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Jos Carlos Amado Martins

O DIREITO DO DOENTE INFORMAO

CONTEXTOS, PRTICAS, SATISFAO E GANHOS EM SADE

Dissertao de candidatura ao grau de Doutor em

Cincias de Enfermagem, submetida ao Instituto de

Cincias Biomdicas de Abel Salazar da

Universidade do Porto

Orientador: Professor Doutor Rui Nunes

Professor Catedrtico na Faculdade de Medicina da

Universidade do Porto

Co-orientador: Professor Doutor Romero Bandeira

Professor Associado Convidado no Instituto de

Cincias Biomdicas de Abel Salazar da

Universidade do Porto

2008

SIGLAS

CDD Carta dos direitos do doente

CDE Cdigo Deontolgico do Enfermeiro

CDHB - Conveno para a Proteco dos Direitos do Homem e a Dignidade do Ser

Humano Relativamente s Aplicaes da Biologia e da Medicina: Conveno dos

Direitos do Homem e a Biomedicina

CDM Cdigo Deontolgico do Mdico

DUDH Declarao Universal dos Direitos Humanos

ECsD Escala de Conhecimentos sobre a Doena

HADS Hospital Anxiety and Depression Scale

IPOCFG Instituto Portugus de Oncologia de Coimbra Francisco Gentil

OMS Organizao Mundial de Sade

RSCL Rotterdam Symptom Cheklist

VIH Vrus da Imunodeficincia Humana

Oh, penosa incerteza,

quo amarga a dvida que em mim existe.

Olho, escuto, sinto,

mas penas o vazio de tal sentir persiste.

Mergulho a cabea na almofada

e cogito

e remoo

e imagino o ponto e o mundo.

Mas o que no sei converte-me

num deserto onde sedento seco,

num mar onde com o peso afundo.

Apetece-me gritar, mas calo,

talvez algum diga o que preciso ouvir.

Apetece-me ir, mas espero

Por uma mo que guie

na vida que est para vir.

Graa,

fonte permanente de carinho, amor e apoio incondicional.

Ao Andr e ao Daniel,

que caminham rumo autonomia de forma sadia, apesar da menor ateno do pai.

Ao Jlio e Luz,

pelo constante apoio, ajuda e preocupao que apenas pais dedicados sabem dar.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Rui Nunes, pelo desafio lanado aquando da arguio

da dissertao de mestrado, pela orientao sbia, pelo incentivo constante e

pela viso de futuro.

Ao Professor Doutor Romero Bandeira, por ter aceite fazer parte do Grupo

de Acompanhamento e, na fase final, por aceitar a co-orientao da dissertao,

demostrando forte esprito de ajuda.

Ao Professor Doutor Nuno Grande, que sem nos conhecer aceitou ser co-

orientador da dissertao de doutoramento, tendo sempre contribudo de forma

sbia e positiva para o desenvolvimento dos trabalhos.

Ao Professor Doutor Manuel Rodrigues, por ter aceite fazer parte do Grupo

de Acompanhamento, pela disponibilidade e pelo esprito de ajuda.

colega e amiga de longa data Isabel Simes, pelo apoio e amizade

constantes e incondicionais.

Ao Professor Doutor Jos Roxo, que almejou chegar mais longe que os seus

mestres e que, pelo exemplo, apoio e incentivo constantes ajudou a vencer

dificuldades e a chegar ao fim.

Ao Conselho de Administrao do Instituto Portugus de Oncologia de

Coimbra Francisco Gentil, EPE, pela confiana depositada.

Ao Conselho Directivo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, por

todo o apoio prestado.

Aos enfermeiros, aos doentes e aos elementos da populao que

generosamente aceitaram ser entrevistados ou responder aos nossos

questionrios, pois fruto dessa generosidade que temos resultados para

apresentar.

Apesar de no directamente citados, mas no menos importantes,

agradecemos a todos os que, de forma directa ou indirecta, contriburam de

forma gratuita e desinteressada para o desenvolvimento deste estudo ou que por

sua causa obtiveram menos ateno da nossa parte. Inclumos estudantes,

colegas, familiares e amigos.

A todos um grande obrigado.

RESUMO

A autonomia da pessoa decorre da doutrina da dignidade humana que

afirma a finalidade do homem em si mesmo, recusando a sua instrumentalizao

ou simples utilizao como um meio. Quando pensamos na pessoa doente,

sabemos quo difcil por vezes manter a sua autonomia, apesar de estarem

internacionalmente estabelecidos vrios direitos nesse sentido.

Um dos direitos mais elementares dos doentes com vista sua autonomia

o direito informao sobre a sua situao de sade. No entanto, o seu integral

respeito no uma constante, especialmente em contexto de doena grave,

parecendo ser vrias as barreiras.

O objectivo inicial do presente estudo foi analisar o contexto da transmisso

da informao ao doente nas situaes de doena grave e criar uma teoria de

mdio alcance que contribua para a compreenso do processo de troca de

informao entre enfermeiro e doente. Com o desenvolvimento do trabalho e

com o surgir de novos dados, foram sendo formulados novos objectivos, em

torno deste primeiro, culminando na avaliao da satisfao dos doentes com a

informao que detm sobre a doena e na sua relao com algumas variveis

scio-demogrficas, clnicas e ganhos em sade.

Para a concretizao destes objectivos foram realizados dois trabalhos de

campo: um primeiro de cariz qualitativo utilizando como metodologia a Grounded

Theory para anlise de entrevistas a enfermeiros e a doentes oncolgicos; um

segundo, de cariz quantitativo, descritivo-correlacional, com aplicao de

questionrios a enfermeiros, populao e doentes oncolgicos internados.

Como principal resultado do primeiro trabalho de campo evidenciamos a

construo de uma teoria de mdio alcance que tem como postulados:

a informao ao doente promove a sua autonomia, diminui a sua

vulnerabilidade e contribui positivamente para a recuperao da

doena;

a ocultao de informaes ao doente agrava a sua vulnerabilidade,

contribui para diminuir/anular a sua autonomia e agrava o estado de

sade;

o ambiente de cuidados tem uma influncia positiva neste processo

quando se centra na pessoa doente;

o ambiente de cuidados tem uma influncia negativa neste processo

quando se centra na doena, nos profissionais ou na prpria

organizao;

as dificuldades e os bloqueios informao do doente so,

fundamentalmente, qualidades inerentes aos intervenientes no

processo;

Do segundo trabalho de campo, salientamos os seguintes resultados:

apesar de todos afirmarem a importncia do direito informao e

mais de 90% dos inquiridos desejarem ser completamente informados

sobre a sua situao de sade, opinio dos inquiridos que, muitas

vezes, tal no acontece;

para tal contribuem inmeros factores, evidenciando-se a postura

paternalista dos profissionais de sade e dos familiares dos doentes,

construindo-se por vezes verdadeiros pactos de silncio;

a construo e validao de uma escala de avaliao da satisfao dos

doentes com a informao que detm sobre a doena com boas

caractersticas psicomtricas, apresentando valores de Alpha de

Cronbach superiores a 0,9 no seu global e nas dimenses;

notria a insatisfao dos doentes com a informao que detm

sobre a doena, sendo esta insatisfao mais vincada nos indivduos

mais vulnerveis porque residentes em ambiente rural (p

ABSTRACT

The autonomy of the person results from the doctrine of human dignity

which states the purpose of man himself, refusing his instrumentalization or

simple usage as a means. When we think about the ill person, we know how

difficult it is sometimes to maintain his or her autonomy, although there are

several rights internationally established for that purpose.

One of the most basic rights of patients aiming at preserving their autonomy

is the right to be informed regarding their health situation. However, this right is

not permanently respected, particularly in situations of serious illness, and

several barriers need to be overcome.

The initial goal of this study was to analyse the circumstances for the

transmission of information to the patient in situations of serious illness and to

create an intermediate theory which contributes to the understanding of the

process of exchange of information between nurse and patient. During the

development of the activities and with the appearance of new data, new goals

were established, linked to the initial one, culminating in the evaluation of the

patients satisfaction with the information that they have about the disease and in

their relation with some sociodemographic and clinical variables and in health

gains.

In order to accomplish these goals two field studies were carried out: first, a

qualitative one, using Ground Theory as methodology for the analysis of the

interviews conducted to nurses and oncological patients; second, a quantitative

one, correlation descriptive, with application of questionnaires to nurses,

population and oncological inpatients.

As the main result of the first filed study we point out the construction of an

intermediate theory based on the following postulates:

the information provided to the patient promotes the patients

autonomy, diminishes his or her vulnerability and contributes

positively to the recovery from the disease;

the concealment of information from the patient aggravates the

patients vulnerability, contributes to decrease/annul the patients

autonomy and worsens his or her health condition;

the health care setting has a positive influence on this process when

centred on the ill person;

the health care setting has a negative influence on this process when

centred on the disease, the professionals and the organization itself;

the difficulties and blocking of patients information are, mainly,

qualities inherent to the intervenients in the process;

From the second field study, we emphasize the following results:

although they all agree on the importance of the right to information

and more than 90% of the respondents wish to be fully informed about

their health situation, it is the respondents opinion that often this does

not happen;

many factors contribute to this situation, mostly the paternalist attitude

of health professionals and patients relatives, and, sometimes, true

pacts of silence are built;

the construction and validation of an assessment scale of the patients

satisfaction with the information that they have about the disease with

good psychometric characteristics, registering Cronbrachs alpha values

higher than 0.9 in its total and in the dimensions;

the patients dissatisfaction with the information that they have about

the disease is evident, and this dissatisfaction is more pronounced

among the most vulnerable subjects because they reside in rural areas

((p

RSUM

Lautonomie de la personne dcoule de la doctrine de la dignit humaine qui

soutient la finalit de lhomme en soi-mme, refusant son instrumentalisation ou

sa simple utilisation comme un moyen. Lorsque nous pensons la personne

malade, nous savons combien il est parfois difficile de maintenir son autonomie,

bien que plusieurs droits soient internationalement tablis cet effet.

Un des droits les plus lmentaires des patients en vue de leur autonomie

est le droit dtre informs sur leur tat de sant. Cependant, ce droit nest pas

toujours respect, notamment en cas de maladie grave, et il semble que les

barrires sont plusieurs.

