Jornada do Herói em HP

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Harry Potter e a jornada do heri: receita do sucesso das literaturas de massa Sandra Venancio Kezen BuchaulMestre em Cognio e Linguagem pela UENF IF Fluminense campus Campos [email protected]

Resumo Harry Potter, antes de ser uma narrativa fantstica, tambm um pico, gnero relacionado psicologia junguiana por descrever feitos grandiosos. No se pode creditar o sucesso dos livros exclusivamente a essa frmula; porm, deve-se reconhecer que a apropriao de conceitos da psicologia um recurso na busca da indstria cultural para ocupar todos os possveis nichos do mercado. O uso do mito do heri e dos conceitos da jornada do heri serve para proporcionar a identificao com o pblico, mas no uma receita de bolo para toda e qualquer narrativa, embora funcione muito bem em Harry Potter.

Introduo

Desde o lanamento do primeiro volume, Harry Potter e a Pedra Filosofal, em 1997, os livros ganharam grande popularidade e sucesso comercial no mundo todo, e deram origem a filmes, videogames e muitos outros itens. Grande parte da narrativa se passa na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, e enfoca os conflitos entre Harry Potter e o bruxo maligno Lord Voldemort. Ao mesmo tempo, os livros exploram temas como amizade, ambio, escolha, preconceito, coragem, crescimento, responsabilidade moral e as complexidades da morte, e acontecem num mundo mgico com suas prprias histrias, habitantes, cultura e sociedade. Cada livro registra um ano da vida de Harry em Hogwarts, onde ele aprende a usar magia e a cozinhar poes. Harry tambm aprende a ultrapassar muitos obstculos mgicos, sociais e emocionais que enfrenta em sua adolescncia e nas seguidas tentativas de ascenso de Voldemort ao poder. Os livros de Rowling se passam nos anos 90, na Inglaterra trouxa (sem bruxaria) moderna, com carros, telefones e playstations. Os problemas no mundo mgico so slidos e reais como os do nosso mundo preconceito, depresso, dio, sacrifcio, pobreza, morte. Um dos temas mais recorrentes ao longo da srie o amor, retratado como uma poderosa forma de magia. O diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Alvus Dumbledore, amigo e espcie de protetor de Harry, acredita que a capacidade de amar permitiu que Harry resistisse s

tentaes de poder de Voldemort em seu segundo encontro, no permitiu que o vilo se apossasse do corpo de Harry em seu quinto ano, e ser responsvel pela derrota final de Voldemort. Em contraste, outro tema importante a morte. Os meus livros abordam bastante a morte. Comeam com a morte dos pais de Harry. H a obsesso de Voldemort em derrotar a morte e conquistar a imortalidade a qualquer preo [...]. Eu percebo porque que Voldemort quer conquistar a morte. Todos ns temos medo dela, disse Rowling. Os livros colocam o bem contra o mal e o amor contra a morte. A perseguio de Voldemort para evitar a morte inclui episdios como beber sangue de unicrnio e separar a sua alma atravs do uso de horcruxes 1. O prprio nome de Voldemort significa voo da morte, em Latim e em Francs, e roubar a morte, em Francs e Catalo e sua perseguio pela imortalidade contrasta com o sacrifcio de Llian Potter (me de Harry, que morreu para proteg-lo), o amor por Harry e a magia extraordinria que o seu gesto deixou nele, um sacrifcio que Voldemort nunca poder entender ou apreciar. O preconceito e a discriminao so tambm amplamente abordados ao longo dos livros. Harry aprende que existem feiticeiros Sangue-Puro (oriundos de famlias nas quais s h bruxos) que abominam os Sangue-Ruim (bruxos de ascendncia bruxa e trouxa de no-bruxos ou ainda bruxos que vieram de uma famlia s de trouxas) e os consideram inferiores. O meio-termo so os bruxos Mestios, ou seja, que tm um dos pais trouxa (ou de famlia trouxa), e o outro pertencente comunidade bruxa. Os mais preconceituosos dentro da comunidade mgica levam estas designaes mais longe, utilizando-as como um sistema de graduao para ilustrar o valor de um feiticeiro, considerando os de Sangue-Puro como sendo superiores e os Sangue-Ruim (tambm conhecidos por Sangue de Lama) como desprezveis. Fora os preconceitos em relao aos humanos, existe um afastamento dos no-humanos e at parcialmente humanos. Outro importante tema decorre sobre as escolhas. Em Cmara Secreta, Dumbledore faz, talvez, sua mais importante declarao sobre o assunto: So as nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades. Dumbledore aborda esse tema novamente em Clice de Fogo, quando diz a Cornelius Fudge que mais importante do que como se nasce, o que a pessoa se torna ao crescer. Assim como para muitas personagens ao longo dos livros, o que Dumbledore considera uma escolha entre o que est certo e o que fcil, tem sido um marco na carreira de Harry Potter em Hogwarts e as suas escolhas esto entre as caractersticas que melhor o diferenciam de Voldemort. Tanto Harry como Voldemort foram rfos criados em ambientes difceis, fora o fato de partilharem caractersticas que incluem, como Dumbledore afirmou, um rarssimo dom1

