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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS JOSÉ NILTON DOS SANTOS O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA INSTAURAÇÃO CÊNICA-RITUAL NATAL/RN 2019

JOSÉ NILTON DOS SANTOS O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA … · de relações entre o trabalho místico de um ator/atriz e de um xamã, percebendo a forma como eu me aproprio dos estímulos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

JOSÉ NILTON DOS SANTOS

O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA

INSTAURAÇÃO CÊNICA-RITUAL

NATAL/RN

2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Santos, Jose Nilton dos.

O papel do ator-Xamã na instauração-cênica-ritual / Jose Nilton dos Santos. - 2019.

125 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro

de Ciências, Comunicação, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Artes

Cênicas. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Nara Graças Salles.

1. Teatro - Ritual - Dissertação. 2. Instauração Cênica - Dissertação. 3.

Antonin Artaud - Dissertação. I. Salles, Nara Graças. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 792(043.3)

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JOSÉ NILTON SANTOS

O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA INSTAURAÇÃO

CÊNICA-RITUAL

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como requisito

para obtenção do título de mestre em Artes

Cênicas, na linha de pesquisa Interfaces da Cena:

Políticas, Performances, Cultura e Espaço, sob

orientação da Profa. Dra. Nara Salles.

Natal

2019

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JOSE NILTON DOS SANTOS

O PAPEL DO ATOR-XAMÃ NA INSTAURAÇÃO CÊNICA-RITUAL

Esta dissertação foi apreciada parcialmente para

obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas pela

Orientadora e pela Banca Examinadora.

Orientadora:

Profª. Dra. Nara Salles, UFRN

Banca Examinadora:

Profª. Dra. Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira, UFBA

Prof. Dr. Adriano Moraes de Oliveira, UFRN

Natal, Julho de 2019.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha Mãe Maria Anunciada (in memoriam) pela dedicação e

apoio no aprendizado das primeiras letras e por me ensinar a amar as coisas e as pessoas.

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AGRADECIMENTOS

Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, pela oportunidade

do conhecimento acadêmico e pela contribuição direta e indireta em minha área de pesquisa.

À minha orientadora Nara Salles por suas contribuição e dedicação a este trabalho

Aos colegas de turma do PPGARC/UFRN pelo companheirismo durante o curso e

constantes trocas de experiências.

Aos atores da Associação de Atores Dupla Face de Teatro pela disponibilidade para a

pesquisa, ensaios e experimentações.

Ao companheiro de jornada afetiva Ed Silva por sempre repetir “seja forte, a escolha

foi sua, aguente!”

Ao diretor e Ator Zé Celso Martinez Corrêa por me ensinar alguns cantos dionisíacos

e por compartilhar comigo alguns segredos à beira mar de Tambaú

Ao amigo póstumo Antonin Artaud que se constitui como uma grande inspiração para

a minha Jornada xamânica no teatro.

A Neide Nunes, secretária de Estado do Desenvolvimento Humano do Estado da

Paraíba, por me apoiar nesta jornada de conquistas.

A amiga Deputada Estadual Professora Cida Ramos, exemplo de vida e estimulo de

coragem para seguir em frente.

Aos amigos(as) de trabalho da Diretoria Técnica da Fundação Desenvolvimento da

Criança e do Adolescente, pessoas fortes na luta da transformação humana – uma verdadeira

alquimia!

A todos os loucos e gênios que são encerrados nos manicômios como uma forma de se

manterem afastados das verdades que poderiam revelar.

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RESUMO

A investigação proposta por esta dissertação está centrada no sentido de compreender o meu

papel como um possível ator-xamã a partir de uma instauração cênica-ritual intitulada “Y”. O

processo criativo colocado em prática e analisado, foi inspirado nos estudos ocultistas da

Kabala, da Filosofia Hermética e do Tarot. O pensamento teórico que guiou este trabalho

encontra-se fundamentado nas obras de Antonin Artaud, sendo uma referência matriz para

esta averiguação. O processo criativo experimentado levou em consideração o conceito de

Instauração Cênica elaborado por Nara Salles (2004) que incorpora elementos das artes

visuais ao campo do teatro e da performance, que além de propor resíduos a serem deixados

no local da instauração e como procedimento criativo explora a memória e matrizes corpóreo-

vocais dos instauradores da cena. Minha proposta de um trabalho do ator/atriz como xamã

parte das ideias apresentadas e discutidas por Antonin Artaud em sua obra, O Teatro e seu

Duplo (1985) propondo este olhar a ser acrescido ao conceito de Instauração Cênica sendo a

esta agregado. A partir desta referência e dos elementos cênicos-

dramatúrgicos desenvolvidos na instauração cênica “Y” descrevo as possibilidades

de relações entre o trabalho místico de um ator/atriz e de um xamã, percebendo a forma

como eu me aproprio dos estímulos místicos utilizados na criação como um novo

procedimento para o teatro compreendido com fundamentos no ritual. A escrita dissertativa

se apresenta como uma série de cartas, sendo estas direcionadas ao Ator e diretor Antonin

Artaud. As sessões de textos foram ordenadas e estruturadas com base no Tarô Cabalístico de

Rider (2009), assim para cada carta endereçada a Artaud é oferecida uma imagem de tarô

como estimulo inicial para o desenvolvimento do tema.

Palavras-chaves: instauração cênica, ritual, teatro sagrado.

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ABSTRACT

The research proposed by this dissertation is centered in the sense of understanding my role

as a possible shaman-actor from a scenic-ritual instauration entitled "Y". The creative process

put into practice and analyzed was inspired by the occult studies of Kabala, Hermetic

Philosophy and Tarot. The theoretical thinking that guided this work is based on the works of

Antonin Artaud, being a reference matrix for this investigation. The creative process has

taken into account the concept of Scenic Insertion elaborated by Nara Salles (2004) that

incorporates elements of the visual arts into the field of theater and performance and

proposes residues to be left at the place of installation and as a creative procedure explores the

memory and corporeal-vocal matrices of the scene settlers. My proposal for a work by the

actor / actress as a shaman starts from the ideas presented and discussed by Antonin Artaud in

his work, The Theater in its Double (1985) proposing this look to be added to the concept of

Scenic Insertion being added to it. From this reference and from the scenic-dramaturgical

elements developed in the scenic setting "Y" I describe the possibilities of relations between

the mystical work of an actor / actress and a shaman, realizing how I appropriate the mystical

stimuli used in creating a new procedure for the theater understood as ritual. The essay

writing appears as a series of letters, these being directed to the Actor and director Antonin

Artaud. The text sessions were ordered and structured based on the Rider's Kabbalistic Tarot

(2009), so for each letter addressed to Artaud a tarot image was offered as an initial stimulus

for the development of the theme.

Keywords: scenic instauration, ritual, sacred theater

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SUMÁRIO

Carta ao Louco - A inspiração inicial ou a jornada em busca do ator xamã.................12

Carta ao Mago – Ou abordagens sobre um possível Ator-Xamã.....................................28

Carta à Sacerdotisa - elementos místicos de inspiração na composição da Instauração

Cênica “Y” .............................................................................................................................48

Carta da Imperatriz-Alquímica para o Ator-Alquímico Antonin Artaud.......................55

Carta do Imperador-xamã ao Ator-poeta Antonin Artaud..............................................71

Carta para o Papa-Dramaturgo – Descontruindo a figura do antigo dramaturgo

natimorto.................................................................................................................................86

Roteiro Comentado da Instauração-cênica- ritual “Y”.......................................................94

Carta dos Enamorados para o Ator-xamã Artaud - Aspectos (in)conclusivos..............111

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................................125

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 0. Carta do Tarot de Waite - O Louco.........................................................................12

Figura 1. Carta do Tarot de Waite: O Mago .........................................................................28

Figura 2. Recorte da mesa do Mago - destaque dos elementos da magia...............................44

Figura 3. Carta do Tarot de Waite - A Sacerdotisa ................................................................49

Figura 4. Diagrama da Árvore da Vida...................................................................................53

Figura 5. Correspondência das cartas do tarô no diagrama da Árvore da Vida......................54

Figura 6. A Imperatriz do Tarot de Waite...............................................................................56

Figura 7. Diagrama da Árvore da Vida e seus respectivos caminhos cabalísticos..................62

Figura 8. Carta do imperador no Tarot de Rider waite.......................................................70

Figura 9. Planta baixa do cenário de Y. Cada esfera colorida é uma clareira feita na floresta.

As linhas que ligam as esferas são as trilhas por onde os espectadores caminham.................73

Figura 10. Bastão xamânico feito durante o processo de criação de Y...................................77

Figura 11. Trabalho com o bastão – o autor demonstrando um exercício com o bastão..........78

Figura 12 Experimentação com o fogo – processo de construção da Instauração....................81

Figura 13. Carta do Tarot de Waite-Rider...............................................................................85

Figura 14. Mapa da instauração-cênica com o nome do arcano de cada cena. Associação

utilizada na concepção de “Y” .......................................................................................91

Figura 15. Público assistindo uma cena realizada em uma das trilhas(caminhos) de Y..........93

Figura 16. Corte esquemático do conjunto das três primeiras Shefiras, local do prólogo e

encenação da cena do Louco............................................................................................94

Figura 17. Recepção dos Servos de Cronus aos espectadores-instauradores..........................95

Figura 18. Cena do Louco – a atriz executa sua própria iluminação.......................................96

Figura 19. Corte esquemático da Árvore da Vida. Cena da Imperatriz. A seta de cor laranja

mostra o percurso do cortejo desde a Shefira branca, passando pela Shefira Cinza e chegando

a 3ª Shefira onde acontece a cena da Imperatriz................................................................97

Figura. 20. Cena da Imperatriz................................................................................................97

Figura 21. cena 04 ( No Salão dos Espelhos de Geburah)...................................................98

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Figura 22. Gravura de autor desconhecido. As criaturas sagradas na visão do Profeta

Ezequiel........................................................................................................................98

Figura 23. Cena de Aracne entrelaçando os fios do destino...............................................101

Figura 24. Figura nº 24 Cena de Aracne e cena No Mundo de Dionísio – corte esquemático da

Árvore da Vida, entre o 2º e 3º triângulo. Cortejo sai da cena do Salão dos Espelhos e vai em

direção a cena de Aracne para chegar na cena No Mundo de Dionísio...............................103

Figura. 25 O Arcano do Diabo no Tarot de Waite............................................................104

Figura 26. No Mundo de Dionisio – no primeiro plano o ator Leonardo Santiago como

Dionísio Mascarado.......................................................................................................105

Figura 27. O Mestre de Cerimônia joga tarot para os espectadores......................................106

Figura 28. Cena da morte – três figuras cômicas vendem bilhetes do Baú da Eternidade.....107

Figura 29. Cortejo saindo da Shefira de nº 04, passando pela 6º e para chegar até a cena das

Estrelas, Shefira de nº 09........................................................................................................107

Figura 30. Cena do Pedágio e banquete..................................................................................107

Figura 31. Altar de recolhimento do pedágio.........................................................................108

Figura 32 Saída do público da área de encenação - ritual final.............................................110

Figura 33. Os Enamorados – Sexto Arcano Maior do tarot de Waite ...................................111

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Associação cabalística da relação Tarô e Árvore da Vida.................................56

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LISTA DE ABREVIATURAS

ABNT: Associação Brasileira de Normas Técnicas

UFRN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UFPB: Universidade Federal da Paraíba

PPGARC: Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

AADFT: Associação de Atores Dupla Face de Teatro

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CARTA AO LOUCO – A INSPIRAÇÃO INICIAL OU A JORNADA EM

BUSCA DO ATOR-XAMÃ

Figura 0: Carta do Tarot de Waite: o Louco (gravura do Tarot de Waite 2009)

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Caro Artaud, saudações!

Antonin Artaud tu não era um louco como muitos acreditavam, mas foste acusado de o

ser para que lançassem o descrédito sobre certas revelações capitais que te preparava para

fazer. Assim como Van Gogh, você recebeu o julgo de uma “sociedade tarada que inventou a

psiquiatria para se defender das investigações de certas lucidezes superiores cujas faculdades

de adivinhação a incomodavam” (ARTAUD, 2014, p.258)

Além de você ser acusado, foi ainda trancado em manicômio, fisicamente eletrocutado

cotidianamente nas loucas terapias de choque, “para que perdesse a memória dos fatos

monstruosos que ia revelar” (idem) e que, sob a ação desse golpe, submeteram você para o

plano sobrenatural, porque seria melhor para essa sociedade tarada, se aliar ocultamente

contra sua consciência para lhe fazer esquecer a realidade.

Não, eu acredito que tu não era louco Artaud, mas suas obras artísticas eram ácidas,

cruéis e com efeito de bomba cujo ângulo de visão, ao lado de todas as outras obras de sua

época, teria sido capaz de perturbar gravemente o conformismo larvar da burguesia da

Europa. Pois não é um certo conformismo de costumes que sua obra ataca, mas o das próprias

instituições. E mesmo a natureza tal qual como a conhecemos, com seus climas, seus ritmos

naturais, tempestades e maremotos, não pode mais, depois da passagem de Antonin Artaud

pelo mundo da arte, manter a mesma gravitação.

Artaud posso parecer exagerado em minha expressão, mas o que escrevo aqui nestas

linhas é uma releitura de sua obra, Van Gogh, o Suicidado da Sociedade (1947) como uma

forma de iniciar esta carta destinada a você, a quem foi chamado de louco. Nunca vi um louco

munido de tanta lucidez, que diante de tal racionalidade, a psiquiatria de sua época não

passava de um reduto de aventureiros que exploraram seus fetiches nas representações

intelectuais de alguns gênios superiores não entendidos, a quem a sociedade deu o nome de

louco. Mas o que seria esse louco Artaud?

É um homem que preferiu enlouquecer, no sentido em que a sociedade entende a

palavra, a trair certa ideia superior a honra humana. Eis por que a sociedade condenou

ao estrangulamento em seus manicômios todos aqueles os quais se queria livrar,

contra os quais queria defender-se, porque eles haviam recusado a acumpliar-se com

ela em certos atos de suprema sujeira. Pois um louco é também um homem a quem a

sociedade não quis ouvir e quem desejava impedir a expressão de verdades

insuportáveis (apud, ESSLIN, p.90, 1978)

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A sua arte foi essa verdade insuportável que enquanto expressão, não quis ser escutada

e compreendida pela sociedade artística da primeira metade do século XX. Sob o julgamento

de louco produziste uma imensa obra, que do ponto de vista dos tempos atuais nada tem a

comparar com a loucura.

O titulo dessa carta chama-se Carta ao Louco - A inspiração inicial ou a jornada em

busca do ator-xamã, que tem o intuito de informar sobre o que eu estou empreendendo no

momento. O titulo, é uma alusão a carta do Tarot de Waite O Louco, que eu escolhi para

inspirar esta escrita destinada a você, intitulado por essa sociedade tarada de o “louco”

O Louco no Tarot, é nada mais, nada menos que a figura de um bobo da corte, um

ator, um momo andarilho no caminho da arte. Permita-me Artaud que eu fale um pouco sobre

esse louco e você vai entender que ele é o elemento essencial para o trabalho a qual eu estou

defendendo. Este louco espelha de forma análoga a figura do ator de carreira, um servidor do

teatro, um profissional que entende como manipular as emoções. Entretanto este Bobo,

cansado de servir apenas de animador da corte, resolve abandonar o conforto do reino para se

aventurar no mundo. Ele está insatisfeito com a arte dos palácios teatrais e agora busca uma

nova experiência para sua vida de artista. Interiormente, este louco-momo-ator guarda uma

vontade de retornar as origens rituais do teatro. Com esse propósito ele se coloca em

caminhos desconhecidos – é um inicio de uma jornada, uma peregrinação mística, artística e

alquímica. No caminho, o bobo descobre que é preciso antes de tudo estar em estado

diferenciado de energia. Existe uma alteridade na mente e no corpo do peregrino teatral. O

qual explicarei mais adiante.

No Tarot de Rider-Waite existe uma lâmina de um Bobo da Corte, chamado de Le Mat

– O Louco. Na imagem se vê um bobo da corte vestido a caráter de um artista medieval, tendo

em seu figurino os guizos próprios dos palhaços da época. Carrega em suas costas uma trouxa

de roupas, que se permite imaginar que ele inicia uma jornada. Na representação mística do

tarot, o louco significa um estado de abertura para as novas experiências – o principio criador.

O Arcano do louco é a causa subjacente após todos os efeitos. O poder oculto após

todas suas manifestações. Segundo a ocultista Edith Waite (2009) é a semente do fim semeada

em todo inicio. É o nada do qual surge tudo. “O Louco costuma representar inícios,

experiências e opções novas; os primeiros passos de um novo caminho e as primeiras

palavras escritas numa página em branco” (WAITE, 2009 p.44)

Na imagem do Tarot de Waite, O Louco é visto frente a um precipício que se coloca

como obstáculo em seu caminho, para significar que em todas as experiências novas existe o

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risco de falhar. Desta forma, o Louco expresso nesta imagem corresponde ao Bobo da Corte,

o Ator, o Atuante e uma pessoa do teatro.

Acredito Artaud, que o Louco nos representa, sobretudo te representa. Pois, nós loucos

somos vistos como extravagantes escandalosos e alarmantes. Entretanto, o louco não se

preocupa com o que as pessoas estão pensando a respeito dele, a única aprovação de que ele

precisa é a sua. Este arcano revela um ser dotado de confiança em si mesmo. Talvez não tenha

nada de louco.

Quando não somos compreendidos atraímos naturalmente a condenação – isto é um

louco! Por diversas vezes, nós pessoas do teatro somos atacados por essa reprovação. Quando

eu ouvia falar de você em algum meio artístico, escutava quase que repetidamente a censura:

“Artaud era louco” e isso me aproximou mais de sua obra. Acredito que onde há a

condenação á loucura, há também um caminho oculto de verdades assombrosas. E assim,

como O Louco do Tarot eu me coloco em situação de risco para percorrer uma jornada

mística nas artes cênicas

Só agora é que eu começo a entender o que você escreveu em seus estudos. A falta de

maturidade e a incompreensão intelectual que é própria dos artistas ainda não tocados pela

peste teatral, nos faz confundir as ideias e tornar o pensamento um imenso caos de

informações. Confesso que demorei certo tempo para entender o que você pretendia, ou na

verdade, pretende.

Durante a minha formação no Curso de Bacharelado e Licenciatura em Teatro1 eu não

conseguia me sentir um ator. Eu tinha a impressão que era um mero imitador, que imitava

técnicas de outros mestres, ou mesmo um caminhante que percorre um caminho com olhos

alheios. Dentro de mim, um cavalo selvagem corria doido atropelando todos os protocolos do

aprendizado acadêmico. Cada técnica ensinada, cada teoria estudada, cada descortinar de

palavras ou conceitos sobre o teatro não surtia encantamento. Por vezes desejei dar um passo

atrás e voltar no tempo em que apenas a intuição ordenava o teatro a qual eu devia fazer. Um

espirito rebelde e perverso guiava meu corpo para a loucura. As minhas tentativas de me

adequar a uma representação teatral só me aborreciam. O “ser ou não ser” apenas me soava

falso. A voz, o gesto e outras expressões de movimento, nasciam já na condição de natimorto.

Em minha volta, onde quer que meus olhos alcançassem, tudo parecia morto. Um ator morto,

um teatro morto, uma encenação de espectros impotentes. Os fantasmas me rodeavam, aonde

1 Bacharelado (2010.1) e Licenciatura (2014.1) em Teatro pela Universidade Federal da Paraíba

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ir? Eu sabia que devia fugir enquanto ainda fosse tempo – antes que a velha cortina dos

teatros empoeirados caísse finalizando o ato.

Louco! Eu me encontrava em delírio, preso num enfadonho sono letárgico. Como

quem acorda de um terrível pesadelo pulando do leito, eu saltei num grito de existência – não

sou um ator! Neste momento desperto e consciente da crise, perguntei-me quem sou eu então?

O que sou?

Esta pergunta, meu caro Artaud, me fez reconhecer que eu não queria criar uma obra

dissociada de minha vida. Minhas verdades sobre eu mesmo. Eu represento a “EU MESMO”

assim, como você, que representa a “Antonin Artaud” e que representa totalmente a sua vida.

Por vezes, me comparo ao Louco. Vejo-me no topo de um precipício existencial

criativo. O Louco do Tarot representa o ser humano em estado de monotonia, e que se coloca

a caminho de novas descobertas. Assim estou eu, meu caro Artaud, buscando o novo, por

caminhos já trilhados. As leituras sobre o teatro cerimonial e as celebrações dionisíacas2 me

despertam um estado de emoção exacerbado, uma vontade de reviver a história e adentrar aos

rituais do teatro antigo. A vontade de compreender a energia do teatro ritual e sagrado, me

impulsiona a voltar ao inicio do caminho para verificar os rastros de nossos antepassados – os

atores ancestrais.

Sabes por que estou falando isso? Te falarei envergonhado, peço que não entendas

como arrogância de minha parte, ou mesmo prepotência a comparação, mas, assim como

você, estou com os ânimos em êxtase ao montar uma nova encenação. Assim me encontro, a

caminho de vivenciar um processo criativo. Antes que me esqueça, este processo será

conduzido a partir do entendimento de instauração cênica. A principio eu pretendia usar o

termo espetáculo para definir o resultado artístico cênico da encenação, mas ao tomar contato

com o conceito de instauração cênica desenvolvido pela orientadora desta dissertação3

cheguei a conclusão de me utilizar deste termo por acreditar que o mesmo alinha bem a forma

artística dos elementos postos a cena.

O conceito de instauração cênica foi arquitetado por Nara Salles(2004) a partir do

termo instauração, utilizado pela a curadora Lisette Lagnado para definir elementos

performáticos intercruzados na instalação em arte visual, significando assim um aspecto

hibrido entre as duas categorias. No entendimento da curadora o termo instauração guarda

2 In Nietzsche, A Visão Dionisíaca do Mundo, 1995

3 Professora membro do programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte e orientadora desta dissertação

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dois momentos de estruturação artística: um dinâmico e outro estático. Diferentemente da

performance a instauração deixa resíduos:

A acepção de instauração supera a característica efêmera da performance, a

instauração deixa resíduos, avançando no sentido de perpetuar a memória de uma

ação, o que lhe tira o caráter de ser somente uma instalação. Nesta, existe um

ambiente montado para determinado acontecimento que pode ser destruído durante o

decorrer da ação no ambiente. A instauração não é destruída no decorrer da ação,

podendo acontecer uma transformação do ambiente a partir de uma estrutura

estabelecida, havendo inclusive uma construção no espaço, interferindo na

paisagem. (SALLES, 2015, p.03)

Desta forma Artaud, seguindo o entendimento de Lisette Lagnado, Nara Salles

incorporou o termo instauração na conjunção com termo “cênica” para hibridizar as

categorias numa mesma significação, para indicar que naquele local são instauradas ações

cênicas e a ambientação não será destruída, mas alterada. É como se o ambiente cenográfico

de uma encenação continuasse em exposição após o encerramento da obra artística, de forma

a deixar resíduos do ato cênico. Para ser mais claro Artaud, a instauração cênica cria um

espaço durante a apresentação que pode ser observado posteriormente como um elemento de

artes visuais.

A instauração cênica a que venho me dedicando a cerca de um ano4, irá se chamar Y.

Poeticamente, eu escolhi essa letra por ela representar imageticamente um caminho bifurcado,

do qual um caminhante deve escolher qual o lado ele deve seguir. Inspiração, que responde a

minha inquietação: por onde seguir, qual melhor caminho da estrada para acessar o teatro que

eu acredito?

Artaud, não sei se estou sendo claro. Temo não ser compreendido. O que eu quero

dizer a você francamente, é que, neste momento estou produzindo uma obra artística de cunho

místico, onde o ator assume uma atuação como um xamã em sua prática operativa. Antes, que

você me diga, eu mesmo venho confessar – foi de seus escritos que a ideia surgiu. Não quero

plagiar você, ou mesmo repetir o que você fala, mas a partir de seu teatro criar o meu. E por

meio de seus desejos e aspirações que eu pretendo me inspirar.

Posso estar parecendo um tanto prepotente ao tentar me aproximar de teus ideais.

Compreendo que não é tarefa fácil adentrar teu sonho teatral e assistir a tragédia que tão bem

4 O processo criativo aqui observado teve início em 01 de novembro de 2016, antes do ingresso à Pós Graduação

na UFRN

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ensaiaste, entrelaçando vida, arte, linguagem e vida, ações e contradições. Mas como um

louco que sou, resolvo me colocar em risco. Sem o perigo a arte é frágil e sua face é bondosa.

Assim como você, Artaud, eu acredito que o teatro tem o poder de mudar a sociedade,

os seres humanos e o mundo, e também acredito que o teatro não é o lugar do entretenimento.

Concordo quando você diz há os que vão ao teatro como ao bordel

Faz algum tempo que venho lendo suas publicações e admito que elas tenham surtido

um efeito muito sensível sobre minha vida de artista. Cada provocação sua, não passa impune

à minha ânsia devoradora e revolucionária. Sinto que o teatro, assim como o mundo, repete

ciclos entre evoluções e involuções, avanços e retrocessos constantes. Assim, compreendo que

as minhas inquietações artísticas fazem parte deste círculo de repetições.

Então você vai me perguntar o porquê destas minhas colocações, e eu irei lhe afirmar:

quero montar uma instauração cênica com alguns elementos que acredito ser verdadeiramente

próprios do teatro. Elementos que você debateu em seus escritos, filosofias teatrais,

mitologias cênicas, operações mágicas, alegorias e arquétipos da arte e outros devaneios

oníricos que encontram no ato teatral terreno fértil para fecundação trágica. De certo você irá

dizer que estes termos não estão em sua obra desta forma, e eu replicarei – você fala de

magia, em seu livro O Teatro e Seu Duplo, você nos diz, concebemos o teatro como um

verdadeiro ato de magia (1985, p.87) Foi pensando sobre isso que me inspirei para conceber o

meu processo criativo “Y”

A instauração cênica “Y” também buscou se guiar e se influenciar por outras

inspirações simbólicas como o Tarot de Rider-Waite5 e a Cabala Hermética, que segundo os

apontamentos de ZELL-RAVENHEART(2016) consiste em um sistema de estudos pautados

nos escritos de Hermes Trimegisto, no conhecimento da numerologia caldeia, na astrologia e

deixado de diversos conhecimentos místicos judaicos. Este código místico foi profundamente

utilizado pelos alquimistas durante o período medieval, servindo de base para todos os

estudos das ordens ocultistas como a Golden Dawn e Ordo Templi Orientis no século XIX.

Ela envolve todo o traçado do mapa dos estados de consciência no ser humano, de extrema

importância na magia ritualística. Estes elementos místicos são os mesmos descritos por você

em suas obras completas.

Nós, seus admiradores, nos aproximamos de você pela diversidade de suas ideias e

pelo grau de mistério que envolve a sua linguagem. O seu espirito inconformado com o teatro

5 Arthur Edward Waite (02.10.1857 – 19.05.1942), místico e ocultista inglês. Foi um grande estudioso e

renomado escritor nos campos do esoterismo e da maçonaria, in WAITE, Edith. O Tarot Universal de Waite.

São Paulo: Isis, 2009

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do inicio do século XX o impulsionou a trazer á cena assuntos ignorados no teatro, como a

questão de pensar o teatro como um ato mágico. Podemos conferir que você foi o primeiro na

historia do teatro ocidental a pensar o ator como um xamã. E sob este aspecto você nos

convida a uma viagem espiritual, uma jornada xamânica no teatro, como se refere Susan

Sontag(1986) em seu ensaio “Abordando Artaud”.

Devo lhe confessar que muito me atrai e influencia a sua ideia de pensar o teatro como

uma obra integral, uma obra de arte total, como proclamou no primeiro Manifesto do Teatro

da Crueldade, quando fala que “nós queremos é ressuscitar esta velha ideia, no fundo jamais

realizada, do espetáculo integral” (apud, VIRMAUX, 2009, p.45) Para o estudioso Alain

Virmau, esse era o sonho de muitos artistas depois que Richard Wagner nomeou suas óperas

de A Obra de Arte Total, e você Artaud, seria a pessoa melhor credenciada para assumir essa

ambição totalitária.

Assim como Wagner, você conseguiu realizar uma atividade multiforme, manifestada

em todos os níveis no teatro e nos espetáculos, e que também, verificamos em outros campos

de criação artística. Sabemos que você experimentou os fazeres de diversos ofícios: ator de

teatro e cinema, diretor e assistente teatral, cenógrafo, maquetista, roteirista, sem contar de

algumas produções de artes visuais6 e iluminação cênica. Tarefas que despertou esta sua visão

integral do teatro.

Inspirado em sua biografia e experiência de trabalho eu pretendo me guiar por essa

possível senda - um teatro integral, onde eu possa manipular diversos elementos numa única

obra, no meu caso a Instauração Cênica. A esse principio, eu pretendo experimentar alguns

elementos cerimoniais e místicos, cantos, operações xamânicas, jogos de improvisação,

instaurações cênicas, elementos performáticos e idealizar um espetáculo ritual como

happening, no qual irá se realizar uma espécie de cortejo. Minha instauração cênica será,

sobretudo itinerante. Para isso eu reservei um espaço em minha propriedade, um bosque de

árvores. Neste local eu apresentarei minha criação teatral “Y”

A idealização deste processo criativo é estruturado no misticismo da cabala e nos

arcanos maiores do Tarot de Rider-Waite. Sei, que estou falando de um assunto que te

provoca, o misticismo. Não falo isso por uma visão rasa, a esse respeito Martim Esslin7 já

mencionou sobre o seu trabalho:

6 Brochura gráfica que continha montagens fotográficas das produções: O Teatro Alfred Jarry e A Hostilidade

Pública 7 ESSLIN,Martin. Artaud. São Paulo: Cultrix.1978

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Porém, a mais notável expressão da imersão de Artaud nos hábitos de pensamento

e imaginação do mundo helenístico pode ser observada na estreita afinidade entre

suas fantasias religiosas e cosmológicas nos últimos quinze anos de sua vida, e o

universo dos gnósticos helenistas, essas numerosas e diversas escolas de

especulação filosófica e mística florescentes no mediterrâneo oriental entre os

séculos III e VII, condenados e veementes combatidos pelas igrejas cristãs, como

hereges perniciosos, esses filósofos gnósticos e essas escolas e seitas criaram uma

desnorteadora variedade de sínteses entre cristianismo, filosofia grega e pensamento

e mito das religiões orientais como fez Artaud em seus últimos escritos, gnósticos

misturavam elementos dos livros canônicos e dos apócrifos da bíblia com

neoplatonismo e cabala, as crenças indianas na transmigração das almas, o culto

egípcio de Osíris e Hórus, os ensinamentos maniqueístas a respeito do mundo da

dualidade de bem e de mal, o zoroastrismo da Pérsia, a astrologia babilônica, que

interpretava o universo como rígida hierarquia das esferas ascendentes e

descendentes, e resíduos das religiões da Grécia clássica, como o canto de Dionísio

e os mistérios do Orfismo (ESSLIN.p.18, 1978)

Sabemos que você Artaud, era obsidiado por numerologia, pelos sistemas divinatórios

e por outras questões ligadas a feituras e quebras de feitiço. Não podes negar que teu livro

sobre o imperador romano Heliogábalo8 foi dedicado ao eremita Apolônio de Tyana

9, e que

esta dedicação mística se revela como a prova real de sua aproximação com as filosofias

místicas, e o seu encantamento com a alquimia.