Lobjectif initial de cette tude tait danalyser le contexte de la transmission

de linformation au patient en cas de maladie grave et de crer une thorie

intermdiaire qui contribue la comprhension du processus dchange

dinformation entre infirmier et patient. Lors du dveloppement du travail et de la

dcouverte de nouvelles donnes, de nouveaux objectifs ont t formuls, autour

de ce premier, aboutissant lvaluation de la satisfaction des patients avec

linformation quils ont sur la maladie et leur relation avec quelques variables

sociodmographiques, cliniques et gains de sant.

Pour la ralisation de ces objectifs, deux travaux sur le terrain ont t

effectus : un premier, du domaine qualitatif, utilisant la Grounded Theory

comme mthodologie pour lanalyse dentrevues des infirmiers et des patients

oncologiques; un deuxime, du domaine quantitatif, descriptif-corrlationnel,

avec application de questionnaires des infirmiers, la population et des

patients oncologiques hospitaliss.

Comme principal rsultat du premier travail sur le terrain, nous mettons en

vidence la construction dune thorie intermdiaire base sur les postulats

suivants :

linformation donne au patient promeut son autonomie, diminue sa

vulnrabilit et contribue positivement la rcupration de la maladie;

le masquage dinformations au patient aggrave sa vulnrabilit, contribue

diminuer/annuler son autonomie et empire son tat de sant;

le milieu de soins a une influence positive dans ce processus lorsquil est

centr sur la personne malade;

le milieu de soins a une influence ngative dans ce processus lorsquil est

centr sur la maladie, les professionnels ou lorganisation elle-mme ;

les difficults et les blocages linformation du patient sont,

essentiellement, des qualits inhrentes aux intervenants dans ce

processus.

Du deuxime travail sur le terrain, nous soulignons les rsultats suivants :

bien que tous soutiennent limportance du droit linformation et que plus

de 90% des personnes interroges souhaitent tre compltement

informes sur leur tat de sant, ce nest souvent pas ce qui arrive selon

les personnes interroges;

de nombreux facteurs contribuent cette situation, notamment lattitude

paternaliste des professionnels de sant et des parents des patients qui

mne parfois de vritables pactes de silence;

la construction et la validation dune chelle dvaluation de la satisfaction

des patients par rapport linformation quils ont sur la maladie avec de

bonnes caractristiques psychomtriques, prsentant des valeurs

dalpha de Cronbach suprieures 0,9 dans sa globalit et dans les

dimensions;

linsatisfaction des patients quant linformation quils ont sur la maladie

est vidente et cette insatisfaction est plus notoire chez les individus les

plus vulnrables car ils rsident en milieu rural (p

SUMRIO

Pg.

INTRODUO 35

PARTE I A DOENA NO HOMEM

1- ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL 45

2 - SER HOMEM E SER PESSOA

2.1 - DIVERSIDADE E GLOBALIZAO

51

64

3 - OS DIREITOS HUMANOS 67

4 - OS VALORES UNIVERSAIS NA BASE DOS DIREITOS HUMANOS 79

5 - DIREITOS DOS DOENTES 87

PARTE II - AUTONOMIA NA DOENA

6 - O RESPEITO PELA AUTONOMIA COMO UM PRINCPIO TICO

6.1 - LIMITES APLICAO DO PRINCPIO DA AUTONOMIA

101

110

7 - A AUTONOMIA E OS DIREITOS DOS DOENTES

7.1 - O DIREITO A SER INFORMADO

7.2 - O DIREITO A CONSENTIR OU RECUSAR

115

115

133

8 - O ENFERMEIRO NA INFORMAO AO DOENTE 151

PARTE III - TRABALHO DE CAMPO I

OS CONTEXTOS DA PARTILHA DE INFORMAO ENTRE ENFERMEIRO

E DOENTE

9 - O PROBLEMA, OS OBJECTIVOS E A ESTRATGIA DE

INVESTIGAO

159

10 - A METODOLOGIA DA GROUNDED THEORY

10.1 - DESENVOLVIMENTO DA INVESTIGAO UTILIZANDO A

METODOLOGIA DA GROUNDED THEORY

165

169

11 - OS RECURSOS, OS ESPAOS E AS PESSOAS 179

12 - DESCOBERTA

12.1 - AS CRENAS, AS PERCEPES E AS EXPERINCIAS DOS

ENFERMEIROS

12.2 - AS CRENAS, AS PERCEPES E AS EXPERINCIAS DOS DOENTES

12.3 - O DIREITO INFORMAO COMO GERADOR DE CONFLITOS

195

195

223

248

13 - DISCUSSO DOS RESULTADOS 261

14 EXPLICANDO OS CONTEXTOS DA TROCA DE INFORMAO

ENTRE ENFERMEIRO E DOENTE EM CONTEXTO DE DOENA GRAVE 273

PARTE IV - ALARGANDO HORIZONTES

15 - RELAO, COMUNICAO E INFORMAO 281

16 - A CERTEZA E A DVIDA 297

17 - A DOENA COMO EXPERINCIA DE VULNERABILIDADE 301

18 - RESPEITO E CONFIANA 305

19 - PARA ALM DOS INDICADORES DE PRODUTIVIDADE 311

PARTE V - TRABALHO DE CAMPO II

DIREITO DO DOENTE INFORMAO: DESEJOS, EXPECTATIVAS,

EXPERINCIAS, SATISFAO DO DOENTE E GANHOS EM SADE

20 - MATERIAIS E MTODOS

20.1 - TIPOS DE ESTUDO E OBJECTIVOS

20.2 - QUESTES DE INVESTIGAO E HIPTESES

20.3 - POPULAES E AMOSTRAS

20.4 - VARIVEIS

20.5 - INSTRUMENTOS DE COLHEITA DE DADOS

20.6 - PR-TESTE

20.7 - PROCEDIMENTOS FORMAIS E TICOS

20.8 - TRATAMENTO ESTATSTICO

317

318

320

321

324

327

342

342

344

21 - DESEJOS, EXPECTATIVAS E EXPERINCIAS DOS ENFERMEIROS

RELATIVAMENTE AO DIREITO INFORMAO

347

22 - DESEJOS, EXPECTATIVAS E EXPERINCIAS DA POPULAO

RELATIVAMENTE AO DIREITO INFORMAO

369

23 - DESEJOS, EXPECTATIVAS E EXPERINCIAS DOS DOENTES

RELATIVAMENTE AO DIREITO INFORMAO

381

24 - SATISFAO DOS DOENTES COM A INFORMAO QUE DETM

SOBRE A DOENA

24.1 PROCESSO DE CONSTRUO DA ESCALA

24.2 VALIDADE E FIDELIDADE

24.3 RESULTADOS DESCRITIVOS

24.4 CONHECIMENTOS SOBRE A DOENA E VARIVEIS SOCIO-

DEMOGRFICAS

391

392

394

399

400

25 - CONHECIMENTOS SOBRE A DOENA E ALGUNS GANHOS EM

SADE

409

26 - DISCUSSO DOS RESULTADOS 427

27 CONCLUSO 457

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 469

ANEXOS

Anexo I Guio de entrevista (doentes)

Anexo II Guio de Entrevista (enfermeiros)

Anexo III Autorizao para o Trabalho de Campo I

Anexo IV Questionrio (enfermeiros)

Anexo V Questionrio (populao)

Anexo VI Questionrio (doentes)

Anexo VII Parecer da Comisso de tica para a Sade do Centro de

Sade de S. Joo Porto

Anexo VIII Autorizao para o Trabalho de Campo II

Anexo IX Termo de Consentimento

LISTA DE QUADROS

Pg.

Quadro 1 Princpios da tica biomdica 101

Quadro 2 Justificaes para o consentimento 136

Quadro 3 Nveis de deciso e requisitos associados 142

Quadro 4 Descrio dos conceitos apresentados no Paradigm Model 176

Quadro 5 Caractersticas scio-demogrficas dos enfermeiros

entrevistados

192

Quadro 6 Caractersticas scio-demogrficas dos doentes entrevistados 193

Quadro 7 Competncias-chave para conduzir uma entrevista centrada

no doente

291

Quadro 8 Coeficientes EQ-5D 338

Quadro 9 Clculo do valor estimado para o estado de sade 11223 338

Quadro 10 Principais caractersticas scio-demogrficas dos

enfermeiros

347

Quadro 11 Principais caractersticas scio-profissionais dos

enfermeiros

349

Quadro 12 Distribuio dos inquiridos em funo das opinies

relativas quantidade de informao a fornecer ao doente com doena

grave

350

Quadro 13 Importncia atribuda pelos enfermeiros inquiridos s vrias

reas da informao sobre a doena

350

Quadro 14 Distribuio dos enfermeiros inquiridos em funo da sua

percepo da adequao da informao fornecida aos doentes pelos

profissionais

351

Quadro 15 Frequncias relativas e percentuais dos factores referidos

pelos inquiridos como contributivos para a ocultao de informaes aos

doentes

353

Quadro 16 reas da informao que, na opinio dos inquiridos,

tendem a ser ocultadas aos doentes

353

Quadro 17 Fontes da informao do doente na perspectiva dos

inquiridos

354

Quadro 18 Distribuio das respostas sobre quem, na opinio dos

inquiridos, mais informaes transmite ao doente 354

Quadro 19 - Distribuio das respostas sobre quem, na opinio dos

inquiridos, mais informaes transmite famlia do doente

355

Quadro 20 Distribuio das opinies dos inquiridos, relativas a quem

est melhor preparado para informar o doente e famlia em situao de

doena grave

356

Quadro 21 Distribuio das respostas em funo da percepo da

quantidade de informaes transmitidas ao doente e famlia pelos

profissionais de sade

356

Quadro 22 - Distribuio das respostas em funo da percepo da

quantidade de informaes transmitidas famlia pelos profissionais de

sade

357

Quadro 23 - reas da informao que, no entender dos inquiridos,

tendem a ser ocultadas famlia dos doentes

357

Quadro 24 Distribuio das respostas aos inquiridos relativamente

percepo da influncia da famlia na transmisso da informao aos

doentes

357

Quadro 25 Distribuio dos inquiridos em funo das opinies

relativamente a sobre quem recai a tomada de deciso relativa

realizao de exames auxiliares de diagnstico

358

Quadro 26 Distribuio dos inquiridos em funo das opinies

relativamente a sobre quem recai a tomada de deciso relativa

realizao de tratamentos mdicos

358

Quadro 27 Distribuio dos inquiridos em funo das opinies

relativamente a sobre quem recai a tomada de deciso relativa

realizao de cuidados de enfermagem

359

Quadro 28 Distribuio dos inquiridos em funo das respostas

questo: Conhece situaes em que o doente tenha apresentado

reclamao em Hospital ou Centro de Sade por desrespeito pelo direito

informao?

