Jose Mattoso a Identidade Nacional Pdfrev

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  • Jos Mattoso

    A Identidade Nacional

    http://groups.google.com/group/digitalsource

  • cadernos democrticos

    DIRECO

    MRIO SOARES

    Jos Mattoso

    A Identidade Nacional

    COLECO

    FUNDAO MRIO SOARES

    DESIGN

    ATELIER HENRIQUE CAYATTE EDIO

    gradiva

  • Introduo

    Entre as vrias formas possveis de tratar o problema da identidade nacional, aquela

    que me parece mais simples e operacional a que se baseia na ideia de que as condies

    necessrias sua percepo so as mesmas do que as que presidem percepo da

    identidade de qualquer outro objecto, seja ele individual ou colectivo. Partindo do princpio

    de que, segundo o especialista da psicologia social Eric Erikson, para identificar qualquer

    objecto necessrio:

    1) distingui-lo de qualquer outro objecto;

    2) atribuir-lhe um significado;

    3) conferir-lhe um valor, tentaremos utilizar o mesmo esquema percepcional para

    compreender o fenmeno da identidade nacional. Teremos em conta, obviamente, o caso

    de Portugal, mas evidente que a forma de abordagem poderia ser aplicada a qualquer

    outro pas do mundo.

    A aplicao das operaes assim enunciadas ter, porm, de ter em conta que a

    identidade nacional resulta antes de mais da percepo que os prprios cidados tm de

    formarem uma colectividade humana. Ora, dado que essa colectividade tem uma existncia

    histrica, ser necessrio, desde o incio de qualquer reflexo, no esquecer que a

    identidade nacional foi revestindo formas sucessivamente diferentes ao longo dos tempos.

    A identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histrico que passou

    por diversas fases at atingir a expresso que actualmente conhecemos. A nossa

    investigao procurar antes de mais reconstituir essas fases. O facto de um processo de

    identificao se poder decompor nas trs operaes que distinguimos no quer dizer,

    porm, que, historicamente, ele siga uma evoluo semelhante ou revista expresses

    idnticas nos diversos pases. No pretendemos, portanto, extrapolar o caso portugus para

    outros pases nem consider-lo paradigmtico. Nem todos os pases seguiram a mesma

    evoluo. Nalguns casos os fenmenos culturais tero, porventura, maior peso na

    formao da identidade nacional, noutros sero os acontecimentos polticos os mais

    decisivos, noutros, ainda, os factores econmicos ou sociais. A diversidade nacional resulta,

  • em boa parte, da forma como se conjugam os vrios elementos constitutivos das suas

    sucessivas expresses histricas.

    Em segundo lugar, ser tambm necessrio advertir que as manifestaes de

    conscincia da identidade nacional podem ser diferentes e at contraditrias, conforme os

    grupos humanos que envolvem e as pocas em que se situam. Assim, no lcito atribuir

    simultaneamente a todos os habitantes de um pas as operaes de diferenciao, de

    significao e de valorizao quando envolvem apenas um determinado grupo. preciso,

    portanto, distinguir os grupos humanos (sociais, ou mesmo profissionais) a que de facto se

    podem atribuir processos de consciencializao dos vnculos nacionais: os funcionrios do

    Estado no pensam exactamente da mesma maneira do que os camponeses, os clrigos no

    tm as mesmas ideias do que os nobres, e, dentre estes, os mais cultos do mostras de

    sentirem de modo diferente a questo nacional, quando se compara a sua atitude com a dos

    membros das classes populares. Sendo assim, as distines baseadas na atribuio das

    expresses de identidade nacional a determinados sujeitos definidos socialmente tornam-se

    indispensveis para poderem resolver aparentes contradies dos testemunhos histricos e

    para poder descobrir a coerncia dos dados documentais. A ltima observao preliminar

    baseia-se no facto de que a identidade nacional no apenas um fenmeno mental. Tem

    sempre um suporte objectivo. praticamente inconcebvel:

    1) sem alguma forma de expresso poltica, isto , sem que em algum momento da

    histria se manifeste atravs da apropriao de um poder dotado de certo grau de

    autonomia (ou seja atravs de alguma forma de Estado);

