Jorge Luiz Teixeira Da Silva - Capoeira e Identidade. Um Olh

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  • ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA INSTITUTO ECUMNICO DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA

    JORGE LUIZ TEIXEIRA DA SILVA

    CAPOEIRA E IDENTIDADE: UM OLHAR ASCGENO DO RACISMO E DA IDENTIDADE NEGRA

    ATRAVS DA CAPOEIRA

    So Leopoldo 2007

  • JORGE LUIZ TEIXEIRA DA SILVA

    CAPOEIRA E IDENTIDADE: UM OLHAR ASCGENO DO RACISMO E DA IDENTIDADE NEGRA

    ATRAVS DA CAPOEIRA

    Dissertao de Mestrado Para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Instituto Ecumnico de Ps-Graduao Religio e Educao

    Orientador: Prof. Dr. Alceu R. Ferraro

    So Leopoldo 2007

  • JORGE LUIZ TEIXEIRA DA SILVA

    CAPOEIRA E IDENTIDADE: UM OLHAR ASCGENO DO RACISMO E DA IDENTIDADE NEGRA

    ATRAVS DA CAPOEIRA

    Dissertao de Mestrado para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Instituto Ecumnico de Ps-Graduao Teologia Prtica

    Data: ______ de _____________ de 2007

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  • RESUMO

    Esta pesquisa busca caracterizar a identidade do negro e do racismo atravs da capoeira. Este foco estabelece conexes com a produo histrica do racismo e da discriminao, que tem produzido formas esteriotipadas de representao social da identidade e do lugar do negro na sociedade. Analisa como os adolescentes negros, alunos do grupo de capoeira Zumbi, de uma escola localizada em um bairro empobrecido, marcados pela discriminao, re-elaboram essas imagens negativas na construo de sua identidade e nas relaes interpessoais. Faz aproximaes tericas ligadas formulao e busca de enfoques historiogrficos, sociolgicos e educacionais que ajudem a explicitar a histria de nossa formao social, o carter da discriminao tnica e social do negro. Atravs dos dados etnogrficos e das falas dos alunos e professores, busca perceber como as manifestaes de racismo e discriminao; e como essas categorias, quando percebidas, podem contribuir, de forma dialtica, para processos de incluso e de democratizao das relaes sociais.

    Palavras-chave: Negro. Capoeira. Educao. Identidade e Racismo.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................5

    1 A GNESE DO ESCRAVISMO NO BRASIL ............................................. 10 1.1 A ESCRAVIDO AFRICANA................................................................. 11 1.2 A RESSOCIALIZAO DO AFRICANO: DE ESCRAVO A NEGRO......... 14 1.3 O ESVAZIAMENTO DA CULTURA: PROCESSOS E PRTICAS ESCRAVISTAS .................................................................................... 15 1.4 SER CIDADO NEGRO........................................................................ 21 1.4.1 As relaes de raa ......................................................................... 22 1.4.2 Quem so os negros marcados pela escravido ............................ 29 1.4.3 Aproximaes conceituais entre raa e etnia ................................. 33 1.4.3.1 Raa .............................................................................................. 33 1.4.3.2 Etnia .............................................................................................. 34 1.5 A CONSTRUO DA IDENTIDADE DO NEGRO BRASILEIRO .............. 35 1.6 A RESISTNCIA A PARTIR DO LAZER ................................................ 38 1.7 REFLEXES SOBRE EDUCAO DO NEGRO BRASILEIRO ............... 44 1.8 A CAPOEIRA COMO ELEMENTO CULTURAL GERADOR DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA ........................................................ 46

    2 GNESE DA CAPOEIRA ........................................................................ 50 2.1 CAMINHOS E DESCAMINHOS ............................................................. 50 2.2 A GNESE: DO TERREIRO ESCOLA................................................ 52 2.3 EDUCAO E CAPOEIRA, CAPOEIRA E EDUCAO ......................... 60

    3 INTERSECO COM A FALA DOS CAPOEIRAS ................................ 70 3.1 NA RODA AS VOZES DOS CAPOEIRAS .............................................. 70 3.2 IDENTIDADE, AUTO-ESTIMA E RELACIONAMENTO ........................... 81 3.3 RACISMO E DISCRIMINAO ............................................................. 87

    CONCLUSO ............................................................................................ 91

    REFERNCIAS.......................................................................................... 96

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    INTRODUO

    O objetivo desta pesquisa entender a capoeira como manifestao cultural tnica genuinamente afro-brasileira, como movimento social ao mesmo tempo religioso, poltico, educativo e de lazer, em contraposio concepo e prticas europias de diviso e especializao cada vez maior do trabalho, das prticas educativas e dos campos do conhecimento e como esse elemento da cultura brasileira possibilita um olhar sobre o racismo e a identidade do negro gacho. A pretenso de realizar uma pesquisa no mbito desta manifestao cultural surgiu a partir da vontade de encontrar-lhe uma outra face ao longo do contato com ela. importante afirmar que este processo no desconsidera uma certa subjetividade do pesquisador, localizada, por exemplo, na prpria escolha do tema. Essas transformaes me foram ao permanente processo de um refazer-pensante da minha prtica pedaggica. Entendo esta expresso como um exerccio scio-pedaggico cunhado no dilogo com as influncias recebidas cotidianamente pelo educador na relao com as referncias sociais e o seu fazer pedaggico. Sem intenes valorativas, pode-se dizer que a tenso travada por este dilogo desemboca em uma prtica pedaggica em permanente transformao. Esta, por sua vez, pde tambm ser percebida na materializao deste texto. O jogo de capoeira seja na forma de jogo, luta, dana ou mesmo esporte-espetculo parte de um conjunto de elementos da cultura corporal dos afro-brasileiros. Ele o tema dessa dissertao em que se apresentam resultados de uma pesquisa que procurou identificar, analisar e interpretar as relaes entre o referido jogo em suas mltiplas expresses e a formao da identidade do negro.

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    Na inteno de entender a capoeira no seu significado total e no apenas como uma atividade especializada, segmentada, de lazer, formulei o seguinte problema: que relaes podemos estabelecer entre a formao da identidade do negro, o racismo e a capoeira na escola. Ciente das dificuldades que o tema envolve este trabalho, a capoeira e a identidade do negro necessrio frisar que a delimitao no restringe a abordagem de outros aspectos nelas reiterados. Enquanto dissertao, este trabalho se prope a uma resposta para meus questionamentos e nessa expectativa formulei a seguinte hiptese: a capoeira uma manifestao cultural tnica genuinamente afro-brasileira, um movimento social ao mesmo tempo religioso, poltico, educativo e de lazer, que se contrape concepo e s prticas europias de diviso e especializao cada vez maior do trabalho e dos campos do conhecimento. Enquanto militante de uma entidade no-governamental, relacionada ao Movimento negro, e de movimentos ecumnicos de base popular, enquanto religioso, tenho me envolvido, junto com muitos companheiros e companheiras, desde meados dos anos 90, nas mais diversas prticas alternativas de resistncia e reconstruo de uma cidadania cultural, de uma conscincia de negritude que considera importante, para uma sociedade democrtica, a pluralidade tnica, o respeito s diferenas, a igualdade e direitos de cidadania, nas relaes com o Estado e com outras etnias. A pesquisa foi realizada junto a uma escola particular da rede Adventista, onde funciona, h trs anos, no turno da noite, o grupo de capoeira Zumbi. Essa escola est situada numa confluncia de vrias vilas populares do municpio de Porto Alegre, com um acelerado crescimento, e, nos ltimos anos, com uma melhor infra-estrutura, com pavimentao das ruas e iluminao pblica. O entorno da escola , na sua maioria, constitudo de casas populares muito simples, de onde provm os alunos e as alunas, de famlias empobrecidas, e, com raras excees, alguns alunos e alunas de famlias de funcionrios pblicos e pequenos comerciantes. A dissertao est estruturada em trs partes. O primeiro captulo traz uma abordagem em diversas reflexes sobre o negro brasileiro oriundo da dispora africana. Busquei demonstrar, luz dos pressupostos tericos apresentados, que o eurocentrismo e a escravido plasmaram

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    representaes sociais da identidade do negro, figuraes e esteretipos, atravs dos quais a discriminao, neles e contra eles, se materializa no cotidiano. O segundo captulo busca, atravs da histria, fazer a aproximao entre as razes originrias da capoeira e as relaes entre a capoeira, a educao, a corporeidade e a ancestralidade. No terceiro captulo estabeleo a anlise e discusso dos resultados da pesquisa a partir das referncias tericas apresentadas nos captulos anteriores e da interseco das falas das capoeiras, na relao dialtica excluso e incluso e capoeiragem no espao educacional e a contribuio a esse campo do conhecimento, dessa forma subsidiar educadores populares e pessoas comprometidas com a luta dos movimentos de conscincia negra. Considero importante ressaltar que os enfoques desenvolvidos em cada captulo no so colocados de modo estanque, mas estabelecem um ir-e-vir constante, como numa relao dialogal, que entendo ser necessria consistncia e unidade das argumentaes.

    O Mtodo

    Partimos do princpio de que as discusses e esforos em torno da capoeira, seja ela qual for, devem ser realizados em conjunto com os envolvidos diretamente na prtica em questo. Por isso optamos por tomar como referencial metodolgico, para este estudo, os fundamentos da Pesquisa Participante, que se caracteriza por:

    Uma pesquisa de ao voltada para as necessidades bsicas do indivduo, que responda especialmente s necessidades da populao que compreende as classes mais carentes nas estruturas sociais contemporneas, levando em conta suas aspiraes e potencialidades de conhecer e agir.1

    Assim sendo, tomando por princpio a realidade discriminatria da criana negra, na escola, desenvolvemos este trabalho, buscando descobrir,

    1 BORDA, Orlando Fals. Aspectos tericos da pesquisa participante. In: BRANDO, Carlos

    Rodrigues (org.). Pesquisa participante. 7. ed. So Paulo:Brasiliense, 1988. p. 43.

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    a partir das prprias crianas, os elementos que nos dessem subsdios para analisar a questo proposta. Pensamos numa metodologia onde: Pesquisador e pesquisados sejam sujeitos de um trabalho comum e, ainda que com situaes e tarefas diferentes, ajudem a escrever sua histria e possam ser um instrumento a mais de reconquista popular.2 Dentro dessa modalidade metodolgica escolhemos trabalhar com a categoria do Estudo de Caso, tendo em vista que nos limitamos a estudar um grupo de alunos, de uma determinada escola, onde se realiza um trabalho sobre a cultura negra. Se quisermos, por conta de exigncias metodolgicas, tipificar este Estudo de Caso, segundo Bogdan, ele se caracteriza por ser um Estudo de Caso Observacional, tendo em vista que se ocupar da observao de um trabalho especfico, junto a um grupo tambm especfico de alunos.

