Jonas e o princípio da responsabilidade

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    Jonas e o princpio da responsabilidade: reflexes

    Incio do ano de 2003. Sob os holofotes da mdia do mundo inteiro um

    religioso milionrio e visionrio que se acredita irmo de Jesus, anuncia ter

    produzido o primeiro clone humano. Seus cientistas do entrevistas, a

    comunidade cientfica se agita, exigem provas; a opinio pblica se manifesta

    nas ruas, nos bares, nos programas de debate. Munido de um aparato

    tecnolgico de ltima gerao, as condies tcnicas para esse feito so reais,

    mas teria ele esse direito? Se realmente tiver competncia para faz-lo, quem

    ou o que poder impedi-lo?A discusso sobre a biotica est novamente em

    foco por algum tempo. Curto tempo, at que qualquer outra novidade acirre

    maior interesse.

    Polmicas deste tipo tm sido corriqueiras nos ltimos anos,

    particularmente na rea da cincia gentica, onde avanos significativos

    possibilitam hoje situaes impensveis at h pouco tempo. A par disso,

    multiplicam-se em vrias partes do globo imagens quase surreais de desastres

    ecolgicos de enormes propores: milhas e milhas de gua cobertas de leo;

    rios inteiros contaminados por substncias txicas; grandes reas inundadas

    comprometendo ecossistemas inteiros; peixes mortos em abundncia,

    formando gigantescos tapetes prateados; cidades inteiras envolvidas em

    atmosfera de elevado grau de toxidade ...

    Mais do que a proporo, assustadora a velocidade com que tais fatos

    se multiplicam, de modo que no mais causam tanto impacto. Insidiosamenteintegradas no cotidiano das modernas civilizaes, essas anomalias aos

    poucos vo deixando de ser vistas com espanto, passando a ser consideradas

    simplesmente conseqncias inevitveis do progresso. o preo que todos

    tm que pagar por uma vida confortvel, afinal, ningum tem culpa.

    E a responsabilidade? A quem pode ser atribuda responsabilidade por

    resultados nefastos contra o ambiente e a segurana dos seres vivos, homens

    ou animais, quando o progresso ameaar a vida? O alemo Hans Jonas,

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    De acordo com Siqueira, ao formular o seu imperativo de

    responsabilidade, Jonas est pensando na morte essencial da humanidade,

    aquela que advm da desconstruo e a aleatria reconstruo tecnolgica do

    homem e do meio ambiente.Na anlise do autor, as novas dimenses para a

    responsabilidade propostas por Jonas foram decorrentes da separao entre

    os avanos cientficos e a reflexo tica, considerando que a tica tradicional

    no daria conta de conter as imprevisveis conseqncias advindas das aes

    que tcnica moderna desencadeou.

    O ponto de partida da reflexo de Jonas relativo tranformao do

    agir humano na poca moderna, que implicaria, segundo ele, necessariamenteem uma mudana radical tambm na tica tradicional, cujas caractersticas

    principais partem do princpio de que a sua relao com o mundo no humano

    uma relao tcnica, eticamente neutra.

    A tica tradicional uma tica antropocntrica, na qual o horizonte

    temporal e espacial do homem, assim como a sua esfera de ao, so

    limitados ao agir humano. Sob esse prisma, qualquer resultado da capacidade

    inventiva do homem afetaria somente o que estivesse situado dentro desses

    limites, no se estendendo s coisas extra-humanas. Nesse caso a natureza

    extra-humana no seria objeto da responsabilidade humana.

    Com Jonas, ao contrrio, cabe ao ser humano responder, pessoalmente,

    a uma noo mais ampla e radical da responsabilidade, referente natureza

    humana e extra-humana, em razo da amplitude das aes transformadoras da

    tecnologia atual e da idia de natureza ser hoje considerada como propriedadedo homem.

