

discriminação de preços por parte das firmas não depende apenas da magnitude dos

custos de arbitragem entre os mercados, mas também dos custos de transporte. Estes

funcionam como barreiras entre países e, por conseguinte, sempre definem um certo

grau de segmentação entre os mercados. Portanto, numa situação em que o mecanismo

de arbitragem opera sem obstáculos, a existência de custos de transporte não permite a

completa equalização de preços; ou seja, as firmas preservam a capacidade de

discriminar preços até o limite definido pelos custos de colocação dos produtos de seus

concorrentes em seu próprio mercado. O modelo complementa a análise original de

Smith & Venables (op.cit.) e também a de Venables (op.cit.) apoiando-se, basicamente,

nas contribuições de Hortsmann & Markussen (1992) e Rowthorn (1992). Utilizando o

ferramental da teoria dos jogos, esses autores tentam explicar como as firmas tomam

decisões relativas à localização espacial de suas plantas. Segundo tais modelos, a

competição entre as firmas pode ser descrita por um processo em dois estágios. No

primeiro são definidos o número e a localização das plantas; e no segundo, a alocação

da produção entre as distintas plantas. O equilíbrio do jogo em dois estágios determina

a estrutura de mercado. Conforme sugere Cavalcanti (op.cit.), a aplicação dessa idéia ao

modelo de Venables corresponde, basicamente, à inclusão de um novo estágio no jogo

competitivo, anterior ao da escolha das capacidades produtivas, no qual as firmas devem

decidir quantas plantas serão montadas, bem como suas respectivas localizações.

30 Venables (1990) faz uma análise diferenciada em relação ao modelo anterior. Buscando uma abordagem dinâmica, a tomada de decisão das firmas passa a ser avaliada supondo a existência de “dois estágios”. No primeiro, a firma decide a produção total, dada a oferta das firmas concorrentes. No segundo estágio, ela define a quantidade que será alocada em cada mercado. Tal abordagem permite tratar situações intermediárias não contempladas no modelo anterior, especificamente o caso em que os mercados não são nem completamente segmentados nem completamente integrados. 31 Nesse particular, o resultado do modelo contraria o senso comum: ao invés de favorecerem o crescimento dos fluxos entre os parceiros comerciais, os processos de integração tendem a produzir um impacto desfavorável sobre as correntes de comércio intra-regionais.

31

Page 33: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

Recuperando o marco da economia regional, Krugman (1990) apresenta modelos

derivados da nova teoria do comércio internacional, os quais levam em consideração os

efeitos da concentração espacial das indústrias sobre a capacidade de geração de

economias de escala e de redução dos custos de transporte 32. O aspecto relevante

aportado pela nova abordagem é que ela permite avaliar, em bases teóricas, o impacto

dos processos de integração comercial sobre a distribuição espacial das atividades

econômicas33.

Dado um processo de integração qualquer, existe a possibilidade de a produção

manufatureira concentrar-se em determinada região ou área? Segundo a abordagem

proposta, é possível identificar duas forças centrípetas cuja ação conjunta preserva um

centro produtor de manufaturas: (i) o desejo das firmas de se estabelecerem próximas ao

grande mercado consumidor; e (ii) o desejo dos trabalhadores de terem acesso aos

produtos produzidos por outros trabalhadores. Outro fator funciona como força centrífuga

em relação ao processo de concentração espacial das firmas: o incentivo destas para se

moverem em direção à periferia com o objetivo de abastecer mercados localizados e o

mercado de produtos agrícolas ou de se estabelecerem próximas à região produtora de

matéria-prima.

À vista da interação dessas duas forças e do fato de que a concentração espacial gera

economias de aglomeração, o aproveitamento de economias de escala e a minimização

dos custos de transporte dependerão diretamente da dimensão do mercado já

estabelecido. Assim, quanto maior for esse mercado, maiores serão as chances de um

determinado pólo atrair uma quantidade crescente de indústrias, o que, por sua vez,

reforça a operação das economias de escala e permite que os custos de transporte

sejam reduzidos. Portanto, ao analisar os impactos do processo de integração, não seria

possível negligenciar a existência de um trade-off entre os impactos positivos gerados

pelas economias de aglomeração, de um lado, e a distribuição assimétrica dos

benefícios da integração dos mercados, decorrentes da tendência à concentração

espacial da indústria, de outro.

