219
JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE

JOSÉ CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA - Medicina, Saúde e Sociedade - Medicina Social

Embed Size (px)

Citation preview

  • JOS CARLOS DE MEDEIROS PEREIRA

    MEDICINA,

    SADE

    E SOCIEDADE

  • Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - Campusda USP - Ribeiro Preto, SP

    364.444 Pereira, Jos Carlos de MedeirosP436m Medicina, sade e sociedade / Jos

    Carlos de Medeiros Pereira. - RibeiroPreto: Complexo Grfico Villimpress,2003.

    1. 364.444 - Medicina Social. 2.Sociologia - Metodologia. I. Ttulo.

    Direitos autorais de Jos Carlos de Medeiros Pereira (e deAntnio Ruffino Netto em relao seo 7, Sobre tuberculose).

  • NDICEPREFCIO .......................................................................... 51. SOBRE MEDICINA SOCIAL ........................................15

    1.1. Medicina, sade e sociedade .................................172. MEDICINA PREVENTIVA, SADE PBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS ............................................. 33

    2.1. O projeto preventivista e a noo desubdesenvolvimento.................................................... 352.2. Problema social e problema de sade pblica ... 41

    3. SOBRE CONTRACEPO ............................................ 673.1. O direito de no ter filhos .................................. 693.2. Aspectos sociais da contracepo .................... 73

    4. SOBRE METODOLOGIA ..............................................974.1. Cientificismo versus ideologicismo ....................994.2. O especfico e o geral na cincia ........................ 104

    5. SADE E POLTICA CIENTFICA, TECNOLGICA E EDUCACIONAL ......................................................... 109

    5.1. Sociedade e educao mdica .............................. 1115.2. Sade e poltica nacional de cincia e tecnologia ........... 116

    6. ESPECIALIZAO NA MEDICINA ......................... 1356.1. Sobre a tendncia especializao na Medicina ...... .137

    7. SOBRE TUBERCULOSE (com Antnio Ruffino Netto) .... 1497.1. Mortalidade por tuberculose e condiesde vida: o caso Rio de Janeiro .................................... 1517.2. Sade doena e sociedade;a tuberculose o tuberculoso ..................................... 172

  • 8. DOENA DE CHAGAS RESENHA DE TESE ..... 1838.1. A evoluo da Doena de Chagas no Estadode So Paulo ................................................................ 185

    9. VRIOS ......................................................................... 1899.1. A enfermidade como fenmeno social ................ 1919.2. Sobre a etiologia social da sade e da doena ........... 1969.3. Ampliando o conceito de Medicina ..................... 2009.4. Medicina alm do biolgico ................................. 2049.5. Riqueza, poder e doena ..................................... 2109.6. Urbanizao, industrializao e sade ................. 2149.7. Fome e suprimento de alimentos ......................... 219

  • 5Jos Carlos de Medeiros Pereira

    PREFCIO

    Durante o ano de 2001 resolvi rever o conjunto de artigos devria espcie que havia produzido durante o perodo em que fuiprofessor de Departamento de Medicina Social da Faculdade deMedicina de Ribeiro Preto, da USP. Lendo-os e organizando-os,dei-me conta de que aqueles relacionados, de modo direto ou indireto disciplina, ainda poderiam ser teis. Talvez haja um pouco de vaidadeintelectual em tal constatao, admito. Mas entendo que, apesar deescritos h muitos anos, alguns deles pelo menos, suscitam questes,propem interpretaes e indicam formas de abordagem quepoderiam ser retomadas, corrigidas e enriquecidas por outros.

    Pensei em reescrever algumas partes. Mas lembrei-me de umconselho que meu falecido catedrtico, o Professor FlorestanFernandes, dava aos seus auxiliares: uma vez pronto um trabalhointelectual, revisto e achado conforme no momento em que foi escrito,ele no deve ser retomado. No entender dele, a obra j teria cumpridosua funo para o autor. Poderia, agora, auxiliar a outros que a lessem.Se o sujeito quisesse retormar o tema, que escrevesse outro trabalho,com base na literatura subseqente e no entendimento que passara ater do mesmo. Ora, aposentado, minhas leituras foram dirigidas aoutros caminhos. Conseqentemente, os acrescentamentos que fizesseresultariam apenas de um maior amadurecimento dado pelo tempo epor leituras no correlatas.

    Fiz, no entanto, pequenos ajustes. No compartilho mais,inteiramente, de um ou outro ponto de vista exarado na poca. Porisso, tomei a deciso de alter-los, nesse caso. Em outros, minhaviso se alterou, mas no a ponto de rejeitar integralmente o que foi

  • 6 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    escrito. Peo aos leitores que, algumas vezes, levem em consideraoo momento histrico, poltico e intelectual em que o artigo foi dado alume.

    Os leitores devem ter em conta que o perodo que vai darenncia de Jnio Quadros eleio de Fernando Henrique Cardosofoi, em geral, desfavorvel ao avano das Cincias Sociais.Pessoalmente, no entanto, sempre considerei que a cincia deve fazeras menores concesses possveis ideologia. Em razo, porm, daenorme tenso mundial, esta ltima tornou-se por demaispreponderante na produo cientfica na rea. bvio que asposies ideolgicas influenciam o trabalho intelectual no sentidode condicionar e mesmo determinar a escolha dos temas a serempesquisados, as tcnicas de investigao e, sobretudo, asinterpretaes. Se em condies normais, esses excessos tendem aser circunscritos, em tempos de enorme politizao da vida social,eles tendem, pelo contrrio, a avultarem.

    Um dos aspectos que mais me chamou a ateno, comoprofissional da rea, foi a tendncia generalizada, nessa poca, popularizao, na academia, mas tambm em outros crculos, deum marxismo vulgar, mecanicista, sem mediaes. Essa correntede pensamento foi degradada situao de um sistema ultra-simplificador da complexidade do mundo social, especialmente porpessoas sem nenhuma formao histrica e sociolgica. Asofisticao do pensamento foi varrida muitas vezes. O princpio dosim/no, preto/branco, reacionrio/progressista etc. etc.freqentemente tomou o lugar de formas mais complexas deraciocnio. Entendo que no colaborei para que tal degradaoocorresse. Os leitores aquilataro se mantive o nvel de que estouacusando outros de terem rebaixado. De qualquer modo, noto, comsatisfao, que esses tempos esto ficando para trs.

    Sem dvida, o modo simplista de fazer cincia tambmpermaneceu, preciso que se diga. Muitas vezes, contra ele, quese apelou, canhestramente, para o marxismo. Ou seja, buscam-sedados, nem sempre bem coletados, e procura-se, sem praticamente

  • 7Jos Carlos de Medeiros Pereira

    nenhum marco terico, estabelecer alguma correlao entre eles.Como afirmo no artigo Cientificismo versus ideologicismo, semesse marco, que daria sentido s relaes buscadas, o investigadorpode ficar ao nvel do observado, da aparncia, no entendendo,na verdade, aquelas relaes. Com freqncia, pressupe umacausalidade inexistente na correlao observada, chegando aconcluses errneas. Na Medicina Social notei muitas vezes esseerro. Para dar um exemplo banal e tosco: verifica-se a existncia deuma correlao positiva entre nmero de mdicos por habitantes eboas condies de sade. Da no se pode inferir, sem mais aquela,que mdicos esto associados, causalmente, com boa sade. Namaior parte dos casos a boa sade tambm est associada,estatisticamente, existncia de maior nmero de automveis, detelefones, de aparelhos de ar condicionado e assim por diante. Ouseja, de modo geral, o que ocorre, que os mdicos, como quaisqueroutros profissionais, tendem, simplesmente, a se estabelecer naqueleslugares onde podero ser melhor remunerados.

    Os leitores iro verificar que naqueles trabalhos que tratammais especificamente da Medicina Social, procurei entender a sadee a doena, assim como a assistncia mdica, como fenmeno social.Ou seja, buscando as determinaes, scio-econmicasprincipalmente, responsveis pela manifestao da enfermidade epelo modo como ela enfrentada pela assistncia mdica. quenessa disciplina no se trata de estudar a histria natural da doenanum indivduo mas numa populao, examinando-se os diferentesriscos a que esto expostos os vrios grupos constituintes dasociedade e porqu. Importam mais as relaes entre os homensdo que entre eles e o meio natural. A Medicina no vista comotendo completa autonomia frente sociedade, mas encarada, elaprpria, como sendo determinada e condicionada, em grande parte,pela estrutura econmica e social. Vai-se at mais alm, em algunsartigos, examinando-se as relaes da cincia, e sobretudo datecnologia, com o poder. Como no podia deixar de acontecer,numa disciplina social, a historicidade das prticas e saberes que tm

  • 8 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    como objetivo a preveno e a cura da enfermidade tambm discutidaem alguns pontos. Recomendo queles que desejarem situar-serapidamente frente s questes expostas, irem ao final do volume.Em trs pequenos artigos jornalsticos (A enfermidade comofenmeno social, Sobre a etiologia social da sade e da doena eAmpliando o conceito de Medicina), abordo-as de modo mais oumenos sumrio.

    Os que queiram informar-se mais a respeito do assunto podemler o primeiro dos artigos reunidos neste volume: Medicina, sade esociedade. Nele, aproveito contribuies tanto da EpidemiologiaSocial como da Sociologia da Sade para expor como a MedicinaSocial explica os dois processos a que me referi acima (sade-doenae assistncia mdica). Esclarece-se que a disciplina concebe aMedicina como uma cincia histrico-social, encarando os homens,sadios ou doentes, no apenas como corpos biolgicos, mas,sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas,membros de determinadas classes e grupos sociais, participantesde relaes sociais especficas. Insisto que se trata de realizar umarotao de perspectivas, vendo e examinando o mesmo objeto deinvestigao de um ponto de vista substancialmente diferente. Ouseja, v-se a enfermidade no s como fenmeno natural e portanto,tcnico, mas tambm como fenmeno social e, conseqentemente,como problema social, poltico e cultural. De fato, todos os homensparticipam de sociedades histricas, divididas, conflituosas,competitivas, em que os diferentes segmentos sociais tm desigualpoder, riqueza e prestgio. Por isso que a Medicina Social notoma a presena do homem numa determinada cadeia epidemiolgicacomo inevitvel. essencial, para a disciplina, discutirem-se osdeterminantes extramdicos da assistncia mdica, que o outroconjunto de fenmenos pelos quais ela se interessa. Vista comouma instituio social, as prticas sociais da Medicina claramenteguiam-se, o mais das vezes, por outros critrios que no somentemdicos: em termos societrios, polticos e econmicos, umas vidastm sempre mais valor do que outras.

  • 9Jos Carlos de Medeiros Pereira

    Nos dois artigos seguintes discuto certos aspectos de disciplinascorrelatas Medicina Social: a Medicina Preventiva e a Sade Pblica.Em O projeto preventivista e a noo de subdesenvolvimento, tratode uma vinculao, que cria existir, entre mudanas no entendimentodas causas do subdesenvolvimento e as transformaes pelas quaistinha ou estava passando o projeto orientador da Medicina Preventiva.Explico-me: a interpretao do subdesenvolvimento evoluiu de umaviso culturalista (teoria da modernizao) para uma viso sobretudode natureza poltica e econmica (teoria da dependncia). No casoda Medicina Preventiva, a interpretao evoluiu desde uma viso deque a doena seria devida a fatores ligados a hbitos culturaisprincipalmente, para a da Medicina Social, em que a doena relacionada estrutura social global.