359

Quadro 29 Sugestes dos inquiridos: dimenso do trabalho em

equipa

360

Quadro 30 Sugestes dos inquiridos: dimenso do assumir a

informao ao doente como uma competncia de enfermagem

360

Quadro 31 Sugestes dos inquiridos: dimenso da iniciativa e pr-

actividade

361

Quadro 32 Sugestes dos inquiridos: dimenso do fomentar a

autonomia

361

Quadro 33 Sugestes dos inquiridos: dimenso da necessidade de

formao

362

Quadro 34 Sugestes dos inquiridos: dimenso da importncia da

relao

362

Quadro 35 Sugestes dos enfermeiros: dimenso do desenvolvimento

de caractersticas facilitadoras da relao

363

Quadro 36 Sugestes dos inquiridos: dimenso das estratgias para

melhor informar categoria o que informar

364

Quadro 37 Sugestes dos inquiridos: dimenso das estratgias para

melhor informar categoria como informar

364

Quadro 38 Sugestes dos inquiridos: dimenso das estratgias para

melhor informar categoria avaliar o doente antes de informar

365

Quadro 39 Sugestes dos inquiridos: dimenso das estratgias para

melhor informar categoria a linguagem

365

Quadro 40 Sugestes dos inquiridos: dimenso das estratgias para

melhor informar categoria os recursos

365

Quadro 41 Sugestes dos inquiridos: dimenso das estratgias para

melhor informar categoria minimizar o impacto psicolgico

366

Quadro 42 Sugestes dos inquiridos: dimenso da famlia 366

Quadro 43 Sugestes dos inquiridos: dimenso do educar para a

cidadania

367

Quadro 44 Principais caractersticas scio-demogrficas da amostra 370

Quadro 45 Importncia atribuda pela populao s vrias reas da

informao sobre a doena

371

Quadro 46 Distribuio dos inquiridos relativamente aos seus desejos

de informao relativa sua situao clnica

372

Quadro 47 Distribuio dos inquiridos de acordo com as opinies

relativas informao a transmitir a um doente idoso numa situao de

doena grave

372

Quadro 48 Distribuio dos inquiridos de acordo com a opinio

relativa a quem transmite mais informaes ao doente em situao de

doena grave

373

Quadro 49 Distribuio dos inquiridos de acordo com a opinio

relativa a quem transmite mais informaes famlia do doente, em

situao de doena grave 373

Quadro 50 Distribuio dos inquiridos de acordo com a percepo da

quantidade de informaes transmitidas pelos profissionais de sade ao

doente e famlia nas situaes de doena grave

375

Quadro 51 Distribuio dos inquiridos de acordo com a sua percepo

do contributo dos familiares dos doentes no processo informativo

375

Quadro 52 Distribuio dos inquiridos em funo da experincia no

acompanhamento de familiares com necessidades de cuidados de sade

diferenciados

375

Quadro 53 Distribuio dos inquiridos em funo da sua experincia

de doena a exigir cuidados de sade diferenciados no ltimo ano

376

Quadro 54 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena de acordo com o local onde tem sido acompanhado na doena

376

Quadro 55 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena de acordo com o tipo de tratamento recebido

377

Quadro 56 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena de acordo com as fontes de informao sobre a doena

377

Quadro 57 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: Quando fez perguntas sobre

a doena, obteve respostas claras?

378

Quadro 58 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: Os profissionais alguma vez

recusaram dar-lhe informaes sobre a sua doena?

378

Quadro 59 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: Alguma vez pensou que no

valia a pena fazer perguntas ao mdico ou ao enfermeiro porque ele no

lhe iria responder?

379

Quadro 60 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: J lhe prestaram cuidados

ou fizeram tratamentos sem lhe explicarem primeiro o que iam fazer?

379

Quadro 61 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: Relativamente sua doena,

tem havido concordncia nas vrias informaes transmitidas pelos

profissionais?

379

Quadro 62 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: Quando falou com o mdico

ou enfermeiro sobre os seus medos e ansiedades, obteve o apoio que

precisava?

380

Quadro 63 Distribuio dos indivduos com experincia recente de

doena em funo das respostas questo: Alguma vez apresentou

reclamao em Hospital ou Centro de Sade por no lhe fornecerem as

informaes de que precisava?

380

Quadro 64 Principais caractersticas scio-demogrficas da amostra 382

Quadro 65 Distribuio dos doentes de acordo com a histria de

internamento(s) anterior(es)

383

Quadro 66 Importncia atribuda pelos doentes s vrias reas da

informao clnica

384

Quadro 67 Distribuio dos doentes de acordo com os desejos de

informao relativa sua situao clnica

384

Quadro 68 Distribuio dos doentes de acordo com as opinies

relativas informao a transmitir a um doente idoso numa situao de

doena grave

385

Quadro 69 - Distribuio dos doentes de acordo com a percepo da

adequao da informao transmitida aos seus familiares

385

Quadro 70 Distribuio dos doentes de acordo com a percepo da

quantidade de informaes transmitidas a si e aos seus familiares pelos

profissionais de sade

386

Quadro 71 Distribuio dos inquiridos de acordo com a sua percepo

do contributo dos familiares dos doentes no processo informativo

386

Quadro 72 Distribuio dos doentes de acordo com as fontes de

informao sobre a doena

387

Quadro 73 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: Quando fez perguntas sobre a doena, obteve respostas

claras?

387

Quadro 74 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: Os profissionais alguma vez recusaram dar-lhe informaes

sobre a sua doena?

388

Quadro 75 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: Alguma vez pensou que no valia a pena fazer perguntas ao

mdico ou ao enfermeiro porque ele no lhe iria responder?

388

Quadro 76 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: J lhe prestaram cuidados ou fizeram tratamentos sem lhe

explicarem primeiro o que iam fazer? 388

Quadro 77 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: Relativamente sua doena, tem havido concordncia nas

vrias informaes transmitidas pelos profissionais?

389

Quadro 78 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: Quando falou com o mdico ou enfermeiro sobre os seus

medos e ansiedades, obteve o apoio que precisava?

389

Quadro 79 Distribuio dos doentes em funo das respostas

questo: Alguma vez apresentou reclamao em Hospital ou Centro de

Sade por no lhe fornecerem as informaes de que precisava?

390

Quadro 80 Distribuio dos itens na verso inicial da ECsD 393

Quadro 81 Estatsticas de homogeneidade dos itens e coeficientes de

consistncia interna de Cronbach da ECsD na sua globalidade

395

Quadro 82 Matriz de saturao dos itens nos factores para a soluo

rodada ortogonal de tipo Varimax com normalizao de Keiser para dois

factores

397

Quadro 83 Coeficientes de correlao dos itens com o total de cada

dimenso da escala e respectivos coeficientes de consistncia interna de

Cronbach

398

Quadro 84 Estatsticas descritivas dos itens da dimenso Informao

Mdica

399

Quadro 85 Estatsticas descritivas dos itens da dimenso Informao

Projectiva e de Autocontrolo

400

Quadro 86 Estatsticas descritivas relativas ECsD 400

Quadro 87 - Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e o nmero de dias de internamento

402

Quadro 88 - Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e a idade dos inquiridos em anos

403

Quadro 89 Distribuio dos inquiridos de acordo com os nveis de

ansiedade e depresso decorrentes da aplicao da HADS

409

Quadro 90 Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e os scores de ansiedade e de depresso

411

Quadro 91 Distribuio dos inquiridos de acordo com os problemas

sentidos nas cinco dimenses do EQ-5D

413

Quadro 92 - Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e o estado actual de sade e o nvel de

sade 417

Quadro 93 Estatstica descritiva relativa ao global e respectivas

dimenses da satisfao dos doentes com os cuidados recebidos durante

o internamento

418

Quadro 94 Comparao dos valores mdios e de disperso das

dimenses e global da PATSAT32 entre os inquiridos internados e os

com doena recente

419

Quadro 95 - Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e o estado actual de sade e o nvel de

sade

420

Quadro 96 Satisfao da populao com os cuidados de sade em

geral

421

Quadro 97 - Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e a satisfao com os cuidados de sade

em geral

422

Quadro 98 Frequncias relativas de ocorrncia/intensidade de

sintomas nos inquiridos de acordo com a RSCL

423

Quadro 99 Estatstica descritiva relativa morbilidade global,

morbilidade fsica e morbilidade psicolgica dos inquiridos

424

Quadro 100 Comparao dos valores mdios e de disperso da

morbilidade entre os inquiridos internados e os com doena recente

424

Quadro 101 - Resultados do Teste de Correlao de Spearman entre os

conhecimentos sobre a doena e o estado actual de sade e o nvel de

sade

425

LISTA DE GRFICOS

Pg.

Grfico 1 Distribuio dos enfermeiros inquiridos em funo da

resposta questo: Em sua opinio os doentes so bem informados

sobre a sua doena?

351

Grfico 2 - Distribuio dos inquiridos em funo das respostas

questo: Quando um doente faz perguntas a um enfermeiro sobre a sua

situao de sade obtm respostas?

352

Grfico 3 - Distribuio dos inquiridos em funo das respostas

questo: Quando um doente fala com um enfermeiro sobre os seu

medos e ansiedades, obtm o apoio de que necessita?

