Jose Luandino Vieira-O Fato Completo de Lucas Matesso

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  • 8/10/2019 Jose Luandino Vieira-O Fato Completo de Lucas Matesso

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    Estas narrativas foram escritas de 28/6 a

    28/7/62, no Pavilho Prisional da PIDE, em

    Luanda. Apresentadas ao concurso literrio

    da Casa dos Estudantes do Imprio, Lisboa,foram distinguidas com o Prmio Joo Dias,

    1962, por um jri de que faziam parte, entre

    outros, Urbano Tavares Rodrigues, Orlando

    da Costa, Llia da Fonseca, Nomia de Sousa

    e Carlos Ervedosa.

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    O FATO COMPLETO DE LUCASMATESSO

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    I

    O guarda prisional veio lhe avisar, umsorriso de mentira colado na cara, cogosma da informao no director: Chefe Reis, tenho uma boa

    novidade...Os anos de servio que j tinha davamesmo direito a esse ar de segredo queadiantava pr nas palavras. Sentou-se na

    cadeira, mesmo sem licena, e segredou: Sabe! Fez bem em dar visita ao 16!O chefe fechou os olhinhos, parecia

    eram de rato, e um sorriso mau agarrou-

    lhe nos lbios descoloridos, sentindo jalguma coisa ia passar com esse sacanado Lucas Joo Matesso. Tudo correu s mil maravilhas.

    Cinco minutos pr gajo ver a mulher.Apesar de preta, muito boa...

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    Diga l a novidade, carago! Est-mea fazer gua na boca!

    O velho guarda prisional riu com a

    confiana desse chefe que podia mesmoser ainda filho dele: Ora, quer saber?! No fim da visita

    os sacanas abraaram-se para se

    despedirem e julgaram que eu no estavaa ouvir. Ah, ah, ah! A mulher do gajofalou-lhe baixinho em mandar o fatocompleto! O fato completo?... Sim, chefe! Foi isso que a tipa

    disse!

    Pra que raio quer esse gajo o fatocompleto com este calor? Ou o sacanapensa que o processo dele vai paratribunal?!

    E riu tremendo os beios finos emostrando fila de dentes amarelos e

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    pequeninos. Quando ria assim toda acara dele ficava cheia de riscos queprendiam os olhos e lhe faziam parecer

    era puco do capim. No sei, chefe. Mas ele insistiu e e

    no quis deixar de lhe comunicar. Sabe, o meu dever. Mas aquilo cheira-me a

    marosca da grossa! Pensei... Diga l, Artur, diga l! Talvez a gaja lhe queira mandar

    algum bilhete escondido...O chefe ps a cara sria e fez um gesto

    de agradecer, levantando-se ecomeando a passear com os passinhoscurtos das pernas cambaias.

    Esse preso j lhe estava dar muitotrabalho, era uma chatice, com oinspector sempre a xingar-lhe e nada que

    conseguia. O bufo que tinha-lhe queixadourava que o rapaz tinha ligao com o

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    Kongo, mas em trs meses deinterrogatrios, porrada todas as vezes,dias sem comer e sem tratamento, nada

    que conseguira inda saber. Uma coisapor ali e por acol, conversas seimportncia, mas nem um nome.Chamava-lhe para interrogatrio pela

    noite dentro, mandava-lhe molhar ocorpo antes de o ajudante lhe arrear umasurra de cavalo-marinho, o hometorcia, gemia, borrava s vezes, pediaperdo, mas, bem espremido como elesabia fazer, no deitava nada.

    Os exames para subinspector estavachegar e agora arrependia das palavrasao inspector, falando-lhe desse caso: Penso, senhor inspector, que desta

    vez agarrmos uma ligao!

    E sentia ainda nas costas a pancada deamigo do superior, esse gesto que ele s

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    punha com muita considerao. E agora?Os trs meses tinham passado,experimentara ainda com esses autos

    arrancados de Lucas Matesso, inventarauma histria que fingisse certa, mas, scom uma leitura mesmo, o inspector tinhalhe virado as costas, zangado:

    Que diabo, Reis! Isto no tem psnem cabea! Aperte com o gajo. Estacoisa do outro que trabalha na mesmafbrica cheira a esturro. Insista,caramba! Senhor inspector... tinha

    gaguejado, sentindo a cara ficarvermelha de vergonha e raiva o gajono tem stio onde se lhe pegue. Estou espera que recupere!...

