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JOÃO ISABEL CONTOS SERRANOS Edição da CÂMARA MUNICIPAL DE MANTEIGAS 1988 (uma digitalização de www.joraga.net com pistas de leitura… 2015 10)

JOÃO ISABEL CONTOS SERRANOS Edição da CÂMARA

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JOÃO ISABEL

CONTOS SERRANOS

Edição da CÂMARA MUNICIPAL DE MANTEIGAS

1988 (uma digitalização de www.joraga.net com pistas de leitura… 2015 10)

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DO AUTOR: -- Estela, poesia (1918) -- Três problemas sanitários urgentes, ensaio (1948) -- O Infante de Sagres, confierência (1960) -- A família e a educação religiosa dos filhos, con-ferência (1960) -- Quando a Neve Cai, poesia (1961) -- Cântico da Montanha, poesia (1977) -- Mare Nostrum, poesia (1984) Biblioteca Municipal de Manteigas L -- 821 134 3-3 ISA -- 00154

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JOÃO ISABEL

ILUSTRAÇÕES DE ISOLINO VAZ

EDIÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL DE MANTEIGAS

1988

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Título: CONTOS SERRANOS Autor: João Isabel Editor: Câmara Municipal de Manteigas © 1988 by João Isabel e Câmara Municipal de Manteigas para esta edição (de 1988) Ilustrações: Isolino Vaz Fixação de texto e revisão de provas: Elsa Isabel e José Duarte Saraiva Fotocomposição, impressão e acabamento: PEN-TAEDRO, Publicidade e Anes Gráficas, Lda. Praceta da República, Loja B, Póvoa de Sto. Adrião 2675 ODIVELAS Dep. Legal: 20596/88

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Ao povo da minha terra

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A ABRIR...

João Isabel era médico e poeta: eis duas credenciais seguras para que pudesse vir a ser um bom contista. E é-o.

Fialho de Almeida, Rodrigo Paganino, Miguel Torga, Fernando Namora e Araújo Correia foram todos médicos e são dos melhores contistas da nossa literatura; alguns são também poetas de rara estirpe. Quanto ao lado poético, é geralmente aceite que o conto compartilha muito das carac-terísticas da poesia, pela economia de meios a ambos exigi-da: “Arte de sugestão, o conto aproxima-se muitas vezes da poesia e dai até a fuga para a sua forma de literatura fantás-tica”1. Nos versos que publicou, J. Isabel mostrou-se um po-eta emérito e lembro a obra “Mare Nostrum”2, em que o soneto atinge um nível de excepção, além da musicalidade e do ritmo que o acompanham.

Como poeta cristão que a cada passo se mostra, com uma unção religiosa a pairar pelos seus versos, alarga esta sua mundovisão aos contos, cuja elaboração se esten-deu por vários anos até bem perto da sua morte, como me foi revelado por uma das suas filhas. Diz-me D. Elsa Isabel: “alguns foram feitos quando se encontram ainda cheio de força e saúde, outros, como a “Ti Clotilde” (creio que o úl-timo), já bem, bem doente”3.

1 (1) - “Teoria da Literatura” Vítor Manuel Aguiar e Silva, Coimbra, Livraria Almedina, 3.* Edição, 1973. 2 (2) - João Isabel, Guarda, 1984. 3 (3) - Carta de Lisboa de 27/X/87.

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Julgo que só um foi publicado em vida do autor -- “Um Pastor da Serra”4, sinal de que J. Isabel esperava algu-ma coisa mais do seu estro e talvez aguardasse altura opor-tuna para lhes juntar outros ou dar outra forma.

Vergílio Ferreira, no prefácio da edição dos seus “Contos”5, opõe o conto ao romance, comparando aquele a uma cerâmica ou a uma gravura, e este a um quadro a óleo. Assim será, ou muito perto disso, embora não se esqueça de assinalar que a diferença visa em particular a “dimensão” mais ligada à estrutura básica do que ao tamanho.

Seja como for, os “Contos Serranos” de J. Isabel, que agora vêm a lume, são um retrato da Serra e da sua gente, com personagens não arrancadas à vida mas que são a própria vida. Algumas delas nem envolvidas estão pelo “manto diáfano” queirosiano, de tal forma encarnam pesso-as que nós conhecemos e com quem lidamos no dia-a-dia da vida serrana. Não serão as mesmas mas são tão parecidas que umas e outras se confundem, como face do real.

Gosto sempre de lembrar a observação, profunda e cheia de ironia que Fernando Namora escreve em prosa in-trodutória da sua “Resposta a Matilde”6, sobre as relações da Arte com a vida. E sabem porquê? Só porque, quanto mais entra na vida e tenta debuxá-la, mais o artista sobres-sai como artista, naquela interpenetração entre a vida e a Arte, que é sempre um segredo fascinante e inextricável.

Que manancial de figuras típicas, enraizadas numa topografia que é parte da serra que tanto amou: o pastor João Badana, bem desenhado, enquadrado no seu meio, na cena cheia de vida que é a venda da cabra (”chiba" lhe cha-mará na sua linguagem rústica); o António Canário e o Chico Perdiz, na rivalidade sempre em aberto na vila de Mantei-

4(4) Ver 'A Guarda” n.º 3931 de 8/VI/84. 5(5) - Vergílio Ferreira, ”Contos” Arcadia, Lisboa, 1976.

6(6) - “Resposta a Matilde” Fernando Namora, Livraria Bertrand, Lisboa, 1980.

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gas, entre os ”macavencos” e os ”macarroncos“ (os de cima da vila e os de baixo), numa luta dura, na rudeza das perso-nagens, em que se vê aplicada a pena de Talião; no conto “Dois Parceiros”, a antítese marcada pelo Albino Marra e o Joaquim Cuco -- aquele, servidor capaz de dar a vida pelo amo; este, trabalhador revolucionário e anarquista, conta-minado por ideias marxistas; o Pataquinho, figura tão típica de qualquer terra provinciana; a Maria, criada do Prior, que é quem tudo manda e dispõe lá em casa... e fora dela. De todas estas figuras, como de outras de que aqui se não fala, nos são dados retratos incisivos, rápidos e sugestivos, tendo como pano de fundo tradições, usos e costumes bem assina-lados e vivos no espaço a que a obra esta ligada.

Quando se consultar um roteiro, mapa ou carta to-pográfica dos lugares calcorreados pelas personagens saídas da pena de João Isabel, não podemos encontrar maior ri-queza de nomes do que os que aparecem nos seus “Contos Serranos": os Cântaros, os Piornos, o Covão da Ametade, o Mondeguinho, as Penhas Douradas e o Observatório, a Nave e a Lagoa Comprida -- e tantos mais que tenho de omitir - como nos enchem de vitalidade a alma, com o ar puro e fresco que lá se respira e nos chega pelas correntes frescas da memória e pelo debrum artístico que o autor põe, em linha emocional, a sair do seu coração, grande e terno como era. E a dominar, embora lá no fundo, no vale glaciar do Zêzere, a sua Manteigas, sempre atractiva, bela e viridente. Mas repare-se, é a vila de Manteigas, física e hu-mana: em personagens como Joaquim de Matos e Manuel da Cunha, tão bem delineados na azáfama do seu trabalho honrado, estamos a ver os antepassados autênticos dos ac-tuais industriais do burgo, que fizeram a sua grandeza.

Não se pode pensar que E só o banal e corriqueiro que atrai João Isabel: a sua mirada vai para o Alto e, no do-mínio estético, a sua visão raia pelo limite do simbólico: es-tou a lembrar-me do conto “Rosa Maria”. Pecadora? Peran-te Maria Madalena, que é esta pobrezinha, tão humana e

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tão fraca? Coberta pelo manto alvinitente da neve - realida-de do quotidiano na Estrela -- que outra coisa é senão o símbolo da pureza em que o narrador envolve a sua perso-nagem? É que ela nem chega a pecar e a recta formação do narrador bem interpretou o instante e ocasional apelo car-nal do seu amor: o destino levou-lhe o noivo e eis o seu martírio de jovem, que, a ser mãe, morreu envolta na bran-cura da Natureza...

Não podemos esquecer a grandeza de alma dos “Dois Parceiros” -- a igualdade no infortúnio, no abraço que os uniu, patrão e servidor; o capital e o trabalho, não na luta de classes, mas no bom entendimento estribado no amor, até à hora da morte.

A política ao vivo, no seu verso e reverso, vistos no diálogo espontâneo e natural do pobre pastor da Serra -- aqui a vox populi -- a criticar amargamente o grande político que tanto revolucionou a mentalidade portuguesa nos prin-cípios do século -- Afonso Costa. Mas muito menos do que pensou e se esforçou por fazer!

No conto “João Brandão” pelo simples acaso da pa-recença física, podemos ver como os extremos se tocam: a bondade de Manuel da Cunha e a brutalidade (não isenta de coração, às vezes) trouxe como consequência uma pro-tecção mútua, forma hábil mas real de vencer a dureza das travessias da serra: o perigo e o risco perante a segurança e a protecção, como que convertidos em autêntico mito, que não renega a origem remota do conto como forrma narrati-va.

Na “Noite de Consoada” não E cheio de significado aquele perder-se na Sena o Zé Isidro, bloqueado pela neve, para consoar com a família? E a busca e o encontro com a festança respectiva? Em “DoisParceiros” tem sabor a merecer comentário espe-cial a entrada do Albino Marra e do Joaquim Cuco na Igreja, bêbedos como de costume, a pedir perdão à Senhora da

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Graça pelas suas faltas -- aqui fundamentalmente o vício dos copos.

Mas nem todas as personagens são boas: João Isa-bel sabe bem, e a sua arte não o deixa enganar, que não li-damos com anjos no dia-a-dia. E eis porque aparecem traços de vilania e maldade, como a vingança do conto “Bairrismo” - "olho por olho, banho por banho”, que tem na base a velha rivalidade entre as duas freguesias da vila. E, nesta mesma ordem de ideias, porque não lembrar a violência a que sujei-tam o Pataquinho, morto por partida cruel e de mau gosto, fazendo-o ingerir álcool puro, na farmácia da terra? Se os contos de João Isabel não apresentassem personagens des-te jaez, eram menos credíveis, ou pelo menos sofriam do não respeito â verosimilhança, que, como já se deixou en-tender e o leitor poderá verificar, é mais que conseguida.

A linguagem é simples, tersa e natural, com diálo-gos espontâneos no seu tom coloquial, nos quais o autor se mostra um conhecedor atento da língua da sua terra, como fonte inesgotável de palavras e expressões de cariz local. Sem contar com os provérbios que são proferidas ou inicia-dos e dão uma riqueza assinalável e documental ao texto, a semelhança do que fizeram Aquilino para as suas terras do demo e Nuno de Montemor para a região egitaniense.

Pela economia que lhe é inerente, não posso num prefácio exemplificar a variadíssima gama desta riqueza, mas o leitor topá-la-á a cada pé de passada, tão evidente ela se lhe apresenta.

Mas, se mo consentem, deixem-me dar-lhes esta simples amostra, colhida em flagrante no seu discurso nar-rativo ou na boca das suas personagens:

-- “chiba”, “pagar a murta”, “calar a sanfona”, “bico calado”, “ia-me dando uma coisa”, “boca fechada não cria vareja” (em “Um Pastor da Serra"'); -- “por estas e por outras”, “para mão de ensino”, “dar escândula”, “sem mais aquelas”, ”danados daquele in-

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cidente”, “pedradas que até faziam lume” (em ”Bair-rismo”); -- “um rais me parta”, “E vai ele, disse-me”, “O Albino, na sua, respondia”, “e vai eu, atiro-me”, “faça o que V. Ex.ª quijer" (em “Dois Parceiros"); -- “Quem merca os requeijões?” “É uma terra derran-cada“, “Tens umas mãos de prata“, “Senão não botava cá”, “deixa-me lá ir”, ”abusava da pingoleta”, “que fa-çam cruzes na boca” (em A Ti Clotilde dos Requei-jões”); -- “não estar com mais aquelas”, “não lhe ligavam ne-nhuma” “ala que se faz tarde”, “tirar palhinha com ele”, “sou homem p'às curvas”, “tens mais sorte que o Facadas” (em “O Pataquinho”); -- “deixa-me lá ir”, “cal quê?”, “a patroa e os-filhos”, “dê lá por onde der”, “Foi o cão do nevoeiro”, “eu bo-tava cá, de qualquer maneira”, “uma vez não são ve-zes”, “teso como um carapau” (em “Noite de Consoa-da”); -- “tocado da mioleira “, “não venham cá com canti-gas” “de tacha arreganhada", “à conta dos capacetes quentes e das requintas altas”, “venho à rasca dos pés”, “tem muita queda", “como o outro que diz”, “es-tá o pão chegado ã foice” (em “O Compadre e o Prior”); -- “tremer como varas verdes”, “oferecer um lanço”, (em “Rosa Maria”); -- “aIapardado", “uns cobres no bolso para uma bucha” (em João Brandão”).

Se talvez fosse dispensável a parte final do conto “Um

Pastor da Serra” -- o que veio a ser o filho do João Badana; se em “Deus e Satã” o narrador se converte mais num dou-trinador (quase pregador); e, se no mesmo conto, o nível de linguagem da São e do Joaquim Pedro não lhes está cabal-mente adequado; e ainda se o milagre da Nazaré, no conto

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“João Brandão”, talvez esteja metido a força, não há dúvida de que estamos perante um artista cujos contos merecem um efectivo realce, pela sua naturalidade e transparência, pela forma como nos az ver a verdade desta gente e pela ar-te revelada no seu conhecimento de toda a realidade serra-na.

Vão os contos ilustrados com primorosos desenhos do Pintor Isolino Vaz, óptima e bem realizada ideia que vem pôr em relevo todo o encanto desta obra, em alguns dos seus traços mais pertinentes. Eis a génese desta ilustração: “João Isabel é da família. Um dia leu-me uns contos. Achei-os sa-borosos e pedi para os ilustrar. Entretanto ele morre7 e eu quis cumprir a minha palavra”8 Bem cumprida esta palavra que vem servir a Arte modelarmente.

Não ficaria bem comigo próprio, se não deixasse aqui exarada uma palavra de viva felicitação à Câmara Municipal de Manteigas, patrocinadora desta edição que, honrando o artista e a sua terra, acaba por se dignificar a si própria nes-ta área inequívoca da cultura. GUARDA, Dezembro de 1987 Abílio Perfeito 1923 - 2009 08 07

7 (7) -- Faleceu em Lisboa a 23/8/84.

8 (8) -- Isolino Vaz, em “Contos Serranas na pena de um professor-pintor" - 0 Século de 20/10/87.

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UM PASTOR DA SERRA

O Ti João Badana era um velhote simpático, já caído na casa dos setenta, mas que ainda mourejava lá pela Serra, a fazer alqueives ou a guardar o gado. Tinha quatro filhos que o ajudavam na labuta da vida. Usava suíças que lhe da-vam um aspecto serrano e patriarcal.

Naquele dia tardava, contra o costume, e era quase noite quando chegou a casa. Subiu a escada, entrou na sale-ta, sentou-se na arca e disse à mulher: -- Encontrei há migalho o José Torrado, em Santo António. Perguntou-me se eu lhe queria vender uma chiba, das mais novas. Como tenho amanhã de pagar a décima e não tenho agora dinheiro a modo, até me convém. Disse-lhe que sim e estou a pensar na chiba que nasceu hã cinco meses, a Mala-ta. Que dizes, mulher?

-- Tu é que sabes -- respondeu esta. Mas o filho António, por alcunha o Matorro, que

estava em baixo no quarto, ouviu a conversa e subiu logo a escada, a perguntar açodado:

-- Vossemecê que diz?! Vender a Malata?! -- Sim, António. Tenho de pagar amanhã a décima e

não tenho outro remédio. O filho, já com as lágrimas nos olhos, pronunciou: -- Não venda a chiba, pai! Arranje de qualquer ma-

neira, mas não venda a chiba. O pai, já um pouco agastado com aquela discordân-

cia, replicou: -- Mas então, como há-de ser? Não tenho em casa

um pataco, nem um tostão furado. E na fazenda não espe-ram. Se não se paga, murta p'ra cima.

Mas o filho, obstinado na sua, não se importava. Desceu a escada e foi refugiar-se no quarto, embezerrado.

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Meteu-se na cama a chorar como uma Madalena e, de mo-mento a momento, lá ia moendo:

-- Não venda a chiba, pai! Não venda a chiba, pai! A mãe, condoída daquela dor, disse assim ao marido:

-- Olha, João. Tenho ali umas moedas que fui jun-tando com o tempo. Dou-t'as e vais pagar a décima. Devem chegar.

E vendo o marido, de cabeça baixa, a anuir, bradou assim ao rapaz:

-- Ouves, António? Fica descansado porque o teu pai já não vende a chiba. Fica descansado. Mas agora vais calar a sanfona, porque já nos dói a cabeça. E o Matorro calou-se, com um sorriso de satisfação e alívio, a rever o pequeno rebanho.

Era o seu enlevo, o rebanho do pai. Desde criança que ele guardava aquelas cabras e ovelhas por sítios ermos da Serra.

À força de as guardar e viver com elas, tinha-as co-mo suas, chamava-as pelos seus nomes e elas obedeciam-lhe. Era raro ter de mandar alguma lapada, no caso de tei-mosia ou afastamento, dalguma delas.

Era a Malhada, a Andorinha, a Carriça, a Fadista, a Bonita, a Landrisca, a Janota... Todas tinham nome, confor-me a sugestão do seu físico ou maneira de ser. Um dia, ao meter o rebanho na corte, verificou com grande surpresa que faltava uma cabra, a Janota.

Ia-lhe dando uma coisa, ali mesmo. De cabeça per-dida, começou a procura-la por todos os lados, sem saber como ela tinha desaparecido. Talvez fosse quando lhe dera o sono, a hora da sesta, a guardar o rebanho. As voltas que ele deu, por aquela Serra, à sua procura! Percorreu o Trapi-que, a Malhada das Fôrneas, o Vale da Barca, o Tornágua, a Fraga da Cruz. De fragão em fragão, para ver melhor e mais longe, olhava para todos os lados e bradava por ela:

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-- ]a...no...ta... Ja...no...ta... Respondia-lhe o eco e depois o silêncio que agora o

perturbava e lhe apertava o coração. Deu-a como perdida, Já comida pelos lobos, e que não valia a pena procurá-la mais.

Regressou à corte, a limpar os olhos ao lenço e às costas das mãos, quando lhe pareceu ouvir o som dum cho-calho, lá longe, para o lado dos Barros Vermelhos. Dirigiu-se para lá, a correr e aos saltos, por cima daquelas pedras e o som do chocalho ia-se tornando mais audível e mais perto.

Até que foi encontrar a cabra num maciço de ur-gueiras e piornos, presa, pela coleira do chocalho, por um ramo forte e recurvo que a não deixava fugir. Desprendeu-a e abraçou-se a ela, a chorar de alegria.

Foi por essa altura que sucedeu um caso curioso com o Ti João Badana, que vale a pena contar.

O velhote estava na Nave da Mestra a guardar o gado, num dia em que o António Matorro tinha ido para o Hospital com uma pneumonia, quando se aproximou dele um sujeito, baixo de estatura, de bigode e pera e com um casaco e boné alvadios.

-- Bom dia, -- disse o recém-chegado, abeirando-se do pastor.

-- Deus lhe dê bons dias, -- respondeu o Ti Badana, levando a mão ao chapéu.

-- Donde é vossemecê? -- perguntou ele, de mão arrimada a uma pequena bengala.

-- De Manteigas, meu senhor. -- E é seu o rebanho? -- Enquanto Nosso Senhor quiser. -- E que dizem cá do Governo? O Ti João reflectiu um pouco e retrucou: -- Que os há lá bons e maus, como em tudo. -- E do Afonso Costa, o que dizem por aí?

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Aqui o Ti João Badana tirou um cigarro do bolso, que começou a ajeitar e, a seguir, a pederneira e a isca, para o acender.