352

Grfico 4 - Distribuio das opinies dos inquiridos relativas

concordncia nas informaes transmitidas ao doente pelos vrios

profissionais

355

Grfico 5 Distribuio dos inquiridos de acordo com a opinio relativa

adequao das informaes transmitidas pelos profissionais de sade

aos doentes, em situao de doena grave

374

Grfico 6 Distribuio dos inquiridos de acordo com a opinio relativa

adequao das informaes transmitidas pelos profissionais de sade

aos familiares dos doentes, em situao de doena grave

374

Grfico 7 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e nvel de ansiedade

410

Grfico 8 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e nvel de depresso

410

Grfico 9 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e problemas sentidos ao na mobilidade

414

Grfico 10 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e problemas sentidos nos cuidados pessoais

414

Grfico 11 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e problemas sentidos na realizao das actividades habituais

415

Grfico 12 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e problemas sentidos em termos de dor/mal-estar

415

Grfico 13 Distribuio dos inquiridos em funo da situao actual de

doena e problemas sentidos em termos de ansiedade/depresso 416

LISTA DE DIAGRAMAS

Pg.

Diagrama 1 Deduo da categoria central a partir do contexto, das

condies intervenientes e dos factores causais

206

Diagrama 2 - O fenmeno tal como percepcionado pelos enfermeiros 221

Diagrama 3 Ligaes e relaes entre as vrias categorias do fenmeno 222

Diagrama 4 Deduo da categoria central a partir do contexto, das

condies intervenientes e os factores causais

235

Diagrama 5 O fenmeno, tal como percebido pelos doentes 243

Diagrama 6 Ligaes e relaes entre as vrias categorias do fenmeno

tal como percebido pelos doentes

244

Diagrama 7 Vectores de comunicao e bloqueios comunicao 245

Diagrama 8 Os conflitos do saber 253

Diagrama 9 Apresentao do fenmeno 256

Diagrama 10 Ligaes e relaes entre as vrias categorias do

fenmeno

257

Diagrama 11 Teoria de mdio alcance explicativa dos contextos de

troca de informao entre enfermeiro e doente (centrada no doente)

277

LISTA DE FIGURAS

Pg.

Figura 1 Modelo do Contnuo Sade-Doena 46

Figura 2 Modelo da Tomada de Deciso 118

Figura 3 Modelo de Crenas na Sade 119

Figura 4 Teoria do Comportamento Planeado 120

Figura 5 Ligaes entre a produo, o tratamento e a anlise de dados 171

Figura 6 The Paradigm Model 175

Figura 7 Planta esquemtica do IPOCFG 181

Figura 8 Factores facilitadores e dificultadores da transmisso de

informaes

248

Figura 9 Influncia da atitude na relao doente profissional 287

Figura 10 Organizao das sugestes dos inquiridos na dimenso das

estratgias para melhor informar pelas respectivas categorias

363

Figura 11 Sugestes dos enfermeiros para melhorar a informao ao

doente

367

Figura 12 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo do tipo de doente e respectivo teste U de Mann-Whitney

401

Figura 13 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo do gnero dos inquiridos e respectivo teste U de Mann-Whitney

403

Figura 14 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo da rea de residncia dos inquiridos e respectivo teste de Kruskal

Wallis

404

Figura 15 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo do estado civil dos inquiridos e respectivo teste de Kruskal Wallis

405

Figura 16 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo das habilitaes literrias/acadmicas dos inquiridos e respectivo

teste de Kruskal Wallis

406

Figura 17 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo da profisso/ocupao dos inquiridos e respectivo teste de

Kruskal Wallis

407

Figura 18 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo do nvel de ansiedade dos inquiridos e respectivo teste de

Kruskal Wallis 412

Figura 19 Tendncia central e disperso dos valores da ECsD em

funo do nvel de depresso dos inquiridos e respectivo teste de

Kruskal Wallis

412

37

INTRODUO

O respeito pela dignidade do Homem , desde h vrios sculos, uma

preocupao de inmeras sociedades. Implica a valorizao do homem como um

fim em si mesmo e nunca, simplesmente, como um meio. A dignidade humana

est baseada na prpria natureza da espcie que inclui manifestaes de

racionalidade, liberdade e finalidade em si, fazendo do ser humano um ente em

permanente desenvolvimento na procura da realizao de si prprio. Essa

preocupao manifestou-se de vrias formas: pela religio, pelo direito, pela

poltica e pelo pensamento individual, entre outras. Aps a segunda guerra

mundial e especialmente pelo processo de Nuremberga, esta inquietao tomou

propores especiais no mbito dos cuidados de sade, culminando no Cdigo

de Nuremberga, e mais tarde, na Declarao Universal dos Direitos Humanos, em

1948. Ambos deixam evidente a necessidade de respeitar a autonomia da pessoa

como um requisito da sua dignidade.

Apesar dos antecedentes histricos, foi apenas aps a dcada de 40 que a

autonomia da pessoa em contexto de sade comeou a ser discutida com mais

acuidade, principalmente aps e segunda guerra mundial. A Declarao Universal

dos Direitos Humanos, para alm de um marco histrico, foi tambm um hino s

liberdades individuais.

Tambm o pensamento biotico no ficou alheio a to importante temtica,

surgindo a autonomia como um valor a ter em considerao na obra histrica de

T. Beauchamp e J. Childress em 1979 (Principles of Biomedical Ethics), inserido

num referencial com outros trs valores no maleficncia, beneficncia e

justia. Posteriormente, muitos outros autores adoptam a principiologia de

Beauchamp e Childress para a tomada de deciso tica.

A consagrao da dignidade do Homem e o seu direito liberdade

inscrevem na praxis diria das sociedades o conceito de autonomia.

O termo autonomia significa autodeterminao, regulao dos interesses

prprios e independncia. Implica a ausncia de imposies ou coaces

externas, assim como de limitaes ou incapacidades pessoais que impeam ou

diminuam a capacidade de deciso. O conceito foi inicialmente aplicado a povos e

naes, mas Kant (1724 1804), trouxe-o para o domnio do privado. Na sua

Fundamentao da Metafsica dos Costumes (1785), refere claramente que o

38

homem est apenas sujeito sua prpria legislao e obrigado a agir apenas

conforme a sua vontade (Soromenho-Marques, 1999). Mais tarde, Stuart Mill

(1806 1883), afirma que sobre si mesmo, sobre o seu corpo e sua mente, o

indivduo soberano (Goldim, 2001).

A autonomia da pessoa decorre naturalmente da doutrina da dignidade

humana e dos direitos fundamentais. Uma pessoa autnoma capaz de deliberar

sobre os seus objectivos pessoais e de agir nessa mesma direco, sendo tanto

mais autnoma quanto mais e melhor for actualmente capaz de bem exercer a

actividade, objectiva e subjectivamente, de se autodeterminar intelectual, afectiva

e voluntariamente.

Apesar dos vrios direitos que visam a autonomia fazerem parte da

Declarao Universal dos Direitos Humanos e estarem consagrados na

Constituio da Repblica Portuguesa e em vrias Leis, Decretos-Lei e

Regulamentos portugueses, reconheceu-se a especificidade do estado de doena,

pela vulnerabilidade que dela decorre para a pessoa e pela exigncia duma

explicitao especial dos direitos. Assim, e semelhana do que tem vindo a

acontecer noutros pases nos ltimos 20-30 anos, foi criada a Carta dos Direitos

do Doente que tem sido divulgada, num esforo de humanizao dos servios de

sade.

Nesta Carta, podemos observar que decorrem directamente do princpio de

autonomia o direito de dar ou recusar o consentimento antes de qualquer acto

mdico (art. 8), o direito informao sobre os servios de sade existentes e

suas competncias (art. 5) e o direito ao conhecimento sobre o seu estado de

sade (art. 6).

Quando falamos de direitos no plural, evoca-se a possibilidade de o cidado,

em nome individual, poder exigir a sua aplicao (Coudray, 2000). Mas a verdade

que, em muitos casos, a Carta dos Direitos do Doente tem sido vista mais como

uma declarao de princpios de inspirao tico-moral do que um corpus

coerente de autnticos direitos exigveis a terceiros (Casabona, 1992). Parece

evidente que no basta reconhecer direitos s pessoas se na realidade estas no

os assumirem como seus, se no se sentirem empossadas desses direitos e se

no os reivindicarem no seu dia-a-dia, sob pena de se manterem apenas direitos

virtuais, sem aplicao real e concreta. No bastar mesmo reconhecer os direitos

do doente no direito positivo dos povos. necessrio que a cultura dominante e

os prestadores dos cuidados de sade respeitem e fomentem esses direitos, e

39

principalmente, que os naturais beneficirios desses cuidados os doentes e sua

famlia os assumam, os valorizem e os exijam no seu dia-a-dia.

Acrescente-se ainda que, alguns destes direitos esto intimamente

relacionados, dependendo a efectividade de uns da satisfao prvia de outros.

o caso dos direitos informao e ao consentimento, em que a validade deste

ltimo tem como condio, salvo raras excepes, a integral satisfao do

primeiro. De facto, no possvel consentir sobre algo que se desconhece

(Bidasolo, 1998).

Da nossa experincia de trabalho de onze anos no Instituto Portugus de

Oncologia de Coimbra Francisco Gentil (IPOCFG), ficou a noo de que na maioria

das vezes, os doentes so submissos e colocam poucas questes (principalmente

no que se refere s possibilidades de tratamento), confiando de uma forma quase

absoluta nas equipas de sade. Uma outra noo que temos, a de que, apesar

de um ou outro caso pontual em que existem manifestaes de protesto pelo

modo como so prestados os cuidados de sade, os doentes reclamam pouco

dos dfices de cuidados, quando sabemos que o nosso sistema de sade tem

inmeras lacunas (e que as pessoas que nele trabalham esto longe de ser

perfeitas).

No trabalho que realizmos para o mestrado em Biotica, na Faculdade de

Medicina da Universidade de Lisboa, abordmos j esta problemtica. Foi criada e

validada uma escala de avaliao das atitudes do doente perante os direitos

informao e ao consentimento e, atravs dela, chegmos a algumas concluses

interessantes, como o facto de os doentes terem uma atitude face aos direitos

informao e ao consentimento que revela alguma submisso, especialmente no

que se refere participao na tomada de deciso. Ao estudar a sua relao com

algumas variveis scio-demogrficas, verificmos que a atitude menos coesa,

revelando uma maior submisso dos doentes, medida que aumenta a idade,

nos residentes em ambiente rural, nos que apresentam menores habilitaes

literrias e nos que tm profisses habitualmente associadas a estratos

socioeconmicos mais baixos.