    Por outro lado, segundo ainda outra caracterizao do autor citado, ele no deixa de conter elementos de um estudo Micro-etnogrfico, j que nos ocuparemos de:

    Como as diferentes pessoas envolvidas entendeme experimentam os objetivos. So realidades mltiplas e no uma realidade nica que interessam ao investigador qualitativo.3

    Os Instrumentos e Procedimentos

    Tendo em vista que num Estudo de Caso qualitativo, as hipteses e os esquemas de inquisio no so aprioristicamente estabelecidos, a implicao dos sujeitos no processo exige um maior cuidado quando objetivao.4

    Da porque, embora a tcnica de coleta de informaes mais importante neste tipo de estudo seja a observao participante, utilizamos tambm a entrevista semi-estruturada.

    2 BRANDO, 1988. p. 11.

    3 BOGDAN, Robert; BIRTEN, Sari. Investigao Qualitativa em Educao uma introduo

    Teoria e aos Mtodos. Porto Alegre: Porto, 1994. p. 62. 4 SILVA TRIVINOS, Augusto N. Introduo Pesquisa em Cincias Sociais. p. 134.

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    A coleta dos depoimentos foi realizada atravs de entrevistas gravadas, procurando-se com esta tcnica preservar a maneira prpria de cada criana se expressar. Na transcrio do contedo das gravaes procuro permanecer fiis fala original dos atores, extraindo das mesmas os elementos considerados fundamentais para a anlise da questo central.

    No que diz respeito observao participante estive presente nos momentos-aula (roda de capoeira), visando observar o processo pedaggico desenvolvido. Alm disso buscamos vivenciar situaes diversas tais como: apresentaes do grupo fora da escola, recreio, horrio da merenda, para detectar possveis indicadores de avanos qualitativos por parte dos integrantes do grupo.

    O trabalho direto com os alunos teve a durao de 2 meses, durante os quais realizei visitas semanais escola (2 por semana), para entrevistas e observaes do trabalho desenvolvido. Neste perodo entrevistamos todos os alunos do grupo, o professor que coordena a atividade, bem como outros alunos de escola que no fazem parte do grupo de capoeira. A entrevista com estes ltimos teve como finalidade observar possveis diferenas de percepo e reaes frente questo do racismo e da identidade negra. Considero que atravs desses procedimentos consegui colocar-me no mesmo lado do observado, incentivando-o a expressar suas opinies e sentimentos, procurando vivenciar o que eles vivenciam e trabalhando a partir do sistema de referncia deles, levando em conta suas aspiraes e potencialidades de conhecer e agir.5

    5 BRANDO, Carlos. Pesquisa Participante. So Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43.

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    1 A GNESE DO ESCRAVISMO NO BRASIL

    Nas primeiras dcadas aps o descobrimento do Brasil, os portugueses no tiveram interesse imediato pela nova terra, pois no encontraram os metais preciosos que cobiavam. A Coroa portuguesa passou a se preocupar com a nova colnia apenas quando percebeu que a abundncia de pau-brasil poderia tornar-se um negcio lucrativo. Assim, o litoral brasileiro passou a sofrer freqentes incurses de estrangeiros, todas em busca da nova riqueza que a colnia oferecia.

    Em seguida, a Coroa reservou para si o monoplio de sua explorao, atravs do sistema de Feitoria, da utilizao de mo-de-obra dos habitantes nativos, bem como atravs do patrulhamento do litoral, por meio das expedies de guarda-costas. No entanto, nada disso foi suficiente para evitar a ameaa caracterizada pela presena de outros povos europeus no litoral brasileiro. Ento, os portugueses perceberam que o Brasil seria daquele que primeiro estabelecesse ncleos estveis de populao.

    Surge, assim, segundo Luz6, aps 30 anos da descoberta do Brasil, a necessidade de garantir para si o domnio efetivo do territrio. Desta forma, comea a fase de colonizao propriamente dita.

    Inicialmente, as expedies colonizadoras trouxeram consigo contigentes de colonos, isto , homens livres que povoariam o litoral. Os colonos que chegavam ao Brasil aspiravam transformarem-se rapidamente em proprietrios rurais, e, portanto, dificilmente se submeteriam a um regime de trabalho assalariado. Isso fez com que a metrpole partisse para outro esquema de povoamento. O litoral brasileiro foi dividido em vrias regies administrativas vigiadas pela burocracia real, que se constituram nas Capitanias Hereditrias.

    Luz7 segue afirmando que as Capitanias Hereditrias no deram o resultado esperado, pois no eram suficientes para colonizar; tratava-se apenas de medidas poltico-administrativas. Era necessria uma base

    6 LUZ, Marco Aurlio. Agad: dinmica de civilizao africano-brasileira. 2. ed. Salvador: EDUFBA,

    2000. p. 157. 7 LUZ., 2000. p. 159.

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    econmica estvel e rentvel que, alm de atrair e fixar os povoadores, deveria proporcionar lucros Coroa. A extrao do pau-brasil no tinha essas caractersticas, j que era bastante irregular e economicamente instvel e estava fatalmente condenada extino devido ao perfil predatrio de sua explorao.

    Foi na cana-de-acar que os portugueses encontraram a atividade ideal para sustentar a colonizao, devido ao alto valor comercial do acar na Europa, adequao dessa cultura ao clima e solo do Nordeste brasileiro e experincia de seu cultivo nas ilhas da Madeira e So Tom.

    O problema do cultivo da cana-de-acar era o da mo-de-obra.

    A Coroa Portuguesa estava consciente de que os camponeses livres dificilmente formariam uma classe trabalhadora que se sujeitasse aos interesses da metrpole, pelo contrrio, seriam sempre uma classe de trabalhadores independentes, buscando enriquecer. Alm disso, em um sistema de produo baseado unicamente no trabalho livre, os europeus teriam de adquirir as matrias da colnia a peso de ouro e prata, e os prprios recursos daqui extrados seriam devolvidos sob forma de pagamento.8

    Esta condio descapilitarizaria a metrpole em benefcio da colnia, constituindo-se na prpria negao da poltica mercantilista e do pacto colonial.

    A populao nativa com freqncia articulava fugas ou atacava as plantaes coloniais. Assim, era difcil extrair o trabalho necessrio explorao colonial.

    Com a escravido seria possvel a explorao lucrativa da colnia, sendo o nico meio encontrado de criar riquezas para as metrpoles europias. Dessa forma, tem-se caracterizada a estrutura econmica do Brasil colnia: o latifndio monocultor e o trabalho escravo.

    8 PILETTI, Nelson. Histria Geral do Brasil. 11. ed. So Paulo: tica, 2002. p. 286.

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    1.1 A ESCRAVIDO AFRICANA

    Apesar do ndio ter servido como mo-de-obra importante nos primeiros tempos coloniais, o trabalho escravo africano foi o que estruturou, predominantemente, a sociedade brasileira.

    Analisando a substituio do indgena pelo africano, percebe-se que este superou o ndio nas reas destinadas produo para o mercado externo. Nas reas de economia de subsistncia, este fato parece ser mais raro. Este fato sugere que a causa dessa substituio est na razo direta da articulao da economia local com o comrcio internacional. No contexto econmico do perodo, o africano era utilizado como moeda barata para aquisio de matria-prima. Entre os sculos XVII e XVIII, o comrcio triangular, que alcanava lucros que variam entre 100 e 300%, realizava-se da seguinte maneira: na frica, trocava-se manufaturas baratas por nativos; nas colnias, estes nativos eram trocados por matria-prima. Somando-se o fato que os portugueses j haviam obtido resultados satisfatrios com a explorao do trabalho negro nas Ilhas de So Tome e Cabo Verde, mencionada inviabilidade de sustentao do trabalho livre, pode-se deduzir o interesse que possua o comrcio internacional na substituio do escravo indgena colonial, pelo escravo negro africano. Alm disso, de acordo com Hoornaert, antes da travessia do Atlntico, os africanos foram transportados pelo Mediterrneo, durante sculos, para a Itlia, Espanha e outras regies europias, a ponto de Santo Agostinho queixar-se junto s autoridades do Imprio Romano pedindo providncias contra esse comrcio. Santo Agostinho diz, conforme consta em Hoornaert:9

    De qualquer maneira dever das autoridades tomar providncias no sentido de evitar que a frica continue sendo roubada em termos de habitantes. As autoridades tm que impedir que tantas pessoas, homens e mulheres, percam sua liberdade em massa e num fluxo interminvel, de uma forma que pior do que presos nas mos dos brbaros.

    9 HOORNAERT, Eduardo. A Leitura da Bblia em relao escravido negra no Brasil colnia. In:

    O Negro e a Bblia: um clamor de justia. Petrpolis: Vozes, 1988. (Estudos Bblicos, 17). p. 16.

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    Hoonaert10 segue afirmando que, antes da colonizao da Amrica Latina, existia na Europa, principalmente na rea em torno do mar Mediterrneo, uma doutrina comum entre os cristos sobre o negro e a escravido, resultante de uma longa convivncia com o africano desde os tempos do Imprio Romano. Nesta perspectiva, durante a Idade Mdia, o negro j fazia parte da vida cotidiana dos conventos, das casas ricas e fazendas da Pennsula Ibrica. Desta forma, a escravido negra, na poca em que foi introduzida no Novo Mundo, era uma instituio comum na Europa, onde se criara um senso comum que no mais estranhava a mo-de-obra negra servio dos brancos.

    Nessa poca os portugueses j eram senhores do mercado africano de escravos:

    As operaes para captura de pagos negros iniciadas no tempo de D. Henrique haviam evoludo num bem organizado e lucrativo escambo que abastecia certas regies da Europa de mo-de-obra escrava. Ampliar o negcio, mais ainda, e organizar a transferncia para a nova colnia era s questo de boa vontade e mais recursos, o que a metrpole lusa no hesitou em oferecer.11

    No h como estabelecer com certeza a data em que os primeiros escravos africanos entraram no Brasil. Possivelmente j tenham acompanhado as esquadras de Cabral e Martin Afonso de Souza como escravos domsticos. O que se pode afirmar que, inicialmente, no houve um trfico organizado de africanos. Estes eram trazidos pelos colonizadores ou concedidos pela Coroa, por meio de pedidos de concesses especiais. A Coroa, ao conceder escravos para resolver problemas de mo-de-obra, antecipava-se aos traficantes. Foi a partir dessa poca que muitos armadores se especializaram no negcio. As guas da Guin e Angola se encheram de barcos tumbeiros e o Brasil teve, por quase trs sculos, tantos escravos quantos quis.

    Todavia, ao longo da narrao histrica tida como oficial, escrita e narrada pelo vencedor, tem-se procurado disfarar o real motivo da escravido negra no Brasil. Alm dos motivos econmicos, outros

    10 HOORNAERT, 1988. p. 16.

    11 MARANHO, Ricardo;MENDES JR, Antnio; RONCARI, Luiz. Brasil Histria texto e

    consulta. 3. ed. v. 1., Colnia. So Paulo: Brasiliense, 1979. p. 98.

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    argumentos foram utilizados para acobertar os reais motivos dessa escravido.