O que so Horcruxes - Quando algum morto, a alma do assassino repartida em pedaos. Horcrux um objeto no qual esse pedao de alma seria inserido por magia negra. Isso garantiria uma semi-imortalidade, j que a destruio do corpo no mataria por inteiro, tendo-se ainda uma parte da alma conservada na Horcrux.

ofidioglota, sabedoria, determinao e um certo desapreo por regras. Contudo, Harry, ao contrrio de Voldemort, decidiu conscientemente adotar a amizade, a bondade e o amor, enquanto Voldemort escolheu propositadamente rejeit-los. A amizade e a lealdade so talvez os temas mais recorrentes de todos, aparecendo principalmente na relao entre Harry, Ron e Hermione, relao que permite que estes assuntos se desenvolvam naturalmente medida que os trs personagens crescem, que a sua relao amadurece e que as experincias acumuladas em Hogwarts testem a fidelidade dos trs amigos. A srie Harry Potter traada sob uma longa tradio na literatura infantil inglesa - o ambiente dos internatos, um gnero da era Vitoriana. H uma clara influncia de elementos como a mitologia e as lendas. Muitas dessas influncias so mais notadas nas criaturas que habitam o universo de Rowling, como por exemplo, os drages, a fnix e os hipogrifos 2. Alm disso, tambm nota-se a influncia da astronomia, histria, geografia, e idiomas (principalmente Latim), frequentemente observados nos cuidadosos nomes de personagens, lugares e feitios no mundo bruxo. Do complexo Voldemort ao onomatopico Grawp (ou Grope, o meio-irmo gigante de Hagrid), Rowling cria nomes que geralmente contm muitos significados. O mundo mgico no qual Harry Potter est situado , ao mesmo tempo, totalmente separado e intimamente ligado ao nosso. O mundo de Harry Potter existe juntamente com o nosso, e muitos de seus locais esto localizados em cidades reais, como Londres. O mundo dos bruxos uma coleo de fragmentos de ruas escondidas, velhos bares, pases esquecidos e castelos seculares que permanecem invisveis para a populao no-mgica (os muggles ou trouxas). Bruxaria uma habilidade que vem do nascimento, e no pode ser aprendida. Mesmo assim, pessoas com dons mgicos tm de ir para escolas, como Hogwarts, para aprimorar e controlar a magia. Como a magia uma habilidade inata, a maioria dos bruxos no est familiarizada com o mundo trouxa, que parece-lhes esquisito.