Para alm dos factores referidos, outros mais haver que contribuiro para

esta aparente submisso dos doentes. Sero de considerar aspectos scio-

culturais, a vulnerabilidade que acompanha a doena e mesmo, a nossa cultura

40

de sade, em que a relao profissional-doente, durante sculos claramente

paternalista, foi criando razes de que, ainda hoje, nos difcil desligar.

O direito informao revela-se elementar, na medida em que tem como

objectivo principal empossar o doente de um conjunto de condies que lhe

permitam ser ele mesmo a tomar as decises que lhe dizem respeito (Roug-

Maillard e Penneau, 1999).

Afirmam Jepson et al. (2005), que as teorias do ps-modernismo sugerem

que as pessoas tm vindo a assumir-se como consumidores com direitos e que

valorizam a possibilidade de escolha e particularmente, no contexto de sade, o

consentimento informado. A verdade que nos ltimos anos a temtica do

consentimento informado tem sido objecto de inmeros estudos, nas mais

variadas reas da sade e no s. O objectivo central tem sido sempre a

promoo da autonomia individual. Tm tambm sido vrias as abordagens

conceptuais, o que tem enriquecido o conhecimento dos profissionais de sade

sobre o assunto (Elit et al., 2003).

No entanto, continuam a ser muitos os doentes que desconhecem a sua

situao de sade e, como refere Serro (1996), quando se trata de situaes

graves, no informar o doente quase uma regra, com a justificao de que a

revelao desses factos poder contribuir para elevados nveis de ansiedade e

agravar o estado do doente. Mas ser que, quando se ocultam informaes ao

doente sobre o seu estado de sade, com a justificao de no o agravar fsica e

psiquicamente, no estamos a contribuir para o contrrio?

Porque a maioria dos doentes incapaz de avaliar os profissionais de sade

pelos aspectos tcnicos que praticam, o principal alvo das suas crticas parece ser

a relao que com eles estabelecem. Nesta relao, est definitivamente includo

o respeito pelo seu direito a ser informado. Ser que, alguma da insatisfao dos

doentes relativamente aos cuidados recebidos no se deve tambm ao

desrespeito por aquele direito?

E, talvez para comear pelo princpio, quais so os contextos da troca de

informao com o doente? Qual o envolvimento dos enfermeiros neste processo?

Foi com estas preocupaes e motivaes que partimos para o presente

estudo de investigao, o qual esperamos possa vir a ser um contributo

fundamentado para a melhoria da relao entre o profissional de sade e o

doente, especialmente no que se refere ao respeito pela autonomia deste ltimo.

41

Relativamente ao trabalho de campo propriamente dito, formulmos os seguintes

objectivos centrais:

O1 Analisar o contexto da transmisso da informao ao doente.

O2 Criar uma teoria de mdio alcance que ajude a compreender o contexto

da troca de informao entre enfermeiro e doente nas situaes de doena grave.

Face aos resultados obtidos neste primeiro trabalho de campo, partimos

para um segundo, tendo como objectivos:

O3 Analisar as experincias e as opinies dos enfermeiros relacionadas

com o direito dos doentes informao.

O4 Analisar as experincias e as opinies da populao relacionadas com o

direito dos doentes informao.

O5 Analisar as experincias e as opinies dos doentes relacionadas com o

direito dos doentes informao.

O6 Analisar a satisfao dos doentes com a informao que detm sobre a

doena.

O7 Analisar a possvel relao da satisfao dos doentes com a informao

que detm sobre a doena com algumas variveis scio-demogrficas, com os

nveis de ansiedade e depresso, com a percepo do estado de sade, com a

ocorrncia de sintomas e a sua intensidade, com a satisfao com os cuidados

recebidos durante o internamento e com a satisfao dos doentes com os

cuidados de sade em geral.

A ausncia de estudos prvios neste domnio que mostrassem instrumentos

j validados no nosso meio, levou-nos a formular um outro objectivo:

O8 Construir um instrumento empiricamente vlido e fiel que permita a

avaliao da satisfao dos doentes com a informao que detm sobre a doena.

A estrutura deste relatrio de investigao est organizada em cinco partes

fundamentais. A primeira reservada ao enquadramento terico em torno da

doena no homem. Na segunda parte aprofundamos o conceito de autonomia na

doena. A terceira parte dedicada ao primeiro trabalho de campo, centrado na

descoberta dos contextos da transmisso de informaes ao doente com doena

grave. Estas descobertas levaram-nos de novo pesquisa bibliogrfica no sentido

de aprofundar alguns conceitos que emergiram, tendo-lhe dedicado a quarta

parte da dissertao. Na quinta parte so apresentados os resultados e respectiva

42

discusso do segundo trabalho de campo. No final surgem as principais

concluses.

Para a realizao deste enquadramento terico, revelaram-se importantes a

pesquisa bibliogrfica em monografias e em peridicos, aps consulta das Bases

de Dados Index RMP, Medline (Pub Med), Cinahl Plus, Scielo, British Nursing

ndex, Medic Latina e Fuente Acadmica. Aps a seleco da bibliografia mais

pertinente e actual, procedemos sua anlise crtica e posterior organizao dos

contedos. Apesar de curta, foi tambm fundamental a estadia durante alguns

dias no Institut Borja de Biotica, em Barcelona, no ano de 2007, onde nos foi

possvel aceder ao maior acervo bibliogrfico na rea da biotica que podemos

encontrar na Europa.

Ao longo de todo o trabalho utilizaremos o conceito doente sem que com

isso tenhamos a pretenso de rotular ou subordinar aqueles que so alvo dos

nossos cuidados dirios. Entre cliente, utente, paciente e doente, pareceu-

nos ser este ltimo conceito o que mais se adequava ao mbito do presente

trabalho.

Primeiro, porque pensamos que ainda que desejvel que caminhemos para a

perspectiva de consumo de cuidados por um indivduo que tem direito a um

servio de qualidade porque paga para tal, ainda estamos longe desta filosofia,

especialmente porque, por uma postura de submisso, de inferioridade e de

vulnerabilidade, os doentes exigem pouco e reclamam pouco quando menos bem

servidos. E ainda porque, conforme refere Boix (2003), o conceito de cliente est

muito associado a uma relao econmica, governada pelas leis da oferta e da

procura e regulada pela relao custo/benefcio.

Depois porque a perspectiva de utente d a impresso de simples utilizador,

alheio ao sistema, ainda que este sistema s sobreviva pela sua contribuio

econmica. Mas tambm porque deixa a sensao de que o utente utiliza quando

quer e porque quer, numa viso consumista.

Paciente est fora de questo. Sendo a autonomia da pessoa um dos

aspectos centrais do nosso trabalho, seria inadequado utilizar um termo que, na

lngua portuguesa, implica clara submisso aos profissionais, que implica sofrer

com pacincia, ou seja, sem reclamar, seno mesmo sem verbalizar esse

sofrimento de forma a no incomodar os profissionais com coisas menores ou de

menos importncia.

43

O conceito de doente habitualmente utilizado para definir uma pessoa

que sofre de uma doena ou mal fsico ou psquico e que submetida a um

tratamento com vista cura, ao alvio dos sintomas ou a melhorar a qualidade de

vida. Nesta viso, a relao profissional de sade/doente, uma relao de

lealdade, que respeita a autonomia, mas tambm que procura o melhor para a

pessoa doente e evita fazer-lhe qualquer mal, que procura compreender o doente

no seu todo e respeitar as suas diferenas.

Assim, pareceu-nos que a palavra doente seria a mais adequada no

contexto do nosso trabalho, implicando a nossa ateno sobre a pessoa doente.

Admitindo e assumindo que esta pessoa doente tem direito aos cuidados de que

necessita, em ltima anlise porque paga ou pagou estes cuidados. Mas

admitindo e assumindo tambm que esta pessoa est mesmo doente e que essa

doena de que padece lhe confere grande vulnerabilidade que lhe dificulta o

pleno exerccio da autonomia ou mesmo impossibilita a exigncia de respeito

pelos seus direitos, reclamando quando tal no acontece, at porque, em ltima

anlise e, como refere Morrison (2001), seria uma despropositado reclamar

daqueles de quem precisamos para a recuperao da sade.

O doente um cidado, um utente, um cliente, algumas vezes um paciente,

mas, em definitivo, uma pessoa vulnervel que tem expectativas e valores que

importa potenciar e direitos que se impe respeitar.

Ou seja, sempre que lermos doente, deve entender-se pessoa doente.

44

45

PARTE I A DOENA NO HOMEM

Nesta primeira parte procuraremos apresentar alguns conceitos

fundamentais e estruturantes para a presente dissertao. Estando o direito do

doente informao sobre a sua situao de sade includo num documento

mais largo, a Carta dos Direitos do Doente e intimamente ligado ao direito do

doente autodeterminao e como tal, sua liberdade, pareceu-nos importante

consolidar algumas bases antes de abordar esta temtica.

Comearemos pois por apresentar o enquadramento conceptual do nosso

trabalho para de seguida aprofundar os conhecimentos em torno de dois

conceitos centrais Homem e Pessoa. Falaremos de seguida sobre os direitos

humanos e sobre os valores universais que esto na sua base e terminaremos

esta parte do trabalho com uma abordagem aos direitos dos doentes.

Faremos particular aluso Conveno para a Proteco dos Direitos do

Homem e a Dignidade do Ser Humano Relativamente s Aplicaes da Biologia e

da Medicina: Conveno dos Direitos do Homem e a Biomedicina (CDHB) do

Conselho da Europa e Declarao sobre Biotica e Direitos Humanos da United

Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO).

46

47

1- ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL

A sade um conceito de difcil explicao.

A Organizao Mundial de Sade apresentou em 1947 como definio:

sade o estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a

ausncia de doena ou enfermidade.

No trazendo para esta definio mais variveis, fica o conceito aberto

noo de que a sade uma percepo individual para a qual concorrem

inmeros factores, como a idade, o gnero, a raa, a cultura, os valores

individuais, a personalidade e os estilos de vida (Potter e Perry, 2006). Ou seja,

mais do que um conjunto de parmetros fisiolgicos, o termo sade reflecte

tudo o que a pessoa e quer ser, considerando-se aqui a pessoa no seu todo

assim como o ambiente em que se move.