    Mas o inspector no quisera mais

    ouvir-lhe as desculpas que estavaarranjar, a cabea cheia desse exame que

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    chegava e uma raiva a encher-lhe o peitocurto, uma vontade de rebentar porradaesse co do Lucas Matesso, fazer-lhe

    confessar qualquer coisa, nem quefossem mentiras no fazia mal. Erapreciso apresentar o processo aoinspector, era a sua fama, a sua carreira

    que estava ainda em perigo.Por isso ri agora baixinho, satisfeito,

    esfregando as mos contentes,engelhando a cara para esconder osolhinhos maus, pensando que sim, eraagora que lhe caava, esse tipo tinhaesperado trs meses e agora ia talvereceber algum recado. J sentia o chicotea berrar em cima da pele do homem, osgritos, as desculpas que ele punhasempre, aquele prazer que lhe entrava no

    corpo quando acendia o cigarro e seencostava na cadeira para comear ditar

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    no ajudante: ... declarou que...Saiu no jardim. As flores coloridas e

    iguais dos lrios, as flores pequenas dabuganvlia branca, pareceram-lhebonitas, ainda molhadas da gua que opreso tinha lhes regado, as borboletas a

    voarem, o sol a bater e brilhar nas folhasverdes. O guarda prisional estava tomarconta do preso que trabalhava deardineiro e assustou-se quando sentiu a

    voz fingida, nas costas dele: Oia, Artur! Daquilo, nem uma

    palavra a ningum! Conta comigo,homem, conta comigo! Se der o resultadoque eu j estou a ver...

    E afastou-se com o passinho mido eaos saltinhos como rato, os olhos outra

    vez encolhidos de alegria, as mosfazendo festas no queixo, sonhando co

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    esse dia de manh em que ele ia mas fazer um fato completo a chicote a essesacana do Lucas Joo Matesso, da cela

    16.Na porta teve ainda uma ideia que lhe

    alegrou mesmo na cabea. Voltou paratrs e gritou para o guarda prisional feito

    esttua a tomar conta das flores doardim: Artur! Esse gajo da 16, hoje e

    amanh nada de comida!E saiu a assobiar.

    II

    Deitado de costas, os olhos viajando o

    tecto da cela, Lucas Joo Matesso,baralhado, pensava ainda nessa conversa

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    do princpio da manh e nada queconseguia perceber, nem uma palavra,nem uma ideia do que o chefe lhe queria.

    Primeiro, o chefe chegou mesmo nassete e meia, os guardas andavam mandarna limpeza, matabicho no tinhadistribudo ainda e Joo Matesso ouviu-

    lhe bem, chamar com um riso satisfeito,logo na porta: Artur! Traga-me o 16!Ficara tremer, pensava era ainda mais

    uma daquelas conversas com o chicotesempre nas costas, o cigarro a lhequeimar na orelha ou ainda chapadas dasmatubas. Mas tambm no sentiu oajudante do chefe e isso fez-lhe ir maiscalmo, na frente do guarda.

    O chefe tinha-lhe recebido com esse

    riso bandido que ele conhecia-lhe de trsmeses ali, conversa todos os dias,

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    porrada quase sempre. S que, desta vez,o homem deu-lhe mesmo a cadeira parasentar.

    Ento? Como que vai isso,Matesso?No tinha respondido, burro com essas

    palavras, nos outros dias era s co,

    negro e muitas mais asneiras a insultar-lhe, disparatando a famlia. Mesmoassim falou os casos da comida deontem, nada que lhe deram para jantarnem almoar. Oh, diabo! Estou farto de avisar o

    chefe do pessoal. Se calhar esqueceram-se. Mas eu vou j tratar disso. Sabesporque que te chamei, desta vez?

