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Jornalismo em letra e traço: Henfil e os processos de conscientização
política no Brasil1
RODRIGUES, Hila2
MOL, Jamylle3
Universidade Federal de Ouro Preto / Minas Gerais
Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar a influência da atuação do cartunista e jornalista
Henrique de Souza Filho, o Henfil, na construção da realidade brasileira das décadas de 1970 e 1980.
Para isso, analisam-se os textos das Cartas da Mãe e as histórias em quadrinhos de alguns dos seus
principais personagens: Graúna, Zeferino e Bode Orelana, de a Turma da Caatinga; e os fradinhos
Baixim e Cumprido. A proposta é identificar de que forma o trabalho de Henfil denunciou parâmetros
específicos da realidade brasileira em tempos de regime militar, interferindo na percepção que os leitores
fizeram desse contexto e cobrando atitudes do poder público. A partir disso, analisa-se o potencial do
jornalismo como instrumento de conscientização política e do profissional da imprensa como um agente
capaz de alterar cenários e provocar debates. Reflete-se, ainda, sobre as narrativas construídas a partir das
histórias em quadrinhos e cartuns, identificando as características e possibilidades desse gênero
jornalístico opinativo.
Palavras-chave: Jornalismo Opinativo; Narrativas; Política; Humor; Engajamento.
1- Introdução
Durante uma conferência no ano de 1988, a convite da Comissão Justiça e Paz
de São Paulo4, Marilena Chauí (2006) chamava a atenção para o que alcunhou de
1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Alternativa, integrante do 9º Encontro Nacional de
História da Mídia, 2013. O artigo é um desdobramento do texto A falta que ele faz, publicado no
caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, em 2 de fevereiro de 2013.
2 Professora Adjunta do Curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP), jornalista, mestre em Administração Pública/Gestão de Políticas Sociais pela Fundação
João Pinheiro (FJP-MG) e doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas, email:
3 Estudante de graduação do sétimo semestre do Curso de Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP), email: [email protected]
4 A comissão, vinculada à Confederação dos Bispos do Brasil, foi um marco nacional de resistência
“divisão social do medo” (CHAUÍ, 2006, p.104). A expressão traduz a concepção de
que diferentes classes sociais são assombradas por diferentes medos. As classes
dirigentes, por exemplo, temem perder o poder e os privilégios. Da mesma forma, os
ricos temem perder os bens, a classe média se apavora com a possibilidade da pobreza
ou da proletarização, enquanto os trabalhadores temem o desemprego, a fome, a morte,
a violência (dos patrões ou da polícia), a miséria absoluta e a arbitrariedade de quem
governa. Para Chauí, essa diferença é o indicador mais preciso de que o medo de quem
está no topo (de estruturas políticas, econômicas ou sociais) tem a ver com privilégios –
pois diz respeito a interesses –, ao passo que os medos de quem está na base (no baixo
político, econômico ou social) tem a ver com direitos – pois diz respeito à redução da
condição humana.
Por isso a luta dos desamparados é elemento fundamental às sociedades que
tomaram para si a tarefa de caminhar, de seguir em frente. E é por isso que, em tempos
de Comissão da Verdade – quando o Estado brasileiro toma para si a tarefa de clarear os
cantos escuros da ditadura militar –, é difícil não recordar o desenho rebelado e
insolente de Henrique de Souza Filho, o Henfil. Jornalista do traço, o cartunista sempre
teve como pano de fundo dos seus textos e quadrinhos, o Brasil das décadas de 1970 e
1980: um período marcado por contradições políticas, econômicas e sociais. Na obra de
Henfil, o humor é um instrumento de denúncia, uma forma diferenciada de fazer
jornalismo e escancarar, na mídia, os problemas que assolam a população. Para o
cartunista, ser jornalista é estar constantemente envolvido em uma guerra social. Por
isso, o lápis e o nanquim de Henfil palpitavam em tudo: nos rumos da política e da
economia, nos cenários de desigualdade e no comportamento de homens e mulheres a
quem acusava dessa ou daquela atitude. Ou da falta dela.