    2) sem um polo espacial e um territrio determinados, mesmo que esse polo se

    transfira para outro ponto e que as fronteiras do territrio variem ao longo dos tempos;

    3) sem que a autonomia poltica e o seu mbito territorial permaneam de forma

    contnua durante um perodo temporal considervel. Como evidente, a durao da

    autonomia poltica e a continuidade do territrio so factores importantes para a solidez e o

    aprofundamento da identidade nacional. No admira, por isso, que, no caso portugus, se

    tenha atribudo tanta importncia ao facto de as fronteiras nacionais se haverem mantido

    praticamente idnticas desde 1297. Este facto permitiu afirmar que Portugal era o pas mais

    velho da Europa, no por que o seu poder poltico se tivesse transmitido numa linha

    contnua desde h mais tempo do que o de qualquer outra nao europeia, mas por o seu

    territrio ser idntico desde o fim do sculo XIII, o que no aconteceu efectivamente com

    as outras formaes polticas do velho continente. A maioria dos autores que tm tratado

    da identidade nacional atribui tambm uma grande importncia ao fenmeno da lngua,

    pelo facto de o portugus se falar num territrio praticamente coincidente com o das suas

  • fronteiras polticas. No h dvida de que este facto tem uma efectiva importncia

    histrica. Mas quando se compara o caso portugus com o de outros pases, torna-se

    evidente que convm estudar cuidadosamente o seu significado. com efeito, no difcil

    dar exemplos de pases com uma indiscutvel identidade nacional e em que se falam vrias

    lnguas, como a Blgica, a Sua ou a Espanha, ou de outros que, sendo diferentes, tm em

    comum a mesma lngua, como a Alemanha e a ustria. Tambm no se podem esquecer os

    casos de pases que hoje tm uma nica lngua oficial, mas que englobam territrios onde

    outrora se falavam lnguas diferentes, como o galico no Reino Unido, ou o breto e o

    provenal em parte da Frana. Estes dois ltimos casos, podem levar, at, a colocar o

    problema da influncia do factor poltico sobre a lngua. Em ambos a superioridade poltica

    deu um suporte decisivo expanso da lngua dominante e inferiorizao das lnguas

    minoritrias, levando ao seu atrofiamento, como foi o caso evidente do provenal. Nestes

    casos no so os factores culturais que afectam os fenmenos polticos, mas o contrrio.

    Sendo assim, seria bom perguntar se a aparente coincidncia do portugus com o territrio

    nacional um factor de identidade ou uma consequncia do factor poltico. Esta

    observao confirmada pelo facto de o portugus e o galego serem a mesma lngua. As

    diferenas entre eles resultam em boa parte de o portugus ter, por razes polticas,

    evoludo autonomamente, e de o galego ter, pelas mesmas razes, sofrido uma importante

    influncia do castelhano. De facto, a eficcia do poder poltico resulta em boa parte de as

    suas prticas administrativas serem veiculadas por meio de uma determinada norma

    lingustica, o que garante necessariamente a sua difuso. Alm disso, o mtuo suporte da

    classe culta e do Estado, tanto em virtude do prestgio que um confere ao outro, como das

    vantagens decorrentes dessa associao, garante s prticas culturais preferidas pelo poder

    poltico uma inegvel capacidade de persuaso. Esta ltima observao leva a prolongar um

    pouco mais o exame da questo preliminar que neste momento nos ocupa, procurando

    avaliar o problema da relao entre identidade cultural e nacionalismo. De facto, enquanto

    dificilmente se pode conceber uma nao sem alguma forma de Estado, ou ao menos sem

    que a sua autonomia se tenha concretizado em algum perodo temporal sob a forma de um

    poder poltico minimamente independente, perfeitamente possvel conceber uma

    comunidade cultural sem o suporte de um Estado. A base da autonomia nacional a

    existncia de um poder constitudo num territrio determinado, ao passo que a base da

    comunidade cultural resulta da adopo das mesmas categorias de interpretao do mundo,

    do mesmo sistema de valores e das mesmas prticas culturais; ora estas no tm fronteiras

    definidas; alm disso s por si no resultam de nenhuma imposio poltica; finalmente no

    supem nenhum centro difusor nico (pelo contrrio suscitam normalmente uma

  • pluralidade maior ou menor de centros culturais de vrias ordens e de capacidade de

    influncia diferenciada). justamente por isso que as reas culturais no coincidem com os