    Riu baixinho, fingindo amizade na voz.E comeou contar o director no queria

    ainda l inocentes na cadeia e outrasconversas para desviar. Com esses

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    truques todos chegou mesmo no fim, spara lhe convidar:

    J sabes! Vais logo embora. No

    mal nenhum para ti. A polcia sabe muitobem que o gajo que faz as confuses lna TEXTANG. Assinas o auto e pronto!Vais-te embora! Dou-te a minha palavra

    de honra!...Tinha-lhe custado a aguentar a histria

    que tinha arranjado. Nessa hora, coaquele fingimento da bondade dele,quase ia esquecer o chefe no sabia onome e deixar mesmo escapar era oDomingos Andr, l na fbrica. Masdentro da cabea alguma coisa avisou-lhe o perigo, aqueles olhos pequenos,escondidos, mal se viam, nunca ficavabons mesmo quando o chefe punha

    aquelas palavras.Disse que no, sua cara de matumbo,

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    nosso chefe sabe bem, trs meses que eestou aqui, nosso chefe deu-me com aporrada todos os dias e nada que eu fiz,

    sei mesmo algum que me queixou e, seeu no sei o nome do rapaz, nosso chefequer lhe conhecer, porque no sei que.

    Num instante um brilho de zanga e raivaacendeu nos olhos do homem, masdepois, com essa bondade que tinhacomeado mesmo de manh,acompanhou-lhe no guarda prisional paralhe trazerem na cela outra vez. E semprecom sorriso, segurando-lhe no ombro,falou muito srio no guarda: Artur! Hoje d dois pes no

    matabicho, a ao Lucas!Tinha-lhe agradecido, fome era muita,

    depois o corpo com essas pancadas desempre j no estava mais gordo,

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    custava-lhe aguentar esse bicho da faltade comida a roer na barriga.

    Mas o que espantava ainda mais, agora

    que olhava no tecto onde passeava aosga procura de mosquitos, era essapergunta que lhe tinha deixadobaralhado, j mesmo o guarda tinha

    aberto a porta do corredor. Chefe Reisestava ainda atrs dele a pensar e, assi-toa, rpido, at custou-lhe a perceberas palavras, perguntou: Ouve l? Mandaste vir hoje o te

    fato?Olhou-lhe bem nos olhos, outra ve

    aquele sorriso mau, de cobra, e, mesmosem Lucas Matesso falar nada, virou-lheas costas e adiantou ir embora.

    Mas o qu ele queria ainda falar co

    essas conversas do fato? Dava voltas evoltas na cabea e no podia se lembrar

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    de nada. Era preciso cuidado, essehomem estava preparar mesmo ratoeirade lhe apanhar. Toda a esperteza tinha

    que estar ainda com ateno, no podiadeixar agora estragar esse servio detrs meses que aguentara. Domingos nolhe apanhavam, j tinha ido mesmo no

    Kongo, mas no servio tinha l maisbons rapazes e ele no podia lhes trazernesse inferno de porrada, de fome, deinsultos e torturas.

    Isso de fato, era o qu ento? A cabeaestava quente de pensar, cadavez mesmoera fome, o matabicho no tinham-lhedado, percebia bem era mentira do chefe,estava s a querer lhe desanimar nessedia. O corpo ficou pequeno de frio, omedo lhe correu ainda no sangue quando

    pensou talvez mesmo estava-se prepararpara lhe deixar morto com as pancadas.

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    Medroso no era, mas, cada vez quesentia o chicote de cavalo-marinho napele, cortava-lhe mesmo l dentro. E

    pensou Maria ia vir hoje com a roupadele, como era costume, sextas demanh, e uma alegria lhe agarrou nocorao com a lembrana da visita desse

    dia de ontem, pouco tempo era verdadeno fim de trs meses, mas boa, para verainda a companheira que lhe esperava lfora com a coragem dela de trabalharainda para os trs monandengues quetinha.

    E, com esse pensamento, em que se via regressar na cubata, alegria dos monas

    a lhe abraarem, a pedir talvez paracontar essa priso que mam tinha lhesfalado, os olhos comearam a querer se

    fechar com a fome, a barriga mesmo arefilar sem comida e sentindo j o

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    barulho das pessoas em monte, l fora,para entregar a roupa, comeou dormir.

    Era sexta-feira e os guardas andava

    depressa, abrindo e fechando o porto,fazendo a chamada com voz zangada,recebendo e entregando as roupas berevistadas mesmo pelo chefe dos guardas

    que gostava este servio.Chefe Reis j estava ali ao lado do

    velho, apreciando essa tcnica dohomem a apalpar com depressa todos osstios ele pensava podia ir ou vir lbilhetes ou outras coisas ainda. Ento, Artur? Nada, chefe! At agora nada. Calma!