-- D'esse dizem que é um bom maroto. Que quer acabar com os padres e com a religião, como já acabou com o toque dos sinos e com as procissões, cá na nossa terra. Mas é mais certo, saiba o senhor, ele ir para as profundas do inferno, do que acabar com a religião. A religião está dentro de cada um e aí não manda ele.

O desconhecido teve um sorriso ligeiramente sar-dónico e continuou:

-- Então querem-lhe cá muito mal?! -- Se lhe parece! Um patifório daqueles! Então o senhor de pera e bigode tirou um maço de

cigarros da algibeira e entregou-o ao Ti João Badana, dizen-do:

-- Tome lá, que lhe oferece o seu amigo Afonso Costa.

Admirado e estarrecido, o Ti João Badana quis ajoe-lhar-se-lhe aos pés e pedir-lhe perdão:

-- Ó senhor, desculpe. Saiba Vossa Excelência que não o quis ofender. Isto é falar por falar. Uns pensam duma maneira, outros doutra. O mundo é assim, que se lhe há-de fazer?

Afonso Costa sorria e então disse-lhe: -- Sossegue, sossegue. Ninguém lhe faz mal. Um

pastor da Serra tem direito a pensar como quiser. E saudando-o novamente, fez-lhe, com a mão, um

gesto amistoso. -- Adeus. E afastou-se, apoiado na bengala, em direcção às

Penhas Douradas. Ficando sozinho, João Badana entrou, a seguir, em

vivo Monólogo. -- E esta, hein? Ia-a arranjando boa. Por um pouco

não me mandava prender. É bem feito, para que não sejas

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linguarudo. Para a outra vez, haja o que houver, bico calado. Boca fechada não cria varejas.

E, a ruminar, lá foi continuando: -- Quem havia de dizer?! Quem havia de dizer?!

Afonso Costa achou graça ao episódio e foi contá-lo

a hora do almoço, em ar de anedota, aos seus familiares. Por esse tempo, o filho mais novo do Ti Badana, o

Manuel, fazia a quarta classe do ensino primário. Era um bom aluno, com muita tendência para os livros, que chegava a ser paixão.

Como sofria duma perna e coxeava um pouco, de-sistiram de o mandar guardar o rebanho, como sucedia com o Matorro.

Foi para marçano, numa mercearia da terra, a do José Roque. Mas nunca largava os livros, houvesse o que houvesse. Entretanto o Ti João Badana enviuvara e o Manuel, sem ca-rinho de mãe, até fome passava. Mandaram-no para Melga-ço, como marçano também e, passados alguns anos, medi-ante a protecção do Conde de Azevedo, de quem era amigo, foi para o Brasil. Aí se empregou numa perfumaria, na Praça Tiradentes, mas continuou a estudar e, passados anos, formado em História, foi professor e bibliotecário no Liceu de Portugal do Rio de Janeiro. Nomeado representante da Causa Monárquica no Brasil, por D. Duarte Nuno, foi orador em várias sessões so-lenes, de carácter oficial, com a presença de altas individua-lidades, como Getúlio Vargas e Pedro Calmon.

O seu nome já figurava em jornais brasileiros de grande tiragem e tendo sido sempre um monárquico acér-rimo, embirrava com todos os governos que existiram em Portugal na primeira República. Tirou o curso de Direito aos setenta anos de idade, com elevada classificação.

O Ti João Badana já tinha morrido, há anos. Já não viu o seu filho guindado a tão altos lugares.

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Se visse, o que diria ele? Que tinha um filho importante, com grandes e bons amigos, lá no distante Brasil e capaz de dizer duas coisas acertadas ao Dr. Afonso Costa, se calhasse encontra-lo, como ele, daquela vez, confuso e envergonha-do, a guardar o seu pobre rebanho, na Nave da Mestra.

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BAIRRISMO

Havia, nesse tempo, muita agitação e efervescência na vila por causa da rivalidade existente entre as suas fre-guesias. Se uma fazia uma festa rija, com música e foguetes, logo na outra se fazia uma festa de arromba, com mais fo-guetes, música e arraial. Nas aleluias, era de ver qual das duas apresentava uma procissão maior, com mais andores, anjinhos e figuras alusivas. E na noite de S. João, com fo-gueiras de rosmaninho a recender nos ares e de grupos em descantes pelas ruas, a que não faltavam os bailaricos em certos largos da vila, lá estavam os mastros de rosmano, no adro das duas igrejas, a atestar, na sua imponência e na sua altura, e a arder pela noite fora, o bairrismo de quem ali os tinha erguido.

A rivalidade estendia-se às duas filarmónicas da vi-la, a Música Velha e a Música Nova, cuja origem derivava já de motivos políticos, do tempo dos progressistas e regene-radores.

Duma das vezes, o regente duma das bandas foi es-conder-se, de noite, numa casa contígua ao ensaio da outra, quando esta ensaiava uma marcha, ou ordinário, para tocar no dia seguinte, na festa. Pois esse regente, o Boléo, que era, na verdade, um belíssimo artista, escreve rapidamente a partitura dessa peça musical, distribui os papéis dos diver-sos elementos, ainda essa noite a ensaia e, na manhã se-guinte, a sua banda é a primeira a executar a peça pelas ruas da vila, com grande regozijo da Música Velha e grande arrelia da Nova, cujos músicos, danados daquele incidente, vociferavam pragas e até arrepelavam os cabelos.

Por estas e por outras é que havia, a seguir, ques-tões e pancadaria grossa, ou pedradas no escuro que até fa-ziam lume nos balcões ou esquinas das moradias.

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Um dia o Sr. Bispo resolveu fazer uma visita pasto-ral a esta vila serrana. Foi recebido, à entrada da vila, por muito povo e bandas das duas freguesias. Mas porque cada uma queria ter a prioridade na visita do Sr. Bispo, não fican-do para segundo lugar, logo ali se armou um tremendo re-boliço. Não faltaram murros e bordoadas a granel, os ins-trumentos das duas bandas andaram pelos ares transfor-mados em instrumentos de agressão e o Sr. Bispo teve de safar-se, de qualquer maneira, aturdido e assombrado com aquela recepção.

Até foguetes se deitaram em sentido horizontal, para cima daqueles magotes. Chegou-se a pontos de nin-guém passar, à noite, duma freguesia para a outra, como se se tratasse de campos vedados ou proibidos.

Até o ti Bichas que morava para o Eirô e tinha umas pedras ou toças aparelhadas junto à igreja de Santa Maria, respondeu assim, a quem lhas pedia:

-- Dou-tas, rapaz, mas só na condição de tapares com elas o caminho entre as duas freguesias.

Nas ceifas, nas malhas, à hora do almoço nas fábri-

cas, nos trabalhos das vinhas e até nos alqueives da Serra, o motivo de conversa era quase sempre o mesmo: as duas freguesias.

Os macavencos, de cima, os macarroncos, de baixo, o Sr. Padre de Santa Maria, o Sr. Padre de S. Pedro, as bea-tas para aqui, as beatas para ali, o Bernardo sacristão, as festas rijas do Senhor do Calvário e N. Senhora da Graça, os pregadores que eram convidados para essas festas. Tudo era motivo de conversa, mas sempre na base do bairrismo e rivalidade.

Só num ponto não havia destrinça ou qualquer dis-puta: os namoros e casamentos faziam-se indistintamente com rapazes e raparigas de qualquer das freguesias mas, mesmo assim, não era prudente um rapaz namorar, de noi

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te, uma rapariga da outra freguesia, porque se sujeitava a qualquer provocação ou pedrada anónima.

Foi o aconteceu, uma vez, ao António Canário, o qual conversando, à noite, por sinal de lua cheia, com a Ana Maria, sua namorada, no cimo do Eirô, mesmo à porta da casa dela, foi bruscamente atingido por uma chapada d'água que o inundou, da cabeça aos pés.

-- Olha o disparate! -- exclamou a Ana Maria, olhando para as janelas da casa vizinha, donde devia ter vindo a água. – Mas que lindo serviço! Ó Ti Fortunato -- gri-tou ela para as janelas da casa. -- Alguém apareça, para se lhe agradecer.

E foi bater pancadas rijas à porta dessa casa: Truz, truz, truz... Mas ninguém respondeu. A porta estava fechada à chave e a casa parecia um túmulo.

-- Mas isto não fica assim, -- continuava ela, muito indignada.

-- Ai não fica, podes ter a certeza, -- continuou o Canário, ensopado como um pinto, a enxugar a cara com o lenço de bolso. -- Só queria saber quem foi o filho da mãe.

-- Vai mudar de roupa, depressa, -- pediu a Ana Ma-ria. – Não podes ficar assim.

-- Pois vou, -- disse ele. -- Mas vê lá se consegues saber quem foi e depois diz-me.

O Canário desandou e a Ana Maria entrou em casa

e foi para a janela, a vigiar. Passada cerca de meia hora, viu subir a rua um vulto que lhe pareceu ser o Ti Fortunato, co-mo de facto. Claro que não podia ser ele o autor da proeza.

Era um velho pastor, homem de setenta e tantos anos, de boa fama e que nunca tinha dado escândalo a nin-guém. Mas podia ser algum dos filhos.

-- Ó Ti Fortunato, - chamou, da janela, a Ana Maria. – Os seus filhos, aonde estão?

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-- Os meus filhos? Ficaram em casa da minha irmã

Rosaria, no fundo da vila. -- Tem a certeza? -- Assim me Deus salve... Meteu a chave à porta da casa e entrou, de segui-

da. A Ana Maria ficou intrigada a pensar naquilo. -- Mas então quem seria? Passados uns dias o Canário soube, por portas tra-

vessas, que tinha sido o Chico Perdiz, filho do Ti Fortunato, o qual, escapando-se à sorrelfa da casa da tia Rosária, sem ninguém dar conta, tinha vindo fazer aquilo. É que ele gos-tava da Ana Maria e há muito vigiava o António Canário, com ciúmes dele.

-- Deixa estar, malandro, que não as perdes, -- pen-sava o Canário, dia e noite.

E meu dito, meu feito. O Chico Perdiz trabalhava para lá do rio, no sítio da Lapa, nas fazendas do pai. Passava ali os dias, a cavar, a lavrar, e a guardar o gado.

O Canário averiguou, calculou e, numa tarde, foi espera-lo a Ponte do Pego, perto da fábrica do rio. Depois de descer o caminho, o Chico entrou na ponte e, de repente, surge o Canário que lhe pergunta, a queima-roupa:

-- Ouve lá, ó Chico, foste tu que me atiraste há dias, uma chapada d`água, no cimo do Eirô?

-- Quê?! -- respondeu o Chico, surpreendido e re-ceoso do que iria suceder.

O Canário era muito forte e decidido, nas ocasiões. -- Não te faças desentendido. Foste tu, ou não fos-

te, ó meu grande malandro? E, sem mais aquelas, agarrou o Chico que era um

frangote ao pé dele, e sobrepõe-no na guarda da ponte e diz-lhe:

-- Olho por olho, banho por banho... Jurei que não as perdias.

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E, acto contínuo, num ímpeto nervoso, despejou o Chico nas águas do rio.

-- Ai quem me acode! Socorro! -- gritava o Chico, a debater-se na água.

Mas ele lá foi nadando para uma das margens aon-de chegou com dificuldade por causa do fato e das botas cardadas. Toda a vila soube daquele banho forçado. Uns tomavam o partido dum, outros do outro mas, a grande maioria, estava a favor do Canário, mesmo os da freguesia de cima.

-- Deixasse lá estar quem lá estava. O namoro era livre e aqui não havia bairrismo de freguesia. E se tinha dor de cotovelo, que fosse ao alveitar que o curasse e deixasse os outros em paz.

O Eduardo Gacha e o Manel Mêda, os valentões da freguesia de S. Pedro, disseram assim ao Canário, passados dias:

-- Fizeste bem, ó rapaz. Assim é que se ensinam. É para que saibam os macavencos que não fazem pouco dos macarroncos. Pena é que fosse tão pouco. Mas para mão de ensino, chega!

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ROSA MARIA

Foi na festa do Senhor do Calvário, à hora da arre-

matação das ofertas, no largo defronte da Capela, que Raul reparou na rapariga.

Era linda, um pouco magra e esbelta, de expressão suave e quase angelical, o cabelo louro escuro, os olhos ver-des e a boca pequena e carminada, a lembrar um botão de rosa.

Estava-lhe bem o seu nome, Rosa Maria, e mais pa-recia uma rapariga da cidade do que uma flor rústica da ser-ra.

Seguia com atenção o desfilar das ofertas, desde as de tabuleiro, muito fartas de cabrito, frango assado, frutas e garrafas de vinho, às chouriças, dependuradas em paus, bai-lantes e de cor vermelho-escuro, aos cestos de batatas e de frutas e ainda aos bolos grandes e redondos, de aspecto apetitoso. Os pregões misturavam-se e sucediam-se, em vá-rios tons:

-- Setenta escudos! Quem da mais? -- Cento e vinte escudos. -- Trezentos e cinquenta escudos. -- Quem dá mais? Iam à mesa perguntar se deviam entregar ou não e

o desfilar das ofertas continuava, no meio do sussurro do povo, enquanto a banda, no coreto, atacava mais um núme-ro e a tarde, a doce tarde de Agosto, de temperatura ame-na, ia caindo devagar. Raul aproximou-se, pouco a pouco, da rapariga e perguntou-lhe, em voz baixa:

-- Não lanças, Rosa Maria? Ela virou a cabeça, ligeiramente surpreendida: -- Não. São muito caras para mim. -- Há caras e baratas, -- retorquiu Raul. -- De qual

gostas mais?

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Ela sorriu e, um pouco maliciosa, acrescentou: -- De todas. Cada uma em seu género. Ia a passar um bolo grande e circular, de bom as-

pecto, e Raul perguntou: -- Em quanto vai esse bolo? -- Setenta escudos. -- Setenta e cinco, -- lançou Raul, um bocadinho

importante. Mas, logo adiante, alguém cobriu o lanço, porque o

rapaz do bolo apregoou: -- Oitenta escudos! -- Cem escudos, -- lançou o Raul novamente. E o rapaz do bolo continuou a apregoar e foi à mesa

perguntar e receber novas ordens. Disseram-lhe que entre-gasse. E o bolo Foi entregue a Raul que, por sua vez, o ofe-receu a Rosa Maria, dizendo:

-- À mais linda rapariga que já vi. E perante o aspecto de recusa que ela manifestou,

Raul insistiu: -- Não me faças a desfeita de não aceitar. Se o não

quiseres, dá-o ao primeiro pobre que encontrares. Por fa-vor, Rosa Maria. É dado de boa vontade. E, acima de tudo... Se tu soubesses...

-- O quê? -- perguntou ela, separando-se um pouco das pessoas e agarrando maquinalmente no bolo.

Ele olhou-a respeitoso e humilde e, numa expres-são de muito carinho, murmurou:

-- Se tu soubesses, como gosto de ti... Rosa Maria encarou nele e franziu a boca num tre-

jeito de dúvida, ligeiramente desdenhoso: -- Acredito lá nisso! Estava servida, se fosse acredi-

tar em todas as cantigas. Vocês são todos iguais! Se virem uma burra de saias...

Raul emudeceu uns momentos, de aspecto sério e um pouco triste:

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-- Duvidas de mim, Rosa Maria?! Pois eu gosto de ti como de ninguém mais... E, se tu quisesses, ainda este ano casávamos...

-- O que aí vai, o que aí vai, -- retorquiu ela, a rir. E reparando em alguém, a uma certa distância: -- Olha a minha tia, a chamar-me. Tenho de ir ter

com ela. Obrigada, Raul. -- Adeus! E foi a correr ter com a tia, que lhe acenava de lon-

ge, dum ponto dominante, junto ao muro da estrada. -- A tia por cá hoje!? -- e beijou-a em ambas as fa-

ces. -- É verdade, Rosa Maria, viemos a festa. -- Quem veio mais? -- Teu tio, o Jorge e o tintureiro lá da fábrica que

nos ofereceu o carro. Tu é que nunca apareces. Estás esque-cida de nós.

-- Não é isso, tia. A vida é que não deixa e daqui a Gouveia ainda é muito longe. Nem sempre aparecem carros. Ainda se houvesse carreira...

A tia olhou o bolo que Rosa Maria trazia e disse: -- Que lindo bolo tu trazes e que bom aspecto ele

tem! Está mesmo a dizer: comei-me! Quanto te custou? -- Olhe tia, nada. Ofereceu-mo um rapaz, o Raul, há

bocadinho. Quis à viva força que eu ficasse com ele. Morria, se não aceitasse.

-- Namora-lo? -- Não, tia. Mal o conheço. Ele declarou-se, mas a

mim entrou-me por um ouvido e saiu pelo outro. -- Bem! Pode ser que goste de ti. O que não é difícil,

com a cara que Deus te deu. Mas é preciso cuidado. Com papas e bolos...

-- Eu sei, tia, eu sei... Mas, já agora, para se evita-rem aborrecimentos com meus pais, façamos de conta que foi a tia quem arrematou o bolo. Está bem, tia?

-- Sim, não custa nada. E lá os velhotes, como vão?

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-- Assim, assim. Já com muita idade. Minha mãe vai fazendo a vidita de casa e o meu pai lá continua com o gadi-to, na Serra. Já não pode, coitado, mas foi criado naquilo e a vida está cada vez mais cara...

-- E tu, Rosa Maria, continua na fábrica? -- Continuo. Tenho de os ajudar e ganhar para o

meu sustento. Foram andando para casa, as duas.

-- E o tio? -- perguntou Rosa. -- Anda para aí, com algum amigo. Mas sabe que

estou em vossa casa e lá irá ter. A tarde caía de todo e, de longe, chegavam as notas

indecisas da Banda, a tocar uma rapsódia antiga, dos bons e velhos tempos.

Decorreram alguns meses. Raul não desistia de ob-ter as boas graças da sua amada que era esquiva e fugidia, o que aumentava, ainda mais, o amor que sentia por ela.

Procurava-a, aqui e além, e lá conseguia falar-lhe, por vezes. Uma noite, cerca das dez horas, depois de ter fei-to serão na fábrica, vinha Rosa Maria estrada fora com outra operária, caminho de casa, quando dois vultos, surgindo da sombra, as agarraram subitamente e tentaram derrubá-las, para a valeta.

Elas resistiram com todas as forças e gritavam por socorro, pouco provável naquele sítio ermo, longe da vila e de qualquer casa de habitação.

Mas logo se ouviram passos rápidos, de alguém que vinha correndo e um homem apareceu e se agarrou a um dos assaltantes, socando-o valentemente e atirando-o por terra. O outro, sem mais espera, procurou na fuga a melhor forma de sair daquele aperto, ou melhor, do seu acto de vi-lania.

As raparigas, estarrecidas de medo, gritaram ainda, sem saber o que faziam.

-- Sou eu, Rosa Maria, não tenhas medo, -- dizia-lhe o recém-chegado, ofegante de cansaço.

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Era Raul que muitas vezes esperava e seguia Rosa Maria, sem que ela o suspeitasse.

-- Meu Deus, meu Deus... E elas choravam, ansiosas e confusas, compondo os

cabelos desgrenhados e tentando fugir daquele negro lugar. --Já passou tudo, -- sossegou Raul. E curvando-se sobre o vulto enrodilhado e caído,

apertou-lhe o pescoço e invectivou-o, rangendo os dentes: l -- Canalha, quem és tu?! -- Não me faças mal... Sou o Albertino... o Marrafa...

– gemeu o prostrado. -- Ah! cão dos infernos, malandro... -- ululava Raul,

esbofeteando-o, com fúria. -- Vou-te dar cabo do coirão... Seu pulha, seu miserável...

E apertava-lhe mais o pescoço, espumando de rai-va.

O prostrado, já sem forças, emitiu uns ligeiros sons estertorosos, quase afogado.

-- Deixa-o, deixa-o, Raul, -- pediu Rosa Maria, aflita, naquele novo transe.

Raul afrouxou a pressão dos dedos e levantou-se, largando Albertino.

-- Vamos embora, -- continuou ela, angustiada ain-da. – Anda connosco, Raul, até à vila.

