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CELSO GUTFREIND * ANTONIO CARLOS RESENDE * ÍTALO OGLIARI TÉRCIA MONTENEGRO * GLAUCO MATTOSO * CARLOS NEJAR 24

Jornal Vaia edição 24

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CELSO GUTFREIND * ANTONIO CARLOS RESENDE * ÍTALO OGLIARITÉRCIA MONTENEGRO * GLAUCO MATTOSO * CARLOS NEJAR

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com a publicação dos poemas de Perder a Vida. Em seguida, lançou A Noite não se importa, e o crítico mostrava que estava mais poeta do que nunca. Eu vinha de publicar A Gema e o Amarelo, meu primeiro livro, também de poemas. Foi a poesia, portanto, que nos aproximou.

Eu já sabia que ele estava a fim de me mandar um recado. Maria da Glória Bordini, professora e crítica literária, me avisou. A Gema teria caído em suas mãos, e eu teria caído em suas graças. Santa queda!

Pouco tempo depois, recebi uma de suas cartas, a primeira de uma longa série jamais interrompida, entre 88 e 2005, ano de sua morte. Abri-a com o ego inflado à espera de mais inflação. Eu me sentia previamente reconhecido pelo crítico mais implacável da cidade.

A primeira linha manteve-me inflado. A surpresa começou dali por diante. Depois de contar com entusiasmo a minha aparição, contou que tinha ficado impressionado com quatro versos do livro. Quatro versos. De um livro inteiro. De uma vida inteira. Isso sim foi uma santa queda.

Meu ego desinflou na hora, como um balão que tomasse alfinetada no finzinho do aniversário. Mas eu continuei firme e preparado para novas festas. Já sabia pela Maria da Glória - e pela vida - que a arte também não é fácil. Agradeci-lhe formalmente pela atenção e, dias depois, mandei uma segunda carta, menos formal, comentando o seu A noite não se importa. Autorizado por ele mesmo a ser sincero, contei-lhe que o livro me comovera em parte. Mais do que quatro versos com certeza, mas não todo. Acrescentei que, se fosse eu, publicaria a coletânea como uma antologia, deixando só o essencial. A Noite, afinal, era longa. Fiquei preocupado com a sua reação, que pudesse achar vingança (um pouco era mesmo), mas ele achou coisa melhor. A sua resposta, de fato, me comoveu. Concordava com a minha crítica, mas achava que a poesia tinha de ser como a vida, com o de melhor e o de pior. A poesia desenhava um ser humano, e o desenho era maior e mais profundo se trouxesse todos os traços, mesmo os mais apagados (esteticamente falando). Se a noite tinha de tudo, tudo o que pedisse expressão deveria encontrá-la. Embasava seu argumento, citando a obra de vários poetas, incluindo Drummond e Jimenez.

onheci Paulo Hecker Filho em 1988. Ele tinha 62 anos, eu 24. Depois de longo si-lêncio, ele retornava à cena

Jamais concordei comple-tamente com essa opinião. Mas sempre fiquei um bocado comovido com ela. Eu lia muita teoria, muita crítica, muita poesia concreta e cerebral. Eu lia de tudo. Mas ele lia tudo e há muito mais tempo. Pela primeira vez eu topava com alguém preparado, dizendo que não sentia a arte como um mundo à parte. Acho que essa visão de mundo foi o que mais nos aproximou. Nos vinte anos de nossa profunda amizade, nunca deixei de me impressionar com a sede do Paulo em buscar a vida na própria vida e também na arte. Para ele, a poesia não podia mentir. Nem a vida. Penso que isso explicava a sua mais absoluta l iberdade de expressão e sua fidelidade a ela. Paulo Hecker Filho conseguiu ser Paulo Hecker Filho.

Dito isso, nossas cartas jamais substituíram os encontros pessoais, na vida mesmo. Via-o com certa freqüência, no cinema, no teatro e em visitas no seu aparta-mento número 11 da Rua Lima e Silva número 22.

Paulo Hecker tornou-se, sem exagero, o meu melhor amigo. Nunca tive outro com quem me senti capaz de ouvir e dizer tudo, mas tudo mesmo. Na vida, isso às vezes doía. Na arte, sempre ajudou. Bem verdade que também nisso ele era bem melhor do que eu. Mesmo com ele, às vezes, eu camuflava, distorcia, arrancava um elogio florido onde havia bem mais cardos, espinhos. Ele, não. Dizia o que via num nível de isenção que jamais vi igual. Ferir, para ele, era omitir a verdade. Nossas brigas passavam por aí. Eu achava que nem tudo podia ser dito, nem sempre estamos prontos ou dispostos para ouvir. Seguido, me ligava para dizer, com orgulho, que evitou dizer aquilo ou isso, que estava influenciado por mim.

Felizmente, não a ponto de deixar de ser o que era. Não abria mão do que assegurava como um dever do crítico: a verdade. Paulo foi poeta, contista, dramaturgo, cronista, mas a identidade de crítico era a maior que carregava. Paulo desempenhava com qualidade todos esses nomes escolhidos para a sua existência. Mas o que mais me tocava era quando era amigo. Paulo foi um amigo fiel e atento, capaz de verdadeira empatia e atenção. Quando fui morar na França, disse-me certa vez em um telefonema: - Estive pensando muito sobre ti e fiquei preocupado. Não dás muita bola para a roupa que usas e isso nunca me pareceu um problema. Não em Porto Alegre, mas na França, onde ninguém te conhece, deves usar uma roupa melhor. Na semana seguinte, man-dava-me por sedex um belíssimo bleiser. Usei o bleiser com carinho, mesmo sem a certeza de que Paulo estivesse certo no conteúdo de sua idéia. Mas na forma estava, com atenção e empatia, e isso foi precioso para eu ser mais feliz no auto-exílio. Já como psicanalista, eu ponderava que a verdade se abria, não era única, relativizava-se. Ele ouvia, escutava, mas seguia o mesmo para o meu deleite de amigo que sabia que com ele era possível c o n t a r c o m u m a o p i n i ã o verdadeira, sincera.

A sede de vida foi o que mais nos aproximou. A sombra da morte, também. Ambos tivemos perdas pesadas e nunca falamos sobre isso em nossos encontros. E sempre falamos sobre isso em nossos encontros através da poesia que nos revelava em nossas dores e delícias, festas e guerras. Ambos achávamos que a poesia tinha nos salvado.

Paulo Hecker Filho tinha sede de vida e procurava saciá-la na arte. Devorava jornais, livros, filmes, peças de teatro, espetáculos de dança, sempre doido pra encontrar neles um grão de vida. Conversava com tudo e com todos, dando o seu mais sincero pitaco. Embora tivesse lido tudo, a sua reação era infinitamente pessoal. Detestava – e o dizia – o texto de um medalhão, que se escondeu da vida. Truques, palavrórios, afetações ou virtuoses não o comoviam. Exultava com a simplicidade de um desconhecido que resolvera – e conseguira – contar a sua experiência. Anti-Fausto, não se vendia por nada, não se deixava seduzir por aparências. Não fazia política, não investia em espaço. Só queria saber da verdade, da sua verdade. Esse era seu tempo, anacrônico, em conflito com o nosso tempo, mas absolutamente autêntico.

Sem que fizesse disso um objetivo, ensinou-me a ouvir e ser mais eu mesmo. O que me ajudou na literatura e, mais ainda, na psicanálise e na vida. Provocou em mim o efeito de uma boa análise, embora ele duvidasse disso e o dissesse abertamente ao amigo analista. Mas me fez sim me sentir mais eu mesmo, sem temer a verdade do meu jeito e minhas opiniões diante dos outros, sejam pais, professores, governantes ou status quo. Não o ensinou pregando e sim no jeito pedagógico mais eficaz, que é sendo. Também me ensinou ao transmitir entusiasmo pela vida e pela arte. Conviver com ele me fez ler mais, ver mais filmes, peças de teatro, espetáculos de dança e tudo o que houvesse mais de arte. Li mais Jean Genet, Nietzsche, Sartre, Rimbaud, Mário de Andrade, e cada um deles me levaram mais perto da vida. Quanto mais os lia, mais os sentia densos e incompletos, nada preenchia a vida que não pudesse ser ela mesma. E Paulo Hecker Filho me deixou mais entusiasmado com essa vida, já que para ele (e para mim) não há outra. Nada escrevi, nos últimos 17 anos, que não passasse pelo seu crivo. Escrever sem poder contar com ele como leitor tem sido um suplício, mas ainda menor do que não ouvir a sua voz ou receber o seu olhar, o seu abraço.

Mas ainda hoje, dois anos depois de sua morte, me pego reinventando sua vida, seja num poema, numa lembrança ou numa conversa imaginária. Pois também isso me ensinou: depois de uma forte presença, as ausências podem ser dolorosas, mas não insolúveis nem irremediáveis.

O melhor amigo Celso GutfreindPsicanalista e escritor. Autor do livro“Retrato Falante”, editora Tchê!, 1995

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No caminhãozinho, um boi e dois meninos. O boi curva a cabeça com a corda nas aspas e olha, conhecendo, os meninos. Sentados na cancela detrás, esses viram para o fotógrafo. O da frente consegue, como um adulto, se fazer sereno. O outro ri para dentro, criança ainda sem lugar no mundo. Vê-se até o boi que os bois amansam na companhia dos homens, até o caráter dos garotos. Sã eles mesmos e para o resto da vida, que talvez já tenha acabado porque a foto é antiga. Mas é como se viesse de ser feita. O boi, os meninos, o caminhão dizem mais de si do que se poderia notar ao natural. São o que são ao ponto de serem os meninos, os bois, os pequenos caminhões do mundo. A arte fixou no instante o tempo, que já não termina, ficou ali. Num clique, foram conquistados os personagens e as coisas, o mundo. O caminhão serve, um menino ri, no outro, mais crescido, não precisa, o boi compreende o que um boi compreende. É isso, e tudo.

Paulo Hecker Filho (1926-2005), cujo legado estará sendo lembrado na primeira edição da Festa Literária de Porto Alegre - FestiPoa Literária (para maiores informações acesse o http://festipoaliteraria.blogspot.com), no dia 28 de março, às 19hs, na Livraria Nova Roma, nas palavras de Alexandre Brito, Antonio Carlos Resende, Celso Gutfreind e Sidnei Schneider, nunca publicou conto, poema, crônica ou crítica literária aqui nas páginas do Vaia, infelizmente para nós seus leitores. Agora, três de seus amigos, de três diferentes gerações (Celso, Sidnei e Antonio) lembram aqui as amizades, as histórias e as emoções que partilharam com essa admirável figura humana que foi Paulo Hecker Filho. E a gente aproveita para publicar um texto de um de seus mais belos livros - Ver o mundo (Camaleoa Livros, 1995):

DULCE HELFER

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Não importam idades, idiossincrasias poéticas, gostos pessoais, nada. E não é uma questão de se comparar a qualquer um deles, a coisa é mais simples. E bem mais profunda. Trata-se de um estado permanente de busca da poesia, de superação de si mesmo, de olhar para e pensar o mundo, de se colocar nele, de enfrentar a morte e a vida, de alcançar os outros. Nisso me banho como num oceano, e convido o leitor a também fazê-lo, não com um artigo, mas com uma visita a alguns poemas essenciais:

PARTILHA

O mundo é belo demais para um só homem.Olhem comigo o dia que nos coube, tomem,me deixem repartir tanta luz derramada,que se eu ficar sozinho, eu vou ficar sem nada.

(Perder a vida, 1985)

Quando do falecimento do autor escrevi um depoimento para o Vaia, por isso não pretendo repetir dados nem os poemas daquela edição, muitos de Perder a Vida, o livro mais comentado, ficando assim escusada alguma ausência. Hecker, além de crítico e tradutor, trabalhou com vários gêneros literários, por razões de foco e predileção me restrinjo à poesia, o gênero ao qual mais se dedicou nas últimas duas décadas de sua vida. Integrante do Grupo Quixote, que agitou o estado a partir de 1947 com o lema “vamos fazer uma barbaridade”, publicou seu primeiro livro de poemas em 1950, no qual se pode verificar o que tinha a acrescentar ao cenário poético da época, bem como as linhas gerais de toda sua poesia:

Ah o homem morrendo de frio na portado baile em que eu disse a uma imbecil que a amava.

(Ah! Terra, 1950)

Repare-se, mais adiante, em Na Porta, o mesmo tema visto de outro ângulo, mas com o mesmo sentimento. Ser poeta e fazer poesias é, antes de mais nada, exercitar um jeito de sentir, um modo particular e pertinente de captar e disseminar o essencial do que ocorre numa época, nas relações humanas ou fora delas, ultrapassando a barreira do tempo. Em suma, um modo de ver com a linguagem:

OS OUTROS

Fico vendo a dor alheiae ver é fazê-la minha. (...)