    Um desses argumentos aquele que procura justificar a substituio do ndio pelo africano, porque o primeiro no se adaptava ao trabalho, e o segundo era fisicamente superior. A atuao do ndio na fase do extrativismo do pau-brasil, na qual carregava toras de madeira at s Feitorias e navios, prova que ele possua capacidade fsica para o trabalho. Nas Misses Jesuticas tambm desempenhavam tarefas agrcolas, pastoris e extrativistas. Na verdade, os nativos, conhecedores da regio e identificados culturalmente, freqentemente fugiam e atacavam as plantaes e povoados. A escravido pressupunha a necessidade de arrancar o indivduo de seu ambiente, de suas origens. Era preciso promover uma desestruturao total para obter uma submisso completa. Por isso houve dificuldades para escravizar o indgena, pois este no aceitava o trabalho escravo.

    Outro argumento no convincente o de que a escravido negra se deu devido tendncia do negro submisso e superioridade tcnica do trabalho dos africanos. Em relao superioridade tcnica, o que se observa que ela no foi aproveitada nas plantaes e engenhos coloniais, pois se tratava de um sistema de trabalho primitivo que no aproveitou muitas das tcnicas que os africanos dominavam. Quanto ao aspecto da submisso, a considerao da histria da resistncia escrava, permitir que essa premissa no verdadeira. Os negros foram, na verdade, subjugados pelo poder dominante da poca, o que no tem nenhuma relao com uma inata ou adquirida tendncia submisso. Portanto, a ideologia do poder se utilizava desse argumento para continuar dominando.

    1.2 A RESSOCIALIZAO DO AFRICANO: DE ESCRAVO A NEGRO

    A forma que assumiu a escravatura brasileira foi to irracional que se tornou necessrio fazer uso dos mais variados mecanismos para legitim-la. Dentre esses mecanismos, estavam aqueles de ordem explicitamente estrutural, expressos nas prticas sociais escravistas, bem como os de ordem

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    ideolgica, embutidos nessas mesmas prticas. na interao desses dois aspectos prticas sociais/discurso ideolgico que se pode perceber a lenta, mas slida, transformao do africano em escravo, e deste em negro. Sobre isso, Ronaldo Vainfas12 afirma que:

    A construo da idia de negro, identificada situao de escravo, articulava o processo de integrao dos africanos para alm de suas origens culturais. Foi com base nessa representao etnogrfica que o escravismo comps a idia de negro e converteu o racismo na viga mestra da sociedade escravista.

    Reconhecida a complexidade desta questo, buscar-se- evidenciar alguns aspectos fundamentais para a compreenso da construo desse racismo que perpassa a sociedade brasileira, que se reflete e se reproduz na educao, consolidando o mito da democracia racial.

    1.3 O ESVAZIAMENTO DA CULTURA: PROCESSOS E PRTICAS ESCRAVISTAS

    No Brasil, onde o escravo foi predominantemente o africano, o fato fundamental necessrio legitimao da escravido foi a ressocializao do africano enquanto escravo, constituindo-se no mundo do trabalho o espao central para esta reduo.13

    Como se viu anteriormente, os negros africanos foram trazidos ao Brasil para trabalharem como escravos, primeiramente no cultivo da cana-de-acar e, aps, em todas as regies onde se produzisse em grande escala para o mercado exportador. Quem trabalhava no Brasil colonial e imperial era o escravo. A escravido brasileira, como um dos componentes do sistema mercantilista, adquiriu uma feio caracterstica: nela o escravo era um meio de produo e uma mercadoria, o que demonstrava de forma inquestionvel a sua condio escrava.

    12 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravido os letrados e a sociedade escravista no Brasil

    colonial. Petrpolis: Vozes, 1986. (Histria Brasileira, 8). p. 35. 13

    VAINFAS, 1986. p. 37.

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    Para haver uma efetiva escravizao era necessria uma completa desestruturao da pessoa, arrancando-a de suas razes, afastando-a de suas referncias culturais. Com relao aos africanos, esse processo de coisificao, de destruio scio-cultural, iniciou-se com seu apresamento na frica, para acentuar-se, cada vez mais, durante a adaptao ao trabalho. Desde sua captura, o negro sofria violenta agresso a sua pessoa ao ser retirado do convvio de sua famlia, tribo, terra, para ser levado para outras regies, de pessoas e costumes estranhos aos seus.

    Na travessia do mar, ficavam meses nos pores de navios, presos, famintos, ignorando tudo a respeito de sua vida futura. Chegando ao destino, eram vendidos em leiles, nos mercados pblicos, como se fossem objetos ou animais.

    Como era propriedade do senhor, estava igualado s coisas e podia ser herdado, penhorado, arrendado, vendido, alugado, permutado.14

    O escravo, ao ser privado de sua capacidade civil de cidado e pessoa, no podia fugir do trabalho, divertir-se segundo suas tradies culturais nem transitar pela comunidade sem o salvo-conduto de seu senhor. De acordo com Ianni15 dessa maneira o domnio do escravo era completo; [...] os senhores conseguem o controle total dos cativos mantendo-os na condio de semoventes. essa sua condio que vai determinar sua posio no sistema econmico e scio-cultural. Conforme sua posio no mundo do trabalho, o escravo exercia atividades diversificadas o que, por sua vez, gerava relaes escravistas variadas.

    Alm das diferenas tribais prprias, havia, tambm, diferenas estabelecidas aqui. Fazia-se distino entre os escravos nascidos no Brasil e os vindos diretamente da frica; entre os da lavoura e os domsticos. Os escravos de eito tinham condies de vida mais dura e os de casa, em geral, tinham uma melhor alimentao, alm de adquirirem certos laos de dependncia e afetividade com o senhor e sua famlia. Existiam, tambm, os escravos chamados ladinos, que sabiam algum ofcio, e os escravos de ganho, que eram alugados por seus donos para servio de outros, ou vendiam gua, po, frutas, doces e verduras nas ruas. Estes escravos

    14 FREITAS, Dcio. O Escravismo Brasileiro. Porto Alegre: Vozes, 1980. Coleo Caravela. p. 20.

    15 IANNI, Octvio. As Metamorfoses do Escravo. 2. ed. So Paulo, Curitiba: Hucite, 1988. p. 141.

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    podiam ficar com parte do que recebiam e alguns conseguiam economizar para comprar sua liberdade.

    Nesta perspectiva, parece difcil tipificar um padro homogneo de comportamento e convivncia social, e os mecanismos utilizados na ressocializao do africano como escravo foram os mais diversos. Dentre esses mecanismos, pode-se observar alguns explicitamente coercitivos e outros sutilmente persuasivos.

    Dentre os explicitamente coercitivos, pode-se destacar a coero fsica exercida seja atravs de maus tratos infringidos aos escravos para extrao do sobre-trabalho; seja para transform-lo em exemplo para todo o grupo, coibindo insubordinaes que afetassem os interesses dos senhores ou os da ordem estabelecida.16

    Entre os sutilmente persuasivos, estava a instabilidade quanto proibio ou permisso de divertimentos, o cercamento de suas expresses religiosas e a imposio da lngua portuguesa como lngua comum. Por vezes, os senhores possibilitavam escravaria a expresso de determinados costumes grupais, como os batuques e fandangos. Essas concesses, porm, somente eram permitidas se coincidissem com os interesses dos senhores, como por exemplo, quando podiam operar como mecanismos de relaxamento das tenses ou absoro do cio da escravaria.17 A instabilidade em relao ao que era permitido e ao que era proibido provocava profundas alteraes na identidade cultural, lingstica e religiosa dos africanos.18

    Assim, algumas situaes de convivncia com os senhores possibilitava que os escravos ganhassem privilgios que os compensavam no s psquica mas, s vezes, socialmente, por meio de:

    [...] laos de compadrio que, por vezes, ligavam senhores e escravos; o lugar indefinido do escravo nascido na colnia ou do mulato, s vezes perdido entre as duas comunidades e no raro encaminhado para funes intermedirias de feitor ou para o aprendizado de um ofcio.19

    16 IANNI, 1988. p. 141.

    17 IANNI, 1988. p. 141.

    18 VAINFAS, 1986. p. 43

    19 VAINFAS. 1986. p.43.

  • 18

    Estes fatos redundavam numa atitude de dependncia, acatamento e percepo diferenciada da escravido. Conforme Vainfas:20

    (...) ao senhor interessava a obedincia do escravo para que pudesse extrair dele o mximo de trabalho. Ao africano reduzido escravido interessava, quando no a fuga, buscar meios de se integrar nova ordem de modo menos penoso, com o objetivo mximo de garantir sua sobrevivncia pessoal.

    O escravo que nascia e crescia dentro deste contexto, organizava seu sistema de aes e expectativas conforme o do senhor. Por isso possvel dizer que o padro branco dominava tudo. A nica chance do escravo melhorar um pouco a sua condio de vida era procurar aproximar-se, o mais possvel, do patro. Conforme Maranho e outros,21

    as distncias sociais eram tanto maiores medida que se afastavam dos valores europeus representados pelo senhor e sua mulher. Isso fez com que a desafricanizao fosse um dos nicos meios de subir na escala social, de chegar aos postos cobiados, queles que davam maior liberdade, segurana e prestgio.

    Nesta direo, em algumas parcelas da populao escrava desenvolveu-se a vontade de se afastar dos valores africanos e de uma maior adeso aos valores dos senhores brancos. A pigmentao da pele tambm constitua um padro de aproximao. Para o senhor branco, por exemplo, o mulato era melhor que o negro, o moreno, melhor que o mulato, e assim por diante. Quanto mais clara era a pele, maior a possibilidade de ascenso social e melhor era o tratamento. Neste sentido, desenvolveu-se um desejo de branqueamento que garantia a dominao branca.

    Cabe ressaltar que durante a poca da minerao, quem ganhasse dinheiro com a atividade extrativa ou comercial, adquiria a possibilidade de ascender socialmente. Assim, os negros que conseguiam enriquecer ou comprar sua carta de alforria conquistavam melhor aceitao. As prprias leis que consideravam a origem negra como um obstculo para a ocupao de qualquer cargo civil ou oficial eram, muitas vezes, violadas. Bastava o

    20 VAINFAS, 1986. p. 34-5.

    21 MARANHO, 1979. p. 116.

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    candidato no ser escuro demais para que sua riqueza passasse a ser critrio de escolha.

    Desta maneira, de acordo com Ianni,22 medida que os indivduos se afastavam econmica e socialmente do grupo cativo tendiam a reorganizar sua conduta segundo os valores e padres das camadas sociais nas quais almejavam inscrever-se.