    Eu passo isto a pente fino...Gargalhou ainda essas palavras dele e

    o chefe acompanhou-lhe. No cho de

    cimento o homem tinha espalhado todasas roupas limpas Lucas Matesso ia

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    receber nessa manh e, com devagar,parecia estava ainda sentado na mesa aescolher ou a provar a boa comida,

    apalpava com todo o cuidado a roupavelha e remendada do operrio. Mas no veio o fato? No, chefe! Veio comida, dessa

    comida que esses gajos comem, coaquela porcaria do azeite amarelo, e estaroupa! Claro, aquilo era truquecombinado...

    E continuou rir, satisfeito. Os dedosgrossos e amarelos do tabaco seguravaas cuecas, procuravam mesmo nabraguilha, sem encontrar ainda nada,atiravam no monte onde j estavam aspegas abertas e as camisolasamarrotadas.

    Chefe Reis, sentado na borda dopasseio, sentia a pacincia sair embora.

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    Se no lhe apanhasse esse bilhete nessedia, ia ser uma grande confuso paradesculpar no inspector, sempre a xingar-

    lhe no telefone. Mas ele pagava-lhe, aise pagava! E ia sonhando esse bilhete deque tinha gosma, que ia trazer muitasvezes o nome do outro, do Kongo.

    J mais calado, a alegria do riso e doassobio tinha lhe fugido na roupa a seamontoar sem encontrar ainda nada, ochefe dos guardas desdobrava o lenol,apalpava nas bainhas, mirava, revirava-lhe bem na luz do sol, cadavez podiater escrito a lpis, e nada que descobria.

    Agarrou, raivoso, no lenol,amachucou-lhe nas mos, arrumou nomonte e, com dedos j a tremer e o suora aparecer, pequeno cacimbo na testa

    careca, segurou o pijama. Ora isso,pijama era mesmo o fato que vinha ali!

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    Encheu-se com a ltima coragem quesobrava da dvida de no encontrar econseguiu rir no chefe:

    Ora, agora que vai aparecer! onico fato completo que h aqui...

    Os dedos procuraram devagar nosbolsos, no colarinho, nas bainhas, e,

    cada vez que as mos no sentiam nada,as rugas da testa iam ficando maisfundas, pareciam eram rios pequenosonde corria a gua do suor. Irritado,comeou a rasgar o colarinho e meteu los dedos, tirando para fora o pano queservia de reforo, rasgando-lhe tambm.

    O co aldrabou-nos, Artur! No, chefe! Deixe que eu encontro...Mas bem l no fundo dele um medo de

    dvida estava aparecer e se no ia

    encontrar mesmo o bilhete ia ser ugrande azar. Nessa hora em que estava

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    precisar ainda uma boa informao nodirector, tudo ia se estragar, no podiaser...

    O suor escorregava, grosso e quente,para dentro da camisa larga, os dedosatrapalhados procuravam na cala dopijama, dentro do cordo de lhe amarrar,

    na bainha, embrulhando, baralhando j aspernas da cala, sem saber mais onde erauma, onde era outra, e ento, enquanto nafrente dos olhos dele aparecia assim aderrota, essa vergonha, ouviu o riso mado chefe nas costas dele e a voz quetodos conheciam e tinham medo ali napriso, a gozar-lhe:

    Voc foi parvo, Artur! Comeram-no!...

    Isso ele no admitia, essas palavras.

    Mesmo que era um chefe no fazia mal,podia ainda ser pai dele, um garoto

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    assim a lhe falar. Mas, quando levantou acabea para refilar, os olhos pequenos emaus pareciam duas brasas l no fundo

    da cara, e os beios finos estavaarreganhados num sorriso na hora quefalou, batendo bem as palavras, cadauma a dizer mesmo o que ele queria para

    envergonhar o velho: Foi burro, Artur. E eu a acreditar!

    V-me buscar esse filho da me!O chefe dos guardas rasgou, s tiras, o

    pijama que se embrulhava teimoso nosseus braos velhos e cabeludos,enquanto, com o seu andar curto ecambaio, o chefe afastava na direco doquarto dos interrogatrios, rindo paradentro dele, satisfeito com o que ia fazer.

