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8/3/2019 Jonas e o princpio da responsabilidade
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Jonas e o princpio da responsabilidade: reflexes
Incio do ano de 2003. Sob os holofotes da mdia do mundo inteiro um
religioso milionrio e visionrio que se acredita irmo de Jesus, anuncia ter
produzido o primeiro clone humano. Seus cientistas do entrevistas, a
comunidade cientfica se agita, exigem provas; a opinio pblica se manifesta
nas ruas, nos bares, nos programas de debate. Munido de um aparato
tecnolgico de ltima gerao, as condies tcnicas para esse feito so reais,
mas teria ele esse direito? Se realmente tiver competncia para faz-lo, quem
ou o que poder impedi-lo?A discusso sobre a biotica est novamente em
foco por algum tempo. Curto tempo, at que qualquer outra novidade acirre
maior interesse.
Polmicas deste tipo tm sido corriqueiras nos ltimos anos,
particularmente na rea da cincia gentica, onde avanos significativos
possibilitam hoje situaes impensveis at h pouco tempo. A par disso,
multiplicam-se em vrias partes do globo imagens quase surreais de desastres
ecolgicos de enormes propores: milhas e milhas de gua cobertas de leo;
rios inteiros contaminados por substncias txicas; grandes reas inundadas
comprometendo ecossistemas inteiros; peixes mortos em abundncia,
formando gigantescos tapetes prateados; cidades inteiras envolvidas em
atmosfera de elevado grau de toxidade ...
Mais do que a proporo, assustadora a velocidade com que tais fatos
se multiplicam, de modo que no mais causam tanto impacto. Insidiosamenteintegradas no cotidiano das modernas civilizaes, essas anomalias aos
poucos vo deixando de ser vistas com espanto, passando a ser consideradas
simplesmente conseqncias inevitveis do progresso. o preo que todos
tm que pagar por uma vida confortvel, afinal, ningum tem culpa.
E a responsabilidade? A quem pode ser atribuda responsabilidade por
resultados nefastos contra o ambiente e a segurana dos seres vivos, homens
ou animais, quando o progresso ameaar a vida? O alemo Hans Jonas,
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De acordo com Siqueira, ao formular o seu imperativo de
responsabilidade, Jonas est pensando na morte essencial da humanidade,
aquela que advm da desconstruo e a aleatria reconstruo tecnolgica do
homem e do meio ambiente.Na anlise do autor, as novas dimenses para a
responsabilidade propostas por Jonas foram decorrentes da separao entre
os avanos cientficos e a reflexo tica, considerando que a tica tradicional
no daria conta de conter as imprevisveis conseqncias advindas das aes
que tcnica moderna desencadeou.
O ponto de partida da reflexo de Jonas relativo tranformao do
agir humano na poca moderna, que implicaria, segundo ele, necessariamenteem uma mudana radical tambm na tica tradicional, cujas caractersticas
principais partem do princpio de que a sua relao com o mundo no humano
uma relao tcnica, eticamente neutra.
A tica tradicional uma tica antropocntrica, na qual o horizonte
temporal e espacial do homem, assim como a sua esfera de ao, so
limitados ao agir humano. Sob esse prisma, qualquer resultado da capacidade
inventiva do homem afetaria somente o que estivesse situado dentro desses
limites, no se estendendo s coisas extra-humanas. Nesse caso a natureza
extra-humana no seria objeto da responsabilidade humana.
Com Jonas, ao contrrio, cabe ao ser humano responder, pessoalmente,
a uma noo mais ampla e radical da responsabilidade, referente natureza
humana e extra-humana, em razo da amplitude das aes transformadoras da
tecnologia atual e da idia de natureza ser hoje considerada como propriedadedo homem.
O sentido de responsabilidade, para ele, significa que cada indivduo se
encontra numa situao de responder por algo, contendo o senso de
responsabilidade uma idia de resposta que se traduz por uma ao, e a
responsabilidade de cada ser humano para consigo mesmo indissocivel da
responsabilidade que se tem para com todos os homens, numa solidariedade
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que o liga tanto aos outros seres humanos quanto natureza que o cerca.2 O
princpio da responsabilidade seria a expresso moral da preexistncia do ser,
mas de um ser que no unicamente o homem, mas a natureza inteira.