Em 4 de janeiro de 2013, o calendário marcou 25 anos sem Henfil. Para as
gerações que o cartunista não provocou, não desafiou ou não incitou, resta uma espécie
de vácuo: ele passou feito um cometa – quem não viu, perdeu. A proposta deste artigo,
portanto, é analisar os quadrinhos e textos produzidos por Henfil e resgatar, a partir
contra o arbítrio e a violação dos Direitos Humanos no país. Criada há 22 anos, por iniciativa de D. Paulo
Evaristo Arns, representou não apenas uma reação à violência decorrente da ditadura militar, mas também
uma tentativa de amparo a centenas de perseguidos políticos, bem como seus familiares. De 14 de março
a 9 de junho de 1988, a comissão realizou o II Ciclo de Palestras intitulado “Direitos Humanos e...” .
Marilena Chauí proferiu sua palestra no último dia do evento.
desse estudo, um pouco da importância do cartunista na construção da história do país.
Pretende-se, ainda, refletir sobre a capacidade do jornalismo – em especial daquele
traduzido em mensagens gráficas – de intervir nos rumos da sociedade, questionar o
poder público e provocar, no cidadão comum, reflexões sobre o contexto que o cerca.
1- A trajetória de Henfil
Mineiro, Henrique de Souza Filho nasceu na cidade de Ribeirão das Neves, próximo
a Belo Horizonte. Aos 20 anos, já era cartunista na Revista Alterosa. Dali saltaria para
outros segmentos da imprensa, como o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports, Jornal da
Tarde, Correio da Manhã, Intervalo e as revistas Isto É, Realidade, Visão, Placar e O
Cruzeiro. Também brindou, com sua irreverência, um dos mais importantes jornais da
imprensa alternativa, O Pasquim, e se aventurou na TV e no cinema, com o programa
TV Mulher (Rede Globo) e o filme Tanga, deu no New York Times.
Hemofílico, morreu em 1988, vítima da Aids, contraída durante uma transfusão de
sangue. Cartunista, quadrinista, escritor e jornalista, Henfil era dessas figuras que
militam incansavelmente, consumindo as forças daqueles que se recusavam a pensar em
liberdade. Não por mero acaso, chegou a integrar o Sindicato dos Jornalistas de São
Paulo, como suplente, e a Associação Brasileira de Imprensa, como vogal. Nos anos 70,
participou ativamente do movimento grevista dos jornalistas e, mais tarde, reuniu
desenhistas como Laerte, Nilson, Chico Caruso, Paulo Caruso e Angeli para integrar a
Oboré, uma pequena empresa de comunicação criada para divulgar os movimentos de
resistência ao governo e as injustiças praticadas pelo regime contra as bases operárias
do ABC paulista. A partir dos quadrinhos – e sem receber por isso –, o grupo de
cartunistas dedicou-se à conscientização política dos operários (ANEXO 1). Adepto da
palavra e do desenho capazes de traduzir, Henfil se empenhava para ser compreendido
pelas classes populares, e não apenas pelos intelectuais:
Não lamento o fato dos estudantes, intelectuais e artistas serem meus
leitores. Lamento apenas a restrição. Queria atingir os outros 90%.
Quem não? Lamento não só não poder atingi-los, mas também não
saber atingi-los. Explico: não posso porque a maior parte é analfabeta
e eu uso exatamente o alfabeto para me comunicar. Se não atinjo o
povo, a culpa não é minha. Não é de preguiça minha. De frescura ou
elitismo meu. A coisa „tá‟ organizada pra que eu, Claudius e quem
tiver a fim não atinja. E tranquilo fico mais ainda porque, sem ter
culpa, estou me mexendo pra ver se a gente desamarra o nó desta
coisa impiedosa que „tai‟ massificando as pessoas pra proveito
próprio. (HENFIL, 1976, p.4)
Essa sensibilidade em relação às camadas populares foi uma das grandes marcas da
personalidade de Henfil. Durante toda a sua trajetória como jornalista, o que o
interessava eram as pessoas comuns. Por isso, nos desenhos, outro social ganhava rosto
através dos personagens e mostrava a face do analfabetismo, da mortalidade infantil, da
seca e da fome: problemas que faziam parte do dia a dia de grande parcela da população
brasileira. Entre os personagens de Henfil que mais estiveram imbuídos desse papel de
denúncia social, estão os que integram a Turma da Caatinga.