(Não se mate, 1992)

O QUE NOS CABE

Sê firme como quem não fosse.Sê sábio como quem não sabe.A vida não é dura nem doce.A vida é o que nos cabe. (...)

(Perder a vida)

Já ouvi que o Paulo Hecker publicava lado a lado poemas bons e ruins. Sem que se declare nada acerca da qualidade de poemas concretos, o que propiciaria o debate, essa posição fica estendida no ar, sem sustentação. O argumento, no entanto, deprecia. É, além de tudo, equivocado na sua própria estruturação. Um poeta merece ser avaliado por aquilo que de melhor produziu. Não são só teóricos da literatura que o afirmam. Não é assim que lemos intuitivamente a obra de cada autor e mesmo um único livro dele? Sempre procurando o que mais nos atinja? Mas comecemos a verificar, então, alguns poemas na sua concretude, para discutir a questão:

À INCOMPLETA

Dizem que Deus fez o mundo em sete dias.Está ligeiro. E sete é conta de mentiroso.Ainda mais se tratando de Deus,tão calmo, tão discreto que até parece que não existe;pelo menos nunca se faz notar.Para mim, ele continua se decidindo e não adianta grito,se faz de surdo e ainda demora mais.Os homens bem que lhe dão uma mãozinha,mas não podem tudo.As melhores invenções ele deixou em meio.Os cavalos em pedigree, os diamantes sem lapidar...E você, complicada coisa linda, sem me amar.

(Perder a vida)

Nota-se aqui um humor diferente daquele propiciado por Mario Quintana, mais próximo do fino deboche. Hecker é agridoce, usa uma lâmina fina e delicada, enquanto sorrimos levemente, para nos cravar o punhal no peito. Em muitos dos seus poemas se percebe a ação de um intelecto que sente, mais afeito à dança dos conceitos do que à imagem ou à melodia. Quem busca num poema o que ele não tem não encontrará nada, precisa abrir sua sensibilidade. Versos assim não se consomem em metáforas, nem empilham excessivamente os sentidos de cada palavra com recursos polissêmicos, constroem-se de outro modo:

Ninguém mais fácil de contentar do que um poeta menor.Lembre algo que ele publicoue logo receberá em casa suas obras completas,sempre mais numerosas do que previae com dedicatórias de enrubescer seu ego,por desproporcional que seja, como é a regra.

Folheia os livros e viu tudo,se aproximam, não chegam, repetem, não dizem.Mas o autor deseja opiniões precisase se refere a páginas que não estãoentre as vinte e duas que você leue não gostou.A sorte é que supõe a favor o que é reservae sorri.

Para o poeta basta o que escreve,o poema dá sentido à sua vida.Sem o poema, restam ao poeta menor os comentários.Não estranha que seus tímpanos dobrem de sensibilidadeao menor sinal de interesse.

O poeta menor ri, fala macio, é prestimoso,evita problemas na vida como na arte.Por isso justamente é menor,embora sofra tratando de não sofrer.Na arena das relações e das letras,não enfrenta os leões,mas não acaba menos devorado,pois há leões onde menos se espera.

Não se pode dizer que o poeta menor leve uma vida atribulada.Busca se preservar de riscos,o que às vezes é tão incômodo como corrê-los,mas a falsa poesia que faz mostra que leva uma vida falsa.Vivesse para valer, podia não ser poeta,mas não seria um poeta menor.

O poeta menor não chora de noite como o poeta,de noite ele dorme.No outro dia, refeito, ocupa-se tantoque não sobra espaço para o poema.Já o poeta,mesmo sem pensar no poema, o vivee assim, quando vai ao seu encontro,pode dar com ele.

Diante desses fatos, e outros de teor semelhante,vê-se que os poetas não costumam ser agradáveise que os poetas menores são encantadores.É ir ao poeta pelo seu poemae folhear em pessoa o poeta menor.

(Vento, águia, coelho, 1991)

Hecker tinha afeição por certos personagens: caixas de supermercado, office-boys, garis, pedreiros, corredores de maratona, enfim, gente simples e esforçada:

NO BEM

Tem dezesseis anos, um metro e oitenta, e é lindo.Todo mundo acha e ele concorda, rindo.Office-boy, cruza a cidade num instante,andar é chegar antes.E estar de pé descansa, não vacilanem diante da maior fila.Vai espalhando alegriacomo um dom do diae não importa a quem,está no bem.

(Nem tudo é poesia)

Para terminar, dois poemas. Um parece nos dar um entendimento do que seria, afinal, a paz interior. O outro, sobre o sol, tema recorrente nas suas últimas poesias, fala de uma doação ilimitada que bem poderia ser a que nos chega através da vida e da obra desse poeta:

COM OS OUTROS

No que ando pela ruaevidente é a humanidadee em seguida eu faço partee nem me procuro mais.

SOL/AR

Faz sol.Como se não fizesse nada,faz.

Em si como Deus.Tanta luta e o solem paz.

E sem nada esperar,tudo nos traz.

(Nem tudo é poesia)

Se o leitor desconfiou que estou instigando a ler os livros, revirar as folhas, degustar os versos de Paulo Hecker Filho, acertou em cheio. Mãos à obra!

NA PORTA

Não estou com o rei da festanem na festa.Estou com o que ficou na portasem coragem de entrar.

(Meu filho, 1992)

HUMILHAÇÃO

Nessa semana li oitocentas páginas.Para lembrar cinco, preciso me esforçare, na semana que vem, nem me esforçando.

Enquanto isso, sozinho,um operário construiu um quarto completona área do edifício ao lado.Massa grossa e fina, tijolos, teto, janelas,tudo no seu lugar. Já está pintando.

Não é uma humilhação?

(Diário de verão, 1992)

Não faltam, porém, ocasiões em que o poeta se entrega a ritmos leves e musicais, flertando inclusive com a canção:

EU TE AMAVA

Eu te amava como um loucoE por mera gentileza(Eu não via, eu não via!)Você até me amava um pouco.Não havia outra belezaQue você sorrir pra mim.(...)Mas você não gostava de mim,Só gostava de me ver amá-la assim.(...)Hoje diz que eu tenho de voltar.E implora, quase chora de desejo,Mas eu vejo, mas eu vejo, mas eu vejo:Não é pra dar o amorQue você não tem pra dar,Quer é aquele amor de loucoPara ser feliz um pouco. (...)

(Nem tudo é poesia, 2001)

E há vezes em que uma fala coloquial trata com muito bom-humor temas que em outras mãos poderiam redundar em pura chatice e amolação:

VEM CÁ OCEANO

Vem cá oceano,me diz uma coisa,pra que tanta água?A do Índiconão tem sequer idéiade como existe águano Pacífico.Já o Atlânticobem pode saberpelo Canal do Panamá.Mas pra que, meu Deus,está água toda?Vai por mim, oceano,vai por mim,a dose é uma cerveja.

(Jornal Folha de Letras, 2003)

O poema a seguir já foi chamado de “uma sociologia da literatura”, provocante visão crítica do que é e não é fazer poesia, e pode ser útil para deixar mais conscientes poetas de todos os “tamanhos”:

OS POETAS MENORES

Os poetas menores vão conversar nas livrarias,freqüentam palestras, congressos, semináriose tardes de autógrafos pensando nas suas.Os poetas menores participam de semanas culturaise feiras do livro até no interior.Só não estão em casa trabalhando. Não têm tempo.

Os poetas menores fazem visitas e são visitados.Assistem a sessões em que conhecem a mesa e a platéiae cumprimentam cada um.São os primeiros a abraçar pelo prêmio ou a homenageme apesar dissotêm emprego, mulher, filhos,fumam,ou não fumam,comem nas horas regularese escrevem. Não sei como.

Já os poetas andam atrás da sua poesia.Segundo Faulkner, por ela deixariam morrer as tias.E tias aí é eufemismo, a Bíblia diria pai e mãe.

sentimento que tenho em relação ao Paulo Hecker é o mesmo que bateu forte quandosaí do filme Vinicius, o belo documentáriode Miguel Faria Júnior: meu irmão!

HECKER POETA, UMA BREVE COMPILAÇÃO

Sidnei Schneider poeta, tradutor e contista http://umbigodolago.blogspot.com

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Voltando de São Paulo, resolveu adquirir um que outro apartamento, com cuja renda mensal conquistou a liberdade e o tempo para a vida e a literatura. Se não teve a oportunidade de lecionar nas Faculdades pelo bloqueio do silêncio, recebeu um considerável afluxo de jovens com aspirações a escrever poesia, contos, novela, romance. Ao longo de 50 anos, não deixou ninguém sem resposta, exercendo através de mais de cinco décadas a crítica do bom gosto. Não acreditava em teorias literárias, que lia e discutia, por serem passageiras. Usava o critério do bom gosto, que se adquire pela leitura contínua. Creio que, por meio de suas cartas a jovens e velhos aspirantes à escrita, poder-se-á verificar a existência de uma estética literária pessoal.

Sobre o conhecimento, tinha um marcante traço, o da incorruptibilidade: por mais amigo que se fosse dele, jamais deixava de dizer a verdade, que doía, mas que era a verdade. Se com dor e tudo a gente insistis-se em mandar o que escrevia, acabava aprendendo cada vez mais e com o aprendizado seguindo solitário o penoso caminho da literatura. Suas cartas estão guardadas no acervo Delfos da biblioteca da PUC/RS. Um fato que poucos conhecem. Em 1950, Mario Quintana não era considerado, até renegado, vivia nos bares a beber, mas Paulo gostou do lado patético de seu lirismo. Insistiu com o poeta para que terminasse um livro nessa linha e Paulo acabou editando por conta própria “O aprendiz de feiticeiro”. A vida de Paulo Hecker Filho dá romance. Casou em plena paixão duas vezes. Não esqueço que logo no início foi morar com Beloni no Hotel Majestic. No pequeno vestíbulo do quarto, uma pequena prateleira, de alto a baixo, repleta de livros. Trabalhava no escritório de advocacia do pai, realizando suas tarefas com rapidez para retornar aos livros e à mulher. Tinha um hábito de assistir às estréias de f i lmes das segundas-feiras, começando pela sessão das 14hs e terminando pela última. Ganhava tempo e nos informava o que ver, o que não. De certa forma, nossa turma foi privilegiada. Ele nos informava a respeito de tudo Levei-lhe um conto em 1954. Achou jornalístico demais.

Esse silêncio não é de hoje. Nega-ram-lhe o acesso, como docente, às Faculdades de Letras, à imprensa. Em 1952, respondendo o que achava da imprensa gaúcha: “É dirigida por cretinos geralmente. Há diretores de jornal aqui que saíram duma sátira a ser escrita ainda. Tão cretinos que parecem literatura. Conheço dois que se lavam e relavam, usam gravata, automóveis colossais, piteiras, cavalos de corrida, amantes. Pisam suave, não falam e mantém uma seriedade divina. Como todos chegam mendigando para eles, de medo deles, não respeitam a ninguém, nem a nada... Pensativos e distantes como jumentos” (Revista Crucial, 1952). Seu nome foi proibido de ser citado. Em 1967, consegui junto a P. F. Gastal, que colaborasse no caderno Cultura. O silêncio ficou menor. Na mesma Crucial, indagado sobre literatura gaúcha, falou: “Não existe. Mario Quintana tem ótimos poemas, sobretudo neste depurado “O aprendiz de feiticeiro”. Erico Verissimo é romancista, mas raso. No passado há uns poemas de Wamosy, uns contos (pouquíssimos) de Simões Lopes, o estilo de Alcides Maia. Aqui não se herda nada. Há que começar do marco zero.” Eis o homem e seu silêncio. Mas continuou escrevendo e agitan-do. Poesia, contos, teatro, crítica e autocrítica. Em 1957, uma novela, que considero obra-prima, “O digno do homem” (reeditada em 1998).

Casou em 1954 com Beloni, apaixonadíssimos ambos. Não deu certo, ele viajou em 1962 para São Paulo, trabalhou na redação do Estado de São Paulo, voltou em 1964. Da história entre Paulo e Beloni resultou o tomo “Os adeuses”, um amor que terminou e não termina:

De todos os prodígios que fizemos,O principal foi esta filha lindaUma aurora constante detivemosNeste rosto em que a vida não nos finda.

A Dilu

Que era aquilo? Aquilo em Porto Alegre?Ela tinha olhos, tinha pernas, tinha corpo,Tinha braços, cabelos, mãos, a voz,A voz na doçura certa, a boca não fazia

por menos,mas não era possível! por onde seolhasse, lá estava ela,parecia multidão cantando, puxando ocoro da vidaera linda.