De minha parte também, tenho um verdadeiro encanto pelo universo das mitologias e

doutrinas ocultistas. Desde muito novo, sou inclinado aos assuntos ocultistas. Ainda menino

eu encenava ludicamente a figura de um mago manipulador de poções mágicas, brincando

com vasilhames de vidro e água misturada com areia e pedras, eu acreditava inocentemente e

intuitivamente que seria possível obter o ouro nessa manipulação. No inicio de minha

juventude fui apresentado aos estudos do Tarot, momento em que tive contanto com uma aura

de encantamento e mistério. Quando tomei pela primeira vez, em minhas mãos, um baralho

de Tarot, senti uma indescritível atração pelas imagens gravadas nas cartas. A meu ver, estas

figuras, que por um lado parecem enigmáticas, mas que ao mesmo tempo, nos provoca uma

imaginação. É como se falassem diretamente ao nosso pensamento, cada carta de Tarot guarda

uma história desenhada em símbolos, que de certa forma desperta um conhecimento profundo

durante muito tempo esquecido.

Não sabemos quem inventou, nem a época e nem a sua finalidade. Sabemos que o

mesmo é notadamente conhecido nos círculos esotéricos e, que há diversos estilos destes

baralhos. Segundo as informações de Edith Waite (2009), o seu próprio nome já é um

8. ARTAUD, Antonin. Heliogábalo ou O Anarquista Coroado. São Paulo: Assírio e Alvin, 1991. Romance

bibliográfico escrito por Artaud que traz uma linguagem mística provocante. 9 “Dedico este livro aos homens de Apolonio de Tiana, contemporâneo de Cristo, e para todos os verdadeiros

Illuminati que podem permanecer neste mundo que se perde” (ARTAUD, 1991) segundo Carlos Basílio(2010)

Apolonio de Tiana foi um Filósofo grego que viajou pela Ásia menor, Babilônia e Índia visando difundir as

doutrinas grega e oriental.

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mistério. O termo Tarot é usado na atualidade na maioria dos idiomas. A primeira noticia que

se tem sobre o Tarot vem do inicio do século XV. “apareceu pela primeira vez no norte da

Itália, composto por 78 cartas, formadas por 22 triunfos ou arcanos maiores e 56 menores, que

por sua vez estão divididos em quatro espécie ou naipes: ouros, copas, espadas e paus”

(WAITE, 2009, p.08) é interessante perceber que há no Tarot uma relação estreita com o

conhecimento da Cabala.

A Cabala, segundo o rabino Michael Laitman (2002) é um método para alcançar o

mundo espiritual. “Ensina-nos a respeito do mundo espiritual, e, ao estudá-la, desenvolvemos

um sentido adicional. Com a ajuda deste sentido, podemos estabelecer contato com os

mundos superiores. este sistema pode ser ainda denominado como sabedoria oculta.” (p.17)

Ainda segundo Laitman (2002) A Cabala é um sistema que objetiva avaliar nossos

desejos: “toma todos os nossos sentimentos e desejos, os divide e dá uma fórmula matemática

exata para cada fenômeno, a cada nível, para cada tipo de compreensão e de sentimento”.

(p.19) Assim, a cabala guarda elementos matemáticos em sua organização: utiliza geometria,

matrizes e diagramas, na tentativa de estudar o “ser” e o seu “sentimento”

O aprendizado dos sistemas do Tarot e da Cabala me possibilitaram identificar em suas

obras Artaud, diversos códigos esotéricos e expressões da sabedoria oculta.

Ao conhecer o teatro eu percebi que ele não era um simples jogo dramatúrgico, mas se

constituía de um grande ato de virtualidade, semelhante à própria estrutura do Tarot e seus

arcanos, que são na verdade um sistema de códigos, expressados misticamente pelas imagens

desenhadas nas cartas. As imagens descrevem cenas, contam histórias e camuflam segredos

sem recorrer a palavras escritas. Num primeiro olhar, os arcanos compõem um cenário, que

poderiam ser descritos como uma representação gráfica de uma cena. As imagens arcanas do

Tarot expressam gestos semelhantes a da atuação teatral.

Com o tempo essa minha visão se escureceu e a mente recolheu esse pensamento para

o arquivo do inconsciente. Os anos se passaram, experimentei diversas encenações e práticas

teatrais, mas com um sentimento de insatisfação, eu me senti como um mendigo que come a

mesa do rei e continua esfomeado. O teatro que experimentei ao longo de minha formação de

bacharel em teatro, parecia um teatro de imitação, um teatro de protocolos e regras, técnicas

padrões e estilos dramatúrgicos. Por vezes eu até conseguia compreender que tudo aquilo era

um processo de sistematização do conhecimento, mas ao mesmo tempo e sabia e conhecia a

partir do que eu lia e estudava, que o teatro já havia se libertado a um bom tempo das

submissões de uma dramaturgia escrita e dos roteiros rotineiros e rígidos.

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Quando tive às mãos uma publicação sua, O Teatro e Seu Duplo (1985), fiquei

contagiado com o tipo de teatro que você pretendia construir. Este escrito despertou toda

minha memória do Tarot. Havia no Teatro e Seu Duplo um convite para desbravar os

mistérios do teatro e buscar uma mística cênica, humana e cruel. Como um cataplético

desperto do sono da morte eu fui acionado para arte como um dínamo elétrico – toda minha

vontade teatral ressurgiu.

E para aumentar esse meu ânimo, tive acesso a uma de suas cartas escritas a Jean

Louis Barrault, no período em que visitastes o México. Nela, você fala do teatro que

pretendes conceber: “quando eu o tiver nas mãos poderei automaticamente realizar o

verdadeiro drama que devo fazer, desta vez com a certeza de conseguir, não se trata talvez de

teatro sobre o palco” (apud VIRMAUX, 2009, p.41).

O meu espirito rebelde de ator encontrou nos seus pensamentos uma orientação do

teatro que eu queria experimentar. Estou falando dos elementos de selvageria, agressividade

gosto pelo crime, quimeras, obsessões eróticas e outras utopias presentes no Manifesto do

Teatro da Crueldade que publicaste em 1932 na Nova Revista Francesa. No artigo tem um

trecho que acredito que possa ser tomado como uma síntese do manifesto:

O teatro só poderá voltar a ser ele mesmo, isto é, voltar a constituir um meio de

ilusão verdadeira, se fornecer ao espectador verdadeiros precipitados de sonhos,

onde seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras,

seu sentido utópico da vida e das coisas, seu canibalismo se desencadeiem, num

plano não suposto e ilusório, mas interior ( ARTAUD, 1987, p. 48)

O sentimento de interiorização cênica do seu teatro é confirmado com a publicação

do Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade (1933) quando afirmas que o teatro da

crueldade “foi criado para devolver ao teatro a noção de uma vida apaixonada e convulsa; e é

neste sentido de rigor violento, de condensação extrema dos elementos cênicos, que se deve

entender a crueldade” ( ARTAUD, 1987, p. 48)

Primeiramente por coincidência e logo depois por indução, encontrei em sua obra os

elementos que eu acredito serem importantes para a minha formação poética e teatral. Ainda

hoje as pessoas tem dificuldade de entender o que você propôs. E também esquecem que a

partir de você surgiram muitas ideias que renovaram o nosso teatro. As suas tentativas de

idealizar a sua obra, nos ofertou toda uma diversidade de reflexão sobre o papel do teatro, a

função do ator/atriz e o processo criativo das artes cênicas.

Creio que será impossível falar da criação de minha instauração cênica “Y” sem que

eu relacione minhas ideias com as suas, ou mesmo que eu me inspire em seus desejos para

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orientar o meu trabalho. Em verdade Artaud, você é a referencia guia e condutora dessa

pesquisa. Não quero lhe divinizar ou mesmo lhe engrandecer na condição de um semideus

como muitos de seus seguidores fazem. A ti eu irei me relacionar como um irmão das artes,

um Frater Iniciado10

nos segredos da magia, um ator de fato, e um homem de teatro. Acredito

que todos os grandes nomes da história do teatro estão na mesma proximidade que nós atores

mortais. A sacralidade com que fazemos de vossos nomes, só permite afastá-los cada vez mais

de nossos olhos. É preciso, profanar o objeto sagrado como diz Giogio Agambem em seu

livro profanações (2007) de modo, a tê-lo perto de nós. Assim, eu lhe tiro do altar da

sacralidade para lhe degustar como uma oferenda ritual palpável, simples e humano.

O que me faz entender que você é uma figura humana e não um semideus do teatro

como muitos fazem de ti, é o fato de encontrar no Manifesto da Crueldade a expressão de vida

associada à arte e ainda perceber que você propõe um teatro com uma linguagem fundada no

corpo e na inspiração. A crueldade a que descreves, age como uma renovação da vida através

de um teatro que promove a cura. Lembro quando você falou certa vez, que “o ato dramático

poderá dar vez a cerimonia mágica e mística e que a ação pudesse transcender ao autor, ao

ator e ao público” (ARTAUD, 2014, p.75).

Sei que o teatro oriental foi sua grande fonte de reflexão, e que foi através de uma

apresentação do Teatro de Balí, por meio do espetáculo Barong, que chegastes à reflexão

inicial sobre o teatro que se produzia na Europa naqueles idos de 1930. O contato com aquele

teatro de Balí te possibilitou uma nova concepção de mundo que influenciou não só sua obra,

mas todo o fazer do teatro contemporâneo no ocidente. Um dos traços marcantes que você

observou neste tipo de teatro, foi a supressão do autor na produção teatral em proveito de

diretor. “Mas aqui o diretor é uma espécie de ordenador mágico, um mestre de cerimônias

sagradas. E a matéria sobre a qual ele trabalha, os temas que faz palpitar não são dele mas dos

deuses. Eles provêm, ao que parece, das junções primitivas da Natureza que um Espírito

duplo favoreceu.”(ARTAUD,2014, 87)

Busquei em seu pensamento Artaud, a inspiração para edificar meu trabalho de teatro e

a construção da Instauração-Cênica “Y”, e isso foi feito a partir das tuas colocações sobre os

aspectos da magia no teatro. Há em tua obra O Teatro e seu Duplo, um apontamento que me

serviu como guia condutor e ordenador para o meu processo criativo:

10

Nas tradições das escolas de filosofia mística os novos adeptos eram chamados de Frater, ou seja, irmão.

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É sob esse ângulo de utilização mágica e de bruxaria que se deve considerar a

encenação, não como o reflexo de um texto escrito e de toda a projeção de duplos

físicos que provém do texto escrito, mas como a projeção ardente de tudo o que

pode ser extraído, como consequências objetivas, de um gesto, uma palavra, um

som, uma música e da combinação entre eles. Essa projeção ativa só pode ser feita

em cena e suas consequências encontradas diante da cena e na cena; e o autor que

usa exclusivamente palavras escritas não tem o que fazer e deve ceder o lugar a

especialistas dessa bruxaria objetiva e animada. (ARTAUD,2014, 81)

Outro apontamento que foi muito relevante e que justifica o meu trabalho se encontra

na seguinte enunciação: “Alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las

como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro”

(ARTAUD, 2014, 149).

Não encontramos em seus textos Artaud, o termo xamã, encontramos terminações

semelhantes a exemplo de curandeiro, feiticeiro e mestre de cerimônias sagradas. Dessa

forma, quando eu falo em ator como xamã eu faço relação com esses termos, principalmente

com o “curandeiro” que resulta em um facilitador da cura por meio de operações de magia.

Assim, desta forma eu pretendo buscar essa possível transcendência na instauração

cênica Y. Quero tornar o ato teatral em uma operação mágica, onde o ator é mestre de

cerimônia, é servidor de um teatro da sensibilidade, do êxtase e da cura. Ao saber que você

acreditava que o ator poderia atuar como um xamã, eu me desafiei experimentar esta ideia.

Os xamãs, como você bem sabe, eram mestres de magia cerimonial. Segundo Mircea

Eliade (2002) os xamãs estavam no seio de sua sociedade promoviam as transformações de

estados de emoções e comportamentos através de cantos, evocações danças, pantominas e

presdigitação, eles, os xamã são mestres da técnica do êxtase, assim, o “xamanismo é a

técnica do êxtase[...]A palavra chegou até nós através do russo, do tungue saman (ELIADE,

2002, p.16 ) apesar do termo xamã ser originário da Sibéria, passou a ser utilizado por

estudiosos da antropologia e das ciências das religiões para identificar e reunir conjuntos de

práticas e crenças religiosas de origem ancestral em todo mundo. Assim,

Desde o início do século (XX), os etnólogos se habituaram a utilizar como

sinônimos os termos xamã, medicine man, feiticeiro e mago para designar certos

indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas as

sociedades “primitivas”. Em português, poderíamos acrescentar a essa lista os

termos curandeiro e pajé. (ELIADE, 2002 p.15).

Meu caro Artaud, a obra de Mircea Eliade (2002) faz uma ampla abordagem sobre o

papel do xamã, segundo ele, atribui-se ao xamã a competência de curar e de operar milagres,

como aos magos. Além disso, é ainda psicopompo, ou seja, aquele que pode guiar as almas ou

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através dos sonhos esclarecer e revelar segredos a seus seguidores. O xamã para Eliade (2002)

pode ainda ser sacerdote, místico e poeta. Desta maneira os xamãs, por meio da técnica do

transe, servem de intermediários entre a comunidade e outras dimensões místicas. “O xamã é

o grande especialista da alma humana; só ele a “vê”, pois conhece sua “forma” seu destino”

(idem, p.20).

Em seus escritos Lévi Strauss (2014) nos fala que algumas práticas xamânicas são

muitas vezes compostas de recursos dramáticos, elementos rituais e cênicos que ainda podem

ser encontrados nas manifestações de algumas aldeias do oriente da Ásia e da Oceania.

Artaud, no seu livro O Teatro e seu Duplo (1985), encontrei uma ponderação sobre o

teatro oriental, a qual você destaca como um teatro de tendências metafísicas, ao mesmo

tempo em que descreves o teatro ocidental inclinado para as tendências psicológicas. Desta

forma, surgiu inquietação que me tomou conta durante algum tempo: O que difere uma

linguagem teatral da outra? Aprofundando-me mais um pouco em sua obra, cheguei a partir

de sua reflexão, a um entendimento, que a linguagem do teatro oriental por se tratar de uma

relação metafísica, baseia-se nos gestos, signos, atitudes e sons; enquanto o teatro ocidental,

preso na cultura dos psicologismos, fundamenta-se nas palavras e no diálogo verbal da

dramaturgia.

É evidente Artaud, que você não queria suprimir a palavra articulada no teatro, apenas

queria que ela não fosse mais importante que o próprio gesto. Assim, as artes cênicas

desenvolvidas no oriente lhe serviram de exemplo para entender que a linguagem dos signos

está acima das palavras, e que por sua vez nos despertam a sensação de poderes mágicos.

Encontramos em sua obra O Teatro e Seu Duplo (1985) a manifestação de seu

pensamento místico do teatro, no qual você destaca a necessidade de retornarmos a ideia

superior da poesia pelo teatro, que existe por trás dos mitos, de maneira a suportar a ideia

religiosa e sagrada do teatro. É importante lembrar Artaud, que as suas ideias sobre o teatro

“foram vislumbradas e inspiradas principalmente no teatro balinês, que possui um caráter

altamente ritualístico” (SALLES, 2004, p.31) e eu acredito Artaud, que aquela extensa

temporada de apresentações do Teatro de Bali em Paris no ano de 193111

foi decisiva para a

estruturação de sua ideia sobre o ator como xamã. Acredito que tal acontecimento tenha lhe

motivado a idealizar a volta às bases do teatro como cerimônia e ritual.

11

No ano de 1931 aconteceu em Paris uma série temporada do teatro de Bali, do qual Artaud teve contato e

causou grande admiração e segundo AMARAL(1996) o teatro de Bali contribui decisivamente para estruturação

do teatro metafisico de Artaud.

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O termo Teatro-Ritual enquanto categoria estética nas artes cênicas é algo ainda

recente, sua incorporação às pesquisas teatrais começa a ganhar ênfase na segunda metade

século XX, primeiramente com você Artaud, e logo mais com o surgimento de grupos e

pesquisadores que sonhavam em resgatar a magia perdida pelo teatro ao longo de sua historia.

Com esse objetivo, atores ocidentais mergulharam nas tradições orientais, nas culturas

africanas e latino-americanas. Desta forma a o termo Teatro-Ritual pode estar por vezes

interligado ao entendimento de práticas culturais e religiosas que se estruturam na cerimônia,

no rito e no ritual. Entretanto, Artaud, as pesquisas realizadas na área de teatro e ritual

ganharam evidência, a partir dos estudos da antropologia teatral12

, mas, como você vivenciou

de perto e sabe melhor que ninguém, que a busca por esse assunto começou a ser explorado

desde o surgimento das vanguardas artísticas do começo do século XX..

O escritor Francês Patrice Pavis (2005), entende que o ritual encontra seu caminho

na apresentação sagrada de um acontecimento único, que seria uma ação não imitável por

definição, teatro invisível ou espontâneo, mas sobretudo o desnudamento sacrificial do ator

diante do espectador que coloca assim suas preocupações, bem como as profundezas de sua

alma, à vista de todos, com uma esperança confessa de uma redenção coletiva

A teórica de História do Teatro, Margot Berthold (2008), ao falar do teatro como ritual

assenta-se nos alicerces dos impulsos vitais primários, retirando deles seus misteriosos

poderes de magia, conjuração, metamorfose, “dos encantamentos de caça dos nômades da

idade da pedra, das danças de fertilidade e colheita dos primeiros lavradores do campo, dos

ritos de iniciação, totemismo e xamanismo e dos vários cultos divinos” (p.02)

Os elementos da expressão teatral meu caro Artaud, podem ser analisados em

observação aos rituais antigos. Para Margot Berthold (2008) a pré-história, a historia da

religião, a etnologia e a cultura popular oferecem material abundante sobre danças rituais e

manifestações populares de caráter religioso das mais diversas formas que carregam a

semente do teatro.

O teatro ocidental, assim como o oriental surgiu do culto aos deuses da natureza, da

fertilidade, aos ritos de iniciação e das práticas xamânicas – nessas manifestações religiosas

podia-se realizar uma série de ritos: meditação, drogas alucinógenas, dança, música, evocação

a espíritos da natureza, bem como a produção de ruídos ensurdecedores. Gostaria Artaud, de

destacar esta informação que encontrei na obra de Margot Berthold, do qual a autora

acrescenta, que tais ritos causam o estado de transe mediado pelo xamã, observemos:

12

Estudo do comportamento do artista no fazer artístico, formas de trabalho, métodos e simbologias não

necessariamente estéticas, mas que se constituem base para o trabalho do ator

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Seu contato visionário com o outro mundo lhe confere poder “mágico” para curar

doenças, fazer chover, destruir o inimigo e fazer nascer o amor. Essa convicção do

xamã, de que ele pode fazer com os espíritos venham em seu auxilio induzem-no a

jogar com eles. (BERTHOLD, 2008, p.03)

Alguns teóricos costumam classificar o teatro ritual como um tipo de “teatro

primitivo”. Eu particularmente não gosto da expressão “primitivo” soa como algo rude. Nós

ocidentais, munidos das armas da colonização somos alienados em classificar as culturas

ancestrais como algo inferior. Em sua época, Artaud, podia-se até compreender, mas hoje, no

século XXI, encontrar essa diminuição é praticamente revoltante. Por isso, me apraz muito, o

pensamento mais atual de alguns pesquisadores do teatro, como a respeito de Ana Maria

Amaral (1996) que ao falar do teatro antigo, o teatro como ritual, justifica, que a sua

existência se deu no momento em que o ser humano sentiu “a necessidade de sair de si, de se

despersonalizar, de se disfarçar, de sair do seu dia a dia para viver novas experiências.”(p.56)

esse sair de si mesmo se dava por meio da transformação das energias cósmicas, e isto só era

possível na realização do ato cerimonial guiado por um agente xamânico. Se você perceber

Artaud, a autora que acabei de falar tem em suas ideias o pensamento Artaudiano.

Eu acredito, que para o ator enquanto xamã encontre o lugar da representação e o

entendimento de sua função artística-xamânica, ele precisará incorporar em sua prática

exercícios inspirados em técnicas do êxtase xamânico, e se esforçar para compreender como

esses elementos criam as condições de ser ator – o ser ou não ser. A tentativa de descobrir

ritos para atuação teatral oferece ao ator contemporâneo uma oportunidade de conciliação do

ator de agora com o ator de ontem. Conciliar técnicas, conceitos com os ritos e operações

cerimoniais sem que para isso o teatro torne-se mera encenação religiosa.

Eu estruturei esta investigação a partir dos termos matrizes: ator/atriz, xamã, e

instauração cênica. Esses termos, Artaud, foram a base para eu construir uma escrita

dissertativa sobre o meu papel enquanto ator na vivência do ritual no teatro, bem como a

realização da Instauração cênica Y que envolverá ritual e teatro. Sabemos que tal

empreendimento não se estrutura de maneira fácil, pois a complexidade de entendimento

sobre teatro ritual se espelham na complexidade dos estudos sociológicos das artes, religiões e

antropologia. Entretanto, a possibilidade de haver uma ligação dos elementos teatro com a

antropologia e da religião, torna esta pesquisa um campo fértil, no qual o ator poderá buscar

arqueologicamente as sementes ancestrais de seu trabalho de atuação. Acredito em seu ideal

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Artaud, quando você fala que o artista possui um potencial de energia semelhante à de um

curandeiro, de forma a “alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las

como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro.”

(ARTAUD, 2014, 149) assim esse curandeiro se insere dentro da compreensão de trabalho

um xamã, como nos expõe os estudos de ELIADE(2002), LÉVI-STRAUSS(2004),

MOUSSINAC(1957) É nesta crença que me obstino a enveredar pelas trilhas ancestrais do

teatro e do ritual com a finalidade de articular pensamentos, e experimentações teórico-

práticas.

Até aqui Artaud, eu esbocei o meu pensamento e minhas vontades criativas, como

também o que eu tenho estudado a respeito, mas quero que saibas – você, Antonin Artaud é a

maior referência para este trabalho. Embriago-me com sua filosofia teatral e assim, como as

bacantes no ápice do ritual dionisíaco, chego ao estado transcendental do teatro, isto é, estado

catártico, pensando por Aristóteles(1993) para definir o sentimento produzido na tragédia

grega, onde a obra teatral em forma dramática, não narrativa, encena incidentes que suscitam

piedade e temor.

Para encerrar esta primeira carta Artaud, devo dizer que o Louco do Tarot é um

arcano de grande relevância enquanto representação simbólica. Ele é um ator que consegue

incorporar a alma de diversos outros arcanos, e por sua vez traz a essência do xamã. Em

minha Instauração-Cênica “Y”, conto a história deste louco, deste bobo da corte que se

encontra diante de um caminho bifurcado, uma estrada dividida, dupla, assim como o teatro

Artaudiano.

Peço desculpas se por algum momento não fui claro o suficiente. Mas, me coloco em

condição humilde para receber sua opinião ou de quem quer que seja. Escrever-te-ei outras

cartas explicando o processo de minha pesquisa e a realização de minha instauração cênica.

Apenas posso dizer com precisão, que me tenha como um seguidor e, sobretudo

como um admirador.

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30

CARTA AO MAGO – OU ABORDAGENS SOBRE UM POSSÍVEL ATOR-XAMÃ

Figura 1: Carta do Tarot de Waite: O Mago (gravura do Tarot de Waite 2009)

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31

Caro Artaud,

Eu tenho um projeto de teatro que realizei com um financiamento cultural através do

Fundo Municipal de Incentivo a Cultura da Prefeitura Municipal de João Pessoa –

FMC/PMJP, para montagem de uma instauração cênica intitulada de “Y”, que por sua vez é

também objeto de estudo desta escrita dissertativa. Na verdade, trata-se de experimento

artístico com um atributo de ritual. Esta iniciativa partiu do desejo de colocar em prática uma

inspiração poética que adquiri lendo sua obra o Teatro e seu Duplo (1985) como também em

outros textos seus reunidos na obra Linguagem e Vida13

(2014)

A proposta deste trabalho a qual eu estou me dedicando nos últimos tempos, pesquisa

referenciais teórico-práticos para a consolidar e organizar elementos cênicos que possam

dialogar com um possível teatro ritual artaudiano à base de signos místicos e artísticos, e que

sobretudo atenda o meu sentimento particular de artista, e que possa dessa forma trazer-me a

felicidade estética, sem que a instauração cênica seja um “atrativo digestivo14

” como você

mesmo chama com as produções pensadas unicamente em satisfazer as demandas do mercado

cultural.

A minha irrisória pretensão consiste apenas em discutir algumas de suas colocações

sobre o teatro que você deseja, e a partir de suas contribuições, erigir aquilo que eu acredito

ser necessário para o meu teatro.

Em uma das suas cartas ao senhor Fouilloux15

você afirma que o seu projeto de teatro

tem a finalidade de reconciliar a ideia de ação com o plano utilitário da vida tendo o proposito

de “alcançar as regiões mais profundas do individuo e criar nele próprio uma espécie de

alteração real” (ARTAUD, 2014, p.92) e no desenvolvimento de sua explanação você

objetiva o resultado onde você pretende chegar:

Isto significa colocar o teatro no plano da magia, o que nos aproxima de certos ritos,

de certas operações da Grécia Antiga e da Índia em todos os tempos. Contudo

precisamos nos entender e não é preciso acreditar que o teatro, segundo essa

concepção seja reservado a uma elite de espíritos religiosos, místicos e iniciados.

(ARTAUD, 2014, p.92)

Assim, devo lhe confessar que gosto da mesma ideia e acredito que a magia é ainda

um elemento bastante forte na criação da obra de Arte Cênica. O “A” maiúsculo na palavra

13

Textos organizados por J. Guinsburg, Silvia Fernades Telesi e Antônio Mercado Neto 14

Expressão utilizada na carta ao Senhor Van Caulaert ou Senhor Fouilloux (projeto de carta) – Paris, 8 de julho

de 1932. 15

Gerente comercial do Teatro da Comédia Francesa.

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Arte se justifica na feitura da Grande Obra16

, na verdade trata-se de uma breve analogia. Para

os alquimistas a arte era uma só, e quando ela tinha a capacidade de produzir transformações

físico-químicas recebia a escrita com o “A” maiúsculo. Neste sentido quero trazer aspectos da

Alquimia, da Magia e do Xamanismo para minha pesquisa e produção artística.

Antes mesmo de conhecer os seus escritos sobre esse teatro baseado nas forças

espirituais, eu já me debruçava sobre os véus de mistérios que envolvem a origem do teatro na

historia mundial. E foi sob os aspectos de um teatro mais ritualístico, que me motivei a buscar

informações sobre ritos, procedimentos mágicos e operações que estivessem próximos aos

elementos do teatro.

Mas foi a partir de seus pensamentos e ideais que eu cheguei ao ponto de decisão:

experimentar possibilidades cênicas para montar uma obra de artes cênicas onde o ritual é o

mote.

Outra questão que me faz dedicar tempo nesta empreitada, é a minha vivência aos

estudos da Alquimia, Cabala, Xamanismo, Tarot. Desta forma eu quero trazer para o meu

teatro aquilo que me alimenta espiritualmente e que me possibilita desenvolver uma crença

em um teatro mágico-espiritual, onde o ator é conhecedor da magia e da Arte.

Artaud permita-me, desenvolver aqui alguns dos princípios que me guiaram no

empreendimento que busco no atual momento.

Primeiramente tenho uma ideia de escrever sobre o meu papel ator como um xamã

inserido numa instauração cênica, e que é objeto de defesa do meu grau em mestre em artes

cênicas. Segundo, a materialização estética dessa instauração cênica numa produção artística,

onde eu sou o idealizador.

Quando eu digo “o meu papel”, na verdade, eu estou tentando mostrar qual a minha

função nesta tarefa artística de construir uma encenação onde eu, enquanto ator e produtor,

sou também agente espiritual, servidor do teatro. Pode parecer confuso Artaud o que eu estou

tentando colocar, é que, o meu papel, revela um desempenho, uma ação premeditada e

executada.

Quando se fala em papel no teatro, temos logo em mente uma imagem artística criada

por um dramaturgo, cujo objetivo é dar vida a uma personagem na encenação. Isto pode ser

conferido no conceito de papel dado pelo o famoso ator, diretor e dramaturgo Jurij Alschitz,

através da seguinte reflexão:

16

Dentro da concepção dos estudos da Alquimia, o processo de operação (manipulação) é chamado de A Grande

Obra. Para os filósofos Hermetistas a Arte com “A” maiúsculo seria a própria alquimia, matriz de todas as artes,

inclusive o teatro. Por este motivo Artaud foi um dos primeiros a pensar a possibilidade da relação alquimia e

teatro.

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O papel pode ser visto como uma imagem artística criada pelo o dramaturgo e

trazida à vida pelo o ator. É o caminho tal como a partitura musical escrita pelo o

compositor. A linha das palavras, movimentos e emoções mostra o caminho tomado

pelas ideias e temas; símbolos e signos de ideias concretas mostram o rumo a seguir

em uma forma artística. (ALSCHITZ, 2014, p.38)

Neste caso, o meu papel enquanto ator-xamã se baseia em partes neste conceito. Mas

não tem o proposito de seguir a construção de uma personagem pela via tradicional do texto

teatral. A minha função, o meu papel se esboça justamente na possibilidade de construir uma

imagem artística de o ator como um xamã, no qual eu sou o próprio dramaturgo. Assim, eu

desenho um propósito e busco seguir este argumento.

Esta dupla tarefa de construir a instauração-cênica e pensar o meu papel de ator-xamã

tem me consumido muito, pois acredito que sejam duas coisas diferentes postas num mesmo

caminho – é um duplo, como você mesmo fala: em todas as coisas existem dois lados, dois

aspectos. (ARTAUD, 2014, p.81) Assim, surgem por vezes confusões e conflitos entre

escrever, defender uma ideia, e criar artisticamente elementos rituais para essa instauração.

O ponto de partida meu caro, é pensar a relação desse ator como um xamã.

Apontando algumas incidências sobre o ritual no teatro e perceber como “eu” enquanto ator e

enquanto iniciado místico, pode trazer elementos do campo do teatro e do ritual para

identificar, se há essa possibilidade de ser um “ator-xamã”. Para que isso possa ocorrer, irei

me colocar como objeto de estudo: o “eu pesquisador” analisando o “eu ator”. Este

empreendimento meu caro Artaud, não se encerra com a defesa dissertativa que eu fiz para a

aquisição de minha titulação de Mestre. É uma ação que tomará um tempo maior de minha

vida de artista-pesquisador e poderá também desaguar em outros afluentes da pesquisa em

artes cênicas.

Então você poderá me perguntar o porquê de me colocar como objeto de estudo, ao

invés de escolher alguns atores para investigar essas relações. Eu penso isso até o presente

momento, e até mesmo, disponho de um elenco que participou da produção artística, e que de

certa forma, poderia constituir-se como objeto. Mas, quis apenas focar na minha pessoa, visto

que eu era o único artista nesse processo que já havia experimentado vivências xamânicas,

além de ser um membro associado à um Ordem Oculta17

, que de certa forma dialoga com os

princípios do universo xamanico. Assim eu acredito que seja mais fácil saber reconhecer as

relações entre “magia e teatro”

17

Trata-se de uma ordem filosófica baseada nos mistérios ocultos da filosofia Hermetista fundada por discípulos

de Hermes Trimegisto no século IV antes de Cristo.