    O segundo artigo (Problema social e problema de SadePblica) procura mostrar relaes de vria ordem entre os dois tiposde problemas. Nele discuto algumas questes comuns a ambos, comoas dificuldades na definio do que seja problema. A quem compete adefinio? Quais os vieses, sobretudo de natureza ideolgica, queinterferem nessa definio e, conseqentemente, na proposta desolues? Insisto em que o planejamento destas depende muito domodo como se encare o sistema social, poltico e econmico. Depois,da capacidade de profissionais da rea em interessar um grupo socialsuficientemente poderoso para que encampe tais solues ou at asintegre em seu projeto de transformao social. Enfatizo o fato deque praticamente impossvel um consenso a respeito do assunto, jque os vrios grupos sociais tm objetivos e valores no s diversoscomo contraditrios. Uma certa possibilidade de superao dessasdissenses poltico-ideolgicas estaria, em meu entender, nanecessidade de os diagnsticos e solues se alicerarem em modelosinterpretativos teoricamente mais sofisticados. Insisto em que semque isso se d, as intervenes planejadas para corrigir o problemapodem conduzir, elas prprias, a conseqncias negativas noprevistas.

  • 10 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    O tema da contracepo sempre me atraiu porque estintimamente relacionado ao de desenvolvimento ecnomico e social.Creio que praticamente todos os que se debruaram sem viesesideolgicos (e principalmente religiosos) sobre ele, concordam queuma das principais causas da misria do que era chamado TerceiroMundo estava na procriao exagerada. Paternidade e maternidadeirresponsveis, infelizmente, eram (e ainda so) estimuladas, emmuitos pases subdesenvolvidos, por lderes polticos, religiosos emilitares. Na verdade, esto eles entre os grandes culpados peloseu atraso em vrios e importantes nveis. Nenhum pas pode crescereconomicamente e se desenvolver social e culturalmente quando suastaxas de natalidade so demasiado altas. Os investimentos para semanter saudvel, educar e profissionalizar uma pessoa de modo atorn-la capaz de viver produtiva e responsavelmente na sociedademoderna so muito elevados. Tais lderes parecem imaginar que seDeus no prouver, o Estado prover. De onde tirar os recursos coisa de somenos importncia. claro que s o controle danatalidade no basta. Tanto assim que em todos os pases em que osocialismo do tipo sovitico ou assemelhado conquistou o poder,uma rgida poltica de restrio de nascimentos foi posta em prtica.Nem sempre da resultou maior riqueza.

    O primeiro dos artigos sobre o tema (O direito de no terfilhos) restrito e mais vinculado discusso que ento se tinhaestabelecido na imprensa sobre o planejamento familiar. J o segundo(Aspectos sociais da contracepo) mais amplo. Nele discutocriticamente, com certa profundidade, os argumentos de naturezaeconmica, social e poltica favorveis e contrrios poltica deregulao da fertilidade. O governo de ento (presidido pelo Gal.Ernesto Geisel), mudara muitas das posies assumidas pelasadministraes anteriores a respeito do problema populacional.Mostro que os debates tinham, compreensivelmente, carterprofundamente ideolgico. Relativizo, no entanto, o exagero dasposies defendidas, j que, historicamente, as relaes entrepopulao e processos sociais complexos variaram muito no decorrer

  • 11Jos Carlos de Medeiros Pereira

    do tempo e de um pas para o outro. Concluo, porm, que pr disposio da populao, sobretudo das mulheres, conhecimentos emeios para que pratiquem a contracepo constitui um dos deveresdo Estado moderno e um direito bsico delas.

    A educao uma daquelas reas na qual quase todos se julgamcom competncia para meter o bedelho. Esta uma tendnciaaparentemente incoercvel. Os profissionais que nela militam queixam-se, com razo, dessa intromisso, freqentemente no s abusivacomo inepta. Confesso que eu tambm, muitas vezes, nela meintrometi. Aqui, porm, trata-se de uma incurso mais restrita. Numseminrio sobre educao mdica fui solicitado a proferir uma palestra(Sociedade e educao mdica). Divergi dos organizadores doevento. Em geral, entendiam, que o ensino mdico poderia ter grandeinfluncia no modo como a profisso estava ou viria a ser exercida.Segui o ponto de vista normalmente defendido pelos socilogos,destacando o papel conservador da educao. Assim sendo, difciltransform-la num agente de mudana social. No caso especfico daeducao mdica, apontei o fato de que a formao do mdico determinada fundamentalmente pela prtica profissional e no oinverso.

    Nesse sentido, o artigo Sobre a tendncia especializaona Medicina constitui, de certa forma, uma demonstrao do queafirmei naquele seminrio. Nesse trabalho, fao um apanhado dasexplicaes do processo de especializao. No caso da expansoextraordinria da especializao na Medicina (em geral tida comoexcessiva, no Brasil, pelos que estudam a organizao dos serviosmdicos), aponto, exatamente, a poltica de ateno mdica dosistema oficial de Previdncia Social como o grande favorecedorda tendncia. claro que havia e h outros fatores: a prefernciados prprios pacientes, sobretudo dos que podem pagar; asvantagens para os prprios mdicos, que, especializando-se,procuram fugir da acirrada competio profissional; o interesse daindstria produtora de equipamento mdico sofisticado etc.Obviamente, essa tendncia tornou os mdicos menos capacitados a

  • 12 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    encarar seus pacientes como um todo no s biolgico, mas, sobretudo,psico-social e cultural.

    As colocaes acima, no entanto, no significam que a polticaeducacional e, sobretudo, a voltada para a cincia e a tecnologia,no possa ter enorme importncia no desenvolvimento scio-econmico de um pas. As vrias reas do social se interinfluenciam.O sistema educacional, desde que devidamente gerido por uma polticaconveniente, pode reagir sobre o meio social global, alterando-osignificantemente. Os objetivos da educao e da sade so definidosem nvel societrio. Mas, dependendo da estratgia especfica, asreaes corporativas podem ou no trazer benefcios para aqueledesenvolvimento. No artigo Sade e poltica nacional de cincia etecnologia indico vrios pontos que, em meu entender, estavamdificultando a realizao desse papel positivo. No caso daUniversidade, apoiando-me em texto de Florestan Fernandes, faoreferncias pesquisa intil, ao desperdcio de recursos materiais ehumanos, predominncia de interesses individuais e grupais emdetrimento dos objetivos mais altos da cincia, dependncia culturalprevalecente em muitos nichos acadmicos, ao dogmatismo existenteem outros etc. O arrolamento de tais pontos talvez possa contribuirpara o debate a respeito do tipo de conhecimentos a seremproduzidos no ambiente universitrio; conseqentemente, para queeles sejam aproveitados construtivamente pela sociedade.

    Em 1981 e 1982, escrevi alguns trabalhos em parceria commeu amigo e colega de Departamento, o Prof. Antnio Ruffino Netto.A tuberculose, na qual ele era (e ) interessado, uma doena queexemplifica bem um dos pontos ressaltados nos estudos de MedicinaSocial. Ou seja, o de que a causa necessria de uma doena nemsempre suficiente para desencade-la. Ruffino havia levantadodados sobre a mortalidade pela molstia no Rio de Janeiro. Intrigadocom as variaes de velocidade de declnio apresentadas pela curva,procurou-me para que o auxiliasse a analis-los. Da colaboraoresultou o artigo Mortalidade por tuberculose e condies de vida:o caso Rio de Janeiro. Verificamos a existncia de 3 regresses

  • 13Jos Carlos de Medeiros Pereira

    distintas. Creio que conseguimos, alicerados no exame de fatoresde ordem social, econmica e cultural, esclarecer as razes dasvariaes. De fato, no caso dessa doena, alteraes nas condiesde vida das pessoas so fundamentais para explicar sua incidncia,prevalncia e letalidade. Conclumos que, apesar de ser marcanteo impacto determinado pelos mtodos especficos de controle datuberculose, no menos significativo o efeito dos mtodosinespecficos de controle (melhoria das condies de vida).

    Posteriormente, resolvemos produzir um trabalho mais geral.Nele, tentamos mostrar que os ciclos biolgicos, descritos no quese chama a histria natural da enfermidade, no esgotam o seuentendimento. Esses ciclos foram exaustivamente estudados pelaEpidemiologia e Sade Pblica. Mas, em nosso entender, para que oestudo ficasse completo, seria preciso atentar para o ciclo social.Neste, o homem histrico, concreto, entra em relaes com os outroshomens. Tais relaes, por sua vez, so condicionadas e mesmodeterminadas pela estrutura scio-econmica inclusiva. Da porquetermos sugerido um modelo mais holstico de interpretao, tantoda doena individual como coletiva, em que o aspecto societriofosse considerado. Indicamos que, em seu estudo, os investigadorespensassem no apenas num ciclo, representado pela letra O, masem dois. O esquema se transformaria num 8, tendo o homem comoponto comum. Desta forma, ficaria claro que nem sempre inevitvel que os homens participem de determinada cadeiaepidemiolgica. Isso levaria mais facilmente o investigador e otcnico, em suas interpretaes e nas solues propostas, aconsiderar a estrutura social e suas caractersticas especficas, quefazem com que a doena se individualize em uns homens e no emoutros.

    A tese de doutoramento do Prof. Luiz Jacintho da Silva,intitulada A Evoluo da Doena de Chagas no Estado de SoPaulo, defendida em 1981, trata de outra doena, a de Chagas,com importante determinao social. Por isso inclu a resenha quedela fiz no livro que organizei. Como muitos diziam, a doena de

  • 14 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    Chagas propagava-se, em grande parte, porque os homens viviamem habitaes mais apropriadas a barbeiros do que a eles. O autor,em seu trabalho, mostra como a alterao do espao geogrfico escio-econmico, pela cafeicultura, facilitou a disseminao doTriatoma infestans. Com a desarticulao desse espao (onde aendemia estava presente) e o surgimento, nele, de outra organizaosocial, praticamente desapareceu, no Estado de So Paulo, atransmisso natural da doena. Luiz Jacintho no s estudou o contextohistrico da doena, mas procurou inseri-lo numa totalidade. Alm domais, trata o social no s como caractersticas dos sujeitos, mas asv como produto de foras scio-econmicas mais profundas.

    Reiterando o que disse no incio deste prefcio, espero que osartigos aqui reunidos tenham utlidade para muitos dos que os lerem.Entendo que, pelo menos, desempenharo funes didticas. Umpouco mais pretenciosamente, talvez venham a ter tambm implicaestericas. Dou-me por satisfeito se contriburem para uma melhorcompreenso dos determinantes sociais da sade e da doena e daassistncia mdica.