Como a prescrio tica atuaria no lado subjetivo da responsabilidade,
ou seja, na maneira pela qual o promotor de determinada ao assumiria os
resultados de sua interveno, seja num momento passado ou em aes
futuras? Pela proposio de Jonas depreende-se que a prescrio tica no se
impe de forma coercitiva, mas como um forte apelo dirigido liberdade do
agente de transformao. Dessa forma a ordem tica est presente, no como
realidade visvel, mas como um apelo previdente que pede calma, prudncia eequilbrio, ao qual Jonas chama de Princpio da responsabilidade.3
(...) Se a nova natureza do nosso agir requer uma nova ticada responsabilidade a longo prazo, co-extensiva ao raio de alcance donosso poder, requer tambm, e em nome dessa mesmaresponsabilidade, uma nova espcie de humildade. Uma humildadeque no igual que antes existia, ou seja, que j no o em face dapequenez, mas antes em face da excessiva magnitude do nosso poder,que se traduz pelo excesso do nosso poder de agir face ao nossopoder de prever e ao nosso poder de avaliar e ajuizar.4
A articulao entre a realidade subjetiva e a realidade objetiva, est na
base da responsabilidade na concepo de Jonas e, portanto, na tica, forjada
por uma fuso entre o sujeito e a ao. Essa articulao, por outro lado,
configuraria um resgate da ligao entre a subjetividade humana, reservada
filosofia, e a objetividade do saber, que prpria da cincia. A partir do
momento em que houve essa ruptura entre objetividade e subjetividade, o
conhecimento cientfico ficou cego para a marcha da prpria cincia.
Morin denomina ignorncia da ecologia da ao ao fato deque toda ao humana, a partir do momento em que iniciada, escapadas mos de seu iniciador e entram em jogo as mltiplas interaesprprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e s vezes lhedo um destino oposto ao que era visado inicialmente.5
2 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.3. Idem4 JONAS,El princpio de responsabilidad, 1995.5 SIQUEIRA, op cit.
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Esse descontrole ou ignorncia dos rumos da tecnocincia constitui a
base das preocupaes de Jonas, em uma poca em que a tcnica detm um
poder quase ilimitado de explorao da natureza. A esse carter de um impulso
incontrolado dos avanos tecnolgicos, Jonas concebeu como uma subjugao
do homo sapiens ao homo faber. A tecnocincia, integrando cincia e
tecnologia, representa o imperativo maior da poca atual, convertendo-se a
tcnica na essncia do poder e manifestao natural das verdades contidas na
cincia. E a tecnocincia, para Jonas, poderosa demais para ser deixada
exclusivamente merc dos cientistas.6
O imperativo de Jonas, ao reverso, caracterizado pela induo
responsabilidade em seu sentido lato, uma responsabilidade csmica:
O que caracteriza o imperativo de Jonas a sua orientaopara o futuro, mais precisamente para um futuro que ultrapassa ohorizonte fechado, no interior do qual o agente transformador podereparar danos causados por ele ou sofrer a pena por eventuais delitosque ele tenha perpetrado uma vez que, pela tcnica, o homem tornou-se perigoso para o homem na medida em que ele pe em perigo osgrandes equilbrios csmicos e biolgicos que constituem o alicercevital da humanidade do homem.7
Siqueira pondera que, quando Jonas prope um novo imperativo para
substituir o imperativo categrico kantiano, est introduzindo uma clara
mudana paradigmtica. Enquanto Kant dizia age de tal maneira que possas
querer que tua ao se converta em lei universal, Jonas diz: age de tal
maneira que os efeitos de tua ao no sejam lesivos para a futura
possibilidade de vida humana. Estabelece, precisamente, que no lcito
arriscar a vida humana, ou, melhor dizendo, os homens no tm o direito de
escolher ou arriscar a no-existncia de geraes futuras.
Ressalta-se, porm, que o novo paradigma nasce do antigo,incorporando grande parte da estrutura conceitual e estabelecendouma unidade de medida mais adequada para aferir as aes humanas,tendo em conta que a cincia tem um compromisso primacial com acompreenso cada vez mais detalhada e refinada da natureza.8
6 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio da
responsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.7 Idem.8 Ibidem
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Ambos, Jonas e Kant, consideram e dignidade moral de todo ser
humano, com a diferena, para Jonas, de que esse valor extensvel a toda a
natureza extra-humana, cujo preceito no contemplado pela tica tradicional.
Tem-se, assim, que a proposta de Jonas no pretende negar a tica kantiana,
mas a considera incompleta ou insuficiente para responder s questes
emergentes da nova tecnocincia, sendo mais adequado considerar que os
imperativos de Jonas e Kant, ao invs de exclurem se complementam.