    O sentido de responsabilidade, para ele, significa que cada indivduo se

    encontra numa situao de responder por algo, contendo o senso de

    responsabilidade uma idia de resposta que se traduz por uma ao, e a

    responsabilidade de cada ser humano para consigo mesmo indissocivel da

    responsabilidade que se tem para com todos os homens, numa solidariedade

    3

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    que o liga tanto aos outros seres humanos quanto natureza que o cerca.2 O

    princpio da responsabilidade seria a expresso moral da preexistncia do ser,

    mas de um ser que no unicamente o homem, mas a natureza inteira.

    Como a prescrio tica atuaria no lado subjetivo da responsabilidade,

    ou seja, na maneira pela qual o promotor de determinada ao assumiria os

    resultados de sua interveno, seja num momento passado ou em aes

    futuras? Pela proposio de Jonas depreende-se que a prescrio tica no se

    impe de forma coercitiva, mas como um forte apelo dirigido liberdade do

    agente de transformao. Dessa forma a ordem tica est presente, no como

    realidade visvel, mas como um apelo previdente que pede calma, prudncia eequilbrio, ao qual Jonas chama de Princpio da responsabilidade.3

    (...) Se a nova natureza do nosso agir requer uma nova ticada responsabilidade a longo prazo, co-extensiva ao raio de alcance donosso poder, requer tambm, e em nome dessa mesmaresponsabilidade, uma nova espcie de humildade. Uma humildadeque no igual que antes existia, ou seja, que j no o em face dapequenez, mas antes em face da excessiva magnitude do nosso poder,que se traduz pelo excesso do nosso poder de agir face ao nossopoder de prever e ao nosso poder de avaliar e ajuizar.4

    A articulao entre a realidade subjetiva e a realidade objetiva, est na

    base da responsabilidade na concepo de Jonas e, portanto, na tica, forjada

    por uma fuso entre o sujeito e a ao. Essa articulao, por outro lado,

    configuraria um resgate da ligao entre a subjetividade humana, reservada

    filosofia, e a objetividade do saber, que prpria da cincia. A partir do

    momento em que houve essa ruptura entre objetividade e subjetividade, o

    conhecimento cientfico ficou cego para a marcha da prpria cincia.

    Morin denomina ignorncia da ecologia da ao ao fato deque toda ao humana, a partir do momento em que iniciada, escapadas mos de seu iniciador e entram em jogo as mltiplas interaesprprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e s vezes lhedo um destino oposto ao que era visado inicialmente.5

    2 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.3. Idem4 JONAS,El princpio de responsabilidad, 1995.5 SIQUEIRA, op cit.

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    Esse descontrole ou ignorncia dos rumos da tecnocincia constitui a

    base das preocupaes de Jonas, em uma poca em que a tcnica detm um

    poder quase ilimitado de explorao da natureza. A esse carter de um impulso

    incontrolado dos avanos tecnolgicos, Jonas concebeu como uma subjugao

    do homo sapiens ao homo faber. A tecnocincia, integrando cincia e

    tecnologia, representa o imperativo maior da poca atual, convertendo-se a

    tcnica na essncia do poder e manifestao natural das verdades contidas na

    cincia. E a tecnocincia, para Jonas, poderosa demais para ser deixada

    exclusivamente merc dos cientistas.6

    O imperativo de Jonas, ao reverso, caracterizado pela induo

    responsabilidade em seu sentido lato, uma responsabilidade csmica:

    O que caracteriza o imperativo de Jonas a sua orientaopara o futuro, mais precisamente para um futuro que ultrapassa ohorizonte fechado, no interior do qual o agente transformador podereparar danos causados por ele ou sofrer a pena por eventuais delitosque ele tenha perpetrado uma vez que, pela tcnica, o homem tornou-se perigoso para o homem na medida em que ele pe em perigo osgrandes equilbrios csmicos e biolgicos que constituem o alicercevital da humanidade do homem.7

    Siqueira pondera que, quando Jonas prope um novo imperativo para

    substituir o imperativo categrico kantiano, est introduzindo uma clara

    mudana paradigmtica. Enquanto Kant dizia age de tal maneira que possas

    querer que tua ao se converta em lei universal, Jonas diz: age de tal

    maneira que os efeitos de tua ao no sejam lesivos para a futura

    possibilidade de vida humana. Estabelece, precisamente, que no lcito

    arriscar a vida humana, ou, melhor dizendo, os homens no tm o direito de

    escolher ou arriscar a no-existncia de geraes futuras.