-- Pois vamos. Mas tu não podes andar assim sozi-nha, de noite, Rosa Maria. É perigoso, bem vês!

E os três seguiram estrada fora, em direcção à vila, que em breve surgiu, iluminada, após a curva do Varatojo. Rosa Maria sentiu nascer dentro de si um novo sentimento para com aquele rapaz, tão bom e dedicado, tão sério e co-rajoso, que assim a defendera, naquela hora e que há muito mostrava gostar dela verdadeiramente.

Por que não retribuir o seu amor, por que não acei-tar o namoro que ele tanto desejava, há tanto tempo?

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À entrada da vila, a outra rapariga despediu-se e Raul acompanhou Rosa Maria, Eirô acima, até à porta de ca-sa.

-- Obrigada, Raul... -- disse ela, segurando-lhe a mão e olhando-o nos olhos, num impulso de afecto.

-- Gostas de mim, Rosa Maria? - E fitava-a, humilde e carinhoso, apertando a mão que se lhe oferecia.

-- Gosto... -- E correspondeu a pressão dos seus de-dos, continuando a olhá-lo nos olhos.

-- Muito? -- Muito. -- Queres ser minha mulher?

E ela, continuando a deixar apertar as mãos e envolvendo-o num lindo e meigo sorriso, murmurou:

-- Sim... Raul não pôde conter-se e exprimindo no rosto a

maior alegria, puxou-a para si e estreitou-a ao coração. Ouviram-se passos a descer a rua e ela desprendeu-

se brandamente daquele amplexo. -- São horas... É já muito tarde... - E agora, quando voltamos a falar? -- Amanhã, à saída da fábrica. E despediram-se, apertando as mãos, com muito

carinho. Na torre da igreja próxima soaram lentamente as

onze horas daquela noite agitada mas, apesar de tudo, feliz.

O namoro continuou, por largos meses. Ele passou a trabalhar na mesma fábrica e juntavam-se logo à saída, com o demais pessoal. Entretanto chegou a altura do serviço da tropa e Raul teve de ausentar-se para fazer a recruta em Santa Margarida e, a seguir, foi escalado para fazer o resto do serviço na Guiné, à semelhança de tantos militares dispersos pelas nossas Pro-víncias Ultramarinas.

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Na véspera da partida, Raul teve uns dias de licença

para vir à terra despedir-se da família e das pessoas amigas. E as últimas horas utilizou-as, como não podia dei-

xar de ser, nesse domingo, num largo passeio, estrada fora, com Rosa Maria que levava o coração apertado por aquela longa e dolorosa separação.

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-- Absorvidos e concentrados no mundo interior que os dominava, não deram conta de que o tempo passava rapidamente e que eram horas de regressar.

Baixava a noite e ainda estavam distanciados alguns quilómetros da vila. De longe chegou, doce e plangente, como bênção do céu, o toque saudoso das Avé-Marias...

Nuvens negras rolavam sobre a serra, para os lados da Covilhã, com aspecto sinistro e ameaçador, enquanto o vento começou a soprar impetuoso, vergastando a folha-gem da floresta, dum e doutro lado da estrada. Grossos pin-gos de água começaram a cair anunciando borrasca e um súbito relâmpago deu beleza estranha àquele lugar ermo, logo seguido por medonho trovão que reboou pelas abóba-das do céu, como descarga de artilharia.

-- Jesus, valei-me... - -exclamou Rosa Maria, num grito de pavor, agarrando-se a Raul.

-- Não tenhas medo... Isto já passa... Mas Raul também estava receoso e intranquilo. -- Virgem Santíssima... Senhora da Conceição... Ro-

gai por nós. E continuava agarrada a ele, a tremer, como varas

verdes. -- Temos de sair daqui... Dizem que as árvores são

perigosas, por causa das faíscas. Começaram a correr para saírem do meio da flores-

ta. -- Aqui perto está a casa dos cantoneiros, -- lem-

brou Raul. -- Vamos para lá. A chuva era agora torrencial e o céu abria-se em re-

lâmpagos e trovões formidáveis, cada vez mais fantásticos e pavorosos. Ouviram-se campainhas de gado, não muito lon-ge, como que tresmalhado e fugindo também do temporal.

Era já noite fechada e muito negra, sem o menor vislumbre de estrelas. Mal se via a própria estrada que per-corriam apressadamente.

-- Ainda falta muito?!

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-- É já perto... Raul tinha tirado o casaco e posto sobre os ombros

de Rosa Maria que tentara recusar. Até que surgiu a casa dos cantoneiros e ali se abri-

garam molhados até aos ossos, trementes de emoção. Rosa Maria estava muda e sucumbida. Que pensariam os pais de-la, daquela ausência? Tinha medo da sua reacção vendo-a chegar tão tarde a casa. Sobretudo o pai, que perdia a cabe-ça em certas ocasiões e era duro e inflexível em pontos de moral.

Raul acarinhava-a, vendo-a assim tão triste e aflita. Lá fora a chuva continuava a cair, batida pelo vento

que soprava em fortes rajadas, por vezes, sacudindo as ár-vores com fúria e levando pedaços delas para longe.

A trovoada ia passando, pouco a pouco. Rosa Maria perdia o domínio de si própria a arre-

pendia-se de ter vindo. Já não era aquela rapariga sensata e reservada que os rapazes respeitavam pela seriedade do seu proceder.

Era uma mulher apaixonada, como tantas outras e vítima das circunstâncias daquela noite de trovoada, que o destino parecia ter forjado, para a perder.

Raul lá embarcara para o Ultramar. Escrevia muitas vezes e não se cansava de falar do seu amor e das saudades que lhe despedaçavam o coração. Pedia-lhe que nunca o esquecesse, assim como ele só pensava nela, dia e noite, ansiando pela hora do regresso, para casarem.

Rosa Maria apercebeu-se, passado algum tempo, do resultado funesto daquela noite, em que estiveram jun-tos. Teve vergonha de si própria e pesou bem a imprudência em que tinha caído. Agora já não havia remédio. Escreveu a Raul, a pedir-lhe que viesse depressa, sob pena de não a en-contrar, se demorasse muito tempo.

Entretanto Raul andava lá pelos matos e ia curtindo febres e saudades, à espera que o tempo passasse. Apertou-

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se-lhe o coração quando soube do estado dela e sem poder acudir-lhe, de pronto, como tanto desejava.

Teve tentações de fugir, de desertar, em horas de desespero. Os meses foram passando e Rosa Maria disfarça-va, o mais que podia, o seu estado. Mas quis-lhe parecer que sua mãe entrava de desconfiar, ou seria ilusão sua, que ela queria manter, a todo o custo.

E um dia veio a notícia trágica e brutal, a notícia horrorosa de Raul que há tempo lhe não escrevia, ter morri-do, com mais uma dúzia de soldados, devido Ia explosão de uma mina que tinha feito ir pelos ares, em estilhas, o camião onde eles seguiam.

Houve gritos de desespero e lágrimas de muita afli-ção, naquela terra serrana.

Rosa Maria recebeu a notícia como se fosse um so-nho, de olhos enxutos e esgazeados. Não gritou nem cho-rou, sentindo a morte consigo, no mais íntimo do seu ser.

Meteu-se na cama dias e dias, recusando comer, muda e angustiada, numa imobilidade de estátua, de olhar perdido no vago...

-- Mas que tens tu, rapariga?!... E a mãe torcia as mãos de aflição, sem saber o que lhe havia de fazer.

-- Vou chamar o médico. E pôs um xale a pressa, para sair. -- Não vá, mãe, -- pediu ela, vivamente, -- Não vá...

peço-lhe... -- Mas que tens tu, diz lá?! E, num repelão brusco, puxou a roupa da cama e

descobriu o ventre branco e proeminente da rapariga, para se certificar.

-- Ah! malvada, malvada... Bem me parecia a mim... E eras tu a rapariga séria e ajuizada... Tu... tu...

E começou a chorar, aos gritos, arrepelando os ca-belos e dando punhadas na cabeça, num grande desespero.

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-- Não grite, mãe... Não chore... Eu vou-me embora daqui...

-- Embora para onde? Para onde queres tu ir?! -- gritava a mãe, fora de si, aproximando-lhe os punhos da ca-ra, sem querer compreendê-la.

Rosa Maria vergava a cabeça, aturdida e esmagada pela sua desgraça e as lágrimas deslizavam-lhe, abundantes e silenciosas, pelas faces. O que faria o pai quando viesse a saber? Mas ela não teria coragem de o enfrentar. Fugiria primeiro, para qualquer sítio, fosse para onde fosse.

Nessa noite, sacudida e agitada por tantas emo-ções, sentiu dores muito fortes, precursoras talvez do pró-ximo desfecho.

Juntou, à pressa, alguma roupa e aproveitando a ausência da mãe, que devia ter ido fazer algum recado, em-brulhou-se num xale e lenço de lã e saiu de casa, seguindo Carvalheira acima, caminho da Serra.

Era em Dezembro, meados do mês e o dia estava frio e nublado. Rosa Maria resolvera ir ter com a tia que vi-via em Gouveia, do outro lado da Serra e pedir-lhe agasalho e protecção, naquela hora angustiada. Era amiga dela e con-fiava que não deixaria de acudir-lhe.

O dia escurecera ainda mais e o frio era cada vez mais intenso, à medida que ia subindo e se aproximava do sítio das Penhas.

No alto da Serra começou a nevar, primeiro em flo-cos pequenos e raros, depois em flocos maiores e abundan-tes que pareciam bocados de algodão em rama que adeja-vam e revoluteavam pelo ar. A abundância era tal que mal se via o caminho e a própria Serra que começava a envolver-se num lindo manto de arminho. Rosa Maria, aconchegando o xale ao pescoço, seguia sempre, estrada fora, marcando os seus passos na neve que tinha jaz uma certa espessura. Sa-cudia o xale, de vez em quando, para diminuir-lhe o peso e passava a mão pela cara, tirando os flocos que a cobriam.

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O manto alvinitente aumentava a olhos vistos e já se não distinguia a estrada do resto da paisagem imaculada.

Tudo branco e liso, naquele imenso deserto. Can-sada e ofegante, o suor a escorrer-lhe do rosto, Rosa Maria começou a sentir dores mais fortes e teve de sentar-se na elevação duma pedra, sobre a neve alta que a cobria. As do-res em breve se tornaram lancinantes e mais frequentes. Deitou-se na neve, a gritar e a pedir socorro, esvaída de co-ragem e de forças.

Mas mal podia gritar, no auge da aflição e do pavor. -- Socorro!... Socorro!... Respondia-lhe o silêncio da Serra, a mudez daquele

sítio tão ermo onde só lobos podiam acudir para consumar a tragédia. Teve medo da morte que nunca esperou poder chegar naquela idade. Muitas coisas lhe passaram pela men-te. Os seus dezoito anos, os seus pais, o Raul lá tão longe, morto...

Era vítima da sua imprudência, do pecado daquela noite.

Sentiu-se banhar num lago de sangue quente, as forças fugiam-lhe e um torpor começou a dominá-la, inven-cível.

Lábios muito brancos, os olhos ainda lindos, a olhar o céu, Rosa Maria murmurou:

-- Meu Deus... Meu Deus... Per...doa...me Se...nhor... Salva... a... mi... nha... al... ma... Mi... nha... mãe... adeus.

E ficou imóvel, rosto muito branco e olhos abertos, sempre a olhar o céu. O céu onde devia estar, àquela hora, a sua alma de mártir, junto dos anjos, seus irmãos.

E a neve continuava a cair, em milhares de pétalas, sobre Rosa Maria, como último preito à sua beleza, a sua ju-ventude e a dor suprema do seu amor perdido. 24-11-1971.

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DOIS PARCEIROS

-- Saiba V. Exa. que sim. -- Saiba V. Exa. que não. Assim respondia habitualmente o Albino Marra ao

seu patrão e senhor, quando este o interpelava sobre qual-quer assunto da fábrica ou mesmo particular.

Nesse tempo, a fábrica, na qual ele trabalhava des-de garoto, era das melhores do país, não só em artigos de cardação, como de penteação e tinha muitos operários, ga-rantindo assim o pão e sobrevivência a muitas famílias da região.

E mais do que operário, o Marra era um servo dedi-cado e fiel, em especial ao patrão Joaquim de Matos que ele venerava e servia como se fosse o seu verdadeiro pai.

Assim o afirmava, muitas vezes: -- Mê pai é o Sr. Joaquim de Matos! -- Mas ó Albino, -- dizia-lhe algumas vezes o Joa-

quim Cuco, operário também da fábrica, que tinha ideias vagas e subversivas sobre capital e trabalho. -- Não é preciso tanto. Os patrões pagam-nos o nosso trabalho e não fazem mais do que o seu dever!

Mas o Albino, na sua, respondia logo: -- Nã senhor. Mê pai é o Sr. Joaquim de Matos! Um dia, o mais velho dos patrões que era na fábrica

e fora dela o pater famílias, mandou o Albino Marra a esta-ção de caminho-de-ferro de Belmonte buscar não sei que tarifa que ele trouxe num burro, visto que, nesses velhos tempos, não havia outro meio de transporte.

Como era já muito tarde e trazia o capacete um pouco quente, resolveu ficar e dormir na povoação de Vale de Amoreira e aí, noite velha, foi assaltado por dois melian-tes que, para roubarem o dinheiro e a mercadoria, lhe de-ram uma carga de pau que o prostrou, sem acordo. Os pa-trões, ao tomarem conhecimento do caso e verdadeiramen-

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te indignados com o sucedido, moveram acção judicial con-tra os meliantes, os quais, descobertos por denúncia, foram logo intimados a comparecer, para julgamento.

Em plena audiência, no tribunal da Guarda, ao ser interrogado pelo Juiz sobre os factos ocorridos, ele respon-deu, perfilado e sério, na sua baixa estatura:

-- Saiba V. Exa., Sr. Doutor Juiz, que eu já lhes per-doei e queria que V.Exa. lhes perdoasse também.

Grande surpresa e risos na sala da audiência, ao ve-rem aquele homem rústico e tão bom, a perdoar assim aos dois malandrins que, por pouco, o não tinham deixado mor-to, para o roubar.

Era assim o Albino Marra, na sua alma simples e in-gênua, como de criança.

Mas o fraco, o grande fraco daquele homem eram os copos, aos quais não resistia, por mais instado e repreen-dido que fosse. As pielas sucediam-se umas às outras, nos fins de semana, em especial aos domingos. E quando o pa-trão lhe ralhava e perguntava se não havia forma de se emendar, ele então retorquia, muito sério, tirando o garru-ço:

-- Saiba V. Exa. que sim! -- Mas então, ó Albino, tu queres dar cabo da tua

saúde, dar desgostos a tua família e ir mais cedo para o ce-mitério?

-- Saiba V. Exa. que não! E ficava-se nisto, mas era o mesmo que nada. Volta

e meia, sucedia a mesma coisa. Uma vez, muito pingado, foi bater à porta de casa da filha do patrão e a criada, a Amélia, antes de abrir a porta, perguntou:

-- Quem está ai? E o Marra, com a voz soturna, respondeu: -- Daqui fala o Sagrado Coração de Jesus de S. Pe-

dro. S. Pedro era a sua paróquia, pois a vila tinha duas

freguesias, S. Pedro e Santa Maria.

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Doutra vez veio a Manteigas o Ministro das Corpo-rações, no tempo do Estado Novo, o qual falou ao povo da varanda do edifício da Câmara Municipal para a Praça Luís de Camões que estava apinhada de gente. E, em pleno dis-curso do Ministro, o Albino Marra, que não gostava do sub-sídio que o Governo concedia para as farinhas das crianças, talvez por ser solteiro e não ter filhos, embora fosse doido por crianças, lançou este brado singular que ecoou por toda a praça:

-- Abaixo a mamadeira dos meninos! -- Abaixo o azeiteiro (Dr. Oliveira Salazar)! E à voz de prisão da Guarda Nacional Republicana

que estava presente e logo o agarrou para o levar ao posto, foi preciso o Sr. Ministro dizer, lá da varanda, que largassem o homem e o deixassem ir em paz.

De vez em quando emparceirava com o Joaquim Cuco, seu ilustre colega e digno compincha nos copos. Este, que não era nada tolo e tinha ideias revolucionárias e anar-quistas, não cessava de bater na mesma tecla:

-- Não há direito. Somos todos irmãos e filhos do mesmo Pai. Uns muito ricos e outros muito pobres. Não há direito. Quem fez isto não sabia o que fazia. Não há direito.

E afogava as suas mágoas e revoltas nuns bons quartilhos de vinho, pregando pelas ruas da vila as suas ideias revolucionárias e libertadoras.

Uma ocasião, entraram os dois parceiros, já meio

tocados, numa das igrejas da vila e, ao passarem pelo altar da Senhora da Graça, o Albino, contemplando a imagem da Padroeira, disse assim a lacrimejar, num arranco da sua al-ma boa:

-- Ó querida Mãe do céu, perdoai a estes dois ma-landros...

E saíram aos bordos, os dois comovidos, a limpar as lágrimas ao dorso das mãos.

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Ninguém os igualava nestas saídas imprevistas e inéditas.

Doutra vez, no dia da festa da Senhora da Graça, Padroeira da freguesia de S. Pedro, a 8 de Setembro, à hora da saída da procissão, o Cuco, no adro, junto a porta princi-pal da igreja, via passar atentamente as filas dos homens e das mulheres, os anjinhos, os guiões, as bandeiras e os an-dores. E quando o andor da Padroeira surgiu na moldura da porta e girândolas de morteiros atroavam os ares, os sinos repicavam e a Banda de S. Pedro atacava uma marcha grave, o Cuco, de joelhos, olhos postos na imagem da Senhora, ex-clamou comovido, num frémito da sua fé:

-- Um rais me parta se há Senhora mais linda do que esta!

Assim misturavam, os dois parceiros, o sagrado e o profano, sem prejuízo das boas almas que ambos possuíam, cada um no seu género, nomeadamente o Albino Marra que tinha a sua alma simples guardada num invólucro de ho-mem rude, baixote, de meia-idade, de pernas tortas, olhar azul e bigode hirsuto e aloirado.

E assim ele era da inteira confiança do seu patrão, o Sr. Joaquim de Matos, embora este, à hora das refeições, o mandasse em baixo, a adega, com uma garrafa, buscar o vi-nho para a mesa, mas sempre a cantar ou a assobiar, não fosse o diabo travesso e o tentasse a levar o gargalo à boca.

No regresso da adega, o patrão, a rir-se com ele, sempre lhe perguntava:

-- Então Albino, foste sempre a cantar? -- Saiba V. Exa. que sim! Quando Joaquim de Matos ia para a Serra, no Ve-

rão, passar um mês na sua casa de S. Lourenço, o Albino Marra fazia sempre parte da comitiva como elemento indis-pensável.

E ia de cântaro à fonte, várias vezes por dia, ao pi-nhal buscar lenha para o fogão da cozinha e, uma vez por

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outra, à vila, para trazer o correio e um ou outro mantimen-to que fosse necessário.

Duma dessas vezes chegou a S. Lourenço desfigu-rado e de rosto vermelho, o roupão, de riscado azul, todo cheio de terra e o garrafão, partido e sem vinho, preso pelo gargalo.

O patrão, ao vê-lo assim, perguntou-lhe surpreen-dido:

-- O que foi isso, Albino? E este, a coçar a cabeça, explicou-lhe: -- Saiba V. Exa. que foi um homem, vestido de pre-

to, que me saltou ao caminho e tinha os pés como os das cabras, uns cornichos na testa, de pêra e um rabo comprido que lhe chegava ao chão. Vi logo que era o diabo. E vai ele disse-me assim: Albino, quando fazes o que prometeste? -- Que é que eu prometi? -- Prometeste suicidar-te. -- E vai eu atiro-me a ele e da refrega que tivemos fiquei assim todo sujo e o garrafão feito em cacos.

O patrão sorria, do cómico da cena. E a sorrir-lhe perguntou, com vontade de rir às gargalhadas:

-- Mas ó Albino, tu viste mesmo o diabo, como es-tás a dizer?