Dilu sofreu um AVC, que não lhe desmereceu a beleza, apenas a espon-taneidade de expressão, nunca a doçu-ra. Nasceram dois filhos desse casa-mento – Laura e Daniel. Tornaram-se meus amigos. Levava ao futebol o Da-niel. Laura inspirou duas personagens

de meus livros – Régia em “O rapaz que suava só do lado direito” e Ma-bel em “Fiéis infiéis”. Três poemas de Paulo tendo o tema da Laura:

Rubem Braga em Porto Alegre

Março de 68, reunião no Instituto dos Arquitetos.

Ele vem chegando e se aproxima com ar de espanto.

Que é que eu fiz? Só falava bem do cronista... Esboço de cumprimento e lhe apresento Dilu a meu lado – Minha mulher... quê... Isso é mulher de ninguém, isto é!

Discreta, mas sem poder deixar de adorar, Dilu abre um sorriso. Ele fica transcendido. Soluciono me afastando om ela. Rubem se dirigia a meio mundo: - Mas você viu a mulher do Paulo Hecker, você viu.

Declaração

Esta luz que vem de ti Não é de dia nem do meu encanto.És tu que me geras,Sempre acesaPela beleza,Da tua face, dos teus cabelos,Da tua figura inteira

Esta luz que vem de ti, Me lava de luz o espíritoE o corpo.Sou criado novamente,Como um santo,E não sei o que dizerSenão que te amo.

A Laura (trecho)

Tinha trinta e um anosBastou para uma vidaTemia ameaças reagindo com excessoLogo estava de bem, todos erradosTe davas à menor aprovaçãoPrestativa ao resfriado mensalAcabado o trabalho não paravasSempre encontrando tempo para a vidaBebê foste bonita de não se acreditarE ter de olhar de novo e assim durou

Daniel foi acusado de participar da gangue da Praça da Matriz, que matou um jovem na praia de Atlântida. Foi absolvido, prestei depoimento em seu favor em 1986, junto com Sergio Faraco. Foi internado na Pinel e depois no Hospital Espírita. Foi atacado por uma esquizofrenia, sofrendo até março de 2005, quando morreu de um ataque terrível de asma.

Amanhã

Deixa eu andar pelas ruasir ao cinemaainda é hojee amanhã vou ficar cara a caracom os que foram além do possível.

Um mundo

Quem matou não sabia que suprimia um mundo

a tua intensidade de projetos leitura de ciência e poesia laboratórios achados experiência congressos aulas tua extensa tese que nem eu entendi tão cienciosa expediente duplo no Fundão e antes um turno de natação Filmes de não perder que não perdias os shows as peças pilhas de CDs bares amigos brigas reuniões vestidos perfumes e salões

para não esquecer de toda a pintamagra elegante a cabeça perfeitaas mãos delicadíssimas a voz doceTudo isso supera ainda baila no aros trabalhos a fibra a busca do fervore eu a teu lado vendo e me metendopai provedor torcida aclamando.Agora já não és e tudo o que visasteMorre em mim não ser mais,até o ponto final do rosto no caixãoteu rosto no amor teu belo rosto.

“Que é isso? Não há emoção. É preciso transmitir as razões de cada ação das personagens, com a concisão que o conto exige”. Inúmeras vezes nos enchíamos de chopes ao logo de intermináveis conversas. Ele bebia no máximo três. Cansei, depois de meu horário noturno na rádio, de freqüentar sua roda de bar com o Bisol, o Dionísio, o Lineu Dias, o Milton, às vezes a Vera Mogilka. Éramos jovens, o chope era melhor, não era fácil acompanhar a vitalidade o Paulo, que transformava, às vezes, a conversa numa selvagem análise de grupo. O Lineu chegou a voltar a Livramento para convalescer de Paulo Hecker Filho.

Para desgosto geral, Paulo e Beloni se separaram. Ele duma hora para outra apareceu lá em casa e comunicou o desastre. Não explicou nada: “recebe o aluguel da inquilina e deposita no banco”. Lembro-me de sua carta de São Paulo. Fazia seu horário no Estadão, ia às estréias de filmes e teatros, escrevia cartas, a velha insônia o massacrando, e dizia “a vida é fácil”.Retornou em 1964, e reatando a vida aqui na velha província, com mais energia. Conheceu e casou com Dilu, Maria de Lourdes Sanches, de cuja beleza e delicadeza se orgulhava.

E eu, que nada disso fizUns constroem cidadesoutros universais sistemas.

Fundam universidades.têm históricos amores,recebem todos louvoresfazendo fortuna ou poemas.

E eu, que nada disso fize sem ter qualquer defesa.

Eu, que fui sendo feliz?

Eu que perdi a vida...Que beleza!

“Mas não escrevo sobre livro ruim, não vale a pena e no máximo aludo aos mais ou menos. Só quando enganam gente demais, neles me detenho, até por instinto de defesa social. Não que seja anormalmente solidário, mas se é com os outros a lutar conta o equívoco e a mentira, na realidade como nas letras, ao buscar viver, que é viver na verdade. Em desejo já me mataram várias vezes por dizer certas coisas, mas não posso me acumpliciar a ela enquanto não desistir de viver”. Paulo Hecker Filho morreu em 12 de dezembro de 2005, tendo a elegância e delicadeza de não ter se queixado do mal que talvez só ele soubesse. Caiu fulminado, depois do almoço, por violenta hemoptise. Ele que queria morrer lentamente (poema de 1984). Os obituários exaltaram-lhe antes as qualidades de crítico danado que as de poeta inspirado e criativo ensaísta. Excetuando Ricardo Silvestrin e Celso Gutfreind, uma rápida nota de Ruy Carlos Ostermann, nenhum dos chamados cronistas fixos de importante jornal lhe comentou a dramática morte. O velho silêncio feroz dos que se sentiam objeto de sua crítica estava de volta? Ele já estava acostumado. A biografia de Paulo está quase in-teira em sua obra poética, desde a grande virada de 1985 com “Perder a vida”, livro que ele encerra com o poema:

Paulo Hecker Filho – O silêncio que desceu sobre o iconoclasta

Repito. Tinha orgulho da Dilu, re- parem neste poema em prosa de “Nem tudo é poesia” (2001):

(Laura morreu em dezembro de 1996, num assalto ao seu aparta- mento no Rio de Janeiro)

m artigo publicado em Nós, os Gaú- chos, em 1992, edição da UFRGS, Paulo Hecker Filho afirmava: E

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conclui na próxima página >

Antonio Carlos Resende

Paulo Hecker Filho, Paulo Bentancurt e Antonio Carlos Resende

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Moda é a tendência de consumo da atualidade. A moda é composta de diversos estilos que podem ter sido influenciados sob diversos aspectos. É uma forma passageira e facilmente mutável de se comportar. A moda é abordada como um fenômeno sócio-cultural que expressa os valores da sociedade – usos, hábitos e costumes – de um determinado momento.

Eu também estou levando uma arma para a sala de aula. Comprei pela Internet.

Quando eu crescer e o inferno chegar, quero caminhar ao lado do Diabo.

Beijo

A beleza era a prova não parecia outra

e ainda podia dar, desenhava, esculpia. E sobrava beleza

O derrame a esvazia o dia são as horas. Vai perdendo a vaidade como parte de si Sem ela, para quê? A beleza era a prova.

Dos atos necessários, higiene, refeições, telefone e tevê quer liberar-se logo, ter ao menos a paz, a paz de não ter nada.

Busco a paz verdadeira abraço e ela permite, com tal intimidade que a beleza retorna um instante mas nossa.

Mas só posso beijar Nem pergunta porque, adivinha e não olha o soluço que escondo.

Antônio Carlos Resendeescritor, autor de “Magra mas não muito, as pernas sólidas, morena”, “O rapaz que suava só do lado direito”, “O louva-a-deus”, “Igual a ti só no inferno” e o mais recente “A obra-prima do teu corpo”

Assim se evapora uma família que eu adorava. Incontáveis momentos de fe l i c idade , e , subitamente, a tragédia. Sumiu-se a beleza da Dilu, a doçura da Laura e o probrezinho do Daniel. Além de outras virtudes huma-nas, Paulo Hecker Filho tinha a de possuir o dom natural de unir a primeira e a segunda famílias. Dulce, Laura, Dilu e Beloni não só se davam bem, como se harmonizavam como amigas sinceras. Nos aniversários dele se via a presença infalível dos ex-sogros, ex-mulher, todos alegres e

festivos em torno do homem numa relação familiar de paz. Paz que não conseguiu em vida, porque, como já afirmei, investiu toda sua vida à procura da verdade na literatura. Começou como i conoc las ta tempestuoso, destemido, contra poetas e escritores, sem piedade. Sofreu a pena sem parar de um silencioso bloqueio.

Desbloqueou-se publicando por conta própria sua obra de mais de cinqüenta volumes, fora traduções e cartas. Cartas que, daqui a dez ou quinze anos, revelarão o real significado de Paulo Hecker Filho, como homem, crítico, ético, amigo. Quem viver, verá.

Quando eu crescer e o inferno chegar

escritor gaúcho, nascido em Porto Alegre, em 1977. Publicou os livro de contos A mulher que comia dedos (WS – 2004),Ana Maria não tinha um braço (IEL – 2005) e o romance/novelaUM SETE UM (ed. 7 Letras – 2007). www.italoogliari.blogspot.com

Tão triste como um sonho

Saiu de sie já não voltaránossas mortesse medemsem um gritofrente a frente

Tento sorrirtento falartento viverem vãoEle não tenta nadaSaiu de siE já não voltará.

Abandono

E o grito para dentrofilho filho!joga longe como um carro

Abençôo a tua vida e nem um dos dois renasce Filho filho filho filho! deixo a vida que deixaste

Maria de Lourdes faleceu no dia 31 de outubro de 1996, não sen-tiu a dor de sentir a morte da filhaem dezembro nem a do Daniel em2005, nem a do Paulo em 12.12.05, nem a de ler este poema, de 1999:

Ao completar meus quinze anos, começarei a estudar para cursar medicina. Passarei as noites em claro, estudando.

Não irei a festas, a bares, não beberei, não farei nada que o pessoal com essa idade costuma fazer. Para conquistar meus objetivos, terei de me sacrificar.

Quando estiver com carreira estabilizada, irei me vincular a um partido político qualquer e serei eleito como vereador, prefeito, deputado, etc. Lerei todos os filósofos, os sofistas, e ninguém me deterá num debate. Juntarei uma boa grana, com o tempo, para uma campanha presidencial, ou melhor, quando eu crescer e estiver caminhando ao lado do Diabo, não vão existir mais países nem nada. O mundo será um único lugar e eu estarei no controle. Arrumarei tudo bem direitinho para dar esperança novamente ao homem e depois apenas apertarei, ou mandarei apertar, um botão vermelho e idiota.

Opióides, para os ignorantes, são fármacos que atuam nos receptores neuronais e que produzem ações de insensibilização à dor, chamadas analgesias, e são receitados, principalmente, na terapia de dores crônicas e de dores agudas de alta intensidade. Produzem, em doses elevadas, euforia e estado hipnótico.

Porém, depois, usarei, sempre que crianças ou mulheres forem ao meu consultório, um opióide qualquer (li na Internet) para sedar meus pacientes e abusar sexualmente deles.

Descarregarei, então, o pente da minha Bereta Model 12 na cabeça de todo mundo. Depois alegarei que fui mandado por dois ou três caras que me ameaçaram no portão do colégio e todo mundo acreditará e ainda ficará com pena de mim.

Quando eu crescer e o inferno chegar, quero caminharao lado do Diabo.

Quando eu crescer e o infernochegar, quero caminhar ao ladodo Diabo.

Quando eu crescer e o inferno chegar, quero caminhar ao lado do Diabo.

Meu pai tinha o sonho de ser bombeiro. Eu, a bomba.

05

ilustraçõesJORGE CABELEIRA

Ítalo Ogliari

Page 6: Jornal Vaia edição 24

Tarde chuvosa de uma quinta-feira de um dezembro interminável, como costumam ser todos os dezembros, no Rio de Janeiro. A casa olha o mar e é olhada pelo Cristo Redentor, a “Casa do Vento” a casa do poeta Nejar e de Elza, musa e guardiã, da vida, dos sonhos e das inquietações desse grande criador.Da janela do escritório onde conversamos o mar e a trilha sonora composta e executada pelas aves marinhas aperfeiçoam o momento. Do que mais o poeta precisaria? Do que mais, além da natureza e da sua consciência? Do que mais, além do equilíbrio exato entre amor e razão? Estávamos lá, o poeta e este aprendiz, mais tarde fomos ao encontro de Elza, ou melhor, do carinho elegante de Elza. A intimidade do Nejar, o café com o Nejar, permanente poeta, incansável sentinela do tempo. Elza foi cuidar de questões práticas, a casa é enorme e esse casal a torna aconchegante. Novamente a sós com o poeta, novamente em frente a janela por onde mar e aves nos espiam, me veio a repetida de sensação de que sempre que estou com ele também estou com mais alguém que não se permite ser visto. Coisa de poeta amigo de Deus.Conversamos sobre literatura, justiça, honestidade e expectativas. Abaixo, a entrevista com o nosso maior poeta vivo.