    No entanto, cabe destacar que esses casos de ascenso social de negros eram espordicos. Ainda que a mobilidade social dentro da sociedade mineira fosse maior, grande parte dos negros regrediu s atividades de subsistncia quando a minerao entrou em decadncia. Muitos dos ex-escravos tentavam sobreviver da melhor forma possvel dentro de uma sociedade que, embora j possusse uma considervel parcela de libertos, ainda era, basicamente, estratificada entre senhores e escravos. As atividades braais, consideradas brutais e degradantes, continuavam sendo executadas pelos escravos e seus descendentes. H, portanto, uma especializao coletiva imposta pelo prprio sistema que mantm geraes de negros e mulatos na mesma condio econmica (...),23 isto , como escravos ou como trabalhadores braais livres, ocupando o mesmo lugar social do escravo.

    Do mesmo modo, as frmulas jurdicas que regulavam a descendncia continuaram sendo orientadas no sentido de perpetuar o grupo escravo e manter seus descendentes nesta categoria. Assim o filho de escravo nascia escravo, mesmo se descendente do senhor branco.24

    Portanto, como se pode perceber, desde a captura, venda, at escravido efetiva, o africano passava por um violento processo de desculturao e despersonalizao que, como aponta Vainfas,25 ...lhe impunha uma situao de anomia social, rompendo bruscamente seu universo cultural de referncia sem que se compusesse um novo quadro, pois as regras vigentes passavam a ser as do traficante e do senhor.

    22 IANNI, 1988. p. 34.

    23 IANNI, 1988. p. 151.

    24 IANNI, 1988. p. 151.

    25 VAINFAS, 1986. p. 34.

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    O comportamento oficial no regime escravista apresentava alternativas que iam desde o tratamento benigno, cordial e paternalista at os castigos fsicos26 todo esse jogo continha uma grande dose de violncia cultural e psicolgica que destrua o ethos africano para integrar o negro nova ordem, como escravo.27 Por vezes, submeter-se s regras desse jogo senhorial era uma maneira de resistir, tendo em vista a sobrevivncia pessoal. Todavia, essa mesma resistncia redundava na legitimao das posies de senhor e escravo, dentro do sistema. Pode-se perceber, portanto, o refinamento das tcnicas divisionistas, necessrio para o xito da dominao, bem como para a consolidao da estrutura racista em formao.

    Vainfas28 afirma que esta socializao parcial e incompleta tinha uma natureza dupla: a condio de escravo com todas as exigncias que tal condio acarretava, e a condio de negro comum aos escravos, submetidos todos aos senhores brancos.

    Dessa forma, os esteritipos escravistas vo lentamente sendo selecionados como caracteres raciais e grupais, definindo os negros como os que so escravos ou de sua procedncia. Ento, a barbrie, a preguia, a vadiagem, atribudas aos escravos para justificar a aplicao de castigos, so transferidas para os negros. A cor se tornar a marca racial decisiva e aparecer como smbolo da escravido, iniciando, assim, a metamorfose do escravo em negro.29. Da que o negro e o mulato livre vo ser vistos sempre como de outro grupo, indivduos ligados racial e socialmente aos escravos dos quais procedem.30

    Assim sendo, aps a abolio a sociedade branca buscar rearticular os artifcios utilizados durante o perodo escravista para continuar dominando. Ento,

    26 IANNI, 1988. p. 137.

    27 VAINFAS, 1986. p. 43.

    28 VAINFAS, 1986. p. 35.

    29 IANNI, 1988. p. 153.

    30 IANNI, 1988. p. 152.

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    [...] o vigor fsico do negro continua sendo seguro indcio para lig-lo aos trabalhos pesados; seu exotismo, causa de inadaptao sociedade; sua bondade, sinnimo de subservincia; seu esforo e possvel sucesso, desejo de ser branco; sua resistncia aos preconceitos e discriminaes, como sintoma de rebeldia e racismo contra o branco.31

    Ianni aponta que:

    [...] o negro cidado apenas o negro que no mais juridicamente escravo. Foi posto na condio de trabalhador livre mas no aceito plenamente ao lado dos outros trabalhadores livres, brancos. o escravo que ganhou a liberdade de no ter segurana; nem econmica, nem social, nem psquica.32

    1.4 SER CIDADO NEGRO

    A evoluo humana se desenvolve dentro de uma trama histrica, nas diversas relaes de sobrevivncia. Consequentemente, no decurso de sua vivncia histrica, o homem se diferencia do animal, firmando-se como produtor de suas condies de existncia e de si prprio. Nesse sentido, a produo humana constitui a trama cotidiana dos sujeitos, em suas variadas relaes de existncia.

    Se a especificidade humana conseqncia de uma constante interao entre homem e sociedade, sua constituio no se formula no plano individual, mas no coletivo. O ser humano constri e participa de um processo que pode submet-lo, de forma drstica, s formas mais infames de sobrevivncia, ou que pode possibilitar-lhe ser o sujeito transformador da prpria vida social configurada em uma extensa rede de influncias. Nisso se constitui uma das configuraes constitutivas da trama histrica.

    O homem sujeito do seu processo histrico, pois a trama histrica se modifica por sua ao, e ele prprio carrega consigo as marcas e as caractersticas de um perodo vivenciado. Os sujeitos histricos deste estudo

    31 BOJUNGA, Clvis. Encontros com a Civilizao Brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1980. p.

    192. 32

    IANNI, 1988. p. 229.

  • 22

    so os descendentes de africanos, cuja marca de existncia a escravido, que, em certa medida, determinou a sua vida.

    Sabe-se que o homem um ser poltico e, nesse sentido, pode-se afirmar que a trama histrica uma ao poltica estabelecida de acordo com normas e configuraes de um dado perodo vivenciado. Dessa forma, a produo historiogrfica que por muito tempo teve apenas a elite dominante como interlocutora tambm constituda por uma Histria que se processa de diferentes formas (marxista, nova histria, entre outras).

    Neste estudo, no entanto, no se pretende construir uma histria da historiografia brasileira. O objetivo aqui promover um repensar tanto sobre os estudos em relao ao negro quanto sobre a trama que compe o processo histrico escravocrata brasileiro, bem como sobre os reflexos dessas relaes sobre a formao da identidade do negro brasileiro.

    1.4.1 As relaes de raa

    Nos anos de 1950, os estudos brasileiros sobre o negro estavam ainda permeados pela idia advinda, principalmente, da obra Casa grande e senzala, de Gilberto Freire de que a forma de escravido implantada no Brasil se diferenciava das demais por ter sido branda. Nessa direo, pensava-se em produzir, no territrio brasileiro, um paraso racial, consolidado na democracia racial, assim como se acreditava que o preconceito no faria parte da nossa sociedade e que a raa mereceria pouca ateno nas discusses acerca da sociedade brasileira.

    Skidmore (1976) aponta que a contestao tal concepo se deu atravs de trs grandes linhas de divergncia, a saber: a da Escola de So Paulo, liderada por Florestan Fernandes; a dos militantes dos movimentos negros e a da nova gerao de cientistas sociais.

    Em relao primeira linha, a Escola Paulista iniciou, a partir dos anos de 1960, um projeto de pesquisa para a UNESCO, que acabou tornando-se a primeira anlise, em grande escala, sobre as relaes raciais no Brasil

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    moderno. Apesar dos resultados variados, todos chegaram concluso de que havia preconceito de cor no Brasil.

    Florestan Fernandes tornou-se o maior referencial de crtica ao dogma da democracia racial. Em A integrao do negro na sociedade de classes relata que a raa interfere na determinao das oportunidades de vida da populao brasileira, porm destaca que ela uma varivel dependente das relaes de classe.

    Assim como Fernandes, grande parte da esquerda brasileira no considerava a raa como varivel independente; a classe era posta como elemento fundamental, o que relegava a questo racial a uma posio secundria, conforme afirma Skidmore:33

    interessante que grande parte da esquerda brasileira em oposio ferrenha ao regime militar, tambm encarava a raa como questo estritamente secundria. Qualquer coisa que pudesse parecer discriminao racial era, nessa viso, decorrente da estratificao social.

    J os movimentos de militncia negra, ainda que em nmero reduzido e, por diversas vezes, reprimidos, afirmaram ser a discriminao racial onipresente e rejeitaram definitivamente a idia de superioridade da raa branca, reivindicando a equivalncia entre valores africanos e europeus.

    Finalmente, a terceira linha de divergncia composta por intelectuais, cientistas sociais, demogrfos, assistentes sociais e ativistas de sindicatos ou de Igreja , denuncia a discriminao e a ideologia assimilacionista que, de acordo com Skidmore (1976), bloqueia a discusso pblica das relaes raciais no Brasil.

    Em fins dos anos de 1970, no entanto, construiu-se uma histria de escravido no mais atravs da perspectiva da casa grande, mas da senzala, como afirma Reginaldo (1995), o que ocasionou uma maior visibilidade do negro como agente atuante e transformador de seu processo histrico.

    Essa visibilidade expressa, tambm, atravs dos movimentos de resistncia negra, que, quando trabalhados nas escolas, podem propiciar uma melhora na auto-estima do afrodescendente.

    33 SKIDMORE, Thomas. Fato e Mito: descobrindo um problema racial no Brasil. 1976. p. 76.

  • 24

    Nessa direo, os estudos brasileiros acerca do negro apresentam novas caractersticas, como o destaque resistncia negra; a compreenso da abolio no como uma redeno, mas um golpe que desemprega a populao negra; o surgimento a revitalizao da histria de Zumbi, o lder que representaria os negros em seu processo de luta por melhores condies de vida e de oposio discriminao. Ainda que recente, essas novas caractersticas dos estudos j tem penetrao junto comunidade negra, colocando em pauta o questionamento sobre a presena do afrodescendente na trama histrica. Por outro lado, esses novos enfoques fortificaram a idia de uma diferenciao do negro em relao ao restante da populao.

    Essa nova perspectiva da histria da escravido pretende, tambm, destacar a resistncia desse cidado enquanto vtima de uma trama histrica que, ainda que imposta, foi vivenciada constantemente como luta pela modificao do negro, objetivando resgat-lo como diferente, mas no como desigual.

    Foi no contexto da escravido moderna que se deu a presena do negro na histria brasileira. Essa escravido foi caracterizada como escravido tnico-racial, circunscrita aos povos indgenas e africanos. O lucro advindo do trfico negreiro foi fator determinante para que, no Brasil, o africano fosse escravizado e suas caractersticas tnicos-raciais fossem utilizadas como justificativa para a manuteno dessa escravido.

    Segundo Chiavenato,34 a escravido representou uma imposio que viabilizou no apenas a colonizao, mas tambm a construo de um pas que, assentado na produo de agrcola, conseguiu um rendimento acima de 700 milhes de libras, apenas no perodo Imperial (1822/1888). Porm, a imposio dessa mo-de-obra levou explorao e ao massacre de quase 4 milhes de negros (de 1530 colonizao a 1888 abolio), que foram excludos da participao de qualquer benefcio do processo produtivo deste pas.

    34 CHIAVENATO, Jlio Jos. O Negro no Brasil. 3. ed. So Paulo: Brasiliense, 1986. p. 42-3.

  • 25

    Quilombos e rebelies organizadas, ainda que no fossem os nicos elementos de reao negra escravido, no bastaram para minimizar os abusos cometidos no processo escravocrata, uma vez que a escravido s poderia ser mantida atravs da coero e da violncia fsica.