O mito do heri

O mito considerado uma das primeiras formas de sistematizar algum conhecimento na busca de compreenso da realidade. Conjunto de narrativas permeadas de simbologias, a palavra grega mythos significa histria, mas tambm esquema, plano. Expressando a realidade atravs de representaes em histrias fabulosas, o mito mostra abstraes tpicas da existncia humana. Nas antigas civilizaes, atuava como cdigo de sabedoria emprica. Os mitlogos2

Um hipogrifo uma criatura lendria, supostamente o fruto da unio de um grifo e uma gua. Grifo na mitologia um animal com cabea e asas de guia e corpo de leo.

modernos veem no mito a expresso de modelos que permitem ao homem inserir-se na realidade. Cassirer associa o mito impreterivelmente linguagem e realidade, ao afirmar que:Tudo a que chamamos de mito , (...) algo condicionado e mediado pela atividade de linguagem: , na verdade, o resultado de uma deficincia lingstica originria, de uma debilidade inerente linguagem. (...) Mitologia, no mais elevado sentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento. (CASSIRER, 1992, p. 18 19).

Para Junito Brando, o mito o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a interveno de entes sobrenaturais. Mircea Eliade define o mito como o relato de uma histria verdadeira, ocorrida nos tempos primordiais, sob a interferncia de entes sobrenaturais, em que uma realidade passou a existir, seja essa realidade total ou parcial. Portanto, o mito traz sempre a narrativa de uma criao, a partir da qual algo que no existia passou a existir. Representa, portanto, sempre algo coletivo, que, transmitido atravs das geraes, traz uma explicao do mundo. Desse modo, mito passa a ser a palavra revelada, o dito e, sendo, expresso por meio da linguagem, ele , antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um evento real, mas no histrico. Borges destaca que:

Mais que mera palavra, (...) ele (o mito) remeteria assim para uma experincia plena de integrao no mundo que convoca e compromete todas as potncias do homem: o mito sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Ele a palavra, a figura, o gesto, que circunscreve o acontecimento no corao do homem, emotivo como uma criana, antes de ser uma narrao fixada. (BORGES, 2003, p. 48 49).

A fronteira entre tentativa de compreenso da realidade ou mesmo insero na mesma e a expresso de algo mais primitivo e inerente psique do indivduo foi investigada pelo suo Carl Gustav Jung na dcada de 1930. Jung sustenta que, alm do inconsciente pessoal, descoberto por Freud, h uma parte mais fundamental, comum a todos os homens em todos os tempos e lugares: uma herana psicolgica comum a toda a humanidade. O inconsciente conteria no apenas componentes pessoais, mas tambm impessoais, em forma de arqutipos - modelos. Esses arqutipos se expressam por meio de smbolos que se manifestam nos mitos de todas as tradies culturais, como metforas de nossa realidade interna mais profunda e essencial. Jung traz assim a concepo de inconsciente coletivo, que

na qualidade de herana comum transcende todas as diferenas de cultura e de atitudes conscientes, e no consiste meramente em contedos capazes de se tornarem conscientes, mas em disposies latentes para reaes idnticas. Assim o inconsciente coletivo simplesmente a expresso psquica da identidade da estrutura cerebral, independente de todas as diferenas raciais. (JUNG, 2000, p. 64).

Os mitos resultariam dessa tendncia do inconsciente para projetar as suas ocorrncias internas, traduzindo-as em imagens. Isso explicaria, por exemplo, porque lendas e histrias de