Luíz Horácio. Jornalista e escritor. Autor de “Perciliana e o pássaro com alma de cão”. Professor de literatura e língua portuguesa

Luíz Horácio - Começamos pelos seus romances. Percebo a presença do mágico, do fantástico, podemos dizer, do realismo mágico em sua obra. Em A engenhosa Letícia do Pontal é fator preponderante, é o brilho do livro.

Carlos Nejar - Mas eu não busco isso, o mundo que é mágico, o universo que é mágico, o realismo mágico não foi invenção de ninguém, foi simplesmente a contemplação do mundo em torno. O Graciliano Ramos disse que a realidade é que é inverossímil. Ele chega ao ponto de afirmar que nada é mais inverossímil que a realidade. Então, ele não foi fantástico, foi um realista, mas eu não podia deixar a minha imaginação ficar coxa, ela tinha que andar. Tampouco meu pensamento deixaria de pensar, porque eu acho inclusive que a criação f icc ional contemporânea, com exceções, não sabe pensar.

Parece que a l i teratura atual, principalmente a feita pelos novos nomes, está carregada de um excesso de realidade, ao mesmo tempo que mostra e defende um desapego às origens. Se pode falar da Mongólia, do 11 de setembro americano, porque falar do próprio rincão? Nesse sentido a imaginação é derrotada e a produção beira o boletim de ocorrência. O que lhe parece isso, é uma tendência, da prosa contemporânea?

A literatura dos mais jovens, com exceções, está muito presa ao patológico, está muito presa ao que chama atenção, está solta totalmente das raízes, da terra e longe da terra ninguém floresce. Nós só florescemos quando somos plantados na terra. A gente pode até voar que nem um pássaro, mas a gente sempre tem que ter alguma asa, alguma parte do corpo na terra, porque a terra sempre vai nos acompanhando. Eu aqui neste lugar aqui no Rio de Janeiro, na Urca, eu sou um pampiano, e eu tenho a terra do pampa comigo. Não tenho nenhuma saudade do pampa, porque o pampa que eu trago comigo é muito mais vivo até do que aquele que está lá. Porque é o pampa que eu consegui configurar com a minha imaginação, com as minhas palavras, com os meus sonhos. E também é mais durável. Quer ver? Outro dia eu cheguei lá e já não conhecia mais ninguém, fiquei quase como uma espécie mitológica, um homem tão antigo que ninguém mais me conhecia. Eu andei pelas ruas de Porto Alegre e já não sabia de mais nada, o que eu via era uma rua com nome de um amigo meu, a estátua com nome de outro amigo, a casa com nome, por exemplo, de Mario Quintana, que foi meu amigo, o busto do reitor que era meu amigo.

Importante ressaltar um aspecto da sua obra que eu gostaria que você comentasse que é o fato de seus personagens estarem em constante movimento, movimento este que não se restringe ao romance em foram criados, mas que extrapola os limites do livro, eles transitam de livro para livro. A sua ficção é como uma história a contar uma história muito maior que a dos próprios personagens.

Eles são nômades, meus personagens estão sempre em romaria, eles vão em romaria de livro a livro, eles vão em romaria no livro, porque eles são muito a minha visão de passageiro, de alguém que está de passagem e isso é uma idéia medieval, nós somos peregrinos no mundo. Mas é também uma idéia pampiana porque o homem do pampa é um homem solitário e solidário. Solitário porque aprendeu a ver o horizonte. O horizonte o compreende e ele compreende o horizonte, e é solidário porque na medida que ele é amigo ele é fiel, é um homem guerreiro, e o homem guerreiro nunca saiu da minha vida. Daí o meu lado épico, porque o gaúcho é naturalmente um ser épico, épico não no sentido da épica tradicional, que é ridícula, hoje não tem mais validade porque fala do mundo acabado e a minha épica fala do mundo que está se fazendo constantemente.

Sua épica dispensa os heróis.

Sim, porque o meu herói não é Ulisses, embora ele esteja, não são os heróis de Homero, não são os heróis de Virgilio, é o homem cotidiano, é o homem sem nome, que eu dou nome, são Jesualdo Montes, Miguel Pampa, que eu dou voz, são os esquecidos e se eu não der voz a eles, eles nunca terão voz, nunca terão rosto.

Embora toda essa característica social de sua obra, a preocupação com o homem do povo, muitos, posso dizer a maioria, o tem na conta de um homem ligado ao sistema, comprometido com o conservadorismo, um homem de direita no que isso possa ter de mais pejorativo. Alheio as causas sociais, um homem do poder. Por que tamanha discrepância? Você tem consciência disso?

Isso aí veio de uma grande conspiração de inveja, porque eles sabem da minha grandeza e é muito difícil suportar a grandeza alheia que é levada modesta, humildemente por uma pessoa que não se mostra pretensiosa, que não faz pose quando todos fazem pose, que é acadêmico por uma situação da vida, mas que nunca deixou a academia entrar na sua vida. A minha História da Literatura é um livro anti-acadêmico por natureza, os meus romances são anti-acadêmicos, a minha poesia é anti-acadêmica. Talvez por isso é que haja uma grande incompreensão da minha obra, porque eu fui um dos poetas brasileiros, dos raros, que se levantaram no tempo da ditadura com livros como Ave do mundo, Canga, O poço do calabouço. No tempo do sucessor de Salazar saiu a primeira edição de O poço do calabouço em Portugal, esgotou num mês, porque eu falava de liberdade e em Portugal a liberdade estava apagada, um livro que no Brasil tem várias edições porque muitos se encontraram dentro dele. Eu disse coisas que muitos quiseram que dissesse, mas não fui ao exílio, não fugi, eu fiquei aqui, eu testemunhei aqui, não me revesti de nenhum partido político, eu me revesti da condição humana.

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““

“Quando me referi a terra, não quis me ater apenas ao Rio Grande, mas a proximidade que seus personagens têm com a terra, o homem ligado a terra. Você nunca expulsou o homem da terra para colocá-lo num cenário idealizado, ascéptico, falso. E você faz isso, expõe a relação do homem com a terra desprovido de qualquer panfletarismo ou libelo socialista ou marxista, porém mantém o caráter social que no meu entender é um momento alto em sua obra. Como você consegue fazer isso?

Faço isso porque falo da terra que eu vivo, é a terra que está em mim, está na minha palavra, nos meus personagens, eu não conheço outra terra. Inclusive no Espírito Santo, onde morei, inventei lugares míticos n o s m e u s r o m a n c e s , p o r ex..Assombro...Assombro é o pampa, é o Riopampa. Há outros nomes que também eu criei, Lajedo dos Pardais, por exemplo, ou um outro lugar chamado Portal de Orvalho que aparece em A engenhosa Letícia do Pontal a também em O Poço dos Milagres. Isso é uma junção do Rio Grande com o Espírito Santo. Mas tem sempre o Rio Grande. Os meus personagens têm uma marca de e x i s t ê n c i a d o g a ú c h o , d o temperamento gaúcho. O gaúcho não é um homem muito levado ao humor, embora tenha humor. Eu tenho feito um esforço na minha criação para dar-lhe um certo senso de humor p o r q u e o r i o g r a n d e n s e é evidentemente um ser apaixonado e dramático e eu tento equilibrar e sobretudo em outro lado, o lado de pensar. Eu não concebo uma criação, tanto na poesia como na ficção e como na História da Literatura, sem pensar e aí o ponto que eu julgo muito deficiente. Os nossos escritores, em regra, não pensam, fabulam, às vezes extraordinariamente. Mas não pensam.

06

arquivo pessoal

CARLOS NEJAR

Eu sou um sobrevivente e o Rio Grande é o Rio Grande que trago comigo,esse não morre, esse continua na minha palavra. Não me interessa se souamado ou desamado, a esse pampa eu tenho amor, aos meus viventes eu tenho amor porque eles também me amam.

A minha História da Literatura é um livro anti- acadêmico por natureza, os meus romances sãoanti-acadêmicos, a minha poesia é anti-acadêmica.

Page 7: Jornal Vaia edição 24

No meu entender sua obra ainda não teve o reconhecimento merecido, isso tem alguma relação com sua saída do Rio Grande do Sul?

Por um lado sim, o gaúcho é muito bairrista e não perdoa os que saem do Rio Grande, embora o governador tenha me dado uma medalha como Embaixador do RS, mas eles não gostam das pessoas que deixam o Rio Grande, como se o Rio Grande não estivesse comigo. Está mais comigo até do que com eles. O Rio Grande que está comigo está tão comigo como está com meu filho.

Parece que para o gaúcho, gaúcho é aquele que está no Rio Grande.

Eu quando estava lá, existia uma grande figura que era o Mario Quintana, meu amigo, que tinha uma visão completamente oposta a minha. Havia então duas correntes, uma corrente de uma poesia mais social, que é a minha, e uma outra corrente, de uma poesia mais simbolista. Então houve uma divisão sem que eu quisesse, sem que Quintana quisesse, porque Quintana era um amigo meu particular, tem poema dedicado a mim, inclusive. Nós poetas não temos essas miudezas, mas no momento em que saí do Rio Grande, eu consegui e foi a única forma para conseguir entrar na ABL, e antes de me candidatar fui conversar com Quintana e ele disse: “Nejar, eu não vou mais me candidatar.” Se eu ficasse no Rio Grande eu jamais estaria na Academia porque eles teriam me esmagado. A minha saída deu a alguns, sobretudo os despeitados da província, uma raiva muito grande porque eu saí fora dos domínios deles. A pessoa sobrevive, não pela pose, não pelas fotos nos jornais, mas pela obra, pela palavra. Ninguém como poeta pintou o Rio Grande como eu, e mesmo na ficção, e respeito muito a ficção do Moacyr Scliar, mas ele fala muito dos imigrantes judeus, eu falo de um Rio Grande de sempre.

Você retrata muito bem o Rio Grande, no entanto isso não é levado em consideração. Hoje o retrato da literatura do RS é a autora da Casa das sete mulheres. Ela se tornou uma unanimidade com um livro cheio de problemas. Ela, queiramos ou não, hoje é a representante da literatura do RS. Lamentavelmente, mas é.

Não é não! Representante da literatura do RS é o Sergio Faraco, é o Moacyr Scliar, é um cronista como Luis Fernando Verissimo, o Luis Antonio de Assis Brasil, o Tabajara Ruas, ela é apenas uma romancista tradicional que foi bem usada pela mídia e mais nada. A criação tem os seus sortilégios e só os que os conhecem é que sobrevivem, não adiante se falar sobre a arte de voar, é preciso voar. Se a minha linguagem não voasse, se os meus Viventes não fossem vivos não adiantaria nada eu defendê-los e não adiantaria nada dizer que a minha linguagem está voando se ninguém a vê voar. Agora, quando alguém me lê percebe que a minha linguagem voa.

A diversificação da sua obra, da poesia ao romance passando pelo ensaio e agora a nova investida História da Literatura Brasileira, isso atrapalha a sua apreensão pelo leitor. Afinal, quem é Carlos Nejar?