    Ressalta-se, porm, que o novo paradigma nasce do antigo,incorporando grande parte da estrutura conceitual e estabelecendouma unidade de medida mais adequada para aferir as aes humanas,tendo em conta que a cincia tem um compromisso primacial com acompreenso cada vez mais detalhada e refinada da natureza.8

    6 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio da

    responsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.7 Idem.8 Ibidem

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    Ambos, Jonas e Kant, consideram e dignidade moral de todo ser

    humano, com a diferena, para Jonas, de que esse valor extensvel a toda a

    natureza extra-humana, cujo preceito no contemplado pela tica tradicional.

    Tem-se, assim, que a proposta de Jonas no pretende negar a tica kantiana,

    mas a considera incompleta ou insuficiente para responder s questes

    emergentes da nova tecnocincia, sendo mais adequado considerar que os

    imperativos de Jonas e Kant, ao invs de exclurem se complementam.

    Jonas chama principalmente a ateno para um dever intrnseco

    prpria humanidade. Um dever que transcende o limite espao-tempo,

    afirmando que o primeiro dever do homem para com o seu prprio futuro no

    sentido de raa humana, inserindo-se neste futuro a natureza, por ser ela

    condio imprescindvel para a vida humana. A Me-Terra, dos antigos gregos,

    impe-se soberana em sua re-significao, quando Jonas fala da dignidade

    prpria da natureza, no hesitando em reconhecer um direito prprio da

    natureza extra-humana a ser respeitado. Assim, preservar a natureza

    significaria preservar o ser humano.

    A tremenda vulnerabilidade da natureza, submetida intervenotecnolgica do homem, mostra uma situao inusitada, pois nada menosque toda a biosfera do planeta torna-se passvel de ser alterada, o quetorna imprescindvel considerar que no somente o bem humano deveser almejado, mas tambm o de toda a natureza extra-humana.9

    A responsabilidade instituda pela natureza, segundo Jonas, uma

    responsabilidade global e irrevogvel, independente de nossa concordncia

    prvia. A rica vida da Terra, conseguida atravs de um longo labor criativo da

    natureza, est merc do homem e exige proteo. Aos argumentos de que,

    mesmo que a terra inteira seja reduzida a cinzas, saber se recompor, cabe

    questionar: ser assim to simples? Alm disso, nosso direito destruir o que

    foi laborado em milhes de anos?

    Contra a concepo cientfica dominante que esvaziou da natureza toda

    espcie de valor no senso tico do termo, considerado como um

    antropomorfismo indevido, poderamos cogitar se no justamente o valor

    intrnseco e originrio da natureza que seria ontologicamente a origem de tudo

    9 JONAS, apud SIQUEIRA.

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    o que, no decorrer do tempo, ascendeu a uma condio de valor sob o ponto

    de vista humano. Existiria na natureza uma exigncia no verbal, um apelo

    mudo, no sentido de poupar sua integridade ameaada, quela humanidade,

    ela mesma nascida da natureza.

    Homem a natureza vivem em intensa relao deinterdependncia, o que significa que o perigo de destruio danatureza implica na destruio da prpria vida humana, impondo aohomem o dever de acolher uma tica de conservao, de cautela, depreveno e no de progresso a qualquer custo, reclamando asubstituio de metas expansionistas por um desenvolvimentocalculado, no destrutivo e defensivo da natureza.10

    Para Jonas, no h nenhuma possibilidade de existncia desvinculada e

    autnoma entre o homem e a natureza, pois efetivamente tudo o que existe

    dependente, e o apelo para que o homem no ponha em perigo as condies

    de continuidade indefinida da humanidade na Terra. A humanidade no tem

    direito ao suicdio, declara ele, pois h um dever incondicional dela mesma em

    relao existncia que no deve ser confundido com aquele de cada

    indivduo com sua prpria existncia.