-- Saiba V. Exa. que sim. Era um sujeito vestido de preto, de pêra, com uns pés parecidos com os das cabras e uns cornitos assim.

E punha dois dedos sobre a testa, a atestar a vera-cidade daquela história, não fosse alguém duvidar.

-- Bem, - disse Joaquim de Matos. -- já vejo que pa-ra ires buscar vinho, não prestas. Tenho de chamar outra pessoa.

E o Marra, de cabeça baixa, respondeu: -- Faça o que V. Exa. “quijér”!

Passados alguns anos, aquele homem de baixa estatura, de pernas curtas e tortas, que tantas léguas tinha andado a fa-zer recados e a cumprir as mais diversas missões, deixou de

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poder andar, com as pernas tesas e pesadas e a ponto de mal poder levantar-se do leito.

Deixou de ir à fábrica e o pior é que o patrão Joa-quim de Matos caiu à cama também, muito doente e sem esperança de poder voltar a levantar-se.

Um dia quis ver o seu velho serviçal e amigo, e leva-ram-lho, dois homens, sentado numa cadeira, a barba des-cuidada e o rosto macilento e emagrecido.

Quando entrou no seu quarto e o depuseram na cadeira, junto ao leito, o patrão disse-lhe:

-- Olha, Albino, ao que nós chegámos... E o velho serviçal, humilde como sempre fora, apenas pôde balbucrar:

-- Saiba V. Exa. que Deus tem lá muito para nos dar...

-- Pois tem... pois tem... -- respondeu Joaquim de Matos, comovido.

E soerguendo-se do leito, atraiu-o a si e abraçando-o, disse:

-- Adeus, amigo! Reza por mim, como eu rezarei por ti...

De olhos marejados, despediram-se mudamente e nunca mais se voltaram a ver. Manteigas 22-6-1980

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A TI CLOTILDE DOS REQUEIJÕES

-- Quem merca os requeijões? Quem merca dos re-

queijões? Era o pregão da ti Clotilde, logo de manhã, pelas

ruas da vila, a vender a sua boa e apreciada mercadoria. Era uma mulher agradável, castiça, já passante dos

sessenta, de média estatura, um pouco curvada e de cara vermelha, devido talvez aos bons ares da serra que, com frequência, respirava.

Trazia sempre um lenço atado à cabeça, que lhe dava um certo aspecto de minhota, saia rodada até aos tor-nozelos e pés descalços, os quais davam nas vistas porque tinham enormes joanetes, adivinhando-se-lhe muitos calos nas solas.

Atravessava a Serra duas vezes por semana, quer de Verão quer de Inverno e o seu companheiro inseparável era o burrinho, o Ruço, que transportava a carga e era já bastante velhinho. Andava sempre descalço, como ela. Saí-am de S. Martinho de madrugada e regressavam à aldeia, na manhã seguinte, a mesma hora, depois de terem feito o seu negócio, na véspera.

Assim aguentavam os frios e neves de Inverno e o sol e calores de Verão, estes bem mais fáceis de suportar, pois até era agradável atravessar a Serra no tempo quente, logo de manhã cedo.

Mas o Verão era fugaz naquelas paragens, pois, como dizia um velho boticário da vila, nesta terra só havia duas estações: a do Inverno e a dos Correios. É que a vila era tão linda, tão linda, que até o Inverno cá vinha passar o Ve-rão.

Mais simplesmente, a gente do povo dizia, batendo os queixos de frio: -- Isto é uma terra derrancada! Quem a aqui fez, precisava o pescoço cortado!

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É que o frio era quase sempre intenso e insuportá-vel nesta terra serrana. Os frios e os trabalhos que a ti Clo-tilde curtiu, por essa Serra fora, tinham muito que contar! Mas era uma pobre de Cristo, que tinha de ganhar a sua vi-da e não havia outro remédio senão andar com a cara p'rá frente, de qualquer maneira.

Lá tinha em casa um filho aleijadinho e perdido do juízo, para sustentar. O burrito transportava a mercadoria que, além dos requeijões, constava de cebolas, feijões, alhos, maçãs e chinelos.

Tudo se vendia, mormente maçãs, pois, nesse tem-po, não havia pomares como existem hoje, por todos os la-dos.

Com o burro preso pela arreata, andava ela, pelas ruas da vila, a apregoar:

-- Quem merca os requeijões? Alhos, cebolas, ma-çãs... Quem merca os requeijões?

Quase junto à porta da casita que ela alugara, sur-giu a uma janela a cabeça desgrenhada da Rosa d'Avó que logo perguntou:

-- Ó senhora Clotilde! A como são os requeijões? -- A quartinho, vizinha. -- A quartinho?! São muito caros. Não os deixa a

dez tostões? -- A mais do que isso me ficaram eles. Ficaram as duas emudecidas, por instantes, e a Ro-

sa continuou: -- E são frescos? -- Olha, frescos! -- respondeu a Clotilde. -- Vi-os eu

fazer, ontem à noite. Assim me Deus salve. Isto são o rei dos requeijões, feitos pela Augusta, a mulher do Zé Alho, lá de S. Martinho. Conhece-a?

-- Não conheço, -- disse a Rosa. -- Isso tem umas mãos de prata. Para queijos e re-

queijões, não há como ela. Até vem gente de Lisboa, de

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propósito, à procura dos queijos do Zé Alho. Uma coisa é ver-se, outra dizer-se.

-- Bem, -- disse a Rosa d’Avó, já sorridente de con-vencida. -- Deixe lá ver dois.

E sumiu-se da janela para ir à cozinha buscar um prato vidrado, de fundo raso. Já na porta da rua, de prato na mão e reparando na cara vermelha da ti Clotilde e no suor a escorrer-lhe da testa, perguntou-lhe:

-- Vem cansada, senhora Clotilde? -- Um bocado, vizinha, um bocado. É um estirão, de

S. Martinho aqui. O que me vale é o burrito, senão não bo-tava ca.

--Isso acredito eu. E o frio, de Inverno, senhora Clo-tilde? Como aguenta tanto frio, na Serra?

-- Olhe, filha. O que me vale é ir bebendo uns goli-tos de aguardente, p'ra aquecer. Levo sempre uma garrafita com ela. Se não, o que havia de ser de mim!

Sobretudo o nariz da ti Clotilde, mais rubicundo do que o resto da cara, dava bem a entender que abusava da pingoleta.

-- Bem, senhora Clotilde, -- disse a Rosa, a despedir-se. – Agora toque a campainha da porta do sr. doutor, que também la querem requeijões. A senhora, há dias, disse-me. Defronte da casa da Rosa d’Avó ficava a casa do médico da vila, cujo tamanho e paredes de cantaria contrastava com as das casas vizinhas. Era uma casa antiga, de família da esposa do clínico, tipo solarenga, toda feita de granito e com uma varanda a todo o comprimento, com vidros de diversas co-res nas portas e janelas da referida varanda.

A ti Clotilde carregou no botão da campainha da porta e breve apareceu à varanda a Lucinda, criada do dou-tor, que logo perguntou para a rua:

-- Quem é? -- Sou eu, a Clotilde. -- Ai, é a senhora Clotilde? Espere um bocadinho.

Eu vou abrir.

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E, daí a pouco, estava a senhora Clotilde no cimo da escada do médico, com a cesta dos requeijões enfiada no braço.

Veio a dona da casa que logo perguntou: -- Como tem passado a sra. Clotilde? Bem de saú-

de? -- Assim, assim, minha senhora. Cá vamos andando

como Deus é servido. E a senhora, o sr. doutor e os meni-nos?

-- Tudo bem, graças a Deus. Então vamos aos nos-sos requeijões?

O meu marido gosta muito deles, mas é dos seus. Alguns são muito salgados e desses não gosta. Mas dos da sra. Clotilde, sim. Costumam ser muito bons.

-- Obrigada, minha senhora. Quantos quer? -- Aí uns três. Devem chegar. Depois, para a sema-

na, volta cá outra vez. -- Então ficam quatro e um ofereço-lhe eu. -- Não, isso não, sra. Clotilde. Agradeço-lhe muito,

mas a senhora não anda a negociar para fazer esses favores. Ficam os quatro, mas pago-lhe os quatro.

-- Seja pelas almas. Como a senhora quiser! A Lucinda tirou os quatro requeijões que pôs numa

travessa e a senhora pagou os requeijões, dizendo: -- Então quando volta, sra. Clotilde? - Eu venho cá às segundas e sextas-feiras. Só se de

todo em todo não puder. Mas é raro faltar. Às vezes chego, mas não sei se querem alguma coisa... Envergonho-me de bater.

-- Pois toque à campainha, de hoje em diante. É que nós estamos lá para dentro, a casa é grande e não ou-vimos o seu pregão. Bem, sra. Clotilde, vá lá então à sua la-buta. Não lhe queremos tirar mais tempo. Mas admiro, na sua idade, como ainda anda metida nestes negócios. Não tem medo de atravessar a Serra, assim sozinha?

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-- Medo de quê, minha senhora?! -- Eu sei lá. Da neve, do frio, dos lobos, dalgum mau

encontro. -- E que remédio tenho eu senão andar com a cara

p'ra diante! Que remédio tenho eu! Tenho lá em casa um fi-lho aleijadinho e maluquinho do juízo, que precisa de co-mer. Além disso é tolhido dos braços e pernas e não se le-vanta da cama. Ficou assim da meningite que lhe deu quan-do tinha cinco anos. Meu rico filho! Nascer com saúde e per-feitinho como ele era e ficar assim naquele estado... Sou uma pobre viúva, pois o meu homem morreu, vai agora para vinte anos, dum desastre no trabalho. ii

-- De desastre, sra. Clotilde?! Como foi isso? -- Andavam a fazer a barragem, na Lagoa Comprida.

Davam lá muitos tiros de pedreira, para desfazer as pedras grandes. E vai daí, atacaram lá uma vez um poio enorme, com pólvora e rastilho, pegaram-lhe o fogo, o tiro não se deu e os homens julgaram que estava encravado. Então aproximaram-se, muito confiados, quando de repente, -- bum! -- aquilo rebentou e o meu homem, que ia na frente, apanhou com uma pedra na cabeça, que lha abriu de meio a meio. Levaram-no logo para o hospital de Seia, aonde foi visto pelo Sr. doutor Mota Veiga, mas não deu tempo para nada. Estava em estado lastimoso e morreu ainda nesse mesmo dia. Meu querido homem!

E tirou um lenço do bolso para enxugar as lágrimas. -- Realmente, sra. Clotilde, -- exclamou a mulher do

médico. -- Tem sido muito infeliz. Mas Deus lá está, para a recompensar. Dizem que Deus trata assim os amigos. Todos estamos sujeitos, uns duma forma, outros doutra...

- Pois é, minha senhora. Mas uns mais do que ou-tros. Não sei porquê, mas é assim.

-- Mas olhe, sra. Clotilde, -- continuou a mulher do médico. -- Todos nós somos filhos de Deus. Mas sabe como S. Paulo chama às pessoas muito felizes, a quem tudo corre

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bem? Filhos bastardos de Deus. E S. Paulo sabia bem o que dizia...

-- Será assim, minha senhora, será mesmo assim. Mas custa muito sofrer certas coisas. Há vidas muito custo-sas, muito cheias de sofrimento. Mas seja feita a vontade do Altíssimo... Ele tudo sabe e nós somos para aqui uns cegui-nhos, que nada sabemos.

E, com os olhos ainda húmidos, concluiu: -- Bem, deixa-me lá ir à minha vida. Adeus minha

senhora. Cá virei, qualquer dia. --Venha, venha. Adeus, sra. Clotilde. Desceu as escadas e, daí a pouco, lá andava pelas

ruas, a clamar: -- Quem merca os requeijões?! E a labuta continuou, durante todo o dia, puxando

pela arreata do burro que, por vezes, já não queria andar. -- Anda Ruço, anda, que logo já descansas, à tua

vontade. E animava o burro com uma mão cheia de feno que

tirava debaixo da albarda. Num dos becos do fundo da vila apareceu a Josefa

Vinagre a descer o balcão da casa, de aspecto macilento e muito triste e andrajosa.

-- Então Josefa, queres algum requeijão? -- pergun-tou a Clotilde.

-- Querer, queria... Mas o meu homem não me dá nada, é um borrachão que anda sempre metido nas taber-nas. E ele pouco ganha. É um preguiçoso. A mulher e os fi-lhos que façam cruzes na boca. É para isto que uma mulher casa, p'ra esta desgraça. Mais valia deitar-se a gente a afo-gar, antes de dar este passo. Há horas muito ruins, sra. Clo-tilde. Mal haja essa hora em que eu disse que sim, ao meu homem. A mim bem me avisaram. Mas não quis acreditar. Mas era mais que verdade, o que me diziam. Agora auguen-ta, estafermo, auguenta para aí.

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A ti Clotilde, que tinha um coração sensível e bom, lá lhe foi recomendando:

-- Tem paciência rapariga. Há muitas como tu. Ou julgas que és a primeira? Deus experimenta-nos de muitas maneiras. A tua cruz é essa. Tens de levá-la com jeito, senão é pior.

-- Isso é bom de dizer, sra. Clotilde. É bom de di-zer... Se estivesse no meu caso, não falava assim.

-- Tinha de auguentar, que não tinha outro remé-dio. Ou julgas que não tenho também a minha cruz? Mais do que tu julgas. E hei-de ir matar-me por causa disso?

E a olhar para um e outro lado, não fosse alguém surpreendê-la, tirou um requeijão dum dos cestos, entre-gou-o rapidamente à Josefa, dizendo:

-- Toma lá este, que t’o ofereço eu. Escolhe tam-bém uns chinelos, que deves precisar e pagas quando pude-res. E não dês à língua. Escusam de saber.

A Josefa, muito comovida e com os olhos humede-cidos, só pôde articular:

- Bem-haja, sra. Clotilde. Deus lhe dê tantos anos de vida e tantas felicidades como desejo para os meus fi-lhos.

A ti Clotilde, já a puxar a arreata do burro, ainda respondeu:

-- Não tens que agradecer. Agora vai à tua vida e que Deus te ajude a levar a tua cruz.

Foi por essa altura que ela trouxe a Vila Herminius um rapazinho dos seus sete anos de idade, que pedia esmo-la e contava uma história muito triste e até dramática, que porventura lhe tinham ensinado para melhor comover as pessoas e ser mais abundante o fruto da sua pedincha. Era um miúdo pálido e magrito, de olhar meigo e um pouco tris-te, de rosto oval e muito bonito, a despeito do seu aspecto mal cuidado e sujo que muito prejudicava a simpatia que inspirava.

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-- É seu neto? -- perguntavam algumas pessoas à ti Clotilde, olhando o pequenito com uma certa compaixão.

-- Não, não é meu neto, -- explicava ela. -- É filho duma vizinha minha, lá de S. Martinho, que me pediu para o trazer. Mas é uma desgraçada, muito pobre e muito doente, que não tem onde cair morta, porque o homem foi para o Brasil e nunca mais lhe escreveu. Nem sabe se é vivo ou morto. Deixou-lhe este pequeno que lá anda às esmolas, porque não tem com que o sustentar.

As pessoas olhavam com pena o miúdo, dizendo: -- Pobre criança! -- E tão bonito que ele é! -- diziam outras, condoí-

das e afagando-o com afecto. Veio algumas vezes com a ti Clotilde e, quando ha-

via muito frio e por ser a casita dela um pardieiro, sem vi-dros nas janelas e os pavimentos esburacados, costumavam dormir os dois, por caridade, no forno de cozer o pão. Havia vários fornos nessa altura e, além do calorzinho, também se consolavam com o bom cheiro do feijão do forno, assim chamado porque era costume, nesse tempo, colocarem pa-nelas, de preferência de barro, dentro dos fornos, depois de retirar o pão já cozido. E nunca mais os feijões voltaram a ter o sabor delicioso que tinham esses, cozidos assim.

Um dia o Francisco, que assim se chamava o rapazi-to, foi pedir esmola à casa do já referido clínico da terra.

A dona da casa e os filhos, quando o viram assim tão andrajoso e pobrezinho, descalço, os cabelos emara-nhados e a roupa em pedaços, tiveram muita pena dele. Quem não havia de ter?

Sobretudo o João, um dos filhos do casal, que, nes-sa altura, fizera um Curso de Cristandade, tomou o miúdo a seu cargo. E então ficou com ele em casa. Deram-lhe um bom banho de limpeza, vestiu-se e calçou-se com roupas doutro irmão de idade aproximada e foi ao barbeiro cortar o cabelo e o alfaiate para lhe ajeitar uma jaleca e uns calções.

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Estes artistas, honra lhes seja feita, não levaram nada pelo seu trabalho. Depois de tudo isto, o Francisco pa-recia um principezinho. Jantou com todos da casa e fez-se um serão musical, com piano, violino e coros, nos quais to-dos tomaram parte.

O Francisco também cantou, riu muito e sentiu-se feliz.

Arranjou-se-lhe uma caminha e não lhe faltou o beijinho que a sua mãe lhe daria, se ali estivesse também. Como ela teria chorado e sorrido, de ternura, se tivesse pre-senciado e vivido aquela cena! O certo é que o Francisco fez um sucesso, no dia seguinte, ao regressar à sua terra. E tão lavado e bem vestido ia, que até parecia um fidalguinho. Pobre criança, tão pequenina e desamparada! Que será fei-to do Francisco, que nunca mais apareceu?!

Passado algum tempo correu o boato que a ti Clo-tilde tinha sido atacada e devorada pelos lobos, deixando-lhe apenas alguns ossos e os pés dentro dos sapatos.

Nem se lembrava, essa gente boateira, de que ela andava quase sempre descalça. Mas apareceu, passados al-guns dias, em Vila Hermínius, com o seu costumado pregão:

-- Quem merca os requeijões? Fizeram-lhe uma festa em todos os sítios por onde passou, pois era bem popular e estimada em toda aquela vila.

Ao verem-na novamente, com a sua cara muito vermelha e a cesta dos requeijões enfiada no braço, excla-mavam, com alegria:

-- Viva a Sra. Clotilde! Ainda bem que foi boato! ” E ela explicava: -- A história dos lobos? Confundiram-me com uma

mulher das Aldeias que foi assaltada por dois cães de gado, perto de Gouveia. Ela levava um cãozito pequeno e os outros atiraram-se a ele. A mulher quis defender o seu cãozito e os cães de gado ati-raram-se a ela. O que valeu foi acudir o pastor, dono desses

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cães, senão davam cabo da pobre mulher. Mas comigo não houve nada, graças a Deus!

As pessoas então advertiam: - Mas vá tendo cuidado, sra. Clotilde! Que Deus a

proteja, nessas travessias da Serra. E ti Clotilde respondia: -- Há-de ser o que Deus quiser... Estamos todos à

mercê de Deus. Em conversa com a esposa do clínico, a ti Clotilde

dizia: -- Já vi um lobo ou outro, a atravessar a Serra. Mas

nunca me fizeram mal. E, um pouco a rir, continuou: -- Dizem que eles atacam mais no Inverno, quando

não há rebanhos. Se eles me atacassem, dava-lhes pão e chouriça que trago sempre comigo e não haveria qualquer novidade.

-- Nunca fiando sra. Clotilde, nunca fiando... -- dizia a esposa do doutor. -- São feras e basta. Mas Deus há-de protege-la, como até aqui.

Passado algum tempo chegou a triste notícia de que a ti Clotilde tinha morrido na Serra, já perto de S. Marti-nho.

Ao atravessar um riacho, devido talvez ao torpor em que se encontrava por ter bebido demais ou por lhe ter dado alguma coisa de súbito, caiu do burro abaixo, ficando de bruços dentro da água e lá morreu. O burro seguiu o seu caminho e quando na aldeia o viram chegar, sem a dona, lo-go pensaram o pior.

Foram a sua procura, mas sem poder já valer-lhe. Desta vez era verdade. Estava escrito que a ti Clotilde, figura típica e casti-

ça, que tanto labutara na vida e tão estimada era naquela vi-la serrana, havia de morrer na Serra, deixando em todos que a conheceram a mais sentida pena e, porque não dizê-lo, a mais viva saudade.