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Para que eu possa levantar quaisquer considerações sobre este trabalho, devo fazer

antes, alguns apontamentos que justificam a minha motivação por esta pesquisa. Espero não

ser fatigante nesta tarefa. Mas creio que seja necessário Artaud fazer aqui nesta carta, algumas

colocações sobre o teatro como ritual, sobre xamanismo e teatro.

Sabemos Artaud, que o misticismo e as ciências ocultas se constituíram de grande base

de sua vivência no mundo da arte. Dedicaste tempo de estudo e colocaste tais referências em

boa parte dos ensaios, livros e poemas que escreveste. Desta forma te considero a referência

matriz de minha pesquisa. A partir de seus textos eu poderei trazer outras contribuições de

outros autores, mas quero que saibas que em boa parte dos escritos sobre teatro e ritual na

atualidade partem das inspirações de seus estudos. E que foste o principal nome do século XX

a idealizar a volta do teatro a suas origens, como ritual e mágico. Eis que você nos coloca:

O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é ligado a forças, baseado em uma

religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos, está ligada diretamente

aos ritos do teatro que são o próprio exercício e a expressão de uma necessidade

mágica espiritual. (ARTAUD, 2014, p.75)

Entre os artistas do teatro ocidental podemos considerar você como um dos primeiros

a enveredar pelas trilhas de um teatro mais ancestral, onde se abrem caminhos para os ritos do

teatro, um teatro liberto de uma dramaturgia de palavras escritas e textos meramente

declamados. Em seu Teatro encontramos diversas vezes a sua declaração de vontade em

querer construir um novo tipo de teatro: “Concebo o teatro como uma operação ou uma

cerimônia mágica, e concentrei todos os meus esforços para lhe devolver, por meios atuais e

modernos, e também compreensíveis a todos, seu caráter ritual” (ARTAUD, 2014, p.75)

A ideia do ator como xamã foi discutida a primeira vez na historia do teatro ocidental

por você em sua obra O Teatro e Seu Duplo (1985) nela você expõe que o ator deveria

assumir a postura de um curandeiro ou feiticeiro, assim você idealiza uma reaproximação a

tradição mítica do teatro, na qual a encenação é tomada como uma ação terapêutica,

comparado até mesmo aos métodos de certas religiões ancestrais que tinha o xamã como guia

e condutor. É facilmente compreendida a analogia entre o teatro idealizado por ti Artaud, e as

práticas xamânicas.

A princípio eu não compreendia a possibilidade do ator assumir a postura de um

xamã. Pois o entendimento de xamã parecia limitado aos círculos de magia. Segundo o

estudioso das religiões, Mircea Eliade (2002), o xamanismo se constitui como um fenômeno

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religioso e mágico, não podendo ser generalizado para todas as formas e tipos de rituais. Para

este estudioso, o xamanismo é um fenômeno exclusivo da região da Sibéria e do centro-

asiático, sendo o xamã o mestre do êxtase que conduz todo o processo de execução do ritual.

Para Eliade(2013), o Xamã é possuidor da experiência extática e é por meio do êxtase que ele

realiza as curas e traz as mensagens do além-mundo.

Entretanto Artaud, outros estudiosos, sobretudo antropólogos como Lévy

Strauss(2004) e Andreas Lommel(1970), acreditam que os xamãs podem estar em toda parte

do mundo, no qual se encontram envolvidos nas magias ligadas as forças da natureza e são

hábeis mestres em entrar num estado de consciência mental diferenciado e alterado.

Talvez seja o estado de consciência diferenciado que aproxime o ator do xamã e eu,

acredito que seja isso que você falou em sua obra. Então eu te pergunto, o êxtase do xamã

pode ser entendido ou mesmo relacionado com o estado de sensibilidade do artista quando

está em cena?

No seu livro O Teatro e Seu Duplo (1985) encontramos o termo transe relacionado à

atuação do ator, no qual você expõe que o atuante deve possuir um estado de consciência

próximo ao estado extático, ou seja, um individuo em transe . Entretanto ao analisar suas

colocações sobre o transe, sou levado a pensar que o quê você fala é um estado lógico de

energia corporal e de consciência e não um caos como muitos entendem. Reforço esta ideia

fazendo uma citação do Ator Gilberto Icle:

Acostumamo-nos a pensar no transe como uma atividade descontrolada e caótica, e

chegaram a existir teorias que relacionavam esses fenômenos a doenças mentais. No

entanto Eliade mostra como a preparação e a iniciação dos xamãs requerem rituais

didáticos que instruem o aspirante em técnicas determinadas (ICLE, 2010, p.68)

No livro O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (2002) Mircea Eliade

descreve o caminho para se chegar êxtase como uma técnica apurada, organizada e sobretudo

sistematizada. Desta forma para se chegar ao êxtase, xamãs de algumas culturas entram em

sintonia com as energias do próprio corpo, entoam canções e sabem perfeitamente como

utilizar os níveis de respiração para aumentar a concentração e o estado diferenciado de

consciência.

A técnica utilizada pelos xamãs é de certa forma conhecida por nós atores. Lembro-me

Artaud, que por diversas vezes, em meio aos exercícios de respiração utilizados no teatro, eu

conseguia experimentar uma sensação alterada de consciência. Em algumas vezes meu corpo

parecia estar mais leve e flutuar; por outras, eu acreditava estar afundando no palco – isto

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tudo ocorrido através da respiração consciente. Não quero dizer que esta vivência pode ser

considerada um tipo de êxtase, mas acredito que pode ser base para esse estado.

Esse estado alterado de consciência que o xamã dispõe para acessar o mundo espiritual

é estimulado através de técnicas como nos fala Eliade (2002) outros antropólogos como é o

caso de Lévi Strauss (2004) utilizam o nome de experiência extática, radical grego que

significa “fora de si”. Este fora de si mesmo, também pode ser visto nas descrições de Junito

de Sousa Brandão (1984) quando ele relata as experiências dos atores e devotos de Dionísio

no teatro grego que atingiam este estado através da dança e embriaguez do vinho:

Após a dança vertiginosa de que se falou, caíam desfalecidos. Neste estado

acreditavam sair pelo o processo do êxtase. Esse sair de si, numa superação da

condição humana, implicava num mergulho em Dionisio e este no seu adorador pelo

processo de entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se “anér” isto é,

um herói, um varão que ultrapassou o “métron” a medida de cada um. Tendo

ultrapassado o métron, o anér é, ipson facto, um hypocrités, que dizer, aquele que

responde em êxtase e entusiasmo, isto é, um ator (BRANDÃO, 1984, p.11)

Também encontramos na obra Castañeda (2013) o termo realidade não comum para

falar da experiência de transe do xamã. Esses três autores descrevem as experiências do

êxtase, como uma ação mental diferenciada do cotidiano, mas extremamente controlada e

racional. Então desta maneira podemos perceber que o xamã poderá estar fora da realidade

mental cotidiana e ao mesmo tempo, não estar completamente absorto do mundo presente.

Para Castañeda (2013) existe nesse processo uma sensibilidade espiritual, sensorial e mental,

que permite ao xamã estar em dois mundos ao mesmo tempo, é como se o xamã encontrasse

uma brecha na realidade para perpetrar a vivência xamânica.

Para estar em dois mundos se faz necessário estar inserido num processo de passagem

ou transformação do social para o pessoal, que para Victor Turner (1974) recebe o nome de

Liminaridade, ou seja, é um momento de margem dos ritos de passagem, fase do ritual onde

os sujeitos se identificam como indeterminados, no qual ocorre uma espécie de processo

transitório de “morte social” para em seguida haver o “renascimento” e a “reintegração” a

estrutura social. O termo liminaridade, se configura como uma condição transitória na qual os

seus sujeitos se acham depostos de suas posições sociais anteriores ao rito, ocupando no

momento um entre-lugar indefinido, sem que haja a categorização tempo espacial desses

sujeitos. Para Turner (1974) a vida social se mobiliza a partir do movimento dialético

alimentado pelas práticas rituais.

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Tanto para Castañeda (2013) quanto para Eliade (2002) para que o xamã possa torna-

se um ser de conhecimento místico e espiritual, é preciso um trabalho exaustivo, conhecendo

bem o seu instrumento mental-corporal e compreendendo todas as estruturas energéticas que

estão disponíveis no mundo externo. Desta forma, um trabalho exaustivo demonstra ter uma

capacidade de suportar o contato com aprendizado de técnicas e ter o espirito forte para

suportar desafios e fazer esforços dramáticos.

Esforços dramáticos foi o termo utilizado por Eliade (2013) para descrever a utilização

de recursos cênicos no trabalho do xamã. Desta forma o xamã pode recorrer a falsos

desmaios, tremores corporais, mudança repentina do tom da voz, dissimulação sobre imagens,

diálogos com o invisível e outros elementos semelhantes à prática de atuação do ator. Sobre

isto, meu caro amigo Artaud, Castañeda descreve sua vivência com um “feiticeiro” mexicano

“Dom Juan” e analisa suas expressões como uma atuação dramática:

No caminho do homem de conhecimento, um conhecimento do drama era, sem

dúvida, o fato isolado mais importante, e um tipo especial de esforços era necessário

para corresponder ás circunstâncias que exigiam a exploração dramática; isto é, um

homem de conhecimento precisava de esforço dramático. Tomando como exemplo o

comportamento de Dom Juan, à primeira vista podia parecer que sua atuação

dramática era apenas a sua própria maneira de teatralidade (CASTAÑEDA, 2013,

p.245)

Então Artaud, a teatralidade do “feiticeiro” que Casteñeda fala, está ligada a forma

pessoal de como o xamã organizava sua expressão e comunicação. “Seus esforços dramáticos

eram sempre muito mais do que uma simples representação, eram antes, um profundo estado

de crença” (CASTAÑEDA, 2013, p.245)

Este mesmo pensamento pode ser verificado na etnocenologia de Andreas Lommel

(1970) segundo ele, além do transe, o xamã irá se utilizar dos mais variados fins de

representação artística para curar o doente; o xamã é frequentemente muito mais um artista e

deve ter sido mais em tempo ancestrais. Com base nessa ideia podemos enxergar nos xamãs

do ritual primitivo a gênese do ator/atriz teatral. Neste sentido Olsen (2004), destaca que a

manifestação do o teatro é anterior ao surgimento do grego como conhecemos no ocidente,

tendo existido antes em sua forma tribal. Desta maneira, “o ator original era o mais

qualificado dançarino, cantor, portador de máscaras e xamã da tribo” (p.7).

Lévi-Straus (2004) na abordagem sociológica sobre o feiticeiro e sua magia, irá

descrever alguns casos em que o xamã recorre a práticas próximas a representação,

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prestidigitação e pantomima como um recurso de cura ao doente. Ainda na mesma discussão

sobre o papel do xamã nos rituais, Lévi-Strauss cita o caso de Quesalid fragmento de

autobiografia indígena registrado em língua kwakiutl (da ilha Vancouver, no Canadá) por

Franz Boas em 1930. Quesalid era um jovem iniciado nos mistérios xamânicos, ele

descreve, em detalhes, como eram suas primeiras lições:

Uma estranha mistura de pantomima, prestidigitação e conhecimentos empíricos em

que se mesclam a arte de fingir desmaios, a simulação de crises nervosas, o

aprendizado de cantos mágicos, a técnica para vomitar, noções bastante precisas de

auscultação e obstetrícia, a utilização dos “sonhadores” (isto e, espiões encarregados

de escutar conversas particulares e trazer em segredo ao xamã elementos de

informação acerca da origem e dos sintomas dos males de determinados doentes)

(LÉVI-STRAUS, 2004, p.189)

Para Lévi-Strauss não há porque duvidar da eficácia de certas práticas. Porém, ao

mesmo tempo, percebe-se que a eficácia da magia, implica na crença da magia e na

respeitabilidade do xamã. Assim, é de fundamental importância para a vida do xamã a

aceitação e repercussão de seu trabalho. “o homem não se tornou um grande xamã porque

curava seus doentes, curava os seus doentes porque se tornara um grande xamã” (idem, 2004,

p.192)

Perceba Artaud, que fiz uso de três autores das ciências socais: Lévi-Straus (2004)

Carlos Castañeada (2013) e Mircea Eliade, com o proposito de oferecer exemplos sobre os

xamãs e sua magia, e ao mesmo tempo em que encontramos pistas que nos possibilitam

comparar os procedimentos do xamã com os procedimentos de interpretação do ator/atriz.

O ator/atriz assim como o xamã assume um lugar muito importante no ato de

representar um papel, pois ele anuncia artisticamente uma nova vida. É como se ele estivesse

incorporando outro ser. Assim, ele situa-se no cerne do acontecimento teatral. Patrice Pavis

(2014) entende o ator/atriz como o vinculo vivo entre a “dramaturgia de um autor” e as

orientações diretivas de atuação do encenador/a, o olhar e a visão do espectador.

“compreende-se que este papel esmagador tenha feito dele, na historia do teatro, ora um

personagem adulada e mitificada, um “Monstro Sagrado”, ora um ser desprezado do qual a

sociedade desconfia por um medo quase instintivo” (PAVIS, 2014, p.30)

Não é raro Artaud, vermos artistas que se colocam numa situação diferenciada em

relação ao oficio de atuar. Patrice Pavis (2014) elucida este pensamento do ator, como sendo

um reconhecimento externo de que ele é um habilitado a se metamorfosear em outra pessoa,

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deixando assim de ser quem ele é para torna-se um “outro”. Nesta perspectiva haveria uma

força sobrenatural que facilitaria esse processo de transformação energética. Entretanto,

Patrice Pavis nos fala que essa ideia pode estar ligada ao “mito romântico do oficio do

ator/atriz” (PAVIS, 2014, p.30)

Penso Artaud, que o ator/atriz e o xamã têm o seu corpo, a sua mente e o treino das

capacidades psicofísicas como instrumentos de acesso ao sensível. Pavis (2014) compreende

o ator/atriz como um corpo condutor para o mundo da ficção. Assim para que este corpo

condutor possa estar apto para tal tarefa, o ator/atriz precisará conhecer cada mecanismo de

seu corpo, músculos, respiração, sistemas de excreção, circulação, concentração mental. Este

mesmo pensamento é encontrado nas pesquisas do professor e ator de teatro Gilberto Icle:

Assim como o xamã, o ator é sujeito de seu trabalho e está suscetível a determinados

processos, configura sua consciência para obter êxito de seu trabalho e transcende

seu corpo e sua mente para alcançar com todo o seu ser sua plateia de observadores

que, em última análise, é a razão de sua ação (ICLE, 2010, p. XIV)

O ator/atriz acessa o virtual de sua atuação através de técnicas extremamente

calculadas, procedimento parecido com as técnicas de transe descritas na pesquisa

antropológica de Mircea Eliade (2002). Lembro Artaud, que no livro O Teatro e seu Duplo,

você nos alerta que o estudo do transe no teatro pode ser baseado na tradição das sociedades

antigas ligadas a natureza, e que ao olharmos para as culturas ancestrais e xamânicas,

perceberemos que o transe não é uma pitiatismo descontrolado. Para Lorelle Yves 18

, as

possessões de transe, “são provocadas por uma cultura da qual não podemos dissociá-las, e

elas são previstas no desenrolar da liturgia” (YVES, 1962, p.38)

Desta forma Artaud, irei solicitar sua compreensão para fazer algumas abordagens

sobre o teatro como ritual, tendo o xamã ou feiticeiro como condutor, sendo este uma espécie

de ator ancestral.

Acredito meu caro Artaud, que falar sobre as origens do teatro como ritual é o mesmo

que relacionar a origem do próprio teatro. Na literatura cientifica sobre o teatro, vamos

encontrar diversos autores que remontam o surgimento do teatro no ritual. No qual os rituais

com o mundo natural (forças naturais exteriores) eram a base cotidiana da vida em que os

historiadores chamam de primitiva, na verdade o período paleolítico.

A investigação das origens vivas do teatro deve ser realizada, sem via de dúvida, no

animismo e na magia. Com efeito, parte da atividade dos grupos humanos intitulados como

18

YVES, Lorelle. Transe e Teatro. Ed Cahieres Reanud Barrault: Lisboa, 1962

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“primitivos” é caracterizada pelo animismo, elemento passivo, e pela magia, elemento ativo

da religião no momento de seu aparecimento, e podemos verificar que as primeiras formas

reais de teatro se criam e se desenvolvem ao mesmo tempo em que se criam e se

desenvolvem os ritos, as cerimonias e os cultos. (MOUSSINAC, p.7, 1957)

No momento em que a humanidade mais antiga ainda estava dominando a natureza

para sobreviver, havia necessidades primordiais de comer, beber, abrigarem-se às forças do

tempo, defenderem-se assim como criar dispositivos (ferramentas, apetrechos, mecanismos,

etc...) para organizar uma melhor forma de viver.

A alimentação à base de animais, nesta época exigia um grande esforço para a caça,

que segundo Moussinac (1957) requeria ao ser humano a utilidade de imitar o animal a que se

ia matar. “O ato de imitar conferia ao “homem caçador” elementos de proximidade e

semelhança ao “ Ser caçado”. Comer esse animal, além de nutrir o corpo, poderia também

nutrir a essência espiritual do homem em busca de coragem e força. Os restos do cadáver

animal (peles, ossos, dentes) poderiam servir de vestimenta e até mesmo um tipo de figurino

que ajudaria se aproximar cada vez mais do “objeto caçado”

Surgia nessa incorporação dos reflexos da energia do animal pelo ator, certo tipo de

pensamento zoomórfico, ou seja, o ser humano como canal de atribuições a energia desse

animal. É o momento em que o ser humano é influenciado por sugestão dos aspectos do

comportamento animal, trazendo para a sua expressão determinada troca de animalidade,

visto que nós seres humanos também somos animais com necessidades semelhantes. Veja,

meu caro Artaud, se não temos ai algo essencialmente teatral, uma possível aproximação com

as forças essenciais e plenamente conectados com o Todo – o ser humano incorporando

característica de um outro ser, de um outro animal.

Nós humanos temos grandes necessidades de revisitar o passado de nossa história, seja

ela pessoal ou coletiva, e nessa tentativa de revisitação supomos fatos, idealizamos

possiblidades, especulamos conjecturas sobre existências e partir de nossas experiências

tentamos esboçar um entendimento sobre a origem do teatro. E é ai que imaginamos as

primeiras tradições cênicas a partir de especulação cientifica, baseada em fragmentos

históricos ( pinturas nas pedras, vasos, objetos funerários, ferramentas, armas, máscaras,

estatuárias, etc...) com base nesses elementos, tendem-se a construir possibilidades e reflexões

sobre as primeiras danças, encenações, jogos, imitações, adorações rituais.

Talvez Artaud, tenha sido no contato com a natureza e a tentativa de conhecê-la

melhor, é que tenham feito o ser humano a crer no sobrenatural, e assim na busca de

entendimento do mundo foi estabelecida a comunicação ser humano-cosmo. Para um melhor

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esclarecimento, sobre o que eu quero dizer, devo recorrer novamente ao pensamento de

Moussinac (1957) quando ele descreve que foi na impotência em lutar contra certos

elementos, como trovoada ou inundação que as pessoas começam a acreditar em deuses,

espíritos, assombrações, visões encantadas e uma imensidão de mistérios que permitem aos

sujeitos esboçar certas representações que ele vivenciou. Assim, eu entendo que o que está

posto nesta explanação tem a ver com que você pontuou:

Este é grau em que o teatro usa da magia da natureza, permanece marcada por uma

coloração de tremor de terra e de eclipse, onde os poetas fazem falar a tempestade,

onde o teatro enfim se contenta com o lado físico acessível da alta magia.

(ARTAUD, 2014, p.76)

Sendo assim, há algo de místico na arte teatral que se aproxima da religião, algo

espiritual que mantêm o teatro vivo ao sistema material, capital e industrial vivo e preenchido

de certo mistério mágico, que permite a atores e atrizes a necessidade de voltar no tempo e

sentir o poder ancestral do teatro imerso no ritual.

Caro Artaud, quero objetivamente elucidar nestas poucas linhas que te escrevo, que o

ser humano antigo, os nossos ancestrais buscaram na natureza e na comunicação com os

deuses talvez a primeira forma de se expressar cenicamente, expressando em seu corpo e em

suas ações reflexos do mundo externo, e dessa forma estabelecer uma relação mágica com

aquilo que ele criava e codificava. Assim, meu nobre amigo, podemos tomar como aceite que

a humanidade tenha encontrado na imitação as primeiras formas de dança, de mimo uma

maneira de se expressar plasticamente. Aqui cito mais uma vez o pensamento do historiador

cênico “a mascara é o primeiro documento da historia do teatro porque se apresentou

inicialmente como um disfarce do caçador e porque permitiu dominar o sobrenatural e

encorajar os espíritos malignos” (MOUSSINAC, 1957, p.8)

Como já mencionado; nesse entendimento a máscara se constituía de instrumento

físico e visual para que o ser caçador pudesse imitar, ou torna-se próximo ao ser caçado.

Podemos assim, hipoteticamente especular que uma pele de onça, veado, bisão ou qualquer

outro animal não só comporia o figurino do caçado, mas também lhe aproximava

imageticamente da presa. A semelhança também poderia ter a utilidade de neutralizar o corpo

humano, camuflar o gesto e sua expressividade. Então, neste entendimento podemos imaginar

que poderia acontecer uma espécie de alteridade corporal e comportamental durante a

tentativa de se aproximar deste animal. Acredito Artaud, que temos ai um principio teatral,

que de certa forma é portador de uma consciência diferenciada, ou seja, dava-se inicio a

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experimentação de uma realidade não comum19

, momento em que a existência continua a

mesma, mas a sensibilidade corporal/mental encontra-se diferenciada. (CASTAÑEADA,

2013)

Todavia, desde que o pensamento do “imitador” experimentou o objeto, neste caso as

peles de animal, as máscaras e outros acessórios, para conceber uma semelhança deste objeto,

já se pode averiguar aí, a possibilidade de acesso à fantasia e à magia, algo que é externo à

vida. Será que neste ato de alteridade corporal e mental já temos um tipo de teatro?, ou se

esses atos são meramente do campo mágico-religioso? Esta pergunta meu caro Artaud, apenas

nos possibilita a pensar as duas probabilidades. Talvez, possamos considerar que a

experiência do “caçador-imitador” tenha a única utilidade de providenciar um recurso de

sobrevivência. Também podemos imaginar que esta necessidade se fez tão forte quanto a

necessidade de um ator stanislaviskiano na busca de sua verdade cênica.20

É preciso lembrar,

que Constantin Stanislavski foi o primeiro a falar sobre uma escola de teatro e ensinar como

se constrói uma personagem. Desta forma, a preparação do ator/atriz Stanislaviskniano utiliza

o mesmo princípio quando aborda a questão dos objetos, do figurino e da maquiagem e

propõe o acesso ao que ele chamava de “Se mágico”. Este conceito é encontrado no livro A

Preparação do Ator (1995), obra que desenvolve conceitos ao desenvolvimento do trabalho

interior do ator. Entre esses conceitos, ele vai pontuar a necessidade do ator em buscar da

Verdade Cênica ou Fé Cênica, que Para Stanislavski (1995) é a vivência de algo que não tem

existência de fato, mas que poderia acontecer realmente. Desta maneira o ator/atriz deve

assumir a problemática na qual sua personagem está envolvida e deve vivenciá-la, de forma

que a transmita como se fosse verdade ao espectador. Para o ator/atriz alcançar esse estado de

Fé Cênica em sua atuação, deverá se utilizar de um processo de imaginação chamado de “Se”

Mágico, que é compreendido como um instrumento auxiliar para o ator/atriz a abandonar o

mundo dos estereótipos. Acredito que isto é semelhante à imaginação do xamã que acredita

que pode curar o doente através de seus processos mentais.

Então meu caro, seria o processo de interpretação de um intérprete um processo de

mentalização mística? O fato de dar forma a um personagem ou uma representação, seria

também um fenômeno de incorporação espiritual, digo, trazer essência de “outro ser” para o

19

Realidade não comum, é uma expressão convencionada pelo antropólogo Carlos Castañeda para descrever a

vivencia do xamã durante o processo mágico-ritual. 20

Para os atores e atrizes que estudam o método de Constantin Stanislavski, a verdade cênica consiste em

representar o ato cênico munido de sentimento de crença naquilo que se interpreta – ver STANISLAVSKI,

Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995

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nosso gesto? A este sentido gosto de trazer à cena o ator-escritor Mark Olsen que nos aponta

o seguinte a esse respeito:

Desde as origens religiosas do teatro ocidental na Grécia, o ator confunde-se com a

sua dúplice função: parte essencial do fenômeno teatral, ele introjeta a mística da

divina essência humana ao mesmo tempo que, refletindo em si o seu semelhante,

dirige-se à plateia buscando entregar-lhe uma visão profundamente relevante e

estética do homem na sua mais pura expressão. Ao encarnar os personagens o ator

dá-lhe não apenas corpo, voz, nervos e sentimentos: dá-lhe a totalidade do seu ser

em situação e na sua imanência. (OLSEN, 2004, p.04)

Penso Artaud, que falar sobre o surgimento das primeiras manifestações cênicas é o

mesmo que falar sobre as primeiras manifestações religiosas e por sua vez sobre atores e

sacerdotes. Para mim sacerdotes são de fato atores. Se observarmos na atualidade a

celebração de algumas igrejas, podemos perceber como os “mestres de cerimônias” recorrem

cada vez mais a recursos teatrais como uma forma de praticar a imersão do fiel ao ato

religioso no sentido de despertar o sentimento de crença e até mesmo levar ao êxtase.

Entretanto não pretendo me aprofundar neste assunto, que considero polêmico, visto que

exige um tempo maior de compreensão e análise e também por não ser o meu objetivo.

As informações que temos sobre o surgimento do teatro, que por sua vez são baseadas

na historiografia teatral21

, partem sempre do mesmo principio – o ritual. As artes do período

do paleolítico estampadas nas pedras de cavernas como as de Lascaux na França, retratam

seres mascarados dançando e caçadores vestidos como animais. Assim, a observação sobre

esses desenhos rupestres podem elucidar que tais manifestações poderiam ser atos ritualísticos

espetaculares. Este meu pensamento, Artaud, está em consonância com as suposições do

historiador Moussinac (1957)

A realidade aterroriza o homem que cria seres fantásticos, que depois evoca, anima,

representa na verdadeira acepção do termo, chegando até transpô-los para a cena. A

representação dá origem a ritos; o grupo reunido, fascinado pela magia mimética

que se desenvolverá em expressões de êxtase, de loucura sagrada, assistirá à de

fórmulas encantatórias pelo feiticeiro metamorfoseado pela máscara, pelo guarda

roupa e pelos adereços. A partir de então, o culto compreenderá atos e palavras:

cerimônias cada vez mais complicadas esboçarão uma liturgia, a sua ordem plástica

e rítmica, os seus sortilégios, os seus cantos, as suas músicas. Gradualmente, a

participação torna-se coletiva e amplia-se (MOUSSINAC, 1957, p.09)

A vivência do ritual no paleolítico é abordada por Moussinac como um reflexo

fantástico da realidade, este tipo de ritual é algo que ainda pode ser encontrado em algumas

regiões da África, Oceania e América do Sul. Lembro que encontramos diversas dessas

manifestações nos estudos da História da Religião de Mircea Eliade (2013) e nos registros de

21

Vide livros da historia do teatro de Margoth Berthold; Leon Moussinac; Cesare Molinare

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antropologia de Carlos Castañeda (2013) e Claude Lévi-Strauss (2004) onde se pode conferir

uma estreita relação entre teatro e ritual presente na prática cerimonial de alguns xamãs.

Assim, meu caro amigo, o ritual encontra seu caminho na apresentação sagrada de

um acontecimento único, que para PAVIS, (2005) seria uma ação não imitável por definição,

teatro invisível ou espontâneo, mas sobre tudo o desnudamento sacrificial do ator diante do

espectador que coloca assim suas preocupações, bem como as profundezas de sua alma, à

vista de todos, com uma esperança confessa de uma redenção coletiva.

É nesta mesma perspectiva que AMARAL (1996) justifica as origens do teatro nos

rituais, cuja estrutura teria servido de inspiração ao ato teatral, pois:

Rituais são cerimônias coletivas onde se realizavam determinadas ações que

provocam na mente dos seus participantes uma emoção que lhes confere uma

espécie de iluminação, uma conscientização que os transporta para algo além” (...)

nos rituais as ações se repetem. E se repetem porque representam algo essencial e

verdadeiro, num determinado momento e para uma determinada comunidade (1996,

p.26)

A Historiadora teatral Margot Berthold (2008) em seus estudos sobre o surgimento do

teatro, nos convida a pensar o ato teatral antigo como partícipe de um ritual, assentado nos

alicerces dos impulsos vitais primários, retirando deles os seus misteriosos poderes de magia,

conjuração, e metamorfose, “dos encantamentos de caça dos nômades da idade da pedra, das

danças de fertilidade e colheita dos primeiros lavradores do campo, dos ritos de iniciação,

totemismo e xamanismo e dos vários cultos divinos” (BERTHOLD, 2008.p.02)

Acredito que as relações entre teatro e ritual são mais atreladas do que se possa

imaginar. O ritual no teatro não pode ser apenas entendido como um elemento

místico/religioso, com seus elementos mágicos e sagrados. Antes de tudo, Artaud, acredito

que o ritual no teatro pode ser compreendido como um sistema de técnicas organizadas que se

repetem para alcançar determinado estado de arte, como no ritual, não falo apenas por mera

intuição ou suposição, falo a partir do que nos expõe o professor Patrice Pavis (2011),

vejamos:

É preciso observar que os rituais impõe “aos atuantes” (aos atores) palavras, gestos,

intervenções físicas cuja boa organização sintagmática adequada é o aval de uma

representação bem- sucedida. Nesse sentido, todo o trabalho coletivo na encenação é

execução de um ritual. (PAVIS, 2011. p, 346)

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Assim toda organização do trabalho coletivo de uma encenação, os passos criativos de

se construir signos, podem ser entendidos como um ritual? A este sentido entende Michel

Foucault:

O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no

jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada

posição e formular determinado tipo de enunciados); ele define os gestos, os

comportamentos, as circunstâncias e todo conjunto de signos que deve acompanhar

o discurso; fixa enfim, a eficácia suposta ou imposta quanto às palavras, seu efeito

sobre aqueles aos quais elas se dirigem, os limites de seu valor expressivo

(FOUCAUT, 1971, p.41)

Em meu entendimento Artaud, os gestos, as palavras e os demais signos de expressão

quando encadeados numa repetição e sequência de aprendizados, se correspondem à criação

do rito, termo de origem latina (ritus) que para George Plekhanov (1964) trata- se de um

costume, cerimônia que se repetem invariavelmente a partir de normas preestabelecidas

Artaud, a partir de seu pensamento sobre o rito no teatro, vimos surgir um sentimento

nostálgico sobre suas origens culturais, este sentimento foi desperto a partir do intercâmbio

com as culturas orientais que ainda têm por base o rito como elemento. Sob esse aspecto,

criam-se diversas produções cênicas que se permite entender uma volta ás origens do

acontecimento teatral, através dos ritos organizados num sistema ritual.