    Jos Carlos de Medeiros Pereira Ribeiro Preto, setembro de 2002

  • 1. SOBRE MEDICINASOCIAL

  • 17Jos Carlos de Medeiros Pereira

    1.1. MEDICINA, SADE E SOCIEDADE*

    I INTRODUO

    Nosso propsito apresentar uma certa rotao de perspectivasquanto ao modo de analisar tanto o processo sade-doena como aassistncia mdica. O primeiro freqentemente pensado como sendoquase exclusivamente biolgico. Em relao segunda ela vista,demasiadas vezes, como se se orientasse sobretudo por consideraesde ordem mdica. Ora, sade e doena so objetos ao mesmo temposociais e biolgicos. Os homens so sadios, enfermam e morrem nosegundo apenas variveis biolgicas, mas por razes, o mais das vezes,sociais. Quanto assistncia mdica, mais facilmente se percebeque ela constituda por um conjunto de prticas sociais que obedecema poderosos determinantes econmicos, polticos e de outras ordenstambm no-mdicas.

    A assistncia mdica , inquestionavelmente, objeto de estudodas Cincias Sociais, principalmente da Sociologia. Trata-se, por certo,de uma instituio social, com a especificidade de se constituir de umcomplexo de aes e relaes sociais referidas rea mdica. Maspode ser objeto tambm de uma disciplina de fronteira qual nosreferiremos adiante. Tal disciplina, em outra de suas vertentes, volta-se, igualmente, para o estudo das determinaes extrabiolgicas dasade e da doena, principalmente desta, quando encarada no emtermos de indivduos isolados, mas de uma populao que apresentasegmentos sociais vivendo em condies diferenciadas. Assim, quandose analisa como a enfermidade ocorre e se distribui na populao

    * Publicado originalmente em Estudos de Sade Coletiva, n 4, pp. 29-37, Rio deJaneiro, novembro de 1986.

  • 18 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    descobre-se que o fato de ela se individualizar em determinadosorganismos biolgicos , em grande parte, uma conseqncia de seremesses organismos membros participantes de determinadas relaessociais.

    II A MEDICINA SOCIAL

    Sem dvida, as vrias cincias sociais poderiam dar conta dainvestigao dos determinantes da assistncia mdica, como jdissemos. Por outro lado, elas poderiam tambm estudar: a) osdeterminantes sociais que fazem com que um dado fenmeno narea da Sade Coletiva seja considerado normal ou patolgico; b)ou, ainda, os fatores e condies igualmente sociais que levariam talfenmeno a se manifestar diversamente nos vrios segmentos sociais(classes, fraes de classe, grupos ocupacionais, de renda etc). Noentanto, especialmente de duas dcadas para c, foi sedesenvolvendo uma novel disciplina, a Medicina Social, que se voltouespecificamente para o estudo dessas duas ordens de questes(15).A par de outras razes, talvez se possa dizer que, para o surgimentodesta, militaram desdobramentos havidos nas investigaesrealizadas em dois campos de estudo aparentemente distintos. Numcaso, a Epidemiologia, disciplina mdica, passou a se interessar, cadavez mais, pela convergncia do social e do natural na explicao damanifestao do fenmeno doena. Verificou que este depende,freqentemente, de condies suficientes, de natureza social, tantoou mais at que de causas necessrias, de natureza biolgica. De seulado, trabalhadores intelectuais na rea da Sociologia e, maisrecentemente, na da Economia, estabeleceram claramente que ofuncionamento e a estrutura do sub-sistema social representado pelaassistncia mdica obedecem a razes extramdicas. Nada maisnatural que sendo ambas as questes vinculadas, de um modo oudoutro, Medicina, fosse adquirindo contornos a disciplina a que nosestamos referindo.

    Na verdade, algumas correntes heterodoxas dentro da prpria

  • 19Jos Carlos de Medeiros Pereira

    Medicina, gozando de maior ou menor prestgio conforme o momentohistrico e os paradigmas cientficos pelos quais ela se norteou,freqentemente consideraram o fato de os homens doentes seremtambm participantes de determinadas relaes sociais, as quais preciso levar em conta. Especialmente nos ltimos anos, por influnciade tais correntes, a Medicina vai deixando de ser quase que apenas oconhecimento (biolgico principalmente) da doena e dos meios decur-la e/ou a cincia do corpo humano, normal e patolgico. Umnmero significativo de trabalhadores na rea vai percebendo, cadavez com maior clareza, que a explicao das doenas e sua cura facilitada pelo conhecimento do contexto social em que vivem aspessoas. Bem ou mal, eles tm buscado explic-las atravs dareferncia a fatores sociais, ainda que, o mais das vezes, esse socialseja encarado como constitudo por caractersticas de pessoas, na jtradicional concepo multicausal da doena. Apesar disso, naatualidade, muitos dos cultores da disciplina mdica procuram ampliaro objeto da mesma, a maneira de represent-lo cientificamente e omodo de apreend-lo. Cada vez mais, em face disso, cremos que aMedicina tender a ser concebida tambm como uma cincia histrico-social, percebendo que as caractersticas dos seres humanos (doentesou no) so sobretudo um produto de foras sociais mais profundas,ligadas a uma totalidade econmico-social que preciso conhecer ecompreender para explicarem-se adequadamente os fenmenos desade e de doena com os quais ela se defronta.

    Passando a Medicina a ser encarada como atrs, suas prticassociais puderam vir a ser, tambm, objeto de investigao mdica eno apenas de alguma cincia social. De qualquer forma, essas novasconcepes facilitaram a constituio da Medicina Social, voltadapara o estudo tanto dos processos que mantm a sade ou provocama doena como das prticas sociais que procuram recuperar oumanter aquela. Trata-se de uma mudana qualitativa, porque o objetode tal disciplina no representado por corpos biolgicos, mas porcorpos sociais. No se trata, to-somente, de indivduos, mas desujeitos sociais, de grupos e classes sociais e de relaes sociais

  • 20 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    referidas ao processo sade-doena. Realizada tal mudana, asprticas sociais da medicina e a doena seriam objeto de investigao,especificamente, dessa disciplina social, que se poderia vincular Medicina desde que ela fosse concebida como uma cincia quetivesse um objeto social e natural ao mesmo tempo.

    A rotao de perspectivas quanto ao modo de encarar einterpretar esses objetos de estudo representa uma ruptura emrelao corrente positivista predominante. Tal rotao faz avanara interpretao, introduzindo tipos diversos de explicao, sobretudosociolgica. O uso deles pela Medicina Social permite a inserodos fatos observados e das relaes descobertas em teorias maisabrangentes; permite ver coisas novas, como se elas estivessemsendo criadas pelo investigador porque, agora, fatos conhecidosso olhados a partir de outros pontos de vista, embora tambmconhecidos(16: 101). certo que os paradigmas da Biologia, de modogeral usados na Medicina, so menos controvertidos. Eles permitem,inclusive, que quase todos os investigadores utilizem o mesmo modelode anlise, ao qual se conformam, Mas tal procedimento geramenores oportunidades de questionamento e, conseqentemente,de reflexes sobre as questes estudadas(7). Ora, nas CinciasSociais inexiste um paradigma nico sobre o qual se assente umcrescimento cientfico cumulativo. Sua existncia implicaria numacordo entre seus grandes cientistas quanto concepo da sociedade,o que seria praticamente impossvel pois esta, ao contrrio dos objetosnaturais com os quais lida a Biologia e outras cincias naturais, plena de divises e conflitos dos quais o prprio investigador parte.Mas, com isso, o avano proporcionado pode ser significativo: umacriatividade mais expressiva, mais profcua, cientificamente falando,que acaba produzindo resultados tambm significativos.

    III A ENFERMIDADE COMO FENMENO SOCIAL

    Adotar a perspectiva da Medicina Social implica em encarar aenfermidade como um fenmeno social tambm. Tom-la como um

  • 21Jos Carlos de Medeiros Pereira

    fenmeno natural, como habitualmente se faz, tem implicaes polticasinegveis: permite transformar problemas sociais em problemastcnicos, com solues dependentes da adoo de procedimentosigualmente tcnicos e no polticos. Diga-se que o primeiro tipo desoluo o geralmente disponvel pelos servios mdicos. Tal fatocontribui, certamente, para a Medicina tender a adotar antes um tipode explicao e no outro. No nos esqueamos que ela , em grandeparte, uma tcnica de interveno. Esta caracterstica, e a formao,da mesma forma, muito tcnica dos mdicos, favorecem a adoo deuma concepo fragmentada do homem e da doena. Talfragmentao, feita com o objetivo de melhor analisar, para conhecer,o objeto de estudo, impede que este seja inserido num todo socialcoerente. Tratando-se, porm, de objeto e de problemas sociais,idealmente se exigiria, de quem explica e prope solues, a percepode como se estrutura e funciona o sistema social no qual um se inseree os outros ocorrem. A proposta da Medicina Social pretendepreencher essa lacuna, procurando ultrapassar o nvel deconcreticidade dos fenmenos mdico-sociais, no os tomando comose eles fossem transparentes, como muitas vezes se faz. Oferecendouma viso mais abrangente da doena e dos homens doentes, essadisciplina pretende chegar a uma interpretao sociologicamente maisrigorosa dos fenmenos e a uma proposio de solues socialmentemais relevantes. Ou seja, ela se prope ultrapassar a mera aparnciados mesmos, para chegar, realmente, ao que considera a sua essncia.

    Para a Medicina Social boa parte das doenas constitui umamanifestao muito concreta das relaes sociais (sobretudo deproduo) de que os homens participam. Por isso que elas seapresentam to diversamente, se consideramos os diferentessegmentos sociais. Vinculando-se ao modo como os homens vivem,trabalham, se divertem, se relacionam enfim, a preveno daenfermidade, mantendo-se a sade, tem muito a ver com quaisquermelhorias nas condies de vida proporcionadas, entre outras coisas,pela diminuio da desnutrio, pelo acesso a moradias maisadequadas, pelo exerccio de um trabalho fsica e mentalmente menos

  • 22 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    desgastante etc. Em outras palavras, os homens enfermam e morremdesigualmente por pertencerem a uma e no a outra classe social,por exercerem diferentes ocupaes, por se vincularem a este ouaquele setor econmico (rural ou urbano-industrial por exemplo),por compartilharem culturas ou sub-culturas distintas etc. Isto queos faz correr riscos desiguais de contrarem molstias e de morrerem.Os trabalhadores rurais, por exemplo, correm mais riscos do queos burocratas do servio pblico por estarem muito mais expostosao binmio excesso de trabalho-consumo deficiente(8).

    Ainda que como fenmeno biolgico a doena possa tercaractersticas universais, podendo o homem ser encarado comoum ser isolado, da perspectiva da Medicina Social, fora de seucontexto social esse homem uma abstrao, algo que no existe.Ele participa de uma sociedade histrica, dividida, conflituosa,competitiva, em que os diferentes segmentos sociais tm desigualpoder, riqueza e prestgio. Por isso, uma viso reducionista doproblema de sade e doena, perdendo de vista essa totalidadesocial, acaba no proporcionando o entendimento procurado doproblema. A diviso deste em partes, para se proceder anlise,pode ser conveniente apenas quando, em seguida, faz-se a sntese,chegando a uma concepo enriquecida do conjunto do qual se partiu.S quando se tem um mnimo de percepo dos fatores sociaisprodutores da enfermidade que se pode compreender porque apresena da causa necessria de uma doena no necessariamentea desencadeia se no estiverem presentes as condies suficientespara que ela exista. nesse sentido que se pode dizer que a verdadeiracausa da tuberculose so as precrias condies de vida e no obacilo de Koch.