Jonas chama principalmente a ateno para um dever intrnseco
prpria humanidade. Um dever que transcende o limite espao-tempo,
afirmando que o primeiro dever do homem para com o seu prprio futuro no
sentido de raa humana, inserindo-se neste futuro a natureza, por ser ela
condio imprescindvel para a vida humana. A Me-Terra, dos antigos gregos,
impe-se soberana em sua re-significao, quando Jonas fala da dignidade
prpria da natureza, no hesitando em reconhecer um direito prprio da
natureza extra-humana a ser respeitado. Assim, preservar a natureza
significaria preservar o ser humano.
A tremenda vulnerabilidade da natureza, submetida intervenotecnolgica do homem, mostra uma situao inusitada, pois nada menosque toda a biosfera do planeta torna-se passvel de ser alterada, o quetorna imprescindvel considerar que no somente o bem humano deveser almejado, mas tambm o de toda a natureza extra-humana.9
A responsabilidade instituda pela natureza, segundo Jonas, uma
responsabilidade global e irrevogvel, independente de nossa concordncia
prvia. A rica vida da Terra, conseguida atravs de um longo labor criativo da
natureza, est merc do homem e exige proteo. Aos argumentos de que,
mesmo que a terra inteira seja reduzida a cinzas, saber se recompor, cabe
questionar: ser assim to simples? Alm disso, nosso direito destruir o que
foi laborado em milhes de anos?
Contra a concepo cientfica dominante que esvaziou da natureza toda
espcie de valor no senso tico do termo, considerado como um
antropomorfismo indevido, poderamos cogitar se no justamente o valor
intrnseco e originrio da natureza que seria ontologicamente a origem de tudo
9 JONAS, apud SIQUEIRA.
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o que, no decorrer do tempo, ascendeu a uma condio de valor sob o ponto
de vista humano. Existiria na natureza uma exigncia no verbal, um apelo
mudo, no sentido de poupar sua integridade ameaada, quela humanidade,
ela mesma nascida da natureza.
Homem a natureza vivem em intensa relao deinterdependncia, o que significa que o perigo de destruio danatureza implica na destruio da prpria vida humana, impondo aohomem o dever de acolher uma tica de conservao, de cautela, depreveno e no de progresso a qualquer custo, reclamando asubstituio de metas expansionistas por um desenvolvimentocalculado, no destrutivo e defensivo da natureza.10
Para Jonas, no h nenhuma possibilidade de existncia desvinculada e
autnoma entre o homem e a natureza, pois efetivamente tudo o que existe
dependente, e o apelo para que o homem no ponha em perigo as condies
de continuidade indefinida da humanidade na Terra. A humanidade no tem
direito ao suicdio, declara ele, pois h um dever incondicional dela mesma em
relao existncia que no deve ser confundido com aquele de cada
indivduo com sua prpria existncia.
Essa responsabilidade csmica significa que Jonas prope nada menosdo que a redescoberta do sagrado, no sentido de uma dimenso do cosmos
que transcende a pura materialidade. Na prtica seria restringir o humano em
seu poder de dominao e usurpao de um universo que no sua obra nem
sua propriedade. A questo , segundo ele, saber se, sem a restaurao da
categoria do sagrado, que foi a mais fundamentalmente destruda pela razo
cientfica, possvel construir uma tica capaz de refrear as foras que nos
possuem hoje e que ns somos quase obrigados a adquirir e, sobretudo, a
exercer constantemente.
Na concepo de Jonas, o homem da era tecnolgica acrescenta
vulnerabilidade da vida a sua prpria obra, como um fator desagregador
suplementar, uma vez que, deixando de ser regulado por fins naturais, pois a
natureza no mais se constitui em obstculo intransponvel, o agir humano
transforma-se num centro de desequilbrio especfico, cuja fora
10 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.
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transformadora, por suas dimenses, efeitos cumulativos e irreversveis,
capaz de produzir distores e periculosidades definitivas e sem precedentes
na histria da vida no planeta11.
Como tutor de todas as formas de vida, esse incremento da
periculosidade do homem cresce em importncia. O princpio da
responsabilidade pede que se preserve a condio de existncia da
humanidade, enfatizando que a obrigao de reparao deve ser proporcional
conscincia dos danos possveis oriundos das aes humanas. Alm da
preocupao com a biosfera inteira, Jonas se volta tambm em direo
ameaa que pesa sobre a humanidade propriamente, atravs do
prolongamento artificial da vida, o controle qumico do comportamento e a
manipulao gentica.