    O processo abolicionista contou, quase que exclusivamente, com a participao da elite dominante e de alguns intelectuais. Foi uma imposio externa que objetivava a transformao do carter da mo-de-obra. A incorporao do negro na economia no foi pensada e manteve-se a estrutura de dominao e discriminao racial.

    Dessa forma, a abolio no significou a conquista da liberdade da populao negra para vender a sua fora de trabalho, pois o trabalho livre era oferecido para os imigrantes que chegavam ao Brasil. Portanto, o ex-escravo no foi integrado ao mercado de trabalho livre, o que ocasionou a perpetuao da discriminao racial, social e cultural, estigmatizando o negro como vagabundo, inferior, malandro.

    No perodo da Repblica Velha (1889-1930), a questo social era tida como um caso de polcia. Porm, aps a Revoluo de 1930, houve uma ampliao constitucional da cidadania, e a questo social passa a ser caso de poltica. Comea, ento, a surgir a vinculao entre a responsabilidade poltica governamental e a formao de uma sociedade excludente e discriminatria. Todavia, essa vinculao no teve amplitude suficiente para alterar os conceitos pr-estabelecidos nas aes e nas representaes sociais. A situao de pobreza, quando relacionada com a negritude, no notada como resultado de uma poltica governamental excludente, mas vinculada a uma pr-disposio do cidado.

    No Brasil, a ordem racial pouco se altera antes da industrializao. Em perodos anteriores abolio, negros e mulatos j exerciam atividades manuais e muitos tornaram-se artesos, ocupando postos de trabalhos especializados. No entanto, a imigrao de europeus deslocou estes negros e mulatos para outras reas de trabalho.35

    35 TELLES, Edward E. Industrializao e Desigualdade Racial no Emprego. In: Revista de Estudos

    Afro-Asiticos, n. 26, 1994, So Paulo, p. 25.

  • 26

    Foi logo aps a Segunda Guerra que ocorreu a possibilidade de ascenso social para alguns extratos da populao brasileira, com um projeto que pretendia modernizar a economia e estimular o crescimento econmico por meio da industrializao e da substituio de importaes. O crescimento e o desenvolvimento pretendidos aconteceram de forma paralela a uma macia imigrao europia em territrio brasileiro, iniciada em 1850 e prolongada at 1930. Este novo contingente populacional provocou uma concorrncia racial sem precedentes na disputa pelo emprego.

    A integrao do Brasil em um capitalismo dependente no modificou a situao racial imposta aos descendentes de africanos, pois permaneceram margem do processo produtivo, ocupando os piores cargos e submetidos a um processo de discriminao que no permitiu alteraes significativas na hierarquia social. Assim, a insero social do negro no Brasil, atualmente, deve ser vista como conseqncia de um processo escravocrata associado a uma permanente situao de discriminao.

    O apadrinhamento, muitas vezes, era a nica forma do negro ocupar postos especializados no mercado de trabalho.36

    A preferncia dos empregadores por trabalhadores europeus era bastante ntida, acirrando, assim, a desigualdade da concorrncia no mercado de trabalho para o negro, bem como acentuando o processo de branqueamento do Estado de So Paulo.

    Aps a dcada de 1920, comea a declinar a imigrao europia, mas os imigrantes e seus filhos j dominavam grande parte dos cargos elevados do mercado de trabalho paulista.

    O Brasil, em perodos anteriores dcada de 1950, era uma sociedade rural com altos ndices de analfabetismo, nos quais os negros representavam a maioria. Isto colaborava para que o exerccio da cidadania se constitusse como uma doao estatal alcanada por uma minoria que era posta a servio da elite dominante.

    Aps a dcada de 1950, sendo o Brasil inserido em um projeto de modernizao baseado na internacionalizao da economia, ocorreu certa abertura do espao pblico que possibilitou a luta pelo acesso igualdade e,

    36 FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Brancos e Negros em So Paulo. So Paulo:

    Companhia Editora Nacional, 1971.

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    por conseqncia, uma nova cidadania. Surgiu, em decorrncia disso, a iluso da possibilidade de integrao econmica e social.

    No entanto, esse processo foi interrompido pela instaurao do regime militar, o que obstruiu o processo de construo de um espao de igualdade poltica. Todavia, se, por um lado, obstruiu-se o espao de luta pela igualdade poltica, por outro, promoveu-se um desenvolvimento econmico muito intenso, ainda que regionalizado.

    Esse crescimento, conhecido como milagre econmico, promoveu a incluso econmica e social de uma parcela da populao, consolidando a formao de uma classe mdia. Porm, as massas populacionais, nas quais os negros estavam inseridos, pouco se beneficiaram desse processo de crescimento e desenvolvimento.

    Telles37 aponta que a possibilidade de ascenso dos descendentes de africanos passou a ser possvel com a industrializao. Parcelas maiores da populao negra puderam entrar no mercado de trabalho, alternado sua situao, embora a posio de desigualdade em relao ao branco persistisse. Neste sentido, pode-se afirmar que, se o negro perdeu os cargos manuais que ocupava para os imigrantes, com industrializao ele foi absorvido nas mais baixas ocupaes.

    Entre 1968 e 1974 ocorreu o apogeu do crescimento econmico brasileiro, alcanando ndices muito elevados. Isto foi resultado de uma industrializao concentrada na Regio Sudeste, que gerou grandes diferenas regionais. Entretanto, este crescimento econmico promoveu no s um grande xodo rural, mas tambm ocasionou a formao de reas altamente industrializadas com elevada concentrao demogrfica, como o Estado de So Paulo, por exemplo.

    Com a Nova Repblica, houve a ampliao dos direitos constitucionais, possibilitando a incluso dos analfabetos nos processos eleitorais. Entre outras coisas, retoma-se a idia da formao de um espao poltico igualitrio. Porm, a manuteno da crise econmica e os altos ndices inflacionrios aumentaram as desigualdades sociais e, por conseqncia, as raciais.

    37 TELLES, 1994. p. 25.

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    At 1980, apesar da manuteno das desigualdades, ocorreu uma diminuio da pobreza. No entanto, a partir de 1990, houve um intenso crescimento dessas desigualdades e, conseqentemente, a ampliao do nmero de indivduos sem recursos, at mesmo para suprir necessidades bsicas.38

    Nascimento,39 em artigo sobre a excluso social no Brasil, coloca a hiptese de que a problemtica da excluso social no deve ser relacionada somente linha de pobreza, pois no tem somente uma faceta econmica. A excluso social atinge mltiplas dimenses dentro de uma sociedade consumista, que condena parcelas significativas da populao no integrao esfera de consumo.

    Nascimento40 afirma ainda que a excluso social no Brasil pode ser justificada por um conjunto de clivagens de ordem econmica, social, espacial, cultural, sexual e racial que se alimentam de estruturas histricas e representaes sociais persistentes, de carter discriminatrio.

    As relaes sociais so marcadas por uma forte situao de desemprego e de misria, resultantes do crescimento de favelas e de violncias cotidianas. Como, na sociedade brasileira, no h percepo da diferena entre o pblico e o privado e os direitos viram favores, as reivindicaes so tomadas como tumulto, desconhecendo-se, no pobre e no negro, o cidado destitudo de seus direitos.

    Nesta perspectiva, tem-se uma sociedade marcada por profunda segregao econmica, social, geogrfica, racial, na qual ainda perdura o modelo de excluso e discriminao que impede uma distribuio igualitria. Sobre isso, Nascimento41 aponta que ... a inexistncia de um espao pblico de iguais, inviabilizado por relaes sociais excludentes, impede a montagem de um modelo econmico distributivo, base para a predominncia de uma lgica social de integrao. Assim, a excluso produzida e reproduzida no seio da sociedade, pois as relaes elaboradas em seu interior dificultam a implantao de uma cidadania plena e a diminuio da pobreza.

    38 NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998.

    39 NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998. p. 57.

    40 NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998. p. 63.

    41 NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998. p. 64.

  • 29

    Neste processo, percebe-se que, atualmente, a questo tnico-racial poder ganhar uma conotao mais opressiva e particular. Possivelmente a sociedade brasileira, em razo de um novo tipo de emprego, constitudo a partir do fechamento de postos de trabalhos, permita o crescimento de uma economia informal e crie, assim, uma nova categoria de excludos, isto , aqueles que no so mais necessrios no mercado de trabalho.

    Sendo assim, o pobre e, de forma mais especfica, o negro, no so mais percebidos como trabalhadores, para figurarem como marginais, o que justificaria a sua eliminao. O negro, a princpio, socialmente visto como marginal, como algum que no lutou para mudar a sua situao social, para ser sujeito, e por isso no merece o estatuto de cidado.

    1.4.2 Quem so os negros marcados pela escravido

    Com a libertao (Lei urea de 1888) o negro passou de inferior social a inferior biolgico, o que permite sociedade considerar natural o tratamento marginal que lhe impe.42. Inmeras tm sido as reaes da comunidade negra, desde as irmandades religiosas, catlicas, os terreiros de batuque e umbanda, passando pelos fundos de indenizao e associaes abolicionistas, at os clubes recreativos mais ou menos conscientes, e os movimentos negros, engajados na luta pela verdadeira libertao.

    Durante trezentos anos, realizando os servios mais duros, as tarefas mais infamantes, os africanos escravizados construram a sociedade brasileira.43 Pode-se dizer que:

    Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para habitao e cultura, estradas e edifcios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfndegas e correios, telgrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo absolutamente tudo, que existe no pas, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como

    42 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravido no Brasil Meridional: o negro e a

    sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 278. 43

    CARNEIRO, Edison. Antologia do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Edies de Ouro, 1967. p. II.