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    III

    Ainda nem tinha dado um passo nogabinete, estava a olhar o chefe a sorrirbondoso, quando o chicote lhe apanhonum rio de fogo do pescoo at nos rins,

    colando a camisa velha na pele. LucasMatesso, apanhado assim toa, gritou,cobrindo a cara com as mos, j sabia oajudante do chefe ia lhe bater mesmo nacabea como era mania dele. O riso demabeco do homem misturou-se nessefogo de jindungo na pele e, na cara dele,

    o chefe estava-lhe j a berrar: Tudo! Tudo! Quero tudo! Hoje no

    como as outras vezes!E o chicote atirava-se para lhe apanhar

    nas costas, na frente, torcendo-lhe ocorpo que ele queria ainda fazer ficardireito quieto e abrindo a boca que ele

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    queria mesmo fechada, calada, sem umapalavra de perdo para esses homens,trs meses ali e sempre com a pancada

    no corpo, na cabea, parecia a vidadeles no sabia mais nada, s bater, sarrear. O ajudante ria e levantava o

    brao gordo bem alto para deixar caircom fora o grosso chicote que punha ubarulho diferente nessa manh bonita.Chamados pelos gritos do preso, os ces

    correram e adiantaram ladrar-lhe,trazendo mais confuso nos ps quearrastavam no cimento, no barulho dacadeira a cair com Lucas Matessobatendo com a cabea no cho, o chicotesempre a arrear-lhe, e ento, quando iamesmo falar, perdo, para ver ainda se o

    chefe parava, a voz rouca e m entrou-lhe nas orelhas: Pronto! Ado! Um balde de gua!

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    A gua estava fria, era boa assim emcima o fogo a doer nas costas, a queimar,e um princpio de calma invadiu-lhe para

    lhe lembrar essa hora agora era perigosa,tinha de aguentar bem... Levanta-te! Quem o gajo? Anda,

    fala depressa! No conheo, nosso chefe! J faleino conheo... Schcht! Cala-te! Quem o gajo da

    fbrica, depressa!O ajudante chegou-se, mansinho,

    mabeco de olhos a luzir com aquela

    carne assim de borla, balanando efazendo gemer o chicote.Lucas Matesso tinha aguentado esses

    dias todos dos trs meses, mas, mesmo

    com essa porrada de todas as vezes, omedo era ainda igual do primeiro dia,nada que ele conseguia para os olhos no

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    mirarem esse mexer de surucucu que teo chicote, para no sentir ainda o cortarda pele, parecia estava sempre a ouvir-

    lhe nas orelhas, para segurar o cuspogrosso que engolia e parar esse tremerde canio que lhe enchia no corpo. Mas

    no tinha tambm medo, sabia bem o quecusta quando est assim s a ver, logoque o chicote cai e di e continuabater, pronto: o resto do medo foge com

    a pancada, s a dor fica a crescer, e essaanulava-lhe bem. No, nem que lhematassem ainda, o chefe no ia saber onome do homem... Quero tudo! Hoje! Seno mato-te,

    co, mato-te!A voz entrava na orelha inchada, e nos

    olhos apareceu essa cara pequena, cheiade riscos, de olhos de bicho do capim,escondidos no fundo dos buracos, e

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    ento a voz dele, nem lhe conhecemesmo, falou s: Juro, nosso chefe! No lhe

    conheo... Isso tudo so mentiras. Mequeixaram, eu sei, nada que eu tenho...Nem acabou falar. O chefe cuspiu-lhe

    mesmo na cara, mas nem teve tempo delimpar o cuspo amarelo. O ajudante jtinha-lhe puxado no brao, o corpo levebateu na parede, voltou parecia era bola

    de borracha e uma roda de fogo grandecomo o sol l fora encheu-lhe em baixoda barriga, trepou-lhe nos olhos que seabriam tanto como a boca a querer comero ar, o ar que no entrava, com essa dorde agulha do pontap tinha-lhe posto nasmatubas. Os olhos torceram, da garganta

    o que saiu era mesmo urro, fala deanimal ferido na mata, e o corpo dele,magro e seco, comido na fome,

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    amachucado com as pancadas de sempre,no conseguia ficar de p, mesmo queele queria.