    Na explicao cabal da produo tanto da sade como dadoena entre os homens, na quase totalidade dos casos, preciso,pois, ter em conta as relaes sociais de que eles participam numarealidade social concreta. Nesse sentido que podemos ousar afirmarque se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, tambm incontestvel que se as pessoas tivessem outras condies de moradia e

  • 23Jos Carlos de Medeiros Pereira

    melhores condies de vida, a incidncia e a prevalncia de umadoena como a de Chagas possivelmente diminuiriam em proporomaior do que quando se tentam solues baseadas na noo de quesua causa fundamental a presena de triatomneos infectados. Damesma forma poderamos nos referir esquistossomose.Freqentemente se pensa em combat-la procurando melhoresmoluscocidas e no em fazer com que as pessoas vivam em condiesde no precisar entrar em contacto com guas infestadas. Num eoutro caso,quando a explicao da doena no contempla o social, assolues aventadas deixam intocada a estrutura social determinanteda doena

    o caso de muitas proposies epidemiolgicas que partemdo pressuposto da inevitabilidade da presena do homem numadeterminada cadeia epidemiolgica. Ora, se suas relaes com osoutros homens e com a natureza fossem diferentes da que estocorrendo naquele lugar e naquele momento histrico ele noparticiparia de tal cadeia. Sem que essas relaes sejam levadas emconsiderao, a Medicina, o mais das vezes, vai se limitar a enfrentara doena j produzida. Evidentemente, este modo de procederconstitui uma soluo correta em face do problema individualexistente, mas no como explicao e soluo, ao nvel coletivo, dofenmeno doena. O pressuposto da inevitabilidade desta se suascausas necessrias no forem afastadas assenta-se na tendncia dascincias naturais de se voltarem para as caractersticas universais daproduo dos fenmenos. Esta tendncia se vincula, por sua vez, suposio de que se est diante de um universo contnuo, em que asdiferenas pouco explicam. Ora, no este o caso de qualquerfenmeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em termossocietrios, cientificamente incorreto desconsiderar-se asdiferenas sociais. Se no nos voltarmos para elas, nossasconstataes a respeito, por exemplo, da incidncia e prevalncia dequaisquer doenas sero meras abstraes. No nos diro que gruposocupacionais ou fraes de classes sociais so afetados. De fato,como j nos dizia Marx, a populao uma abstrao se deixarmos

  • 24 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    de lado suas divises. em decorrncia do fato de as relaes sociais variarem

    historicamente que existe, tambm, uma historicidade das doenas.Dependendo da evoluo das condies especficas existentes numadada formao social concreta, umas doenas surgiro e outrasdesaparecero. A tuberculose, por exemplo, foi uma doenalargamente disseminada enquanto perduraram as condies deexistncia precrias determinadas, entre outras razes, pelaRevoluo Industrial. Neste sculo, entretanto, diminuiu de muitosua morbi-mortalidade sempre que essas condies melhoraram,antes mesmo de terem sido descobertos tuberculostticos eficazes.Da mesma forma, medida que uma sociedade passa depredominantemente rural a urbano-industrial sero diferentes asenfermidades que afetaro seus membros. Podero diminuir aszoonoses e verminoses mas aumentar os acidentes (de trabalho, detrnsito), as violncias ou as doenas cardio-vasculares. Em termosmais gerais, pensemos na passagem do mundo subdesenvolvido: adoena sobe dos intestinos para os pulmes. O que poludo agora o ar e no o cho(1).

    IV DETERMINANTES EXTRAMDICOS DAASSISTNCIA MDICA

    Tradicionalmente concebe-se a assistncia mdica como oconjunto de prticas sociais da Medicina visando, especificamente, apromoo da sade e a preveno e cura da doena ao nvel individual.No entrariam na definio aquelas atividades promotoras de sadeno exercidas por profissionais da sade, como tambm as medidascoletivas. H um certo consenso, por exemplo, de que o saneamento antes engenharia sanitria do que medicina. Nem mesmo as medidaslevadas a cabo pela medicina preventiva so sempre encaradas comoassistncia mdica. Esto tambm excludas a indstria farmacutica,de aparelhos hospitalares etc. Ceclia Donnangelo resume o que foidito afirmando que a assistncia mdica seria o conjunto de aes

  • 25Jos Carlos de Medeiros Pereira

    de diagnstico e teraputica dirigidas ao consumidor individual(3).H outras concepes de assistncia mdica mas, para nossospropsitos vamos nos cingir a esta para distingui-la de Sade Pblica,no sentido de medidas orientadas coletivamente visando o atingimentodos fins mencionados acima.

    Ainda que a assistncia mdica diga respeito exclusivamente atividade exercida por mdicos, de modo algum, como j foi dito, elase faz tendo em conta apenas critrios mdicos. que as prticassociais referidas constituem uma instituio social cujo funcionamentoe dinmica obedecem a determinaes extramdicas. Dificilmentesero os mdicos que, nas condies concretas de sua atuao,decidiro quem e como algum ser atendido e considerandocritrios to-somente mdicos. O mais das vezes, como umas vidastm mais valor do que outras em termos societrios, polticos eeconmicos, sero nesses termos que as decises sero tomadas.Ou seja, os pacientes sero assistidos em razo de sua capacidadede pagamento, ou porque podem exigir a assistncia mdica dadoo poder de que dispem ou, ainda, porque so consideradoseconomicamente mais produtivos do que outros. Sobretudo nassociedades capitalistas, em que h um quase completo domnio dosinteresses econmicos, os valores alheios medicina tendero, emmuito, a orientar as decises.

    Sendo assim, h necessidade de analisar mais profundamenteos aspectos sociais, polticos e econmicos responsveis pelodesvirtuamento dessa assistncia (em relao ao ideal expresso) demodo a no produzir os resultados que, medicamente, dela seriamesperveis na reduo, por exemplo, da morbi-mortalidade doconjunto da populao. Nessa anlise, uma das primeiras questesque chamam a ateno a tendncia de considerar a sade e adoena como sendo de responsabilidade individual. Esta , em grandeparte, uma conseqncia de modo predominante de pensar nassociedades capitalistas. Contudo, ela j era tambm a viso dominantena medicina. Mesmo antes do capitalismo a ateno mdica eraconsiderada uma questo individual(5). Alm do mais, agravando o

  • 26 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    problema, ao no se voltar para a determinao social da sade e dadoena, a assistncia mdica acaba atuando, muito freqentemente,mais sobre os efeitos do que sobre as causas.

    A determinao social da assistncia mdica claramentepercebida inclusive quando se estuda sua histria. Como nuncaexistiram sociedades histricas sem imensas desigualdades sociais,o que se vai observar que o tratamento e preveno da doenasempre variaram de um segmento social para outro. No capitalismo,especificamente, pode-se mesmo dizer que a proteo da vida e dasade depende de um clculo econmico. Isto visvel, por exemplo,na prpria distribuio geogrfica dos mdicos. Eles, como diz Illich,tm tendncia compreensvel de se instalarem onde o clima sadio,a gua pura e as pessoas podem pagar seus servios(6). Mas no s por regies, evidentemente, que a distribuio desigual. Omesmo se pode dizer em relao s vrias classes sociais. distribuio desigual dos mdicos pode-se acrescentar uma srie deoutros servios de sade, como hospitais, centros de sade,laboratrios, pessoal para-mdico etc. H uma hierarquia de tratamentoporque os corpos so vistos socialmente. Ou seja, eles se hierarquizamde acordo com sua produtividade, com o capital neles investido (porexemplo, num mdico investiu-se mais do que num professor primrio),com seu status, com seu poder. Muitas vezes, mesmo quando o Estadose volta (em termos de assistncia mdica) para a populao marginale o sub-proletariado porque est preocupado em diminuir as tensessociais, por exemplo.

    Evidentemente, numa sociedade capitalista, inevitvel quese faam tais clculos econmicos e polticos e se considere acapacidade de pagamento dos que se encontram enfermos. Afinalos recursos so sempre escassos (em face do modo como soestruturados os servios). Da ser necessrio que se tenha uma baseracional para decidir. Ao estabelec-la considerando coisas comoa produtividade ou a capacidade (expressa na possibilidade de pagar),o sistema social vigente pode tornar a diferenciao da assistnciamdica relativamente aceitvel para o conjunto da populao, porque

  • 27Jos Carlos de Medeiros Pereira

    se funda em distines tidas como socialmente normais em nossasociedade. claro que seria incorrer num mecanicismo poucodefensvel explicar toda e qualquer transformao no mbito daassistncia mdica como estando inteiramente vinculada aos interessesdo capital. Em qualquer sistema scio-econmico global as instituiessociais nele existentes tendem a funcionar de modo a reproduzi-lo.Assim sendo, a medicina, enquanto prtica social, acaba tendo essepapel no capitalismo como teria em outro modo de produo.

    Na verdade, muito interessante observar que a orientaocoletiva da medicina, enquanto assistncia mdica, muito maisexpressiva com o avano do capitalismo do que em modos deproduo anteriores. Os servios de assistncia crescemquantitativamente e segmentos sociais, at ento desassistidos, soincorporados ao cuidado mdico. Uma outra explicao para essaincorporao, alm das j mencionadas (preocupao com aprodutividade e controle das tenses sociais) estaria no fato de quetanto a indstria farmacutica como a de equipamentos cresceuenormemente nestas ltimas dcadas. Como o lucro dessasatividades s se efetiva atravs dos atos mdicos, que levam aoconsumo das mercadorias produzidas por essa indstria, elapressiona sempre no sentido de que os cuidados mdicos seestendam a uma poro maior da populao. evidente que a prpriapopulao, por sua vez, luta para que o Estado proporcione sempreassistncia mdica mais adequada, o que leva expanso da mesma,ainda que com diferenciao muito grande de qualidade, conforme seassinalou.

    A discusso sobre relaes da assistncia com a estruturasocial pode ser encarada ainda sob outros aspectos, mas vamosnos limitar a estes. Poderamos, por exemplo, discutir o enormedesenvolvimento do aparato tcnico dessa assistncia; a crescentepolitizao do ato mdico; os movimentos de contestao a essegigantismo tecnolgico; a contradio gerada pelos custos crescentesdessa assistncia, o que inevitavelmente vai lhe estabelecer um limite;as tentativas de racionalizao dos servios mdicos; o surgimento

  • 28 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    de medicinas alternativas etc. Os limites de espao nos obrigam,entretanto, a restringirmos nossa exposio aos pontos abordados.