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O COMPADRE E O SR. PRIOR

Um pândego, aquele Alberto! Conheci-o quando

ele tinha vinte anos e já então era assim, alegre e vivaço, atrevido e palrador, embora um tanto patusco e um tudo nada tocado da mioleira.

Por esse tempo, como os pais eram um bocado abastados e não tivesse encargos de família, pois era soltei-ro, levava uma vida livre e folgazã e sem um mínimo de pre-ocupações que o embaraçassem ou tolhessem no seu cami-nho descuidado e feliz.

Trabalhava, durante o dia, nas propriedades rústi-cas de seus pais e nas que ele possuía, herdadas da sua ma-drinha de baptismo, já falecida, mas, à tarde e à noite, era vê-lo a conversar e a rir, na rua ou na taberna, com os seus amigos e conhecidos, ou a namoriscar, nos balcões das ca-sas ou, o que era pior, por sítios mais ou menos solitários e escusos.

Um dia o padre António que era o prior lá da fre-guesia, homem simples e bom, espontâneo e pitoresco nos seus ditos e conversas, muito integrado naquele meio rude e primitivo mas sem deixar de ser firme e até austero quan-do se tornava necessário, disse-lhe assim:

-- Alberto, Alberto! Tu assim não vais bem. Não gosto de te ver nessa vida que levas.

-- Na vida que levo?! -- respondeu o Alberto, em tom de admiração. -- Mas então, senhor prior, que vida é que eu levo? De dia trabalho e, à tarde e à noite, gosto de conversar e de me distrair um bocado. Que mal há nisto, se-nhor prior?!

-- Pois sim, pois sim, -- respondeu o padre, aquies-cente. – Não digo menos disso. Mas tudo se quer em ter-mos, em termos. E não venhas cá com cantigas. Não ê só is-so, o que por aí se diz.

O Alberto coçou a cabeça e respondeu:

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-- São mais as vozes que as nozes, senhor prior. Acredite no que lhe digo. E, se não for agora, quando ê que me hei-de divertir um bocado?! Quando for velho, senhor prior?

-- Divertir, divertir! -- replicou o prior. -- Eu não sei lá dessas vidas. Tu é que sabes. Mas ouve lá, Alberto, ouve o que te digo. Por que não te casas? Não era melhor do que andares por aí, sabe Deus como, a fazer asneiras? Arranja uma mulher que te faça jeito e casa-te, rapaz. É o melhor que tens a fazer. Não ê preferível do que andares a conde-nar a tua alma e um dia teres de ir malhar, quer queiras quer não, às profundas do inferno? Pensa nisto, rapaz, en-quanto é tempo. Olha que a morte bate-nos à porta dum momento para o outro e quando menos o esperamos.

O certo ê que o Alberto começou a cogitar naquilo que o padre dissera e deu então em amainar e a mudar um pouco de vida.

Lançou então os olhos para uma rapariga de quem gostava desde criança, a Graça Tanganho; que não se fez muito rogada e, passado menos de um ano estava casado com ela. Começou então uma vida mais normal e sossegada, embora o Alberto não dispensasse a visita habitual à taber-na, para conversar com os seus amigos e ir apanhando o seu pifãozito que, por sorte, lhe dava quase sempre para o ale-gro.

O pior foi que, passados meses, estando a mulher em gravidez de termo, começou a inchar toda e a perder o conhecimento, de vez em quando, até que teve de ser leva-da, de urgência, ao médico duma vila próxima, o qual a mandou internar imediatamente no hospital dessa vila.

-- Mas ela o que tem, senhor doutor? -- perguntou o Alberto, muito aflito e de ,olhos esbugalhados, após o exame clínico.

-- Eclampsia. Mas você não sabe o que é e o melhor será leva-la já para Coimbra, onde pode ter melhor assistên-cia.

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-- Ó senhor doutor! Veja lá isso! Preferia que ela fosse aqui tratada, -- redarguiu o Alberto, com voz suplican-te.

-- Bem. Então fica, -- respondeu o médico. -- Mas não afianço nada do que possa acontecer.

-- E lá em Coimbra, afiançam-na? -- interrogou o marido, suspenso dos lábios do doutor.

-- Isso não sei, -- respondeu este. -- Mas julgo que não.

-- Então ela fica. E o senhor doutor faça lá o que puder, que não se há-de arrepender.

A Graça ficou. Deu muito trabalho, mas salvou-se. E salvou-se a criança, um robusto rapaz, com mais de quatro quilos de peso, que era mesmo uma admiração. Passados uns quinze dias regressaram à terra e o médico foi logo con-vidado para padrinho do rapaz e almoço do baptizado. Este realizou-se um mês depois, em casa do Alberto, com a pre-sença do médico e da esposa, do senhor prior e de pessoas de família do casal.

Foi um almoço muito animado, com ditos e chistes do Alberto e do senhor prior, tendo cada pessoa na sua frente uma rima de cinco pratos, muito grossos, de Saca-vém. Mal se viam uns aos outros e o almoço foi todo obri-gado a carne e realçado, a certa altura, com um enorme borrego numa grande travessa.

Logo o Alberto separou a cabeça do animal e lan-çando-a no prato do médico, exclamou:

-- A cabeça para o senhor compadre! Era um domingo e o médico e a esposa aproveita-

ram para assistir à missa celebrada pelo senhor prior que, já no final, a propósito duma grande barulheira feita com um caldeiro, e fora de horas, na noite anterior, e na rua onde habitava, lobrigou a criada no meio da assistência e apon-tando para ela, disse:

-- Não é verdade, ó Maria?

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-- Foi o pai deste! -- respondeu um garoto, de tacha arreganhada até às orelhas e de braço curvo para trás, a in-dicar um companheiro.

Risota geral em toda a igreja, acompanhada de co-chichos uns com os outros e até de palavras trocadas em voz mais alta, a que pôs termo o senhor prior que permitia o diálogo, mas não a indisciplina:

-- Silêncio! Isto aqui é a igreja, não é a feira de Agosto.

De resto, o senhor prior era sempre obedecido, apesar do seu feitio simples e até um pouco bonacheirão. Sabia dar-se ao respeito e, na verdade, toda a gente o con-siderava naquela terra.

Se havia briga ou zaragata na rua ou na taberna, à conta dos capacetes já quentes e das requintas altas e iam chamar o senhor prior, este vinha e não queria saber de desgraças ou de quem tinha ou não tinha razão. Era sopapo para a direita, sopapo para a esquerda e tudo entrava na ordem como por encanto.

E nem admira, dado que ele havia baptizado e ca-sado quase toda aquela gente, habituada desde sempre a respeitar e obedecer ao senhor prior.

Mas quem verdadeiramente mandava era a criada dele, a velha Maria que punha e dispunha em casa do prior e tinha intervenções pitorescas, como aquela de vir à rua, com o chapéu velho do padre António, tirar-lhe o novo da cabeça e dizer:

-- Hoje é o velho, não é este que traz. -- (Tudo por uma questão de economia, da qual era acérrima defensora, a velha criada do prior).

Também sucedera, algumas vezes, ir o padre cortar o cabelo ao barbeiro lá do povo e surgir à porta a Maria, que ordenava, investida de certo poder:

-- Corte-lho rente, ouviu? O padre ria, um pouco bonacheirão, para dar graça

ao caso mas, em casa, advertia a criada que não se metesse

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naquelas coisas para as quais não era chamada e tratasse lá das panelas e arranjo da casa, onde era o seu lugar.

-- Se o senhor prior não me quer cá, vou-me já em-bora – retorquia a velha criada, abespinhada com o caso e um pouco chorosa.

-- Ó mulher, não é nada disso, -- respondia o prior.- - Ninguém lhe fez mal.

E o caso ficava por ali, até nova e inoportuna inter-venção. É que o padre António era tão simples e tão bom, para não dizer tão simplório, por vezes, que dava azo àque-les pequenos abusos domésticos, que a criada não cometia por mal, mas por defesa e afecto àquele prior que ela, no fundo, tanto estimava e estremecia, como irmão ou pai.

Ninguém havia de dizer à primeira vista, mas o pa-dre António tinha sensibilidade musical, organizando até, lá no povo, uma Banda de vinte e cinco elementos, da qual fa-zia parte o compadre Alberto que tocava clarinete ou re-quinta, conforme as ocasiões. Faziam ensaio às terças e sextas-feiras e tinham um reportó-rio muito variado que ia desde música da Grã-Via e Rigole-tto, até às marchas graves e polca Sebastiana. Era nessa que o Alberto mostrava a sua “virtuosidade” na execução de tresquiálteras e semicolcheias, em andamento presto, que fazia a admiração de todos os presentes.

Quando, em certas tardes de domingo e no Verão, a Banda executava alguns trechos de música no velho core-to daquela aldeia, lá surgia uma voz, dentre o magote do povo, que pedia, alvoroçada:

-- Ô Alberto! Toca lã a Sebastiana! O velho prior sorria, de satisfeito, na regência da

Banda e mandando distribuir os papéis, dizia, em voz baixa: -- Bem, vamos lá à polca. E Alberto, mais uma vez, fazia um brilharete com a

execução daquela música que sabia de cor e salteado de tantas vezes a tocar. Mas havia horas de tudo e nalgumas o

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padre arreliava-se e barafustava, sobretudo quando a Banda desafinava ou ia fora de tempo.

Uma vez, numa procissão pelas ruas da aldeia, ia ele debaixo do pálio, devidamente paramentado, com a cus-tódia do Santíssimo e a Banda logo atrás, a atacar uma mar-cha grave.

-- Mas a Banda desatou a desafinar, cada um para seu lado. O padre começou a ferver lá por dentro e, não po-dendo conter-se, entrega a custódia a um seminarista que ia ao seu lado e, de capa de asperges aos ombros, volta-se pa-ra trás e entra a reger, de braço no ar e a entoar, muito enérgico:

--Tachim, tachim, tachim... E a Banda lá se recompôs, obrigada por aquela re-

gência, e o prior regressou ao seu lugar, muito congestiona-do e aborrecido com tal contratempo.

Mas tinha muitas assim, o senhor padre António. Doutra vez, na Covilhã, acompanhado de muita

gente da sua freguesia, aconteceu que, logo ao chegarem àquela cidade e antes de se incorporarem na procissão para que tinham vindo, muitas pessoas, derreadas pela caminha-da, já andavam descalças e de calçado na mão.

O próprio prior, muito aflito e acalorado, foi bater à porta duns afilhados que lá tinha e, logo que entrou na sala, disse assim:

-- Afilhada! Tens cá umas botas ou sapatos do afi-lhado, que me emprestes? Venho à rasca dos pés e não pos-so ir assim à procissão. E um pau de vassoura, tens cá? Es-queceram-se do pau da bandeira e agora temos de remedi-ar, de qualquer forma.

Entre frouxos de riso a afilhada foi buscar os objec-tos necessários e o padre, olhando para ela, continuou:

-- Tu ris-te? Havias de estar como eu, que não te ri-as tanto. Anda lá, anda lá...

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E a descalçar umas botas e a enfiar as outras, o pa-dre esbofava-se e transpirava por todos os poros, a prepa-rar-se para a procissão.

Foi nesse dia que o Alberto, tendo abusado da aguardente, foi acometido de violentas cólicas abdominais que o obrigaram a ser levado, de urgência, para o hospital. Aí lhe foi dito, pelo médico de serviço, que não podia beber vinho ou qualquer outra bebida alcoólica, visto ter uma úl-cera no estômago e estar arriscado a uma hemorragia ou perfuração.

-- Eu bem sei que não crio o meu filho, -- dizia o Al-berto, muito seguro de si e ainda mais seguro de não deixar a aguardente. -- A mim o que me vale é o bicarbonato, por causa das azias, -- explicava ele ao médico. -- Senão já tinha morrido...

-- Pois sim, -- respondeu o clínico, sorrindo dos mo-dos do doente. -- Mas tenha juízo, que é o melhor.

Por isso naquele almoço de baptizado do filho do Alberto, a que já nos referimos, o padre aludiu ao fraco que este tinha pela bebida, dizendo que era muito bom moço, bom marido, amigo de se rir, sim senhor, mas sempre res-peitador, não se podia dizer o contrário...

-- E muito bom músico, ali onde o vêem, -- continu-ava o prior.

-- Tem bom ouvido e muita queda, o Alberto. Dos melhores que lá tenho, na Banda. O pior é quando já esta de requinta alta, mesmo nos ensaios... Então é uma desgraça, não há nada a fazer. E é uma pena, pois anda a dar cabo da vida e da saúde...

-- Chegue-lhe, senhor prior, que ele bem merece, -- atalhou a mulher, a Graça Tanganho, formalizada e de as-pecto sério. – Não tem pena dele, nem da mulher e do filho.

-- Eu já te disse, mulher, muitas vezes, que não crio o meu filho, -- retorquiu o marido, muito convicto, a rir-se. -- É um palpite que cá tenho, há muito tempo.

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-- Porque és doido, -- replicou o prior, escandaliza-do. -- Se não fosses maluco, não dizias isso. Quem te priva, a ti, de deixares a pinga? Se é esse o teu mal, porque a não deixas, de vez?

-- Isso é bom de dizer... -- respondeu o Alberto a ponderar as palavras.

-- E de fazer, -- ripostou o padre, -- quando se tem juízo e vontade de acertar. O vício não pode mais que o ho-mem. Há muitos que deixam. Por que não fazes tu o mes-mo? Quem te priva de o fazer?

-- Eu já tentei, senhor prior. Mas o raio do vício... -- Tentaste, tentaste! É porque ainda não quiseste,

a valer. Ao menos lembra-te do teu filho. Tens contas que dar a Deus, por ti e pela família. Mas hoje é dia de festa, não vale a pena insistir. Estás farto de ouvir estas coisas.

E a mulher do médico, para mudar o rumo da con-versa, interveio:

-- Ouvi dizer, senhor padre António, que há tempos lhe fizeram uma homenagem, lá na vila, promovida pelos seus colegas. Gostava de ter assistido, mas só o soube mais tarde. Ninguém nos avisou, de contrário teria ido, com todo o prazer.

-- Pois foi, -- respondeu o prior. -- Foram coisas lá do padre Silvério que é homem para estas ideias. Mas eu não tive a culpa. Não havia razão para fazer isso. Pois o que é que eu fiz? Eu não fiz nada a não ser meter-me aqui, nesta aldeola, há quase cinquenta anos. Isso é que eles não eram capazes de fazer. Mas o senhor bispo disse, ordenou e eu obedeci. E cá estou a cumprir a minha missão, bem ou mal, Deus Nosso Senhor é que sabe. O que vale -- continuou o padre, sem falsa modéstia, -- é que já será por pouco tem-po. Missão cumprida, como o outro diz. Está o pão chegado à foice por que a idade não perdoa e a minha já vai indo um bocado adiantada. Agora que venham outros a continuar a tarefa.

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O médico viu as horas no seu relógio de bolso e ex-clamou, surpreendido:

-- Eia! Quase quatro da tarde! São horas de irmos andando, senão anoitece-nos aqui.

Levantaram-se da mesa e já cá fora, na rua, havia um magote de gente, sobretudo mulheres com meninos ao colo, que queriam consultar.

-- O senhor doutor está com pressa, -- advertiu o senhor prior em ligeira exprobração, -- Só poderá ver um ca-so ou outro mais urgente. De resto, o senhor doutor é que diz.

-- Na verdade, -- disse este, -- é já muito tarde. Qual é o mais doente?

-- Este e este -- disseram duas mulheres quase ao mesmo tempo.

O médico viu, interrogou, observou e no fim, pediu: -- Arranjem-me aí um papel para fazer a receita. E uma mulher, ao lado, perguntou: -- Com letras ou sem letras, sr. "doitor”? E o médico, muito sério, respondeu: -- Sem letras, claro. Foi forçoso despedirem-se porque o tempo urgia e

o sol baixava já muito, para os lados da Covilhã. O padre, que tinha um carro de sociedade com o Zé

Faustino, o endireita lá da terra, logo disse que o seu carro ia transportar o senhor doutor e a senhora, lá do alto, onde o médico havia deixado o seu por causa do mau caminho, daí à aldeia.

E logo o Alberto elucidou: -- O carro do senhor prior leva meia hora a pegar

mas, quando pega, zás! nem um raio o apanha. -- Ó Alberto, -- advertiu o prior, -- não digas isso,

porque o senhor doutor pode ter medo de ir nele e o Zé Faustino guia até muito bem.

-- Não há perigo, -- disse o médico sorrindo. -- Va-mos então embora.

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E feitas as despedidas a toda aquela gente, com acenos de mãos e votos de “boa viagem”, o carro lá arrancou com grande ruído do motor e logo desapareceu na curva da rua estreita, numa nuvem de fumo e quase rente às paredes das velhas casas.

Passado algum tempo o Alberto apareceu em casa do médico, com aspecto de estar bastante doente e a quei-xar-se das dores de barriga que o afligiam de vez em quan-do.

-- Então que é isso, ó Alberto?! -- Uma dor muito forte, aqui... -- e indicava a região

do estômago. -- Mas agora é pior que das outras vezes, se-nhor compadre, muito pior. O médico observou, palpou, tomou-lhe o pulso, pôs o ter-mómetro e, no fim, disse:

-- O Alberto precisa de ser operado imediatamente. Não há tempo a perder. Amanhã seria tarde, por isso ainda hoje e já a seguir, vai dar entrada, de urgência, no hospital da Covilhã. Leva uma carta minha para o médico operador, que entrega, logo que lá chegue. Combinado, ó Alberto?

-- Mas o que é que eu tenho, senhor compadre? -- Uma perfuração, seguida de peritonite. Não há

tempo a perder. Vou passar-lhe a carta e siga imediatamen-te para a Covilhã.

-- Mas eu tenho de ir a casa primeiro, dizer à mu-lher e à família...

-- Então vá de caminho e siga logo para o hospital. Mas o compadre Alberto, com o seu feitio de su-

perficial e gracejador, não foi nesse dia. Foi no dia seguinte e, mesmo assim, empurrado pela mulher, mais avisada do perigo do que ele.

O médico operador torceu o nariz ao observa-lo e logo mandou preparar tudo para a intervenção imediata.

O doente foi preparado, injectado e levado, sem demora, num carrinho de rodas, para uma sala, onde já es-

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tavam dois médicos com máscaras. Gracejando até ao fim, o Alberto entrou na sala de operações a cantar a Portuguesa.

'Mudado para a mesa de cirurgia foi logo incisado e aberto mas, devido ao seu estado deplorável, resultante do adiantamento que tivera, sob profunda anestesia e apesar do maior cuidado técnico, o Alberto, passadas duas horas, morria na operação. Manteigas, 30 de Maio de 1983

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DEUS E SATÃ

Trabalhava na fábrica como cerzideira, e, na igreja,

como cantora e catequista, pois era piedosa e activa e fora educada, pelos pais, em bons princípios cristãos.

Não obstante estes predicados, era também muito simples e modesta e considerada, sem favor, uma das rapa-rigas mais bonitas da sua freguesia. Parecia mais atraída por Deus do que pelos homens, e até havia quem pensasse e dissesse que Maria da Conceição, ou São, como lhe chama-vam, deixaria tudo, um dia, para entrar e professar em qualquer ordem religiosa.

Mas na tarde dum domingo festivo, no doce conví-vio campestre rapazes e raparigas daquela freguesia, com a presença do pároco e de pessoas de família dessa juventu-de, um dos rapazes, o Joaquim Pedro por sinal o chefe do grupo dos escuteiros e que trabalhava na mesma fábrica da São, chamou esta de parte e disse-lhe assim:

-- Olha, São. Ando há muito para dizer-te uma coi-sa. Gosto de ti e quereria casar contigo. Queres-me para teu namorado?

Apanhada assim de surpresa, a São corou um pou-co, ficou muda e pensativa durante alguns instantes e de-pois, simples e reflectida era, respondeu:

-- Não tinha pensado nisso... Nem supus que tives-ses isso na ideia.

-- Pois eu gosto de ti, há muito tempo. Há anos até. Mas acanhava-me de te dizer, sentia vergonha e timidez, ao mesmo tempo... Nem sei explicar-te.

