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um ensaio sobre Jogo de Cena, de Eduardo Countinho por João da Mata Jogo cena personagens em de

Jogo de personagens em cena

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Trabalho escrito para a disciplina Teorias da Imagem, ministrada pelo prof. André Brasil. Novembro de 2011

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um ensaio sobre Jogo de Cena, de Eduardo Countinhopor João da Mata

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O cinema, durante muito tempo, procurou reivindicar um estatuto próprio e almejou exclamar seu caráter ontológico livremente, isto é, afirmar veemente aqui-

lo que definiria sua essência e o destacaria das demais artes. No entanto, os efeitos pensáveis a respeito de um quadro, por exemplo, são os mesmos em pintura e no cinema. O que os difere são os meios empregados para atingir tais efeitos e os contextos estético-estilísticos nos quais são pensados e, além disso, enquanto o quadro pictório se faz na moldura que o guarda, o quadro fílmico se materializada através da forma de uma máscara. Já a semelhança com teatro, principalmen-te naquilo que Jacque Aumont chama de primeiro cinema, categoria que engloba as primeiras produções audiovisuais marcadas principalmente por um modelo de ação dramática confinada num espaço fechado, algo mais ou menos assimi-lável a um cubo cenográfico, e com longas falas dialogadas, é inegável. Assim, as semelhanças entre as primeiras produções cinematográficas (e boa parte das subsequentes durante dé-cadas), eram amplamente relacionadas ao pintura e ao teatro. Por sua vez, o “primeiro cinema”, apesar de haver resolvido esses conflitos há décadas, ainda é lembrado em produções contemporâneas através de algumas de suas singularidades. É o caso de Jogo de Cena (2007), filme de Eduardo Coutinho, principalmente através de sua proximidade com teatro, onde essa semelhança se torna óbvia tanto pela presença de atrizes consagradas por esse gênero artístico, quanto pelo espaço cênico utilizado: o palco.

Através do documentário Eduardo Coutinho, mais do que atingir uma forte semelhança, transcende o teatro e, embora o diretor se aproxime muito de algumas das bases desse tipo de produção, acaba evocando duas características funda-

mentais do cinema, operações que hoje poderiam finalmente ser afirmadas como parte da ontologia cinematográfica: a montagem e a planificação. A primeira, se nota claramente no jogo feito entre as personagens e as atrizes convidadas que, em muitos casos, são alternadas paralelamente, possibilitan-do uma espécie de comparação entre ambas. Já a planifica-ção funciona como um trabalho intelectual estético que se manifesta na fragmentação da continuidade narrativa. Isso porque, obviamente, as declarações gravadas incialmente foram resumidas em fragmentos escolhidos, provavelmen-te, por melhor se encaixarem às intensões de Coutinho. Na maior parte dos casos, são justamente esses fatores que tornam o espectador apto a “conhecer”, mesmo que superfi-cialmente, as personagens em cena, cortando-as em pedaços menores, cada qual com uma unidade narrativa.

Seria interessante, nesse caso, lembrar o que Robert Bresson procura dizer em sua entrevista com Bordeau e Frodon para a Cahiers du cinema, onde afirma que “um filme em que os atores já não representam de todo, mas figuram, ou, mais exatamente, tornam-se uma espécie de material expressivo que o autor manipula, não são encenados mas, propriamen-te, escritos”. Isso significa que, nesse caso, os planos passam a ser encarados como frases e sua montagem como um encadeamento de parágrafos em um romance. Essa decla-ração, realizada em Março de 2004, se faz importante hoje (e aqui) por ser uma maneira eficaz de explicar a forma pela qual Coutinho constrói seu documentário: a escrita. Sob essa perspectiva, a montagem de seu filme estaria submetida à critérios de construção similares aos do romance, rendendo--se principalmente à um dos principais elementos desse gênero narrativo: a coesão. Se isso ainda não ficou claro, não

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se preocupe. Explicaremos melhor essa ideia adiante, mas, desta vez, a partir do conceitos buscados na obra de Antônio Cândido.

Na vida, construímos uma interpretação de cada pessoa a fim de conferirmos certa unidade à sua diversificação essencial, isto é, à sucessão dos seus modos-de-ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso e menos variável, que é a lógica das personagens. No entanto, dizer que uma per-sonagem é mais lógica, não implica em dizer que ela é mais simples que um ser vivo. E é justamente em cima disso que Coutinho trabalha seu longa-metragem, fazendo com que o espectador se perca num emaranhado de particularidades inerentes a cada indivíduo e sua mise-en-scène – termo fran-cês que remete ao posicionamento de um indivíduo em cena. Um conflito que se torna ainda mais claro ao prestarmos atenção à dificuldade enfrentada pelas atrizes ao represen-tar personagens retirados diretamente do mundo real, sem imitá-los. Isso porque as particularidades de cada mulher que aceita participar do filme de Coutinho, ao serem expressas polifonicamente, geram a impossibilidade de fixar caracterís-ticas que organizem realidade e ficção claramente.