32 A diferença básica entre esse modelo e os estudos de economia regional é a de que as economias de escala, os custos de transporte, o tamanho e distribuição geográfica dos mercados são tratados como variáveis endógenas. 33 “(...)The basic story of geographic concentration that I will propose here relies on the interaction of increasing returns, transportation costs and demand. Given sufficiently strong economies of scale, each manufacturer wants to serve the national market from a single location. To minimize transportation costs, she chooses a location with large local demand. But the local demand will be large precisely where the majority of manufactures choose to locate. Thus there is a circularity that tends to keep a manufacturing belt in existence once it is established” (Krugman [op.cit]).

32

Page 34: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

I.6. Regionalismo versus multilateralismo: o debate ressuscitado Até a década de setenta, o rápido crescimento do comércio mundial e a falência dos

processos de integração entre economias em desenvolvimento puseram em destaque o

papel do sistema multilateral de comércio como um dos elementos responsáveis pelo

dinamismo da economia mundial no pós-guerra. A disseminação de acordos

preferenciais de comércio34, o aprofundamento do processo de integração econômica na

Europa e a decisão dos EUA - defensor intransigente do multilateralismo - de negociar

acordos preferenciais de comércio induziram, a partir de meados da década de oitenta, à

retomada do debate acerca dos custos e benefícios da integração econômica em

contraposição à estratégia de liberalização comercial unilateral combinada com a adesão

ao sistema multilateral de comércio (Krueger [1995]). Será vantajoso para um país

buscar o engajamento em processos de integração como meio de acelerar o

desenvolvimento econômico? Os acordos regionais desempenham o papel de building

blocks no estabelecimento de um sistema comercial multilateral mais aberto ou eles, de

fato, criam mercados maiores, porém isolados da concorrência internacional? Há

elementos de natureza empírica que sugerem a compatibilidade entre os acordos

preferenciais regionais e o desenvolvimento do sistema multilateral de comércio? No

caso dos acordos regionais entre países em desenvolvimento, não existirá o risco de que

os programas de liberalização comercial venham a ser preteridos em favor do

estabelecimento de zonas preferenciais ou uniões aduaneiras fechadas ao comércio com

terceiros países?

Ao investigar as questões propostas no parágrafo anterior, uma extensa literatura retoma

os argumentos da teoria clássica da integração: os acordos regionais de comércio

representam um caso de second-best35 em relação ao regime de livre comércio; a opção

pelo regionalismo não faria sentido se os países pudessem aderir ao sistema multilateral

de comércio36. A emergência de acordos regionais de comércio deverá implicar a perda

34 A Associação das Nações do Sudeste da Ásia (Asean), o FTA, entre os EUA e o Canadá e a posterior formação do NAFTA, o Programa de integração e Cooperação Econômica entre a Argentina e o Brasil, bem como o Mercosul, são os principais acordos de comércio negociados a partir da década de oitenta. 35 Na verdade, alguns autores passam a sugerir que os processos de integração constituem um caso de third-best. A situação de livre-comércio representaria o mundo ideal (first-best). No mundo real (second-best), os países protegem suas indústrias, mas a proteção está, como regra geral, submetida à cláusula de nação mais favorecida (MFN) do GATT (Frenkel [1998]). 36 “(...) In a fully integrated global economy, regional integration would no longer be a relevant issue.” (Lächler [1989]).

33

Page 35: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

de consistência do sistema multilateral de comércio. Mais do que esquemas

complementares, áreas de livre comércio e uniões aduaneiras aparecem como

substitutos (concorrentes) do sistema GATT/OMC. Se essa tendência se consolidar, a

difusão de acordos regionais será acompanhada do acirramento das fricções comerciais

e do aumento das barreiras entre blocos de países (Krueger [1997] e Melo & Panagariya

[1993])37. Neste particular, seria essencial estabelecer mecanismos que garantissem a

compatibilidade entre os acordos regionais e o multilateralismo de forma a evitar conflitos

entre suas respectivas regras e a promover a gradual convergência entre os dois

esquemas (Ostry [1997]).

Apesar da prevalência dos argumentos clássicos em favor da adesão ao

multilateralismo, não é possível identificar consenso na literatura em torno das supostas

desvantagens do regionalismo, mesmo porque os resultados empíricos acerca dos

impactos líquidos da integração regional sobre o bem-estar não são conclusivos38.