De acordo com a compreenso mais recente, a sade deve ser vista como

um estado dinmico, que varia conforme a pessoa se vai adaptando s alteraes

no ambiente interno e externo no sentido de atingir e manter uma condio de

bem-estar (Potter e Perry, 2006). J a doena percebida pelos autores como um

processo em que o funcionamento da pessoa est diminudo ou afectado

comparativamente condio anterior. Assim, o bem-estar elevado e a doena

grave sero os dois extremos de um contnuo em cujo centro se encontram os

factores de risco (genticos, ambientais, idade, estilos de vida, ) para o

indivduo (figura 1).

A sade assim um estado e simultaneamente uma representao mental.

Esta representao mental da condio individual e do bem-estar varivel no

tempo, resultando numa busca constante do equilbrio, de acordo com os

desafios que cada situao coloca pessoa, sendo que toda a pessoa deseja

atingir o estado de equilbrio em que exista um mnimo de sofrimento e um

mximo de bem-estar fsico e conforto emocional, espiritual e cultural (Ordem

dos Enfermeiros, 2001).

Ora precisamente nesta busca contnua do equilbrio que os enfermeiros

tm um papel primordial, centrando-se na preveno da doena e na promoo

dos processos de readaptao e na procura da satisfao das necessidades

humanas fundamentais da pessoa e a sua mxima independncia na realizao

das actividades de vida, assim como da adaptao funcional aos dfices e

48

limitaes, sempre tomando como foco de ateno a promoo dos projectos de

sade que cada pessoa vive e persegue (Ordem dos Enfermeiros, 2001 e 2003).

Figura 1 Modelo do Contnuo Sade-Doena

Adaptado de: Potter e Perry (2006)

A enfermagem recente enquanto profisso (tal como a conhecemos), mas,

como forma de estar e de actuar, existe desde que h um ser humano que sofre e

perante ele, um outro que pretende ajudar. O exerccio profissional da

enfermagem centra-se na relao interpessoal entre um enfermeiro e uma pessoa

ou grupo de pessoas. A forma bsica de ajuda que caracteriza a aco do

enfermeiro, fundamenta-se na filosofia do cuidado, que na prtica se traduz em

fazer pelo outro tudo o que ele faria se para isso tivesse a fora, a vontade e os

conhecimentos necessrios, conforme escreveu Virgnia Henderson (1966). Uma

dimenso especial desse cuidado aquela que vai de encontro satisfao das

necessidades de cada ser humano, de forma que este se desenvolva

harmoniosamente e para que, como pessoa, possa atingir o mximo do seu

potencial. Por isso, a sua preocupao primordial no a doena ou o curar

dessa doena (embora os cuidados proporcionados possam contribuir

naturalmente para a cura), mas antes a oferta de condies que contribuam para

minimizar o sofrimento, aumentar o bem-estar e facilitar o desenvolvimento

(Anjos, 2000).

Na maioria das situaes, esta oferta s possvel atravs do

estabelecimento de uma relao de ajuda. Refere Lazure (1994:10) que

independentemente do campo de actuao da enfermeira, tanto o cliente como a

49

famlia tm o direito de esperar ou mesmo de exigir que a relao de ajuda seja a

base do exerccio de enfermagem Seja qual for o modelo conceptual, o processo

de cuidados no pode verdadeiramente acontecer sem este enfoque na relao de

ajuda. Conforme apontam Riopelle, Grondin e Phaneuf (1999), a comunicao

eficaz entre enfermeiro e doente um processo exigente, que requer grandes e

continuados esforos do enfermeiro, mas que ele reconhece como indispensveis

ao estabelecimento da relao de ajuda. Isto porque uma relao de ajuda no

visa a satisfao de necessidades mtuas como uma comum relao entre

familiares ou amigos, pois estabelecida com vista satisfao de necessidades

do doente, procurando alcanar e manter um nvel ptimo de sade Riley (2004)

e Phaneuf (2004). Diramos ento que esta dever ser uma comunicao assertiva

e que tal comunicao um requisito para que a relao possa ser de ajuda e que

esta relao um dos principais ingredientes dos cuidados de enfermagem. Ou

talvez para sermos mais correctos, um ingrediente e simultaneamente um

resultado dos cuidados de enfermagem.

Os cuidados de enfermagem no so mais que aces, autnomas ou

interdependentes, levadas a cabo com a pessoa, ou em vez dela, para atingir as

finalidades atrs referidas. Cuidar constitui a base da profisso de enfermagem.

Cuidar ir ao encontro da outra pessoa para a acompanhar na promoo da

sade, o que implica encontro, acompanhamento e percurso em comum

(Hesbeen 2001). Os cuidados incluem aspectos afectivos, cognitivos e

psicomotores e representam um ideal que orienta os enfermeiros no processo de

prestao de cuidados, impelindo-os para actuaes adequadas e fomentadoras

de resultados positivos para o indivduo, a famlia e a comunidade (Riley, 2004).

O exerccio profissional de enfermagem centra-se na relao entre o

enfermeiro e a pessoa ou pessoas alvo da sua ateno, distinguindo-se neste

processo o enfermeiro pela formao e experincia que lhe permitem

compreender e respeitar os outros numa perspectiva multicultural (Ordem dos

Enfermeiros, 2001 e 2003). Ao acreditar que o doente, independentemente da

natureza do seu problema de sade, o nico detentor dos recursos bsicos

necessrios para o resolver, o papel do enfermeiro centra-se no oferecer, sem

impor, os meios complementares que lhe permitem descobrir e reconhecer os

recursos pessoais a utilizar para resolver o problema (Lazure, 1994), abstendo-se

de juzos de valor relativamente pessoa alvo da sua ateno. Neste sentido, os

cuidados de enfermagem so cuidados inseridos numa aco/relao

interpessoal de ajuda contnua e profunda (Hesbeen, 2000).

50

Para desenvolver estes cuidados, os enfermeiros fazem apelo e utilizam um

conjunto de conhecimentos e competncias que podem ser agrupados nas

dimenses cientfica, relacional e tica (Queiroz, 2004). Isto porque a prtica de

enfermagem complexa e exige a integrao de um vasto leque de saberes.

Carper (1978) agrupou este leque de saberes em quatro padres:

o saber emprico ou cincia de enfermagem;

o saber tico;

o saber pessoal;

o saber esttico ou arte de enfermagem.

Estes quatro padres tm sido utilizados por diversos autores para resumir

o conjunto de saberes necessrios prtica de enfermagem. Por exemplo

Munhall (1993), White (1995) ou Lopes (2005), entre outros.

Assim sendo, torna-se mais clara a afirmao proferida por Nunesa) (2004:

36), de que a finalidade da profisso de enfermagem o bem-estar de outros

seres humanos, ou seja, que os conhecimentos e as competncias desenvolvidos

se dirigem a esta finalidade. Isto porque, refere citando Watson (1988), as

intervenes de enfermagem no esto circunscritas nem centradas na situao

de doena ou na satisfao de uma necessidade humana especfica, na medida

em que se assume o cuidar como ideal moral que visa proteger, aumentar e

preservar a dignidade humana. Ou como refere Riley (2004), implcito nos

cuidados est um forte comprometimento pblico pela promoo da humanidade

de cada indivduo e estrito respeito pela sua singularidade e dignidade.

Semelhante assuno pode ser encontrada em Torralba i Rosell (2002:

114-121) que apresenta a essncia do cuidar como o esforo contnuo para

deixar que o outro seja, deixar que o outro seja ele mesmo, deixar que o outro

seja o que est chamado a ser e procurar pelo outro. Nestas quatro

formulaes est subjacente a viso de pessoa como um ser continuamente em

projecto e a viso do cuidar como o apoio a essa construo, no redefinindo o

outro levando-o a aceitar os meus valores mas aceitando-o tal como ele e

ajudando-o a crescer e a atingir os seus objectivos de vida e o mximo do seu

potencial, fomentando a sua autonomia. Nesta perspectiva cuidar , sem dvida,

uma forma de maximizar a dignidade humana. E na medida em que o processo

de cuidados se constitui como um instrumento de individualizao e

personalizao dos cuidados, contribui decisivamente para a sua humanizao

(Phaneuf, 1993).

51

nesta viso que a informao pessoa com o objectivo de promover a sua

autonomia na manuteno da sade e preveno da doena, na recuperao da

doena e na adaptao deficincia uma parte fundamental do cuidar e como

tal, uma das reas mais importantes das intervenes dos enfermeiros. Estudar a

relao entre enfermeiro e doente, especialmente na vertente da partilha de

informao sobre a sade e doena estudar uma parte do ser enfermeiro. At

porque, so cada vez mais as situaes em que a necessidade de cuidados de

sade das pessoas e comunidades no toma por foco principal a doena, mas

acima de tudo, a ajuda na adopo de respostas eficazes aos problemas de sade

e aos processos de vida (Paiva, 2004).

Seja qual for a escola de pensamento em enfermagem, seja qual for o

modelo adoptado ou o paradigma em que se insere, a relao e a partilha de

informaes entre o enfermeiro e a pessoa ou comunidade alvo dos seus

cuidados so sempre uma rea central desse cuidar. Estamos convictos de que

qualquer contributo para a melhoria desta relao e partilha de informao

contribuir para melhorar os resultados em sade e simultaneamente dignificar a

enfermagem e promover a sua afirmao enquanto disciplina.

52

53

2 - SER HOMEM E SER PESSOA

Homem um mamfero primata, bpede, socivel, que se distingue de todos

os outros animais pelo dom da palavra e desenvolvimento intelectual; ser vivo

composto de matria e esprito; ser humano (Costa e Melo, 1998).

Para os mesmos autores, o vocbulo pessoa significa criatura humana;

ser consciente de si mesmo, senhor dos seus actos e, por isso, responsvel por

eles; o indivduo considerado no seu aspecto especificamente humano; indivduo

dotado de razo; () por oposio a indivduo, o ser humano enquanto aberto

aos seus semelhantes, integrado numa comunidade de pessoas e orientao para

um ideal.

Verificamos ento que entre estes dois conceitos que tantas vezes

utilizamos indistintamente radicam grandes diferenas. O primeiro conceito,

provavelmente com origens na biologia, aponta-nos para um ser vivo includo no

reino animal, mas deles distinto pelo dom da palavra e pelo desenvolvimento

intelectual. Mas ser que estes dois aspectos distinguem realmente o homem de

outros grandes primatas?