Acredito que para se organizar um ritual é necessário ter um entendimento mínimo

sobre quais ritos se quer criar, recriar e convencionar, e para se fazer isto é necessário definir

um condutor, um mestre de cerimônias, que se coloque a disposição para experimentar o

duplo – ritual e teatro

É aqui que podemos pensar o meu papel de ator, nessa empreitada artística-ritual. O

ator/atriz como xamã, conhecedor/a das relações imbricadas neste proposito, poderá facilitar a

ordenação dos ritos do teatro num ritual cênico.

Então minha proposta de trabalho parte deste entendimento: eu serei o ator condutor

do ritual cênico. A principio pensei, em ser um mestre de cerimônias que executa toda a

operação mágica, mas, face ao contato com o xamanismo eu resolvi hifenizar os termo ator e

xamã (ator-xamã) e desempenhar a função de ator e narrador do ritual.

Outra delimitação que eu convencionei Artaud, para este meu ritual teatral, foram os

sistemas simbólicos místicos: Tarot e Cabala. Com base nesses sistemas construí todo o ato

teatral da Instauração Cênica Y. Isso sem esquecer que, idealizo essa relação do teatro com o

xamanismo através da figura do Ator-Xamã. Mais adiante te explicarei com mais detalhes

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estes sistemas simbólicos utilizados em meu processo criativo. Acredito que isto seja assunto

para uma outra carta.

Como eu já te falei anteriormente, convencionei uma relação imagética a partir das

cartas do Tarot de Waite para desenvolver meu pensamento de escrita dissertativa, como

também na idealização poética e dramatúrgica da minha instauração cênica. Desta forma eu

utilizo as cartas de Tarot para abrir e conduzir uma reflexão sobre o teatro e seus elementos.

Cada imagem arquetípica do Tarot está impregnada de significado simbólico sobre as

experiências humanas, tanto no sentido material, quanto filosófico e espiritual. Assim,

pretendo a partir dessas impressões arquitetar possíveis ligações com o teatro, pelo teatro que

eu acredito – teatro ritualístico, conduzido por um ator-xamã.

Nesta carta direcionada a você eu utilizo a imagem do tarot – O Mago, como

inspiração para falar da alusão do ator como um condutor místico num ritual teatral, ou seja

essa associação tem o objetivo de situar o atuante como o executor do ato ritualístico na

condição de um mestre de cerimônias, um mago em seu processo operativo ou mesmo um

xamã executando sua magia religiosa.

Então, meu caro amigo, vou lhe dizer a seguir, o que eu penso quando associo a carta

do Mago com o trabalho do ator num espetáculo como ritual, no caso particular a instauração

cênica.

O mago é um oficio desempenhado nas doutrinas ocultistas, sobretudo na alquimia. A

função de um mago é de conduzir um ritual de transformação de energias. Os xamãs podem

ser considerados também como magos ou mesmo como “medice man” como expõe Mircea

Eliade (2002)

O mago é um xamã mais capacitado no sentido de sistematização do conhecimento

místico. Geralmente os xamãs passam o conhecimento para os seus descendentes de maneira

oral e todo aprendizado é memorizado mentalmente, sem que haja uma forma de registro. A

prática mística do mago é comumente muito parecida com os xamãs e feiticeiros, o que irá

diferenciar é a forma como o mago sistematiza seu aprendizado. “O mago pode adotar um

diário de magia que recebe o nome de Breviário” (ZELL-RAVENHEART, 2016, P.31)

O Arquétipo do Mago que abre esta carta endereçada a você tem a função de informar

que o ator-xamã é também um sistematizador de conhecimento. Assim, me coloco na

condição de ator-xamã e mago para tratar das reflexões sobre a pesquisa e produção artística

da Instauração Cênica Y e vou lhe explicar os meus procedimentos criativos.

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Edith Waite em seu Sistema de Tarot22

nos fala que o Mago é a revelação da vontade.

Quando a carta surge em um jogo, ela pode ser lida, ou entendida como a transformação por

meio da vontade. Assim Waite (2014) expõe:

O mago é um condutor de um poder superior que domina todo o mundo material [...]

a palavra mago evoca a imagem de um ilusionista, cujo único poder é a habilidade

manual para a desorientação . Não obstante em muitos aspectos o Mago é também

similar ao ilusionista. Ele está seguro de sua destreza e de sua habilidade para

produzir os efeitos que deseja. Seu poder real provém de forças externas a ele e não

tem poder sem estas fontes, pois depende de quem esta atrás do cenário, de modo

igual ao ilusionista. [...] com seus poderes, o Mago tem influência sobre tudo: teoria

e prática, lógica e emoção, pensamento e ação (WAITE, 2014, p.48)

Deste modo Artaud, eu utilizo a imagem do Mago do Tarot de Waite como metáfora

para falar do trabalho do ator/atriz. Então meu caro amigo, eu vos convido a comparar o

ator/atriz a esse mago. O corpo, a voz e a sua imaginação são o conduto de acesso ao mundo

criativo, no qual os instrumentos de atuação ganham materialidade. O domínio do gesto dos

atuantes é semelhante à habilidade manual do ilusionista para produzir a imersão e fascínio no

público. O ator metaforizado mago tem a capacidade de buscar elementos das forças externas

para a sua criação. Os elementos externos além de servirem de inspiração para o processo

criativo, também servem de meio para se empregar as forças do ato criativo.

Artaud gostaria que você observasse a Carta do Mago. Na imagem vemos o mago

diante de uma mesa posta com quatro objetos: Uma taça, uma moeda cunhada com o

pentagrama, uma espada e um bastão de paus. Cada objeto representa um elemento da

natureza: a taça a água, a espada o fogo, o bastão o ar, a moeda a terra. Esses objetos

simbólicos servem de meio para o mago conduzir o seu ritual alquímico. Não sei se você sabe

Artaud, que na alquimia todo processo é físico-mental. Através de manipulação dos elementos

o alquimista prepara as formulas utilizando todo um processo de mentalização, por exemplo,

o mago se concentra mentalmente sobre a taça cheia de água e tenta imprimir no material

físico sua emoção, é como se tentasse energizar a água com suas mãos. Veja que na imagem

da carta, o mago tem uma mão voltada para os céus e outra para o solo, o seu gesto é de

ordem cerimonial, há nele uma evocação das forças superiores e inferiores, que para a

filosofia Hermetista é correspondente ao preceito “o que está acima é como o que está

abaixo.” A filosofia Hermetista, é um campo de conhecimento das ciências ocultas que estuda

o apanhado das obras de Hermes Trimegisto, sacerdote egípcio que codificou em 7 princípios

22

Conjunto de 78 cartas de tarot produzido em 1910, baseado no Tradicional Tarot de Marselha.

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as forças regentes do universo. Segundo a tradição egípcia estes princípios estavam inscritos

numa tábua de esmeraldas e foram transcritas para uma obra filosófica chamada de “O

Caibalion”, que trata-se de um livro que foi escrito por três supostos discípulos de Hermes

Trimegisto, chamados de Três Iniciados. Este livro se encontra facilmente nas bibliotecas de

assuntos místicos e se constitui como uma informação inicial de quem estuda alquimia.

Imagem nº 2- recorte da mesa do Mago, em destaque os elementos da magia.

Ao analisar a imagem da carta do mago, percebemos os símbolos arquetípicos (água,

fogo, terra e ar) postos à mesa. Essa representação alude para destacar que a sua energia está

voltada para os objetos. A mesa tem função de altar e ao mesmo tempo de palco. A

distribuição dos elementos nessa disposição física tem o objetivo de restringir a energia para

que ela não fuja. Por trás da mesa o mago assume uma posição cerimonial. “ele,

evidentemente, tem um plano. Está a pique de fazer alguma coisa - de representar para nós”

(NICHOLS, Sallie. 2007, p.59)

Carl Gustav Jung entendia o arquetípico do mago ligado à consciência e

autocompreensão que Jung denominava individualização. Esse acesso ao individuo interior

pode guiar nossa viagem pelo o mundo oculto dos nossos eus mais profundos. “Pois, o ser

humano sempre reconheceu a existência de um poder que transcende o ego, e procurou

propiciá-lo através de ritos mágicos” (NICHOLS, Sallie. 2007, p.59)

Acredito Artaud que o mago, o xamã e o ator/atriz possuem uma mesma capacidade

artístico-espiritual de trabalhar com o seu interior emocional-estético, e trazer em seu corpo

uma densidade muscular, intelectual e mental capaz de produzir efeitos próximos aos rituais

de transe.

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É sob os aspectos do transe meu caro amigo Artaud, que eu gostaria de observar o

papel do ator num teatro-ritual, no qual ele executa simbolicamente a transmutação do

chumbo em ouro. Só há obra alquímica quando há um mago envolvido energeticamente com

as matérias em seu estado original, a fim de torná-las sublimes. Nesta analogia o ator é um

individuo que trabalha com estados de energia em constante transformação. Neste sentido,

lembro-me do seu texto O Teatro e a Alquimia, quando você fala do paralelismo entre os

campos de conhecimento do teatro e da alquimia:

Entre o teatro e a alquimia há ainda uma semelhança maior e que metafisicamente

leva muito mais longe. É que tanto a alquimia quanto o teatro são artes por assim

dizer virtuais e que carregam em si tanto sua finalidade quanto sua realidade.

(ARTAUD, 1987, p. 50)

Ao meu entender, a alquimia e o teatro se apoiam na expressão mental do individuo

humano e através de processos de concentração sensorial nos efeitos do cérebro e do corpo.

Para eu ser mais claro eu gostaria de explicar isso através da figura do ator/atriz quando se

encontra num estado de encenação – neste momento há uma percepção sensorial diferenciada

no corpo.

O ator/atriz e o alquimista na condição de mago, xamã e mestre de cerimonias têm a

sua disposição talvez os mesmos atributos espirituais e materiais, elementos nascedouros do

gesto ritualístico. Nos compêndios de alquimia encontramos o “operador” ou seja aquele que

executa a transmutação e concentra suas forças mentais na intenção de produzir efeitos na

matéria. Assim o alquimista precisa trabalhar com as “emoções” que são chamadas pelos

iniciados da Alquimia de “temperos”

Para ilustrar esse pensamento Artaud, eu gostaria de usar um exemplo: em seu

laboratório o alquimista manipula o fogo no cozimento da matéria a ser transformada, ele

eleva a altura das chamas, as diminui e procede variando entre chamas altas, baixas e médias.

Durante esse ato ele canta orações, reza e até mesmo recita versos como se estivesse tentando

contagiar a matéria. Há nesse aspecto algo que parece com o teatro e ao mesmo tempo parece

com os procedimentos dos xamãs que brincam com os elementos externos para despertar a

atenção do doente a ser curado. Estas mesmas relações são abordadas diversas vezes por

você:

É preciso notar a estranha afeição que todos os livros dedicados à matéria alquímica

professam pelo termo teatro, como se seus autores tivessem sentido desde logo tudo

que existe de representativo, ou seja, de teatral na série completa dos símbolos

através dos quais se realiza espiritualmente a grande obra (ARTAUD, 1987, p.51)

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Então meu caro Artaud, a imagem do mago que eu utilizo aqui pode ter a mesma

relação com a figura do xamã. Na verdade o xamã é um mago operativo, da mesma forma que

o alquimista é um xamã transformador da matéria. Ambos utilizam as forças da natureza e

elementos cênicos na condução da magia.

Dentro dos estudos dos arquétipos do Tarot, Carl Gustav Jung, desenvolveu uma série

de estudo sobre os símbolos e os arquétipos do Tarot. Para ele o mago é uma expressão do

artista místico, consciente de sua arte e de sua magia - isto quer dizer que ele sabe tirar

proveito das técnicas de transe, de dissimulação de ilusionismo, recursos dramáticos

encontrados nas obras de ELIADE (2002) CASTAÑEDA (2013) STRAUSS (2004)

O mago do Tarot, será como um espelho para minha pessoa. As suas qualidades de

artista, de feiticeiro ou mesmo um presdigitador, para desenhar um perfil para o papel do ator-

xamã que estou buscando. Eu sou esse mago, moram em mim as forças interiores de

autocompreensão e da vontade executora.

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CARTA À SACERDOTISA - ELEMENTOS MÍSTICOS DE INSPIRAÇÃO NA

COMPOSIÇÃO DA INSTAURAÇÃO CÊNICA “Y”

Figura 3. A Sacerdotisa do Tarot de Waite – a sabedoria oculta (gravura do tarot de Waite, 2009)

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CARO ARTAUD, SAUDAÇÕES!

Esta carta é dedicada a sacerdotisa do Tarot de Waite. A sacerdotisa é também

chamada em alguns outros tarot de A Papisa, devido a influência cristã que sincretizou-se no

jogo de cartas. E eu que pensava que os cristãos detestassem tudo o que estivesse ligado à

prática esotérica, mas no tarot vamos encontrar algumas outras imagens que dialogam com

elementos bíblicos, como é o caso da carta da Torre e da carta do Julgamento.

No Tarot de Waite, o arcano da sacerdotisa se encontra disposta entre duas colunas,

uma de cor negra e outra de cor clara, ambas fazem menção as duas colunas do templo de

Salomão, Jaquim e Boaz e representam a estabilidade de forças do pensamento, bem a

oposição das coisas no mundo - o duplo, como você coloca: “ em todas as coisas existem dois

lados, dois aspectos” (ARTAUD, 2015. P.81). Observamos ainda na imagem um véu

estendido entre as duas colunas, este por sua vez representa o mistério oculto do inconsciente

que não podemos entender, mas que através dela podemos aprender a controlar. A figura da

sacerdotisa posta entre as duas colunas tem como epístola principal o equilíbrio entre a

potência e a criação, entre o masculino e o feminino.

O Arcano da Sacerdotisa no Tarot representa a voz interior ao nosso inconsciente .

“ela é a manifestação do inconsciente e do mistério em nosso mundo cotidiano” (WAITE,

2009, p.52) a sacerdotisa é a base de onde surge o poder manipulado pelo Mago. Ela é o

potencial ilimitado que permite ao Mago transformar e criar o que deseja sua vontade. Para o

ocultista Eliphas Lévi23

, nos rituais de magia alquímica é primordial o casamento das forças

de gênero masculino e feminino. Neste caso, o tarot estabelece um principio alquímico na

sequência mago – sacerdotisa, que é expresso na ação da manipulação material do mago e na

emanação de energia da sacerdotisa “ enquanto o Mago enfoca seus poderes no exterior para

conseguir um efeito significativo no mundo, a grande Sacerdotisa nos mostra que também

podemos usar estes poderes num nível interior” (WAITE, 2009, p.53)

A grande sacerdotisa no Tarot de Waite representa o inconsciente e intuição, pois o

inconsciente nos fala com símbolos. Desta forma este arcano é a personificação de todos os

mistérios filosóficos e místicos.

23

Eliphas Lévi, cujo nome verdadeira era Alphonse Louis Constant, nascido em 1810, havia

se preparado para ser sacerdote católico mas desistiu do seminário e se dedicou ao jornalismo

e aos estudos místicos. É de sua autoria o famoso livro esotérico Dogma e Ritual de Alta

Magia, publicado em 1854.

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Quando a sacerdotisa aparece em jogo de Tarot costuma indicar que o consulente esta

aberto aos sussurros que chegam do interior, segundo Waite (2009) há respostas a

inquietações a serem reveladas. Apenas é necessário saber receber as mensagens. O

ensinamento desta carta diz que tudo que se necessita saber já existe em nosso interior.

A carta da Sacerdotisa Artaud, foi escolhida por mim para falar dos mistérios místicos

que me inspiram na criação da instauração cênica “Y” a representação simbólica deste arcano

se relaciona com os sistemas místicos que eu escolhi para compor o meu processo criativo.

Na criação da instauração cênica “Y” eu adotei dois sistemas: O Tarot de Waite e o

diagrama cabalístico chamado Árvore da Vida. Para um melhor entendimento sobre esses

elementos, explanarei a seguir, justificando sua utilização no processo criativo. Primeiro meu

caro Artaud, sinto-me na obrigação de esclarecer sobre o que é o Tarot, sua origem e sua

finalidade e como o Tarot de Waite foi estruturado. Desta forma poderei objetivar uma

resposta sobre a sua utilização na condução de minha instauração cênica.

Não se sabe a origem certa do Tarô. O seu próprio nome já é um mistério. “muitas

hipóteses têm sido formuladas sobre a origem e significado do Tarô, e todas até agora têm

sido inconstantes” (HOUDOUIN, 2013 p.17), desta forma, não se encontram respostas claras

e precisas às questões essenciais: o que é o tarô e o que ele significa? Porque foi elaborado e

porque ele existe? Estas perguntas são respondidas de várias maneiras. Há uma diversidade

de informações sobre estes questionamentos. Assim como é impossível determinar sua

origem, podemos apenas fazer alguns apontamentos sobre seu aspecto periférico através dos

séculos e pontuar algumas questões sobre o seu desenvolvimento.

Uma coisa é certa meu caro amigo, vários estudiosos em Tarô, o colocam como um

instrumento filosófico que possibilita o autoconhecimento do ser humano, do mundo e do

Universo. Para Waite (2009) esse sistema apesar de ser um elemento esotérico se constitui

também como um elemento de base cultural que permite sua realização efetiva, que para

Houdouin(2013) essa base cultural se constitui em si de código cosmológico arquetípico e

como um sistema simbólico sagrado e atemporal.

O Tarô é considerado pelos estudiosos místicos, HOUDOUIN (2013); WAITE (2009);

LEVI(2014) uma chave de acesso filosófico-espiritual que permite a cada individuo que o

utiliza, compreender os princípios de direção e governança do mundo de maneira a

estabelecer uma consciência de religação com a fonte universal da criação e do poder divino

emanado sobre o homem.

O Tarô é composto por setenta e oito cartas, que segundo Waite (2009) recebem o

nome de “lâminas”. Assim as 78 lâminas são divididas em 22 cartas que recebem o nome de

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triunfos ou Arcanos Maiores e ainda 56 cartas constituídas com os naipes de paus, ouros,

copas e espadas, bem como as cartas da corte que são cavaleiros, valetes ( ou príncipes) reis,

rainhas e princesas, conjunto que recebe o nome de Arcanos menores.

Etimologicamente o termo tarô tem sido objeto de pesquisa há séculos. Na literatura

temos uma infinidade de obras que levantam suspeitas sobre a origem e significado da

palavra. A investigação de maior credibilidade é atribuída a Antoine Court de Gébelin, que

realizou na historia do esoterismo a primeira análise do Tarô. Ele acreditava que o termo teve

origem no Egito.

Para Court de Gébelin o termo corresponde aos radicais egípcios, TAR =caminho e

RO ou ROG = real (royal); assim, Tarô seria o Caminho Real. Entretanto outro pesquisadores

emitem outro possível significado. Para Pietro Aretino, o termo seria derivado do grego

Etaroi, cujo significado é companheiro. Para o escritor místico Jean-Alexandre Vailant, a

palavra é oriunda do nome da Deusa fenícia Astart, ou Astaroth. O mesmo pesquisador aponta

uma segunda possibilidade, sugerindo que o termo pode ter surgido da filosofia do Tao, que

significa “O Caminho”. Entretanto, Waite (2009) afirma que o termo é originário da palavra

francesa tarocco, mas em nenhum momento aponta o seu significado. Há ainda outra

etimologia de grande aceitação entre os estudiosos:

Encontramos o termo tarô na forma de Tarock na Germânia (Alemanha), e Tarocchi

(plural de Tarocco) na Itália. Partindo dessas palavras, os pesquisadores propuseram

como origem etimológica a palavra árabe Turuq, plural de Tarîga, significando

“caminho”, mais propriamente “processo” ou “método” [...] a palavra árabe Tarîga

vem na verdade do sânscrito Tarika, que significa “barqueiro”, compreendendo a

noção de via, de veículo[...] essa palavra sânscrita Tarika deriva, por outro lado de

Tari, que significa barco. Porém, todas essas palavras , bem como aquelas às quais

se ligam tem por raiz o termo Taru, que significa árvore (HOUDOIN, 2013, p. 20)

Meu caro Artaud peço, que observe nesta citação o termo sânscrito Taru, significando

árvore justifica encontramos no Tarô a inserção do sistema cabalístico-místico dos hebreus

chamado A Árvore da Vida das Sephirotes, que consiste em um diagrama composto por dez

esferas organizadas num conjunto. As esferas estão interligadas por caminhos que explicam a

relação dos poderes universais emanadas à criatura humana. A árvore da Vida é uma espécie

de resumo da filosofia da Cabala. Trata-se de um código visual que tem por finalidade

auxiliar o estudante da cabala a compreender de forma rápida a noção e supremacia destes

poderes.

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Figura nº 04 – diagrama da árvore da vida – o desenho que resume o conhecimento da cabala

num conjunto de 10 esferas (Gravura do Livro o Tarot Universal de Waite, 2009)

Num breve olhar sobre o diagrama da árvore da vida, imaginamos que não há

nenhuma aparente relação com o Tarô. Mas quando tomamos as cartas em mãos e

começarmos a fazer as devidas relações da simbologia das lâminas com as esferas,

percebemos que existe uma ínfima ligação entre esses dois sistemas simbólicos.

Os sistemas místicos presentes dentro do Tarô começaram se estruturar com as

pesquisas de Court de Gébelin, que entusiasmado com o jogo de cartas, enveredou em buscar

compreender as simbologias presentes nas lâminas. Assim, ele reconheceu que naquele

sistema havia uma infinidade de segredos místicos oriundos da Filosofia Hermética, que é

atribuída a criação pelo sacerdote egípcio Hermes Trimegisto, que viveu no Egito no século

IV antes da era cristã. Hermes Trimegisto após sua morte foi elevado à condição de Deus,

recebendo o nome de Thot, que por sua vez teria dado origem ao sistema filosófico da Cabala,

que falaremos mais adiante.

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Foi com Elyphas Lévi que a relação do Tarô com os mistérios egípcios, com a cabala e

com alfabeto hebraico teve sua ampla conexão, entrelaçando essas correntes filosóficas num

sistema de relações com a Árvore da Vida. Para Lévi (2014) é possível associar as 22 cartas

com as 22 letras do alfabeto hebraico, como também associar aos 22 caminhos presentes nas

esferas do diagrama cabalístico da Árvore da Vida. Desta forma para cada caminho da Árvore

da Vida, Elyphas Lévi atribuiu uma letra hebraica, um numeral e um arcano maior do Tarô,

compondo desta maneira uma síntese entre imagem e filosofia da cabala. Veja o exemplo:

,

Figura nº05: a correspondência das cartas do Tarô no diagrama da Árvore da vida (biblioteca

cabalística de Colin Low, 2001)

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Peço desculpas Artaud, se eu pareço demasiado extenso nestas informações, mas

acredito que sejam de suma importância para justificar o uso do Tarô na composição de

minha instauração cênica. Como já te falei anteriormente, o tarô é a base de minha inspiração

para compor o meu processo criativo. Assim, solicito ao caro amigo leitor um nível paciência

para que eu possa contextualizar os elementos que inspiram a criação da instauração Cênica

“Y”. Mais adiante, você irá entender o motivo dessa contextualização. Pois “Y” traz

simbolicamente à cena, através do cenário, os caminhos da Árvore da Vida em formato de

trilhas por onde os espectadores visitantes caminharão durante a execução da Instauração

cênica.

Retornando ao assunto, a associação do Tarô com a Árvore da Vida se expressa na

seguinte relação: Caminho da Árvore, Lâmina do Tarô e Letra Hebraica. Te darei um breve

exemplo deste esquema:

Caminho Tarô Letra hebraica Numeral

1 (kether a Chokmah) O Louco Alef 0

2 (kether a Binah) O Mago Beth 1

3 (kether a Tiphareth) A sacerdotisa Gimel 2

Tabela nº 01: Associação cabalística da relação Tarô e Árvore da Vida

Então meu caro Artaud, a associação demonstrada acima, é praticamente a mesma

relação com que eu lhe escrevo estas cartas. Se prestares atenção, irás perceber cada carta que

lhe escrevo é dedicada a um Arcano do Tarô, que segue a mesma sequência dos caminhos da

Árvore da Vida. A primeira carta que eu lhe escrevi é dedicada ao Louco, que no tarô inicia

uma jornada em busca do conhecimento. Na minha concepção o Louco inicia uma jornada de

inspiração em busca de uma vivência xamânica, espiritual e mística. Experiência possível

para encontrar respostas sobre o papel de ator-xamã.

Na concepção de minha instauração cênica O Louco é o ator da primeira cena da

intervenção cênica, ele age sob o princípio criador e o impulso emocional de buscar novas

formas de ver e sentir o mundo. Não pretendo aqui detalhar esse processo, para que não haja

interferência na compreensão do tema que estou expondo. Este assunto será discutido em uma

próxima carta onde vou mostrar o modo como eu idealizei a instauração cênica.

Espero que estas linhas de escrita possam te esclarecer. Dentro em breve te darei mais

explicações de como eu utilizarei as cartas do tarot na criação cênica.

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CARTA DA IMPERATRIZ-ALQUÍMICA PARA O ATOR ANTONIN ARTAUD

Figura nº 06 a imperatriz do Tarot de Waite

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Caro amigo

Esta carta enviada a você tem a função de descrever as inspirações que tive para

desenvolver artisticamente minha instauração-cênica “Y”. Ela é dedicada a Imperatriz do

Tarô de Waite.

A lâmina da Imperatriz tem como desenho uma rainha grávida sentada num bosque

verdejante. Ela segura em uma de suas mãos um emblema de coração e na outra um cetro real

com uma cruz-alquímica. A imperatriz tem como significado-chave a revelação de uma ação

frutífera que se inicia. É a manifestação da criatividade do “espirito-essência” com a

unificação da mente e do corpo. Esta carta representa o ponto mais elevado da filosofia

mística-dualista. Pois, concebe a compreensão do corpo físico e o entendimento do mundo

material, de onde geralmente provém o prazer dos sentidos da vida em sua riqueza de

diversidade e formas. Sobretudo a carta da imperatriz representa arquetipicamente a imagem

da mãe. Através dela podemos visualizar imageticamente o sentimento de materializar ideias

em forma física, dar gestação ao pensamento e fazê-lo surgir no campo do concreto.

Devo lhe dizer Artaud que a imagem da Imperatriz representa para mim a vontade

artística, a intenção de concretizar pensamentos em encenação. E é sob os seus auspícios que

eu idealizo concretamente a ação de estruturar cenicamente e ritualisticamente os elementos

da Instauração-Cênica “Y”

Como já te contei em cartas anteriores a Instauração- Cênica “Y” é uma produção

teatral ritualística inspirada no Tarô de Waite e no conjunto de esferas da Árvore da Vida.

Inspiro-me nos Arcanos Maiores do Tarô e os materializo conforme o meu pensamento para a

cena. Cada Arcano foi estudado primariamente conforme a sua representação mística para

depois ser transportado para o meu mundo teatral. Todas as vezes em que eu jogava tarô, eu

imaginava que aquelas imagens falavam diretamente comigo. É como se eu estivesse

comtemplando uma obra dramatúrgica. Cada arcano revela uma emoção, guarda um segredo,

esconde tramas e códigos virtuais que são muito semelhantes à arte dramatúrgica.

Não sei Artaud, se sou um místico que atua teatralmente ou se sou um ator que

representa um místico. Apenas sei com precisão que esse é o “meu duplo” é meu teatro-

duplo. Jogar tarô para alguém é representar um jogo de possibilidades, um diálogo de

pergunta e respostas. O tarô possibilita para o seu jogador uma experiência de conexão com o

mundo criativo das ideias. Cada carta exige uma emoção do tarólogo, ou seja, aquele que

facilita a leitura das lâminas.

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Quando você diz “é qualidade distintiva das coisas de teatro não poderem elas estar

contidas nas palavras, ou mesmo nos esboços. Uma encenação se faz em cena” (ARTAUD,

2014, p.143) eu entendo perfeitamente isso. Sei que qualquer matriz de pensamento criativo

precisa ganhar vida própria. Assim eu o faço com os elementos que construí para “Y”, mesmo

me baseando nos arcanos, não me deixei levar unicamente pelo o universo imagético das

cartas, mas deixei que elas surgissem em cena.

Acredito que neste ponto em que eu cheguei, devo ser mais claro com você,

explicando objetivamente a descrição de meu processo de trabalho. Então, vou ao tocante de

como tudo começou.

Primeiramente eu queria encenar algo que me agradasse e que eu não precisasse

justificar por que fiz “isso” ou “aquilo” em cena. Estou cansado de defender minha arte dos

críticos, resolvi fazer minha arte sem preocupação de agradar. Garanto que seus livros me

ajudaram muito neste sentido. Bem meu caro, então resolvi apenas ir fazer teatro sem

nenhuma preocupação. Segundo, convidei alguns atores que pensavam de certa forma no que

eu queria, então partimos para o trabalho.

O inicio da Instauração Cênica “Y” partiu do principio do “nada” eu não sabia o que

ia surgir e nem sabia no que poderia resultar. Não havia texto ou roteiro prévio, não possuía

uma ideia organizada de encenação, tudo era abstrato. Eu sabia apenas Artaud, que o mundo

místico a que eu estava acostumado iria falar mais forte. Eu tinha como ponto de partida o

desejo de encenar uma obra que fosse cerimonial, ritualística e que possibilitasse a minha

pessoa uma experiência de êxtase, de sentir espiritualmente os elementos do teatro, de dar

corpo aos espíritos das ideias.

Com esse ideal convidei atores: Barbara Andrelli, Cristiane Fragoso, Ed Silva,

Leonardo Santiago e Lourdes Santos, artistas que estavam a algum tempo sem atuar e de

certa forma estavam desmotivados com o seu trabalho de ator/atriz. A princípio, reuni cinco

atores e os convidei para uma experiência na chácara onde resido. Falei rapidamente sobre os

meus ideais e os perguntei se estavam dispostos a fazerem uma jornada mística teatral. Após a

aceitação de todos, já partimos para a experimentação criativa.

O nosso primeiro encontro de trabalho se deu numa noite escura e sem lua de 31 de

outubro de 2016. Estávamos reunidos em minha chácara à noite e saímos para passear numa

mata que se encontra nesta propriedade. Caminhamos embaixo de árvores bem altas, cujas

copas formam uma espécie de abóboda natural. Estando sob a escuridão da floresta, solicitei

aos atores que respirassem profundo de forma a sentir o cheiro da floresta. Eu queria apenas

que aqueles atores respirassem tranquilamente e pudessem sentir se havia diferença naquele

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ambiente, se ele era cotidiano para a percepção dos atores que moram numa cidade. O barulho

noturno da mata, as réstias e sombras de luzes e o cenário natural, ofereciam para os atores

uma experiência um tanto diferente e assombradora.

Assim meu caro amigo da arte, vejo que o meu processo criativo de teatro pode tomar

um ambiente “natural” como um cenário, que em um sentido mais amplo pode ser um

elemento dramatúrgico espontâneo para despertar a atenção dos atores e dos espectadores.