  • 30

    acumulao de riqueza, no passa de uma doao gratuita da raa que trabalha que faz trabalhar.44

    Quando deixou de interessar aos capitalistas europeus o sistema escravista na Amrica, e passou a Inglaterra a a fomentar o desenvolvimento de um capitalismo dependente, preparou-se, pouco a pouco, atravs das leis emancipacionistas, sempre atendendo ao interesse dos proprietrios, a liberao da mo-de-obra escrava. Os libertos eram pressionados a permanecer nas fazendas como empregados, dependentes de um patro, ou compelidos a abandonar o pas, retornando frica. Muitos continuaram nas propriedades onde tinham sido escravos, outros enfrentaram as perseguies polticas nas cidades, outros ainda voltaram terra de origem, como o caso dos brasileiros de Lagos.45

    Com os instrumentos jurdicos, incluindo entre eles a chamada Lei urea, que aboliu a escravatura em 1888, criavam-se contingentes de pessoas marginalizadas, no produtivas, necessrias para construir o exrcito de reserva que convinha ao sistema econmico. O monoplio da terra, artificialmente criado pela Lei das Terras de 1850, impedia o ex-escravo de tomar posse de parcelas das terras no exploradas e obrigava-o a se tornar mo-de-obra livre. Entretanto, sua capacidade de trabalhar preterida do colono europeu recm-chegado, do qual, alm de j treinado para o trabalho livre, esperava-se ajudasse a embranquecer a populao.46

    A abolio, que deveria elevar o Brasil dignidade de pas livre,47 fez do escravo, sem direito terra, como homem livre, um pria na zona rural,48 um marginalizado na cidade, desempregado, vivendo de trabalhos espordicos e mal pagos, morando em aglomerados junto s cidades, onde, se dizia, havia bandidos escondidos. Coube mulher negra, que encontrava emprego, pois para o servio domstico faltava mo-de-obra branca, manter a famlia e, assim, sustentar a sobrevivncia do negro como negro.49 Esse

    44 NABUCO apud FREITAS, 1980. p. 10.

    45 CUNHA JR., Henrique. Negro como Consumidor Diferenciado na Cidade de So Paulo. 1985.

    p. 100. 46

    MOURA, Clvis. Rebelies na Senzala. 4. ed. Porto Alegre:Marcado Aberto, 1988. p. 38. 47

    NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. So Paulo: Progresso, 1949. p. XII. 48

    NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Petrpolis: Vozes, 1980. p. 44. 49

    FERNANDES, Florestan. A Integrao dos Negros na Sociedade de Classe. So Paulo: tica, 1978. p. 210-11.

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    trabalho, na maior parte das vezes menosprezado pelos que o contratam, foi e fundamental para os negros e tambm para as mulheres brancas, j que garante a sua emancipao.50

    O escravo, chegando ao Brasil, perdia seu nome africano, tinha sua cultura negada, deixava de falar sua lngua e se via na contingncia de assimilar nova imagem que o senhor lhe outorgava. Imagem essa que a sua situao de objeto de uso, liberado do patro, e atirado na periferia da vida, vai ajudar o branco a burilar. Informados de que so pessoas sem razes. sem inteligncia, ingnuas, dotadas para escravido, fortes para trabalhos braais, vadias, preguiosas, desorganizadas, sujas, miserveis, baderneiras, incapazes de assimilar a cultura, destitudas de valores e de humanidade, os homens superpotentes, as mulheres extremamente sensuais, os negros vm, at nossos dias, fazendo sua histria, ora se comportando de acordo com as qualidades que lhe so atribudas, ora se rebelando e buscando provar o contrrio.51

    O mito do brasileiro cordial sustentou e ainda sustenta a ideologia do racismo no Brasil. Cordialidade que tomada no sentido de igualdade entre pessoas de uma mesma classe, especialmente a considerada superior.52

    O mito da cordialidade no o nico a apoiar as manifestaes racistas, conforme apresenta Moreira Leite.53 H o da indolncia dos mestios e o da inferioridade dos negros que levaram Nina Rodrigues a prever prejuzos para a civilizao brasileira. H o da superioridade dos descendentes dos europeus, defendido por Alfredo Ellis Jnior. H a tese do pensamento primitivo, pr-lgico, do negro em oposio ao pensamento lgico, maduro, do branco, explicitada por Arthur Ramos.

    Para ser mais facilmente aceito na sociedade, o negro deve embranquecer. A miscigenao, uma miragem psicolgica,54 conforme manifestam negros, pees e congos em Gois,55 os torna mais como os brancos, embora os diminua como raa, concede-lhes progressiva

    50 LOPES, Helena Theodor. Ax e Vidu. Rio de Janeiro: 1986. p. 57-8.

    51 FERNANDES, Florestan. A Integrao dos Negros na Sociedade de Classe. So Paulo: tica,

    1978. p. 220-21. 52

    HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympo, 1948. p. 33. 53

    MOREIRA LEITE, Dante. O Carter Nacional Brasileiro: histria de uma ideologia. So Paulo:Pioneira, 1983. p. 45.

    54 NIXON, Iolanda. Miscigenao ou Equalizao: mito ou realidade. Salvador: 1986. p. 78.

    55 BRANDO, 1977. p. 138.

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    melhora de posio social. E constata Brando56 que o negro , ao mesmo tempo, uma raa e uma cor. A raa o associa sua origem e ao seu passado, enquanto a cor o qualifica no presente.57 Mas, ser mais claro no suficiente, ele precisa fazer, com mais rigor do que o branco, as coisas boas da sociedade, para pelo menos igualar-se a ele.58

    Embranquecer torna-se para muitos uma meta, seja recorrendo ao casamento com pessoas brancas ou de tez clara, seja assumindo comportamento de brancos, a ponto de desprezar os prprios negros, seja conseguindo, o que mais raro, poder econmico.59

    , pois, numa atmosfera de desprestgio e segregao, que o negro brasileiro vem lutando para se impor enquanto negro.

    De uma forma ou de outra, o discurso e a atuao dos movimentos negros, bem como o resultado das investigaes, comprovam que a religio afro-brasileira, na expresso singular que tomou em cada regio, o fundamento mais prximo da origem africana, do ser-no-mundo do negro brasileiro.

    As variveis da religio negro-brasileira, com maior ou menor reelaborao dos modelos africanos, converteram-se numa superestrutura religiosa-cultural que serviu de resposta antittica ao paternalismo das instituies do sistema etnocntrico oficial.60

    Graas religio e no interior da religio, o negro teve e tem mantido a sua condio de ser humano e encontrado meios para, muitas vezes, subverter a ordem da dominao, assumindo sua funo poltica na sociedade.61

    De um lado, os movimentos negros, mais ou menos institucionalizados, voltados para a causa do negro oprimido, expressam de diferentes maneiras, por escrito ou na sua ao nas comunidades, o objetivo de conscientizao de que a identidade dos negros revela-se, faz-se e refaz-se: no orgulho de ser negro e em todas manifestaes para transformar o destino traado pelos

    56 BRANDO, 1977. p. 137.

    57 BRANDO, 1977. p. 139.

    58 BRANDO, 1977. p. 148.

    59 FERNANDES, Florestan. A Integrao dos Negros na Sociedade de Classe. So Paulo: tica,

    1978. p. 210-11. 60

    SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nags e a Morte. Petrpolis: Vozes, 1976. 61

    MOURA, 1988. p. 102-03.

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    brancos para os negros; na valorizao e compreenso da herana africana, na busca de conhecer a cultura e a histria da frica: no empenho de luta junto ou em prol de negros oprimidos, estejam onde estiverem.62

    1.4.3 Aproximaes conceituais entre raa e etnia

    1.4.3.1 Raa

    Reconhece-se que o termo raa tem sido usado, historicamente, para descrever e distinguir a populao humana com base em traos de diferenciao bio-fentica. O uso dessa expresso, confunde-se geralmente com o uso do termo etnia, embora, tecnicamente, possam ser empregados de forma diferenciada.

    Genericamente, entende-se que todos os seres humanos pertencem a uma nica espcie animal: Homo sapiens, ou seja, haveria um ancestral biolgico comum a todas as pessoas. Contudo, certo que o conceito raa busca registrar as diferenas existentes entre os humanos, subdividindo-os em distintos grupos biolgicos.

    Esta concepo tradicional vem sendo hoje rejeitada medida em que se considera impossvel separar a humanidade de forma clara e definida em raas. Por isso, este conceito biolgico de raa est superado, sendo considerado, mais recentemente, como as diferenas humanas no sentido de uma poderosa fora social e cultural, atuam de forma contnua no desenvolvimento da humanidade, produzindo diferenas fsicas e comportamentais. Ianni,63 define o termo raa, sob o ponto de vista sociolgico, como uma categoria social constituda por referncias sociais, culturais, histricas, que tomam evidncias das diferenas fsicas.

    62 Estudos Afro-Asiticos, 1983. p. 8-9.

    63 IANNI, 1996. p. 43.

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    preciso considerar que as discusses mais atuais sobre o conceito de raa, desmistificam os conceitos tradicionais sobre o tema64, e que serviram de suporte terico ao racismo e ao preconceito racial, e que concorrem historicamente, para a legitimao da escravido do negro.

    Assim, considero que as concepes de raa so construtos sociais determinados pelas relaes poltico-econmicas estabelecidas na sociedade e no com base na herana biolgica dos seus componentes. Nesse sentido, vai explicitar o fato de que sobre caracteres fsicos e biolgicos, recaem valores sociais determinados pelas relaes de poder, ou seja, de quem tem o poder na sociedade.

    A ascendncia afro e a cor da pele - como significante para desqualificar a cultura, a histria e os paradigmas filosficos no-ocidentais, vo localizar as pessoas em posies imaginrias ou reais a estrutura social. As raas so construdas a partir de categorias de diferena que existem somente na sociedade: elas so produzidas por foras sociais conflitantes; elas justapem e informam outras categorias sociais; elas so mais fludas do que estticas ou fixas; e elas tm sentido somente em relao com outras categorias raciais.65

    Os estudos de gentica, mais atuais, propem uma discusso no sentido de que a estrutura hereditria de qualquer organismo est formada por unidades independentes contidas nos genes, e se perpetuam por autoproduo.

    1.4.3.2 Etnia

    A expresso etnia est relacionada s referncias culturais e aos valores de determinado grupo, ainda que a presena de elementos de natureza biolgica, presentes nas classificaes que se possam utilizar para caracterizar os diferentes grupos humanos, precisam ser considerados.

    64 Nesse contexto, entra Nina Rodrigues, nos finais do sculo XIX, envolvido pelos estudos

    cientficos racistas, originrios, sobretudo de uma Sociedade de Antropologia, fundada em Paris em 1859, onde os cientistas estudavam o tamanho e o volume do crebro. Tambm a teoria Darwwiniana da seleo natural serviu como base a argumentaes racistas (Larousse Cultural).

    65 LOPES apud CARVALHO, Joo. Carlos Monteiro de. Camponeses no Brasil. Petrpolis: Vozes,

    1978. p. 82.

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    Desse modo, opto por utilizar, preferencialmente, nesse trabalho a expresso etnia, por entend-la mais apropriada ao estudo da questo negra.

    Entendo que um grupo tnico deriva sua identidade dos seus distintos costumes, linguagem, ancestralidade, lugar de origem, valores sociais, cujos traos somticos e referenciais culturais comuns do identidade ao grupo enquanto tal. Por isso, refiro Thompson,66 por entender que o conceito de etnia d nfase identidade dos sujeitos na perspectiva cultural, a qual dialeticamente construda em contextos de interao do universo subjetivo de determinado grupo. Assim, segundo Thompson,67 o que define etnia o sentimento de pertencimento, de incluso em um grupo no qual as pessoas se reconhecem e se do a conhecer: bem como tm ou criam sinalizaes que as distinguem de outros: a lngua, a religio, a nacionalidade, a cultura.

    1.5 A CONSTRUO DA IDENTIDADE DO NEGRO BRASILEIRO

    A identidade dos negros e das negras, no Brasil, est fortemente relacionada s suas condies de escravos. Essa imagem que tem sido utilizada de forma mais freqente, sendo a mais conhecida e divulgada. Porm, a imagem do negro quilombola e insurreto, em suas lutas de resistncia contra essa condio de escravo, mais raramente tratada.