2- A Turma da Caatinga e as narrativas da miséria
As histórias da Turma da Caatinga apareceram pela primeira vez em 21 de agosto
de 1972, no caderno B do Jornal do Brasil. Neste dia, nasceram, para o público, a
Graúna, o Capitão Zeferino e o Bode Francisco Orelana: uma trinca do barulho que
vivia se engalfinhando, movida pela utopia de superar as provações do
subdesenvolvimento (MORAES, 1997, p.142). Os quadrinhos traduziam a situação de
desigualdade entre as classes sociais brasileiras – um cenário que, provavelmente em
função da denúncia ali estampada, não se fazia presente em grande parte dos jornais.
Mais que falar sobre as camadas mais pobres da população, através dos desenhos,
Henfil deu rosto e voz a essas pessoas: o personagem da Caatinga é o próprio povo, e o
enredo dos cartuns é o cotidiano de quem sofria com a pobreza e com o descaso
político.
Embora fictícias, as histórias retratavam uma situação real e problemática, ainda que
de modo irreverente. Na concepção de Henfil, o humor precisa provocar reflexão – e
indignação, quando preciso. “O humor pelo humor é sofisticação, é frescura” (HENFIL
apud MORAES, 1988, p. 140). Talvez por isso provocasse o riso, mas, ao mesmo
tempo, a dor. Foi assim, por exemplo, quando a Graúna revelou os três mitos
alimentados pelos brasileiros nas regiões castigadas pela seca: Papai Noel, cegonha e
leite (ANEXO 2). Ou quando ela se gaba aos outros dois personagens de pertencer a um
lugar como a Caatinga, “a maior exportadora de crianças para o céu” (ANEXO 3).
Marcados por uma ironia aguçada, os traços questionavam o poder público e a
reação – ou não reação – das pessoas. Para Henfil, quem tomasse consciência dos
problemas sociais brasileiros e não se indignasse, era cúmplice. Cada personagem era
uma frente de batalha e nenhuma história existia apenas por existir, todas elas tinham o
propósito de provocar reflexão e, a partir daí, ação. Não foi diferente quando, em 1964 –
ano do golpe militar no Brasil –, na revista Alterosa, Henfil deu vida a dois de seus
personagens mais polêmicos: os fradinhos Baixim e Cumprido.
3- Baixim e Cumprido: o humor subversivo
Inspirados nos frades dominicanos de Belo Horizonte, os dois personagens
questionavam, com humor ácido e direto, o comportamento de uma sociedade apática,
por vezes cúmplice. Estavam lá, nos diálogos entre os frades, as críticas mais ferrenhas
aos preconceitos raciais e de gênero, ao poder público e seu descaso para com as classes
mais pobres e, sobretudo, às contradições da Igreja Católica como instituição de fé. Nos
quadrinhos protagonizados por Baixim e Cumprido (ANEXO 4), Henfil escancarava as
mazelas de uma cultura que supervaloriza as aparências e convenções sociais e acaba
por manter atitudes que revelam a hipocrisia e fragilidade do sistema.
Mais que os outros personagens, os fradinhos – ou, na linguagem mineira de Henfil,
os Fradins – chocavam pela forma com que abordavam os assuntos. Dificilmente, um
leitor passaria pelas histórias sem se sentir incomodado ou sensibilizado pelos diálogos.
Em um dos quadrinhos, por exemplo, Baixim reflete sobre o homossexualismo: “se não
está no cérebro, na educação libertina, nos filmes, livros, jornais! Não „tá‟ na falta de
cuidado dos pais, nem nas más companhias, homossexuais também são filhos de
Deus!”. Já em outra história, os frades comemoram a inexistência de preconceito racial
no Brasil: “estou com uma empregada ótima! A negrinha é limpa: acaba de limpar e vai
para o quarto!”. Através dessa ironia refinada e, por vezes, dolorida, Henfil queria
expulsar os hipócritas do templo humano (HENFIL, 1988) e chamar atenção para
valores sociais ultrapassados, marcados não raras vezes pela arrogância, pelo
individualismo e pela incapacidade de enxergar o outro.