Adentrar no escuro de uma mata é como mergulhar num sonho onírico, onde o

mistério atrai e assusta ao mesmo tempo, onde as forças naturais despertam a atmosfera

magnética das magias. Desta forma, Artaud o nosso primeiro encontro teve o único objetivo,

permitir aos atores uma mudança do lugar cotidiano do teatro, para poder vivenciar um

contato com as forças externas.

Então você irá me perguntar: que forças são essas? E eu irei lhe responder que essas

forças são antes de tudo elementos físicos que por sua vez despertam as emoções e os

sentimentos. Acredito que não há nada de estranho nisso, apenas estamos desacostumados de

algumas experiências simples, que por sua vez estão dispostas nos elementos da natureza.

Quando entramos numa mata à noite, tendo apenas uma lanterna na mão, somos convidados

naturalmente a sentir uma tensão emocional espontânea. O barulho do vento nas galhas, os

grilos e cantos de pássaros formam uma trilha sonora natural que de certa forma amplia a

compreensão dos sentidos da audição. As sombras e os reflexos de luz escassa forçam as

retinas a experimentarem uma nova ótica. Os pés em contato com as folhas secas e as raízes

imprimem no tato uma sensação de textura não cotidiana para o individuo habituado com os

ambientes urbanos.

Acredito meu caro Artaud que o corpo-mente do ator/atriz nesta situação poderá

responder de forma diferenciada e assumirá outra sensibilidade físico-emocional. Essa

experiência é semelhante às experiências de um xamã que encontra na natureza, mecanismos

externos para despertar suas forças espirituais.

Podemos neste sentido encontrar uma relação com o conceito de realidade não comum

que é abordada pelo antropólogo Carlos Castañeda (2013), e que diz respeito às

experimentações místicas a partir do contato com a natureza. No qual o antropólogo, através

de estados meditativos, se desperta imageticamente para um mundo onírico, sem que

precisasse dormir. Os seus sentidos ficaram aguçados e sua percepção tática-sonora-visual

permitiu a ele sentir sensivelmente aquilo que ele “normalmente” não conseguiria

experimentar.

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Vejo o meu fazer teatral como uma forma sagrada de fazer Arte. Os alquimistas

acreditavam que o processo de transmutação devia antes de tudo acontecer de forma interna e

mental para depois se materializar externamente. A alquimia para eles era chamada de “A

Grande Arte”, pois envolvia um processo de manipulação manual e operação mental. Assim,

o alquimista devia se conectar mentalmente com o mundo externo para que a mente pudesse

sentir e se comunicar com aquilo que estava fora.

O Ator que eu aspiro ser, busca inspiração e se desenvolve neste universo xamânico,

espiritual e alquímico. O xamã conduz os seus seguidores através de um ritual próprio e

experimentado por ele através de sua sensibilidade interna mental com os fatos externos a si

próprio. O alquimista consagra os mistérios da transmutação com o seu senso emocional.

Através da emoção o alquimista tempera os elementos, ou seja, durante a manipulação dos

metais, ele poderá orar, cantar, recitar versos e regular as chamas do fogo com a intenção de

energizar os metais e acelerar o processo de transformação da “matéria bruta” em “matéria

sublime”

Com este proposito é que venho desenvolvendo minhas inspirações teatrais. A

Instauração-Cênica-Ritual foi pensada e idealizada para ser um ritual teatral, no qual a minha

“Pessoa Artística” é o guia cerimonial da ação teatral. Desta forma, o meu trabalho de ator é

organizado em um conjunto de vivências, de aprendizados tradicionais das artes cênicas

recorrentes de minha formação acadêmica e de aprendizados místicos recorrentes de minhas

experimentações místicas do tarô, alquimia e xamanismo. E é a partir destes elementos que

estruturei a instauração-cênica Y, organizada para ser encenada em um lugar metafórico e

sagrado. – o meu Laboratório Alquímico-Teatral.

Como sabes Artaud, o alquimista realiza suas experiências em seu laboratório, que é o

seu lugar sagrado. Para o ocultista Eliphas Levi (2014) a palavra laboratório deriva do latim

labor – trabalho e orare que significar orar. Dessa junção de palavras surge a máxima

alquímica “ ora, ora et labora” que para os alquimistas expressa, rezar, rezar e trabalhar. O

trabalho do alquimista em seu laboratório é repleto de cânticos, orações, mantras, meditações

e declamações de poesia. Tal iniciativa tem o objetivo de criar as condições emocionais

favoráveis para o trabalho de meditação e consciência do mago, como também purificar e

energizar o local de trabalho.

Tomando como metáfora o laboratório do alquimista, eu providenciei um espaço

exclusivo para ser o local da instauração cênica, e neste ambiente realizo constantemente uma

prática de trabalho semelhante. Acredito meu caro Artaud que podemos condicionar os

lugares e as coisas com nossas energias pessoais, que por sua vez condicionará uma vibração

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espiritual-mental. É semelhante ao “se mágico” defendido por Constatin Stanislavski(1994)

que permite ao ator acreditar emocionalmente no que está realizando, ter fé cênica.

Entretanto, eu acredito existir uma diferença básica entre você Artaud, e Stanislavski, pois

este faz de conta que vive com esse “se magico” e você Artaud realmente vive, não faz de

conta.

Retornando ao local escolhido para realizar a instauração cênica Y; bosque que tem

uma extensão de uns 100x300 metros de comprimentos, repleto de árvores, cujas copas são de

um tamanho deveras considerado. Entre as árvores, tratei de desenhar e executar uma série de

esferas e trilhas, que foram projetadas a partir da imagem da Árvore da Vida. Cada esfera

torna-se uma espécie de palco natural para a encenação. As trilhas são caminhos de condução

aos espectadores que se locomovem de um ponto ao outro no cenário natural, é semelhante às

encenações dos mistérios medievais. Desta forma os espectadores que assistem a instauração

cênica, estão dentro do cenário e assumem uma postura participativa. Os mesmos podem

escolher quando solicitado, qual caminho seguir. Enfim, todo o processo artístico se

estruturou a partir do lugar, e dele surgem os “espectros” do meu teatro.

A ideia de escolher um lugar fixo para a minha Instauração-Cênica, parte da inspiração

de seus escritos quando você afirma e deseja para o seu teatro um lugar novo e que fosse

diferente das salas tradicionais de teatro. Assim, meu caro amigo que me inspira, uso como

justificativa tua descrição sobre a necessidade de um novo espaço:

Foi por isso que abandonando as salas de teatros existentes atualmente usaremos um

galpão ou uma granja qualquer e o reconstruiremos segundo os processos que

resultaram na arquitetura de certas igrejas e lugares sacros e de certos templos do

Alto-Tibet.(ARTAUD,1964, p. 115, apud VIRMAUX, 2000, p. 70)

Neste espaço idealizado por você Artaud, o espectador poderia ser colocado no centro

da ação e o espetáculo se desenvolveria ao seu redor, preconizado por você como um

espetáculo giratório. Isso nos dias de hoje já é algo comum, vários artistas já realizaram tal

façanha. Mas, foste o pioneiro nesta ação.

Na minha Instauração-cênica-ritual o espectador se locomove de um cenário a outro e

ocupa o centro das esferas construídas no bosque. Neste local os atores realizam a ação teatral

e ritual. Cada esfera há uma maneira particular de encenação. Pois a delimitação e a estrutura

física obriga aos atores o contato direto com o espectador, muitas das vezes o espectador é

rodeado pela a cena, tendo que se adaptar ao espaço que se transforma constantemente.

No bosque eu estruturei o cenário natural com base no desenho da Árvore da Vida:

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Figura 07: Diagrama da Árvore da Vida e seus respectivos caminhos cabalísticos (biblioteca

cabalística de Colin Low, 2001)

Peço Artaud, que observe a figura acima. Cada esfera do desenho foi transposta para o

cenário físico, onde eu tratei de fazer pequenas clareiras entre as árvores, considerando o

formato circular e a disposição imagética de cada uma delas. Entre as clareiras fiz trilhas de

ligação de forma semelhante aos caminhos cabalísticos da figura acima. Na verdade

transformei o bosque em um cenário natural repleto de árvores e trilhas, tornando-se um

jardim místico, um teatro ao ar livre.

O cenário de Y foi elaborado a partir do entendimento da geometria sagrada exposta

pelo filosofo e matemático Pitágoras, que considera a natureza como fonte de uma geometria

matriz que se desenvolve a partir de uma proporção primária, que por sua vez se reproduz

sem perder sua harmonia. Este conceito meu caro é absorvido pelos primeiros construtores de

templos e lugares sagrados, como você mesmo reconhece ao falar do teatro que você quer

fundar: “mandarei arrumar e reconstruir segundo os princípios que tende a se aproximar de

certas igrejas, ou melhor, de certos lugares sagrados” (ARTAUD, 2014, p. 79) assim, busquei

me inspirar em seu desejo para criar o meu espaço sagrado para a Instauração-cênica-ritual.

Resumidamente meu caro poeta, a Instauração-cênica-ritual foi idealizada para ser

feita num espaço sagrado, destinado unicamente para a minha prática de magia cerimonial,

ritualística e teatral, na qual eu sou condutor.

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O “meu teatro” pertence unicamente a mim – o “eu criador”. Tenho um espaço para as

minhas criações cênicas. Este espaço, que eu chamo de “Y” é o meu laboratório cênico-

alquímico, onde eu na qualidade autoproclamada de ator-xamã, ator-mago e ator-louco

experimento possíveis encontros dos elementos do teatro com a magia-cerimonial e ritual e

busco envolver o público na participação e efetivação do ato teatral.

Então meu amigo das artes virtuais, o ator-xamã que eu acredito ser, é um ator que se

incorpora de todas suas vivências, crenças e misticismos para o desenvolvimento de sua arte,

e sua mística se faz presente o tempo todo, tanto no campo cotidiano, quanto no mundo das

artes. Este ator-xamã cria, se apropria e adapta rituais do campo místico-espiritual para o seu

processo criativo, de modo que estes campos se encontram numa única “obra’” – uma obra

dupla, assim como o seu teatro duplo misto de teatro e alquimia; teatro e a peste; teatro

metafisica; teatro e vida.

Então Artaud, você irá me perguntar de onde vem o conceito de Instauração-cênica

que eu nomeio a categoria desta minha criação artística, antes mesmo que lhe falo, devo lhe

confessar que eu não sabia classificar o que eu estava fazendo. A principio eu imaginava que

eu podia categorizar como espetáculo-ritual ou performance ritual. Entretanto, eu não

considerava termos suficientes significativos para classificar minha produção, uma vez que eu

tinha um produto artístico duplo, um bosque-cenário e um espetáculo teatral que era realizado

neste bosque. Eu refletia que quando não fosse realizado a encenação do espetáculo, o bosque

conseguiria descrever um significado artístico, podia mesmo guardar nos elementos de seu

cenário resíduos de informações do espetáculo efêmero que ali foi representado. É como

adentrar uma igreja após uma cerimonia religiosa e observar as imagens sacras que mesmo

intactas na condição de objetos sacros foram testemunhas do ritual religioso; os restos de

parafina derretida são resíduos de pedidos, orações e confissões; flores decorativas e cinza de

incensos são elementos que denunciam o evento que ali aconteceu. Olhar estes elementos nos

permite sentir de alguma forma que o evento religioso e espetacular ainda consegue nos

contagiar com sua vibração energética.

Ao descobrir na obra de Nara Salles (2004) o termo Instauração-cênica me possibilitou

encontrar uma categoria com a qual eu podia encaixar minha criação artística, pois o termo

contempla o duplo: a materialidade das artes visuais e as virtualidades das artes cênicas. Para

ser mais objetivo Artaud, vou lhe fazer uma síntese conceitual de onde eu adotei o termo.

Instauração é uma terminação que é utilizada pela curadora de artes Lisette Lagnado, a partir

do processo criativo do artista plástico Tunga quem promoveu o uso concreto do termo

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instauração, com a obra “xipófagas capilares” (1981) na qual duas jovens se movimentavam

unidas por seus cabelos. Desta forma Salles explica:

O conceito, para Lagnado é cunhado a partir dos termos performance e instalação,

significando um híbrido destas categorias. A instauração traz e guarda dois

momentos: um dinâmico e um estático. De acordo com Lagnado, a acepção de

instauração supera a característica efêmera da performance, a instauração deixa

resíduos, avançando no sentido de perpetuar a memória de uma ação, o que lhe tira

o caráter de ser somente uma instalação. (SALLES, 2004. p.04)

Desta forma Artaud, O termo instauração se diferencia do termo instalação que é

comumente usado no campo das artes visuais. A instalação se concretiza na existência de um

ambiente montado para um determinado evento que pode ser destruído durante o decorrer da

ação no ambiente, ao contrário da instauração, que não pode ser é destruída no decorrer da

ação, podendo no entanto, acontecer uma transformação do ambiente a partir de uma estrutura

estabelecida, havendo ainda a possibilidade de uma construção no espaço, intervindo assim

no cenário. Se apropriando deste entendimento, Nara Salles (2004) utiliza o termo

“instauração” conjugado ao termo “cênica”, para sugerir que:

Naquele local são instauradas ações cênicas e a ambientação não será destruída,

mas alterada. Embora utilize para o princípio da montagem no processo criativo,

os conceitos de performance, não denomino a encenação como performance,

porque no meu entendimento, o termo instauração é mais abrangente e a

ultrapassa. (SALLES, 2004. p.04)

Desta forma a instauração-cênica elucidada por Nara Salles (2004) me serviu como

representação categórica para a criação cênica, neste caso eu também conjuguei ao termo

Instauração-cênica a terminologia ritual, para esclarecer que naquela instauração-cênica

também haveria nesta ação a incidência da realização de um ritual.

Na Instauração-Cênica-Ritual “Y” o espaço criado para a apresentação cênica pode ser

observado posteriormente como um elemento de artes visuais, que haja neste momento a

encenação teatral, que conceitualmente para Nara Salles (2004) este ambiente pode evocar

“imagens instauradas na memória dos espectadores, provocando

questionamentos. Contemplando, dessa forma, um momento dinâmico e um estático,

característica da instauração.” (idem, p.04)

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Espero ter sido claro com a exposição acima. Pois, é com base nessa característica que

surgiu a minha jornada mística em busca do meu papel de ator-xamã na instauração-cênica-

ritual, na qual eu sou o “instaurador da cena” junto com os atores e atrizes.

Sim Artaud, eu sou o “instaurador da cena” não sou apenas um ator que encena uma

concepção teatral de alguma ideia, eu sou o cocriador da ideia e da cena. Eu, detendo a

experiência do mundo do teatro e empossado dos elementos presentes na instauração-cênica,

sou o condutor do processo de ritualização do teatro com a instauração-cênica e também

ritual.

A instauração como já falada anteriormente pertence ao campo das artes visuais, sendo

ela a materialidade de um acontecimento que deixa “resíduos” então desta forma a

instauração-cênica desenvolvida por mim terá como marco orientador criativo a

materialização do acontecimento cênico. É quando o teatro morre e deixa resíduo, ou seja,

restos de seu corpo criativo. O que sobra de meu teatro? Contemplar o seus restos é aceitar

que ele sempre morre a cada acontecimento. O teatro é uma arte de morte e você Artaud sabe

disso melhor que eu, quando expôs o sentido de seu teatro de cunho metafisico:

Se nós fazemos um teatro não é para representar peças, mas para conseguir que tudo

quanto há de obscuro no espírito, de enfurnado, de irrevelado, se manifeste em uma

espécie de projeção material, real. Nós não procuramos denunciar como isto se

produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a ilusão daquilo que não

existe, mas ao contrário fazer aparecer ante os olhares um certo número de quadros,

e imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão ao espirito diretamente. Os objetos,

os acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser entendidos

em um sentido imediato, sem transposição: deverão ser tomados não pelo que

representam, mas pelo que são na realidade. A encenação propriamente dita, as

evoluções dos atores, não deverão ser consideradas senão como signos visíveis de

uma linguagem invisível ou secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não

carregará atrás de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.

Tudo o que na vida tem um sentido augural, divinatório, corresponde a um

pressentimento, provém de um erro profundo do espirito, tudo isto será encontrado

em um dado momento sobre o nosso palco (Artaud, 2014. P.38)

Então meu caro Artaud, veja que há semelhança entre o espirito de seu teatro e a

concepção da instauração cênica, em ambas as concepções há uma necessidade que o

acontecimento deixe um elemento residual que pode ser acessório, figurino, cenário e etc,

sendo possível a estes elementos comunicar em sua contemplação física um estado de

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emoção. É semelhante aos antigos hieróglifos, que além de ser um signo visual guardava

conjuntamente uma simbolização metafisica, temos ai o encontro de um duplo: o duplo

efêmero do teatro e o duplo da matéria simbológica.

Ao refletir continuadamente sobre o seu espírito do teatro e a concepção de

Instauração cheguei ao entendimento que minha instauração-cênica era o meio onde eu iria

desenvolver o meu ritual de encenação e para isso eu iria recorrer aos elementos físicos dos

espaços e dos resíduos que ficam nele. Eis então a minha instauração-cênica-ritual a que eu

chamo de “Y”.

Y é o meu duplo teatral = o local da encenação e a exposição do resíduo artístico na

pós-encenação. Assim, será possível a quem assistiu a instauração-cênica poder contemplar

em seguida a “instauração” ou seja o outro meio da expressão artística “Y” os seus cenários

naturais, e os cenários criados serão elementos de exposição visual repleta de simbolismo

teatral. É como o esqueleto depois da decomposição. É neste momento que sabemos que o

teatro morreu, temos agora, apenas seus restos que serão oferecidos em sua memória. E isto é

algo que pertence ao campo do ritual. É como se o Deus Dionísio morresse toda vez que o

ritual acaba, mas seu sangue e seu corpo serão entregues simbolicamente aos seus

“degustadores”.

O que seria o teatro senão uma degustação? O teatro não é apenas o cumprimento

etimológico de sua palavra “lugar onde se vê”, mas também o lugar onde é possível sentir,

sentir todos os cinco sentidos da sensibilidade humana: paladar, tato, audição, visão e olfato.

Estes sentidos são semelhantes aos cinco elementos da natureza: Ar, Terra, Fogo, água e éter.

O éter é a matéria essencial e invisível de vida de todas as suas expressões.

É a partir deste principio que temos a criação da Instauração-cênica-Ritual “Y”. que

eu organizei em um conjunto de 3 elementos : instauração (local do resíduo) artes cênicas

(ação efêmera do acontecimento teatral ) e Ritual (procedimentos simbólicos entre o campo

material e o estado efêmero da emoção) a partir dessa conjunção pretendemos proporcionar

ao observador-instaurador da cena compreender que ali existe algo que vai além do teatro e da

arte – ali está a Arte viva, possuidora de corpo (resíduo) e de Espírito (a ação efêmera teatral)

trazendo para a encenação instauradora um tipo de teatro idealizado por você:

Nós concebemos o teatro como uma verdadeira operação de magia. Nós não

dirigiremos aos olhos, nem à emoção direta da alma; o que nós procuramos criar é

uma certa emoção psicológica onde as molas mais secretas do coração serão postas a

nu [...] fora portanto da maior ou menor consecução de nossos espetáculos, os que

vierem a nós compreenderão que participam de uma tentativa mística pela qual uma

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parte importante do domínio do espirito e da consciência pode ser definitivamente

salva ou perdida (Artaud, 2014. p.39)

Então meu caro Artaud, eu me aproprio do que você fala acima: “os que vierem a nós

compreenderão que participam de uma tentativa mística pela qual uma parte importante do

domínio do espírito e da consciência pode ser definitivamente salva ou perdida.” (idem)

O meu projeto de montagem da instauração-cênica-ritual considerou algumas questões

discutidas por você em seus textos, principalmente quando você nos convida a pensar o teatro

como uma obra metafísica, mística e uma criação virtual entre teatro e alquimia. Desta forma,

ao idealizar o meu processo criativo tomei como palavras-chaves alguns elementos discutidos

por você na obra o teatro e seu duplo. São estes os elementos: teatro, tarot, alquimia,

misticismo, cabala, xamanismo, mitologia e êxtase . Estes elementos serviram de base para

todo o processo criativo da instauração-cênica-ritual “Y”.

Voltemos então a nosso ponto de partida, a concepção da instauração-cênica. Como

falei no inicio desta carta, juntei alguns atores com o proposito de elaborar um espetáculo

místico, que mais tarde tornou-se a instauração-cênica-ritual Y. Os atores convidados para

este processo criativo, assim como eu, não pensavam em estudar uma dramaturgia escrita,

todos estavam cansados da experiência tradicional do teatro. Entretanto, eu tinha o proposito

de me guiar por aquilo que você expõe na obra O Teatro e seu Duplo (1985) e pretendia desde

o inicio começar um processo liberto do texto. E assim começamos a experimentar o local

destinado a instauração-cênica.

Quando eu falo em experimentar o local da instauração, eu quero dizer, sentir o lugar

cênico no corpo do ator, conhecer a atmosfera teatral de onde surgirá a nossa encenação.

Então, a questão que se coloca aqui é muito simples: se colocar no espaço da encenação e

sentir toda a atmosfera que nos cerca enquanto instauradores da cena. Para isto, tratei de me

basear nas experiências de um xamã quando este adentra um espaço sagrado. Neste caso, o

xamã entra em contato com as possíveis energias que se expressam ali através dos elementos

presentes no local, vento, terra, folhas, pedras, arvores e animais. E assim, estes elementos

vão dialogar diretamente com o xamã. Tal experiência é descrita por Gabriel Weisz (1999)

quando ele observa nos xamãs algumas experiências externas que são conduzidas para o

corpo. Weisz (1999) entende por “exteroceptividade” a percepção que nosso cérebro articula

o mundo interior do mundo exterior, os proprioceptores são resultantes da percepção que o

sujeito faz da sua posição no ambiente é de ordem da percepção do mundo interior. O

universo significante do corpo e do psiquismo organiza-se na categoria proprioceptiva

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correspondente ao corpo, categoria mediadora entre o exterior e o interior. Desta mediação,

participam as categorias exteroceptivas e interoceptivas. A categoria proprioceptiva trata da

posição do ser vivo no seu meio. Posição que percebe a maneira pela qual o ser vivo recebe

impressões sensoriais e reage no seu meio ambiente.

Com base no entendimento de Weisz (1999) sobre as impressões sensoriais é que

exploramos exercícios físicos de andar, caminhar sentindo as impressões no ambiente da

instauração-cênica, ou seja, o bosque. Este bosque é repleto de árvores, e como o nosso

processo de concepção artística era realizado a noite, o ambiente tornava-se mais denso e até

mesmo assombrador. Assim, os atores conseguiam naturalmente ser tomado por um

sentimento de estranhamento e medo. Os barulhos produzidos na mata por pássaros noturnos,

ventanias, galhos que se quebram, davam ao ambiente um ar de mistério.

Ao entrar neste ambiente de mata, eu comecei a pensar como eu poderia me relacionar com o

ambiente. Neste sentido, busquei a inspiração de um xamã quando ele inicia uma jornada

mística em busca do desconhecido. Para isto tomei como base as descrições da obra O

Espirito do Xamã feitas por Mike Williams (2013). Neste livro o autor faz uma breve síntese

sobre as experiências de um xamã e suas vivencias como o mundo. O que eu encontrei nesta

obra foram indícios do trabalho de xamã e que de certa forma essas experiências não eram

completamente desconhecidas de minhas práticas e que de certa forma dialoga com o seu

pensamento quando você fala: “O ator não passa de um empírico grosseiro, um curandeiro

guiado por um instinto mal conhecido[...] No entanto, por mais que se pense o contrário, não

se trata de ensiná-lo a delirar”( ARTAUD, 1985, p.147)

Passei minha infância em uma chácara rural no agreste de Pernambuco. Nesta época vi

de perto muitos curandeiros e curandeiras, chamados também de rezadores e rezadeiras. Estas

pessoas costumavam curar praticamente uma infinidade de doenças e realizavam curas em

animais que eram mordidos por cobras e adoeciam segundo eles por “olhado” que trata-se de

uma contaminação espiritual através da inveja de terceiros. Estes curandeiros que observei em

minha infância realizavam simpatias com ervas, fogo, terra, benziam águas e magnetizavam

animais. Esta minha vivência me influenciou decisivamente a pensar isso, não apenas como

uma experiência espiritual invisível, mas como um meio fluídico, que gera a materialidade da

cura através do gesto do curandeiro. O que penso a esse respeito, se aproxima de certa forma

com a sua colocação:

A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator.

Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da

matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania. Alcançar as

paixões através de suas forças em vez de considerá-las como puras abstrações

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confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro ((

ARTAUD, 1985, p.154)

Estas vivências ainda estão muito vividas em minha memória e foram de certa forma

conduzida para minha prática de vida e minha experimentação artística,

Na concepção da instauração-cênica-ritual eu assumi a condição de um mestre de

cerimônia, um xamã, um guia espiritual e artístico responsável por conduzir o processo de

criação e os atores-instauradores.

Eu sei que é muito prepotente de minha parte a intitulação de xamã. Entretanto, devo

lhe confessar Artaud, o artista é em si um ser prepotente. Eu sou ator, mesmo que possa

parecer loucura assumi o papel de xamã, ou melhor dizendo de ator-xamã. Conjuguei a minha

prática de vida e minha formação naquilo que eu acredito ser possível acontecer.

Para que esta carta não se torne extensa devo encerrar aqui a descrição de como

cheguei ao entendimento do que eu queria fazer – a instauração-cênica-ritual. Esta será uma

possível categoria em que eu tratarei de construir a minha encenação mística. Dentro de breve

lhe escreverei outra carta relatando como esse ator-xamã surgiu em minha vivência de

trabalho artístico.

Faço votos de uma boa leitura e espero que tenhas entendido daquilo que descrevo.

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CARTA DO IMPERADOR-XAMÃ AO ATOR-POETA ANTONIN ARTAUD

Imagem nº 8 - carta do imperador no Tarot de Rider-Waite

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Caro Artaud,

Na jornada do louco no tarot chegamos diante do imperador. O imperador no Tarot de

Waite significa uma base sólida para a realização de uma vontade inabalável. O imperador

simboliza o poder da mente para dar forma ao mundo. Assim como a lâmina da imperatriz, o

Imperador representa um aspecto ideal dos pensamentos que queremos dar forma. Ele

diferentemente da imperatriz, consegue materializar objetivamente o seu mundo, ele regula e

ordena as coisas para que tudo tenha sentido. O Imperador é o arquétipo do pai, sábio e

generoso. Ele nos ensina que toda regra tem um motivo e uma razão de ser. Ele é o

governador, o gestor e o líder, é aquele que ordena a estrutura e conduz ao invés de ser

conduzido.

Eu escolhi esta lâmina para descrever as minhas primeiras experiências de como eu

represento o meu papel de ator-xamã na instauração-cênica-ritual. Antes mesmo de narrar a

você algumas de minhas vivências, quero contar uma história que aprendi durante o meu

aprendizado sobre o tarot.

Como eu já falei em outra carta, O Louco representado no tarot inicia uma jornada

mística durante sua evolução. Nesta jornada, o Louco encontrou em seu caminho um Mago

que lhe ensinou como fazer escolhas sobre atributos de vontade e com a Sacerdotisa aprendeu

a receber ajuda e inspiração para tomada de atitudes, em seguida ao encontrar a Imperatriz ele

compreendeu como desenvolver seu caminho e conhecer melhor a abstração de seus

pensamentos que tomarão formas no mundo material. Mas é durante o seu encontro com o

Imperador que ele entenderá como desenvolver o seu trabalho para conseguir seu objetivo.

Assim o louco aproxima-se de um grande imperador sentado em sentado em um trono. Ao

observar como o imperador governa o seu reino, o Louco se espanta com a maneira que o

soberano guia com destreza seu império. Curioso, o Louco respeitosamente pergunta como

ele consegue tal façanha. O Imperador: responde: - A vontade inabalável e uma base sólida

são premissas importantes para guiar qualquer trabalho. Para guiar algo e alguém é preciso

estar alerta de forma brava e agressiva.

Após escutar estas palavras o Louco segue o seu caminho com um novo propósito e

tendo em mente uma direção a seguir.

Este Louco sou eu meu caro amigo da arte. Com o arquétipo do Imperador

(governador) eu consegui entender que é preciso ter foco e inteligência para desenvolver o

meu trabalho de ator-xamã e que este imperador é um reflexo de atitude, que por sua vez nos

mostra o domínio das paixões e o triunfo da inteligência governadora e estruturante.

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O imperador aqui revelado é um aspecto simbólico que o tarot revela sobre o meu desejo de

ser o ator-xamã. Gostaria com precisão de lhe dar todas as citações fundamentadas.

Entretanto o misticismo em minha vida foi incorporado de forma automática. Muitos dos

ensinamentos aprendidos por mim foram de ordem onírica e arquetípica, que entraram em

minha vida de forma espontânea. Há coisas que sei, que eu aprendi, mas não lembro de onde

vieram. Sei que a ciência não tolera fatos desconhecidos. Mas não há muito que fazer. Por

este motivo eu me nomeio como o objeto de meu próprio estudo. Cada coisa aqui descrita é a

partir do que eu sinto e como eu me expresso na arte e na vida. É o meu teatro da vida

cotidiana, em que eu represento a mim mesmo. Assim começo a descrever minhas

experiências.

Um xamã segundo Mike Williams (2013) surge no lugar onde ele mora. Esse lugar é

onde se encontra a sua casa e sua vizinhança. Segundo ele uma jornada se tem início onde se

está. Este local é o ponto de partida para uma grande viagem mística. No meu caso, eu tenho

um sitio, uma chácara provida de um bosque florestal, também chamado de “mata”. Neste

ambiente eu desenvolvi o cenário real de minha instauração-cênica. Este mesmo lugar é para

mim uma espécie de laboratório alquímico e artístico. E é neste bosque onde iniciei as minhas

vivências místicas, é o meu espaço de trabalho teatral e meu laboratório de pesquisas cênicas.

Segundo as descrições de ELIADE (2002) um xamã desenvolve no loco de sua

comunidade ou tribo. Sua função dialoga diretamente com o lugar que ele habita. A sua rotina

de vida naquele ambiente conduz um tipo de energização do local.

Eu tenho desta forma um lugar que considerado sagrado, é a mata que eu chamo de

“Y”, que por sua vez representa um caminho bifurcado. Na mata “Y” construí 10

círculos/esferas para organizar a cena. Entre os círculos há 32 trilhas que ligam um circulo ao

outro. Estes círculos que na cabala são chamados de sephirothes ou séfiras, mas eu as chamo

de “casas”.

Estas casas foram idealizadas por mim para serem um local sagrado. Para Mike

Williams (2013) em várias culturas sagradas os xamãs sabiam se relacionar com o fluxo de

energia presente nos locais sagrados. Essa energia para os antigos chineses é chamada de qi

(“chi”) que significa fluxo. Assim, cada lugar preparado no cenário de minha Instauração-

Cênica tem um fluxo, que foi condicionado durante o processo criativo para despertar uma

sensação ou energia. Esse fluxo é semelhante as sensações corporais sentidas e descobertas

pelos xamãs em sua prática espiritual em lugares sagrados.

Quando comecei a explorar o bosque senti que havia ali uma energia desconhecida.

Cada circulo desenhado na mata foi uma conquista do lugar. Pois, durante a construção do

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espaço aconteceu uma série de “coisas” que nos assombrava, barulhos, gritos, quebradeiras de

galhos, assovios e pisadas misteriosas nas folhas, que ao repararmos nada descobríamos.