A grande preocupao manifestada por ele diz respeito aos possveis
danos que essa prtica, sem o devido respaldo tico, possa causar s
geraes futuras, sem que os seus perpetradores estejam aqui para responder
por seus atos e muito menos repar-los. Se houver crimes, esses ficaro
impunes. A genomania, decorrente dos progressivos e significativos avanossobre os genes e sua aplicao na deteco precoce de doenas, citada
como um exemplo contundente da falha da tica na cincia, em virtude de
conduzir a raciocnios deterministas que resultam em posturas extremistas e
perigosas, quando cientistas passam a emitir juzos de valor e propem
condutas intervencionistas em seres humanos.
O fato que ainda h mais dvidas do que certezas nessa rea, pois
apesar do conhecimento cientfico estar em franco desenvolvimento e hajamuitas informaes acumuladas, as doenas polignicas, por exemplo,
dependentes da interao dos genes com o ambiente, ainda so pouco
conhecidas. Alm disso, h a possibilidade de ressurgimento de antigas
propostas eugnicas para atender interesses restritos, em detrimento da
sociedade. por esses e outros motivos o grande dilema moral que se impe
quando se trata da manipulao da gentica humana.
11 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998.
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O carter irreversvel de muitas das possibilidades desse novo
conhecimento, fazem suscitar irrevogavelmente questes sobre poder, direito e
responsabilidade. Antes a engenharia biolgica se ocupava de matrias
inertes, hoje a prpria natureza humana que est em jogo, e a possibilidade
de consertar os erros que existia naquela prtica no possvel nesta. Diante
desse frgil equilbrio de foras Jonas pede essencialmente cuidado,
humildade e ponderao.
Cincia e tica: mudando paradigmas
O crescimento da cincia e sua preponderncia sobre o obscurantismo,
caracterizado por prticas sectrias e danosas foi, sem dvida, uma grande
conquista. Muitos cientistas pioneiros sofrerem discriminao, preconceito e
exlio social por romperem tabus e colocarem em xeque crenas antigas.
Muitos cientistas sofreram perseguies e aviltamento, como na Alemanha,
onde durante um tempo razovel a prtica cientfica submetida aos objetivos
polticos do nazismo, ou na Unio Sovitica, onde vrios cientistas sofrerem
exlio interno e nos EUA, onde foram transformados em trabalhadores
assalariados.
Aps a Segunda Guerra os cientistas, assim como a importncia social
da cincia, ganharam espao e amplitude de ao, restrita por longo tempo aos
refgios intelectuais espalhados pela Europa. Rapidamente nos anos
seguintes, a sociedade assistiu ao crescimento da importncia desses
profissionais, e expanso de suas intervenes em vrios mbitos sociais.
medida que a prtica cientfica foi se assentando em bases mais
slidas, a aceitao social foi crescendo na mesma medida, ao ponto de
constituir-se uma ideologia da f na cincia, inaugurada no sculo XIX,
baseada na concepo do progresso cientfico como incondicionalmente bom.
Acreditava-se que os males que afligiam o homem poderiam sempre ter uma
soluo proporcionada pela cincia, o que descambou para a idia errnea de
a prtica cientfica podia prescindir de valores morais.
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Essa aceitao irrestrita comeou a sofrer abalos em vista da resultados
desastrosos da aplicao cientfica desmedida, surgindo com isso os primeiros
questionamentos sobre a funo social da cincia. Hoje, de modo geral, em
vista do extraordinrio poder que a cincia detm, j se interroga sobre seus
rumos e se critica a inexistncia de fronteiras no avano do progresso.
A sociedade j se posiciona mais criticamente em relao cincia e
seus resultados, e no sentido de arranc-la dopodium onde foi colocada:
A suposio de que todo novo conhecimento cientfico resulta embenefcio para a humanidade vem sendo contestada. Crescem osquestionamentos de amplos setores no sentido inserir a prtica cientfica
em mbito que exceda a conscincia acrtica ou oficial dos cientistas edas instituies da cincia, para aprofundar o dilogo dessa prtica comas demais formas de conhecimento.12
Refora Siqueira que normalmente os paradigmas cientficos so
inflexveis, estabelecendo a sua coerncia interna na tradio dos
procedimentos. Isso, porm, no suficiente para esconder imperfeies no
seu corpo de doutrina. Resistindo tenazmente mudana de paradigmas, a
cincia torna-se cada vez mais rgida, o que um reflexo do pensamento de
grande maioria do cientistas como James Watson que, junto com FrancisCrick, props em 1953 o modelo da estrutura do DNA. Ele declarou certa vez
que a cincia no pode se submeter tica, sob pena de inibir a investigao
cientfica. A aplicao das descobertas, essa sim, pode ser definida
socialmente.