    Essa responsabilidade csmica significa que Jonas prope nada menosdo que a redescoberta do sagrado, no sentido de uma dimenso do cosmos

    que transcende a pura materialidade. Na prtica seria restringir o humano em

    seu poder de dominao e usurpao de um universo que no sua obra nem

    sua propriedade. A questo , segundo ele, saber se, sem a restaurao da

    categoria do sagrado, que foi a mais fundamentalmente destruda pela razo

    cientfica, possvel construir uma tica capaz de refrear as foras que nos

    possuem hoje e que ns somos quase obrigados a adquirir e, sobretudo, a

    exercer constantemente.

    Na concepo de Jonas, o homem da era tecnolgica acrescenta

    vulnerabilidade da vida a sua prpria obra, como um fator desagregador

    suplementar, uma vez que, deixando de ser regulado por fins naturais, pois a

    natureza no mais se constitui em obstculo intransponvel, o agir humano

    transforma-se num centro de desequilbrio especfico, cuja fora

    10 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.

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    transformadora, por suas dimenses, efeitos cumulativos e irreversveis,

    capaz de produzir distores e periculosidades definitivas e sem precedentes

    na histria da vida no planeta11.

    Como tutor de todas as formas de vida, esse incremento da

    periculosidade do homem cresce em importncia. O princpio da

    responsabilidade pede que se preserve a condio de existncia da

    humanidade, enfatizando que a obrigao de reparao deve ser proporcional

    conscincia dos danos possveis oriundos das aes humanas. Alm da

    preocupao com a biosfera inteira, Jonas se volta tambm em direo

    ameaa que pesa sobre a humanidade propriamente, atravs do

    prolongamento artificial da vida, o controle qumico do comportamento e a

    manipulao gentica.

    A grande preocupao manifestada por ele diz respeito aos possveis

    danos que essa prtica, sem o devido respaldo tico, possa causar s

    geraes futuras, sem que os seus perpetradores estejam aqui para responder

    por seus atos e muito menos repar-los. Se houver crimes, esses ficaro

    impunes. A genomania, decorrente dos progressivos e significativos avanossobre os genes e sua aplicao na deteco precoce de doenas, citada

    como um exemplo contundente da falha da tica na cincia, em virtude de

    conduzir a raciocnios deterministas que resultam em posturas extremistas e

    perigosas, quando cientistas passam a emitir juzos de valor e propem

    condutas intervencionistas em seres humanos.

    O fato que ainda h mais dvidas do que certezas nessa rea, pois

    apesar do conhecimento cientfico estar em franco desenvolvimento e hajamuitas informaes acumuladas, as doenas polignicas, por exemplo,

    dependentes da interao dos genes com o ambiente, ainda so pouco

    conhecidas. Alm disso, h a possibilidade de ressurgimento de antigas

    propostas eugnicas para atender interesses restritos, em detrimento da

    sociedade. por esses e outros motivos o grande dilema moral que se impe

    quando se trata da manipulao da gentica humana.

    11 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.

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    O carter irreversvel de muitas das possibilidades desse novo

    conhecimento, fazem suscitar irrevogavelmente questes sobre poder, direito e

    responsabilidade. Antes a engenharia biolgica se ocupava de matrias

    inertes, hoje a prpria natureza humana que est em jogo, e a possibilidade

    de consertar os erros que existia naquela prtica no possvel nesta. Diante

    desse frgil equilbrio de foras Jonas pede essencialmente cuidado,

    humildade e ponderao.