Parecia que havia ali algo de invisível que impedia a nossa estada naquele ambiente. Foi ai

que me lembrei dos curandeiros que observei quando criança. Estes curandeiros ao entrar

num lugar que não tinham domínio, eles pediam licença ao local. Desta mesma forma,

comecei a adotar esse ritual. Todas as vezes que eu adentrava ao bosque eu pedia licença,

mesmo sem ver nada na visualidade a minha frente. Eu, também pedia aos atores e atrizes que

acompanhavam no processo, que eles pedissem licença.

Figura 09: planta baixa do cenário de Y. Cada esfera colorida é uma clareira feita na floresta. As linhas

que ligam as esferas são as trilhas por onde os espectadores caminham

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De inicio, o ato de pedir licença para adentrar ao espaço sagrado e teatral era algo estranho,

pois não havia o hábito de fazer essa reverência para poder trabalhar. Mas, ao longo do

processo pedir licença, tornou-se uma atitude comum. De certa forma, pode parecer um

costume de “crendice” e “superstição” que poderia até mesmo ser dispensado de nossa prática

de trabalho; no entanto minha proposta foi justamente agregar princípios ritualísticos ao

processo criativo, e talvez esse fosse meu principal tarefa neste trabalho. Com a repetição de

licenças nos permitimos a estabelecer uma relação respeitosa com um ambiente:

- Com licença! Vamos entrar na cena-ritual. Somos atores filhos de Dionísio,

entidade mitológica do teatro ocidental, representação mítica a quem servirmos.

Nossa arte veio de longe, de eras longínquas que se perdem no tempo. Trazemos

conosco a arte de engenhar encenações. Encenações são projeções da vida e da

morte que desenhamos com nosso corpo e poesia. Somos atores que procuramos

reviver a magia do teatro metafísico, do teatro xamânico, do teatro-alquímico, nos

dê licença e permissão para nossa arte operar (SANTOS, 2018, trecho de ensaio

retirado do caderno de encenação)

Como você pode perceber Artaud, o trecho acima é um recorte do processo de criação

cênica de minha instauração-cênica- ritual “Y”. Eu início o meu processo de trabalho com

uma saudação ao local de maneira a informar que ali se inicia um processo de encenação, é

como uma espécie de oração, como se fosse uma consagração espiritual a arte virtual do

teatro, como você mesmo diz quando fala do teatro e alquimia, que em ambas as artes são

virtuais, ou seja, a arte é produzida no campo das materialidades e mentalizações. Você fala

algo semelhante na obra O Teatro e seu Duplo: “O teatro refaz o elo entre o que é e o que não

é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada” (ARTAUD,

1985,p.24)

No inicio do processo eu apenas queria sentir o espaço e orientar aos meus parceiros

de trabalho, ou seja, os instauradores da cena, a sentir o espaço, assim como fazia Constatin

Stanislavski (1994) que orientava a seus atores para sentir a energia das coisas no palco e

sobretudo sentir a energia presente no local da representação, ele chama isso de “círculos de

atenção”. Nos círculos de atenção o ator/atriz se coloca num estado de concentração a partir

do ambiente onde ele está localizado durante a encenação, concentrado o ator/atriz se mantém

em atenção numa escala de proximidade física com os elementos ali presente. Essa

experiência é semelhante a vivência do xamã, que busca no ambiente pontos de energia.

Estes pontos de energia são explorados através de um longo exercício físico de sentar, deitar,

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levantar e caminhar por um ambiente demarcado até achar um ponto favorável para explorar a

sua magia naquele momento. Na obra de Carlos Castañeda (2013), está descrita a exploração

feita por ele junto ao feiticeiro Don Juan, que lhe ensina a descobrir um ponto de energia em

sua casa. Assim, Don Juan orienta a Carlos Castañeda a buscar na varanda um ponto de

energia que lhe chamasse a atenção, para isso ele devia andar no ambiente e sentar várias

vezes em locais diferentes, até o momento em se sentir afetado energeticamente. Essa

experiência é algo difícil de se explicar, pois está marcada no nível da sensibilidade subjetiva,

ou seja, cada individuo sente de forma diferente, mas o sentir se revela como uma sensação

corporal de conforto ou satisfação.

Assim como os xamãs os atores/atrizes também buscam pontos de atenção para

operarem sua arte. Isso também é alquimia, pois a alquimia é um exercício mental empregado

para o desenvolvimento de uma operação mágica de transmutação, ou seja transformar uma

energia em outra, um estado de consciência em outro estado. Nos atores/atrizes operamos

nossa encenação a partir do gesto.

Em “Y” eu entendi que eu sou o artista da cena, eu crio elementos e convenciono a

minha sensibilidade corporal como uma energia para as coisas, atribuo aspectos simbólicos

aos objetos de criação. A minha capacidade de mentalização, me dá as condições reais para

exercer o que eu acredito ser um tipo de magia teatral, e que está contida na percepção do ator

na cena e ao mesmo tempo sobre sua atuação e presença. Barba (1995) entende essa magia

como uma energia que é revelada pela potência muscular e nervosa presente em todo corpo

vivo. Entretanto cabe ao ator dar forma a essa energia para dar vida ao seu teatro.

Yoshi Oida (2007) sugere que a energia revelada no corpo do pode está ligada ao meio

ambiente. Assim, os elementos da natureza podem inspirar imageticamente a constituição das

emoções do personagem. Yoshi Oida exemplifica da seguinte forma, a raiva pode ser

associada analogamente com a imagem do fogo. Essa relação segundo Oida (2007) pode

colaborar com ator na exposição de uma emoção mais viva, sendo esta um reflexo da própria

natureza.

Um dos exercícios que eu propus aos atores-instauradores foi caminhar em uma trilha

que eu demarquei dentro da mata. Eu e os atores-instauradores demos o nome deste caminho

de “Trilha do Louco” em homenagem ao Arcano do Tarot “O Louco”. Nossa tarefa nesta

trilha seria caminhar diversas vezes no mesmo local com o pensamento e a concentração

voltada para sentir o vento, visualizar as sombras da noite e escutar os sons do ambiente. Eu

disse aos instauradores: “tornem-se íntimos do lugar, tenham relação com ele, desta forma ele

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ficará gravado em nossas cabeças e nossos passos ficarão marcados neste lugar”. Estas frases

eram pronunciadas por mim como a declamação de uma oração.

Consagrei a trilha do louco ao elemento ar, que é o elemento atribuído ao Arcano do

Louco no Tarot de Waite (2014) então desta forma, o elemento ar, sentido por nós através da

respiração e do vento seria a nossa inspiração para exploração energética do local. Sentir o ar

e produzir o ar pela expiração era um exercício de rotina nesta fase. Outra forma de produzir o

ar era abanar gestos com os braços, balançar os membros do corpo para estimular correntes de

vento ao nosso redor. Apenas isso.

A princípio, os atores-instauradores acharam um exercício simples, ou mesmo bobo,

pois talvez aquilo, não fosse teatro, pelo menos da forma como estavam acostumados. Mas, se

colocaram a disposição para sentir o mundo externo e de que forma ele podia imprimir no

corpo dos instauradores uma sensação. Acredito que o teatro é feito para emanar sensações.

Da mesma forma que os rituais despertam estados de emoções em seus participantes.

Na criação de minha Instauração-Cênica eu defini um objetivo maior, saber qual o

meu papel de criador na possibilidade a ser um possível ator-xamã. O caminho que eu optei

foi deixar que o xamã surgisse em mim como um personagem no teatro. Entretanto a

construção desse personagem deveria ser arquitetado através de uma jornada mística em

busca de meu xamã interior que por sua vez fez despertar em mim o ator – o ator-xamã

A jornada mística que eu vivenciei neste processo para encontrar o meu possível papel

enquanto ator e xamã, foi inspirada nas experiências de Carlos Castañeda, nas leituras sobre

xamanismo de Mike Williams(2013);Mircea Eliade(2002) e Lévy Straus(2004), onde é

possível encontrar alguns apontamentos sobre o trabalho do xamã. Desta forma eu elegi

alguns elementos que tratei de observar com mais atenção, entres eles os objetos de um xamã,

a relação com o espaço ritual e o contato com o elementos naturais: ar, fogo, terra e água.

Carlos Castañeda (2013) descreve através das indicações do feiticeiro Don Juan, que

xamãs portam objetos de poder. Estes objetos de poder inicialmente são semelhantes a

brinquedos de uma criança, no qual é depositado determinado tipo de sentimento. É como se

nós depositássemos energia nestes objetos. É algo semelhante com trabalho de adereços e

objetos no teatro. Entretanto os objetos para os xamãs são energizados e a partir de então

serão para sempre sagrados. Assim tratei de adotar alguns objetos que são utilizados pelos

xamãs. Logo mais descreverei alguns relatos de minha experimentação com estes elementos.

O primeiro objeto de poder experimentado foi um bastão de madeira recolhido no

mesmo bosque em que trabalhamos a instauração. Para Eliphas Levi (2013) o bastão para os

xamãs e para os magos de várias religiões antigas tem uma importância considerável, no que

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diz respeito às operações com a magia da natureza. Ele é semelhante a famosa varinha mágica

utilizada pelos magos medievais, que se tornou símbolo e referência quando se desenha uma

imagem de um bruxo, bruxa, mago e fada.

Figura 10: bastão xamânico feito durante o processo de criação de Y

O trabalho com o bastão meu caro Artaud, começa unicamente com a tarefa de

providenciar este bastão. Para isto é necessário o uso indeterminado de tempo para se iniciar

uma busca do material que deverá surgir o bastão. Seguindo as orientações de Eliphas Levi

(2013) o bastão deve ser feito de um único galho perfeitamente reto, cortado de um só golpe

com uma faca ou foice destinada para este único fim. O corte deve ser feito antes do nascer do

sol. Após o feito, é necessário perfurá-la em todo o seu comprimento sem fendê-la e em

seguida, introduzir uma haste de ferro imantado que ocupe toda a extensão do bastão de

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madeira. Pode se ainda colocar um prisma de pedra na base superior do bastão. Após a

conclusão deste trabalho, deve se iniciar a consagração do bastão.

A consagração do bastão deve durar sete dias e se iniciar na lua nova com a imposição

do objeto em direção a lua. O bastão deverá ser suspenso pelas as mãos do seu dono. Ele

deverá segurar com um gesto de nobreza, digno dos rituais onde se apresenta os objetos de

trabalho.

Figura 11. Trabalho com o bastão – o autor demonstrando um exercício com o bastão.

Foto de Bruno Vinelli, 2018

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Iniciei a consagração no dia vinte e nove de abril de dois e dezenove, era uma noite de

lua nova exatamente às dezoito horas quando o bosque começou a ficar escuro e a luz da lua

brevemente apareceu entre as copas das árvores. Suspendi o bastão em direção aos céus

segurando firmemente e respirando com tranquilidade. Neste momento passei a observar toda

a extensão do bastão como se o mesmo brotasse de meu corpo. Coloquei-o com sua base

inferior preso nas pernas, próximo a região genital de forma a simbolizar um falo ereto que se

inclina em direção à lua. Enquanto eu segurava o bastão eu solicitava verbalmente que aquele

objeto pudesse receber as forças emanadas pela a natureza pelas minhas energias magnéticas

presentes em meu corpo. Após mais ou menos duas horas ininterrupta de consagração eu

conclui o ritual com uma oração improvisada para a ocasião:

Agradeço as forças ocultas manifestadas neste ritual. Que este bastão possa conter as

forças do ar e da lua, as energias minerais da terra e do fogo, o principio vital através

da água que habita meu corpo. Pela força dos quatro elementos eu te consagro

bastão de poder pessoal. Que a Arte da Alquimia se conjugue neste momento com a

virtualidade mística do teatro. Evoé ! (SANTOS, 2018, trecho de ensaio retirado do

caderno de encenação)

Assim meu nobre Artaud, após os setes dias de consagração eu estava pronto para

utilizar definitivamente o bastão no meu processo criativo. Desta forma nos dias de trabalho

criativo da instauração-cênica, eu recebia os atores-instauradores portando o bastão em

minhas mãos. Eu o utilizava como um cetro, e dele me empregava para fazer desenhos nos

ares e na terra. O bastão também empreendia a função de um cajado que servia de apoio nas

caminhadas noturnas. Ao ver o bastão, os atores-instauradores ficaram curiosos e

perguntaram sobre sua atribuição. Após eu explicar sobre sua utilidade, os convidei para

providenciar também um bastão. Entretanto, os bastões dos atores-instauradores não seriam

consagrados da mesma maneira. Pois, o processo ritual do bastão era apenas recomendado

para pessoas iniciadas que estavam dedicados a algum nos estudos xamânicos. Mas eu

expliquei o motivo e prometi fazer isso mais adiante, quando eles fosse iniciados ritualmente

para tal fim. Ninguém replicou e desta maneira continuamos o trabalho com os bastões não

consagrados.

Os bastões não consagrados que portavam os atores-instauradores foram utilizados

para desenvolver um exercício xamânico de desenhar círculos em torno do corpo de cada

participante. Os círculos dentro da prática xamânica simbolizam o universo que cerca o ser

humano. Para Mike Williams em seus apontamentos sobre o espirito do xamã, ele nos

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informa que estando dentro de um circulo, o individuo cria uma analogia de um

microuniverso, onde quem desenhou fica protegido das forças ocultas.

Levei cada um dos atores-instauradores para um local do bosque. Estando sozinhos,

começaram a desenhar um circulo ao seu redor. Pedi-lhes que os mesmos fizessem uma

oração pessoal pedindo proteção para que as forças ocultas não adentrassem o circulo.

Os sulcos marcados no chão expunham círculos que após a realização do exercício, se

configurariam como um resíduo, elemento próprio da instauração cênica. Assim, na manhã

seguinte eu tratei de visitar o bosque com o objetivo de visualizar os desenhos circulares. Ao

observar os círculos de cada ator-instaurador e me coloquei numa disposição para sentir as

possíveis energias deixadas ali. Os xamãs conseguem se conectar com os deixados por outras

pessoas e até mesmo por seus ancestrais. Estar ali, me possibilitou este pensamento, poder

contemplar o resíduo que foi fruto de uma ação empregada numa energia. Entretanto, ao

mesmo tempo eu me perguntava, se havia ali algo importante para o meu trabalho, o que eu

poderia extrair dali? Qual importância deste acontecimento?

Acredito Artaud, mesmo que os atores-instauradores tenham feito os círculos apenas

de forma mecânica, reproduzindo somente o gesto de marcar o chão com o bastão sem

empregar crença alguma, mesmo assim, não podemos descartar que o esforço físico repetitivo

empregado para tal ação já pode ser considerado um aspecto de energia. Aspecto que por sua

vez desperta a atenção e a curiosidade de saber quem fez os círculos? E por que os fez?

Voltar num lugar após um ritual e observar os resíduos neste local, convida a quem

observa poder pensar sobre o que aconteceu ali. É como visitar um local após um crime ter

acontecido ali, haverá um sentimento estranho, como se o ato criminoso pudesse se repetir a

qualquer momento.

Após a experimentação do bastão. Iniciei o trabalho com o fogo que é um dos

elementos-chave para o desenvolvimento das práticas xamânicas. Na obra de Mike Williams,

O Espirito do Xamã (2013) o fogo é descrito como um elemento de invocação para o xamã,

ou seja, ele é naturalmente condicionado a compreender o poder do fogo e a sua utilização nas

práticas cerimoniais.

Lidar com fogo é um tarefa fácil para um xamã. Pensando como xamã eu entendo que

o fogo é instaurador de renovações vitais. Ele é o calor do corpo que gera substância da vida

e por meio do sangue ele circula em todo o corpo. O fogo é a energia inflamada com que o

ator entra em cena e faz a ação acontecer.

O fogo é um elemento de grande significação em “Y” ele ilumina através de tochas,

velas e fogueiras todos espaços da cena. Ele também se encontra em caráter espiritual, pois é

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elemento dramatúrgico que clareia as trilhas do bosque. Sem ele os acontecimentos

ocorreriam no escuro. Ele está presente nos altares através de vela que são oferecidas as

entidades protetoras do lugar.

Figura 12: experimentação com o fogo – processo de construção da Instauração.

Não sei Artaud se você alguma vez fez e acendeu uma fogueira. É uma experiência

incrível e até mesmo teatral. Fazer com que as chamas surjam na madeira é antes de tudo um

momento de muita atenção. As primeiras chamas são muito pequenas e apagam com

facilidade, desta maneira é preferível acender primeiro um monte de galhos finos e bem secos,

que darão por sua vez uma densidade maior ao corpo do fogo, que por sua vez irá queimar os

galhos mais grossos. Contemplar esta simples tarefa é perceber que isto já foi muito

importante para as comunidades mais antigas. A vida da comunidade dependia do fogo e por

este motivo ele se configurava como um elemento digno de ser zelado com apreço espiritual.

Ao acender a fogueira durante a minha experimentação xamânica me dotou de um

sentimento de muita alegria. É como se eu estive preparando uma festa e estive a espera dos

convidados para confraternizar. Este sentimento simbólico é semelhante ao esperamos que as

chamas de fogo se tornem forte para consumir as madeiras.

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Durante uma noite de lua cheia fui sozinho para o bosque. Lá reuni alguns galhos para

fazer uma fogueira. Todo o ambiente estava escuro e misterioso. A noite na mata nos nutre de

um sentimento de que estamos sendo observados o tempo todo. Enfrentando as sombras da

noite que esconde os galhos, eu juntei uma pequena quantidade de lenha e comecei a tocar

fogo com a ajuda de fósforos. As chamas lentamente foram aumentando ao ponto de clarear

uma parte do bosque. Fiz um circulo ao redor da fogueira e me coloquei dentro da área

demarcada. Andei na direção horária e anti-horária do círculo. Eu batia palmas e gesticulava

com braços acenos para as chamas. Eu dancei. Eu dançava para o fogo na tentativa de

comunicar com ele. Eu imaginava que era possível imprimir as minhas qualidades nele da

mesma forma que eu sentia seu calor.

Havia em mim um sentimento desconhecido. Eu parecia uma criança em seu primeiro

contato com o fogo. Por vezes eu assoprava as chamas como se quisesse aumentá-las.

Saudava o fogo com exclamações de “vivas”. Eu estava sozinho com o fogo, pleno atraído

pelo seu mistério. Algo de erótico nesta relação me satisfazia. Embriagado por esse

sentimento, retirei as vestes que eu portava, e ficando nu, dancei para o fogo. Lembrando-me

do trabalho dos xamãs, eu improvisava versos e canções de saudação. Meu ânimo estava em

êxtase com tudo que estava acontecendo ali. Foi quando eu percebi que as chamas começaram

a se agitar da mesma forma que me agitava. Começava o grande diálogo com o fogo, algo

semelhante com o trabalho do alquimista que cante para as chamas de fogo durante a

operação de transmutação dos metais.

Fiquei neste processo até que toda fogueira se consumiu restando somente as brasas e

as cinzas. Ao final eu me encontrava completamente exausto ao ponto de me debruçar no solo

para aliviar o cansaço. Deitei-me de bruços e contemplei a manhã que já vinha nascendo. Ao

meu redor o mundo girava como se eu estivesse bêbado. De repente eu apaguei e entrei no

processo de sono. Uma ligeira sonolência que durou até que os raios solares me acordassem.

Levantei do solo e me ergui diante das cinzas que estavam situadas ao centro do circulo.

Passei ligeiramente a mão sobre uma porção de cinzas. Estando com as mãos sujas espalhei as

cinzas por todo o corpo. Fiquei completamente pintado pelos os resíduos carbonizados da

fogueira. Neste momento havia em mim uma sensação de energia corporal diferenciada, como

se meu corpo estive unido integralmente às cinzas, uma impressão sensorial difícil de

descrever.

Neste momento, eu decidi que o fogo teria que ser um elemento de cena na instauração

cênica Y. Ele estaria presente na iluminação como objeto-ritual, ou seja, ele além de desenhar

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sua função enquanto iluminação, ainda assumiria um aspecto ritual, pois através dele será

possível consagrar ou purificar coisas.

Após vivenciar a experiência do fogo, eu convidei aos atores-instauradores para

vivenciar o exercício com o elemento fogo. Desta forma eu fiz uma fogueira para cada

participante. Escolhi um lugar para cada um e os convidei para acender a lenha. Solicitei a

eles para cantarem para o fogo, soprarem e ao mesmo tempo dançar imitando o movimento

das chamas.

Enquanto os atores acendiam o fogo, eu recitava versos improvisados ao fogo no

sentido de estimular a sensibilidade e percepção sobre o ambiente: “vinde protetores do fogo!

Vinde com vossas chamas de calor e luz! Com suas chamas aquece nossos corpos e purifica

nossa cabeça; salve irmão fogo! Salve salamandras que habitam as chamas! Nos ilumina e nos

aquece”

Nesta noite, cada ator/instaurador ficou isolado em um espaço da mata, lugar que

reservei especialmente para este exercício. Convencionei neste ambiente, um ponto de energia

para cada um desses atores, como se aquele locar fosse uma espécie de lugar sagrado para

este ator-instaurador a que eu chamei de “casa”

A “casa” na verdade é uma inspiração das esferas das sefirotes da Árvore da Vida

como eu já te expliquei antes. Assim o ator-instaurador assumiria nesta sua casa o

protagonismo da ação cênica. Ele deveria se comportar conforme a natureza simbólica de

cada sefirote.

Como já te falei anteriormente, Sefirote é a representação gráfica dos aspectos de

emanação divina de poder na cabala, e que é representada no diagrama da Árvore da Vida

através de uma esfera. Assim, utilizo metaforicamente a forma circular para desenhar as

clareiras abertas na mata. Em cada uma dessas esferas, há presente um ator-instaurador como

patrono da cena, ou seja, o instaurador é o protagonista da cena e do ritual. É como se o ator

fosse um xamã e tivesse que realizar o processo ritual a público que visita aquela esfera.

Caro amigo, as vivências iniciais foram significativas para apontar o caminho a seguir.

Ao meu favor eu tenho um espaço que convencionei como ambiente sagrado para a

instauração cênica, e tenho a colaboração de seis atores que tomam parte desta

experimentação artística.

Em “Y”, como chamamos o bosque onde idealizamos a instauração-cênica, dispomos

da natureza e das formas naturais que fazem do local um teatro ideal para vivenciar as

energias xamânicas, místicas e mitológicas.

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Por este momento, devo encerrar esta carta saudando o seu gênio de artista e de

patrono de um teatro metafisico e místico. Em breve, devo lhe escrever para narrar as

experiências com a criação do texto e como esta ação se aproxima de seu pensamento. Lhe

mandarei noticias.

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UMA CARTA PARA O PAPA-DRAMATURGO – DESCONSTRUINDO A FIGURA DO

ANTIGO DRAMATURGO NATIMORTO.

Figura 13. – Carta do Tarot de Waite-Rider

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Saudações!

Caro amigo da Arte,

Já faz algum tempo que eu não lhe escrevo. Neste transcorrer de tempo, desde as

primeiras experimentações até a estreia de minha instauração cênica Y se passaram dois anos

de trabalho dedicado a exploração artística. Parece um tempo longo para a montagem de um

trabalho cênico, considerando os gastos financeiros e todas as questões que uma produção

artística precisa para colocar em cartaz o seu produto cênico. Entretanto eu não cedi as

pressões que o teatro cotidiano faz para estrear um espetáculo. Primeiramente, porquê não

temos apenas um espetáculo, temos na verdade uma instauração-cênica com caráter ritual.

Talvez seja esse o aspecto que possibilitou o desenvolvimento de um trabalho como este que

é a instauração cênica Y, que por sua vez foge dos padrões comerciais que o teatro da

atualidade exige. Isto não mudou muito, e mesmo as produções mais contemporâneas e que

tem o teatro de mãos dadas com a pesquisa artística, termina criando rótulos e padrões. Por

vezes eu penso o seguinte, mudamos e inovamos o teatro, Mas, dentro de pouco tempo a

classe de artistas e intelectuais da arte engessam e tornam rígido aquilo que era aparentemente

desprovido de um padrão de referência.

É por este motivo Artaud que eu escrevo esta para você, e que eu dedico ao Arcano do

Papa do Tarot de Waite. Essa referência ao Arcano do Papa se justifica no que diz sentido a

condição de seguir regras, doutrinas, paradigmas e metodologias. Por anos, o teatro era o

campo dos dramaturgos, dos autores de textos, que estabeleciam leis de escrita e faziam da

arte teatral o lugar do texto e não do ator. Sabes melhor do que eu isto, e foste tu mesmo que

apontaste isto quando lançaste o Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade, e após isto,

continuaste a tua defesa em outros textos de sua autoria.

Nesta minha carta dedicada ao imperador, irei lhe narrar como surgiu a dramaturgia de

“Y”, descreverei seu roteiro dramatúrgica e as ações que construímos a partir dos estímulos

criativos inspirados no misticismo da cabala, do Tarot, e das Mitologias. Elementos que

fazem parte de minha vida e que eu resolvi transpor para o teatro.

A primeira coisa Artaud que eu fiz, foi buscar entender o seu sentimento sobre o teatro

que você queria montar, para depois entender o teatro que estaria montado. Assim, sem via de

dúvidas, os seus textos me inspiram para esta tarefa. O seu pensamento critico refletiu com os

meus pensamentos sobre o que o teatro pode ser.

O Papa, meu caro Artaud, é um arcano que costuma impor suas verdades. Ele é de fato

um Papa, ou seja, um sacerdote supremo que estabelece e codifica leis e paradigmas como

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verdades imutáveis. Por isso, discutir sobre suas verdades será uma tarefa difícil, uma vez que

sua autoridade é constituída através da fundamentação de fatos e convicções. O Papa se

traduz como aquele que é autoridade num assunto e o defende com poder de crença e

tradição.

O papa defende a tradição, ele faz com que seus seguidores respeitem códigos e

doutrinas, e isso se justifica pela necessidade de não perder os fundamentos de seu

conhecimento e do conhecimento coletivo que levou anos para se consolidar.

Quem seria o Papa no teatro, meu caro amigo?

Acredito que ao longo de tua carreira artística, Artaud, chegaste a conviver com

diversos arquetípicos de “papas da arte”, autoridades que tinham no texto escrito a base sólida

para o seu teatro. Os doutos do teatro são como esses papas. Eles são cautelosos no que diz

respeito a dramaturgia. Alguns, até consideram o texto como referencia maior na arte do

teatro, tirando assim o centro de observação sobre o trabalho do ator/atriz. Em sua época isso

era mais grave, tanto é meu caro, que esboçasse diversas abordagens sobre a potencia do ator

sobre o texto, onde a palavra escrita não é tão importante quanto a presença do ator.

O arquetípico do Papa no Tarot de Waite também está relacionado ao sentido de

metodologia. Esta visão provém da própria função do supremo chefe da igreja católica, que

tem o posto de zelar pela as diretrizes dos dogmas religiosos. É seu dever cuidar das regras e

metodologias de sua igreja. Ele é o ordenador, regula e controla os fluxos de funcionamento

de uma ordem religiosa.

O Papa é o sacerdote-guia que instrui por onde os seus seguidores devem se guiar e

quais rituais podem ser experimentados. Para isto, o sumo-sacerdote irá estabelecer de forma

clara as indicações e preceitos que constituem o foro de sua crença.

Será Artaud que podemos encontrar na figura do dramaturgo uma espécie de Papa? Eu

acredito que a dramaturgia não pode ser considerada o centro da encenação, e sei Artaud que

este é o seu pensamento. Por isto que eu pergunto, até que ponto um dramaturgo pode

defender os preceitos dramatúrgicos instituídos por ele na escrita de seu texto dramático? E

como um autor de peças pode exigir que sua escrita seja seguida de forma fidedigna até a

atuação. Certamente você irá estranhar estas perguntas, visto que são um tanto ultrapassadas

para nossa época. Devemos concordar que na época que em você escreveu O Teatro e seu

Duplo essas perguntas ainda geravam determinadas polêmicas. Graças a sua contribuição,

encontramos na atualidade outro entendimento de dramaturgia e vemos pouca ortodoxia na

figura dos dramaturgos. Entretanto, o império do texto teatral ainda assombra e por vezes

escraviza o fazer teatral de muitos atores.

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Durante o inicio de experimentação da Instauração-cênica “Y” os atores-instauradores

me cobravam muito sobre a necessidade de ter um texto, um roteiro escrito que servisse de

orientação. Tal reivindicação era oriunda das práticas de trabalhos anteriores, que mesmo

sendo práticas de teatro contemporâneo estavam alicerçadas na tradição do texto escrito. Para

o assombro dos atores, resolvi por abandonar esta escravidão. O texto que usaríamos na nossa

Instauração seria descoberto no ambiente da exploração artística, seria trazido à luz da cena

através dos jogos de improvisação, para depois torna-los textos de fato. Falo isso Artaud, a

partir do que tu pensavas sobre o teatro que você queria fazer. Foi a partir desta inspiração

que me dispus a buscar a criação do texto sobre os elementos que estavam disponíveis no

espaço da encenação e na experiência dos atores que estavam colaborando com o processo.

Caríssimo Artaud, partimos para a descoberta do texto de Y seguindo o seu eco de

manifesto sobre a cena no Teatro da Crueldade:

Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem

divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação.

Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre

ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar

envolvido e marcado por ela. (ARTAUD, 2014, p110)

O nosso lugar único é o bosque, as terras de “Y” lugar de onde surgirão as ações de

um teatro onde o espectador será marcado pela a ação cênica, será o participante ativo e

também colaborador da cena. Aqui, neste lugar o texto irá imergir de todos os cantos e

espaços. Assim como você propunha:

Não representaremos peças escritas, mas, em torno de temas, fatos ou obras comuns,

tentaremos uma encenação direta. A própria natureza e disposição da sala exigem o

espetáculo e não há tema, por mais amplo que seja, que nos seja interdito.

(ARTAUD, 2014, p.113)

O tema a ser trabalhado em Y tomou como base o misticismo da cabala e os arcanos

do tarot, esta inspiração estaria subordinada a força mística do ambiente e das experiências

pessoais de cada participante da instauração.