Krugman (1991), por exemplo, desenvolveu um modelo no qual, com a presença de

custos internacionais de transporte, um mundo formado por três blocos comerciais -

desenhados a partir dos limites naturais dos três maiores continentes -, apresenta

incrementos em termos de bem-estar em relação ao regime multilateral de comércio

baseado na cláusula de nação mais favorecida (MFN)39. Um trabalho na mesma linha,

elaborado por Goto & Hamada (1997), utiliza o instrumental da teoria dos jogos para

examinar a questão dos incentivos à adesão dos países aos acordos preferenciais de

comércio. Estruturas industriais simétricas, estabelecidas em distintos países, produzindo

produtos diferenciados sob condições de concorrência imperfeita e retornos crescentes

de escala podem favorecer a formação de blocos comerciais. Todavia, a distribuição dos

benefícios será assimétrica: países que ficarem fora do bloco terão redução de bem-

37 A análise dos custos e benefícios do processo de integração do Mercosul foi um dos alvos desse debate. A reorientação do comércio em favor dos membros do bloco e a elevada participação de bens de natureza capital-intensiva nas exportações intra-regionais receberam apreciação negativa por parte de um economista do Banco Mundial, sugerida, aliás, no próprio título do trabalho em sua primeira versão de 1996: “Does Mercosur´s Trade Performance Justify Concerns About the Effects of Regional Trade Arragementes? Yes! A principal conclusão do estudo é que “(...) the changing trade patterns analyzed in this study suggest that Mercosur was not internationally competitive in sectors where intra-trade was growing more rapidly, and that domestic producers were re-orientating exports to local markets in order to charge the higher prices associated with the most restrictive trade barriers. This reduces third countries’ potential exports to Mercosur and under many circumstances can reduce their welfare relative to an equivalent non-discriminatory trade liberalization.” (Yeats [1997]). 38 Ver, a propósito, as coletâneas de artigos organizada por Ito & Krueger (1997) e por Frankel (1998). 39 Argumento semelhante é desenvolvido por Frankel & Stein (1998), segundo o qual existe um “nível ótimo de regionalização” que é determinado pela magnitude dos custos de transporte. Se as preferências comerciais intra-regionais excederem esse nível, então o bloco se transforma no que os autores denominam

34

Page 36: João Bosco Machado Mercosul: Processo de … · produção entre países, ... pressões de segmentos econômicos e de a elas resistir, ... diversos estados nacionais passam

estar, enquanto os parceiros de dentro do bloco auferirão ganhos. Países que ficarem de

fora do primeiro acordo passarão a dispor de incentivos para a formação de outro bloco

comercial concorrente. Na hipótese de sobrevir uma guerra comercial entre os dois

blocos, se houver um bloco hegemônico em termos de tamanho, este terá capacidade

para manipular seus termos de troca e tenderá, conseqüentemente, a fixar tarifas de

importação mais elevadas.

Em contraposição, há argumentos que apontam para a funcionalidade do regionalismo.

Entre suas vantagens, a criação de áreas de livre comércio ou de uniões aduaneiras

pode: (i) agilizar o processo de eliminação de barreiras aos fluxos internacionais de

comércio; (ii) operar com esquemas intermediários, conferindo maior maneabilidade ao

sistema multilateral de comércio; e (iii) produzir resultados em termos negociais (por

exemplo, acordos de investimento) que facilitam o avanço do multilateralismo e

viabilizam seu aprofundamento (Ostry [op.cit.] e Lächler [op.cit.]). Ademais, o

regionalismo pode ser uma opção vantajosa quando os países não estão preparados

para se engajarem em movimentos de liberalização comercial abrangentes e não

condicionados. Neste particular, processos de integração regional podem facilitar o

estabelecimento de estratégias de abertura comercial ampla, principalmente se

considerada a possibilidade de que tais programas poderiam requerer gradualismo no

que concerne à sua implementação. Durante o período de transição algumas indústrias

permanecerão protegidas. Neste caso é preferível, por exemplo, que elas sejam

protegidas em bases regionais, por meio de uma tarifa externa comum, do que

nacionalmente, uma vez que o mercado regional ampliado oferece melhores

oportunidades para o aproveitamento e geração de competitividade do que o mercado

nacional isolado.

supernatural zone. Neste caso, as preferências intra-regionais não encontram relação com a dimensão geográfica do bloco.

35