    Cincia e tica: mudando paradigmas

    O crescimento da cincia e sua preponderncia sobre o obscurantismo,

    caracterizado por prticas sectrias e danosas foi, sem dvida, uma grande

    conquista. Muitos cientistas pioneiros sofrerem discriminao, preconceito e

    exlio social por romperem tabus e colocarem em xeque crenas antigas.

    Muitos cientistas sofreram perseguies e aviltamento, como na Alemanha,

    onde durante um tempo razovel a prtica cientfica submetida aos objetivos

    polticos do nazismo, ou na Unio Sovitica, onde vrios cientistas sofrerem

    exlio interno e nos EUA, onde foram transformados em trabalhadores

    assalariados.

    Aps a Segunda Guerra os cientistas, assim como a importncia social

    da cincia, ganharam espao e amplitude de ao, restrita por longo tempo aos

    refgios intelectuais espalhados pela Europa. Rapidamente nos anos

    seguintes, a sociedade assistiu ao crescimento da importncia desses

    profissionais, e expanso de suas intervenes em vrios mbitos sociais.

    medida que a prtica cientfica foi se assentando em bases mais

    slidas, a aceitao social foi crescendo na mesma medida, ao ponto de

    constituir-se uma ideologia da f na cincia, inaugurada no sculo XIX,

    baseada na concepo do progresso cientfico como incondicionalmente bom.

    Acreditava-se que os males que afligiam o homem poderiam sempre ter uma

    soluo proporcionada pela cincia, o que descambou para a idia errnea de

    a prtica cientfica podia prescindir de valores morais.

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    Essa aceitao irrestrita comeou a sofrer abalos em vista da resultados

    desastrosos da aplicao cientfica desmedida, surgindo com isso os primeiros

    questionamentos sobre a funo social da cincia. Hoje, de modo geral, em

    vista do extraordinrio poder que a cincia detm, j se interroga sobre seus

    rumos e se critica a inexistncia de fronteiras no avano do progresso.

    A sociedade j se posiciona mais criticamente em relao cincia e

    seus resultados, e no sentido de arranc-la dopodium onde foi colocada:

    A suposio de que todo novo conhecimento cientfico resulta embenefcio para a humanidade vem sendo contestada. Crescem osquestionamentos de amplos setores no sentido inserir a prtica cientfica

    em mbito que exceda a conscincia acrtica ou oficial dos cientistas edas instituies da cincia, para aprofundar o dilogo dessa prtica comas demais formas de conhecimento.12

    Refora Siqueira que normalmente os paradigmas cientficos so

    inflexveis, estabelecendo a sua coerncia interna na tradio dos

    procedimentos. Isso, porm, no suficiente para esconder imperfeies no

    seu corpo de doutrina. Resistindo tenazmente mudana de paradigmas, a

    cincia torna-se cada vez mais rgida, o que um reflexo do pensamento de

    grande maioria do cientistas como James Watson que, junto com FrancisCrick, props em 1953 o modelo da estrutura do DNA. Ele declarou certa vez

    que a cincia no pode se submeter tica, sob pena de inibir a investigao

    cientfica. A aplicao das descobertas, essa sim, pode ser definida

    socialmente.

    Na anlise de Siqueira, para os cientistas a teoria de Jonas implica em

    mudanas sensveis nas regras que normalizam as prticas cientficas,

    cerceando sua liberdade de investigao. Estes demonstram resistncia porque suas ferramentas intelectuais foram forjadas em slida unidade

    histrica e pedaggica que os mantm convencidos do acerto da metodologia

    tradicional. (...) A idia prevalente dos meios cientficos de que, como nada

    est sancionado na natureza, tudo permitido e no se pode coibir a liberdade

    de investigao, denominada por Jonas de liberdade niilista13

    12 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 199813 Idem

    10

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    Jonas fala de uma atitude inspirada na heurstica do temor,