Outro ponto de partida para inspirar a concepção de Y, adveio de vosso de programa

do Manifesto da Crueldade, quando falas das forças de magia presente no lirismo do ator em

cena:

Além disso, saindo do domínio dos sentimentos analisáveis e passionais, pensamos

fazer com que o lirismo do ator sirva para manifestar forças externas - e com isso

fazer a natureza voltar ao teatro, tal como queremos realizá-lo. Por mais vasto que

seja esse programa, ele não ultrapassa o próprio teatro, que nos parece identificar-se,

em suma, com as forças da antiga magia. (ARTAUD, 2014. p.98)

Então meu caro Artaud, este lirismo do ator que você fala acima, usado para

manifestar forças externas, fazendo a natureza regressar ao teatro, pode de certa maneira ser

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associado com a expressão corporal do xamã durante sua prática mágica, quando ele

empossado de uma camada de mistérios realiza as curas como se tivesse atuando. Cada gesto,

voz, orações precisam ser organizadas, para que o doente possa observar realmente a força da

magia, como fala Mircea Eliade:

Também é preciso dizer algumas palavras sobre o caráter dramático da sessão

xamânica. Não estamos pensando unicamente na encenação, por vezes elaborada, da

sessão, que evidentemente exerce influência benéfica sobre o doente. Mas toda

sessão realmente xamânica acaba por ser um espetáculo sem igual no mundo da

experiência cotidiana. O manejo do fogo, os "milagres" do tipo truque da corda e da

mangueira, a exibição de proezas mágicas desvendam outro mundo, o mundo

fabuloso dos deuses e dos magos, o mundo em que tudo parece possível, onde os

mortos voltam à vida e os vivos morrem para ressuscitar em seguida, onde se pode

desaparecer e reaparecer instantaneamente, onde as "leis da natureza" são abolidas e

onde certa "liberdade" supra-humana é ilustrada e presentificada de maneira

deslumbrante. Para nós, modernos, é difícil imaginar a ressonância de tal espetáculo

numa comunidade "primitiva". Os "milagres" xamânicos não só confirmam e

reforçam as estruturas da religião tradicional como também estimulam e alimentam

a imaginação, dissipam as barreiras entre o sonho e a realidade imediata, abrem

janelas para os mundos habitados por deuses, mortos e espíritos. (ELIADE, 2002,

p.424)

Em Y buscamos suprimir os preceitos papais que orientam a construção de uma

dramaturgia escrita para despertar uma metodologia onde a ação fala mais ao espirito do que

as palavras, é algo próximo ao sonho. Assim como você nos diz: “objetos falam; as imagens

novas falam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaço atroador de imagens, repleto de

sons, também falam”(ARTAUD, 2014. p.98)

O texto de “Y” surgiu das improvisações e das experimentações com o espaço,

guiadas por estímulos dados a partir das imagens do tarot e da imagem da Árvore da Vida e os

seus aspectos filosóficos-místicos. Entretanto, esse texto segue o entendimento de uma

dramaturgia que “designa o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de

realização desde o encenador, até o ator, foi levada a fazer (PAVIS, 2005. p.113) Esta mesma

noção é defendida pelo encenador Eugênio Barba, que entende dramaturgia como um trabalho

de organização das ações cênicas: “uma técnica para organizar os materiais a fim de construir,

revelar tecer relações” (BARBA, 1995, p.68).

Desta forma meu caro Artaud, podemos ver, que o pensamento de ambos os autores,

refletem ideologicamente o que você fala: “Isso significa que, em vez de voltar a textos

considerados como definitivos e sagrados, importa antes de tudo romper a sujeição do teatro

ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o

gesto e o pensamento” (ARTAUD, 2014. p.98)

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A Instauração-cênica-ritual “Y” buscou encontrar sentido no entendimento do Teatro

da Crueldade que você lançou através do manifesto de 1932, no qual você elenca uma serie

de fatores que estariam em cena através da atuação dos interpretes e através da organização da

ação teatral:

Gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo, beleza mágica

das roupas feitas segundo certos modelos rituais, deslumbramento da luz, beleza

encantatória das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, cor dos objetos,

ritmo físico dos movimentos cujo crescendo e decrescendo acompanharão a

pulsação de movimentos familiares a todos, aparições concretas de objetos novos e

surpreendentes, máscaras, bonecos de vários metros, mudanças bruscas da luz, ação

física da luz que desperta o calor e o frio, etc. (ARTAUD, 2014. p.103)

Os fatores de atuação que você descreve não é novidade no teatro contemporâneo. Em

sua época tudo isso parecia praticamente ariscado de colocar em cena, apesar de que ainda

hoje, esses elementos são recebidos com tom de ousadia. E é no campo da ousadia que eu

adoto a tua arte da crueldade na cena “Y”. Acredito que o ambiente do bosque ajudará muito

na ampliação destes fatores cruéis, da mesma forma como você coloca: “Do ponto de vista do

espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação

irreversível, absoluta” (ARTAUD, 2014. p.101)

Uma das ideias que eu tive como marco central da instauração-cênica, foi idealizar um

cortejo, semelhante às procissões religiosas que acompanhavam os mistérios medievais. Desta

forma, o espectador é conduzido por um cortejo em direção ao local da instauração. Na

entrada do local, eu, enquanto mestre de cerimônia recebo todos os espectadores com uma

fogueira acessa. Neste momento, eu aviso a todos que o que eles vão participar não é um

espetáculo comum, trata-se de uma instauração-cênica que tem por caráter uma ação ritual, e

para isto todos devem estar receptivos para as intervenções e ritos que acontecerão durante

todo o processo de instauração. Consideramos essa ação, um elemento essencial em nossa

dramaturgia de Y, ela atende ao ritual inspirado no xamanismo e se configura como um

elemento de encenação.

Antes do espectador-instaurador adentrar o lugar da instauração, a que nós chamamos

de “terras de Y” ele tem que passar por um ritual de purificação. Ao lado da fogueira está

disposto um alguidar de barro, contendo ervas que estão imersas na água. Com estas ervas eu

benzo o público, semelhante a um sacerdote católico quando joga água benta nos fieis

durante a missa. Enquanto eu esparjo a água nos visitantes eu declamo uma oração de

purificação:

Receba esta água em vosso corpo como sinal de purificação. Estejam limpos e

purificados. Pela força da água, elemento sagrado da natureza eu vos limpo vosso

corpo e vossa mente. Oh divina água a qual fomos gerados, nos proteja e nos

fortaleça. Sob os aspectos de sua fluidez possamos ser fluídicos! (Y, 2018)

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Após a purificação com a água, procedo a purificação com incenso de mirra. Tomando

um turibulo, ou seja, um incensário de brasas, eu realizo uma defumação a todos os presentes.

Esta ação é consagrada ao elemento fogo, pois é através dele que a fumaça é produzida e

dissipada. Tudo isso acontece com o anúncio de orações improvisadas por mim, a partir do

que eu sinto de cada pessoa naquele momento.

Para entrar ao espaço de Y, o visitante deve pedir licença diante de um portão aberto

em uma cerca de arame farpado. Entretanto, a em entrada deve ser feita com joelhos

curvados, estando a pessoa de costa. Este procedimento foi organizado como um ritual,

convencionado como um sinal de humildade para com um lugar sagrado o qual se vai acessar.

O cortejo de Y, segue o desenho do diagrama visual da árvore da vida (veja a seguir o

mapa cabalístico das emanações divinas no mundo físico) cada esfera (ponto) é chamado de

shefira, recebendo o nome de shefirotes o conjunto de 10 esferas. Em cada shefira acontecerá

uma cena em conjunto com os caminhos, que são as ligações entre as esferas. Veja a seguir o

desenho Artaud, e percorra visualmente o caminho entre as esferas, percebendo que há um

arcano em cada trilha. Estes caminhos que estão representados no diagrama, também está

desenhado fisicamente no bosque de “Y”. Assim, os espectadores, em cortejo se locomovem

de uma cena à outra para assistir a representação de cada arcano.

Figura nº 14 – Mapa da instauração-cênica com o nome do arcano de cada cena. Associação

utilizada na concepção de “Y” (imagem da biblioteca cabalística de Colin Low)

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No caminho entre cada shefira há a presença de um arcano do tarot que convida o

espectador a se locomover de um ponto a outro, enquanto contempla e interage com ele na

representação cênica.

Figura 15: público assistindo uma cena realizada em uma das trilhas(caminhos) de Y

Artaud, para que você possa entender o funcionamento de minha instauração cênica,

irei compartilhar com o você uma síntese de roteiro que elaborei após a experimentação

artística com os atores-instauradores no espaço do bosque. O roteiro a seguir, não é um texto

rígido, ou seja, cristalizado nas palavras de atuação. Em cena os atores-instauradores poderão

a qualquer momento utilizar outras palavras, cujo sinônimo não mudará o sentido e o

significado místico da ação.

Quero destacar Artaud, que o roteiro a seguir não deve ser confundido como um texto

tradicional. Trata-se na verdade de um caminho a seguir, podendo este percurso ser feito de

várias maneiras. Quero destacar que na realização da instauração, há toda uma margem para a

criação espontânea. Nas apresentações que foram realizadas, o público influenciou

decisivamente a condução do roteiro. Pois, é a partir de sua imersão na experiência do ritual

teatral que estabeleço a condução da instauração.

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ROTEIRO COMENTADO DA INSTAURAÇÃO-CÊNICA- RITUAL “Y”

(vídeo disponível em https www.youtube.com/watch?v=WDdqV9km5_4&t=4010s)

INÍCIO ( PRÓLOGO )

Em frente ao portão de entrada o público é recepcionado por mim, o mestre de

cerimônias. O público se banha com água perfumada, pede licença e de costa entra através de

um pequeno portão.

Figura nº16 – corte esquemático do conjunto das três primeiras Shefiras, local do prólogo e encenação da

cena do Louco

A figura acima representa o mapa das terras de y, ou seja o lugar da representação da

instauração cênica. Para chegar a este lugar o espectador é recepcionado em ponto de

encontro determinado horas antes pela produção. Os espectadores-instauradores fazem a

reserva de seu ingresso pelo telefone da produção. Na hora e no lugar marcado, a produção

executiva da instauração surge através de uma atriz que segura em suas mãos um livro que se

assemelhas com os Grimórios de Magia, não sei se tu lembras Artaud, Mas eu já descrevi

sobre o que é um Grimório em uma de minhas cartas.

A atriz que recepciona o público com o livro em mãos, orienta a todos os visitantes

que irão imergir na instauração. Após o esclarecimento, ela solicita a todos os presentes que

assinem um “termo de inconsciência” que está escrito no livro de registro:

Eu, abaixo assinado na condição de “espectador-instaurador,” me disponibilizo a

adentrar as terras de Y e participar de todas as cenas da instauração-cênica-ritual.

Assim, me responsabilizo unicamente por tudo que possa acontecer comigo. Ao

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assinar esse termo, eu concordo em contribuir espiritualmente nesta e em outras

vidas com os elementos estéticos-espirituais. Em concordância confirmo minha

participação (Livro Y – 2018, p.48)

O Livro Y, Artaud, é uma espécie de livro registro com a assinatura dos espectadores-

instauradores que participarão da apresentação. Em seguida o público é guiado por uma trilha

da mata em direção as terras de Y. Ao chegar no local, uma fogueira recepciona a todos. O

mestre de cerimônia, função a qual ocupo nesta instauração, se coloca numa tarefa de

purificar os visitantes aspergindo água em suas cabeças para em seguida realizar o ritual de

defumação com incensos de resinas colhidas na região do bosque. Este momento Artaud, se

configura como o primeiro ato ritualístico da instauração. Desempenho nesta tarefa, uma

função semelhante a de um xamã, quando ele realiza um processo de cura, através de rezas,

onde tenta expurgar as doenças e espíritos.

Após cumprirem o ritual de purificação. Os espectadores são recepcionados na Shefira

branca pelos servos de Cronus, que os recebem com chamas acessas e com um cântico:

“Vinde vê senhor do tempo/Carregando em vossas mãos/Vinde almas desejosas/ Rasga o véu

da escuridão (2 vezes)Vinde almas desejosas/ Vinde vê (vinde!) – (2 vezes ) Cronus o tempo!

Figura 17: recepção dos Servos de Cronus aos espectadores-instauradores

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Cena 1 ( A Jornada do Louco)

Após a saída dos servos de Cronus, o mestre-guia narra a história do Bobo (O Louco)

que abandona sua corte para se aventurar em busca do desconhecido. Surge no escuro um

rosto iluminado. O mestre-guia conduz os errantes (espectadores) para o ponto 2º. Neste lugar

aparece uma criatura que se debruça aos solos, se banha com terra, sente uma energia de

prazer que o domina e o impulsiona a sentir um certo desespero que o faz sair gritando pela a

selva escura. Ecos de gritos ecoam por toda mata escura, vozes perdidas ressoam por todos os

lados avisando aos espectadores-instauradores para não seguirem jornada. A noite ganha um

ar cruel semelhante aos elementos do teatro artaudiano:

Gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo [...], beleza

encantatória das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, ritmo físico dos

movimentos cujo crescendo e decrescendo acompanharão a pulsação de movimentos

familiares a todos[...] aparições concretas de objetos novos e surpreendentes,

(ARTAUD, 2014. p.103)

(SOM DE TAMBOR)

Das selvas aparecem sátiros. Estes portam sinos amarrados em seus corpos, com o

objetivo de produzir um som a partir de sua movimentação. Os sátiros se aproximam dos

errantes (espectadores) e jogam terra em suas cabeças

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Figura 18: cena do Louco – a atriz executa sua própria iluminação

Cena 2 ( A Casa de Binah – A Grande Mãe)

Figura nº 19 – corte esquemático da Árvore da Vida. Cena da Imperatriz. A seta de cor laranja mostra o

percurso do cortejo desde a Shefira branca, passando pela Shefira Cinza e chegando a 3ª Shefira onde

acontece a cena da Imperatriz.

O mestre conduz ao ponto de Nº 3. Em cena, uma mulher dança serpenteando os

braços, e caminha em direção a um homem que se encontra postado ao chão. Ela acaricia seu

corpo enquanto uma serva manipula um jarro de água que entorna no momento em que o

casal chega aos êxtases. A serva canta uma canção que parece uma cantiga de ninar: “vem

meu menino, vem/ Eu vou te levar /Para as profundezas /De minha alma”

Figura 20: Cena da Imperatriz

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Cena 04 - ponto de nº05 ( No Salão dos Espelhos de Geburah)

Figura nº 21 – cena 04 ( No Salão dos Espelhos de Geburah)

O guia-mestre leva os errantes para um salão de espelhos-oráculos. Dentro de cada

espelho habita uma criatura sagrada, são 04 ao total- Um anjo-touro, um anjo-águia, um anjo-

leão, um anjo-homem. As criaturas provocam os espectadores para consultarem os oráculos: “

estás preparado para te veres ao espelho? Estás preparado para ver tua face nua? Vem, te

despe de tua roupa e máscara! Não fujas, não tenha medo. É chegada a hora... olhai, olhai,

olhai”(Y, 2019. P.04)

Figura 14: gravura de autor desconhecido. As criaturas sagradas na visão do Profeta Ezequiel.

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O mestre guia pede que os espectadores-instauradores observem um espelho circular

de metal. Perguntas devem ser feitas a este espelho. As criaturas sagradas começam a contar o

tempo. O mestre em seguida chama a todos para saírem correndo para a próxima etapa da

jornada mística.

As criaturas desta cena são inspiradas nas figuras descritas pelo livro bíblico Ezequiel,

profeta que descreveu primeira vez estas criatura como anjos antropomórficos. Tais criaturas

também são encontradas no livro bíblico de Apocalipse do Profeta João, e que serviram ao

longo da história como inspiração de código para os alquimistas.

As figuras das criaturas vivas tiradas do imaginário bíblico foram utilizadas na

instauração-cênica como mensageiras do oráculo dos espelhos. Na cabala, a esfera de número

cinco no diagrama da Árvore da Vida é chamada de Geburah, sendo o lugar de reflexão

carmica. Desta forma, eu construí uma analogia entre a shefira de Geburah com as criaturas

sagradas de forma a potencializar o poder da imagem com o significado da shefira, que resulta

em um julgamento sobre as nossas ações enquanto seres encarnados.

Nesta cena-ritual-instauradora as criaturas sagradas são representadas através de

máscaras. Quatro máscaras confeccionadas em papelão para representar o signo de um leão,

de um touro, de uma águia, e de um humano. Quatro cabeças recortadas e montadas em alto-

relevo para favorecer a luz escassa da mata, que ao tocar a estrutura do material, dará uma

dimensão de profundidade. Essas máscaras não foram feitas para usar no rosto e sim, em cima

da cabeça dos atores-atrizes que estão um pano preto sobre o seu rosto e seu corpo, deixando

em destaque apenas o visual das máscaras. As máscaras nesta cena esconde os atores, eles são

manipulares destes elementos de encenação não-humano. Pois, não podemos chamar certos

objetos de inanimados, eles apenas não possuem a vitalidade-biológica dos humanos. Estas

máscaras possuem a vitalidade cênica dos símbolos teatrais, ganham vida através do gesto e

da energia emocional dos artistas-manipulares, que emprestam o seu gesto-muscular para

imprimir um gesto-projeção no rosto destas máscaras. Estas palavras hifenizadas por mim,

expõe pensamentos meus a partir do que eu venho lendo sobre teatro e xamanismo, e não

conferem conceito direto a nenhum autor especifico, cheguei a elas através do simples de

ligar um termo que pode ter ligação com um outro termo. Cheguei a eles através da reflexão

sobre a seguinte colocação da pesquisadora Ana Maria Amaral: O gesto é a vida da máscara,

e sua expressividade pode ser tal que prescindem de palavras. É um teatro de gesto e ação,

sem diálogo, às vezes, alguma narração (p. 57, 1996)

Esta cena, enquanto encenação é uma obra aberta que irá ao longo do tempo receber

outros elementos e outros símbolos. Penso que no futuro desta encenação eu possa criar

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máscaras para às mãos, algo semelhante a uma luva, que poderá ser modelada como uma letra

de alfabeto, um hieróglifo, que se modificará conforme o gesto da movimentação da mão.

Isto, eu ainda, não apresentei para meu elenco, eles ainda, não sabe o futuro de cena. Eu,

pretendo informar através de uma contação de histórias, na qual eu pretendo já portar uma

luva, e esta será iluminada por uma lanterna.

Acredito Artaud, que gestos empregados sobre certos objetos criados pelo o homem,

podem pertencer tanto ao mundo do teatro como ao mundo xamanismo.

O xamã cria o seu cajado de um galho de Árvore ( bem que se poderia chamar de um

osso de árvore) Galho que em algum momento teve sua vida biológica e animação biológica-

vital. Creio que aqui poderia caber um conceito, mas isto eu não farei agora. Tenho pouco

tempo para explicar conceitos que surgem em minha encenação. O que quero dizer, que tanto

o ator quanto o xamã, podem dar vida ao velho galho-osso de árvore que se tornou cajado.

Esta vida não é biológica e nem vital, ela é cênica, ou seja, vida-teatral, cujo aspecto vital é

emprestado pelo o ator.

O ator e o xamã ao segurar uma máscara e suas mãos e ao por esta, em seu corpo,

estará ofertando parte de sua energia vital para ela, ao ponto de lhe dar vida – isto é teatro,

isto é uma ligação do homem com as forças superiores da espiritualidade, e por este motivo

que o ator Charles Chaplin entoou a seguinte frase: “Não sois máquina!

Homens é que sois!24

Cena 5 – ponto nº 06 ( Casa de Tifareth – A Grande Rede)

O guia-mestre conduz os espectadores cantando: “venham, venham, venham....” os

espectadores seguem o mestre dançando em círculos. Ao parar a dança, se deparam com

Aracne, mulher-aranha que recita provocações filosóficas sobre o existir.

A figura de Aracne presente na instauração-cênica foi inspirada na mitologia grega de

mesmo nome. Segundo a mitologia grega narrada por Thomas Bulfinch (2015) Aracne era

uma era uma jovem tecelã que vivia na Lídia, região geográfica da Ásia. Seu trabalho

artesanal era tão perfeito que, em toda a região, Aracne ganhou fama de ser a melhor tecelã

na arte de fiar, tecer e urdir a lã. A fama de Aracne lhe permitiu ser dominada pela vaidade ao

ponto de querer competir com a Deusa Atena, entidade que lhe tinha dado tal talento. Aracne

queria provar sua independência e sua autosuficiência frente às intenções dos Deuses. Desta

24

Discurso proferido pelo Ator Charles Chaplin no filme O Grande Ditador, 1940

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forma ela enfrentou a Deusa, que ao saber de sua presunção, foi procurá-la disfarçada como

uma velha senhora, que pediu a Aracne que a escutasse seu conselho “Busque entre os

mortais toda fama que desejar, mas reconheça a posição da deusa". mas, a famosa tecelã não

percebeu que se tratava da Deusa Atena e tratou de reafirmar seu desafio: "Por que motivo

sua deusa está evitando competir comigo?". Assim a Deusa, apareceu em sua verdadeira

forma e desafiou a tecelã numa disputa de oficio, na qual ambas teriam que fazer uma peça de

grande complexidade de urdidura. Evidentemente a Deusa foi a campeã, mas a mesma

reconheceu os talentos de Aracne e resolveu não castigá-la. Com a derrota, Aracne tentou se

suicidar com uma corda, sendo socorrida por Atenas que a transformou numa aranha.

Figura 22: cena de Aracne entrelaçando os fios do destino

A Aracne presente na cena de Y, não possui em sua caracterização de uma imagem de

aranha, ela possui as qualidades da mulher tecelã, que urde uma teia feita de barbantes. Ela,

possui um temperamento enérgico e prepotente e figura como um personagem recortado de

um conto mitológico. Aracne recebe os espectadores-instauradores na margem de uma trilha,

ela urdi uma teia de fios grossos e declama algumas perguntas: “quem é tu? Para onde vais?

Há oito ventos e quatro direções”

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A Aracne em Y tece os fios do destino. Cada barbante trançado na teia, forma uma

tela, conjunto visual que poderá ser contemplado após a apresentação como um elemento de

arte visual. Entretanto, sua função artística é dupla, serve ao teatro e serve a exposição visual.

Comtemplar um objeto utilizado em cena, quando ele está fora de cena, nos faz

imaginar que ele é uma espécie de resíduo da instauração. Anteriormente já te falei disto,

quando descrevi o conceito de Instauração-Cênica proposto por Nara Sales (2004)

A teia de barbante de Aracne se inscreve dentro do entendimento de objeto na arte,

que entendido por Ana Maria Amaral (1996) como um objeto utilizado na arte com fins

artísticos, ele pode ser criado para a cena, pode ter sido trazido e ou mesmo ressignificado.

Ela recebe os caminhantes da terra sagrada e os perguntam para onde eles querem ir.

Ela aponta os caminhos e as direções marcadas pelos quatro ventos. Aracne pergunta ao

mestre de cerimônia, por onde ele quer ir. Em seguida surge uma ninfa que convida a todos

para a próxima cena.

Os artistas do Surrealismo fizeram isso muito bem. “diz-se mesmo que o objeto na arte

é uma invenção surrealista, e que o Surrealismo foi um movimento voltado para o objeto. E o

que o Surrealismo foi um movimento voltado para o objeto” (AMARAL, p. 209, 1996)

gostaria Artaud saber, se você enquanto Ex-Surrealista concorda com esse pensamento. Sei

que você tinha fascínio pelos objetos em cena, a exemplo disso são os manequins que você

colocou em cena. Evidente que não puder assistir sua encenação, as condições de tempo e

espaço não me favoreceram para isso, mas cheguei a esta informação através das informações

contidas na obra, Artaud e o Teatro (2009), de Alain Virmaux(1928-2012), escritor que fez

uma apanhado sobre o seu teatro, suas influências e análises de seus conceitos

Alain Virmaux (2009) coloca o uso do manequins em cena, como um ato de criar

temas e procedimentos dramatúrgicos, e que estas criações suas estavam condicionadas a uma

tendência da repetição retorno. Assim em várias dramaturgias suas, há indicações de

manequins em cena.

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Figura nº 24 Cena de Aracne e cena No Mundo de Dionísio – corte esquemático da Árvore da Vida, entre

o 2º e 3º triângulo. Cortejo sai da cena do Salão dos Espelhos e vai em direção a cena de Aracne para

chegar na cena No Mundo de Dionísio.

Cena 7 – ponto 08 ( no mundo de Dionisius )

Entre duas árvores corpos se agitam num prazer alegórico e infernal. Neste instante

Dionísio-mascarado anuncia o reino dos prazeres e da liberdade eterna, convida um errante

para adentrar seu templo. Mas para isso o convidado terá que responder a uma charada, caso

acerte poderá conhecer a infinidade de prazer que existir em seu templo.

A cena de Dionísio é baseada nos rituais dionisíacos. Em cena, jovens bacantes

homenageiam o Deus Dionísio através de suspiros orgásticos ritmados numa profusão de

prazeres coletivos. O tema principal desta cena é o prazer da carne e dos poderes terrenos. O

prazer encontrado no plano material é ordem mundana como nos diz Giorgio Agamben

(2007) em seu livro Profanações. Pois, o termo mundano é derivado da palavra mundus, ou

seja, mundo. Em verdade, meu caro Artaud, só se é mundano de fato, quando o individuo se

permite sentir o mundo ao seu redor. Um mundo cheio de desejos que comunica a nós e ao

cosmo as grandezas do que é estar vivo. E isto, é uma visão minha. Espectro de imagem que

eu tento incorporar em minhas criações artísticas.

Assim, Artaud o mundo de Dionísio em Y é um templo de desejo, onde o sentimento

de pertencimento é experimentado através do gesto coletivo, ação que a tornamos uma

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provocação visual aos caminhantes que chegam aquela Shefira. A idealização desta cena, traz

à reflexão o que Giorgio Agamben nos fala sobre a dificuldade de trazer nossos desejos à luz:

Desejar é uma coisa simples e humana que há. Por que, então, para nós são

inconfessáveis precisamente nossos desejos, por que nos é tão difícil trazê-los à

palavra? Tão difícil que acabamos mantendo-os escondidos, e construímos para eles,

em algum lugar em nós, uma cripta, onde permanecem embalsamados, à espera

(AGAMBEN, 2007. p.43)

Muitos estudiosos do tarot, principalmente Eliphas Levi (2013) associam a carta do

diabo com Deus Dionísio, devido ser uma carta que revela os aspectos do prazer e da

diversão.

Figura nº25: o Arcano do Diabo no Tarot de Waite.

O Arcano do Diabo no Tarot de Waite mostra uma criatura com asas de morcegos,

chifres de bode e pernas de aves, estando com uma mão aos céus e a outra para o solo

segurando uma tocha de fogo. Aos pés dessa figura aparece um casal acorrentando pelo

pescoço. A mulher que aparece na imagem tem uma cauda em formato de um ramo de

vidreira, cuja significação aponta para os mistérios da embriaguez dionisíaca. O homem

possui uma cauda que é constituída por chamas de fogo. Embora a carta fale de submissão e

escravidão ao prazer, ela também nos convida para descobrir o estado emocional da diversão,

onde não há regras rígidas.

Os visitantes de Y ao chegarem à cena “No Mundo de Dionisius” são recebidos com

muita alegria e orgasmos. Por trás de duas grandes árvores os amantes do Deus do Teatro

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brincam de ser amantes. É uma festa com convite expresso ao público. Aqueles que querem

adentrar ao espaço serão conduzidos pelo patrono da cena, O Dionísio Mascarado.

Figura nº26 – No Mundo de Dionisio – no primeiro plano o ator Leonardo Santiago como Dionísio

Mascarado. Foto de Bruno Vinele, Janeiro de 2019

Cena 8 – ponto 4 ( Uma Leitura de Tarot )

Após os visitantes saírem da cena O Mundo de Dionisius, eles são convidados pelo

mestre-guia para se fazerem presentes na cena do Oráculo do Tarot. Nesta ação da

instauração-cênica, eu, o mestre de cerimônia, convido os espectadores-instauradores para

sentarem-se ao chão do bosque. Neste momento eu realizo um ritual dedicado a Saint

German, figura alquimista que viveu no século XVIII, e segundo algumas lendas da época

ele tenha vivido por mais de duzentos anos. Acendo um cachimbo contendo uma mistura de

fumo e ervas perfumadas. Faço uma oração alquímica e convido os espectadores para uma

consulta de tarot, no qual 05 pessoas poderão tirar cartas.

Eu considero uma das cenas de Y com maior interação com o público, pois não sabe a

carta que será revelada ao ser puxada durante a consulta. Cada carta revela um mistério. Cada

imagem que aparece é lida com um tom diferenciado, aumentando o caráter do mistério e

trazendo para a cena um segredo, um enigma, algo que é dito com uma expressão de parábola.

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Temos nessa cena uma grande contação de história, semelhante às narrações

xamânicas executadas na beira da fogueira, onde o xamã ensina, diverte e assombra a sua

comunidade com suas historias de encantos e magias.

Figura 27 – O Mestre de Cerimônia joga tarot para os espectadores

Cena 9 – ponto 6 - a morte – o baú da eternidade

O som de uma corneta anuncia a chegada das vendedoras do baú da eternidade. Três

mulheres puxam um carro de mão onde está estampando os dizeres comerciais “ Baú da

Eternidade”. As figuras das vendedoras cantam:

Parará pá pá pá - Parará pá pá pá

Não precisa de bagagem para embarcar

A viagem é de graça é só você subir

Parará pá pá - Parará pá pá (Y, 2018, p.05)

Um dos vendedores percebe que errou o caminho, ele analisa o mapa, e ao perceber

que não há solução chama os amigos vendedores para oferecerem os produtos à plateia.

Esta cena foi baseada na carta da morte do tarot de Waite. Mas, a inspiração foi apenas

de ordem mística, no sentido de revelar uma mudança de rotina da vida de um individuo,

fugindo do significado de morte.

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Figura 28: cena da morte – três figuras cômicas vendem bilhetes do Baú da Eternidade.

Cena 10 – ponto 9 (um estrela se banha na fonte)

Em uma fonte de água presente no bosque de Y, uma musa se banha cantando: “eu

sou uma estrela que dos céus desceu, venha meu amado, meu amado meu” (Y, 2018, p.05). Por

trás da fonte duas musas se acariciam olhando para a que se banha na fonte, num ato de

voyerismo. Esta cena foi baseada na carta de tarot a Estrela.

Figura 29 – cortejo saindo da Shefira de nº 04, passando pela 6º e para chegar até a cena das Estrelas,

Shefira de nº 09

Figura 30 (ao lado) Cena do Pedágio e banquete

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Cena 11 – ponto de nº 7 (O Pedágio)

O mestre pede aos expectadores que paguem o pedágio antes de continuar a jornada.

Quando o mestre condutor da jornada leva os caminhantes para pagarem um valor pela

a experiência vivida. Um altar repleto de doações, espolio e pagamentos efetuados por

aqueles que entenderam o sentido de caminhar em Y. É justamente nesta ocasião que o mestre

cobra a passagem, ou seja, o pedágio, que pode se configurar como uma joia que o

caminhante carrega, um amuleto, uma peça de roupa, dinheiro, ou mesmo parte de seus

cabelos, pedaços de unhas, saliva, sangue, urina – excreções que pertencerão ao altar da

passagem.

Deixar algo de si neste altar, é uma forma de materializar sua passagem pelas terras de

Y. Os elementos doados, pagos e oferecidos nesta cena receberão um caráter de peça de

museu, que após a instauração cênica poderá ser visto como um objeto visual. Assim como as

peças de museu sacro de ex-votos.

A cada doação dada o mestre referencia o patrono da casa, chamado de mestre San

Mequetrefe, personalidade fictícia criada unicamente para a cena e que é representada por

uma estatua de concreto. San Mequetrefe é comparável a um Exu-protetor de terreiro,

entidade oriunda das tradições afro-brasileiras que tem a função de abrir os caminhos quando

é feito um pedido.

Figura 31: altar de recolhimento do pedágio

Cena 12 – ponto de nº 10 (O Banquete na Casa de Chapelão)

Após o pagamento do pedágio os espectadores adentram a casa do mestre chapelão,

onde são recebidos por Musas-Servas que dançam ao som de tambor. O público é

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recepcionado pelo mestre chapelão que saúda a chegada dos mesmos e pede para servir uma

comida aos caminhantes

Eis que estamos diante de um dos momentos mais deslumbre do ritual-teatral da

instauração. É quando os espectadores-instauradores são recebidos em uma grande clareira

em formato circular. No centro deste local há uma grande fogueira que ilumina, aquece e

purifica a cena-instaurada.