Na anlise de Siqueira, para os cientistas a teoria de Jonas implica em
mudanas sensveis nas regras que normalizam as prticas cientficas,
cerceando sua liberdade de investigao. Estes demonstram resistncia porque suas ferramentas intelectuais foram forjadas em slida unidade
histrica e pedaggica que os mantm convencidos do acerto da metodologia
tradicional. (...) A idia prevalente dos meios cientficos de que, como nada
est sancionado na natureza, tudo permitido e no se pode coibir a liberdade
de investigao, denominada por Jonas de liberdade niilista13
12 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 199813 Idem
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Jonas fala de uma atitude inspirada na heurstica do temor,
constituindo o primeiro dever do cientista na busca de uma tica voltada para o
futuro. Isso quer dizer que em todo o projeto de pesquisa deve o cientista optar
por aquele de prognstico mais favorvel, que incorra em menos riscos e
menor nvel de interveno no curso da evoluo natural. fundamental para
isso que o cientista tenha sua conduta moderada por um mandato de cautela,
pois somente a previsvel desfigurao do homem nos ajuda a forjar a idia de
homem que deve ser preservada de tal desfigurao. Necessitamos desse
conceito do ameaado para que, ante o espanto que tal eventualidade nos
produz, afianar uma imagem verdadeira do homem.14
Crticas e consideraes
Segundo alguns crticos, o que realmente subjaz ao trabalho de Jonas
fundamentalmente uma crtica atitude cientfica em geral, ao materialismo e a
tudo o que se relaciona ao mesmo, direcionando a uma reabilitao do
pensamento teolgico. Essa idia, segundo eles, conduz a uma verdadeira
mstica da natureza, que se posiciona na mesma linha dos princpios delirantes
da ecologia profunda. Essa restrio estaria na mesma linha da crtica de
Bernstein sobre a tendncia de Jonas ao exagero, quando sugere a
necessidade de romper totalmente com a tica tradicional, por consider-la
incapaz de responder s novas questes apresentadas pela modernidade, ou
quando assume ares alarmistas frente aos acontecimentos negativos em
relao natureza.
A sua proposio de constituir um conselho de vigilantes, umcolegiado de iluminados para, numa teraputica autoritria, fiscalizar e coibir
o avano irresponsvel da tecnocincia, vista como um trao extremo de
conservadorismo, e mesmo uma atitude tirnica nos mesmos moldes da tirania
que a cincia impe, uma vez que, investido de uma postura ditatorial,
desconsidera os avanos sociais na questo da cidadania e dos direitos de
participao da sociedade na administrao de medidas que a afetem.
14 JONAS,El princpio de responsabilidad, 1995, apud SIQUEIRA, 1998.
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Nesses moldes, Jonas no leva em conta a vontade do homem, mas sim
a necessidade de tratamento da sociedade humana doente, mesmo que seja
necessrio impor o remdio contra a vontade do homem-cidado. Tal idia soa
contraditria, considerando a viso holstica que ele expe ao advogar uma
responsabilidade plena do homem em relao aos seus atos. Se ao homem
cabe o juzo sobre o agir, tambm cabe a deciso, subsidiada por amplos
debates e a mediao de especialistas, sobre questes que afetem a
sociedade em seu conjunto.
Outras crticas feitas por filsofos e socilogos europeus referem-se ao
trabalho de Jonas como carente de profundidade. Seria ele uma repetiointerminvel dos mesmos pressupostos, carecendo de complexidade e
consistncia terica. Suas premissas alarmistas, dizem, carecem de
sustentao, assim como seus prognsticos sombrios em relao ao futuro do
homem nos moldes atuais.
parte os juzos de valor e as crticas fundamentadas ou no, o fato
que as proposies de Jonas caram em terreno frtil, da o seu sucesso,
porque os fatos mostram uma face alterada daquele que chamamos lar: o
planeta Terra. Sob vrios aspectos as transformaes ininterruptas e velozes
criam um clima de grande inquietao e temor, em vistas das calamidades
acontecidas e as previstas, todas em grande escala, ao ponto de abalar os
alicerces e as convices em vrias partes do mundo ao mesmo tempo.