    constituindo o primeiro dever do cientista na busca de uma tica voltada para o

    futuro. Isso quer dizer que em todo o projeto de pesquisa deve o cientista optar

    por aquele de prognstico mais favorvel, que incorra em menos riscos e

    menor nvel de interveno no curso da evoluo natural. fundamental para

    isso que o cientista tenha sua conduta moderada por um mandato de cautela,

    pois somente a previsvel desfigurao do homem nos ajuda a forjar a idia de

    homem que deve ser preservada de tal desfigurao. Necessitamos desse

    conceito do ameaado para que, ante o espanto que tal eventualidade nos

    produz, afianar uma imagem verdadeira do homem.14

    Crticas e consideraes

    Segundo alguns crticos, o que realmente subjaz ao trabalho de Jonas

    fundamentalmente uma crtica atitude cientfica em geral, ao materialismo e a

    tudo o que se relaciona ao mesmo, direcionando a uma reabilitao do

    pensamento teolgico. Essa idia, segundo eles, conduz a uma verdadeira

    mstica da natureza, que se posiciona na mesma linha dos princpios delirantes

    da ecologia profunda. Essa restrio estaria na mesma linha da crtica de

    Bernstein sobre a tendncia de Jonas ao exagero, quando sugere a

    necessidade de romper totalmente com a tica tradicional, por consider-la

    incapaz de responder s novas questes apresentadas pela modernidade, ou

    quando assume ares alarmistas frente aos acontecimentos negativos em

    relao natureza.

    A sua proposio de constituir um conselho de vigilantes, umcolegiado de iluminados para, numa teraputica autoritria, fiscalizar e coibir

    o avano irresponsvel da tecnocincia, vista como um trao extremo de

    conservadorismo, e mesmo uma atitude tirnica nos mesmos moldes da tirania

    que a cincia impe, uma vez que, investido de uma postura ditatorial,

    desconsidera os avanos sociais na questo da cidadania e dos direitos de

    participao da sociedade na administrao de medidas que a afetem.

    14 JONAS,El princpio de responsabilidad, 1995, apud SIQUEIRA, 1998.

    11

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    Nesses moldes, Jonas no leva em conta a vontade do homem, mas sim

    a necessidade de tratamento da sociedade humana doente, mesmo que seja

    necessrio impor o remdio contra a vontade do homem-cidado. Tal idia soa

    contraditria, considerando a viso holstica que ele expe ao advogar uma

    responsabilidade plena do homem em relao aos seus atos. Se ao homem

    cabe o juzo sobre o agir, tambm cabe a deciso, subsidiada por amplos

    debates e a mediao de especialistas, sobre questes que afetem a

    sociedade em seu conjunto.

    Outras crticas feitas por filsofos e socilogos europeus referem-se ao

    trabalho de Jonas como carente de profundidade. Seria ele uma repetiointerminvel dos mesmos pressupostos, carecendo de complexidade e

    consistncia terica. Suas premissas alarmistas, dizem, carecem de

    sustentao, assim como seus prognsticos sombrios em relao ao futuro do

    homem nos moldes atuais.

    parte os juzos de valor e as crticas fundamentadas ou no, o fato

    que as proposies de Jonas caram em terreno frtil, da o seu sucesso,

    porque os fatos mostram uma face alterada daquele que chamamos lar: o

    planeta Terra. Sob vrios aspectos as transformaes ininterruptas e velozes

    criam um clima de grande inquietao e temor, em vistas das calamidades

    acontecidas e as previstas, todas em grande escala, ao ponto de abalar os

    alicerces e as convices em vrias partes do mundo ao mesmo tempo.