De todos os lados surgem as Musas-Servas, que são figuras semelhantes às Ninfas

gregas. Elas representam um elemento da natureza: água, fogo, terra e ar. Um tambor é tocado

por um músico servo, ele toca o instrumento durante todo o tempo, sua função é propiciar um

clima de imersão na cena, de maneira que o espectador-instaurador seja conduzido pela

música. Todos dançam. Os espectadores instauradores são participantes ativos do ato teatral-

ritual.

De longe aparece o Mestre Chapelão, o patrono da cena. Ele saúda os visitantes com

boas vindas. O Chapelão convida a todos para ficarem a vontade em suas terras. Ele entende

que todos vieram de muito longe e devem estar cansados. Assim, manda as Musas-Servas

servirem comida e bebidas, mas antes, eles terão se purificarem para receber a alimentação. A

purificação é realizada também pelas Musas-Servas, que limpam o corpo do visitante com

ervas – elas são as benzedeiras que retiram as cargas de cansaço presente no corpo. Elas tem a

missão de curar as doenças e afastar os espíritos. As Musas-Servas se configuram como

Atrizes-Xamãs e estão à disposição do Mestre Chapelão para realizar todos os fascínios

mágicos, teatrais e religiosos.

O Mestre chapelão anuncia: Eis o último banquete, comam e bebam pela a última vez.

Quem comer deste alimento terá parte comigo e com a terra sagrada de Y, quem beber este

delicioso néctar receberá o poder da fluidez e da felicidade. Seja bem vindos ao Reino da

felicidade passageira. Aproveitem, pois este é o último momento de suas vidas errantes nesta

longa jornada de Y... salve, salve, salve!

A comida é servida. Ela é apetitosa, quente e apimentada. Em seguida uma bebida

agridoce é ofertada para aliviar a pimenta da comida. Os sabores despertam o paladar dos

espectadores.

Enquanto o banquete é degustado o Mestre Chapelão traz revelações espirituais.

Estando em êxtase ele conversa com os espíritos que trazem conselhos de alerta para alguns

espectadores. Após, ele se despede e agradece ao mestre-guia que conduziu todos até ali.

Com a saída do Mestre Chapelão as Musas-Servas realizam uma última dança. Ao

terminar elas recolhem um punhado de areia no chão e jogam sobre a fogueira e entoam um

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nome de um elemento. Por ultimo se despede o tocador que sai executando uma música

percussiva compassada.

Figura 32: saída do público da área de encenação - ritual final

De longe surgem os servos de Cronus, os mesmos que receberam os visitantes no

inicio de toda a jornada. Eles anunciam que o tempo está findo. Os ponteiros de todos os

relógios voltam a girar. O tempo corre e caso os espectadores não saiam neste momento

ficaram para sempre presos nas terras de Y.

Os servos gritam de longe: eu sou Cronus, o tempo!

Todos saem de Y. A noite é misteriosa e repleta de espectros. Tudo é teatral: o medo

da mata escura, os barulhos e as vozes balbuciadas a esmo. Fim da jornada de Y.

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CARTA DOS ENAMORADOS PARA O ATOR-XAMÃ ARTAUD - ASPECTOS (IN)

CONCLUSIVOS

FIGURA 33: Os Enamorados – Sexto Arcano Maior do tarot de Waite

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113

Caro amigo da Arte,

Saudações!

Artaud, espero que as minhas cartas anteriores não tenham sido enfadonhas. Isso me

preocupa muito. Colocar as ideias no papel não é uma empreitada fácil, e esta tarefa se torna

ainda mais complexa quando falamos de conceitos artísticos. Dar à luz um pensamento sobre

a arte, é fazer de certo modo materializar a própria poesia. Sei que ainda estou longe deste

patamar que você desempenhou com tanta excelência.

Esta carta que te escrevo agora, encerra esse ciclo de divulgação do meu processo de

construção da instauração cênica e de minhas ideias sobre o ator como xamã na instauração-

cênica-ritual. Carta que eu dedico ao sexto arcano do tarot de Waite, os enamorados, e que

trata de apontar alguns aspectos (in) conclusivos de minha dissertação de mestrado.

Eu resolvi utilizar o termo “(in) conclusivo” para justificar que não há em minhas

ideias uma conclusão final de conceitos. Tomei, o termo emprestado da tese de Nara Salles

(2004) como uma opção de apontar apenas alguns aspectos conceituais que finalizam o texto

dissertativo, mas não encerram de fato o pensamento acadêmico.

Os aspectos (in)conclusivos apontados aqui, partem de uma síntese de minha

experiência na tarefa de buscar compreender o meu papel de Ator-Xamã durante a encenação

da instauração-cênica- ritual Y. Por isso o termo (in) conclusivo vem bem a calhar, uma vez

que não encerro de uma vez esta produção. Finalizo apenas um primeiro ciclo de ideias, que

por sua vez não rígidas. Pretendo continuar com o desenvolvimento deste trabalho místico-

teatral, esboçando outras possibilidades ao ponto de resolver o que aqui não ficou entendível.

Esta carta é dedicada ao Arcano “Os Enamorados” do tarot de Waite. A sua

representação imagética dialoga perfeitamente com esta fase (in) conclusiva que eu

desenvolvo nestas linhas.

O Arcano Os Enamorados à primeira vista nos sugere um entendimento sobre amor e

sobre relacionamento, mas segundo o entendimento de Edith Waite(2014), seu significado vai

além, e resulta numa mensagem de transformação no individuo humano. Este arquetípico traz

consigo o significado que estamos perante uma escolha importante na nossa vida, e que

acontece mediante ao um impasse, no qual teremos que optar entre uma alternativa e outra. É

na verdade a própria significação do Y enquanto caminho. Como já falei anteriormente, em

outra carta, o “Y” é grafia que representa um caminho bifurcado, por onde o caminhante terá

que optar por um lado ou outro. Quando se escolhe percorrer um caminho, deixamos outro

para trás. É ai que surge a existência da dúvida: por onde seguir?

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Esta carta do tarot fala dos aspectos duplos, que como você mesmo falou, estão

presentes em nossas vidas. É o sim e ou não, o claro e o escuro, o frio e o quente, ou seja,

extremos de um mesmo valor, onde ficar no meio dessa escala, é ficar equilibrado de forma

neutra. E de certa forma quando ficamos neutros, ficamos tentados a escolher uma das partes.

Caso, resolvermos aceitar uma das partes, seremos os únicos responsáveis por isso. Somos

responsáveis por nossas escolhas, e você Artaud sabe muito bem o preço alto que pagaste por

escolher um caminho de arte que ainda não era bem trilhado – o seu Teatro Duplo e Cruel25

.

Na lâmina Os Enamorados vemos duas figuras humanas, um homem e uma mulher,

numa figuração semelhante aos personagens bíblicos de Adão e Eva no jardim do Éden. Pode

se ver atrás de Adão a Árvore da Vida, e estando atrás de Eva uma outra árvore, a Árvore do

conhecimento do Bem e do Mal, tendo uma serpente assentada em volta do tronco da árvore.

Se olharmos para cima da cabeça dos amantes, perceberemos a presença de um Arcanjo, que

com seus gestos parece abençoar ou proteger os dois. A imagem sugere uma escolha a ser

feita entre as duas árvores, uma delas oferece a virtude e a outra à tentação. Eis, que surge a

questão, por qual optar? É o momento que o “ser ou não ser” de Hamlet se manifesta.

Os Enamorados, na leitura mística de Edith Waite (2014) se revela como um elemento

simbólico da união harmoniosa de dois seres, e que representa também a junção equilibrada

da relação de nossa mente consciente com as nossas emoções. Desta forma, o aspecto duplo

do Arcano traz consigo os sentimentos de tentação, atração, a luta entre o amor sagrado e o

amor profano, a luta entre a emoção e o equilíbrio racional.

Eu acredito Artaud, que a representação simbólica do duplo significado deste Arcano,

pode se constituir como uma breve metáfora para falar do meu trabalho de ator/xamã. Pois a

conjunção dos termos “ator” e “xamã” figuram por antecipação uma relação dupla entre arte e

espiritualidade, da mesma forma que você refletiu sobre o teatro e a peste, o teatro e a

metafisica, o teatro e alquimia. Enfim, possibilidades de encontrar um aspecto duplo no

teatro:

O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste

é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou

uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo

que não se adquire sem destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta

suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a

ação do teatro, como a da peste, é benfazeja pois, levando os homens a se verem

como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o

engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros

dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta

convida-as a assumir diante do destino uma atitude heroica e superior que, sem isso,

nunca assumiriam. ( ARTAUD, 1985, p 168.)

25

Referencia ao manifesto do teatro da crueldade publicado por Artaud em 1932

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O meu papel de ator xamã, encontra sua função diante do duplo: teatro e xamanismo.

A instauração Cênica-ritual a qual desenvolvi foi baseada nos sistemas simbólicos do tarot, do

xamanismo, da alquimia e da cabala. Todo as insídias de encenação, o contato com os

elementos da natureza, as inspirações encontradas no ambiente da floresta, o medo do escuro,

e a ansiedade de construir a instauração, só foi possível acontecer, porque havia ai um

encontro do ator com o xamã. Na verdade essa incidência ainda está em estado de

desenvolvimento.

Busco no xamanismo elementos para fortalecer meu teatro, e busco no teatro a

inspiração de construir a imagem de meu papel como xamã. Assim, desta forma eu procurei

essa possível transcendência na instauração cênica-ritual “Y”, com o objetivo de tornar o ato

teatral em uma operação mágica, onde eu, enquanto ator, sou também mestre de cerimônia do

ritual teatral. Patrice Pavis (2005) entende que o ritual encontra seu caminho na apresentação

sagrada de um acontecimento único, que seria uma ação não imitável por definição, teatro

invisível ou espontâneo, mas, sobretudo o desnudamento sacrificial do ator diante do

espectador que coloca assim suas preocupações, bem como as profundezas de sua alma, à

vista de todos, com uma esperança confessa de uma redenção coletiva. Desta forma eu tentei

imprimir estes aspectos na encenação de minha instauração cênica, através da criação de

pequenos rituais entre uma cena e outra. Caso ache que eu estou descontextualizado, peço que

revisite o roteiro de Y.

Desde o inicio de meu trabalho procurei estruturar esta investigação a partir dos

termos matrizes: ator e xamã. Esses termos, Artaud, foram a base para eu que eu pudesse

construir uma escrita dissertativa sobre o meu papel enquanto ator na vivência do ritual, bem

como a realização da Instauração cênica Y que envolveu os aspectos conceituais de ritual e

de teatro. Não sei se tal empreendimento foi compreendido de maneira fácil. Pois, a

complexidade de entendimento sobre teatro ritual se espelham no enredamento dos estudos

sociológicos das artes, religiões e antropologia. Entretanto, a possibilidade de haver uma

ligação dos elementos teatro com a espiritualidade, tornaram esta pesquisa um campo fértil,

no qual eu tentei buscar as sementes ancestrais do teatro-ritual para o meu trabalho de

atuação.

A proposta deste trabalho a que me dediquei, pesquisou referenciais teóricos em sua

obra Artaud, com a finalidade de consolidar e organizar elementos cênicos de uma possível

intercessão do teatro com o ritual à base de signos místicos e artísticos, e que sobretudo

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pudesse atender o meu sentimento particular de artista. Desta forma não tive a preocupação de

agradar o espectador, e sim de provoca-lo, para que ele pudesse ver e sentir um tipo de teatro

que não atende apenas o divertimento. Mas, que traz o público para dentro da cena, se

aproximando assim do seu ideal, de colocar o expectador no centro da cena.

A construção de minha instauração cênica-ritual levou em consideração, conhecimento

seus escritos sobre esse teatro baseado nas forças espirituais. Entretanto, o conhecimento

místico que eu já dispunha sobre as ciências ocultas, só fortaleceu a minha obstinação de

descortinar os véus de mistérios que envolvem a origem espiritual do teatro na historia

mundial. E foi sob os aspectos de um teatro mais ritualístico, que me motivei a buscar

informações sobre ritos, procedimentos mágicos e operações que estivessem próximos aos

elementos do teatro. Evidente, que o que expus aqui nestas cartas, é apenas o inicio de uma

investigação maior, e que poderá resultar em outro trabalho acadêmico.

A organização de meu pensamento e a materialização do meu objeto artístico me

possibilitou a busca por um entendimento, sobre, qual seria o meu papel neste trabalho. Como

eu já falei anteriormente, o termo “papel” nos traz à primeira vista uma imagem artística

criada por um dramaturgo, cujo objetivo é dar vida a uma personagem na encenação. De certo

modo, esta visão não foi descartada. Pois a instauração cênica Y, dramaturgicamente ofereceu

uma imagem artística central, o mestre de cerimônias, que por sua vez era o guia de todo o

cerimonial teatral. Então, desta maneira o meu papel estava definido, eu seria mestre de

cerimonia, que era ao mesmo tempo um xamã executor de rituais e um ator-narrador-contador

de histórias. Este meu entendimento foi arquitetado a partir do seguinte conceito:

O papel pode ser visto como uma imagem artística criada pelo o dramaturgo e

trazida à vida pelo o ator. É o caminho tal como a partitura musical escrita pelo o

compositor. A linha das palavras, movimentos e emoções mostra o caminho tomado

pelas ideias e temas; símbolos e signos de ideias concretas mostram o rumo a seguir

em uma forma artística. (ALSCHITZ, 2014, p.38)

Então meu caro amigo Artaud, o meu papel de ator como xamã se inspirou em partes

neste conceito. Mas, sem o propósito de seguir uma linha tradicional de construção de uma

personagem pela via do texto teatral. A minha função, o meu papel se esboçou justamente na

possibilidade de construir uma imagem artística do ator como um xamã, no qual eu ocupa

também a função de dramaturgo. Pois a cada apresentação o mestre de cerimonias conduzia o

ritual de formas diferentes, mesmo quando se seguia o roteiro apresentado.

A ideia do ator como xamã teve origem em sua obra O Teatro e Seu Duplo (1985)

nela você expõe que o ator deveria assumir a postura de um curandeiro ou feiticeiro, assim

você concebe uma reaproximação da tradição mítica do teatro, na qual a encenação é tomada

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como uma ação terapêutica, comparado até mesmo aos métodos de certas religiões ancestrais

que tinha o xamã como guia e condutor. E foi com base neste ideal que eu busquei promover

na construção da instauração cênica-ritual Y a intercessão do teatro com o xamanismo.

Pretendo continuar com o desenvolvimento deste tema de forma mais aprofundada,

visto ser um assunto que exige tempo e pesquisa. Considero Artaud, que o xamanismo pode

oferecer ao meu campo de pesquisa, um objeto que precise de mais tempo. Por isso apenas

pontuei, nestas cartas alguns indícios. Sei que poderei fazer mais, uma vez que não consegui

me aprofundar sobre a questão do transe.

Nestas minhas reflexões, fiz alguns levantamentos que considerei importantes, e que

se encontram nas obras dos seguintes autores: Castañeda (2013) onde o antropólogo

convencionou o termo realidade não comum para falar da experiência de transe do xamã;

Mircea Eliade (2002) no qual o termo transe também recebe o nome de experiência extática;

Lévi-Strauss, que destaca o transe como uma técnica própria dos xamãs.

Esses três autores descrevem as experiências do êxtase, como uma ação mental

diferenciada do cotidiano, mas extremamente controlada e racional. Então desta maneira

podemos perceber que o xamã poderá estar fora da realidade mental cotidiana e ao mesmo

tempo, não estar completamente absorto do mundo presente.

Devo confessar Artaud que me apraz muito as colocações de Castañeda (2013) sobre a

ação do êxtase, para ele no trabalho do feiticeiro, ou seja, o xamã, há uma sensibilidade

espiritual, sensorial e mental, que permite ao xamã estar em dois mundos ao mesmo tempo, é

como se o xamã encontrasse uma brecha na realidade para perpetrar a vivência xamânica. Tal

descrição é muito semelhante ao trabalho do ator/atriz, que para atuar recorre a toda uma de

recursos sensoriais.

Assim, como o xamã o ator pode estar entre dois mundos, entre a sensibilidade criativa

e a virtualidade de sua arte. Desta forma meu caro Artaud, para estar em dois mundos se faz

necessário estar inserido num processo de passagem ou transformação do social para o

pessoal, que para Victor Turner (1974) recebe o nome de Liminaridade, ou seja, é um

momento de margem dos ritos de passagem, fase do ritual onde os sujeitos se identificam

como indeterminados, no qual ocorre uma espécie de processo transitório de “morte social”

para em seguida haver o “renascimento” e a “reintegração” a estrutura social.

O termo liminaridade, se configura como uma condição transitória na qual os seus

sujeitos se acham depostos de suas posições sociais anteriores ao rito, ocupando no momento

um entre-lugar indefinido, sem que haja a categorização tempo espacial desses sujeitos. Para

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Turner (1974) a vida social se mobiliza a partir do movimento dialético alimentado pelas

práticas rituais.

Outro ponto que me chamou atenção durante o desenvolvimento de minha pesquisa,

foi termo “esforços dramáticos” utilizado por Eliade (2013) para descrever a utilização de

recursos cênicos no trabalho do xamã. Desta forma o xamã pode recorrer a falsos desmaios,

tremores corporais, mudança repentina do tom da voz, dissimulação sobre imagens, diálogos

com o invisível e outros elementos semelhantes à prática de atuação do ator.

Encontramos o entendimento de “esforços dramáticos” também nas descrições,

Castañeda(2013) quando ele descreve sua vivência com um “feiticeiro” mexicano “Dom

Juan” e analisa suas expressões como uma atuação dramática:

No caminho do homem de conhecimento, um conhecimento do drama era, sem

dúvida, o fato isolado mais importante, e um tipo especial de esforços era necessário

para corresponder ás circunstâncias que exigiam a exploração dramática; isto é, um

homem de conhecimento precisava de esforço dramático. Tomando como exemplo o

comportamento de Dom Juan, à primeira vista podia parecer que sua atuação

dramática era apenas a sua própria maneira de teatralidade (CASTAÑEDA, 2013,

p.245)

Então Artaud, a teatralidade do “feiticeiro” que Casteñeda fala, está ligada a forma

pessoal de como o xamã organizava sua expressão e comunicação. “Seus esforços dramáticos

eram sempre muito mais do que uma simples representação, eram antes, um profundo estado

de crença” (CASTAÑEDA, 2013, p.245)

Apontei também nestas cartas, uma referencia a etnocenologia de Andreas Lommel

(1970) segundo ele, além do transe, o xamã irá se utilizar dos mais variados fins de

representação artística para curar o doente; o xamã é frequentemente muito mais um artista e

deve ter sido mais em tempo ancestrais. Com base nessa ideia podemos enxergar nos xamãs a

gênese do ator/atriz teatral. Neste sentido Olsen (2004), destaca que a manifestação do o

teatro é anterior ao surgimento do grego como conhecemos no ocidente, tendo existido antes

em sua forma tribal. Desta maneira, “o ator original era o mais qualificado dançarino, cantor,

portador de máscaras e xamã da tribo” (idem, p.7).

Com base nestes apontamentos Artaud, acredito que o ator/atriz e o xamã têm o seu

corpo, a sua mente e o treino das capacidades psicofísicas como instrumentos de acesso ao

mundo sensível da arte e da espiritualidade.

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Pavis (2014) destaca o ator/atriz como um corpo condutor para o mundo da ficção.

Assim, o ator/atriz tendo a atribuição de corpo condutor, pode estar apto para a tarefa da

atuação, através da utilização de recursos sensíveis da mente e do corpo, onde o atuador

precisará conhecer cada mecanismo de seu corpo, músculos, respiração, sistemas de excreção,

circulação, concentração mental. Este mesmo pensamento é encontrado nas pesquisas do

professor e ator de teatro Gilberto Icle:

Assim como o xamã, o ator é sujeito de seu trabalho e está suscetível a determinados

processos, configura sua consciência para obter êxito de seu trabalho e transcende

seu corpo e sua mente para alcançar com todo o seu ser sua plateia de observadores

que, em última análise, é a razão de sua ação (ICLE, 2010, p. XIV)

Então meu caro, vejo no processo de atuação cênica uma relação com o trabalho do

xamã. Pois ambos recorrem a um procedimento de mentalização, que transita entre a arte e a

espiritualidade. O fato de dar forma a uma personagem ou uma representação, de certo modo

seria também um fenômeno de incorporação artística ou espiritual, digo, trazer essência de

“outro ser” para o nosso gesto. Isso que eu falo tem relação com a seguinte citação de Mark

Olsen que nos aponta o seguinte a esse respeito:

O ator confunde-se com a sua dúplice função: parte essencial do fenômeno teatral,

ele introjeta a mística da divina essência humana ao mesmo tempo que, refletindo

em si o seu semelhante, dirige-se à plateia buscando entregar-lhe uma visão

profundamente relevante e estética do homem na sua mais pura expressão. Ao

encarnar os personagens o ator dá-lhe não apenas corpo, voz, nervos e sentimentos:

dá-lhe a totalidade do seu ser em situação e na sua imanência. (OLSEN, 2004, p.04)

Assim, meu caro amigo, o ritual no teatro encontra seu caminho na apresentação

sagrada de um acontecimento único, que para PAVIS, (2005) seria uma ação não imitável por

definição, teatro invisível ou espontâneo, mas sobre tudo o desnudamento sacrificial do ator

diante do espectador que coloca as profundezas de sua alma, à vista de todos, com uma

esperança confessa de uma redenção coletiva.

A criação da Instauração Cênica-Ritual “Y” reforçou a minha crença de haver uma

ligação de relação entre o teatro e o ritual. O ritual no teatro não pode ser apenas entendido

como um elemento místico/religioso, com seus elementos mágicos e sagrados. Antes de tudo,

Artaud, acredito que o ritual no teatro pode ser compreendido como um sistema de técnicas

organizadas que se repetem para alcançar um determinado estado de arte como no ritual. Isso

se justifica no seguinte colocação de Pavis (2011), vejamos:

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É preciso observar que os rituais impõe “aos atuantes” (aos atores) palavras, gestos,

intervenções físicas cuja boa organização sintagmática adequada é o aval de uma

representação bem- sucedida. Nesse sentido, todo o trabalho coletivo na encenação é

execução de um ritual. (PAVIS, 2011. p, 346)

Acredito que para se organizar um ritual é necessário ter um entendimento mínimo

sobre quais ritos se quer criar, recriar e convencionar, e para se fazer isto é necessário definir

um condutor, um mestre de cerimônias, que se coloque a disposição para experimentar o

duplo – ritual e teatro.

Em Y eu fui o condutor, determinei como seria o ritual teatral e mesmo eu tendo

algumas atribuições dos artistas parceiros, tratei de imprimir um significado místico que

pudesse conferir a instauração uma série de elementos que garantissem o poder do ritual.

Desta forma eu reconheço que o meu papel de ator-xamã, nessa empreitada artística-ritual foi

de facilitar a ordenação dos ritos do teatro num ritual cênico

Desde o principio da criação artística da instauração cênica, eu pensei em ser um

mestre de cerimônias com a atribuição de um xamã, a quem se encarregou de executar toda a

intervenção mística e artística. Por este motivo, face ao contato com o xamanismo com o

teatro eu resolvi hifenizar os termo ator e xamã (ator-xamã) e desempenhar a minha função

neste trabalho artístico.

Vejo o meu fazer teatral como uma forma sagrada de fazer Arte, e este fazer artístico é

semelhante a crença dos alquimistas que acreditam que o processo de transmutação deve

antes de tudo, acontecer de forma mental para depois se materializar externamente. É por este

motivo que Alquimia para eles era chamada de “A Grande Arte”, pois envolve um processo

de manipulação manual e operação mental. Assim, o alquimista devia se conectar

mentalmente com o mundo externo para que a mente pudesse sentir e se comunicar com

aquilo que estava fora. Meu trabalho em “Y” caminhou neste sentido, buscando a unir o

desejo espiritual/mental do “eu ator” com o mundo externo da atuação cênica, e isso se

confirma nas suas próprias palavras meu caro Artaud:

Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência.

É que o teatro, assim como a alquimia, quando considerado em seu princípio e

subterraneamente, está vinculado a um certo número de bases, que são as mesmas

para todas as artes e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia

análoga àquela que, no domínio físico, permite realmente a produção de ouro

(ARTAUD, 1985, p.50)

O Ator que eu almejo ser, busca essa inspiração e se desenvolve artisticamente neste

universo xamânico, espiritual e alquímico. Desta forma tomo por base o trabalho do xamã,

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quando ele conduz os seus seguidores através de um ritual próprio e experimentado por ele

através de sua sensibilidade interna mental com os fatos externos a si próprio. Também me

inspiro no alquimista que consagra os mistérios da transmutação com o seu senso emocional.

Uma das atividades que atribui ao meu papel de ator-xamã foi de preparar

espiritualmente o local onde seria executada a instauração cênica. E fiz isso, sozinho sem a

ajuda de ninguém cada caminho e trilha a ser desbravada no bosque foram feitas por mim,

através do trabalho material de definir o espaço da encenação. Abri 32 trilhas na mata fechada

com o objetivo de ligar os círculos (espaços da encenação)

As trilhas são caminhos de condução aos espectadores que se locomovem de um ponto

ao outro no cenário natural, é semelhante às encenações dos mistérios medievais. Desta forma

os espectadores que assistem a instauração cênica, estão dentro do cenário e assumem uma

postura participativa. Os mesmos podem escolher quando solicitado, qual caminho seguir.

Enfim, todo o processo artístico se estruturou a partir do lugar, e dele surgem os “espectros”

do meu teatro. E este lugar atendeu ao que você chama, Artaud, um lugar sagrado para o

teatro

A ideia de escolher um lugar fixo para a minha Instauração-Cênica, parte da inspiração

de seus escritos quando você afirma e deseja para o seu teatro um lugar novo e que fosse

diferente das salas tradicionais de teatro. Assim, meu caro amigo que me inspira, uso como

justificativa tua descrição sobre a necessidade de um novo espaço:

Foi por isso que abandonando as salas de teatros existentes atualmente usaremos um

galpão ou uma granja qualquer e o reconstruiremos segundo os processos que

resultaram na arquitetura de certas igrejas e lugares sacros e de certos templos do

Alto-Tibet.(ARTAUD,1964, p. 115, apud VIRMAUX, 2000, p. 70)

Resumidamente meu caro poeta, a Instauração-cênica-ritual foi idealizada para ser

feita num espaço sagrado, destinado unicamente para a minha prática de magia cerimonial,

ritualística e teatral, na qual eu sou uma espécie de ator-condutor. “Y” é o meu laboratório

cênico-alquímico, onde eu na qualidade autoproclamada de ator-xamã, ator-mago e ator-louco

experimento possíveis encontros dos elementos do teatro com a magia-cerimonial e busco

envolver o público na participação e efetivação do ato teatral.

Então meu amigo das artes virtuais, o ator-xamã que eu acredito ser, é um ator que se

incorpora de todas suas vivências, crenças e misticismos para o desenvolvimento de sua arte,

e sua mística, e se faz presente o tempo todo, tanto no campo cotidiano, quanto no mundo das

artes. Este ator-xamã cria, se apropria e adapta rituais do campo místico-espiritual para o seu

processo criativo, de modo que estes campos se encontram numa única “obra’” – uma obra

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dupla, assim como o seu teatro duplo misto de teatro e alquimia; teatro e a peste; teatro

metafisica; teatro e vida.

Artaud, na concepção criativa de Y, eu sou o “instaurador da cena” e não apenas um

ator que encena uma concepção teatral de alguma ideia. Eu sou o cocriador da ideia e da

cena. Eu, detendo a experiência do mundo do teatro e empossado dos elementos presentes na

instauração-cênica, sou o condutor do processo de ritualização do teatro com a instauração-

cênica e também ritual.

Organizei a criação da Instauração-cênica-Ritual “Y” em um conjunto de três

elementos: instauração (local do resíduo) artes cênicas (ação efêmera do acontecimento

teatral ) e Ritual (procedimentos simbólicos entre o campo material e o estado efêmero da

emoção) a partir dessa conjunção empreendi a tarefa de proporcionar ao observador-

instaurador da cena, a tentativa de despertar sua compreensão para entender que ali existe

algo que vai além do teatro e da arte – ali está a Arte Viva.

Sob a inspiração do xamanismo eu busquei experimentar as sensações do local da

instauração, no sentido de sentir o lugar cênico despertava no corpo de ator, tentando absorver

e conhecer a atmosfera teatral de onde surgirá a nossa encenação

Para isto, tratei de me basear nas experiências de um xamã quando este adentra um

espaço sagrado. Neste caso, o xamã entra em contato com as possíveis energias que se

expressam ali através dos elementos presentes no local, vento, terra, folhas, pedras, arvores e

animais. E assim, estes elementos vão dialogar diretamente com o xamã. Tal experiência é

descrita por Gabriel Weisz (1999) quando ele observa nos xamãs algumas experiências

externas que são conduzidas para o corpo. Weisz (1999) entende por “exteroceptividade” a

percepção que nosso cérebro articula o mundo interior do mundo exterior, os proprioceptores

são resultantes da percepção que o sujeito faz da sua posição no ambiente é de ordem da

percepção do mundo interior.

O universo significante do corpo e do psiquismo organiza-se na categoria

proprioceptiva correspondente ao corpo, que para Weisz é uma categoria mediadora entre o

exterior e o interior. Desta mediação, participam as categorias exteroceptivas e interoceptivas.

A categoria proprioceptiva trata da posição do ser vivo no seu meio. Posição que percebe a

maneira pela qual o ser vivo recebe impressões sensoriais e reage no seu meio ambiente.

Em “Y” eu entendi que eu sou o artista da cena, eu crio elementos e convenciono a

minha sensibilidade corporal como uma energia para as coisas, atribuo aspectos simbólicos

aos objetos de criação. A minha capacidade de mentalização, me dá as condições reais para

exercer o que eu acredito ser um tipo de magia teatral.

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Assim como o Arcano dos Enamorados eu tive que contemplar uma escolha, qual o

caminho a seguir na arte teatral: o caminho do teatro tradicional ou a via do teatral ancestral e

mítico. O caminho que eu optei foi deixar que o xamã surgisse em mim como um personagem

surge no teatro. Entretanto a construção desse personagem deveria ser arquitetado através de

uma jornada mística, na qual eu tinha um papel que merecia ganhar vida – eis que surge o ator

como xamã.

Aos poucos meu caro Artaud, estou conseguindo entender que a jornada deste ator-

xamã é bastante longa. E que para se iniciar este percurso é preciso ter em minhas bagagens a

loucura do Arcano do Louco como companheira para despertar o principio criador da

encenação; ter a vontade do Mago alquímico para empreender a transmutação da realidade em

sonho e o sonho em teatro.

A viagem xamânica é uma jornada muito longa, mas que para iniciar é preciso dar um

primeiro passo. Eu dei um primeiro passo, e em breve espero darei tantos outros passos neste

caminho bifurcado, duplo, teatral e místico.

Meu caro Artaud espero que consigas entender tudo isso que eu te falei. Por aqui

encerro e esta carta e na esperança de um breve retorno.

Do seu amigo e admirador,

Nilton Santos.

Bosque de Y, 10 de junho de 2019.

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