Ela fitou-o insistente, durante alguns momentos, como a querer ler-lhe na fisionomia a verdade do que aca-bava de ouvir e, por fim, respondeu:

-- É caso para pensar... Darei a resposta daqui a uns dias. Achas bem assim?

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-- Okay -- acrescentou ele imediatamente, aliviado dum grande peso.

E o convívio continuou, tarde fora, sem o menor in-cidente e como se nada tivesse acontecido, de novidade, naquele lugar.

O sol baixava para os lados da Fraga da Cruz e a temperatura, agradável e amena, convidava a estar ali.

Daquele sítio, rodeado de pinheiros e carvalhos frondosos, com o seu cheiro aprazível a resina e outras es-sências subtis, via-se bem a vila, linda e graciosa, espalhada pelo vale e pelas encostas da Serra e, até quase à origem, o vale do Zêzere, sempre antigo e inédito, na sua vetusta be-leza, com os seus lances de rio, espelhento e ao sol, naquela tarde mansa e tranquila.

Apetecia ali ficar, horas e horas esquecidas, a sabo-rear aquele recanto serrano, à sombra daquelas árvores e junto à fonte velhinha que ali os tinha atraído e cuja água, fria e cantante, era deliciosa ao paladar e leve, muito leve, para toda a gente que ali passava.

As canções reboavam, entoadas por aquelas gar-gantas juvenis, desde o “Malhão, Malhão”, às músicas do Rancho dos Serranos da Estrela, quase todas da autoria do Sr. Pe. Parente, o velho pároco daquela freguesia, já faleci-do, cujo nome, de grande artista e de projecção nacional, fi-cara envolvido numa grande saudade e numa profunda ad-miração. Todos que tiveram a ventura de o conhecer, se lembravam das récitas e descantes populares desses belos tempos, como o Fado do Pastor, o Fado da Candeia, o Fado do Queijo da Serra, o Fado do Polícia, o Vira da Saudade, as Canção do Vale da Barca, a Canção das Lavadeiras e tantas outras músicas do mesmo autor, que se ouviam em lindas serenatas, por noites tranquilas ungidas de luar que nunca faltava, no sortilégio dessas noites saudosas…

O grupo que ali se encontrava já não era desse tempo, mas fazia lembrá-lo, no eco das canções que essas,

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sim, eram desse tempo feliz, no doce lirismo da sua incom-parável melodia.

Seguiu-se o lanche para o qual todos contribuíram, trazendo de casa a sua parcela de queijo, de presunto, chou-riço, doce e outros pitéus que tão bem sabiam naquele lugar aprazível, não tendo faltado uns bons garrafões do tinto que animaram, adentro do razoável, aquela rapaziada alegre e buliçosa.

Recitaram-se algumas poesias, houve ditos oportu-nos e de efeito cómico e, em tudo, reinou a alegria e boa disposição que estreitam ainda mais os laços de amizade e simpatia que uniam toda i aquela gente.

Mas foi forçoso dar fim àquele convívio agradável, porque o sol desaparecera há muito e não tardaria que as sombras da tarde anunciassem o crepúsculo...

Recolhidos os restos do lanche nos respectivos ca-bazes ou cestos, tomaram os seus lugares na camioneta e alguns carros particulares e todos regressaram à vila, bem-humorados e com a melhor das impressões.

Maria da Conceição ficara a pensar naquela decla-

ração imprevista do Joaquim Pedro, que estava longe de suspeitar, embora trabalhassem os dois na mesma fábrica e, portanto, nas melhores condições para ela se aperceber.

Mas nunca tal coisa lhe viera à mente, entregue ao seu labor de operária cumpridora e um pouco alheia às cu-riosidades femininas da sua idade.

Pensando bem, também gostava dele, do seu as-pecto de rapaz ajuizado, da expressão inteligente da sua fi-sionomia e da simpatia que irradiava da sua pessoa, sobre-tudo quando o via, em certos domingos festivos, com a sua farda de escuteiro e com o seu grupo, ladear o altar-mor da sua igreja. E depois vê-los a todos a comungar, quase no fim da missa, sem respeitos humanos e com o garbo caracterís-tico dos verdadeiros escutistas.

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Sensibilizaram-na estes testemunhos de fé e pen-sava que o que une verdadeiramente as pessoas é terem as mesmas ideias, os mesmos sentimentos, sobretudo de or-dem religiosa, que têm mais força do que as afinidades de raça ou até dos próprios laços de sangue. Depois de comunicar o caso ao seu pároco e director espiri-tual que achou muito bem aquele namoro e futuro casa-mento (o Joaquim Pedro era um bom rapaz, sério e traba-lhador), ela então disse que sim, passados uns dias e o na-moro começou, com bons auspícios e com agrado geral.

Só houve, ao que parecia, uma excepção: a Maria de Lourdes, que não gostou do namoro e tentou prejudicá-lo e destrui-lo, de qualquer maneira. No fim do trabalho, à tarde, Joaquim Pedro e a São reuniam-se, à saída, e vinham os dois, de conversa, até à vila, separando-se na proximida-de das casas onde habitavam.

E a despedida era, quase sempre, deste teor: -- Adeus querida... Amo-te muito... -- Adeus Joaquim Pedro, até amanhã.

Os pais da São gostavam deste namoro, dizendo

que o Joaquim Pedro era um bom rapaz e vinha de boa gen-te, portanto nada havia que dizer e para diante é que eram o caminho.

O tempo foi decorrendo, sem incidente de maior, esperando-se apenas o tempo da tropa para, depois dela feita, se realizar o casamento.

Um dia, no regresso da fábrica, no decorrer da con-versa e já perto da vila, a São disse assim ao namorado:

-- Ouve lá, Joaquim Pedro: talvez me possas dizer. Que bicho terá mordido à Lourdes para deixar de me falar? Vira a cara para o lado, quando passa por mim... E eu nunca lhe fiz mal. Que mal lhe podia eu fazer?! Nem a ela nem a ninguém.

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-- Perguntas-me a mim? -- respondeu ele, um pou-co admirado. -- Eu sei lá o que se passa por aquela cabeça! Só te digo que ela é maluca e o melhor é não ligares.

-- Não é tanto assim... Estas coisas custam um pou-co.

-- Deixa lá que eu vou averiguar e depois digo-te. Calhou encontrar-se com a Lourdes, passados dias,

cerca da meia-noite, à saída do trabalho do serão e trocadas algumas palavras de saudação, a Lourdes atirou:

-- Então Joaquim Pedro, quando é esse casório? Disseram-me que ias casar breve. Eu nem acreditei.

-- Interessa-te muito saber? Mas não acreditaste porquê? Pode-se também saber?

A Lourdes que não esperava uma resposta tão in-terrogativa, calou-se um pouco, mas logo continuou:

-- Interessa-me saber que sou tua amiga e gostava que acertasses. Demais que vais casar com uma rapariga muito à antiga, que não admite divórcios e o caso torna-se muito mais sério.

-- Divórcios?! -- atalhou o Joaquim Pedro. -- Então ainda nem casei e já estás a falar em divórcios?! Tu és de todo, Lourdes.

Nunca se sabe... -- retorquiu esta, de má sombra. -- E queres que te fale com toda a franqueza?

-- Diz lá, rapariga. -- Futura-me o coração que não vais ser feliz, com

ela. -- Mas porquê? -- Tu desculpa. Mas achoa-a muito beata, muito de-

lambida... Tu és um rapaz inteligente, esperto, com ideias arejadas. E ela tem ideias acanhadas, antigas, que já se não usam...

Joaquim Pedro calou-se, a saborear o diálogo e a achar a Lourdes um tudo nada venenosa e perversa. Trata-va-se apenas de uma grande de cotovelo e, por isso, ripos-tou:

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-- Bem, o que for soará. Mas só te digo uma coisa, Lourdes. Tomara muita gente ter os sentimentos e as quali-dades que tem a São. Adeus, boa noite.

-- Melhores do que os meus?! -- Não sei. Deus é que sabe. -- Deu? -- exclamou a Lourdes, desdenhosamente. -

- Deus não é chamado para estas coisas. -- Não? Então quem é? És tu?! A Lourdes sentiu-se amachucada e humilhada por

ele e achando-se em terreno pouco favorável, preferiu ca-lar-se.

Aguardaria melhor oportunidade para desfechar os seus golpes e não faltariam ocasiões. Até ao lavar dos cestos é vindima, como o povo dizia.

Despediram-se friamente e se há sentimentos pio-res do que a raiva e o ódio, é o que a Lourdes sentia naquela hora.

O namoro continuou, imperturbável e sereno, fi-cando bem assente que o casamento seria feito logo a se-guir à tropa, cuja recruta começaria no prazo dum mês.

Chegou finalmente a hora da partida. Joaquim Pe-dro foi despedir-se da São a sua casa, aproveitando para despedir-se da senhora Josefa, a mãe dela, que logo o man-dou entrar para falarem mais à vontade.

-- Então Joaquim Pedro, sempre vais para a tropa? – perguntou a senhora Josefa, na lida do trabalho domésti-co.

-- Que remédio, senhora Josefa, que remédio tenho eu senão ir! Sabe Deus o que me custa! Mas tem de ser. É lei geral para todos.

-- E para onde vais? -- Para Lisboa, base naval do Alfeite. Fui apurado

para a Marinha e escalado para essa base. Mas quero ver se venho mais cedo, pelo amparo que dou a minha mãe.

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-- Deus queira que consigas. Vais fazer-lhe muita falta. Mas diz-lhe a ela que sempre que precise de nós, ve-nha sem receio. Cá estaremos para a ajudar.

-- Obrigado, senhora Josefa. São favores que se não pagam.

-- Quais favores?! Temos de nos ajudar uns aos ou-tros enquanto cá andarmos. E agora conversem à vontade, pois tenho de ir à cozinha fazer umas coisas.

Ficando a sós, a São disse a Joaquim Pedro, com os olhos humedecidos:

-- Espero que me escrevas, logo que lá chegues. Tomando-lhe as mãos, enternecido, ele respondeu: -- Hei-de escrever-te muitas vezes e lembrar-me

muito de ti. Esteja onde eu estiver, estarás comigo, a toda a hora e momento. Terei muitas saudades tuas, São, e dos momentos tão felizes que passámos um com o outro desde que nos namoramos.

-- Mas dizem que Lisboa é uma terra tão má para a gente nova e sobretudo para os rapazes da tua idade... Te-nho ouvido tantas coisas...

-- O quê, São?! -- Que há lá muitas tentações, maus encontros,

muito mal... Sei lá, uma terra onde os rapazes se desnortei-am com facilidade.

-- Mas Deus há-de ajudar-me e tu vais rezar muito por mim.

-- Sim, vou rezar muito por ti. Mas para que Deus te ajude, tu hás-de fazer por isso, cumprindo a sua vontade, cumprindo os seus mandamentos. E vais prometer-me, Joa-quim Pedro, uma promessa solene...

-- Diz, São... -- De ires sempre à missa e de nunca deixares a

comunhão. Joaquim Pedro baixou a cabeça e respondeu: -- Prometo, São.

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Se assim for, -- retorquiu ela, -- Deus há-de ajudar-te e nunca te abandonará.

Despediram-se com lágrimas e com um beijo e, no outro dia de manhã, Joaquim Pedro entrou na camioneta da carreira para ir tomar o comboio à próxima estação do ca-minho de ferro, com destino a Lisboa.

A São ficou triste e desolada com a ausência do namorado. Mas sentia-se amparada com a presença de Deus na sua vida de católica e praticante.

O Joaquim Pedro escreveu logo que chegou a Lis-boa, como tinha prometido e as cartas sucederam-se, com regularidade, às quais a São respondia, com regularidade também, pedindo-lhe que andasse sempre por bom cami-nho e fosse fiel à promessa que lhe fizera.

Passaram as semanas, os meses... Entretanto a São continuava com o seu trabalho na fábrica, na igreja e a aju-dar a mãe na faina do trabalho doméstico. Um dia disse a esta num tom de confidência:

-- A mãe lembra-se daquela rapariga de quem lhe falei uma vez, a Lourdes Chocalhota, como lhe chamam, que deixou de me falar por causa do Joaquim Pedro e que dizia mal de mim por todo o lado?

-- Sim, filha e depois? -- Disseram-me que vai deixar a fábrica e que quer

ir para Lisboa, para junto das irmãs. Passa-me pela cabeça que ela vai para Lisboa por causa do Joaquim Pedro. Se as-sim for, as intenções dela não devem ser muito boas... Que lhe parece, mãe?

--Julgo que sim, que tens razão. Mas que lhe hás-de fazer?! Olha filha, entrega tudo nas mãos de Deus.

Mas, daí em diante, a São começou a andar preo-cupada e apreensiva. As cartas de Joaquim Pedro deram en-tão em ser mais espaçadas e mais curtas, e talvez menos ternas nas suas expressões de carinho. Talvez fosse impres-são dela, mas parecia-lhe que o Joaquim Pedro estava a pas-

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sar por qualquer transformação e já não era o mesmo que dali saíra.

Lisboa, terra de muitas e desvairadas gentes, como dissera o cronista, devia estar a desgastar a fé que o Joa-quim Pedro levara. E uma vez esta atrofiada ou desapareci-da, é fácil entrar na via larga das paixões e desvairamentos ou navegar nas águas turvas do mal, sem norte e sem rumo.

A São pensava nisto tudo com certa dose de pessi-mismo, talvez, até que um dia recebeu uma carta de Joa-quim Pedro a comunicar-lhe que brevemente viria vê-la, aproveitando dez dias de dispensa que lhe tinham dado.

E esse dia da chegada dele não se fez esperar. Na véspera a São recebeu um telegrama que dizia:

“Chego amanhã camionete correio. Saudades -- Joaquim Pedro".

Ficou cheia de alegria e esperou ansiosamente que ele aparecesse à entrada da porta, vindo varias vezes à jane-la para o ver surgir. E esse momento chegou, finalmente. Bateram à porta duas ligeiras pancadas e logo que ela pro-nunciou as palavras: -- Faça favor de abrir..., a porta entrea-briu-se e Joaquim Pedro destacou-se na luz da rua, que es-pargia pelo pavimento o primeiro lanço da escada.

Subiu este rapidamente e o Joaquim Pedro abraçou a São que ali o esperava, comovida e trémula.

-- Pensei que nunca mais chegasses! -- murmurou ela, afogueada e de lágrimas nos olhos, naquele instante fe-liz.

Sentaram-se junto da mesa, a olhar-se mutuamen-te e a atropelar as perguntas que ambos tinham para fazer.

-- Estás queimado e mais forte. Nem pareces o mesmo...

-- É da ginastica e do ar do mar. Pratica-se muito desporto e tudo isto desenvolve e faz muito bem.

-- E a mim como me achas? -- Muito bem, São. E sempre linda, como és.

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-- Obrigada, Joaquim Pedro. Mas não faças pouco, peço-te. Lá em Lisboa devem ser mais bonitas...

-- Há lá de tudo, como em toda a parte. -- Mas arranjam-se melhor, vestem bem, pintam-

se. Nós aqui... -- Aqui também já há muitas que se pintam, como

sabes. A evolução chega a toda a parte. Porque a humani-dade evolui, as sociedades mudam...

-- Às vezes para pior... -- disse a São, baixando os olhos, com modéstia, para não contrariar muito a opinião dele.

-- Mas é necessário que mudem. Ai de nós se ficás-semos sempre com uma sociedade como a de hoje. Há tan-tas injustiças, tanta miséria e, ao mesmo tempo, tanta ri-queza...

-- O que é preciso é que se não mude para pior. E que as mudanças se não façam por meios ilícitos e anti-humanos...

-- Sabes muito disto, -- retorquiu ele, um pouco admirado.

-- Nos retiros que tenho feito fala-se, às vezes, des-tes problemas. Como sabes estes retiros são feitos por pa-dres bastante cultos e competentes. E temos um livro, um grande livro, onde a verdade é apresentada por inteiro: o Evangelho. E lá vem que há-de sempre haver pobres, no meio de nós...

-- Mas Cristo era comunista. -- Sim, mas sem ódio, sem vingança, sem punho fe-

chado... Um comunista que só pregou o amor e a caridade, entre os homens. Somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai.

-- Mas as sociedades não mudam senão pela vio-lência. A burguesia não larga o que tem senão pela força. Por isso é necessária a revolução, mesmo com sangue.

-- E és tu um cristão, um católico, Joaquim Pedro? Quem te ouvisse havia de pensar que lá em Lisboa te deram volta à cabeça.

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-- Revi as minhas ideias, li muito, aprendi coisas que não esperava...

-- Também eu não esperava que estivesses tão mu-dado, tão diferente do que eras quando saíste daqui. Tenho muita pena, Joaquim Pedro! Gostava que falasses com o se-nhor padre António, que esse pode responder a essas coisas que aprendeste lá por Lisboa. Eu não, que sou para aqui uma ignorante, em certos assuntos.

-- Mas espero que a modificação nas minhas ideias não tenha a menor influência no nosso amor e no nosso namoro.

--Infelizmente tem, Joaquim Pedro. Tem e muita. Eu nunca poderia casar com um homem que não fosse cris-tão, como eu. Quando casar quero que os meus filhos te-nham um pai que os conduza no caminho de Cristo, o único seguro, para mim. Mas vejo que tu já não segues este. Tens lá outro, muito diferente.

-- Mas tu, São, não das aos outros a liberdade de pensarem como quiserem?!

-- Com certeza que dou. Com a condição de eu também usufruir dessa mesma liberdade. Ou o sol quando nasce não é para todos?

-- Sim, -- aquiesceu ele. -- Tens roda a razão. -- Então se assim é, nós seguimos, a partir de hoje,

caminhos diferentes. Pelo meu, já não queres andar. Pelo que segues, nós nunca nos poderíamos entender.

-- Olha, São, eu acho que tu exageras. Vou ter com o padre António e expor-lhe o caso. Penso que ele há-de vê-lo de outra maneira.

-- Então vai, Joaquim Pedro. E despediram-se um pouco contrafeitos, com me-

nos afecto e mais distanciados um do outro.

O padre António recebeu-o de braços abertos, na sacristia, onde trabalhava. Joaquim Pedro contou-lhe o caso

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da São, do diálogo e desfecho que tivera com ela. O pároco ficou pensativo uns momentos, fitou o rapaz e retorquiu:

-- É claro que eu sabia do vosso namoro. A São in-formou-me de tudo, pediu o meu parecer e eu não lhe pus a menor objecção. Mas com essa mudança nas tuas ideias, o caso muda muito de figura. A São pretende casar com um homem cristão, com um católico praticante e tu, pelo que acabas de me dizer, já o não és. Estás virado para o partido comunista e isso é precisamente o oposto das ideias dela. Não vos poderíeis entender. A harmonia dum lar assenta fundamentalmente na harmonia das ideias do marido e mu-lher e é muito difícil manter essa harmonia, com ideias dife-rentes um do outro, sobretudo em matéria grave.

-- Mas então o comunismo não é um sistema sério, como é o cristianismo, indo contra as injustiças do mundo, contra o capitalismo e seus opressores, contra a miséria e riqueza paralelas e defendendo as classes trabalhadoras do despotismo e da exploração? Não têm todos os mesmos di-reitos e não desejamos nós uma sociedade justa, sem clas-ses?