    Por cima dele o riso do chefe e doajudante faziam uma mistura maluca coo ladrar dos ces e o barulho da gua no

    balde que lhe molhou por todos os lados.Dos beios inchados, um fio de sanguesaa, mexendo-se diante dos olhosabertos, por cima do cimento vermelho

    do cho. Um vmito grande encolheu-lhea barriga, mas nada que tinha comidonesses dias e s uma gua verde saiu a semisturar no sangue, no suor, na gua dobalde.

    Assim estendido, aguentando as doresdos pontaps que as botas do ajudante

    lhe punham nas costas, nas pernas, nopeito mesmo, os olhos no queriadeixar ainda de olhar essa gua

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    diferente, de trs cores, a correr, acorrer...

    E era o Lukala que ele via, o rio da

    terra mijando a gua boa nas lavras. OLukala descendo, vagaroso e seguro, semedo, j depois do salto do Duque de

    Bragana, a correr para se deitar ecima das guas do mais-velho Kuanza e,de mo dada, seguirem os dois nadireco do mar.

    Essa figura assim, das guas do rio edos capins dos lados a danar no vento,os dendns pendurados nas palmeiras, aslavras verdes de milho e mandioca,deram berrida nas dores, no sentia maiso chicote outra vez a bater e as palavrasque o chefe punha, cada vez maiores,

    parecia ele mesmo que estava a levarcom pancada. O bilhete! Quero o bilhete!...

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    Mas qual bilhete, ento? Nunca tinha-lhe falado uma conversa de bilhete eagora mesmo, desde que comeara, era

    s isso que ele queria saber ainda, eraessas as palavras, o ajudante tambgritava com a sua voz de bode, no

    percebia nada. No sei, nosso chefe! No sei!Perdoa!

    Essas palavras estavam sair j com o

    hbito, era sempre isso ele dizia desde oprincpio quando lhe deram encontro nafbrica e lhe trouxeram ali na priso.

    Mas os homens no desistiam, gritavadentro das orelhas dele, o ajudante noparava de bater e Lucas Matesso queriamesmo se lembrar, gostava ainda saber o

    que era essa conversa do bilhete, masnada que lembrava mesmo, s aspalavras do chefe, as chicotadas do

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    ajudante, berros: O fato completo! O fato, onde vem o

    bilhete!

    Ento a dor foi mesmo mais grande,fogo como do pontap das matubas, doprincpio. Todo o corpo no quis mais se

    defender, fora para aguentar os braos edefender ainda a cabea no tinha s,olhos inchados j, nada, ningum que elevia bem naquela hora, nas orelhas u

    zunir de muitos mosquitos atropelavaessas palavras do chefe, mistriotambm para ele: O bilhete! O bilhete do fato! Quero

    saber!Sentiu outra vez o gosto amargo dessa

    gua verde que saiu no vomitar, as

    estrelas de todas as noites escurasdanavam na frente da cara, na cara doajudante a rir com a boca toda aberta, e

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    caiu com barulho de saco vazio em cimado cimento do cho.

    L fora, nos jardins, as borboletas e os

    pssaros no paravam de passear, pondobeijos nas flores, e o vento da manhassobiava pequeno nas folhas dos

    mamoeiros que queriam espreitar porcima dos muros. O chefe agarrou nobalde da gua e despejou outra vez nacabea ensanguentada, no corpo rasgado

    de Lucas Matesso. Filho da me! O gajo j no aguenta

    nada! Fica para logo! J quase meio-dia!

    O suor corria-lhe no peito curto eadiantou tirar os culos para lhes limpar.O ajudante arrumou o chicote no canto

    do quarto, voltou, ps ainda um pontapna barriga do preso. Lucas Matessomexeu, estava mesmo acordar nessa

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    hora, sono pequeno e pesado a pancadatinha-lhe dado, e os olhos no queriamais se abrir bem, ficaram ainda

    baralhados a ver as biqueiras dossapatos do ajudante diante dele.

    Em todo o corpo o sangue levava

    indungo, parecia era um bando demarimbondos estava-lhe comer na carne,e o zunir desses bichos nas orelhas nodeixava-lhe ouvir nada que o chefe

    falava no guarda. Na cabea dele, grandee inchada parecia era abbora, essaspalavras do fato completo, do bilhete,no aceitavam sair, nem mesmo quando osol carrasco continuou-lhe bater nocorpo cheio de sangue e lhe carregaram,sempre com socos e pontaps, na cela

    dele.Dentro da cela o silncio encheu-lhe,

    grande e grosso, a cor suja de sangue das

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    paredes danou na sua frente e s tevetempo de estender mesmo as mos parase agarrar quando lhe atiraram na cama.