grupos to distintos quanto os aborgenes da Austrlia e os antigos celtas da Europa apresentariam estruturas semelhantes, obedecendo a um padro universal. De todos os mitos, o mais conhecido o mito do heri. Jung faz do mito do heri vem da a concepo de arqutipo do heri em busca de conscincia algo de grande importncia e significao. Para Jung, os arqutipos no so disseminados apenas pela tradio, idioma ou migrao. Eles podem reaparecer espontaneamente a qualquer hora, em qualquer lugar, e sem qualquer influncia externa. O arqutipo uma tendncia para formar uma imagem de carter tpico. Acredita-se que um arqutipo evoque emoes poderosas no leitor ou em espectadores porque desperta uma imagem primordial da memria inconsciente. O arqutipo do heri personificaria a parte consciente da psique. A expresso jornada do heri foi cunhada pelo escritor e professor norte-americano Joseph Campbell ao constatar essas semelhanas estruturais entre os mitos de culturas distintas. Campbell ficou conhecido por seu trabalho no campo da mitologia comparada. Inspirado nos estudos de Jung, assumiu uma postura oposta do estudo acadmico tradicional, optando por evidenciar as semelhanas, que revelavam uma espantosa unidade entre todos os mitos. Teorizou, consequentemente, que todos os mitos e picos esto ligados psique humana. O cinema foi particularmente marcado por seu pensamento. Seu livro O Heri das Mil Faces, de 1949, mostra que cada heri adquire a face de sua cultura especfica, mas sua jornada sempre a mesma. o mesmo heri que vive sempre o mesmo mito, um monomito. O conceito do monomito se relaciona intimamente com a concepo de inconsciente coletivo junguiana. A jornada do heri se estruturaria em etapas bem definidas, embora no necessariamente rgidas. O heri est em casa, ambiente seguro, quando seus esforos so requisitados em alguma demanda. Geralmente hesita, mas um encontro com algum mentor o convence a embarcar na aventura por locais hostis. Nessa aventura, ele formar alianas e enfrentar inimigos, chegando a algum lugar onde enfrentar a maior das provaes e invariavelmente vence. O heri recompensado e retorna ao lar, aonde chega transformado. Nessa viagem de volta, deve trazer algo abstrato ou concreto que ser de serventia ao bem comum.

O que o heri Para Carl G. Jung, o heri um ser quase sobre-humano que simboliza as idias, formas e foras que moldam ou dominam a alma. Para ele, a figura do heri um arqutipo que existe h tempos imemoriais. O heri aquele que se exaure na sua misso, vive para a sua causa. Nem deus nem humano, intermedirio entre o mundo da conscincia e o inconsciente, e sua origem vem de um perodo em que o homem ainda no sabia que existia o mito do heri.

O heri aparece tambm como produto da unio de um deus ou deusa com um ser humano, simbolizando a unio das foras celestes e terrestres, como alega Jung o mito universal do heri, por exemplo, refere-se sempre a um homem-deus poderoso e possante que vence o mal, apresentado na forma de drages, serpentes, monstros, demnios, etc. e que sempre livra seu povo da destruio e da morte. (JUNG, 1996, p. 77). essencialmente um arqutipo, que nasceu para suprimir muitas de nossas deficincias psquicas e obedece ao mesmo perfil e modelo nas mais diferentes culturas. o precursor (arqutipo) da humanidade em geral. O heri um ser transitrio, uma personalidade quase mgica que nos fascina porque personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa e por isso identificamo-nos com ele. A luta herica possibilita a superao dos medos, compensao das mgoas, humilhaes e a expresso da raiva. a transcendncia dos impulsos em busca da totalidade ou significado. Ele se atreve a viver a vida, em vez de fugir dela. Supera o profundo medo diante do estranho, do desconhecido e do novo. Trilha caminhos que, por um lado, tememos, mas que, por outro, percorreramos prazerosamente em segredo: caminhos em esferas ocultas e proibidas do ser, de difcil acesso, ou seja, pases estrangeiros ou galxias distantes, fenmenos naturais incompreensveis ou, ainda, a escurido da nossa alma. medida que ele no se deixa desviar do seu propsito pelas advertncias de outros homens, (nem pelos seus prprios medos e sentimentos de culpa), mantendo-se aberto e disposto a aprender, capaz de suportar conflitos, frustraes, solido e rejeio, ele adquire novos conhecimentos e realiza aes que possuem uma fora transformadora, no apenas em relao a ele, mas tambm em relao sociedade. Ele representa caractersticas fundamentais de que precisamos para o domnio da vida e o embate criativo com a nossa existncia. Jung tambm constatou essas semelhanas estruturais entre os mitos de culturas distintas, evidenciando em seus livros as similaridades que revelavam uma espantosa unidade entre todos os mitos. Teorizou, consequentemente, que todos os mitos e picos esto ligados psique humana, relacionando-se intimamente com a concepo de inconsciente coletivo. Isso explicaria grande parte do sucesso da narrativa de Harry Potter.