    Assim, da condio de escravo que se tem perpetuado o lugar social do negro na sociedade, que se tem construdo esteretipos68 sobre seu comportamento, que se tem reafirmado sua excluso dos bens de produo gerados pelo seu trabalho, enfim, que se tem determinado sua marginalizao social em larga escala. sobre essa imagem distorcida do negro, construda ao longo da escravido, que Petronlia Silva69, faz uma sntese:

    66 THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna. Petrpolis: Vozes, 1989. p. 46.

    67 THOMPSON, 1999. p. 51.

    68 Entre algumas das vises estereotipadas do negro, feito escravo, podemos mencionar: a sua

    incapacidade mental, sua irresponsabilidade latente e exacerbada sexualidade. 69

    SILVA, Petronilha; GONALVES, Beatriz. Histrias de Operrios Negros. Porto Alegre: Nova Dimenso, 1987. p. 5.

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    A sociedade tem propagado a imagem do negro apenas como ex-escravo, como o cidado sem razes culturais e sem historicidade. como o indivduo de ndole compatvel com a escravido. como smbolo da misria da fome e da sujeira certamente, por causa disso o negro tem sido visto como preguioso, indolente, pouco trabalhador, indisciplinado, vagabundo, vadio, sem inteligncia, despossudo de valores, de civilidade, de humanidade com pouca cultura criminoso, baderneiro. Os livros didticos, um pouco mais condescendentes. mostram-no pobre e infeliz. O irracional, o feio, o ruim, o sujo. o sensitivo, o superpotente e o extico, so as principais figuras do mito negro.

    Por outro lado, preciso considerar que o elemento africano, feito escravo, tinha um modo de vida prprio que, em certa medida, buscou reconstruir na dispora.

    Pode-se permitir uma relao que considere a matriz de organizao social como matrilinear a forma de organizao dos quilombos, que representaram para os escravos fugitivos, em nosso pas, uma reconstruo de sua organizao poltico-social coletiva, s vezes confundida, por alguns historiadores, como uma mera forma de regresso tribal. Os quilombos constituram no apenas uma forma de resistncia dos escravos escravido; contrapunham-se tambm forma de organizao e estrutura da sociedade vigente. Diz Maestri70 que a oposio fundamental entre quilombo e o mundo oficial era, no entanto, poltica. A concentrao de ex-escravos era um plo libertrio subvertendo a organizao escravista.

    Assim, uma das primeiras atitudes do dono de escravos era eliminar, de forma direta ou indireta, a conscincia familiar e religiosa do escravo, separando-o do grupo de mesma origem, impondo-lhe outro nome, outros valores religiosos, tratando-o como objeto de explorao:

    O escravo, como coisa produtiva, tem que se ocupar das atividades que lhe so votadas; entregar a totalidade (ao menos formalmente) dos frutos do seu trabalho: viver com o que seu senhor julgue bom lhe entregar. O ritmo e durao de sua jornada de trabalho , tambm, arbtrio do seu dono. O escravismo exigia efetivamente, que o escravo se transformasse em uma mquina, que alienasse ao mximo sua humanidade. O limite ltimo desse processo era a perda da nica capacidade humana valorada pelo senhor: a capacidade de trabalhar. A sociedade escravista criava as melhores condies para que o homem escravizado se transformasse, objetiva e subjetivamente, em escravo. Ele era apartado de toda vida ideolgica que lhe sugerisse ou compelisse a

    70 MAESTRI FILHO, Mario Jos. O Escravo no Rio Grande do Sul a Charqueada e a Gnese do

    Escravismo. Caxias do Sul: EDUSC, 1984. p. 125.

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    um outro destino. A escravido era apresentada como urna realidade imutvel, alicerada nas leis do mundo real e espiritual Os cultos de origem africana eram reprimidos; a religio catlica oficial pregava a legitimidade da escravido, a obedincia ao senhor, a inferioridade do homem negro [...] O escravismo exigia do escravo profunda submisso: exigia que ele se julgasse inferior, destinado, por natureza, escravido; incapaz de uma vida distinta Para alcanar isso, o senhor, podia premiar ou castigar... No entanto, o escravo sempre resistiu.71

    Quanto religiosidade africana, importante salientar que esta prope uma viso mtico-agrria do mundo. No h separao entre o mundo sacro e mundo profano; entre mundo do bem e mundo do mal, pois, conforme Altuna,72 para os africanos, a energia divina est presente em todas as partes da criao, de modo que os homens, as outras criaturas viventes, e, at mesmo os fenmenos naturais esto dela penetrados e achando-se, por isso, em comunho.

    Outro aspecto importante no contexto da religio africana o fato de que esta d uma grande importncia ancestralidade, cuja prtica perpassa o dia-a-dia da vida familiar, atravs da venerao aos antepassados. A verdadeira venerao dos idosos est diretamente relacionada tradio oral, base do culto aos ancestrais.

    Sobre a tradio oral, diz Altuna:73

    Em frica, quando morre um velho, desaparece uma biblioteca. Durante muito tempo se pensou que os povos, sem escrita, so povos sem cultura. A frica negra no possui escrita, mas isto no impede que conserve um passado e que os seus conhecimentos e cultura sejam transmitidos e conhecidos. O meu professor T. Bokar dizia uma coisa a escrita e outra o saber. A escrita a fotografia do saber, mas no o saber. O saber uma luz para o homem. a herana de tudo aquilo que os antepassados conheceram e transmitiram em grmen, maneira do baob que em potncia se encontra j na semente.

    Portanto, preciso considerar que a existncia e a preservao de um modo de vida africano, formaram uma certa conscincia de africanidade que subsistiu escravido. Esta africanidade plasmou-se, historicamente, graas endoculturao negro-africana, que foi superior de todos os continentes.

    71 MAESTRI FILHO, 1984. p. 112-13.

    72 ASA ALTUNA, P. Raul Ruiz de. Cultura Tradicional Banto Luanda. Secretariado Diocesano

    de Pastoral:Luanda, 1985. p. 470. 73

    ASA ALTUNA, 1985. p. 32.

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    Ou seja, os condicionamentos histricos, o isolamento durante sculos moldaram o carter especfico de um ethos negro e africano. Dai provm os termos negritude e africanidade.

    1.6 A RESISTNCIA A PARTIR DO LAZER

    No incio do sculo XX, o Brasil vivia um momento social agitado. As camadas populares se confrontavam com a Repblica oligrquica, com a Repblica das elites A capoeira era considerada crime e os capoeiras eram perseguidos e presos. Temos como destaque na capoeira Mestre Pastinha, Mestre Bimba, Manduca da Praia e Besourinho Cordo de Ouro entre outros.74

    Nesse perodo, surgem movimentos populares de vrias matizes: o cangao, as romarias de Padre Ccero, a Guerra dos Canudos e o Contestado, entre outros.75 Todos tiveram em comum a insatisfao popular em relao ordem vigente e a origem popular da maioria de seus participantes O nmero de negros era expressivo nesses movimentos.

    Os anos passavam e uma questo ainda estava sem soluo: como ser uma nao moderna com tantos negros e mestios? Com o passar do tempo a tentativa de embranquecimento da pele vai se mostrando ineficaz. possvel que alguns negros e mestios emergentes se passem por brancos, mas a realidade que o nmero de negros pobres muito grande e, para desespero das elites, no tem imigrao de brancos, seguida de miscigenao, que acabe com esse problema. A viso do negro inferior j se encontrava introjetada na sociedade, pois foram trs sculos de escravido, onde a principal justificativa para que um homem pudesse escravizar outro homem era a superioridade de um em relao ao outro. Um era humano e o outro, sub-humano.

    74 SILVA, Petronilha; GONALVES, Beatriz. Histrias de Operrios Negros. Porto Alegre: Nova

    Dimenso, 1987. p. 66. 75

    SILVA, 1987. p. 66.

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    Neste contexto surge, na dcada de 30, uma teoria capaz de resolver o problema. a democracia racial. Essa teoria teve como principal mentor Gilberto Freyre, e como principal referncia bibliogrfica a sua obra Casa Grande e Senzala. Freyre argumentava que a colonizao portuguesa, em relao a outras prticas de escravido, foi uma colonizao que, a grosso modo, no maltratou tanto o negro. E quando isso acontecia, as punies eram justas. Nasce assim a teoria da harmonia entre negros e brancos. O que antes era defeito do Brasil o grande nmero de negros e o alto grau de miscigenao, passou a ser qualidade. O Brasil era um pas formado a partir da contribuio dos negros, dos brancos e dos ndios, e essas trs raas viviam de forma harmnica. No havia discriminao no pas.76

    A idia da democracia racial foi logo disseminada. Outras vises surgiram reformulando ou contestando a democracia racial. Mas o fato que a viso de um pas racialmente democrtico a que reina at hoje entre a maioria da populao brasileira.

    Tudo estaria bem se realmente essa democracia existisse. Vrios indicadores podem contestar a democracia racial. Vejamos alguns.

    A viso de uma escravido mais humana e menos repressiva no condiz com a realidade. Vrias passagens da histria do Brasil demonstram como os portugueses aplicavam castigos desumanos aos escravos e escravas, obrigando-os a trabalhar de sol a sol, alm de viverem nas piores condies de higiene e alimentao. Sem contar com a violncia sexual em relao s escravas. Mais ainda, a instituio escravido em si j em si mesma uma violncia, independentemente do grau como essa violncia exercida.77 Atribui-se contribuio das trs raas a formao da nacionalidade, dando ao branco o papel central nessa formao Os valores morais, religiosos, polticos e sociais vinham da Europa. Coube ao branco contribuir com a razo. Ao negro e ao ndio couberam pequenas contribuies no campo da emoo, do folclore e do extico. Pode-se dizer que a democracia racial coloca o branco no centro e o ndio e o negro na periferia.

    76 SILVA, Petronilha; GONALVES, Beatriz. Histrias de Operrios Negros. Porto Alegre: Nova

    Dimenso, 1987. p. 67. 77

    SILVA, 1987. p. 67.

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    A partir da repartio de valores entre as trs raas, as imagens positivas cabiam ao branco: beleza, inteligncia, cultura superior, etc. Ao negro coube o lugar da feira, da burrice, do folclrico, do extico, da inferioridade. Isso, sem dvida, at hoje dificulta a formao scio-psicolgica dos negros, pois deixa de introjetar nas crianas negras a auto-estima to necessria formao de qualquer pessoa.

    Talvez no exista nada que conteste com maior eficincia a democracia racial do que a prpria situao do negro brasileiro, passados mais de cem anos de abolio A maioria dos negros est nos extratos mais baixos da sociedade. So meninos de rua. So os que abandonam com maior freqncia as escolas. So os que no conseguem uma boa colocao profissional, etc. Se a explicao no biolgica, s pode ser fruto de um processo de preconceitos e discriminaes raciais. So processos que, por si ss, desmentem a democracia racial.