Isso dificulta porque ninguém consegue ver o todo, alguns me vêem como poeta e como poeta não me vêem numa posição abrangente como deveriam ver. Ou vêem o lado social ou vêem o lado metafísico ou o lado amoroso, as pessoas tendem sempre a rotular e eu sou irrotulável porque eu sou um ser vivo na palavra. Então o meu romance é completamente novo, eu tenho consciência disso, se fosse déja-vu seria altamente louvado, mas como é inventivo inovador precisa ser aos poucos descobertos. Ele está sendo descoberto. Aos poucos surge uma testemunha aqui outra ali a dizer “esse seu livro me ajudou a viver.” Por exemplo: Carta aos loucos. Eu tive na minha vida uma cena, a mais comovente, eu estava entre professores na PUC em Porto Alegre, mais de 500 pessoas entre alunos e professores, e eu estava lançando Carta aos loucos. De repente se levantou um homem imenso com Carta aos loucos na mão e tentou falar e não conseguiu, então começou a chorar feito uma criança, quando ele conseguiu falar houve um silêncio total de respeito, era um uruguaio. Ele disse: “eu conheço todos os latino-americanos, conheço Onetti, é meu amigo Onetti, mas o seu livro me ajudou a viver. Eu telefonei outro dia para a organizadora de uma coleção infanto-juvenil da editora Global e ela disse: “eu já lhe conheço”, perguntei por quê? “O senhor é o autor de Carta aos loucos, esse livro mudou a minha vida. Um companheiro meu viu num ônibus uma moça lendo Carta aos loucos e chorando, depois veio me dizer. Então, eu tenho recebido manifestações de um ,de outro, eu não tenho a mídia organizada. Estou vindo ao Rio exatamente para que me torne mais visível porque eu andei praticamente quinze anos no exílio dentro do país. Eu publicando livros e os suple-mentos literários praticamente me desconhecendo salvo um ou outro que escrevia um artigo importante ou caía na mão de um jovem despreparado que só dizia bobagens a respeito do meu texto. Tenho consciência da transformação que estou trazendo e digo na maior humildade, porque eu estou na raiz da nova poesia brasileira. Eu começo a ver poetas por aí, eu sei que estou na raiz e quem está na raiz estará no cimo.

E essa sua investida pela História da Literatura Brasileira – Da carta de Pero Vaz de Caminha à contem-poraneidade?

Comecei esse projeto antes do ano 2000 e desde então trabalho nesse projeto de fazer uma história da literatura que não seja uma história professoral, que seja algo de um criador diante dos criadores, que tenha o meu pensamento vendo o pensamento dos outros e que tenha abrangência, dizendo a verdade sobre muitos, alguns medalhões que não merecem a glória que têm mas que a mídia endeusou e outros esquecidos que eu quero trazer à luz. Então esse livro é um livro de justiça porque não estou ligado a grupos. Até os meus colegas acadêmicos podem estar desagradados com algumas criticas que faço. Não me importo.

E agora, o que vem, poesia, prosa...

Eu tenho um livro de sonetos chamado Inquilino da Urca que eu escrevi na época em que estava aqui e depois eu refiz, aliás, teci novos sonetos depois dessa minha volta para cá e esse livro vai sair muito breve. Tem um posfácio do Miguel Sanches Neto e são sonetos em chamas porque eu pego a arte do soneto e levo até o último paroxismo. O que eu chamo “o delírio da razão.”

Você tem livros traduzidos?

Tenho livros que saem em Portugal , tenho traduções nos Estados Unidos, Alemanha, França. É uma coisa curiosa , sabe, o Austregésilo de Athayde um dia fez uma reunião de tradutores de escritores brasileiros e ali ele percebeu estranhamente que eu era o autor mais citado pelos tradutores, e ele não me conhecia. Ele se perguntou como um poeta tão reconhecido no exterior, aqui no Brasil nem é mencionado. Então ele quis me conhecer. Foi quando entrei para a ABL. Ele lutou por mim, escreveu um artigo luminoso a meu respeito. Ele era um grande homem, tinha uma visão incrível do futuro. Um dos poucos grandes homens que eu conheci. Então, no exterior, Itália, França, Portugal, eu sou muito mais reconhecido do que no Brasil. E esse pessoal pode ter uma grande surpresa...uma grande surpresa! Porque na medida em que às vezes tentam sufocar os valores eles preparam mais glória ainda.

Mas a tendência atual é sufocar os valores, o que vale é o que está na superfície, brevemente chegaremos a valorizar a matéria que bóia, a que não afunda.

Sabe por quê? Com exceções, há uma mídia despreparada, não está a altura da literatura, não têm cu l tu ra nenhuma , há um desconhecimento total de literatura e funciona por baixo do pano a influência das grandes editoras. De repente eles lançam um autor como se fosse algo extraordinário e não tem nada de extraordinário.

Voltando a sua História da Literatura, com ela fosse coloca os pingos nos is, procura fazer justiça e por isso compra algumas brigas.

Viver é comprar briga, mas não estou preocupado com isso. Eu posso ser amigo de Plauto mas eu sou mais amigo da verdade e eu digo no início da minha História da Literatura: “não é o poeta que inventa a verdade, é a verdade que inventa o poeta.” Eu sou poeta porque eu fui inventado pela verdade. É o contrário da posição do Mario Quintana que diz que o poeta é o inventor da verdade, eu não creio nisso. É a verdade que inventa o poeta e é a verdade que faz com que eu escreva uma História da Literatura desde os primórdios até a fundação de Brasília dando uma validade e um juízo de valor a respeito de cada um, onde passa Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, João Cabral, Ledo Ivo e outros.

Há coisas que eu digo que não agradam, mas não escrevi para agradar ninguém, eu digo isso bem no início do meu prefácio, eu digo que “não há fixação de gêneros, com sua clárida ruptura (poesia, ensaio, romance, teatro), o que existe é a habitação da linguagem.” É a linguagem que determina o gênero e não o gênero que determina a linguagem. A partir desse pólo eu trabalho toda história da litera-tura. Ninguém tratou disso antes porque trataram sempre de gênero. É a linguagem que domina, é a linguagem que vige no romance, é a linguagem que vige na poesia, é a linguagem que vige no ensaio.Se o ensaísta não habita a linguagem, não faz brilhar a linguagem, não é um bom ensaísta. Tenho visto também um outro aspecto, com exceções, as histórias da literatura são muito mal escritas, são burocráticas, têm um tom professoral, fazem apenas uma pequena referência sobre alguns autores, não são capazes de aprofundar. Eu tento aprofundar.

Nesse período que você aborda, deixou muita gente de fora, estabeleceu o seu juízo?

O que eu deixei de fora são autores que eu julgo menores, não fiz constar porque toda história da literatura é sempre uma antologia pessoal.

Você lembra algum que tenha deixado de fora?

Há um autor do RS, por exemplo, que o Ledo Ivo me perguntou porque não o havia incluído, segundo o Ledo ele era tão importante! Eu lembro de um livro dele “Cadeiras na calçada”, mas para mim, um cronista menor. Não vou citar outros. Os que incluí na História da Literatura são os que eu julgo importantes, ou pelo momento histórico, ou pela obra que criaram, ou pelo movimento que participaram. Eu dei por exemplo visibilidade a Eduardo Guimarães, dentro do simbolismo, é extraordinário e esquecido, autor de Divina Quimera, Alceu Vamosy que ficou restrito ao RS e tento dar um espaço bem maior, contistas como Samuel Rawet, dou validade a um Campos de Carvalho, que quase ninguém fala e é um extraordinário ficcionista, dei validade a Lila Ripoll, a um poeta que ninguém mencionou, uma rapaz novo que se suicidou grande lírico, ligado literariamente a Lila Ripoll, Nilson Bertoline, totalmente esquecido no RS e eu casualmente tenho seu único livro, “Poemas”. Tem poemas maravilhosos como Canto do Suicida , que diz assim: “Meu coração está de luto./ Meu coração está de treva./Ventos roubam-me pássaros da mão./ Onde meus gestos estarão?/ No riso da minha boca,/ ou no rosto dos afogados?/ Onde meus gestos estarão?// Meu coração está de luto?/ Meu coração está de treva?/ A noite é fria?/ A água é fria?/ Quem vestirá minha túnica vazia?”Eu trouxe a baila também Heitor Saldanha que foi muito apagado pela figura do Mario Quintana, os dois mais ou menos eram comparáveis em idade e o Heitor Saldanha tinha uma visão das minas de carvão, uma visão dolorosa, trágica da existência e à sombra de Mario Quintana passou esquecido. Eu valorizo esse poeta e dou uma visão diferente a Viana Moog, também Adonias Filho que foi esquecido em virtude de seu posicionamento político, quando o pessoal duvidou que na época da ditadura, embora fosse ligado aos militares, protegeu os escritores.

07

CONTINUA>>>

””Não é o poeta que inventa a verdade, é a verdade que inventa o poeta.

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Assim como Ferreira Gullar foi valorizado pela política, Adonias Filho, que é um grande artista do romance, foi apagado pela política. Então é preciso colocar cada coisa em seu lugar. Eu digo, por exemplo, que Poema Sujo não é o melhor livro do poeta Gullar, é o mais badalado politicamente, mas para mim o melhor livro dele é Dentro da Noite Veloz e aquele livro sobre os galos, eu faço um juízo de valor que pode não agradar ou a gregos ou a troianos, não importa, eu faço esse trabalho com grande impassibilidade, com uma visão do tempo, olhando o horizonte, olhando a coisa estética, olhando a técnica do romance, olhando a arte poética e verificando onde estão os andaimes, os rebocos, o que não é poesia, por exemplo, os truques.

A sua História da Literatura foge a burocracia, o lugar comum, ela provoca a curiosidade do leitor.Você faz literatura ao contar a História. Imprescindível, no meu entender, a todos que gostam de literatura. E sobretudo àqueles que não se submetem ao que lhe é imposto por grupelhos donos da verdade.

Nem sempre o texto vivo é o que sobra do que se tirou. E às vezes o que se tirou é o que estava mais vivo. Todavia, como não se sabe, freqüentemente, o que foi tirado. Julga-se o que existe. E o que ele corta - é cada vez mais - a memória . A memória que está nas palavras e as palavras que estão na memória. O que existe, entretanto, é exemplar, imperioso, durável. Pode ter faltado ao amoroso leitor tudo o que não conheceu. Mas o que está fora não é do mundo. E o que está dentro, já se acordou de realidade. ”

Eu ouvi de Tarso Genro, e isso me tocou muito, que eu tinha feito literatura com literatura. Matéria viva. Olha o que eu digo do Dalton Trevisan, que eu considero o maior contista brasileiro, lógico. “O que parece virtude pode ser problema. Mesmo que ocupe a importância de destino. É a faca só lâmina: de tanto cortar o reboco, corta o núcleo da invenção. De tanto diminuir, diminui-se. Arrancando réstias, às vezes, do melhor.

não é lâmpada? 'Vida é uma coisa de forma' (Joseph Conrad), forma é também coisa vivida. Clarice afirmou que ‘Lygia corria o risco de ter a realidade’. Mas Lygia não tem a realidade, por ser ela que a demove. E qual a realidade que nos vai sonhando, se ela gosta de cortar o tempo e o tempo gosta de cortar seu texto, seguindo, após, na outra fatia, sendo muitas vezes sua palavra 'o som do silêncio'? E é ali exatamente que o tempo se esconde. Ou a capacidade da autora de se esconder nele.”

Lygia fez algum comentário?

Não. O problema é que eu disse o que eu acho.

Mas você diz com tanta arte, tanta delicadeza, um lirismo critico que não tem como se sentir ofendida ou desprestigiada.

Eu, por exemplo, escrevi sobre Ledo Ivo, escrevi coisas que elogiam e criticas duras; Ledo disse que para ele era um livro novo na literatura, mas ficou com meu livro para apresentar na Academia e não apresentou. Deixou que o tempo se escoasse sem apresentar, donde se depreende que ele não gostou das criticas que eu fiz, como ele me disse que gostou. Mas isso é uma coisa natural, eu não escrevi para agradá-lo. Eu falo aqui de Murilo Mendes: “A desestruturação nos poemas anteriores de Murilo Mendes, ao abraçar o Surrealismo, com imagens esvoaçantes para fora do texto, com vida própria, achou sua estruturação veemente e generosa em Tempo espanhol, com a perícia de amalgamar palavras como peixes todos no mesmo aquário verbal. Sim, cada poema tem a ferrenha espessura

O seu livro tem uma característica que o torna único, superior, você fala de literatura com conhecimento de causa, erudição, mas sem perder a emoção jamais.Verifica aqui, minha colega de Academia, Lygia Fagundes Telles, eu digo: “E a invenção pode ser sol aceso. É que Lygia, criando, distingue-se mais pela intensidade dos sentimentos, das sensações que lhes perpassam os contos, do que pela percepção deles, no que é inconsciente. Seria essa inconsciência, lucidez? Salvo se for lâmpada posta ao avesso. E ao avesso,

E na sua mutação, em Convergência (1963 – 1966) , assume a síntese do seu 'organizado diamante', com os grafitos e os murilogramas, verdadeiros epitáfios de toda uma cultura, arte e invenção, sobre a pedra votiva do tempo.” E aí eu critico e digo que ele só se tornou o grande Murilo Mendes quando ele foi influenciado por João Cabral de Melo Neto, porque antes os poemas eram como pandorgas , as imagens esvoaçavam. Um poema tem que ter estrutura, precisa existir como poema.

Então seu próximo livro será o livro de sonetos...

O próximo livro é Inquilino da Urca, são sonetos feitos sob a influência da Urca onde eu vivi e voltei a viver.