Essa dificuldade de separação entre real e ficção ocorre pois, uma vez que, tanto o ”ser no mundo” quanto o “ser narra-tivo” se conformam como personagens, e a noção de um indivíduo elaborada por outro é sempre incompleta, a nossa própria forma de conhecimento dos seres é fragmentária. Temos uma ideia de como a pessoa pode ser, mas essa ideia é apenas um fração de sua essência e, por isso, a continuidade da vida de cada indivíduo implica na existência ou apareci-mento de fragmentos que não temos acesso. Contudo, ao estabelecermos uma continuidade narrativa, estabilizamos os

personagens, mas essa estabilização também é fragmentária, uma vez que, em cada espaço de convivência, vamos nos fragmentando em diferentes personagens.

Dessa forma, a própria planificação (voltando aos termos de Aumont), antes sugerida aqui como parte da essência cine-matográfica é, na verdade, imanente a nossa experiência. Isso significa que nossa própria forma de constituir a memória é narrativa e, ao narrativizarmos uma pessoa, fazemos uma simplificação em que gestos, frases e ações marcam as per-sonagens que conhecemos para nossa identificação. Assim, o filme de Coutinho se torna um excelente exemplo disso, ao se mostrar um documentário capaz subverter a doce ilusão de que é possível conhecer uma pessoa através do que ela diz e da forma como isso é feito, ou ainda, identificar se tais falas e ações são reais ou não.

O jogo de construído por Coutinho se torna ainda mais complexo ao mostrar personagens em cena. Dessa forma, o filme nos faz lembrar o que Comolli sugere ao afirmar que as pessoas, ao serem filmadas, se colocam como personagens e, através desse fragmento delas mesmas, que posam e se posi-cionam, também se prestam ao olhar do outro – que aparece materializado pelo olho negro e redondo da câmera. Dessa forma, a partir das ideias do próprio Comolli, as mulheres do filme de Coutinho nos aparecem, na verdade, em sua auto--mise-en-scène; algo que funciona a partir da combinação de dois movimentos: o habitus, que remete o corpo e o incons-ciente de um indivíduo, revelando assim, traços doe seu com-portamento que não consegue ocultar; e um segundo que tem a ver com o fato de que o sujeito em cena se destina ao filme, ajustando-se à operação cinematográfica e colocando seu corpo, como já afirmado, sob o olhar do outro.

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Esses fatores, sem sombra de dúvida, influenciam o compor-tamento dessas mulheres – e muito. A câmera ali, funciona como uma espécie de catalizador, algo que acelera (ou até mesmo provoca) uma série de ações e falas, assim como, provavelmente, constrange outras. Seria então, extremamen-te ingênuo negligenciar tal fator. E Coutinho não o faz. Dessa forma, na própria montagem, o diretor apresenta trechos em que as mulheres se dizem preocupadas com a forma que serão mostradas no documentário, tanto através da preocu-pação com sua roupa e aparência externa, como é o caso da personagem que conta a história da sua “trepadinha de galo”, quanto com a repercussão do peso de suas falas, algo bastan-te claro no caso da mulher que volta ao final do documentá-rio para acrescentar detalhes à sua fala.

Assim, com extrema destreza, Coutinho – que de forma alguma tenta ocultar a importância de sua presença no docu-mentário – supera um dos principais desafios da construção de um documentário apontados por Comolli: não apenas

colocar em cena aqueles que são filmados, “mas deixar aparecer a mise-en-scène deles”. Algo surpreendentemente notado, inclusive, pelas próprias atrizes convidadas, que inferem, por exemplo, a diferença entre choro de uma atriz frente à câmera, caracterizado pelo desejo de evidenciá-lo, e o esforço realizado por pessoas comuns para escondê-lo no mesmo contexto.

Por fim, ao “escutar” aquelas mulheres através de sua câmera, permitindo que elas mesmas preencham o palco em que estão com suas histórias, medos e desejos. Coutinho atende, juntamente delas, o desejo do espectador de ser enganado ou, ao menos, de se ver confundido pela trama que constrói através da dicotomia ficção/realidade. Algo que, há muito tempo, intriga e desperta a curiosidade das pessoas; e tudo isso através de um jogo que não possui como fim identificar vencedores ou derrotados, mas simplesmente corromper o conforto como o qual caracterizamos personagens encena-dos ou não, através de uma narrativa genialmente construída.

Referências bibliográficasAUMONT, Jacques. A herança do teatro: a encenação, o texto e o lugar. In: Aumont, J. O cinema e a encenação. Lisboa: Ed. Texto e Grafia, 2008.

AUMONT, Jacques. De um quadro a outro: a borda e a distância. In: Aumont, J. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

COMOLLI, Jean-Louis.Ver e poder. A inocência perdida: cinema, tele-visão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. P. 52-60: Notas sobre a mise-en-scène documentária. P: 81-85: Carta de Marse-lha sobre a auto-mise-en-scène.

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio (Org.). A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2004.