-- O comunismo é essencialmente um sistema ma-

terialista e ateu, combatendo, pela violência, tudo o que se oponha aos seus dogmas. É o crê ou morres, do maior des-potismo, a ponto de liquidar os seus próprios adeptos, se eles desertam das suas fileiras. Veja-se o que se passou com Trotsky, Pasternak, Soljenitzine, Sakarov e tantos milhões de pessoas que Staline mandou matar, fora os milhões que es-tão presos na Sibéria e noutros campos de concentração. E se o comunismo assim defende os direitos e interesses das massas trabalhadoras, porque persegue agora nove milhões de trabalhadores na Polónia, que não querem o comunismo, nem o seu jugo? Por que esmagou, com a maior crueldade e cinismo, o povo do Afeganistão, que vivia calmo e tranquilo, na sua própria casa? Gostara a Rússia que amanhã lhe fa-çam o mesmo, com direito igual? Não nego que haja injusti-

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ças e opressão, nas sociedades actuais. E claro que existem e é necessário debelá-las. Mas na Rússia não há também de-sigualdades e classes privilegiadas, como as dos mandões do partido, dos militares e dos governantes? E, a respeito de capitalismo, diz-me: o capital não é necessário para haver sempre empresas, feitura de obras, fomento, desenvolvi-mento dum país? Só com esta diferença: quando o capital está nas mãos do Estado, que passa a ser o grande e único capitalista, o capital rende menos, porque o patrão está lon-ge e as obras e empresas regem-se em condições menos fa-voráveis. Ao passo que se o capital é particular e o patrão está perto, este escolhe bons funcionários e dirigentes, com boa competência técnica e vê e fiscaliza o mesmo trabalho e produção. E por isso que em regimes socialistas, as empre-sas nacionalizadas acabam quase todas por dar prejuízo, porque são dirigidas por pessoas incompetentes e que só lá estão para encher as algibeiras. E, por isso, o socialismo e comunismo falham, porque não há verdadeira produção. Vê o que se passa na Alemanha, Inglaterra e até na própria França. Lá estão a repudiar o socialismo, porque na prática não resulta. É uma utopia, ultrapassada pela experiência, e contra factos não há argumentos, como é costume dizer-se.

O padre calou-se e Joaquim Pedro, dominado pela argumentação do padre, não sabia o que dizer.

-- Tenho muita pena que tenhas caído no domínio dessas ideias, -- continuou o sacerdote. -- Perdeste a amarra de Deus e da fé e mal tu sabes a falta que te vai fazer na tua vida. Quem terás na hora amarga do sofrimento, da doença incurável e da própria morte?! Deus é insubstituível e só Ele nos conforta e nos liberta: do nosso egoísmo, das nossas paixões, de todo o mal. E é isto que escraviza o homem e o faz infeliz -- o pecado. E Ele veio ao mundo e se fez homem para o livrar e remir desta escravidão. É este o alto sentido da vida, o grande negócio que não podemos deixar perder. Tudo o mais é secundário, acessório. Há gente que toma a nuvem por Juno e troca as farinhas pelo farelo. São aqueles

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que vendem a alma por um prato de lentilhas. Eu não queria que fosses desses, Joaquim Pedro. Vais perder a São, que é uma jóia de rapariga e a troco de quê, não me dirás?

Cabisbaixo e pensativo, Joaquim Pedro redarguiu: -- Mas eu não quero perder a São. E ela que não é

razoável, afastando-me de si. -- Tem paciência Joaquim Pedro, o que ela não

quer, e está no seu direito, é casar com um homem ateu. Pois um comunista não é, de facto, um ateu? Lenine não disse que Deus era o primeiro inimigo a abater? Por que fin-ges ignorar isto? Tu deves escolher entre Deus e Satã. Não há outra alternativa. E Deus diz no seu Evangelho, que quem não é por mim, é contra mim. Todos os comunistas estão contra Ele. Porque estão do lado do ódio. Mas, como diz Buda, nunca o ódio pode vencer o ódio. Só o amor pode vencer o ódio. Pensa nisto, Joaquim Pedro. Ainda estás mui-to a tempo. E adeus. Até amanhã. Despediram-se e Joaquim Pedro foi ruminar no que o padre dissera, pensando que estes problemas são mais complexos do que parecem à primeira vista e, que, como critério de avaliação, as árvores se conhecem pelos seus frutos... Não tivera ainda a coragem de dizer à São que a Lourdes o tinha procurado, por diversas vezes, em Lisboa, a solicitar a sua companhia e a oferecer-lhe as facilidades da sua conduta... Isto explicava já bastante da sua mudança de vida, nos últi-mos tempos, e a razão de já não ir à igreja e à comunhão como antigamente. Que diferença entre a São e a Lourdes, no aspecto moral e nas ideias e procedimentos, duma e doutra!

E, no entanto, ele afastava-se bastante da São para se aproximar mais da Lourdes, tal como se distanciava dos princípios cristãos para ir cair no comunismo.

Era lógico que assim fosse, mas via já, pelos maus resultados, que seguia caminho errado. A Lourdes não lhe oferecia garantias bastantes para poder casar com ela. Era

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uma aventura, como outra qualquer. A São exigia caminhos direitos e princípios bem definidos.

Não havia que hesitar. Procurou o seu pároco, no dia a seguir, e o diálogo travou-se novamente na sacristia, onde o padre batia o teclado da máquina de escrever.

Bateu ligeiramente à porta e perguntou: -- Dá licença?

O padre veio abrir e encarando o recém-chegado, exclamou: -- Ohl és tu, Joaquim Pedro! Entra e senta-te aqui. E ofereceu-lhe uma cadeira, na qual este se sentou. -- Venho procurá-lo, senhor padre António, para di-

zer-lhe o seguinte: meditei bastante na conversa que aqui tivemos e cheguei à conclusão de que eu estava errado e de que o senhor padre é que tem razão. O seu a seu dono e eu quero lealmente confessar o meu erro. Há muitos meses que deixei de frequentar a igreja e eu desejo confessar-me, ainda hoje.

O padre levantou-se, muito comovido, a abraçá-lo, e disse-lhe estas palavras:

-- Parabéns, Joaquim Pedro! Nem avalias a grande alegria que me dás!

E confessou-o, logo a seguir, dando ainda margem a uma troca de impressões referentes ao seu namoro com a São, que ficara desolada, uns dias antes.

-- Mas agora vai ficar radiante, a pobre rapariga! -- Se ela me acreditar... -- ponderou o Joaquim Pe-

dro, com um certo receio. -- Por que não acreditar?! Deixa o caso comigo. Eu

vou falar com ela. E agora, Joaquim Pedro, diz-me: quando acabas a tropa?

-- O mais tardar, daqui por seis meses. Mas eu que-ro ver se venho antes, por causa da falta que faço a minha mãe.

-- Então arranja lá isso, o mais depressa que pude-res.

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O padre António falou com a São que estava triste e renitente em acreditar. Mas teve de render-se à evidência porque o pároco lhe garantiu que, após a confissão efectua-da, não havia lugar a dúvidas.

Na véspera da partida, o Joaquim Pedro foi à igreja despedir-se do seu bom pároco.

-- Sei que vais fazer um casamento cristão, um ca-samento católico, com uma rapariga que é uma das pérolas da minha freguesia, -- disse o padre António. -- Quando o casamento é assim, com pessoas cristãs e bem conscientes do que vão fazer, constitui um dos melhores remédios con-tra o divórcio, um flagelo que está tanto na moda mas que nem por isso deixa de ser um grande flagelo, um dos males que mais atenta contra a família e, por isso, contra a socie-dade. Hoje o divórcio é a moda, a praga que alastra por todo o lado e que acontece por dá cá aquela palha, por uma levi-andade qualquer. E o mal recai sobretudo sobre os filhos que não têm culpa das leviandades dos pais. Os filhos são as grandes vítimas, pois eles necessitam dos pais como as plan-tas do sol, para vingarem e crescerem. Necessitam no dia-a-dia, do seu carinho, da sua protecção, do seu amor. Ainda há dias tive conhecimento do triste caso duma pequenita de dez anos, que eu conheço, por sinal muito viva e espertinha, que ficou sem o pai porque este deixou a mãe para ir viver com outra mulher e que um dia disse assim à avó, a quem ela muito ama: -- “Olha, avó. Se não fosses tu, eu já me ti-nha matado”. E num diário que vai fazendo, escreveu estas palavras: “O meu pai abandonou-me quando eu tinha nove anos”. Como isto faz doer a quem tem um mínimo de sensi-bilidade! Como é possível que um pai abandone assim uma filha, uma pobre criança de nove anos, para ir viver com uma amásia qualquer?! Com que direito se faz uma coisa destas?! E são certas ideias que defendem o divórcio, o aborto, o amor livre, que conduzem a estes bons resultados. E há quem torça por elas, quem as julgue as melhores de todas, porque infelizmente, como diz o Eclesiastes, é infinito

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o número de néscios. Ou o número de loucos, com mais verdade talvez. Mas não te quero prender mais, Joaquim Pedro. Vai à tua vida e, como última recomendação, peço-te que nunca abandones a grande amarra da fé. Ela vale um tesouro, para não dizer que ela é o grande e verdadeiro te-souro. Abraçaram-se comovidamente e, passados alguns meses, Joaquim Pedro casava com a São, na linda igreja da sua fre-guesia. Manteigas, 25-6-1983

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JOÃO BRANDÃO

João Brandão rondava, algumas vezes, por certos

sítios da serra, perto de Manteigas, mais a sua quadrilha. Era um bandido temível, de maus instintos, que aos

doze anos de idade matou um pobre pastor de Gouveia apenas para exercitar a pontaria. O pai, mais celerado do que ele, ficou muito contente com a façanha e a quadrilha era constituída por irmãos, primos e sobrinhos daquele pro-genitor.

Não se sabe bem porquê, as autoridades protegi-am-no, talvez por medo das suas vinganças ou pela grande influência que tinha no partido político que ele protegesse.

Praticou muitos homicídios e o último na pessoa do Padre José da Anunciação Portugal, na Várzea da Candosa, com prisão efectuada, com grandes riscos, pelo administra-dor do concelho de Oliveira do Hospital, foi seguida do seu degredo para a África, donde nunca mais voltou.

Vinha de longe, de Midões, terra da sua naturalida-de, para assaltar viandantes, em especial lavradores e indus-triais de Manteigas, que tinham de atravessar a Serra, mon-tados em cavalgaduras, para irem vender os seus produtos a mercados distantes.

Duma das vezes calhou a sorte a Manuel da Cunha, industrial de Manteigas que, na véspera à noite, dissera a mulher:

-- Vou amanhã a Mangualde fazer o mercado. Diz ao José Massano que tenha os cavalos preparados para sairmos daqui às quatro da manhã. Ele vai comigo. Que te-nha os fardos carregados e não se esqueça das pistolas nos coldres. Eu vou-me já deitar, pois estou a cair de sono.

-- Ó Manuel, -- retorquiu a esposa. -- Tenho tanto medo destas viagens! Dizem que anda aí o João Brandão com a sua quadrilha. Não sei o que me diz o coração. Não vás amanhã, peço-te.

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-- Mas tenho de ir, filha. Estão lá os fregueses a es-pera das fazendas e ficavam aborrecidos comigo. O João Brandão há muito tempo que não dá qualquer sinal. Deve andar lá muito longe.

-- Pois enganas-te. Ainda não há muitos dias que ele foi visto por pastores, ao pé do Sabugueiro. Viram-no de longe, mas conheceram-no.

-- Ai, meu Deus! -- disse Manuel da Cunha. - Mas eu tenho de ir, Cristina. Tu não vês que eu tenho de ir?

D. Cristina calou-se durante uns momentos, ficou pensativa e, por fim, respondeu:

-- Bem, então vai. Que Deus vá contigo e te tenha sempre na Sua mão. Cá fico a rezar por ti.

De manhã cedo, ainda noite cerrada, saíram de

Manteigas o Manuel da Cunha e o criado, montados em ca-valos e um macho carregado de fardos de fazenda. Segui-ram o caminho da Carvalheira, à luz das estrelas, pois a lua, em quarto minguante, já tinha desaparecido para os lados da Fraga da Cruz. No silêncio da noite, apenas se ouvia, com o passo dos animais, o sussurro do vento na folhagem das árvores e, de vez em quando, o piar do mocho e o cantar lú-gubre e agoirento da coruja. A Serra parecia dormir, num sono maciço e pesado, livre de pesadelos. Ao raiar da aurora estavam no Observatório e era já manhã clara quando chegaram à Ponte de Cabaços, sem qualquer incidente. O sol começava a romper, como hóstia em san-gue.

A essa hora, na Casa da Praça, D. Cristina ajoelhada na sua capela diante do altar, rezava pelo seu marido. Para que Nossa Senhora o livrasse de maus encontros e o trou-xesse, vivo e salvo, como tinha saído.

E eis que, de repente, surgiram, detrás duma fraga, quatro homens membrudos, armados de bacamartes, que apontavam aos dois viandantes.

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-- Façam alto!, -- intimou um dos assaltantes, de barba negra e hirsuta, que parecia ser o chefe.

Os dois viandantes pararam e o mesmo assaltante continuou:

-- O que levam aí e quem são vocês? Manuel da Cunha, bastante calmo, respondeu: -- Eu sou um industrial de Manteigas e este é o meu

criado. Levamos fazendas para ir vender ao mercado de Mangualde.

Entretanto, o chefe da quadrilha ia observando Manuel da Cunha que também usava barba preta e bastante sorridente, diz-lhe:

-- Mas você é muito parecido comigo. Nem que fos-se meu irmão. Terei algum em Manteigas, sem eu saber?

E, voltando-se para os companheiros, perguntou: -- Que vos parece, ó rapazes? E um deles respondeu: -- Pode ser. Talvez teu pai tenha andado por estes

lados. -- Seja como for. Nós não fazemos mal a este ho-

mem, -- disse João Brandão. -- Mas vamos fazer um contra-to. De hoje em diante, nós deixamos-lhe passar toda a mer-cadoria e você, em troca, manda-nos mantimentos de Man-teigas, quando os precisarmos. Aceita o negócio?

-- Sim, senhor -- aquiesceu o industrial. -- Com todo o prazer. E tenha a certeza de que não lhe faltarão cá man-timentos. E só mandar-me recado.

-- Óptimo -- retorquiu João Brandão. -- Mas ainda não disse o seu nome.

-- Manuel da Cunha. -- O meu é João Brandão, como já adivinhou. E ago-

ra, pode seguir. Cá ficamos para o que for preciso.

Manuel da Cunha continuou a sua viagem, mal re-feito do susto e a pensar no que a mulher lhe tinha dito, na véspera.

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As mulheres lá tinham um dedo que lhes adivinha-va. Mas talvez fosse assim melhor. Tinha ali um amigo, no João Brandão, e isso era muito para o que viesse a precisar.

-- Deus seja louvado, -- murmurou ele, benzendo-se.

-- E sua Mãe Santíssima..., -- respondeu o criado, ainda sem pinga de sangue, descobrindo-se, com o maior respeito.

De regresso a Manteigas, já não encontraram, na Serra, a quadrilha do João Brandão. Tinha desaparecido, ou estava alapardada, em qualquer sítio alto, a vigiar quem passava.

Passado algum tempo ia, pela Serra fora, um rapaz de Manteigas, o Luís Romão, que transportava o correio da-quela vila para Gouveia, a pé, todos os dias e carregado com as respectivas malas.

Perto do Mondeguinho, surgem-lhe três homens detrás dum penedo, armados de bacamartes, que lhe man-dam fazer alto.

-- Que levas contigo? -- perguntou um dos assaltan-tes, de barba negra, que parecia ser o chefe.

-- Estas malas e uns cobres no bolso, para uma bu-cha.

Depois de revistado e confirmado o que dizia, João Brandão, pois era ele, continuou:

-- Bem. Onde é que tu vais? -- A Gouveia, levar o correio de Manteigas. -- E quando voltas? -- Logo à tarde, pelas seis horas. -- Toma lá este dinheiro, -- disse o chefe, entregan-

do-lhe uma quantia. -- Compras lá trinta maços de cigarros, da marca que houver, e entrega-los aqui, quando voltares, a esta hora. Mas não digas para quem é. Escusam de saber.

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E, entregando-lhe uma navalha, acrescentou: -- Se te mandarem parar, no caminho, mostras esta

navalha e logo te deixarão seguir. Luís Romão, um pouco recuperado do susto, balbu-

ciou: -- Fique Vossa Senhoria descansado. Cá estarei a

essa hora. E o chefe, olhando-o duramente, rematou: -- Podes seguir. E não dês à língua. Tem muito cui-

dado com o que disseres e fizeres. Senão... -- Com sua licença, -- disse o Luís Romão. E prosseguiu a sua viagem, de malas às costas, ain-

da mais confuso. No alto de Alfátima, surgem-lhe dois homens, tam-

bém armados de bacamartes, que o obrigam a parar. Mas, ao mostrar-lhes a navalha, logo disseram, sem mais rodeios:

-- Pode seguir. E ele continuou a andar, carregado no corpo e na

alma e aturdido com aqueles encontros. Chegou a Gouveia pela uma da tarde e, a beber um

copo numa tasca, pensou em ficar por ali e não regressar a Manteigas, com medo do que pudesse acontecer. Mas logo viu que era pior e que não tinha outro remédio do que re-gressar pelo mesmo caminho. Comprou o tabaco que lhe haviam encomendado e, a hora combinada e no mesmo sí-tio do Mondeguinho, o entregou ao João Brandão.

-- Bem rapaz -- disse este. -- Toma lá para beberes uma pinga.

E agora, escuta. Tu conheces, lá em Manteigas, um senhor rico, industrial, chamado Manuel da Cunha?

-- Conheço sim, senhor. É um senhor de barbas que mora numa casa grande, à Praça.

-- Esse mesmo. É assim um homem parecido comi-go.

-- Isso, isso... -- acrescentou o Luís Romão, a sorrir da semelhança.

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-- Pois diz-lhe lá, a esse senhor, que me mande amanhã de manhã, sem falta, algum mantimento: pão, vi-nho, azeite, carne, queijo e o mais que puder. Que mande aqui ao Mondeguinho. Que os amigos agradecem e cá estão para o que for preciso.

O Luís Romão chegou à vila, ao anoitecer, cansado e coberto de suor. Ia triste e desmoralizado, mas foi logo à Casa da Praça desembaraçar-se da incumbência.

-- Que desejas, ó Luís? -- perguntou a criada, a Ma-ria Prata.

-- Desejo falar ao Senhor Manuel da Cunha. -- Não está -- disse a criada. -- Foi a Belmonte e só

deve chegar amanhã à tarde. -- Ai a minha vida - exclamou o Luís, contrariado. --

Trago um recado do Sr. João Brandão e queria dar-lho a ele. -- Mas não tem dúvida. Diz lá o recado que eu vou

dá-lo à Senhora e é a mesma coisa. Luís Romão pensou um pouco e depois continuou: -- Então diga lá à Senhora, pelas almas de quem lá

tem, que o Sr. João Brandão manda pedir mantimentos: pão, vinho, azeite, queijo, carne e o mais que puderem, para lhe mandarem, sem falta, amanhã de manhã. Que lho man-dem para o Mondeguinho, aonde estão à espera. Mas sem falta nenhuma, amanhã de manhã. E que os amigos lá estão, para o que for preciso.

-- Fica descansado, ó Luís. Vou já dizer à Senhora e amanhã de manhã, no sítio do Mondeguinho, lá estarão os mantimentos. São as ordens que temos, do Sr. Manuel da Cunha.

-- Sim, sra. Maria Prata. No sítio do Mondeguinho, não se esqueça.

-- Está bem, fica entregue. Podes dormir descansa-do.

A criada, a sorrir daquela insistência, foi transmitir o recado a D. Cristina a qual, avisada pelo marido, deu logo ordens para que fosse tudo acondicionado de modo a que o

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criado saísse, de manhã muito cedo, com o macho carrega-do de mantimentos, a caminho do local combinado.

De resto, a D. Cristina, além de ser rica, era muito amiga da pobreza. Dava muitas esmolas e, no pote dos po-bres nunca se acabava o azeite. Aos sábados, era uma bicha de gente a bater à sua porta, e ela dava a todos, sobretudo aos mais necessitados.

E dava com um sorriso e sempre com boas pala-vras, o que tornava a esmola maior e, sobretudo, melhor.

Um dia foi ao pote do azeite, o dos pobres, levan-tou a tampa e viu que estava quase cheio. Ficou admirada porque, dias antes, reparara que estava pelo meio.

-- Ó Maria -- perguntou a criada. -- Deitaste algum azeite no pote dos pobres, nestes dias?