O vento não sossega nesta CasaE me conhece pelo nome quandoMe sento na varanda e ressoando,Nomeia cada coisa sob as asas. E digo ao vento, quanto mais se atrasa, Que ali o tempo investe , devaneando .E o amor se vai sozinho longo e brandoE sozinha se move a luz das brasas.

Não, Vento, companheiro, já tão cedoTe derramas sem morte e sem degredo,Enquanto o peso do meu corpo absorve

Esta largueza toda que se deita.E se nomeado estou, Vento me cobre,Carrega-me contigo, enquanto ventas.

(Carlos Nejar - “Inquilino da Urca”)

da pedra, a substância mineral da alma. E do tom, em regra, atonal, visionário, passou para o ritmo do cantochão das grandes catedrais medievais, conseguindo desdobrar a poesia em 'planos múltiplos'.

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de frutos amargos. Pelas suas raízes trafega a seiva extraída de um terreno ácido, pleno de pedregulhos dourados também conhecidos como ouro dos tolos. É a árvore da solidariedade, ou melhor, a árvore da solidariedade dos tolos. Aquela cujos frutos estéreis exibem sua pieguice sob a luz da hipocrisia, não possuem o germe da reciprocidade, híbridos de cinismo e culpa.A genuína árvore da solidariedade dança com os ventos, suas raízes estão vinculadas à construção de uma sociedade justa, seus frutos espalham as sementes de reciprocidade e ética. A solidariedade exige um terreno simples, pois sendo óbvia dispensa ações grandiloqüentes, que na verdade não passam de tentativas de espiar culpas ou contundentes atestados de inoperância. Não existe parentesco com a travestida aberração, solidariedade das tvs, dos jornais e das campanhas demagógicas patrocinadas por autoridades omissas. A falsa solidariedade, ou a solidariedade glamourosa, aprecia ações terroristas, catástrofes, secas, enchentes e câmeras de tv, feito uma bola de gás não tarda a murchar. Descompromissada com o amanhã a solidariedade glamourosa não cria vínculos. Imediatista ou midiática, não tem olhos para o futuro, importa o agora e da sorte futura espera apenas os dividendos políticos.Tal como é apresentada não pode granjear crédito essa tal solidariedade e a confusão se estabelece cada vez mais sórdida, senão vejamos: o mendigo que habita as ruas precisa de solidariedade ou de mudanças sociais, os favelados que vivem sobre tubulações de gás precisam de solidariedade ou da ação dos governantes? Mas quando tudo explodir o fe rece remos nossa so l i da r i edade aos sobreviventes e nossas culpas escoarão pelo ralo do individualismo. Mas o que fazer? Ser ético em todas as instâncias é a maior e mais eficiente forma de solidariedade e se isso soar um tanto abstrato, experimente doar sangue. Mas, estejam certos, apartados da ética nos colocamos diante da mais refinada demagogia.

o alto da colina, exposta aos ventos loucos, debate-se uma árvore branca carregada

A editora EDIOURO lançou pelo selo Relume Dumará a História da Literatura Brasileira – Da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade. Diz Carlos Nejar na introdução: “Não existe imparcialidade, existe julgamento onde os fatores internos ou externos influem, ou vice-versa.” Mesmo assim o leitor testemunhará um trabalho onde solidariedade e ética não se desvinculam nunca. O autor solidário com a literatura faz um ajuste de contas onde não deixa de ser severo com seus pares e prova que ética e corporativismo não são vinhos da mesma pipa. Caberá ao leitor atento, ao longo das 565 páginas, observar a fidelidade do autor a essa afirmação. História da Literatura Brasileira é uma prateleira onde impera a diversidade, para sorte dos leitores. Temos de José Veríssimo a Nelson Werneck Sodré, sem esquecer da Breve História da Literatura Brasileira, Erico Verissimo e a subestimada, porém elogiável, História da Literatura Brasileira: do descobrimento aos dias atuais, de Luciana Stegagno Picchio. Ainda temos Bosi, Merquior, Massaud Moisés, entre outros. Surge agora o trabalho, bastante diferenciado, do poeta, romancista, ensaísta e historiador Carlos Nejar. Mas onde residiria a originalidade do trabalho de Nejar? Em vários pontos, mas vamos nos ater a alguns, os mais evidentes. A começar pela ausência do didatismo, do tom professoral, é o trabalho de um criador diante de criadores. Questiona a notoriedade de determinados escritores incensados por imprensa e Academia e recupera escritores de qualidade que habitam a margem. Percebe-se a preocupação do autor em restabelecer a ordem, fazer justiça, recuperar a verdade. História da Literatura – Da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade abarca os primórdios da literatura até a fundação de Brasília, onde Carlos Nejar dá validade e estabelece um juízo de valor a respeito de cada escritor, segundo sua ótica, merecedor de fazer parte dessa história.

Mas a grande estrela dessa História da Literatura não é escritor A ou B, muito menos este ou aquele gênero e sim a linguagem. A linguagem determinando o gênero, nunca o contrário. A partir daí Nejar trabalha a História da Literatura e esse aspecto empresta a originalidade que indagamos no começo deste texto. Por esse ângulo nossa literatura ainda não havia sido examinada. As demais histórias da literatura se ocupam dos gêneros, enquanto Nejar percebe que a linguagem é que é fator predominante tanto no romance como na poesia ou no ensaio. Desse modo o autor evita o tom burocrático onde imperam simples referências despidas de qualquer aprofundamento. Diz Nejar: “Toda História da Literatura é sempre uma antologia pessoal” e segue a risca o mandamento, cita quem julga importante, ou pelo momento histórico, ou pela obra, ou pelo movimento de que participava. História da Literatura é a visão do artista sobre o tempo, onde ele olha o horizonte, a estética, a técnica, a arte poética, denuncia os truques e provoca a curiosidade do leitor. O autor, talentoso poeta e romancista, faz literatura ao narrar a História da Literatura.Recupera autores esquecidos como o simbolista Eduardo Guimarães, Alceu Vamosy - segundo Nejar mais parnasiano que simbolista - apresenta Campos de Carvalho e Murilo Rubião de maneira a compensar qua lquer esquec imento , configurando um dos pontos mais altos desse trabalho. Traz ao conhecimento do leitor o poeta gaúcho Carlos Heitor Saldanha, relegado a um segundo plano devido à notoriedade de Mario Quintana, chama atenção para o romance-ensaio de Viana Moog, faz justiça ao paraibano, poeta do Maranhão, José Chagas. Ao mencionar Ledo Ivo, Nejar tece críticas sensatas, justas - um tanto tardias - a esse acadêmico dono da lira mais insossa a assolar nossas letras. Nejar não levou em conta o fato de se tratar de um colega de ABL e lança seu olhar crítico sobre esse supervalorizado poeta médio.

Quando fala de Ferreira Gullar, Nejar nada contra a corrente que tece loas ao Poema Sujo e elege Dentro da Noite Veloz como o melhor livro do poeta maranhense. Mas nada acontece assim de forma breve, o autor fundamenta cada juízo, cada escolha. Faz ressalvas à obra de Lygia Fagundes Teles e Dalton Trevisan, entre outros, e afirma que Murilo Mendes só foi grande quando influenciado por João Cabral de Melo Neto. Importante ressaltar essa característica da História da Literatura de Carlos Nejar: a presença da opinião, do ponto de vista de quem está dentro desse tempo, de quem colaborou para a construção desse tempo. Desse modo o autor consegue avaliar o peso da parte que lhe tocou e certas filigranas que alguns colegas utilizaram e hoje se vangloriam da luxuosa colaboração. Colaboração no mais das vezes supervalorizada por nós, jornalistas, supostos conhecedores e críticos das obras e do tempo. Carlos Nejar dá justos puxões de orelha em muitos de seus colegas, mas o maior, a palmada mais dolorida coube a nós, os críticos, os que deveriam separar o joio do trigo. E separamos, geralmente preferimos o joio. Infelizmente para a literatura que Nejar respeita e homenageia de forma ainda não vista por estas plagas. “Não existe imparcialidade: existe julgamento onde os fatores internos ou externos influem, ou vice-versa.” Mas que fatores levaram Carlos Nejar a cometer um único deslize em sua História da Literatura Brasileira ao incluir como poeta merecedor de tal distinção o inquestionável jurista Ives Gandra da Silva Martins?Deslize único à parte, Carlos Nejar oferece ao leitor uma obra onde coloca a crítica da literatura e a própria literatura num patamar muito superior. No presente volume o autor abordou nossa literatura desde a carta famosa até o período da construção de Brasília. Aguardemos, pois, o segundo volume. E que não tarde.

História da Literatura Brasileira

Luíz Horácio

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estivesse a sua permanência. E está, por ser matéria condensada, guardando as melhores porções nos pequenos potes de alma. Eduardo Portella denomina sua ficção de realismo imaginário; Ronaldes de Mello e Souza observa que nela “não e x i s t e , d e u m l a d o , a excepcionalidade do fantástico e, de outro, a normalidade do real”. Eu julgo que a ela deve ser englobada a frase de Quevedo: “Nada me assombra. O mundo me enfeitiçou.” Sim, está enfeitiçada pelo mistério do mundo, pelo obscuro das relações humanas e das coisas, está encantada de seu própr io encantamento, porque na sua palavra se fascina e se perde e se inebria, porque sabe que tudo se desgasta e sabe também que a vida s e c o m p r a z e m e s p a n t a r , inclinando-se pela inversão do fantástico, para que se reflita, narcisamente nas interiores águas, por mais fulgurantes que sejam. E simultaneamente, aderna-se na inversão do real, para que não dissipe a beleza da sombra. Cria, assim, dentro da criação: bicho-da-seda de sua própria obsessão. Aliás, são as obsessões que marcam os grandes criadores. E a da morte é constante, perdulária. O amor é trânsito, o tempo é antes e depois.

Lygia Fagundes Telles é naturalmente contista, embora tenha enveredado com sucesso pelo roman-ce, vincando sua presen-ça, magnificamente, em nossas letras, mormente em criação de persona-gens femininas, tanto em Verão no aquário, Ciranda de pedra, As meninas (ressonância de Rachel de Queiroz nas Três Marias?) e As horas nuas (nesse úl-timo, sobressai a criação de um gato, antológica).Os contos, aos poucos, vão-se tornando mais sim-ples, intensos, humanos, como se na abreviação

Lygia é machadiana, tchecoviana. Mantém-se fluida, levíssima, tênue como a teia que engendra para a entrada nos paços reais das imaginações. A caça é o caçador, e o caçador, a caça. De acordo com o rodar da fortuna. O destino é cego como Homero, mas não é Homero. E o impossível só é possível por um trabalho lento de realidade no irreal, outras vezes do irreal na realidade. É sintomático ser um dos seus mais famosos contos – “Antes do baile verde” – o que concretiza a existência como a passagem de um baile, que é a nascente, e o seu término (rolando pela escada as lantejoulas), a foz. Sintomática também é a tapeçaria mil-e-uma-noite-da-linguagem; vive-se enquanto a fala é linguagem – Chererezade?) de A caçada, bem com o jardim, que é selvagem. Pois sua ambiência é a neblina do instante, a cintilância do instante, porque ele jamais se civiliza, isto é, sempre foge, atordoa, resvala. Essas mitologias no tempo que a nutrem são a oposição intérmina de luz e sombra. A partir disso, gera um completar fantástico do mundo, sua palavra. Mundo insólito dentro de outro, absurdamente objetivo. Tanto que vai deixando esvair-se pela fresta do sonho, no ilimitado, o duríssimo, sofrido limite. “Seu amasse, se tu amasses, como nos amaríamos.”

(páginas 467/467)

O ESPÍRITO NÃO TEM ACASO, porém não deixa de engendrar suas curiosidades. E uma delas foi o nascimento em Engenho Pau d'Arco, na Paraíba, em 1884, de Augusto dos Anjos, misantropo e da família dos grandes solitários, com vida intensa e breve (não passou dos trinta anos). Um poeta que cursou a Faculdade de Direito de Recife, morou no Rio – de 1910 a 1914 – com mulher e dois filhos, simples professor do Ginásio Nacional e da Escola Normal, publicando um só livro, por sinal expressionista, segundo Merquior, fora do contexto simbolista – Eu e outras poesias -, ajudado economicamente por seu irmão Odilon, o Téo deste Van Gogh da poesia brasileira, que trouxe uma voz nova, porque tinha esta coisa rara chamada gênio, com uma dimensão de realidade desconhecida entre nós. Onírico e escatológico, grotesco e maravilhoso, misturando o cientificismo e a filosofia, rigoroso acabamento formal, entre a lucidez desavisada e o espectro da loucura. Possuía nos versos talvez o mesmo sol desvairado de Van Gogh nas telas, com seus corvos. E o fascínio todo é de dentro: de sua existência ardendo. Sim, a criação desesperada de Augusto dos Anjos, se pelo exacerbar, é a de um tardio romântico, pelo inusitado entranhamento, deixa entrever sombrio surrealismo. E muda o pólo: saindo do poema para a poesia(...) Não, não se pode deixar de trans-crever este poema magnífico nas soluções e na plasticidade:

Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo em direção à casa do Agra,/ Assombrado com a minha sombra magra,/ Pensava no Destino, e tinha medo!/ Na austera abóbada alta o fósforo alvo/ Das estrelas luzia... O calçamento/ Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,/ Copiava a polidez de um crânio calvo./ Lembro-me bem. A ponta era comprida,/ E a minha sombra enorme enchia a ponte,/ Como uma pele de rinoceronte/ Estendida por toda a minha vida!