Henfil era o desenhista das minorias: todos os seus personagens, inclusive os menos
famosos como o Orelhão (ANEXO 5), o Preto-que-ri, Delgado Flores, Ubaldo, Urubu,
Tamanduá e Cabôco Mamadô (ANEXO 6), representavam as parcelas da população
que, por vezes, eram estigmatizadas pela sociedade: índios, negros, homossexuais,
deficientes físicos e pobres. Todos os personagens, cada um a seu modo, cumpriam o
papel do humor de ser um pé na cara, um soco no estômago contra um estado de coisas.
“O que eu quero fazer com humor é algo que existe em todos os países do mundo.
Vamos dizer, ser um Hobin Wood” (HENFIL, 1988, p.62).
Os quadrinhos significam um outro modo de traduzir os acontecimentos: mais
irreverente e subjetivo, de fato, mas pautado na realidade e produzido a partir de uma
análise do contexto sociopolítico em que estão inseridos. As tiras de jornal, como as de
Henfil, apresentam, assim, uma linguagem estética verbal e não verbal capaz de burlar
censuras e servir de bandeiras ideológicas em momentos de crises sociais (NICOLAU,
2010, p.1). Parte do gênero opinativo, as histórias em quadrinhos são uma narrativa
jornalística diferenciada e, como tal, estão inseridas no processo de comunicação e na
permanente tarefa de produção de sentido que possibilita o diálogo entre quem fala e
quem entende o que é dito. É fato, contudo, que Henfil não limitou a sua produção
jornalística às histórias em quadrinhos e cartuns. Durante a sua carreira, publicou livros
como Diário de um Cucaracha (1988), que reúne centenas de cartas escritas no período
em que morou nos Estados Unidos; Henfil na China (1984), um livro reportagem sobre
a viagem que fez ao país dos comunistas; e o Cartas da Mãe (1986) que, como o título
sugere, é uma coleção de cartas de Henfil à Dona Maria, sua mãe. Pela capacidade de
driblar a censura à mídia imposta pelo regime, as Cartas da Mãe talvez sejam a mais
importante produção textual de Henfil.
4- Engajamento político nas Cartas da Mãe
Publicadas originalmente na revista Isso é!, entre 1977 e 1980, as Cartas da Mãe
tiveram uma importância singular no processo de redemocratização do Brasil e na
campanha pela anistia aos exilados políticos, como conta o próprio Henfil na abertura
do livro publicado em 1986:
Será pretensão minha dizer que por estas cartas é possível acompanhar
a história do Brasil deste período? Pois sou assim pretensioso. As
cartas vivem o início da abertura, os apertos, os medos, a campanha
pela anistia, os depoimentos no exílio do Betinho, as greves no ABC,
os medos, a volta dos exilados, os apertos, 1977, 1978, 1979. 1980.
(HENFIL, 1986).
Embora endereçadas à Dona Maria, mãe de Henfil, as cartas dialogavam com o
povo brasileiro e, especialmente, com os donos do poder. Na época, criticar o nome do
presidente Geisel, por exemplo, só podia entre amigos de infância, tamanha era a
repressão imposta pelo regime militar. No entanto, Henfil driblava a censura e
escancarava todo o descontentamento da população brasileira com os mandos e
desmandos da ditadura. Afinal, segundo ele, quem tem mãe não tem medo (HENFIL,
1986). Foi assim, protegido pelo retrato 3x4 de Dona Maria no canto da página, que
Henfil lutou pela volta dos exilados políticos ao Brasil:
Mãe, deixa eu distrair a senhora falando das coisas do mundo. Semana
passada o assessor de imprensa disse: „Não há presos políticos no
Brasil!‟. Tal declaração estarreceu a todos. Inclusive setores dentro do
governo. É verdade, assessor de imprensa? Ele confirmava: „Procurei
por todos o cantos e não achei um preso político!‟, Pois é, mãe. A
Argentina tá cheia, o Uruguai nem se fala. E o Chile? O Chile tem a
maior renda per capita de presos políticos da América, Oceania e
Caicó. (...) Só o Brasil, um país de dimensões continentais, não tem
um só, unzinho, preso político. (HENFIL, 1986, p.50)
O movimento pela anistia, iniciado em São Paulo, tentava fazer com que o governo
militar cessasse as perseguições aos condenados por crimes políticos, acusados de
manifestações e ações contra a ditadura. Nesse caso específico, a luta de Henfil
sustentava-se no sentimento de solidariedade aos brasileiros perseguidos, mas sobretudo
na situação do próprio irmão – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também
exilado. Para o cartunista Nilson, a campanha pela anistia não teria a mesma força sem
as Cartas da Mãe: “Os 10 mil exilados, que ninguém sabia que existiam, fora os mais
conscientizados, de repente tinham uma cara: era o Betinho, o filho da dona Maria”,
avalia o desenhista em depoimento a Dênis de Moraes, autor da biografia de Henfil, O
rebelde do traço, lançado pela editora José Olympio em 1996.