    Ressalta Siqueira que no informe A situao do mundo, de 1993,

    observa-se preocupao com a contnua deteriorao do planeta em vriosaspectos, em parte decorrente dos indicadores globais mostrados na

    Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento,

    ocorrida no Rio em 1992, reunindo a maior quantidade de lderes polticos j

    registrada, que evidenciaram um decrscimo contnuo e generalizado das

    condies de vitalidade da Terra, resultante principalmente da superestimao

    do progresso tcnico em detrimento do equilbrio ecolgico, com consequente

    degradao ambiental. Segundo ele, 15

    15 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998

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    Grande parte dos esforos para manter o progressotecnolgico na busca de atender s ambies humanas culminaro emcalamidades, tais como o acidente em uma fbrica de pesticidas nandia, na dcada de 80, que causou a morte de 2000 pessoas e atingiuoutras 200.000 com leses oculares graves; ou a exploso do reator

    nuclear de Chernobyl, que espalhou nuvens radiativas por toda aEuropa, com conseqncias ainda no mensuradas; ou o incndio emum depsito de produtos qumicos na Sua, contaminando o rio Reno,que matou milhes de peixes e prejudicou o abastecimento de guapotvel para a Alemanha e Pases Baixos, alm da morte de cerca de60 milhes de pessoas, na maioria crianas, vitimadas porenfermidades diarricas, relacionadas com o consumo de gua poludae desnutrio.

    A conseqncia direta desse descaso atinge grandes propores,

    traduzindo-se em crescentes os gastos com projetos de descontaminao,

    tratamento de enfermidades como o cncer de pele, doenas congnitas,alergias diversas, enfisema pulmonar, asma brnquica e outras doenas

    respiratrias, diretamente resultantes da poluio atmosfrica. Alm disso, h

    que se considerar a expanso da fome em razo do empobrecimento do solo,

    considerando que em torno de seis milhes de hectares, a cada ano,

    convertem-se em desertos.

    Hoje, pondera Siqueira, a tcnica alcana o ser humano em todos os

    momentos de sua existncia, na vida e na morte, no pensamento, nos

    sentimentos, na sade e na doena, no presente e no futuro. Enfim, toda a vida

    humana encontra-se permevel tcnica, da porque Jonas prope uma

    filosofia da tecnologia, implicando sempre na proposio de aes

    transformadoras.Assim, a tica se insere nas questes relacionadas com a

    tcnica pelo simples fato de ser uma forma de atuao, de exerccio do poder

    humano, e toda atuao humana est necessariamente exposta a um juzo

    moral.

    Apesar dos atos desmedidos, Jonas expressa sua confiana no homem,

    considerando-o acima de tudo um ser potencialmente realizador, possuidor de

    sensibilidade para contemplar a dignidade da natureza e preservar intocada a

    vida, capaz de reconhecer os desmedidos poderes de que dotado e de

    utiliz-los com sabedoria. A sua noo de tica no-antropocntrica vem

    alargar a noo de bem humano tambm preservao da natureza, a qual

    13

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    merece ser tratada como portadora de dignidade prpria. A base dessa tica

    est na responsabilidade.

    O carter imprevisvel e inquietante da competncia biotecnocientfica

    impe a necessidade de um acompanhamento racional, imparcial e prudente

    dos novos procedimentos da tecnocincia. A reflexo tica, nesse contexto,

    tem papel fundamental e deve obrigatoriamente ser incorporada na dinmica

    das decises, precisamente porque o homem o centro desse complexo.

    Na concepo de Jonas, enfatiza Siqueira, somos responsveis pela

    perpetuao da prpria responsabilidade. Assim, a idia de humanidadeultrapassa a idia de vida e alcana toda a natureza e se transforma numa

    responsabilidade csmica que se expressa na primeira obrigao, no primeiro

    mandamento, simplesmente, que a humanidade seja.16

    Mais atual do que nunca, Jonas coloca-se, com o seu princpio de

    responsabilidade, como um batedor frente dos exploradores, sondando os

    perigos, alertando para as armadilhas, sujeitando-se s ameaas do caminho.

    Mesmo que s vezes demasiadamente enftico ou ocasionalmente

    redundante, uma voz que se alteia e chama razo.

    Cabe-nos a capacidade de ouvir.

    16 Ibidem.

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