É um longo e poderoso texto, dos mais alucinantes da língua. Por ter o poeta a ciência divinatória de reduzir, até o chumboso, o tétrico, o lacerante, adjetivos esdrúxulos, cacofônicos (“rijo, atro e vidrento”), o desútil, o desprezível, o pária-vocábulo em altíssima poesia.

Alquimia? Febre? Não apenas. Mas o sol queimando a tela do poema, a escrita mais demente – que nem o poeta controla. Porque é dominado, elevando-se com asas inevitáveis. “O poeta”, dizia Jean Cocteau, “é o escravo de uma força que o habita, mas que ele desconhece. Tem apenas que ajudar essa forma a tomar forma.” (...)

Sobrepaira uma história – quase lenda, relatada por Hélio Pólvora e Soares Feitosa – que “A árvore da serra”, soneto de Augusto, brotou da paixão por uma jovem retirante, e a família do poeta, proprietária de engenho de açúcar, não havia permitido essa relação. Teria a mãe de Augusto, autoritária (inclusive sobre o marido, a favor do filho), determinado uma surra na moça, que, grávida, morreu.

Assim, a interpretação de tal soneto não seria ecológica, mas, simplesmente, transposição desse drama. A árvore cortada seria a amada do poeta, que, abraçado ao tronco, “nunca mais se levantou da terra”.

A cada mês a curadoria dessa seção estará a cargo de um escritor ou jornalista. Urariano assume o espaço na estréia, escolhendo autores de sua predileção e selecionando textos de cada um deles. Confira aqui uns trechos da seção e, no site do Vaia, a íntegra da Curadoria.

“No meu entender, quem seleciona comete injustiças. Tanto entre os escolhidos quanto entre os deixados à margem. Para desculpar os meus erros, direi logo que me vi obrigado a cometer pequenas violências. A primeira delas foi relacionar apenas textos que estivessem à disposição na internet. A segunda foi relacionar apenas autores brasileiros, e com isso, por força de tal método rígido, deixei fora esse gênio de todos os tempos, meu mui amado Andersen.A terceira foi o tempo, o exíguo tempo, o meu a esta altura único capital. Passei um dia e meio para relacionar os escolhidos (e com isso, tive uma desculpa ética para não encarar o meu próprio livro). A última, e maior, e mais cretina, foi incluir um texto meu entre os que recomendo. Para encurtar rápido, vamos aos textos. Em ordem alfabética:”

ALBERTO DA CUNHA MELO, o poeta maior de quem fui amigo, falecido no fim de 2007. Dele escolhi “Oração pelo poema”, belíssima criação. www.plataforma.paraapoesia.nom.br/albertora2004.htm

NEI DUCLÓS. Atenção, gaúchos, atenção, brasileiros. Esse é um dos melhores cronistas do Brasil. Um poeta dos maiores em muitas crônicas. “É de trem que eu preciso”, www.consciencia.org/neiduclos/Article194.html

PEDRO J. BONDACZUK. É um escritor cujo maior segredo é escrever simples, como se isso fosse muito fácil. Tentem e sintam o quanto é difícil. Crônica luminosa em “Trigal dourado”. www.planetanews.com/news/2007/10554

RAIMUNDO CARRERO, escritor premiado nacionalmente. Bom escritor, bom caráter, um guerreiro das letras. Escolhi “Os deliciosos peitinhos murchos”. www.raimundocarrero.com.br/contos_pt.php?PHPSESSID=tabdq8dgp642gmmg3efspanan7&p=id&v=24

RISOMAR FASANARO. Escritora cuja sensibi-lidade funda eu “descobri”. Divido com todos vocês. “Saída do Recife”. www.ubaweb.com/revista/g_mascara.php?grc=19473

URARIANO MOTA. “De roubos, furtos e moral”. www.revistaforum.com.br/sitefinal/ColunistasIntegra.asp?id_artigo=1521

VALMIR JORDÃO, poeta “marginal”, de humor crítico, corrosivo. “Justiça Total”. www.interpoetica.com/valmir_jordao.htm

Escritor, jornalista. Natural do Recife desde 1950. Publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e demais publicações alternativas, na época da ditadura. Na Ficção, número especial de humor, número 16, de abril de 1977, teve a sorte de ter um conto publicado ao lado de Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Mário Quintana, José Cândido de Carvalho. Tem contos, crônicas e artigos publicados em lugares que vão da Europa ao Brasil. No Brasil, é colunista do Direto da Redação, Comunique-se e publica contos e crônicas no Caderno Literário.

3 poemas de Valmir Jordão:

Metafísico Ao Lara

Na saída dum chato,é que percebe-se a presença de espírito

Do incômodo

O amor da gentenão sentea nossa dorde dente.

Justiça Total

Coca para os ricosCola para os pobresCoca-cola é isso aí!

AB I RO HA F R ANO C

nauguramos no www.artistasgauchos.com/vaiaa seção Curadoria Literária com o escritor Urariano Mota*.

Trechos da História da Literatura Brasileira

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História da Lite-ratura Brasileira - Da carta de Pero Vaz de Caminhaà contemporanei-dade (Ed. RelumeDumar á, 2007),5 6 8 p á g i n a s ,R$ 59,90.

A singularidade: Augusto dos Anjos(páginas 141/143)

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Depois, comecei a ser convidado para falar de minha experiência de vida. Não queriam reflexões mais profundas, apenas narrativas autobiográficas, réplicas de meus livros. Poucos desejam ouvir a leitura de nossos textos, o que seria muito melhor para todos, a maioria espera por uma história qualquer contada por um velho narrador. E eu, nem tão velho assim, me tornei este tipo de narrador. Valeu-me, neste novo ramo, a lembrança das histórias de minha avó paterna e por minha mãe.

Minha avó relatava fatos sobre pessoas mortas havia décadas como se a conhecêssemos. Isso fazia com que elas tivessem uma presença viva em nossa infância. O segredo de uma narrativa é este poder de presentificação. O personagem deve se materializar para os ouvintes-leitores. Dona Carmen Escobar não nos explicava quem era fulano ou beltrano,

Foi com estas e outras heranças do universo literário da oralidade que me fiz primeiro ficcionista e agora mascate de mim mesmo. Contrariando os prognósticos mais pessimistas, acabei um vendedor. Não um grande vendedor, mas um mascatinho, que vai de porta em porta oferecendo sua mercadoria suspeita, de origem pobre e material ordinário. Qual é meu produto? Minha vidinha de ex-menino pobre, de leitor nascido numa família ágrafa e rural, de escritorzinho provinciano que não sabe usar direito os talheres, de discípulo irritadiço de grandes nomes da literatura etc. Produto não apenas precário como também inflacionado. Esta é a regra da atividade do mascate. Multiplicar por 3 ou por 4 o valor do produto, para obter lucro.

Este multiplicar é o componente ficcional da narrativa, é sua contribuição literária para o material r e co lh ido nas expe r i ênc i as , é a mentira agregada à base vivida. Entre meus amigos mais íntimos – sim, eu os tenho! – e meus familiares, é notória minha compulsão para o exagero. Um episódio qualquer, que seria esquecido por quem não tivesse este desvio de comportamento, transforma-se em algo luminoso para mim. Mantenho a essência do fato, mas faço ajustes, modifico um pouco as palavras, agrego elementos novos, geralmente inventados, e aquela coisa tão ordinária ganha algum brilho. Brilho de bijuteria, é bem verdade, mas com uma pequena capacidade de sedução.

Eu edito ficcionalmente a vida. Faço dela uma narrativa. E assim já nem sei o que de fato vivi em carne e osso (e também em gordura, ai de mim!) e o que vivenciei em sonho. Minha vida pregressa é hoje um constructo, um material obtido artificialmente.

Não obstante este grau elevado de mentira que há no que conto e no que escrevo, persiste uma dolorosa verdade. E é este fundo verdadeiro que me salva de ser apenas um mitificador barato – aliás, tenho cada vez cobrado mais caro para dar estas palestras. E o que me assusta é que as pessoas (aquelas que me amam) mesmo assim querem me ouvir. Leram meus livros, mas precisam da dose adicional deste veneno que é a história-do-menino-pobre-que-se-tornou-escritor. No caso, eu mesmo. Ou ele, o outro – múltiplo de mim.

palavra mascate foi muito comum em meu vocabulário infantil. Víamos os turcos (qualquer árabe), munidos com suas malas mágicas, percorrendo a pé os sít ios para vender roupas e quinquilharias. Muitos deles se estabeleceram no comércio, abrindo casas importantes na cidade. A obstinação desses homens em colocar o seu produto sempre foi uma coisa que admirei, embora não tenha tido sucesso, para desespero de meu padrasto, nas tentativas de vender salgadinhos, galinhas e frutas. Meu ramo não era o comércio, concluí, talvez meio precipitadamente, e p r o c u r e i o u t r a s f o r m a s d e sobrevivência.

Olho agora no dicionário a origem da palavra. Mascate é um topônimo: cidade da Arábia, de onde vieram comerciantes árabes no século XVII. Designa por extensão o mulato, o mestiço. E tem na nossa cultura uma conotação pejorativa. Da minha parte, se é que eu tenho parte em alguma coisa, sempre guardei um respeito muito grande pelos mascates, verdadeiros heróis civilizadores dos sertões brasileiros. Este respeito talvez se desse por eu ter me frustrado numa atividade muito similar, em que meu desempenho foi negado por todos:– Esse rapazinho não serve mesmo para o comércio.

Vivi de outras coisas até uns 5 anos atrás. Mas com a publicação de meus livros de ficção, sempre de natureza autobiográfica, velada ou explícita, tenho sido chamado para palestras. No início, os assuntos erammais técnicos, temas da área de literatura, na qual tenho uma formação meio obscurantista, com idéias polêmicas, que sempre me trazem novos desafetos mas também algumas adesões apaixonadas.

Mascate de mim mesmo

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Ou me amam ou meodeiam. Ou fervendoou gelado. Tenho es-ta sina de despertar posturas extremistas.

Depois, comecei a ser convidado para fa-lar de minha experiên-cia de vida. Não que-riam reflexões mais profundas, apenas narrativas autobiográ-ficas, réplicas de meuslivros. Poucos dese-jam ouvir a leitura denossos textos, o queseria muito melhor pa-ra todos, a maioria es-pera por uma históriaqualquer contada por um velho narrador.

Já minha mãe, quesempre foi uma grande contadora de histórias, abusa dos detalhes. Não consegue relatar uma ida ao mercado sem abrir parênteses emais parênteses. É uma verdadeira aventu-ra proustiana. E este éoutro segredo da narrati-va, que deve saber enca-dear fatos, criar suspense,alongar o tempo de espera para surpreender o leitor.

apenas narrava os feitosdesses desconhecidos como se todos fossem íntimos deles. E sem que isso fosse verdade,acabávamos sendo.

Miguel Sanches Neto

autor de “Um amor anarquista” Ed. Record, 2007) e colunista do jornalGazeta do Povo, do Paraná. www.miguelsanches.com.br

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Por último, cavou trincheiras no jardim e montou observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal. Canto algum ficou descoberto de um possível ataque. Testou todos os alarmes, checou lunetas e binóculos, lustrou a velha espingarda. E nem se deu conta de que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara há muito em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a confiança de sua companhia. (Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas no fogão.)

Pedro Salgueiro nasceu no Ceará (Tamboril, 1964). Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas. Recebeu o “Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso” e o “Prêmio da União Latina/Concurso Guimarães Rosa de Literatura”, dentre outros. Tem contos em suplementos literários, sites na internet, revistas e antologias (Geração 90, Os Menores Contos Brasileiros do Século, Quartas Histórias, etc.). Algumas faculdades (História, Pedagogia e Agronomia), diversos prêmios literários, um emprego público vitalício e outras inutilidades afins. Dentre várias atividades: desbravador de abismos, perquiridor de caminhos e descobridor de atalhos.