A jornada do heri Essa jornada do heri facilmente identificada e determinada em todos os livros da srie de Harry Potter, de Joanne Kathleen Rowling. Fortemente influenciada pelas antigas histrias

britnicas de magia, ela cria um universo fantstico, com cenrios extremamente propcios para que seus personagens realizem as mais extraordinrias faanhas ao longo de seus anos na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. A narrativa que subjaz a todas as outras a de que preciso restaurar a paz e a justia, que foram alteradas com a volta de Lord Voldemort. Este o principal conflito de todas as tramas, nas quais Harry e seus amigos Ron e Hermione, juntos, representam as chamadas foras do Bem, que vo lutar contra Voldemort, o elemento representativo do Mal. As adversidades que devero ser enfrentadas pelo heri seguem, praticamente, as mesmas etapas estruturais observadas e descritas por Jung e, posteriormente, por Campbell. Aqui, vamos nos limitar jornada de Harry Potter, escolhido para a sobre-humana tarefa de derrotar aquele-que-nodeve-ser-nomeado (Voldemort). uma jornada do heri particular, no-convencional e por isso foi escolhida. peculiar porque o heri em questo composto por um menino de fsico ainda frgil, mas de enorme fora interior. Sua vontade caminha sempre para o mesmo propsito fazer o bem. Para entender a especificidade dessa jornada do heri, deve-se primeiro compreender a essncia da histria de Harry. Menino rfo de pai e me, afastamento esse que remete ao arqutipo da iniciao segundo Jung, cujos pais morreram para salv-lo do mais poderoso bruxo de todos os tempos, deixando-lhe como herana seus poderes mgicos e o maior aliado possvel: um amor incondicional, capaz de sobreviver ao tempo e morte, ele nasceu bruxo. Ele no escolheu enfrentar Voldermort, antes, foi por este escolhido porque no morrera na tentativa de assassinato em que o poderoso bruxo conseguira matar seus pais, Llian e James Potter. Incapaz de entender o gesto dos pais do menino, no percebendo que fora precisamente o amor dos pais que o protegera, e que essa seria sempre sua maior arma para combater o mal, Voldemort voltar a tentar matar o jovem mago diversas vezes, sendo derrotado de uma vez por todas somente ao final do stimo livro. Harry no alto ou forte como o heri tradicional de outras histrias, o que o faz originalmente incompleto para a misso. Em princpio ele apenas tem um motivo real para lutar com Voldemort: a vingana pela morte de seus pais. Mas com o tempo, percebe que a derrota de Voldemort vai muito alm de uma vingana: seria a restaurao da paz e da justia no mundo da magia. Ele sabe que precisa fazer algo, mas ao mesmo tempo reconhece que incapaz de fazer isso sozinho. Inicialmente, ser auxiliado pelos amigos Ron e Hermione, concretizando o arqutipo dos amigos fieis, a quem logo se juntam grandes mentores, como o Professor Alvus Dumbledore, diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, aqui representando a poderosa figura tutelar que, segundo Jung, lhe permitiria realizar tarefas que lhe seriam impossveis de executar sozinho, e Hagrid, seu fiel protetor, alm de tantos outros em suas diferentes jornadas. Paradoxalmente, a escola de bruxos , ao mesmo tempo, a sua casa, seu lugar seguro, sendo tambm onde acontecem suas maiores aventuras.