J o conceito de pessoa muito mais elaborado, mais filosfico do que

biolgico e que implica um homem com algumas caractersticas fundamentais,

como a conscincia, a liberdade e responsabilidade, a razo, a sociabilidade e a

finalidade.

So hoje vrios os autores a defender a necessidade de redefinir o conceito

de homem uma vez que luz dos conhecimentos actuais se vai comprovando a

proximidade entre os homens e outros grandes primatas, tanto ao nvel genrico

como da racionalidade e sociabilidade e que por isso, tal como o homem,

encaixam na classificao de animal racional. Acrescenta-se a este facto o

termos sociedades cada vez mais laicas e como tal, a no aceitar como contributo

para a distino entre o homem e outros animais, a presena no primeiro de um

esprito ou de uma alma.

J na dcada de 70, e com uma abordagem pelo lado da psicologia, lvaro

Miranda Santos na sua obra Expressividade e Personalidade lana o debate:

Apesar da possvel continuidade entre o cristal e o vivo, entre a planta e o

animal, ser vlido definir ou ser uma definio vlida () afirmar que a

planta um cristal vivo ou que o animal uma planta animada? Para qu

54

ou porqu persistir em dizer animal poltico ou animal racional para o

humano? Para qu? No consigo descortinar. Porqu?... (Santos, 1972:

343).

Claro que este tipo de discusso ou a definio de homem e de pessoa

dariam, s por si, para desenvolver vrias dissertaes, o que no nosso

objectivo no presente trabalho. Pensamos no entanto, que para falar da pessoa

doente convir comear por contextualizar aquilo que entendemos por pessoa e

o que lhe est inerente, associado.

Utilizaremos os vocabulrios Homem (com inicial maiscula) e pessoa ou

pessoa humana com o mesmo significado e neles incluindo todos os homens e

mulheres, embora reconheamos que homem e pessoa humana so conceitos

diferentes. Vejamos a distino clara e simples apresentada por Serro (1994:70):

O homem percorre a terra h vrios sculos, multiplicando-se sem cessar,

dominando as plantas, os animais e por fim dominando a energia e esse

percurso, num processo contnuo e adaptativo da espcie, desenvolveram-se

rgos e sentidos que facilitam a emergncia da palavra para nomear objectos, a

descrio de acontecimentos, a representao simblica dos objectos e das

situaes a representao de ideias. Neste percurso, os seres humanos fizeram-

se pessoas humanas.

Ou seja, para o autor, o desenvolvimento da conscincia, que inclui a auto-

conscincia (o eu) e a conscincia do outro (o tu) que confere ao Homem o

estatuto de Pessoa Humana, levando-o a afirmar que a pessoa humana no ,

faz-se no tempo (p.70).

Os conceitos de Homem e de Pessoa Humana tm sofrido a evoluo do

prprio ser humano, sendo esta evoluo conceptualmente rica, tanto pelas

vrias perspectivas de reflexo a que convida como simplesmente pela histria

em si (Nevesa), 1996 e Pegoraro, 2002).

Para alm desta evoluo, so visveis vrias perspectivas histricas, assim

como podemos constatar, que pela complexidade do prprio conceito de pessoa,

so inmeras as definies (ou tentativas de definir?) em que a pessoa

abordada apenas de modo parcial, intermitente, pois a avaliao integrada

harmnica e exaustiva efectivamente complexa. De facto as antropologias

contemporneas andam volta da pessoa, insistindo ora num ora noutro

aspecto: metafsico, tico, esttico, cultural, poltico, social, etc. (Dominguesa),

1998: 58).

55

At porque, refere Pegoraro (2002), o conceito de pessoa mutvel e pode

ser repensado ou descrito de diferente modo consoante a evoluo da filosofia e

da cincia.

Mas esta vertente evolutiva reconhecida apenas durante o sculo XX, para

o qual muito contriburam os filsofos desta poca.

Podemos assim afirmar que o Homem se tem vindo a descobrir a si mesmo

atravs do desenvolvimento da sua conscincia de si.

No incio, de forma rudimentar, como um ser natural, que vive e faz parte da

natureza que o rodeia e que no compreende, e como tal teme, especialmente

quando existe uma manifestao de fora dos elementos, atribudas a poderes

mticos vrios.

At poca grega, esta foi a concepo dominante. Foram os gregos,

provavelmente, a atribuir ao Homem algo de transcendente, considerando-o

como a suprema manifestao da phusis(1). com os pensadores gregos

Scrates e Aristteles que so adicionadas algumas caractersticas a esta

definio, especialmente pelo acrescentar da arete, a virtude, que permitiria a

plena participao social e poltica na polis (Gadamer, 1994) e (Marques, 2000).

S que enquanto que para Scrates a virtude que permitiria ao Homem ser bom,

e por isso praticar o bem na polis era conseguida pelo conhecimento, para

Aristteles no bastava conhecer o bem, mas antes era necessrio adquirir o

hbito, ethos, de praticar o bem, ou seja, definindo o Homem pela capacidade

de pensar e traar o seu caminho pela tica e pela poltica(2).

Com o cristianismo, o Homem comea a ser pensado luz da revelao

bblica, libertando-se do sincretismo mtico que at a o dominou. O cristianismo

apresenta-nos um Deus omnipotente, criador do universo e para cada homem

cria uma alma imortal, tornando assim cada homem um ser Sua semelhana(3) e

como tal, sobrenatural, absoluto e absolutamente independente do mundo

(Pegoraro, 2002).

1 A phusis a raiz da substncia, a realidade primitiva e princpio radical de tudo quanto existe. Pensada como conjunto dos elementos (ar, terra, gua e fogo), fonte de toda a energia e fora originria de toda a vida, de tudo o que surge (Borheim, 1979 citado por Pegoraro, 2002). 2 por Aristteles que surgem pela primeira vez os conceitos de unicidade do ser humano (corpo e alma inseparveis, indivisveis) e da finalidade da alma. Escreveu Aristteles que se o olho fosse uma animal, ver seria a sua alma. E assim como no se concebe o olho sem a funo ver ou o ver sem olho, o mesmo se deve passar relativamente relao entre corpo e alma. Conf.: Keating, (2001). 3 A noo pessoa, no contexto religioso, liga-se ao conceito de pessoa divina na medida em que a revelao bblica nos apresenta o homem criado imagem e semelhana de Deus. Conf.: Xavier (2000). Claro que levanta-se aqui uma dificuldade: para definir pessoa necessrio definir previamente Deus ou Pessoa divina, tarefa herclea, para a qual no est vocacionado o presente trabalho.

56

neste clima (cristo) que surgiu uma definio de pessoa que perdurou

durante sculos e que Bocio resumiu: um indivduo subsistente numa natureza

racional(4), conceito este j anteriormente abordado por S. Toms de Aquino.

luz deste conceito, o homem o mais perfeito dos seres da natureza,

enquanto subsiste numa natureza racional e sendo uma identidade, ultrapassa a

multiplicidade, afirma a prpria realidade unificadora que o distingue de todos os

outros seres, inclusive os da mesma espcie (Dominguesa), 1998). Como um todo,

contm uma unidade relativa, singular, concreto, individual e nico no seu ser e

no seu agir, e como tal, potencialmente livre.

Foi apenas com Kant que se voltou a acrescentar algo a esta definio. Este,

partiu dos conceitos de individualidade e de racionalidade para os apresentar

como chave da fundamentao tica que apresenta cada homem como um fim

em si mesmo porque capaz de, atravs da razo, exercer o auto-controle sobre

si. Esta inevitabilidade de o homem ser simultaneamente sbdito e senhor de si

prprio confere-lhe uma dimenso transcendente e soberana natureza sensvel,

ou seja, confere-lhe uma dignidade (Marques 2000 e Pegoraro, 2002).

Parece-nos aqui importante recordar que, especialmente por influncia do

cristianismo, foi-se construindo a ideia de que a superioridade do homem lhe era

conferida no tanto por um corpo biologicamente desenvolvido mas antes pela

alma depositada, confiada, por Deus nesse corpo. A pessoa substancialmente

uma unidade constituda de corpo e esprito, que integram uma unidade

ontolgica, intimamente interligados e interdependentes. Neste sentido, o

esprito mais do que propriedade da pessoa. Sendo imaterial e independente do

material, sempre referido a um corpo pessoal. A alma humana, habitculo, do

esprito, assim estruturalmente destinada a informar e animar um corpo,

resultando daqui que a pessoa humana s existe pela integrao dos dois

elementos (Domingues a), 1998).

Nesta alma reside o esprito que pe o homem acima do animal e manifesta-

se na pessoa. O ser humano assim um ser espiritual numa corporeidade e a sua

caracterstica fundamental a sua abertura ao mundo (Sheler, 1971, referido por

Alvarez, 2005)

4 Os termos desta definio so esclarecidos por Pegoraro (2002): - Indivduo = no dividido, indiviso; individualidade una, nica e distinta de todas as outras - Subsistncia = cada indivduo subsistente uma substncia qual aderem as realidades acidentais - Natureza = reafirmao de que nas dimenses corporal e biolgica o ser humano produzido por gerao como todos os seres vivos - Racionalidade = ou alma racional a forma ou a especificidade que distinguir o ser humano dos demais seres vivos. Como no pode ser fruto de gerao, provem do esprito divino e criador

57

O ponto supremo da vida humana seria a sua morte se sua alma fosse conferida

a salvao e a vida eterna no paraso. Refere Sena-Lino (2002) que so vrias as

descries na literatura referentes ideia de um corpo como mero habitculo da

alma, assim como a viso do corpo como inferior, fonte do mal, de pulses

primrias e de violncia. Mas precisamente pela presena da alma no corpo que

o homem capaz de avaliar a verdade, a bondade ou a maldade dos seus actos e

da inteno dos seus actos, a virtude ou o vcio, a alegria ou a tristeza, e como

tal, escolher racionalmente entre o bem e o mal. Aqui reside a grandeza e os

riscos da liberdade humana, capaz do melhor e do pior, de integrao ou

desintegrao (Domingues a), 1998).