VASTO HORIZONTE MIRADO COM ANGÚS- TIA: PRIMEIRO as sobrancelhas cerradas, a mão em pala; depois os óculos claros, vislumbrando ínfimos detalhes; mais além o binóculo rápido; e por fim a luneta de tripé apoiada no peitoril da janela. (A porta da frente travada, os galhos ressequidos sobre o muro.) Em cima da mesa, o antigo manual de técnicas de fuga, de caminhos alternativos, de atalhos perfeitos. Aos seus pés a gasta bússola, mapas encardidos e rabiscados nos trópicos. A xícara de café esquecida; a bagana de cigarro inútil nas cinzas. (Quanto mais longe... - o país distante, um mundo imaginário, paisagens de televisão.)

Os olhos peritos não enxergam mais os pés sujos, as unhas compridas, o filete de baba maculando o colarinho, as baratas no canto escuro do quarto. No quintal o verde úmido dos musgos, o tronco seco da goiabeira, os cacos de telhas trocadas no último inverno. Rangendo leve, a cadeira de balanço da companheira triste, também esquecida dos filhos distantes, a esperar eternamente pelo retorno das andorinhas, o cantar dos galos nos quintais vizinhos, rezando uma prece em silêncio, no mais absoluto silêncio...

FRONTEIRA

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E desfilou no carro alegórico ontem, entende? E foi hoje que Alessandro partiu, ele, ela e mais a companhia de teatro, cenário, luzes e ação – tudo para cinco capitais, cinco meses, enquanto eu fico sozinha entre pincéis, essa é a coisa, não há por que me revoltar. Nenhuma onda de ciúme, estou fora; apenas achava que o Ateliê não deveria ter contribuído... Porque as fantasias do desfile foram todas feitas aqui, eu soube. É claro, eu estava na África, ou melhor, estava recém-chegada de lá, o que equivale a dizer que ainda estava na África, a África toda na minha cabeça, um continente inteiro a me ocupar, a me dispersar. Enquanto isso, os escultores, os pintores pensavam no Beijo do Baiacu: o carnaval se aproxima. Mas eu não esperava, sinceramente, que a mulherzinha fosse desfilar.

Alguém encontrou um verdadeiro sentido para os cabelos verdes, em meio aos parangolés? Ou aquilo foi mera inserção forçada? Com quem ela falou para seduzir, a boca de grandes lábios – “Eu queria tanto desfilaaaar” – e esse alguém olhando demoradamente a massa carnuda e molhada, os movimentos de mucosa, esquecendo-se da voz, da palidez falsa: “Pois não, minha linda, arranja-se uma fantasia”? Daí os cabelos verdes sob a coroa vermelha. Precisava ser tão gigantesca? E mais um cetro ridículo e aquela manta de algodão em tufos deixando entrever o biquíni. Serpentina, papel laminado, brilho barato: a loira dando tchauzinho, e Alessandro justo embaixo, no tablado inferior do carro alegórico. Seu olhar de babaquice, endeusamento, que o jornal perpetuou. Veja só, Roberta – é claro, ele está de perfil, e o retrato não ajuda. Mas eu percebo com evidência que o olhar dele se dirige a ela, e não só aqui. Em cada ensaio da peça, na rotina, e agora na viagem...

Então ele me diz que é tudo pela arte: “Minha flor, não se esqueça”. Não esqueço, Roberta, da idiotice de estar me revoltando. É estúpido tudo isso, eu há dias com as mãos sujas de tinta sem pintar coisa alguma; até os esboços que faço têm o rosto dele, o corpo, essa obsessão. E ele foi embora. É tudo pela arte – e eu deveria segui-lo, forçar a permanência desse desejo que é um vício? Um vício repentino demais, você diz, para que seja legítimo. Então as grandes entregas só acontecem aos poucos? Como processos de naufrágio; a cada dia, um milímetro que se afunda mais – quando você percebe, virou aquele submarino, ou pior, aquele navio podre em que já cresceram pólipos e conchas, e os peixes te atravessam as cabinas. O único movimento é o das algas no balé interno, os musgos, os bichos que se apoderaram da tua vida: funciona assim? Não acho. Essa fumaça agora, a pressão dos meus lábios contra o papel, o cerrar os dentes enquanto as bochechas sugam, face em caveira – tudo poderia ter sido súbito, como essa paixão; súbito como descobrir-se pintora e depois descobrir-se não mais.

Mas sim, havia um sentido, um gancho temático, não é? O baiacu, o peixe – que engraçado! Agorinha eu falava em naufrágios, e então... O Beijo do Baiacu. Entendi. Era esse o tema do carnaval, e o verde remete a isso mesmo, aos troncos úmidos, que lembram sargaço, e o que mais? Verde esperança, verde bandeiroso, ecológico. Certo. Ela era o beijo do baiacu, a sereia ou coisa que o valha. E o Alessandro? E a coroa vermelha, fazia as vezes de quê? Ela princesa, rainha pálida de biquíni semi-escondido, perna estrategicamente lançada ao público, rebolado sem-gracíssima. Não, Roberta, você não vai me convencer. Quero mais é preparar outro cigarro; minha vida agora é essa, não posso me revoltar, não posso pintar.

Claro que não vou participar da exposição de abril. Expor o quê? Talvez uma arte conceitual, eu mesma exposta com as minhas escamas, meus espinhos e placas ósseas. Venham ver o mais autêntico baiacu! E eu inflo minha barriga; assim, vê? Pareço grávida. Inflo a barriga, sei inflar para parecer maior, assustar os predadores, ui! Olha as minhas barbatanas, Roberta: eu quero uns moluscos, uns crustáceos, umas ervinhaaaas. Eu vou me abrir na exposição. O baiacu sem beijo. E que ninguém esqueça: tenho a carne venenosa.

Tércia Montenegro autora dos livros de contos O Vendedor de Judas (prêmio FUNARTE 1998), Linha Férrea (Prêmio Biblioteca Nacional e Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira – revista Cult, 2000) e O resto de teu corpo no aquário (Prêmio Secult, 2005).

o contrário, Roberta: ela é loira, fal- sa com certeza, mas loira como só as muito pálidas conseguem ser. A

(Conto do livro Inimigos, Ed. 7Letras, R.Janeiro, 2007)

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levantar dali, teimoso como sempre, pronto para outras, para muitas. Quem sabe, para todas. Os olhos dele, de uma vivacidade perturbadora, estavam nulos. Os braços, que apesar de finos, frágeis, desenhavam círculos, formas estranhas no ar, quando conversavam sobre a vida, os discos, sobre os amigos, a próxima “trip”, talvez num réveillon, regado a álcool, boa música, eles dois juntos. O peito, também fraco, quase arco, mostrava-o quase pelo avesso, quase, dentro a porra dum coração, que disparava ao som de um rock das antigas, aquele som, meu velho, aquela velha, única e boa canção, meu velho. O rosto, já com algumas marcas do tempo, das baladas (sempre os dois, juntos, ele e ela, no mesmo ritmo louco, juntos), estava sumindo, branco como as paredes, e os lençóis pretensamente limpos daquele hospital. Ela lembrava dele sempre em cima, como ele mesmo dizia, em cima, sim, sempre disposto, apesar da saúde um pouco debilitada, o corpo dava uns sinais, pedia um tempo, mas ele diz, o corpo dá uns toques, mas a cabeça é que manda meu bem, e dava-lhe um beijo, e dizia eu te amo. E tinha felicidade ali, naqueles dois, sempre juntos, um com o outro, sempre. Nada de as dificuldades os separarem, nem a grana, nem o pouco que lhe faltava, um pedaço, um nada, cara, não vai pará-lo. Ele, não parava mesmo, sempre na ativa, fazendo uns desenhos, ele diz, transando uns desenhos, uns lances como designer, para ter grana, sair do sufoco. Ela, num emprego mais seguro, ou, como ele diz, num trampo mais digno, a grana mais certa. Sempre os dois, na hora das contas a pagar, das brigas, da cama. Juntos, como se deve ser, quando se tem amor, esse lance chamado amor. Ela esperava a reabilitação. O dia em que ele sairia, como sempre teimoso, arredio, adorável. E pediria para ir para casa, vamos curtir nossas coisas, ele diria. Nossa casa, os livros, nossos discos. Vamos embora daqui. Ele não a reconheceu, ninguém sabe se foi no quinto dia, enfim. Os amigos colocaram as músicas que ele adorava. No dia da despedida. Em que todos choraram. E ela foi para casa, velar pelos discos, pelos livros.

PALE BLUE EYES

MULHER DE CABELOS VERDES

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Gustavo Rios

alvez no quinto dia, ninguém sabe dizer, ele já não a reconhecia mais. Deitado naquele leito de hospital. Ela, sempre atenta às possibilidades de melhora dele, queria vê-loT

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é baiano e mora em Salvador. O amor é uma coisa feia (editora 7 Letras, 2007) é seu primeiro livro. Quando arranja tempo escreve no blog www.cozinhadocao.blogspot.com

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V I

VVColaboram nesta edição: Antonio Carlos Resende, ClaudineGoux, Celso Gutfreind, Fabriano Rocha, Glauco Mattoso, Gustavo Rios, Ítalo Ogliari, Jorge Cabeleira, Luíz Horácio,Marcelo Spalding, Miguel Sanches Neto, Pedro Salgueiro, Sidnei Schneider, Tércia Montenegro, Sponholz, Urariano Mota

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Mas nunca é demais saudar um bom texto, um texto que ao longo de vinte e cinco anos faz rir e chorar, um texto que retrata como poucos certo momento histórico a partir de conflitos universais, atemporais. E “Bailei na Curva”, de Júlio Conte, é sem dúvidas um destes textos.

Eu não poderia ter assistido à montagem na época da estréia, sou da geração daquele bebê que encerra o espetáculo, nascido no começo dos anos 80, uma geração que mal lembra da superinflação, dos planos Collor, que ganhou seu primeiro salário em Real, uma geração que pela TV conhece o tri de 70 e o show de Pelé, mas da ditadura sabe apenas algumas datas e nomes. Mas o fato de não pertencer a esta geração e ter assistido ao espetáculo nos anos dois mil, ter rido e chorado de novo quando revi no Porto Verão Alegre 2008, ter cantarolado a bela canção de Flávio Bica como se fosse parte da minha história pessoal demonstra que o texto não envelheceu nesses 25 anos, pelo contrário.

Se por um lado o público de hoje não sente o drama dos silêncios do texto de Júlio Conte, por outro alguns ícones da história da vida privada dos anos setenta, como calça boca de sino, carrinho de rolimã e repressão sexual tornaram-se motivo de riso solto para uma platéia nostálgica ou surpresa. E o olhar que se tem hoje, décadas depois, sobre episódios tão difíceis já permite mais poesia, mais autocrítica, mais lucidez, e “Bailei na Curva”, diferentemente de alguns textos mais incisivos da época, soube perceber as nuances daquele período abordando os crimes da ditadura a partir de conflitos familiares, universais, atemporais.

Sintomático é que os próprios atores que hoje sobem ao palco para interpretar as personagens não vivenciaram a ditadura e seus efeitos, suas torturas, seus sumiços, suas mentiras. Melissa Dornelles, uma das atrizes que há sete anos faz parte do cerne do elenco, lembra que a vida de sua família pouco foi alterada pela ditadura militar. Evandro Elias, o caçula do grupo, sequer era nascido quando estreou “Bailei”. Mas em cima do palco eles dão rosto, vida e voz aos Pedros e às Gabrielas que perderam vidas, irmãos, amigos, sonhos, infância.

Hoje, vinte e cinco anos depois, a peça de certo faz mais sucesso pelos conflitos familiares, pela graça quase ingênua que arranca sinceras gargalhadas da platéia, do que pela denúncia de um período marcado por proibições e injustiças, mas pode se converter em ótima oportunidade para pais, professores, tios, padrinhos contarem para minha geração, uma geração que em geral não pega em bandeiras e certamente não pegaria em armas, o drama dos anos de chumbo. Verdade que isso não trará de volta os Pedros sumidos e esquecidos, as vidas ceifadas enquanto o Brasil conquistava o tri, mas pelo menos diminuirá essa ânsia conservadora e repressiva que tem crescido em nosso país, conservando a história viva e preservando a liberdade futura.

Os 25 anos de Bailei na Curva

Esse é um jornal de literatura, e a meiadúzia dos que me conhecem sabe que costumo escrever sobre literatura.

Marcelo Spaldingjornalista e escritor, autor de “Vencer em Ilhas Tortas”, WS Editor, 2005

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