-- Eu não, minha senhora -- respondeu a criada. -- Pois está quase cheio e não estava! -- Não me admiro -- disse a criada. -- Os bens desta

casa são aumentados por Deus. D. Cristina calou-se uns momentos e depois acrescentou:

-- Pois é, filha. Deus dá e tira, quando quer. Que Ele seja sempre louvado e sua Mãe, Maria Santíssima...

Desde aquele dia do mau encontro do marido com a quadrilha do João Brandão, D. Cristina rezava todos os di-as, além das habituais intenções, pela conversão daqueles homens da Serra, que andavam por caminhos errados a condenar a sua alma e nunca se esquecia de pedir também por todos aqueles que andavam em perigo, sobre as ondas do mar...

Numa manhã estava ela na capela da sua casa, ajo-elhada e a rezar fervorosamente, quando reparou, de re-pente, junto ao altar, que o vestido de Nossa Senhora, tão lindo, bordado a ouro e comprido até aos pés, encontrava-se todo molhado.

Ficou admirada mas, logo assaltada por certo pres-sentimento, exclamou:

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Onde foste, ó rabudinha Que vens toda rnolhadinha?

Nossa Senhora não respondia mas parecia sorrir, com muito carinho, à sua alma piedosa e simples...

Passado algum tempo vieram bater, quatro ho-mens, a porta da Casa da Praça, como era conhecida, a per-guntar se não era ali que se encontrava uma imagem de Nossa Senhora do Rosário que os tinha livrado dum grande naufrágio, no mar da Nazaré.

-- Eu não sei... -- disse D. Cristina. -- Tenho ali uma capela. Venham ver.

Foram até à capela, ao fundo do corredor. Logo que entraram e viram a imagem no altar, exclamaram impressi-onados:

-- Foi esta! Foi esta que nós vimos, na proa do nos-so navio, quase a naufragar.

Ajoelhados e comovidos, olhando a imagem, come-çaram a rezar:

Salve Rainha Mãe de misericórdia

E aqueles homens rudes, tisnados do ar marítimo,

tinham os olhos marejados de lágrimas... Ainda hoje se encontra, na igreja de Santa Maria

daquela vila, um cálice de altar, adornado de lindas campai-nhas que foi oferta desses homens em memória daquele mi-lagre. Manteigas, 18-7-982

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O PATAQUINHO

Chamavam-lhe assim porque no seu ofício de car-

regador de malotes, quando lhe perguntavam quanto lhe deviam por qualquer trabalho, ele respondia:

-- Dê lá o que vossemecê “quijér”. Mas ao insistirem com ele para que dissesse e não

estivesse com meias aquelas, ele então invariavelmente re-torquia:

-- Então dê lá um pataquinho. E ficara-lhe essa alcunha que condizia com o seu ti-

po magro e baixote, de meio homem, embora fosse capaz de transportar sacos de cem quilos sem dificuldade de mai-or.

Donde lhe vinha a força para estas proezas e outras de igual teor, isso é que não era fácil de explicar. Talvez do seu treino de muitos anos a alombar carregos ou à posse duma musculatura rara e privilegiada que fazia inveja a ho-mens de porte maior.

Era uma figura típica no meio em que vivia, uma vi-la modesta encravada entre serras, e que se prestava a ser desfrutada até pela garotada, sobretudo quando o Pataqui-nho, já muito pingado, ia a fazer sss pela rua fora.

A garotada, vendo-o assim, apupava-o e ria: -- Quantos já hoje, ó Pataquinho? E levavam as mãos à boca, num gesto significativo

de beber. E ele respondia com o seu estribilho habitual: -- Mia! Muito alegre e sorridente, a cantarolar ou a cantar,

lá seguia ele, cambaleando e dançando, em demanda da ta-berna do Dâmaso.

A mãe morrera-lhe quando ainda era pequeno, mal se lembrava dela, e o pai, o ti Manuel Morte, quando ele, Pataquinho, entrara nas sortes.

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Ficara sozinho no mundo, apenas com uns vagos parentes que lhe não ligavam nenhuma. E como não tinha casa, nem eira nem beira, dormia no forno de cozer o pão, por caridade da dona, sobre os molhos da lenha, de esteva ou carqueja, coberto com uma manta que uma boa alma lhe tinha dado. E era o que lhe valia, aquele forno quentinho nas noites gélidas de inverno, quando a neve ou a chuva caiam em abundância ou o vento bramia lúgubre, em fortes rajadas, sacudindo as portas e janelas e fazendo voar as te-lhas dos telhados.

Logo de manhã cedo esfregava os olhos, atirava com a manta, punha a boina de pala, comia uma bucha de pão com azeitonas, e ala que se faz tarde, lá ia ele para a ta-berna do Dâmaso beber a sua litrada.

-- Mia! -- dizia ele, junto ao balcão da tasca. -- Bóte lá meio litro, ó ti Damas.

Tirava uns magros cobres da algibeira das calças, que espalhava sobre o balcão e bebia a meia litrada quase sem parar. Um dia o Dâmaso, para tirar palhinha com ele, atirou-lhe com esta:

-- O que tu precisas, ó Pataquinho, é de te casar. Assim sozinho, não andas bem.

O Pataquinho reflectiu, ajeitou a boina, sacudiu os ombros e respondeu:

-- Diz bem, ti Damas, diz até bem. Fazia-me jeito uma mulher, lá isso fazia. Mas onde está ela?

E o Dâmaso, muito sério: -- Ó homem, há tantas por aí... Pensa bem, que

descobres. E tanto pensou e repensou que o Pataquinho um

dia, ao levar uma encomenda à D. Delfina, não teve mão em si que lhe não dissesse:

-- A Senhora podia dar-me a sua criada para eu ca-sar com ela. Era um favor que me fazia. Olhe que eu sou homem para tratar bem uma mulher, tenha a certeza.

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A D. Delfina que não esperava aquilo, respondeu

apenas: -- Ó rapaz, que dúvida há nisso? Assim ela queira.

Fala com ela e depois se verá. Ele falou, de facto, e a Lucília, a rir, quase às garga-

lhadas, disse-lhe que depois se veria, mais tarde, que tudo podia acontecer. E ele aborrecido e de lágrima no olho, re-torquiu:

-- A mangar não vale. Falo a sério e a menina ri-se. Pois olhe que eu sou homem p'ras curvas. Se casasse comi-go não se havia de arrepender. Digo-lhe eu.

E a compor a boina e a sacudir os ombros, lá se foi embora, monco caído, um pouco tristonho, a pensar num bom quartilho do tinto, remédio infalível para aquela e ou-tras situações.

Mas não desistia do seu propósito. Quando calhava de encontrar a Lucília, logo lhe perguntava:

-- Então, já resolveu? -- Ando cá a pensar, -- respondia ela, a rir. -- Depois

lhe darei a resposta. -- Então resolva, -- tornava ele. -- Olhe que se arre-

pende, digo-lho eu. Depois não se queixe. Se me dissesse que sim, dava-lhe uma prenda “boua”. Rais me partam se havia alguém que a tratasse melhor do que eu. Está-se a rir?

E ela, a fungar e a despedir, lá foi dizendo: -- Depois... depois... Vendo-a sumir ao longe, ele estacava um bocado e

em breve monólogo, exclamava: -- Ah! mulher dum raio. Nem sabes o que perdes, tu

nem sabes o que perdes. Tanto como tanto, mas melhor do que eu, não dou licença a ninguém. Ainda há-de nascer o primeiro, juro-to eu.

Ajeitou a boina, pensou um pouco e como quem toma uma resolução, exclamou:

-- Mia!

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E lá se foi aos bordos, rua abaixo, no fadário do costume a cumprir o seu destino de ser primário e infeliz. E talvez fosse mais feliz do que os outros, os que troçavam dele, os que se riam da sua bondade lorpa e faziam pouco da sua miséria.

Pouco a pouco se foi apagando aquela ideia de ca-sar com a Lucília que, de facto, casou, a curto prazo, com o Zé Mimoso, logo que este regressou de fazer o serviço mili-tar.

Quando os via, marido e mulher, aos domingos, a caminho da missa ou em qualquer festa, ele dizia, entre dentes, a ruminar a sua mágoa:

-- Não era para os teus dentes, podengo do inferno. Mas saiu-te a sorte, está visto. Tens mais sorte que o Faca-das. Má hora em que te vi, mulher reles. Mas não sabes o que perdeste, não sabes, digo-to eu.

E os olhos enevoavam-se-lhe de lágrimas, duma dor sem remédio. E lá foi curtindo e combatendo o seu sofrer com as inevitáveis e contínuas libações que lhe iam dimi-nuindo as forças e encurtando a vida.

Um dia, uns amigos de mil diabos, que os há em to-das as terras, lembraram-se de se divertir, convidando-o pa-ra beber uma boa pinga numa das farmácias da terra. Pri-meiro deram-lhe uns copos do tinto e, logo a seguir, álcool em quantidade elevada para verem o efeito que faria.

-- Então que tal, ó Pataquinho? -- perguntou um de-les.

-- Mia! -- ainda ele respondeu, com a voz entarame-lada e os olhos semicerrados e turvos. Caiu no chão, sem acordo.

Quiseram acordá-lo, despertá-lo daquele estado de inconsciência e torpor. Mas foi tudo inútil. Chamaram o mé-dico à pressa mas, apesar de todos os esforços, persistiu o seu estado de coma. Passadas algumas horas, deixou de respirar e de sofrer.

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Assim morreu o Pataquinho, pobre homem de tão triste si-na, figura curiosa e popular dos meus tempos de juventude, na vila serrana onde eu nasci.

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NOITE DE CONSOADA

Zé Isidro saíra de Casegas já muito tarde. Entretido a beber uns copitos na taberna do Dâma-

so, com alguns conhecidos, só deu conta de si quando já eram cinco da tarde.

-- Eh raio, - disse ele, vendo o relógio. -- Deixa-me lá ir.

E, agarrando rápido os alforjes e o cajado, dispôs-se a fazer viagem. Um dos amigos ainda alvitrou:

-- Ficas cá hoje, Zé Isidro. Não vás tão tarde. Dor-mes cá esta noite e vais amanhã de manhã.

-- Cal quê, -- respondeu ele, ajeitando os alforjes. -- Então a patroa e os filhos estão lá à minha espera e eu havia de aqui ficar? Isso sim. Temos de comer as filhós todos jun-tos e por isso hei-de ir, dê lá por onde der.

E, açodado e preocupado, deu as boas tardes e sa-iu, porta fora.

Era véspera de Natal. A tarde estava fria e nublada, ameaçando chuva ou neve, mas, para um homem como Zé Isidro, pastor de profissão e criado na serra, não havia qual-quer problema.

E começou a subir, por caminho pedregoso e cheio de cascalho, apoiado ao bordão, fiel companheiro de jorna-das e de guarda ao rebanho, pensando que a companheira e os filhos o esperavam, sentados a lareira, com a ceia e as respectivas filhós, nessa noite de consoada.

Grandes penedos surgiam a ladear o caminho e, por entre eles, via, em baixo, quase na perpendicular, a imensa planura em retalhos verdes e polícromos e, em pla-no de fundo, muito ao longe, contrafortes de serras negras, coroadas de nuvens escuras que as faziam mais altas e do-minadoras.

Subindo sempre, Zé Isidro sentia o ar cada vez mais frio, até que, por altura dos Piornos, começou a nevar, em

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flocos pequenos e raros e, dentro em pouco, mais densos e abundantes, sinal de grande nevão.

Entretanto anoitecia e, quase de repente, surgiu o nevoeiro, primeiro em cortina ligeira e intermitente, depois em muralha espessa e cerrada, a barrar o caminho.

Pensou voltar para trás, com receio de avançar mais, mas estando já tão longe, não era fácil retroceder.

A neve continuava a cair, cada vez mais abundante, em flocos grandes e pastosos, a colarem-se-lhe à cara e a tornar-lhe pesado o largo chapéu que tinha de sacudir, de vez em quando, para o aliviar do peso. O chão tornava-se mole e cada vez mais fofo a medida que avançava e tactea-va, através da noite e do nevoeiro. Lá mais para diante, os pés enterravam-se profundamente na neve e o que lhe valia era ter trazido as botas de cano alto e os safões de pele de borrego que quase nunca o abandonavam. Parava, de vez em quando, para ouvir qualquer ruído e orientar-se no ca-minho. Mas nada via ou ouvia, naquele imenso deserto. Só a aragem assobiava baixinho, por vezes, uma ária sibilina a acentuar o silêncio que se lhe seguia.

Calculava estar a chegar ao alto da serra e, dentro em pouco, desceria a vertente oposta, prestes a chegar à Nave de Santo António, distanciada, ainda assim, alguns qui-lómetros da vila.

Continuou a caminhar, desnorteado, `as cegas. Enterrado na neve até à cintura, o que lhe valia era

ser muito alto, mesmo conhecido pela alcunha de Gigante sobretudo entre os pastores. Escorregando e caindo, em ris-co de resvalar por qualquer precipício, de repente sentiu-se mergulhar dentro de água quase até ao pescoço, agarrando-se providencialmente a uns ramos delgados e flexíveis que lhe pareceram ser de salgueiro. Aferrado a esses ramos, no instinto da conservação, tacteou com um dos pés o fundo da água, encontrando a elevação duma pedra para a qual subiu.

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Depois, palpando a margem, conseguiu agarrar-se a um sólido tronco e içou-se a pulso, duplicando as forças, na ânsia da salvação.

Valera-lhe também a samarra e os safões que não deixavam entrar a água. Novamente na neve, derivou às ce-gas, sem cajado e sem alforjes, perdidos quando mergulhara na água e procurou alcançar qualquer rochedo ou poio onde pudesse encostar-se e abrigar-se o melhor possível. Por fim lá divisou, por entre o nevoeiro, uma massa escura que lhe pareceu uma fraga e a ela se achegou com custo e a tremer de frio e de desânimo.

Lembrou-se do Alfredo Morais e do Zé Patola que lá tinham ficado na neve, a caminho de Gouveia. Então rezou com fervor, ao Senhor do Esquife e à Senhora da Graça, para que lhe acudissem naquela aflição e o não deixassem mor-rer ali.

Rezou também a sua mãe, morta a muitos anos, para que o ouvisse e lhe valesse na amargura daquela hora.

Continuava a nevar, abundante e persistentemen-te, a aumentar a espessura daquela imensa mortalha. Re-solveu ficar ali, encostado àquela rocha, até que o dia rom-pesse ou antes, até que Deus determinasse o que fosse da Sua vontade. Estava nas mãos d’Ele, por isso resolveu espe-rar pacientemente a sua sorte.

Àquela hora, a mulher e os filhos, angustiados com a sua ausência, dariam largas à aflição, chorando e rezando por ele. Não pudera acompanhá-los, naquela noite de con-soada.

Boas contas fazemos nós! Mas Deus não quisera, não o permitira e o que Deus determina tem de forçosa-mente cumprir-se. Ele era um pastor da serra, afeito às bor-rascas e intempéries, a muitos perigos e dificuldades, mas o poder de Deus era maior.

Transido de fome e de frio, sentindo o sono entor-pecê-lo e a pesar-lhe nas pálpebras, Zé Isidro reagiu pondo-

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se em pé, não permitindo que o sono o dominasse e espe-rando que o tempo decorresse até ao romper da manhã.

Quanto tempo esperara ele? Não o sabia dizer, porque o tempo dir-se-ia ter parado e tudo aquilo lhe pare-cia uma eternidade. Até que o dia rompeu numa frouxa e débil claridade, a luz da qual viu tudo branco à sua volta, e percebeu, pelos declives e configuração da serra, que ele es-tava no Covão da Ametade junto à base dos Cântaros. Lou-vado seja Deus, já sabia onde se encontrava!

Mas poderia sair dali? Bloqueado completamente pela neve tão alta, o que iria suceder?

Dispôs-se a abrir caminho, de qualquer forma, quando subitamente ouviu sons indistintos, muito ao longe, que, a breve trecho, lhe pareceram gritos ou chamamentos:

-Oi......oi...... Calculou que chamassem por ele, que andassem à

sua procura e ele então gritou também, com todas as forças: - Oi .... ..oi...... Começou a romper pela neve, em direcção à estra-

da. Breve divisou uns vultos escuros, muito ao longe, que se moviam e aumentavam de tamanho à medida que se apro-ximavam. Pelas faces de Zé Isidro, tisnadas e endurecidas, deslizavam lágrimas de alegria. Até que os vultos se aproxi-maram mais e ele conseguiu distinguir quatro homens e uma mulher que vinham ao seu encontro. A mulher era a dele, que não pudera ficar em casa e assim se arriscara a procura do seu homem.

Quando chegaram ao pé, vencendo a custo a dis-tância que os separava, ela abraçou-se a ele, em choro con-vulso:

-- Pensei que tinhas morrido... que não te via mais... mas Nossa Senhora ouviu-me. Ouviu as minhas súpli-cas e teve dó dos meus filhos... teve dó de mim e dos meus filhos... Bem hajas, Senhor!...

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Tu és Pai de misericórdia e nunca deixas de atender os des-graçados...

E continuava a chorar, banhada em lágrimas, com a cabeça encostada ao ombro do marido.

-- Mas como foi isto, ó Zé Isidro? -- perguntou um dos pastores. -- P'ra que te meteste à serra, com um tempo destes?

E Zé Isidro, bebendo uma golada de aguardente rija que os companheiros tinham trazido, explicou:

-- Foi o cão do nevoeiro. Se não fosse ele, eu botava cá, de qualquer maneira. Mas vocês não imaginam. Não se via um palmo adiante do nariz e então desorientei-me, já não sabia onde andava. Foi o cabo dos trabalhos e então, vendo-me perdido, apeguei-me ao Senhor do Esquife e à Senhora da Graça, já que ninguém mais me podia valer. Nem ao maior inimigo desejo a noite que aqui passei.

Meteram todos pela estrada fora e só no fim de três horas chegaram à vila, cansados e cheios de suor. Quando Zé Isidro entrou em casa, os filhos rodearam-no, contentes e festivos, como se viesse duma grande viagem. E que viagem aquela, que ele fizera! Sentaram-se todos em volta da mesa de pinho e ele disse à mulher que trouxesse de comer e mandasse buscar um garrafão de cinco litros à taberna do Passe-e-Ande, ali perto. Haviam de beber todos, até os mais pequenos.

-- Vê lá, homem, -- disse ela. -- Os mais pequenos, não.

-- Hão-de beber todos, já disse, -- insistiu ele. -- Uma vez não são vezes.

-- Pois olha, homem, -- continuou ela, trazendo pa-ra a mesa queijo, chouriça, triga milha e as filhós. -- No meio da minha aflição prometi ao Senhor do Esquife irmos todos a alumiar à procissão na primeira que houver, e à Senhora da Graça que lhe havíamos de dar duas borregas, das mais bonitas do nosso rebanho. Que é que tu dizes?

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-- Fizeste bem, mulher. Nem que fosse o rebanho todo. Antes isso do que ficar por lá, teso como um carapau, debaixo daquela neve.

E na primeira procissão que houve ao Senhor do Esquife, procissão de penitência que passou, a noite, em si-lêncio, pelas ruas da vila, ao compasso marcado pelo som cavo das caixas dos bombeiros, lá se via o Zé Isidro mais a mulher e os filhos, todos a alumiar, com velas da sua altura, a cumprirem a promessa de ele não ter morrido naquela noite medonha, de neve e nevoeiro, em plena serra e em pleno inverno, junto à base dos Cântaros, no Covão da Ame-tade.

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trabalho realizado por @ JORAGA

Vale de Milhaços, Corroios, Seixal

2015 SETEMBRO / OUTUBRO

JORAGA

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9 A Abrir GUARDA, Dezembro de 1987

17 Um Pastor da Serra 25 Bairrismo 33 Rosa Maria 24-11-1971 45 Dois Parceiros Manteigas 22-6-1980

53 A Ti CIotilde

65 O Compadre e o Sr. Prior Manteigas, 30 de Maio de 1983

77 Deus e Satã Manteigas, 25-6-1983

95 João Brandão Manteigas, 18-7-982

105 O Pataquinho

111 Noite de Consoada

(uma digitalização de www.joraga.net com pistas de leitura… 2015 10)