    V CONCLUSES

    O desenvolvimento de uma disciplina como a Medicina Socialcontribuiu, ao lado de outras causas evidentemente, para esclarecera dupla natureza (biolgica e social) do objeto da Medicina. Oprocesso sade-doena tendeu, cada vez mais, a ser percebidocomo sendo determinado (em boa parte pelo menos) pelofuncionamento e dinmica do sistema social inclusivo onde eleocorre. Passaram a ser devidamente consideradas as diferenassociais na produo dos ditos fenmenos. Percebeu-se que sadee doena s so explicveis quando a sociedade deixa de ser vistacomo um todo homogneo, estvel e ahistrico e passa a ser, aocontrrio, visualizada como dividida em classes, estratos e grupossociais, freqentemente opostos e mesmo antagnicos. Sob esseprisma, foram inovadas as concepes metodolgicas quenorteavam o entendimento da enfermidade. Ultrapassando relaescausais imediatas, geralmente vinculadas apenas s caractersticasdo organismo biologicamente considerado, a rotao deperspectivas proporcionada permitiu chegar noo de totalidadesocial. Ou seja, entender que nem mesmo so as caractersticas sociaisdas pessoas que explicam boa parte das doenas, mas o conjunto deforas sociais mais profundas, as quais s podem ser adequadamentecompreendidas quando nos voltamos para o bosque, deixando de noscingir tanto s rvores que o compem. Em termos de explicao esoluo do problema doena, a novel disciplina tem mostrado queencarar o homem isoladamente, ou a populao indistintamente,implica, sem dvida, em construir uma abstrao inadmissvel.

    A explicao sociolgica dos fenmenos mdico-sociais,contudo, refere-se, principalmente, aos processos sociais vinculadoss prticas sociais da medicina (especialmente assistncia mdica). que, nesse caso, os fenmenos so inequivocamente sociais, com

  • 29Jos Carlos de Medeiros Pereira

    a especificidade de estarem vinculados rea mdica. A viso maisabrangente e totalizadora de como se estrutura, funciona e setransforma o sistema social, permite Medicina Social determinarcom mais preciso os aspectos extramdicos presentes na assistnciamdica. Tratando-se de uma sociedade dividida em segmentos sociaisque mantm entre si relaes de dominao-subordinao ao nvelscio-econmico e poltico, entende-se que, nela, a proteo da vidae da sade dependa de um clculo econmico. que, na verdade, talassistncia no prestada, exatamente, a corpos biolgicos mas acorpos sociais. O que est em jogo a produtividade dos mesmos,seu poder, sua riqueza, seu prestgio. Quem os possui recebe tratamento(ou melhor tratamento). No se pode, evidentemente, desconsiderara capacidade poltica das classes dominadas de lutar por uma melhorateno mdica, mas a expanso da mesma, ocorrida no capitalismo,vincula-se, em grande parte, ao processo de reproduo ampliada docapital. Ou seja, valores alheios ordem mdica, em geral, orientamas decises nesse campo.

    Enfim, uma diferente concepo geral do mundo e o domnio deoutro instrumental metodolgico, permitiram desenvolver um marcoterico de mais longo alcance seja no tocante explicao doprocesso sade-doena, seja na compreenso dos determinantes dasprticas sociais da medicina.Tornou-se evidente que, para isso, eranecessrio considerar a sociedade especfica em que esses fenmenosocorrem, com seu sistema de estratificao social, de produoeconmica e de distribuio de bens e servios. Sobretudo no caso daassistncia mdica, a perspectiva aberta pela Medicina Social apontouo fato de as solues aventadas, ao nvel individual e coletivo, basearam-se, freqentemente, numa percepo incorreta das relaes scio-culturais e dos interesses poltico-econmicos envolvidos. Se a visopredominante contribui, muitas vezes, para tecnificar variados problemasque so principalmente sociais, transformando-os em problemasmdicos, esta outra (ainda heterodoxa) tende a coloc-los no campoespecfico de sua resoluo: o poltico.

  • 30 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    RESUMO

    O artigo apresenta o ponto de vista da Medicina Social quantoao estudo tanto do processo sade-doena como da assistncia mdica.Nele, de incio, se aponta o fato de essa disciplina ter-se aproveitado,recentemente das contribuies feitas pela Epidemiologia Social (notocante interpretao social do processo sade-doena) e pelaSociologia da Sade (quanto determinao extramdica daassistncia mdica). exposto, em linhas gerais, o modo como essadisciplina explica os dois processos. Esclarece-se como ela concebea Medicina como uma cincia histrico-social tambm, encarando oshomens, sadios ou doentes, no apenas como corpos biolgicos mas,sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas,membros de determinadas classes e grupos sociais, participantes derelaes sociais especficas. Indica-se como a rotao de perspectivadecorrente, ao alterar o paradigma do investigador, permite a este vercoisas novas em relao aos mesmos fatos.

    Em seguida estuda-se mais de perto a enfermidade comofenmeno social. Mostra-se como v-la apenas como fenmenonatural tem enorme signficado poltico, pois transforma os problemassociais envolvidos na produo da doena em problemas tcnicos eno polticos. A Medicina Social, ao no fragmentar seu objeto, insereo fenmeno num todo social coerente, ao contrrio da Medicinatradicional. Sua proposta de investigao ultrapassa o exagerado nvelde concreticidade com que esta v o processo sade-doena,permitindo-lhe considerar outros aspectos essenciais do mesmo. que a nova disciplina entende que o estudo do homem, sadio ou doente,isolado de seu contexto social, constitui mera abstrao, j que eleparticipa de sociedades histricas, divididas, conflituosas, competitivas,em que os diferentes segmentos sociais tm desigual poder, riqueza eprestgio. Conseqentemente, no se pode tomar a presena do homemnuma determinada cadeia epidemiolgica como inevitvel. Ou seja, aMedicina Social volta-se para as diferenas sociais, considerando-asfundamentais.

  • 31Jos Carlos de Medeiros Pereira

    Na parte final discutem-se os determinantes extramdicos daassistncia mdica. Este seria o outro conjunto de fenmenos pelaqual se interessaria a disciplina examinada. Depois de se definir oque se entende por assistncia mdica, mostra-se como as prticassociais da mesma configuram uma instituio social. Tomando-acomo tal, verifica-se que a assistncia mdica raramente guia-sepor critrios to-somente mdicos: em termos societrios, polticose econmicos, umas vidas tm sempre mais valor do que outras. Asmesmas diferenas de tratamento so tambm claramentepercebidas quando se estuda a histria da assistncia mdica. que como os corpos so principalmente sociais, eles se hierarquizamde acordo com sua produtividade, com o capital neles investido,segundo seu status e poder. Mesmo quando a assistncia mdicase volta para as populaes marginais, o mais das vezes o que sepretende com ela diminuir as tenses sociais.

    O autor entende, contudo, que explicar toda e qualquertransformao no mbito da assistncia mdica como se vinculandointeiramente aos interesses do capital seria incorrer num mecanismoinadmissvel. Cr que para explicar cabalmente o processo emdiscusso seria preciso ter em conta toda a complexidade da realidadesocial, na qual os aspectos polticos e sociais, por exemplo,desempenham tambm um importante papel. Ainda que sendo asdeterminaes econmicas as mais evidentes, sem dvida, haveriaainda que discutir outros pontos, como a influncia da cincia e datcnica no aparato tcnico dessa assistncia, a crescente politizaodo ato mdico, os movimentos de contestao ao tipo de assistnciamdica hoje em voga, as tentativas de racionalizao dos serviosmdicos, o surgimento de medicinas alternativas etc.

  • 32 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    1 - Berlinguer, G., 1978. Medicina e Poltica, Cebes-Hucitec, So Paulo;2 - Conti, L., 1972. Estrutura social y medicina, in ALOISI e outros,

    Medicina y Sociedade, Editorial Fontanella, Barcelona;3 - Donnangelo, M. C. F., 1975. Medicina e Sociedade, Livraria Pioneira

    Ltda., So Paulo;4 - Donnangelo, M. C. F. e Pereira, L., 1976. Sade e Sociedade, Livraria

    Duas Cidades, So Paulo;5 - Gonalves, R. B. M., 1979. Medicina e Histria Razes Sociais de

    Trabalho Mdico, Dissertao de mestrado, Faculdade deMedicina da USP, So Paulo;

    6 - Illich, I., s/d. A Expropriao da Sade Nmesis da Medicina, EditoraNova Fronteira, Rio de Janeiro;

    7 - Kuhn, T. A., 1978, A Estrutura das Revolues Cientficas, EditoraPerspectiva, 2a. edio, So Paulo;

    8 - Laurell, A. C., 1981. Processo de trabalho e sade, Sade em Debate,n 11, Rio de Janeiro;

    9 - Laurell, A. C., 1983. A sade-doena como processo social, in Nunes,E. D. (org.), Medicina Social Aspectos Histricos e Tericos,cap. 4, Global Editora, So Paulo;

    10 - Pereira, J. C., 1983. A Explicao Sociolgica na Medicina Social, tesede livre-docncia em Medicina Social, Faculdade de Medicina deRibeiro Preto, USP, mim., Ribeiro Preto;

    11 - Pereira, J. C., 1984. O especfico e o geral nas cincias, Cincia eCultura, 36 (9), So Paulo;

    12 - Pereira, J. C. e Ruffino Netto, A., 1982. Sade-doena e sociedade; atuberculose o tuberculoso, revista Medicina, 15 (1/2), RibeiroPreto;

    13 - Ruffino Netto, A. e Pereira, J. C., 1982. O processo sade-doena esuas interpretaes, revista Medicina, 15 (1/2), Ribeiro Preto;

    14 - Singer, P. e outros, 1978. Prevenir e Curar O Controle Social atravsdos Servios de Sade, Forense-Universitria, Rio de Janeiro;

    15 - Teixeira, S. M. F., 1984. Investigaes de Cincias Sociais em Sade noBrasil, Cadernos EBAP, n 29, Fundao Getlio Vargas, Rio deJaneiro;

    16 - Weber, M., 1973. Ensayos sobre Metodologia Sociolgica, AmorrurtuEditores, Buenos Aires.

  • 2. MEDICINA PREVENTIVA,SADE PBLICA E

    PROBLEMAS SOCIAIS

  • 35Jos Carlos de Medeiros Pereira

    2.1. O PROJETO PREVENTIVISTA E A NOO DE SUB-DESENVOLVIMENTO*

    Quando, logo aps a Segunda Guerra Mundialprincipalmente, comeou-se a discutir mais intensamente as razesdo subdesenvolvimento, surgiu uma extensa e variada literatura arespeito, produzida sobretudo nos Estados Unidos, que relacionavao subdesenvolvimento inexistncia, nos pases do Terceiro Mundo,de uma mentalidade e um conjunto de valores que propiciassem ocrescimento econmico. Esta literatura se referia, entre outras coisas, falta de mentalidade empresarial, inexistncia de valores positivosligados ao trabalho duro e continuado (considerando-se os povosafricanos, asiticos e, de certa forma, tambm latinos, comodemasiadamente adeptos do cio), ausncia de preocupao como amanh, o que faria com que a poupana e o investimento fossemrelativamente baixos e assim por diante. Conseqentemente, asuperao da situao de subdesenvolvimento foi vista comodependendo, em grande parte, de um intenso esforo demodernizao cultural. Ou seja, ela se faria atravs de um processode mudana cultural ao cabo do qual os povos desses pases passassema ter mentalidade, valores, instituies etc. mais prximos aosimperantes na Europa Ocidental (no latina especialmente), Japo eEstados Unidos.

    Em face dessa interpretao do processo dedesenvolvimento/subdesenvolvimento, caberia aos pases tidos comodesenvolvidos o papel de mentores da transformao apregoada.* Publicado originalmente em Cincia e Cultura, 35(8) agosto de 1983, pp. 1075-7.Um trecho foi alterado porque divergia acentuadamente do modo de pensar atual doautor.