Ressalta Siqueira que no informe A situao do mundo, de 1993,
observa-se preocupao com a contnua deteriorao do planeta em vriosaspectos, em parte decorrente dos indicadores globais mostrados na
Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento,
ocorrida no Rio em 1992, reunindo a maior quantidade de lderes polticos j
registrada, que evidenciaram um decrscimo contnuo e generalizado das
condies de vitalidade da Terra, resultante principalmente da superestimao
do progresso tcnico em detrimento do equilbrio ecolgico, com consequente
degradao ambiental. Segundo ele, 15
15 SIQUEIRA, Jos Eduardo da.tica e Tecnocincia uma abordagem segundo o princpio daresponsabilidade de Hans Jonas. Londrina : UEL, 1998
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Grande parte dos esforos para manter o progressotecnolgico na busca de atender s ambies humanas culminaro emcalamidades, tais como o acidente em uma fbrica de pesticidas nandia, na dcada de 80, que causou a morte de 2000 pessoas e atingiuoutras 200.000 com leses oculares graves; ou a exploso do reator
nuclear de Chernobyl, que espalhou nuvens radiativas por toda aEuropa, com conseqncias ainda no mensuradas; ou o incndio emum depsito de produtos qumicos na Sua, contaminando o rio Reno,que matou milhes de peixes e prejudicou o abastecimento de guapotvel para a Alemanha e Pases Baixos, alm da morte de cerca de60 milhes de pessoas, na maioria crianas, vitimadas porenfermidades diarricas, relacionadas com o consumo de gua poludae desnutrio.
A conseqncia direta desse descaso atinge grandes propores,
traduzindo-se em crescentes os gastos com projetos de descontaminao,
tratamento de enfermidades como o cncer de pele, doenas congnitas,alergias diversas, enfisema pulmonar, asma brnquica e outras doenas
respiratrias, diretamente resultantes da poluio atmosfrica. Alm disso, h
que se considerar a expanso da fome em razo do empobrecimento do solo,
considerando que em torno de seis milhes de hectares, a cada ano,
convertem-se em desertos.
Hoje, pondera Siqueira, a tcnica alcana o ser humano em todos os
momentos de sua existncia, na vida e na morte, no pensamento, nos
sentimentos, na sade e na doena, no presente e no futuro. Enfim, toda a vida
humana encontra-se permevel tcnica, da porque Jonas prope uma
filosofia da tecnologia, implicando sempre na proposio de aes
transformadoras.Assim, a tica se insere nas questes relacionadas com a
tcnica pelo simples fato de ser uma forma de atuao, de exerccio do poder
humano, e toda atuao humana est necessariamente exposta a um juzo
moral.
Apesar dos atos desmedidos, Jonas expressa sua confiana no homem,
considerando-o acima de tudo um ser potencialmente realizador, possuidor de
sensibilidade para contemplar a dignidade da natureza e preservar intocada a
vida, capaz de reconhecer os desmedidos poderes de que dotado e de
utiliz-los com sabedoria. A sua noo de tica no-antropocntrica vem
alargar a noo de bem humano tambm preservao da natureza, a qual
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merece ser tratada como portadora de dignidade prpria. A base dessa tica
est na responsabilidade.
O carter imprevisvel e inquietante da competncia biotecnocientfica
impe a necessidade de um acompanhamento racional, imparcial e prudente
dos novos procedimentos da tecnocincia. A reflexo tica, nesse contexto,
tem papel fundamental e deve obrigatoriamente ser incorporada na dinmica
das decises, precisamente porque o homem o centro desse complexo.
Na concepo de Jonas, enfatiza Siqueira, somos responsveis pela
perpetuao da prpria responsabilidade. Assim, a idia de humanidadeultrapassa a idia de vida e alcana toda a natureza e se transforma numa
responsabilidade csmica que se expressa na primeira obrigao, no primeiro
mandamento, simplesmente, que a humanidade seja.16
Mais atual do que nunca, Jonas coloca-se, com o seu princpio de
responsabilidade, como um batedor frente dos exploradores, sondando os
perigos, alertando para as armadilhas, sujeitando-se s ameaas do caminho.
Mesmo que s vezes demasiadamente enftico ou ocasionalmente
redundante, uma voz que se alteia e chama razo.
Cabe-nos a capacidade de ouvir.
16 Ibidem.
14