    Nessa hora ento, as lgrimas que tinhaaguentado l no gabinete correram,quentes e salgadas, por cima das feridas

    da cara, lavando os olhos tapados,danando-lhe no corpo com um corrermacio e sentiu a companheira nessavisita de ontem, com a alegria dela

    antiga guardada nos olhos que lhemiravam e a voz doce como azeite-palmaque lhe tinha falado, que lhe tinhasegregado essa coisa boa...No! No podia ser mesmo verdade,

    destino de uma pessoa no pode arranjaressas histrias assim, tudo era mentira,

    mentira s. Mas, no cho sujo da cela, omonte de roupa dele, essa roupa Mariatinha lhe lavado e engomado com o gosto

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    de todos os dias, no deixava maismentir nele mesmo, nem que queria.Tudo amarrotado, torcido, e mesmo o

    pijama estava ainda em bocados e essestrapos assim desrespeitados falavam eraverdade isso que a lembrana das

    palavras da companheira tinha trazidonessa hora mesmo.Estendeu a mo, devagar, o corpo a

    tremer com a dor e a pele a rebentar

    cada vez que mexia, o sangue a se colarna roupa, na direco das pequenaspanelas encostadas na parede, junto coessa roupa estragada. Levantou s, coeito, a tampa, a gozar ainda essa

    surpresa boa ele j sabia ia mesmosuceder.

    A dor era muita a pisar-lhe em todo ocorpo, trs meses de castigos e fome,pancadas e conversas, tinham-lhe

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    feijo de azeite-palma com peixe deazeite-palma, a banana e tudo, que toda agente nos musseques tem s a mania de

    chamar de fato completo.A gargalhada grande como as chuvas de

    Abril engrossando mais os rios cantou na

    garganta dele, encheu a cela de alegria,fugiu no postigo, pelos arames da rede,entrou maluca nos gabinetes onde osirmos aguentavam as pancadas e

    torturas, calou os pssaros no jardim e,com um salto, voou por cima dos murosda priso, correndo livre pelas areias detodos os musseques da nossa terra deLuanda.

    (13-7-62)

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    GLOSS RIO

    Bassula (bassular): Golpe de lutafazendo passar o adversrio por cima doombro.

    Bomb: Mandioca; farinha de

    mandioca.Brututo: Raiz amarelada de um arbustodo mesmo nome, com propriedadesmedicinais.

    Bungular: Remexer as ndegas;saracotear-se.

    Caboba(o): Aquela(e) que no temdentes.

    Cafofo: Cego; pitosga.Cambaias: Arqueadas, tortas.Cambuta: Baixo; de pequena estatura.

    Camucala: Monstro s com metade docorpo, ao alto.

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    Cangundo: Branco de baixa condio,ordinrio; sem educao.

    Cazumbi: Alma do outro mundo.

    Dendm: Fruto da palmeira-dendm,que d azeite do mesmo nome.

    Dicanzar: Produzir um som semelhante

    ao de um instrumento musical (reco-recoou dicanza).Diquixe: Monstro de mil-cabeas.Dissaquela: Sesso medinica ou lugar

    onde se realiza.Dongo: Canoa.

    Funji: Massa cozida de farinha,

    denominada fuba, geral-mente de milho,massam-bala, massango, mandioca obatata-doce. Acompanha vrias iguarias.

    Gapse: Golpe de luta; brao volta dopescoo.

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    Imbambas: Coisas; pertences; trastes;bagagem.

    Jindungo: Fruto de jindungueiro,malagueta pequena.Jinguba: Amendoim.

    Luando: Esteira de papiro que enrolano sentido da largura.

    Mabeco: Co selvagem.Marimbondo: Vespa.

    Mataco: Ndegas; traseiro.Matete: Massa de farinha cozinhada,

    inconsistente, rala.Matumbo: Ignorante: estpido.Mona: Criana; filho.Monandengue: Filho novo; criana,

    gaiato; jovemMonangamba: Filho de carregador (por

    extenso: todo o que se dedica atrabalhos pesados, servial, carregador,

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