  • 36 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    Contribuiriam para a modernizao proposta oferecendo cursos deformao e treinamento de modo a formar quadros superiores paraos pases mais ou menos margem da civilizao ocidental (entenda-se, ainda no suficientemente vinculados ao modo de produocapitalista); fornecendo assessores s instituies governamentaisdesses pases; produzindo programas radiofnicos, televisivos ecinematogrficos em que o estilo de vida mais adequado situaode desenvolvimento e crescimento econmico fosse propagado;enviando missionrios que convertessem esses povos a um catolicismomenos tradicionalista ou, o que seria melhor, forma de cristianismoconsiderada como mais burguesa (as vrias seitas protestantes);exportando capitais e managers que difundissem as modernas tcnicasde organizao empresarial etc. Enfim, seria dever dos pasesdesenvolvidos compartilhar sua civilizao com os subdesenvolvidos.

    Paulatinamente, contudo, especialmente depois dos anos 60,foi ficando claro para os estudiosos do problema dosubdesenvolvimento menos comprometidos com o status quo, quea condio de subdesenvolvimento tem razes que vo alm de umsuposto atraso cultural. preciso sempre se perguntar: atraso emrelao a que? De fato, cada cultura tem valores prprios, de modogeral adequados consecuo dos fins maiores a que se prope.Sem dvida, h excessiva justificao ideolgica nas teorias queconsideram o subdesenvolvimento como decorrente,fundamentalmente, da espoliao sofrida pelos atuaissubdesenvolvidos em face dos desenvolvidos. Mas h que se tomartal possibilidade em considerao, sobretudo no caso de algunsdesenvolvidos, como a Gr-Bretanha em face da ndia por exemplo.Ou seja, se os fatores culturais no podem ser desprezados,igualmente no podem ser os econmicos, especialmente no casode algumas relaes histricas que se estabeleceram entre algunspases no decorrer do processo de desenvolvimento capitalistamundial. Vai uma distncia muito grande entre considerar um fatorcomo sendo causal a consider-lo como determinante. Os processossociais, na quase totalidade, possuem fatores multicausais.

  • 37Jos Carlos de Medeiros Pereira

    Na verdade, tanto a chamada teoria da modernizao comoa do desenvolvimento do subdesenvolvimento capitalista, a par deserem ideologicamente viesadas, possuem seus mritos especficos,sobretudo se, no caso da segunda, pensarmos mais em termos dedependncia do que propriamente em termos de espoliao. Ambas,possivelmente, exageram na tendncia de tomar a aparncia das coisaspela sua essncia. Em suma, o aprofundamento da discusso a respeitodas razes do subdesenvolvimento mostrou que a referncia ao atrasocultural uma explicao muito parcial da questo. Concluiu-se queenquanto no fosse suplantada a dependncia econmica, dificilmenteo seria a cultural, inclusive cientfica e tecnolgica. O enfrentamentodaquela (a econmica) torna-se difcil, por sua vez, pelo fato de que adependncia representada pelo subdesenvolvimento cria tambmmentalidades dependentes, internalizando-se a dominao.

    De modo assemelhado as coisas se passaram ao nvel damedicina preventiva. O projeto preventivista proposto para odesenvolvimento na Amrica Latina (a partir dos Estados Unidos)foi um projeto em grande parte colonizador, como os demais projetossociais elaborados segundo a viso que se tinha do subdesenvolvimentoatrs exposta (a do atraso cultural) Segundo ela entendia-se que ospovos subdesenvolvidos eram doentios porque, sobretudo,muitosaspectos de sua cultura eram inadequados em termos de produoda sade: hbitos de higiene e alimentares, noes a respeito da sade,mtodos de preveno e cura, habitaes; enfim, um modo de vidaerrneo, incorreto, que acabava facilitando a disseminao da doenae abreviando a morte. Os pases desenvolvidos tinham, nesse campo,outra tarefa de cunho missionrio, colonizadora e civilizadora, queera a de levar a esses povos atrasados os benefcios da cincia e datcnica, da educao e da medicina modernas, ensinando-os a teruma vida mais sadia.

    Influenciando as escolas mdicas, esta viso do problemalevou ao desenvolvimento de uma medicina preventiva bastantenormativa, ainda que no necessariamente sob esta denominao.Assim que praticamente at o incio da dcada de 60 no havia

  • 38 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    departamentos que ensinassem aquela disciplina, mas sim higiene esade pblica. Sem dvida, para estas, de modo geral, sempre foramatrados muitos mdicos com uma preocupao mais social do queindividual dos problemas da sade, interessados antes em conserv-la do que em tratar da doena. Contudo, dada aquela interpretaodas razes da doena, a higiene e sade pblica tornaram-sefreqentemente policialescas. No -toa, por exemplo, que osservios de sade pblica passaram a fazer inmeras recomendaesou mesmo determinaes quanto ao uso de alimentos, ao modocomo as casas deveriam ser construdas (em termos, por exemplo,de metragem dos cmodos, instalaes sanitrias, etc) e assim pordiante. Um entendimento do problema de sade a esse nvel levou,conseqentemente, a uma continuada tentativa de normatizar a vidada populao semelhana dos demais rgos governamentais.Os preventivistas viram-se a si mesmos como donos do saber e aosoutros como ignorantes a serem ensinados, sua atuao poucodiferindo, quanto a este aspecto, da maneira de agir dos demaismdicos. Conseqentemente, tenderam, freqentemente, a afastara populao do processo de tomada de decises no tocante a umaesfera fundamental da existncia, qual seja a relativa sade e doena.

    Posteriormente, houve uma evoluo da compreenso doproblema, no sentido de se perceber que muitas daquelasrecomendaes, que entram em choque com o modo de ver daspopulaes, so inaplicveis, na prtica. Mais ainda, concluiu-seque nem tudo aquilo que o povo cr e pratica necessariamentemalfico sade e que, alm do mais, dada a responsabilidadegovernamental em prover a populao de bens e serviosconsiderados como geradores de sade, seria conveniente educara populao para pleitear tais bens e servios (por exemplo,saneamento bsico). Esta foi uma caracterstica do perodo damedicina comunitria.

    S muito mais recentemente, quando se reinterpretou osubdesenvolvimento scio-econmico que houve, entretanto, uma

  • 39Jos Carlos de Medeiros Pereira

    radical alterao no modo de se entender a doena a nvel coletivo.Em razo dela, o projeto preventivista chegou, finalmente, a encampara proposta da medicina social, que interpreta o processo de sade/doena nos pases do Terceiro Mundo, como sendo, fundamentalmente,conseqncia do subdesenvolvimento, nos termos em que se discutiuno final da primeira parte deste artigo. Isto , enquanto no houveruma alterao significativa das estruturas sociais, polticas eeconmicas responsveis pela situao de misria material e no-material em que vivem os povos subdesenvolvidos, muito pouco sepoder fazer para melhorar sua condio de sade.

    Modificado assim o projeto preventivista, em razo daalterao da compreenso do processo de subdesenvolvimento,aqueles profissionais agora voltados para a medicina preventiva esocial tendem a alterar sua postura no trato com a populao. Naprtica concreta se dirigiro a ela, cada vez menos, supomos, comose fossem donos de um saber e de uma cultura superior que seatriburam a misso de ensinar e orientar os ignorantes. Isto porquetero em conta que os homens doentios e sem educao formalelevada so, eles prprios, vtimas de uma situao pela qual no sonem individual nem coletivamente responsveis.

    Desta forma, ainda que compreendam a necessidade deenfrentar, com os recursos normais e prprios da medicina, a doenaque as relaes scio-econmicas vigentes tendem a produzir emdeterminados conjuntos de indivduos, consideraro outros aspectosda relao entre estrutura social e processo sade-doena. Tambm,tampouco, dentro da nova viso, se negar a possibilidade de selevar a populao a sentir, pensar e agir de modo diferente frente aesse processo (embora respeitando mais sua prpria viso sobre oassunto), como queria a medicina comunitria. O que vai distinguirtais profissionais ser sua viso mais politizada da questo. Istosignifica que pensaro o problema e atuaro no s como tcnicosda rea, mas percebero que, sem um projeto poltico que sejaencampado por segmentos sociais significativos, no ocorreroaquelas mudanas scio-econmicos capazes de aliviar a situao

  • 40 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    de pobreza material e no-material responsvel pela doena coletivaevitvel. Em nada altera o entendimento de que a soluo do problemadesta poltico o fato de que variar o projeto ao qual cada pessoa,individualmente, se ligar.

    RESUMO

    discutida uma possvel vinculao entre a mudana noentendimento das causas do subdesenvolvimento e as transformaespelas quais tem passado o projeto que orienta a medicina preventiva.A interpretao do subdesenvolvimento evoluiu de uma visoculturalista (teoria da modernizao) para uma viso econmica(teoria da dependncia). No caso da medicina preventiva, ainterpretao evoluiu desde uma viso de que a doena seria devidaa fatores ligados a hbitos culturais, para a medicina social, em que adoena coletiva relacionada estrutura social e global.

  • 41Jos Carlos de Medeiros Pereira

    2.2 PROBLEMA SOCIAL E PROBLEMA DE SADE P-BLICA*

    1. INTRODUO

    H grandes semelhanas na discusso do que seja problemasocial e problema de sade pblica. Em primeiro lugar, elas surgemj na dificuldade de definio de ambos; depois, no estabelecimentodo que seja normal e patolgico e nas interferncias de naturezaideolgica tanto na definio como nas solues. O planejamentodestas, em ambos os casos, vai depender, por sua vez, do modocomo se encare o sistema social, poltico e econmico e,freqentemente, da capacidade dos profissionais do setor deinteressar um grupo social suficientemente poderoso para que seempenhe nelas, incluindo-as no seu projeto de transformao social.No menos importantes so as semelhanas decorrentes do fato demuitos problemas de sade pblica serem, ao mesmo tempo,problemas sociais, e vice-versa, embora haja uma tendncia indevida,na medicina, de incluir como problemas mdicos questes que, naverdade, so fundamentalmente sociais. Essas similitudes quepretendemos abordar no presente artigo.

    2. QUEM DEFINE? O NORMAL E O PATOLGICODO TCNICO E O DA POPULAO.

    Temos verificado que mdicos, em geral, e sanitaristas epreventivistas, em particular, praticamente no se preocupam com a

    * Artigo publicado originalmente em Temas IMESC 4(1): 5-20, 1987.

  • 42 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    questo de a quem cabe a definio do problema de sade pblica, aocontrrio do que ocorre, pelo menos com alguns socilogos, em relaoaos problemas sociais. Nisto, certamente, interferem os viesesprofissionais de ambos. Os mdicos, por exemplo, tendem a considerarque questes de sade e doena so de sua inteira responsabilidade,enquanto os socilogos so menos exclusivistas no que tange discusso de temas sociais. De qualquer modo, as dificuldades soassemelhadas. Na discusso dos sociolgos h, de princpio, umadivergncia significativa: quem que vai considerar como socialmenteindesejveis atitudes, comportamentos, processos, relaes,instituies sociais? Indesejvel para quem? Para toda a sociedadeou para um seu segmento? Por trs da definio dificilmente vamosdeixar de encontrar atitudes valorativas quanto ao que seja normal,sabidamente uma noo muito relativa. Dado que em toda sociedadecomplexa encontram-se grupos sociais heterogneos, classes cominteresses divergentes, contraditrios e mesmo antagnicos, o queum grupo pode perceber como patolgico, outro pode ver comoperfeitamente normal. O mesmo, pelos menos em parte, aplica-se definio de problema de sade pblica.