A luta de Henfil dava, assim, contornos singulares aos sentimentos de muitas
famílias separadas de entes queridos, forçados ao exílio. Famílias que, ao fim e ao cabo,
só faziam representar o Brasil que sonhava com a “volta do irmão do Henfil”, como
rezavam, na voz de Elis Regina, os versos da canção O bêbado e a equilibrista, de João
Bosco e Aldir Blanc. O empenho de Henfil em garantir a anistia, tão direcionado aos
direitos humanos, chamou a atenção do núcleo mineiro do Comitê Brasileiro pela
Anistia, que chegou a conceder ao cartunista, em abril de 1979, a Medalha Vladimir
Herzog.
O jornalismo, além de incitar debates e reflexões, carrega consigo a história do
mundo e dos homens. Ao registrar esse ou aquele acontecimento nas páginas de um
jornal – ou de uma revista, como nas Cartas da Mãe –, o jornalista eterniza momentos
específicos de uma realidade e, assim, acaba definindo o que será lembrado. Por esse
viés, a importância das cartas de Henfil destinadas à própria mãe adquire outro caráter.
Como foi um dos únicos meios jornalísticos que denunciou as mazelas políticas e
sociais no final da década de 1970, os textos são um instrumento fundamental para
escancarar as múltiplas facetas do período militar no Brasil.
Analisar a produção de Henfil – gráfica e textual – é, ao mesmo tempo, verificar, na
prática, o poder do jornalismo na condição de atividade politicamente engajada. Aqueles
que se debruçarem sobre os quadrinhos e textos e, principalmente, sobre a repercussão
que eles causaram no momento em que foram publicados, provavelmente identificarão o
peso da função do jornalismo na vida das pessoas. A atividade, quando exercida com
rigor ético e comprometimento social, contribui para a fiscalização das ações do
governo. Nesse sentido, costuma não apenas revelar a presença ou a ausência de
demandas sociais na agenda pública, mas também a atuação (ou omissão) dos agentes
políticos diante de um determinado estado de coisas. O jornalismo surgiu como
atividade essencialmente política e, hoje, ainda é o principal mediador entre governo e
população. A despeito das novas tecnologias – que permitem modernas e variadas
formas de contar histórias – e dos erros por vezes cometidos e acumulados no âmbito da
imprensa, cabe ao jornalista dar voz à sociedade que, através dele, participará
efetivamente da construção do país.
Considerações finais
O trabalho do jornalista revela o que o sensibiliza, a maneira de olhar e as
intenções por trás da fala ou da escrita. O estudo da produção de Henfil mostra
preocupação com as causas sociais e com os rumos da política. Aceitar o regime militar
– com torturas, perseguições e exílios –, bem como o cenário econômico brasileiro
extremamente desigual, era, para o cartunista, partilhar de um acordo social excludente
e ser cúmplice de uma realidade injusta e precária. Por isso, toda a produção de Henfil –
gráfica e textual – trazia consigo uma crítica ferrenha ao governo e às suas decisões,
pouco pautadas, segundo ele, no bem-estar do cidadão comum. Através do humor, os
quadrinhos e textos burlavam a censura imposta pelo regime militar e denunciavam, de
modo irreverente, os principais problemas que marcaram as décadas de 1970 e 1980 no
Brasil.