    Algumas pessoas e movimentos, mesmo com o advento da teoria da democracia racial, perceberam o processo de discriminao contra o negro no Brasil e lutaram contra ele. As lutas dessas pessoas contriburam e contribuem para a percepo dos mecanismos de discriminao e para a criao de prticas que combatam o racismo.

    A opresso sofrida pelos negros vai ocupar um lugar de destaque na obra do poeta Solano Trindade, o qual, em sua poesia, ia contra todos os tipos de opresso. O autor via nas manifestaes culturais negras, como o samba, e nas manifestaes religiosas afro-brasileiras, elementos importantes para a formao da identidade tnica e para a luta contra o racismo.

    No esporte temos negros mundialmente conhecidos, como o caso de Edson Arantes do Nascimento, o Pel, considerado o Atleta do Sculo, muito criticado pelos movimentos negros pelo fato de no se envolver, pelo menos de forma contundente, em lutas anti-racistas. Inversamente, temos Adhemar Ferreira da Silva, que igualou o recorde mundial do salto triplo uma vez e superou trs vezes na dcada de 50. Foi campeo pan-americano e ganhou medalha de ouro nas Olimpadas de Helsinque (1952) e Melbourne (1956). Adhemar foi membro do Conselho da Comunidade Negra do Estado de So Paulo.

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    A msica uma das manifestaes mais importantes para o negro manter suas tradies e sua cultura. Com a difuso do rdio, do disco e a solidificao de uma indstria cultural, a msica popular deixa de ser um produto marginal e passa a ser um grande produto de consumo. O saber popular musical passa a ser valorizado e o ritmo industrial exige msicas sem ligao com causas sociais. nesse ritmo acelerado da indstria cultural que a memria musical vai se perdendo. preciso resgatar e manter a memria. preciso registrar a participao do negro na msica popular, valorizar os artistas negros, a msica afro-brasileira, no sentido de contribuir para a identidade tnica.

    Num pas onde a esttica branca a que impera, os negros lutam muito para conseguir seu espao nas artes cnicas. No teatro e no cinema, durante muito tempo, o pouco espao que o negro tinha ficava quase que exclusivamente ligado ao folclore, ao pitoresco ou ao cmico. Na TV, at pouco tempo, s se encontravam negros em alguns papis, como empregadas domsticas e bandidos. No final da dcada de 60, por exemplo, a TV Globo exibiu uma adaptao do romance de Harriet Beecher Stowe: A Cabana do Pai Toms, onde o personagem principal era interpretado pelo ator Srgio Cardoso pintado de preto.

    Na dcada de 90, encontram-se na TV negros em papis mdios que ganham at certo destaque, mas o nmero de negros nesses papis muito pequeno. So excees. Parece que as emissoras de TV os empregam para demonstrar uma certa democracia racial televisiva. No teatro e no cinema os negros tambm encontram srias dificuldades.

    comum entre os folcloristas a afirmao de que a capoeira a forma nacional de luta mais comum do afro-descendente do Brasil.78 Os anos 80 e 90 assistiram a um verdadeiro boom desta forma de expresso cultural. A antroploga Travassos79 afirma que:

    Nesses ltimos 60 anos, com a volta da capoeiragem legalidade, temos podido perceber cada vez mais e com maior nitidez os diferentes matizes nos usos e significados atribudos capoeira por

    78 CARNEIRO, 1967. p. 56.

    79 TRAVASSOS, Snia Duarte. Negros de Todas as Cores. In: Brasil um Pas de Negros?

    Salvador: Pallus, 1998. p. 261.

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    segmentos sociolgica e etnicamente bastante diferenciados da populao.

    Observar o rico discurso dos mestres e capoeiristas em geral, assim como considerar a enorme riqueza e eficcia simblicas por eles transmitidas, uma via que, certamente, nos leva a um saber e uma prtica que nasceu em meio populao negra e escrava no Brasil, h, talvez, uns trs sculos.

    O samba, a capoeira e o candombl, smbolos tnicos originalmente negros, so atualmente sinalizados dentro e fora do Brasil, ainda que em graus diversos, como smbolos nacionais. Todavia a existncia destas manifestaes at hoje resultado de uma longa luta por reconhecimento cultural travada pelos escravos ao longo dos quatro sculos de cativeiro. Apesar de sua dramtica situao de desterrados e escravizados, os africanos no ficaram passivos diante de sua nova condio. Ao contrrio, atravs de sua produo cultural, souberam conquistar espaos de atuao, no interior de um processo dinmico de recriao de sua identidade tnica em solo brasileiro.

    Uma outra forma de legitimao da cultura afro-descendente, no s no Brasil, mas num mbito muito maior, tem sido a msica. Como as primeiras manifestaes musicais no deixaram vestgios seguros, impossvel precisar como e quando surgiu a msica. A maior parte dos estudiosos sequer se arrisca a fazer especulaes, enquanto outros abordam hipteses com base no que se sabe sobre a vida humana pr-histrica e preenchem as lacunas bvias com forte dose de imaginao. Entretanto, nenhuma teoria afirma com certeza o momento em que os primitivos comearam a fazer arte por meio de sons.

    Esta forma de afirmao cultural afro-descendente repleta de sons. uma festa de ritmos e cantos bravios, onde a sensibilidade se manifesta livremente. E acontecem a dana e o canto em meio luta.

    Na expressividade harmnica afro-descendente, a musicalidade fundamental. Raiz e corpo da arte, a melodia flui de toda parte. Berimbaus, atabaques, ganzs, agogs, pandeiros: tudo som e movimento.

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    As cantigas esto presentes no simples ato de se expressar. E o canto geralmente conduzido com energia e expressividade pode ser de improviso ou evocado desde os antigos ou de situaes reais vividas.

    A ateno do afro-descendente est, quase sempre, no contedo da msica. Pode estar sendo transmitida uma mensagem onde ele d expresso sua vivncia, s experincias adquiridas ao longo da vida. Pode ser ainda que a ladainha rememore fatos passados, trazidos lembrana como aviso aos jovens, enquanto perpetua um pouco da histria de seus antepassados.

    Assim como a capoeira, a msica um elemento fundamental da cultura afro-descendente, recorrentemente utilizado na imagem pblica que se produz sobre este povo. interessante observar tambm a profuso de msicos afro-descendentes que, h sculos, se tornaram objeto de consumo em todo o territrio nacional e no mundo. Outra constatao interessante o fato de muitos msicos afro-descendentes, que se tornaram importantes no cenrio musical brasileiro, sempre recorrerem ao universo simblico da cultura afro-descendente ao criarem suas imagens musicais. Assim, tanto expandiram signos estereotipados quanto reelaboraram e reafirmaram outros da cultura de seu povo que alcanaram uma dimenso mundial.

    Muitos msicos procuraram elaborar uma msica cuja poesia nascesse da prtica cotidiana do povo negro da terra. Esta msica no propriamente emotiva e muito menos imperativa. Antes que centrada na primeira pessoa, expressando direta e invariavelmente a atitude e os sentimentos de quem fala, est mais orientada para contextos e coisas (A musicalidade negra).

    Nos ltimos anos, os afro-descendentes geraram internamente um produto musical cuja popularidade no mercado brasileiro tem permanecido. Proporcionalmente, aumentou a ateno da mdia local, nacional e internacional fora a msica afro-descendente. Alm do desenvolvimento da indstria cultural e do interesse da mdia, o fator importante neste contexto o rpido recrudescimento da identidade negra. Esta identidade se relaciona tanto com um aumento de curiosidade para com a diversidade cultural do afro-descendente, para com seus ritmos e danas, quanto com o desejo de cidadania e consumo de uma nova gerao de jovens afro-descendentes (A musicalidade negra).

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    Deste modo, a msica produzida e consumida no meio afro-descendente, ainda que, muitas vezes, considerada frvola, reflete um interesse crescente para quanto de genuno, de africano, est presente em diferentes fenmenos musicais do povo afro-descendente. Esta msica, estes msicos e estas imagens no podem ser dissociados do carnaval. Logo, de consumo fcil e imediato, mobilizador de emoes efmeras. De qualquer forma, como j se observou, o carnaval recebe o impacto da vida simblica e material do cotidiano afro-descendente.

    O impacto da msica na cidade, nas relaes raciais, na vivncia do lazer e na indstria do lazer: o que determina uma ligao to forte do negro com a msica; os conceitos-chave, como suingue, ax, ginga, negritude, tempero e mistura; como e porqu uma cultura musical mobiliza a juventude negro-mestia no Brasil; que expectativas esta cultura cria entre os jovens negro-mestios.

    1.7 REFLEXES SOBRE EDUCAO DO NEGRO BRASILEIRO

    A escolaridade formal tida como um auxiliar razovel do inevitvel processo de se educar, sempre que uma atividade para ser melhor apreendida necessite de ser tratada isoladamente, requeira uma ateno especial de quem aprende e uma pessoa especial para ensin-la. Disso, entretanto, no decorre absolutamente que o complicado aparato de um sistema escolar tenha uma relao direta com a educao, e certamente no tem com a boa educao.80

    A escola apresenta-se, para os negros, como instituio responsvel pela transmisso de conhecimentos construdos pela classe dominadora e valorizados pela sociedade, que seriam inacessveis, de outra forma, maior parte deles. E se fossem acessveis, somente a passagem pela escola ou por outros sistemas institudos legalmente como ela, consagraria essa aquisio. Para fins da vida em sociedade, valorizado o conhecimento transmitido pela

    80 GOODMANN, Paul. Os Limites da Educao Escolar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

    1981.

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    escola, devendo, entretanto, seu domnio ser comprovado cartorialmente atravs de certificados e diplomas. Assim, os que por ela no passaram ou que l estiveram por pouco tempo, so tidos como incultos e so postos margem da sociedade, se nela no ocuparem lugar de destaque econmico. O diploma, pois, tanto mais indispensvel quando se originrio de uma famlia desprovida de capital econmico e social.81

    Na escola brasileira, a discriminao contra os negros se manifesta no material didtico-pedaggico utilizado, nas informaes transmitidas, no silncio dos educadores diante de aes discriminatrias.82

    Na escola confunde-se educao com aprendizagem. A partir de modelos para melhor aprender, estticos porque forneos, como se os seus freqentadores no tivessem o seu modo peculiar de faz-lo, ensinam uma cultura globalizante, que por ser globalizante, discrimina classes, raas, grupos. A to propalada integrao dos contedos curriculares com a realidade se dar quando a escola se perguntar de que forma negros, ndios, trabalhadores, tambm participam da construo da sociedade que os desumaniza.

    A escola reprodutora, concebida e implantada pelo dono do capital, apresenta somente uma dimenso da escola. Ela tambm lugar conquistado pelas classes ditas inferiores. A sua instalao, nos meios populares, est ligada a presses e lutas para consegui-la.83. Assim, a to apregoada poltica da igualdade de oportunidades, da democ