    Esta uma das dificuldades quando se reserva a definio deproblema social populao. No sendo homognea e predominandonela os interesses e a ideologia dos grupos dominantes, aquilopercebido como socialmente indesejvel pode ser uma inovao capazde contribuir para a melhoria das condies de vida da maioria dacoletividade. A viso conseqentemente, , em geral, conservadora,havendo a tendncia de conceber o status quo como normal. Dequalquer modo, quando se percebe algo como gravemente indesejveldo ponto de vista social, lana-se mo dos conhecimentos tcnicos ecientficos para corrigir as assim tidas como disfunes do sistemavigente. verdade que essa mesma ordem pode ser considerada, elaprpria, como indesejvel por grupos minoritrios. Esta, no entanto, uma dificuldade insanvel. O que concebido como problema socialvaria de uma classe ou frao de classe para outra, ou conforme areligio, a subcultura do grupo, etc. Por exemplo, um grupo de

  • 43Jos Carlos de Medeiros Pereira

    criminosos pode ter valores discrepantes em relao ao restante dasociedade, mas perfeitamente aceitos no interior do grupo e, portanto,sociologicamente normais se esse grupo restrito for tomado comoparadigma. Tomar o geral, o comportamento mdio ou mediano comonormal no oferece, na verdade, maiores problemas cientifcos quandose trata de um sistema social relativamente estvel. A dificuldadesurge nos momentos de transio, quando comportamentos comunsno respondem s exigncias do sistema social emergente. Nestemomento possvel ao socilogo, como veremos, considerar comopatolgico aquilo que ainda tem a aparncia de normal.

    Outra possibilidade de definio de problema social atribu-laao discernimento do cientista social, principalmente do socilogo.Tambm, neste caso, difcil no haver interferncias ideolgicas.Por exemplo, o socilogo, segundo sua concepo, pode entendercomo inexorvel a tendncia de transformao de um dado sistemasocial, que se encontra em transio, no sentido de ele se constituirem plenamente capitalista. Ento, muito daquilo que estivesseobstaculizando a emergncia do novo tipo social poderia ser tidocomo problema social. Suponhamos, para continuar o exemplo,uma populao vivendo em economia de subsistncia. Ainda queela no estivesse sentindo sua situao como socialmente indesejvel,esse tipo de economia pode representar um problema em termos domodelo representado pelo sistema capitalista de produo. Pode-seestabelecer um conflito entre a noo de normal do cientista social ea da populao envolvida. Mais grave ainda quando se realiza umainterveno planejada para alterar uma situao social vista pelo grupotcnico-cientfico como problemtica e que tem, como conseqnciano planejada, a criao de outra, esta sim considerada pela populaocomo socialmente indesejvel. Continuando ainda o exemplo,suponhamos que a populao vivendo em economia de subsistnciativesse sido inserida na economia de mercado e que, no tendo sidodevidamente preparada para isso, passasse a sentir dificuldades deintegrao nova situao. Nesse caso teramos alterado umacondio existencial vista como problemtica pelo socilogo e criado

  • 44 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    um problema social inexistente antes, do ponto de vista da populao. claro que, em qualquer interveno planejada nos processos sociais,h de se ter em conta as possveis conseqncias negativas da mesmapara a populao alvo.

    certo que os sanitaristas dificilmente concedem populaoa responsabilidade pela definio do problema de sade pblica,mas dificuldades assemelhadas, decorrentes de conflitos com apopulao, criam-se tambm para eles. Como alguns sociolgos,eles podem achar a definio de problema pela populao comocientficamente inaceitvel, dada a quantidade de preconcceitos sobrea sade e a doena existentes no seu meio. Mas ao reservarem a si aincumbncia, podem entrar em conflito com ela, ou, mais precisamente,com certas parcelas da mesma interessadas na manuteno de umdado estado de coisas. Teremos oportunidade de discutir adiante aprpria definio de problema de sade pblica, mas suponhamosque certos hbitos e comportamentos sejam considerados, pelossanitaristas, como tendo conseqncias negativas para a sade dapopulao que os pratica. Ora, dificilmente se consegue fazer acorreo planejada de condies scio-culturais e econmicas semmaiores resistncias, mesmo quando a alterao pretendida for nonvel individual (a referida mudana de hbitos); mais ainda quando onvel no qual se pretende interferir o institucional ou o estrutural(modificao da arquitetura ou da distribuio de renda). Seja, paraexemplificar, uma interveno numa rea relativamente simples comoa da moradia. Imaginemos que se tenha chegado concluso de quea melhor forma de combater a doena de Chagas, numa dada regio,seja a construo de casas de alvenaria de certo padro. A resistncia alterao poder ser grande por parte dos proprietrios rurais queestejam destinando aos seus trabalhadores habitaes sanitariamenteimprprias.

    3. OS CONFLITOS DE OBJETIVOS

    Poderia parecer que os conflitos entre o pessoal tcnico-

  • 45Jos Carlos de Medeiros Pereira

    cientfico e a populao, ou certas parcelas dela, no caso do problemade sade pblica, seriam menores porque o ideal de sade muitomais facilmente aceito por todos os segmentos sociais do que objetivosde natureza social. Isto s em parte correto. verdade que hpadres quantitativos e qualitativos mais precisos em se tratando doque seja sade e doena, sobretudo em termos individuais, do que osque indicam o normal e o patolgico sociais, ainda que a definio desade comumente usada, difundida pela Organizao Mundial daSade, deixe muito a desejar (estado de completo bem-estar fsico,mental e social e no, apenas, ausncia de enfermidade). Aqui nosdeparamos com duas dificuldades principais: 1) a de que o problemade sade pblica pode, ao mesmo tempo, ser um problema social e,mais do que isso, fundamentalmente, um problema social; 2) adecorrente do fato de no haver coerncia entre os objetivos depessoas, grupos ou coletividades. Eles podem, inclusive, sercontraditrios. Discutiremos aqui esta segunda questo, deixando aprimeira para mais adiante.

    Mdicos e sanitaristas, quando se trata de problemas de sadeindividual ou coletiva, geralmente raciocinam como se pessoas egrupos sociais tivessem como principal motivao, em suas vidas, aconquista ou manuteno da sade. Isto s verdadeiro em algunsmomentos de sua existncia. A razo simples: os homens, sejaindividual, seja coletivamente, comportam-se socialmente tendo emconta objetivos diversos, contraditrios ou at mesmo antagnicos,situados em diferentes esferas do social, como j dissemos. Ainterveno planejada de cientistas, tcnicos sociais, mdicos ousanitaristas, numa determinada realidade mdico-social, vai portanto,encontrar, sob esse ponto de vista, escolhos outra vez assemelhados.Por exemplo, um objetivo econmico, como o de ganhar mais, podeconflitar com o de gozar mais sade, porque o atingimento do primeiropode implicar um modo de vida estressante, fatigante, depauperanteetc. O sentir-se bem fsica, mental e socialmente pode exigir, porexemplo, em certos casos, at que se beba e que se fume. A variedadee diversidade de objetivos perseguidos na vida em sociedade por

  • 46 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    indivduos, grupos e classes torna inimaginvel um homem tendo comonico objetivo na vida (seja o de ter sade, seja o de apenas ganhardinheiro). Imagin-lo assim seria conceb-lo como um ser alienado e,portanto, sem sade. Estaramos diante de uma contradio.

    Os vrios fins que os homens perseguem esto ligados, por suavez, a valores socialmente aceitos, pelo menos num determinadoambiente social, j que o que um grupo social pode ter como valorpositivo, outro pode ter como valor negativo. Repetindo o exemplo,num grupo heterodoxo os valores aceitos como desejveis sero,com grande probabilidade, contestados pelos grupos majoritriosda sociedade na qual todos se incluem. Mas, dentro de um mesmogrupo social, os valores socialmente aceitos como meritrios sofreqentemente contraditrios. Valoriza-se, por exemplo, o homemeconomicamente bem-sucedido e o homem honesto, mas as duascoisas nem sempre andam juntas. Em nosso tipo de sociedade,aceitar o primeiro valor pode implicar desobedecer ao segundo.Por isso que, em grande parte, as pessoas se neurotizam. Elasintrojetaram, em seu processo de socializao, valores discreprantes.Para se conseguir atingir um fim socialmente valorizado numa esfera,podemos ser obrigados a deixar de lado outro fim, igualmente valorizadoem outra esfera. Em alguns ambientes sociais pode ser de bom tomfumar e tomar bebidas alcolicas. Isto daria prestgio, que um objetivoimportante na vida das pessoas, ainda que pudesse prejudicar a sade(ou talvez por isso mesmo), violando o valor de se ter boa sade.

    Os fins fundamentais, que normalmente guiam os homens denossa sociedade, so obter riqueza, prestgio e poder. Eles soprioritrios, superando de muito, no dia-a-dia, o objetivo de mantera sade, ainda que a despreocupao com ela v prejudicar aconsecuo daqueles outros objetivos, em deteminadas situaes emomentos. Como estamos vendo, os fins e os valores a eles ligadosno so necessariamente racionais quando os vemos por um nicoprisma. Na verdade, o termo racional s se aplica aos meios, nuncaaos fins. Fixados estes, so racionais os meios que, dentro dascondies dadas, levem sua realizao. No h discusso quanto

  • 47Jos Carlos de Medeiros Pereira

    racionalidade de fins, porque a esfera dos valores vincula-se aosaspectos emocionais da vida humana. Nesta rea, um valor igual aoutro. No se pode nunca imaginar, portanto, que um comportamento,por produzir enfermidade num prazo mais ou menos longo, seja sempreabandonado quando se mostra sua relao com aquela. Os homens,de modo geral, vivem o aqui e o agora, raramente o amanh, sobretudoo amanh distante. Dificilmente sacrificam o presente para obter umapossvel satisfao no futuro. Assim sendo, no ser pelo fato de quea sade e a doena, orgnicas ou psquicas, so mais facilmentediscernveis do que o normal e o patolgico sociais que os sanitaristase epidemiologistas no se conflitaro, freqentemente, com os gruposde risco cujos comportamentos queiram alterar.

    4. O PROBLEMA DA SADE PBLICA

    Fizemos at aqui referncias a algumas semelhanas entre oproblema social e o de sade pblica quanto a dificuldades de vriasordens no relacionamento entre o cientista ou o tcnico, de um lado, ea populao, ou parte dela, de outro. No tivemos ainda, no entanto,oportunidade de definir o que seja problema de sade pblica. Diga-se de passagem que, freqentemente, mesmo em manuais de SadePblica, a questo deixada de lado, como se fosse assunto mais oumenos bvio. Como no , surgem mal-entendidos. Tabagismo,cardiopatias congnitas, hipertenso arterial, doena de Chagas,acidentes de trnsito etc. so ou no problemas de sade pblica?Por qu? Os autores, comumente, no nos dizem. Ficamos, s vezes,com a impresso de que considerar um problema de sade que estejaafetando um segmento da populao como problema de sade pblicadepende to-somente da deciso do trabalhador qualificado do setorsade que lida com ele. Ou seja, sanitaristas, epidemilogos, mdicosvoltados para o social esto to acostumados a se atribuir a tarefa (eos outros a aceitar que assim seja), que acabam no se colocando,nem para si mesmos, a questo de quais critrios esto utilizando.