Pode-se ento dizer que, ao longo de dois milnios, se foi afirmando o

conceito de pessoa como substncia pensante, individual e auto-suficiente, com

duas vises (teolgica e filosfica) muito prximas, ainda que intrinsecamente

diferentes. Ou melhor, foi acontecendo uma teologizao, voluntria ou forada,

da filosofia.

A alma tambm pensada por alguns autores como Edith Stein e Martin

Buber, profundamente associada ao corpo, operando por regenerao e fluxo de

energia, no por bens espirituais do mundo externo mas por um princpio

formativo. Esta alma seria o ncleo central de onde emana a verdade de si

mesma, um centro a ser ouvido, conhecido, acolhido como fonte de

autenticidade, portadora de uma verdade sobre a pessoa a ser revelada e

portadora de uma estrutura da pessoa a ser respeitada e favorecida (Mahfoud,

2005).

claro que, ao longo destes dois milnios, surgiram algumas vozes

dissonantes como as de Espinosa, Marx ou Nietsche, nem sempre com o melhor

aproveitamento da sua obra.

Espinosa (1632-1677), tendo como ponto de partida a doutrina de

Aristteles, alicera o seu pensamento em conceitos mais biolgicos e como tal,

mais firmes. Ao recusar o reconhecimento de uma finalidade nos planos da

natureza, concebe corpos e mentes construdos a partir de componentes

combinados em diversos padres, formando assim as diferentes espcies,

abrindo as portas para o pensamento evolucionrio de Charles Darwin (Damsio,

2004). Por outro lado, a sua obra deixa entrever uma relao estreita entre a

felicidade pessoal e colectiva, assim como entre a salvao humana e a estrutura

do estado, ou seja, afirmando o homem como um ser social (talvez j no auto-

58

suficiente), que depende dos outros para atingir a sua prpria felicidade,

antecipando assim vrios sculos o que hoje tido como uma certeza.

Mas mais importante para o que estamos aqui a tratar, Espinosa,

contrariando as ideias estabelecidas que apresentavam a maioria das pulses,

motivaes, emoes e sentimentos humanos como o ponto mais fraco da

pessoa e que muitas vezes contribuam para a condenao da sua alma,

apresenta estes conceitos (a que chama afectos) como um ponto central da

humanidade.

Karl Marx (1818-1883) no tem obras propriamente de cariz tico, acabando

mesmo por submeter a tica poltica e economia. No entanto muitas ideias

transparecem, desde logo, pela clara recusa e mesmo combate ao cristianismo e

tica crist. Defendendo uma sociedade sem classes com a consecutiva

emergncia de um homem novo, Marx antev nessa mesma sociedade a partilha

comum e total de bens e a ausncia de egosmo, assim como a abolio da

famlia, do casamento, da monogamia e da propriedade privada (Marques, 2000).

Numa sociedade assim, comunista, deixa de fazer sentido um estado,

exrcitos, polcias ou religio, justificando mesmo que s existe lugar para esta

ltima pela simples razo de que a religio s necessria para manter e

justificar as desigualdades sociais, atravs da alienao do homem, que se

projecta numa salvao a acontecer num futuro distante (o paraso aps a morte)

e para a qual necessrio tolerar e suportar o sofrimento na vida terrena.

O homem novo, defendido por Marx, seria ento um homem social, livre de

explorao por outros homens, livre da alienao religiosa, livre para a satisfao

das suas vocaes(5).

Friedrich Nietsche (1844-1900) deixou uma vasta obra em torno da moral,

em alguns aspectos prximo de Marx, noutros em profunda contradio. A

proximidade de Marx mais evidente surge na recusa da religio, para ambos um

autntico pio do povo. Mas enquanto Marx defendeu a vida dos homens numa

sociedade igualitria e comunista, Nietsche, pelo contrrio, defende que um

homem distinto, conhecedor, nobre e com convices prprias, no tem qualquer

atraco pela igualdade e afasta-se da multido dos outros homens afim de no

se corromper e no conviver com a vulgaridade. Para atingir este nvel de

superioridade e nobreza, apenas reservado aos novos e aos fortes, era necessria 5 As tentativas de impor este homem novo defendido por Marx fracassaram, concorrendo vrias vezes para situaes de tirania, assassinatos em massa, pobreza generalizada, atraso tecnolgico, destruio, traio e roubo. Foram Lenin, Stalin e Mao os principais exemplos deste levar at ao limite a concepo de sociedade comunista sonhada por Marx e seu seguidor e amigo Engels. Conf.: Marques (2000)

59

uma educao de excelncia, fomentadora da vontade de poder e estimuladora

da fora criativa, opondo-se a esta educao o ensino pblico estatal atravs do

qual apenas se conseguia a criao de rebanhos dceis, conformistas, ignorantes

e culturalmente degenerados (Marques, 2000)(6).

Seria a autodisciplina, o exigir cada vez mais de si prprio, e o

conhecimento aprofundado, longe das massas (solitrio) que conduziria o

homem condio sobre-humana, numa sintonia com a teoria do eterno

retorno(7).

Para alm destes trs autores, outros existiram que contriburam para

mudar a forma como o homem, durante sculos, se foi vendo a si prprio. Basta

pensarmos em Coprnico ou em Darwin. Pelo primeiro o homem deixa de ser o

centro do Universo e como tal, sujeito a leis e foras que desconhecia. Pelo

segundo colocada em questo a ideia de uma espcie humana privilegiada no

desenvolvimento da vida, assim como o de uma origem unvoca e muito menos

divina.

A acompanhar estas mudanas nas ideias e na cincia, assiste-se a

divergncias dentro da igreja catlica com as consequentes rupturas.

Simultaneamente, assiste-se a um enfraquecimento da prpria f dos homens e a

um esvaziar progressivo das igrejas, especialmente j no sculo XX.

Ou seja, enquanto as razes religiosas do consenso tico e metafsico

estavam se fragmentando, o progresso das cincias minava as interpretaes

estabelecidas quanto ao lugar do homem no mundo e at ao cosmos.

(Engelhardt, 1998: 28). Nos dias de hoje, com a enorme evoluo das cincias em

geral e da biotecnologia em particular, vo sendo desvendados os segredos da

natureza e do homem e ao mesmo tempo, raramente existem verdades acabadas,

conceitos definitivos.

6 Na obra A genealogia da moral que data de 1877, Nietsche (1997) afirma que Deus uma fantasia humana que resulta tambm duma inverso de papis, em que os bons passaram a ser os maus e vice-versa. E explica: os bons seriam os aristocratas, os fortes, os ricos, os poderosos, os guerreiros. Tudo o que faziam era bem feito e detinham o poder para o impor aos outros. Os maus seriam os fracos, a plebe, os pobres. S que estes ltimos insurgiram-se contra a ordem estabelecida e, para serem eles os bons, num acto de vingana, criaram um Deus, nica fonte de todo o bem, que premeia e que castiga. A sua bandeira a pureza, a pobreza, a submisso 7 Contrariamente ao que muitas vezes se afirma, Nietsche nunca defendeu o imperialismo, o racismo ou a xenofobia e como tal, nunca defendeu uma sociedade construda pela pureza de sangue. Antes pelo contrrio, fortemente crtico dos totalitarismos. Assim, tal como aconteceu com Marx, muitas das ideias de Nietsche foram desvirtuadas e levadas ao extremo atravs de regimes polticos como o nacional-socialismo e o fascismo, ambos claros exemplos do que tanto detestava: a vitria da vulgaridade, o esmagamento da liberdade do indivduo face ao poder colectivo e em alguns casos, a submisso a uma religio. Conf.: Marques (2000)

60

Hoje impossvel pensar a pessoa humana como abstracta e quimicamente

pura ou dar-lhe uma definio esttica e acabada. Um pouco como referiu Ortega

e Gasset: eu sou eu e a minha circunstncia.

Esta exigncia de elasticidade na definio do homem , em grande parte,

da responsabilidade da fenomenologia que elaborou uma concepo do homem

como ser relacional, em que este deixa de ser entendido como um simples facto

biolgico ou uma substncia metafsica dada plenamente desde a concepo,

mas antes como uma teia de relaes que comeam no seio materno e se

ampliam ao longo de toda a sua existncia (Pegoraro, 2002). Ou seja, a pessoa

no , antes vai acontecendo ao longo de toda a vida. Vai-se construindo na rede

das relaes que estabelece. Cada pessoa sempre um vir-a-ser, est

constantemente em projecto. Esta viso vem contribuir para a justificao de um

conceito que at aqui era aceite como um axioma: a liberdade. O homem um

ser livre ou um ser para a liberdade pela indeterminao do seu ser, no por

aquilo que mas pelo seu potencial, pelo que pode vir-a-ser. A excelncia do

homem reside na capacidade de se ultrapassar constantemente, podendo ser

sempre mais, algo apenas possvel na e pela liberdade (Nevesa), 1996).

Mas tambm a viso de pessoa como pessoa situada: situada na dimenso

familiar, com um conjunto de razes, como as tradies, a cultura, a casa, o

ambiente ou o patrimnio gentico; situada na dimenso social onde v

prolongadas as razes atrs referidas e onde surge o contacto (por vezes o

confronto) com outras pessoas situadas; situada no espao e no tempo, num

universo concreto em que se inicia e desenrola a sua existncia.

Foram Husserl, Sartre, Merleu-Ponty e mais recentemente Heidegger, os

principais pensadores da fenomenologia. Vale a pena evidenciar algumas ideias

centrais da obra Ser e Tempo, deste ltimo, tal como apontadas por Pegoraro

(2002):

o ser que ns somos um ser-a, na medida em que todos ocupam

um lugar;

o ser-a humano uma existncia aberta, pois o homem capaz de

perguntar, questionar, articular o sentido dos outros entes e a ordem

do mundo;

o ser-a humano um ser-com-os-outros, um conviver e partilhar a vida

com os outros homens e um ser solcito, atento e aberto ajuda;

o ser-a um ser-possvel, atento s possibilidades, um projecto

voltado para a frente, um vir-a-ser;

61

o ser-a tambm um ter-sido, na medida em que no seramos o que

somos se nada tivssemos feito para vir a ser o que somos.

A fenomenologia apresenta-nos ento o homem como um processo a

acontecer, um fluir no tempo (que vem do passado e se projecta no futuro) e num

espao (aberto convivncia com o m