A partir das notícias, a população – e, muitas vezes, o governo – tomam
consciência desta ou daquela realidade, podendo, assim, agir para alterá-la. É nessa
capacidade do jornalismo de escancarar realidades e incitar debates que este artigo se
inspira. A partir da obra de Henfil, pretendeu-se identificar de que modo o jornalista
pode interferir no processo de construção da história de um país e de um povo,
contribuindo, muitas vezes, para alterar o desenlace de um enredo constituído por uma
série singular de acontecimentos. Buscou-se, ainda, refletir sobre o potencial das
histórias em quadrinhos e cartuns de traduzir as notícias através de uma narrativa
diferenciada, que interpela o leitor de um modo específico.
É bastante provável que as histórias contadas por Henfil – pelo traço ou pelo
texto – sejam calcadas em utopias, todas elas inspiradas em desejos e sonhos de
cidadãos de outro tempo e lugar. No entanto, uma boa história não se limita à arte da
narrativa. A boa história permite mudanças, possibilita novos desfechos e inaugura
novos rumos, até que se anuncie um novo tempo.
Referências
ACEVEDO, Esther. A caricatura no México e como ela foi se tornando mexicana.
In: LUS-TOSA, Isabel (Org.). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos
estereótipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.491-515.
HENFIL. Cartas da Mãe. Rio de Janeiro: Record, 1986, 225p.
HENFIL. Coleção Henfil Fradim: Eleições na caatinga. Volume 18. Rio de Janeiro,
CODECRI, 1976.
HENFIL. Coleção Henfil Fradim: Tamos tocando o pau no governo. Volume 23.
Rio de Janeiro, CODECRI, 1976.
HENFIL. Coleção Henfil Fradim: O dia em que o AI-5 acabou. Volume 24. Rio de
Janeiro, CODECRI, 1976.
HENFIL. Coleção Henfil Fradim: Beijoqueiro esteve aqui. Volume 28. Rio de
Janeiro, CO-DECRI, 1976.
HENFIL. Diário de um cucaracha. Rio de Janeiro: Record, 1988, 276p.
HENFIL. Diretas Já. Rio de Janeiro: Record, 1984, 128p.
KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os Elementos do Jornalismo: o que os
jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo: Geração Editorial, 2003, 292p.
MORAES, Denis de. O rebelde do traço – A vida de Henfil. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997, 564p.
NICOLAU, Marcos. As tiras e outros gêneros jornalísticos: uma análise
comparativa. Paraíba, 2010, 12p. Disponível em:
http://www.insite.pro.br/2010/Fevereiro/tirinhas_genero_jornalistico_nicolau.pdf
Acesso em: 24 fev. 2013.
PATARRA, Judith. Iara: reportagem biográfica. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos,
1992, 521p.
TRÊS IRMÃOS DE SANGUE. Direção: Ângela Patrícia Reiniger. Rio de Janeiro: No
Ar Comunicação, 2006. 1 vídeo-disco (102 min), color.
ANEXO 1- Um dos cartuns da chamada “imprensa operária”
Fonte: MORAES, Denis de. O rebelde do traço – A vida de Henfil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1997, 564p.
ANEXO 2 – A Turma da Caatinga
Fonte: HENFIL. Coleção Henfil Fradim: Eleições na caatinga. Volume 18. Rio de Janeiro, CODECRI,
1976.
ANEXO 3-
Fonte: HENFIL. Coleção Henfil Fradim: Tamos tocando o pau no governo. Volume 23. Rio de
Janeiro, CODECRI, 1976.
ANEXO 4 – Os fradinhos Baixim e Cumprido
Fonte: Internet (http://oidiotafeliz.blogspot.com.br/2010_10_01_archive.html)
ANEXO 5 – ORELHÃO
Fonte: Internet (http://blogdogutemberg.blogspot.com.br/2010_04_01_archive.html)
ANEXO 6 – CABOCO MAMADÔ
Fonte: Internet (http://pseudo-critico.blogspot.com.br/2008/01/20-anos-sem-henfil-top-top-top-pra-
ns.html)