Harry, o heri arquetpico que est sendo descrito aqui, detentor de poderes que nem ele mesmo imagina. Conhecido e admirado por todos por ter sobrevivido ao ataque mortal de Voldemort, em que seus pais sucumbiram, ele ingnuo e puro de corao. Carrega uma melancolia devido aos anos de solido vividos em famlia na casa de seus tios, Walter e Petunia Dursley e seu primo Dudley, que o desprezam pelo simples fato de que ele bruxo. Ele no sabe que um bruxo, embora tenha a intuio de que diferente da maioria das pessoas. J no trem para Hogwarts ele se d conta do respeito que todos tm por ele e fica abismado, pois no se acha superior a ningum, sendo a modstia uma de suas principais caractersticas. Quando da compra de sua varinha, o dono da loja diz que na verdade a varinha que escolhe o dono, e no o contrrio e sugere algumas delas para que Harry as teste. O prprio dono fica admirado ao ver que a varinha que serve a Harry semelhante usada por Voldemort e, quando a poderosa vareta atende ao gesto mgico de Harry, percebe que est diante de um grande bruxo e o reverencia, olhado por pessoas do lado de fora, que tambm reconhecem seu poder. Ainda assim, Harry no acredita em sua fora. Precisa, portanto, da ajuda dos amigos e mentores, confirmando, mais uma vez, o uso dos arqutipos em sua narrativa pica. Mesmo sendo bom e solidrio, Harry precisa de seus amigos para se ver como verdadeiro bruxo, capaz de aceitar os desafios que tem pela frente. Ele muitas vezes duvida de si mesmo e deve-se ressaltar que suas incurses por esse seu lado mais sombrio o tornam mais humano nem idealizado, nem perfeito como o heri tradicional e consequentemente mais prximo do pblico, e, por isso, ainda mais cativante. As maquinaes de Voldemort para matar Harry so uma fonte constante de problemas. A saudade que Harry tem de seus pais tambm cria problemas para ele. Nesse caso, uma parte do prprio heri provoca situaes conflituosas porque essas situaes so necessrias no processo de auto-conhecimento empreendido na jornada, segundo Jung. Ao final das narrativas o heri est mudado. Ele traz experincia, sob forma de lio, como as antigas fbulas, para si mesmo e para a comunidade que protegera do conflito. As marcas da jornada estavam impressas nele, que no quer ser considerado um heri. Essa recusa uma caracterstica do feito herico: abandonar coisas que lhe so caras em favor de um bem maior e da coletividade. A compensao para suas perdas o fato de ver Hogwarts a salvo. Esse o fim da jornada do heri, seguindo o padro estudado por Jung e Campbell, embora a construo do heri tenha sido ligeiramente modificada nesse mito. Isso poderia explicar o fascnio exercido sobre indivduos das mais diversas culturas que, de certa forma, veem no arqutipo do heri em Harry Potter uma projeo de seu prprio inconsciente. O prprio modo como a autora explora essas caractersticas dos personagens seria uma forma de falar ao inconsciente coletivo.

Harry Potter, antes de ser um filme de fantasia, tambm e principalmente um pico, um filme de gnero. O gnero pico, mais ainda que os outros, por excelncia um filho da psicologia junguiana porque envolve invariavelmente feitos grandiosos e hericos. Naturalmente, seria reducionismo atribuir o sucesso de uma srie de livros exclusivamente a essa frmula; porm, devese reconhecer que se apropriar de conceitos da psicologia um recurso na busca da indstria cultural para ocupar todos os nichos possveis e obter cada vez mais mercado. O uso do mito do heri, que serve para proporcionar a identificao com o pblico, no uma receita de bolo para toda e qualquer narrativa, embora em Harry Potter essa receita funcione muito bem. Aqui est o esquema de A jornada do heri, de acordo com Vogler, segundo Joseph Campbell, no qual encaixaremos a narrativa de Harry Potter e a pedra filosofal:

1. O mundo comum: a vida de Harry com a famlia.

2. Chamado aventura: cartas de Hogwarts a Harry.

3. Recusa do chamado: no parte de Harry, mas de seus tios.

4. Encontro com o mentor: Harry conhece Dumbledore em Hogwarts.

5. Travessia do primeiro limiar: o encontro com Voldemort na floresta.

6. Testes, aliados e inimigos: so as aventuras vividas por Harry, Ron Weasley e Hermione Granger, os aliados so os amigos, a famlia de Ron, alguns professores, os inimigos so os Malfoy e Voldemort.

7. Aproximao da caverna oculta: a luta acontece em Hogwarts, no subsolo, abaixo do alapo guardado pelo co de trs cabeas.

8. A provao suprema: a luta com Voldemort.

9. Recompensa: a vitria sobre Voldemort.

10. Caminho de volta: ele encontrado por Dumbledore.

11. Ressurreio: ele se recupera bem da batalha contra o mal.

12. Retorno com o elixir: Harry recupera a pedra, que destruda por Dumbledore.

Referncias

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