    Na verdade, hoje, em alguns meios, dependendo da formao

  • 48 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    cientfica e da postura ideolgica do grupo de profissionais do setor,antes de se voltarem para critrios, seus membros esto discutindose o problema tcnico ou poltico-social. De fato, dado o crescenteprocesso de medicalizao vigente na sociedade ocidental, muitosproblemas sociais acabaram transvestidos em problemas de sade,pblica ou no. Seria o caso, por exemplo, da desnutrio ousubnutrio em certos grupos sociais de pases subdesenvolvidos. Ano discusso do que seja o problema em exame leva, como nopoderia deixar de ser, supresso do debate a respeito de causas esolues. Diminui o nmero de contribuies para o entendimento doproblema, ainda que, por vezes, para alguns dos engajadosideologicamente de modo consciente no assunto, este seja um dosobjetivos secundrios (ou mesmo primrios) pretendidos. O noesclarecimento dos critrios utilizados permite mais facilmente adesqualificao de quaisquer opositores que no vejam o problematecnicamente e critiquem as posturas adotadas pelo pessoal tcnico-cientfico da rea da sade frente a um pseudo ou verdadeiroproblema de sade pblica. Por vezes, os sanitaristas, ou pelo menosparte deles, assemelham-se aos tecnocratas da economia queconduziram nossa poltica econmica nas duas ltimas dcadas. Sque, no caso, trata-se de tecnocratas da sade, donos da verdadeno que diz respeito a esse setor da realidade.

    As dissenses quanto ao que seja problema de sade pblica,de um certo ponto de vista, entretanto, so bem menos graves doque aquelas que se travam em torno do que seja problema social. que os vrios grupos sociais divergem, e sempre divergiram, emrelao ao seu modelo de sociedade ou, simplesmente, ao que sejanormal e patolgico. Aqui, o desacordo constante a regra. No quetoca sade, h um certo consenso quanto ao que ela seja ou, pelomenos, ao que seja doena. Todos, na pior das hipteses, concordamque a sade sempre melhor do que a doena. claro que, quandose trata de discutir o normal e o patolgico mdicos, em termossocietrios, a coisa muda, ou pode mudar. Assim, considera-se anormalque o indivduo A, especificamente, sofra de doena de Chagas, mas

  • 49Jos Carlos de Medeiros Pereira

    a mesma opinio pode no prevalecer quando se trata de discutir se normal ou no um determinado grupo social dela padecer. Sob esseprisma social, alguns sanitaristas e outros profissionais que se voltampara a Sade Pblica parecem se aproximar um pouco de certossocilogos vinculados ao funcionalismo, que tendem a considerarnormal aquilo que comum numa dada sociedade e patolgico o quese apresenta como desvio (por exemplo, um comportamento). Cremos,no entanto, que, em sua maioria, sanitaristas e mdicos voltados parao social esto suficientemente atentos para o erro, cientificamentefalando, de se tornar o geral como paradigma de normal, no que serefere sade coletiva. Se bem que, em alguns manuais deEpidemiologia, de Sade Pblica ou de Administrao Sanitria, surjauma pergunta inquietante: a de se as aes de sade pblica nointerfeririam negativamente na seleo natural. Obviamente, se talpergunta feita, porque se est supondo que pobres e doentesesto nessa situao no em virtude de como se estrutura e organizao sistema social no qual se inserem, mas em razo de seus genes.

    Quando o desvio, pelo menos em relao a um modelo ideal denormalidade admitido pela populao, pelos tcnicos, ou por ambos,assume a dimenso de um problema social ou de sade pblica? aquele desvio estatisticamente relevante? Talvez dependa do tipo dedesvio, pois uns se referem a coisas socialmente relevantes e outrosno. Assim, certos desvios em relao aos costumes sexuaissocialmente aceitos podem ser freqentes e nem por isso tidos comoproblemas sociais. J o homicdio, por exemplo, estatisticamentepouco freqente na quase totalidade das sociedades. Mas odescumprimento da norma de no matar sempre tido como grave,como um crime. Assim, se sua freqncia aumentar em determinadapoca, comparada a outras, em uma mesma sociedade, ou quandose a compara com outras, o fenmeno passa a ser considerado comosrio sintoma de desorganizao social. O mesmo raciocnio se aplicaao problema de sade pblica. No se convertem em tal todos osproblemas de sade sofridos por uma populao ou um seu segmento.

    Nisso, como j dissemos, os manuais so muito imprecisos. A

  • 50 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    dificuldade j comea pelas prprias definies de sade pblica. Emgeral, elas so por demais abrangentes. Em vez de se aterem determinao, a mais precisa possvel, da extenso e dos limites doconceito, enumerando-lhe, inclusive, os atributos essenciais eespecficos, de modo que a coisa definida no se confunda com outras,parece que os estudiosos da Sade Pblica entendem que dar excessivaextenso ao que ela seja constitui a melhor maneira de lhe darimportncia. Por exemplo, quase todos se referem definio deWinslow, de 1920, ou nela se apiam. Segundo esse autor, a SadePblica a arte e a cincia de prevenir a doena, prolongar a vida efomentar a sade e a eficincia, mediante o esforo organizado dacomunidade. Esse objetivo seria alcanado atravs do saneamentodo meio, do controle das infeces transmissveis, da educao dosindivduos em higiene pessoal, da organizao dos servios mdicos ede enfermagem para o diagnstico precoce e o tratamento preventivo,do desenvolvimento de um mecanismo social que assegure a cadapessoa um nvel de vida adequado para a conservao da sade. Ouseja, o objetivo da Sade Pblica seria proporcionar a cada cidadocondies de gozar de seu direito natural sade e longevidade.Convenhamos que a amplitude da definio tal que uma enormidadede aes ao nvel social, econmico ou poltico poderiam serconsideradas de sade pblica. E, com base nela, praticamente todosos problemas de sade podem ser facilmente convertidos emproblemas de sade pblica. Se os autores obedecessem regra deque a definio deve convir a todo o definido, e apenas ao definido,tais dificuldades inexistiriam ou seriam menores.

    Em nossa busca de definies de problema de sade pblicaencontramos uma, cientificamente aceitavel, em Forattini (1). Refere-se ele a uma definio de Nathan Sinai, citada por Mrio M. Chaves,na qual o autor estabeleceria trs critrios para que um problema desade se transformasse em problema de sade pblica: 1) representarcausa freqente de morbidade e de mortalidade; 2) existirem mtodoseficientes para sua preveno e controle; 3) no estarem eles sendoadequadamente empregados pela sociedade. Forattini acrescenta

  • 51Jos Carlos de Medeiros Pereira

    um quarto critrio: ao ser objeto de campanha destinada a erradic-lo ocorrer sua persistncia alm do prazo previsto. Poderamostambm nos valer dos critrios estabelecidos por Nelson Moraes (2)para avaliar a importncia de uma doena transmissvel e aplic-los aqualquer problema de sade, a fim de verificar se ele adquiriria ostatus de um problema de sade pblica. Os critrios seriam osseguintes: distribuio geogrfica, populao em risco,potencialidade endemo-epidmica, morbidade, mortalidade,letalidade, conseqncias econmico-sociais, disponibilidade derecursos profilticos e teraputicos eficazes, viabilidadeeconmica-financeira do programa de controle e implicaesinternacionais.

    O mais grave defeito nessas definies, principalmente nareferida por Forattini, que elas visualizam a sociedade como se elafosse um todo homogneo. No consideram a diversidade desituaes existenciais gozadas pelos vrios grupos sociais,fundamentalmente pelas vrias classes sociais e fraes. Quandoessas divises no so consideradas, os ndices e coeficientes relativos sade tornam-se, em grande parte, abstraes. Especificamente nocaso de enfermidades sociais vinculadas a precrias condies devida, sua prevalncia pode ser alta no grupo que vive aquelas condiese praticamente inexistente em grupos scio-econmicos privilegiados;isto num caso extremo. Mas como quase todas as doenas sodeterminadas socialmente, em maior ou menor grau, atingindo gruposde risco definidos, o critrio de freqncia da morbi-mortalidade fica,muitas vezes, adstrito aos grupos que sejam, de alguma forma,poderosos, com maior capacidade de vocalizao e de presso sobreos servios de sade estatais. Assim sendo, a malria, por exemplo,por afetar, geralmente, segmentos populacionais despossudos deriqueza, poder e prestgio e, conseqentemente, de condies dereivindicar e de se fazer ouvir pelos meios de comunicao de massa,pode se transformar num problema de sade pblica de menorexpresso do que a poliomielite, simplesmente por esta afetar, commaior freqncia do que a malria, pessoas pertencentes s classes

  • 52 MEDICINA, SADE E SOCIEDADE

    dominantes. Conseqentemente, o critrio de freqente morbi-mortalidade deveria ser qualificado, indicando-se o nmero de casosou de bitos provocados pela doena no na populao como umtodo, mas em segmentos especficos da mesma. A dificuldade talvezesteja no fato de que, quando se consideram as divises da sociedadena qual o problema esteja ocorrendo, ele pode adquirir outrasconotaes que no apenas a tcnica.

    5. O ASPECTO IDEOLGICO

    Referimo-nos j a alguns aspectos ideolgicos no que dizrespeito tanto definio de normal e patolgico mdico-sociais,como de problema social e de sade pblica. A postura ideolgica,geralmente, no chega ao nvel de conscincia dos sujeitos envolvidosna questo. Inclusive, diz-se que uma ideologia eficiente a queapresenta tais caractersticas. No caso do problema social, quandose entende que uma dada situao socialmente indesejvel, o quese est afirmando, muitas vezes, que ela prejudica a eficincia e afuncionalidade do sistema social, vistas ambas sob a tica dos gruposdominantes, especialmente. At mesmo pode ocorrer que estatambm seja a tica dos dominados, por eles terem adotado a ideologiados dominadores. No caso de problema de sade pblica, a questopode adquirir contornos assemelhados. Por exemplo, ele pode serconsiderado como importante ou no, simplesmente em funo daregio onde ocorra, independentemente do segmento populacional queesteja atingindo. Suponhamos que, num caso, afete larga poro degrupos sociais que constituem a mo-de-obra de setores econmicosrelevantes, em termos do sistema capitalista de produo existente, eque, em outro, atinja populaes que vivem em regies em quepredomina a economia de subsistncia. A esquistossomose, porexemplo, ser um problema de sade pblica muito mais relevantequando atingir bias-frias envolvidos no corte da cana e na colheitado caf em So Paulo do que quando afetar populaes nordestinasvivendo, no Serto ou no Agreste, em economia de subsistncia. Em

  • 53Jos Carlos de Medeiros Pereira

    outras palavras, as conseqncias scio-econmicas do problema sovistas, quase sempre, do ponto