    Estados, e que se organizam segundo uma hierarquia e por meio de afinidades que pouco

    tm que ver com as fronteiras polticas. Sendo assim, as tentativas para fazer coincidir os

    Estados com as reas culturais resultaram normalmente de ideologias totalitrias, como

    aconteceu com uma das suas expresses mais extremas, o pangermanismo nazi. No se

    pode deixar de observar que o nacionalismo, nas suas diversas manifestaes, procurou

    sempre uma base natural para as formaes nacionais. Ao considerar a Nao como uma

    categoria da ordem das essncias, ao atribuir-lhe, portanto, um carcter necessrio e eterno,

    tendia-se a procurar as suas razes na prpria Natureza, ou seja em factores como a

    diversidade geogrfica, a raa ou a lngua (pressupondo que as diferenciaes tnicas e

    lingusticas eram de alguma maneira fenmenos naturais). Esta interpretao justificava,

    por sua vez, a imposio de uma s lngua a todo o territrio nacional, como aconteceu no

    combate travado pelo franquismo espanhol para impor o castelhano em toda a Espanha,

    com excluso, ou pelo menos a inferiorizao, do basco, do catalo e do galego. Estas

    consideraes levam, inevitavelmente, a propor a reviso de alguns pressupostos correntes

    e que perduraram at h bem pouco tempo, como, por exemplo, o da unidade cultural dos

    portugueses, e mesmo o da sua fundamental unidade lingustica. A convico, largamente

    difundida at ao fim dos anos sessenta, de que Portugal possua uma unidade e uma

    coerncia culturais que no existiriam noutros pases pode facilmente demonstrar-se como

    falsa para a cultura em geral, sobretudo quando no se considera apenas a cultura letrada,

    mas tambm a cultura popular. Paralelamente, no pode deixar de se propor aos linguistas

    que estudem com maior profundidade o fenmeno das diversidades dialectais e as suas

    expresses histricas. Dito de uma forma simplificada, e no tendo em conta os

    fenmenos sociais, poder-se-ia dizer que a aparente uniformidade cultural portuguesa

    esconde a dominao do Sul pelo Norte, depois de o Estado portugus se ter apropriado

    da cultura do Norte. A referida convico oculta tambm outro fenmeno histrico, que s

    h pouco tempo desapareceu: o da excessiva polarizao da produo cultural num centro

    praticamente nico; com efeito, a tendencial reduo da produo cultural a um centro

    nico tem como consequncia perversa o atrofiamento do dinamismo e da criatividade do

    todo nacional. Voltando aos problemas relacionados com a continuidade do poder poltico,

    convm observar que dela que decorrem outros fenmenos objectivos, para alm da

    prpria imposio de solues culturais mais difusas e mais difceis de medir. Refiro-me

    continuidade de prticas administrativas, como a cobrana de impostos, a permanncia do

    aparelho judicial, a existncia do poder legislativo, a efectividade do exrcito. Em todos

  • estes sectores da vida poltico-administrativa se verifica uma evoluo e uma variedade de

    solues, mas tambm, ao mesmo tempo, uma sequncia contnua de prticas concretas.

    Por mais rudimentares que elas sejam no incio, o Estado assegura a coerncia global dos

    sistemas fiscal, judicirio, legislativo ou militar. O controlo central do Estado vai-se

    tornando cada vez maior e vai vencendo resistncias, fugas ou incapacidades. Embora as

    prticas poltico-administrativas sejam complexas, o seu suporte claramente apreensvel,

    dado o seu carcter simples, visvel e pblico: materializa-se num chefe de Estado - o rei,

    durante quase toda a histria portuguesa -, um emblema - o escudo das armas nacionais - e

    uma moeda - que ostenta justamente a efgie do rei e as armas nacionais. Por isso no

    admira que a autoridade rgia recorra constantemente a estratgias que consistem em dar

    toda a visibilidade possvel aos rituais de ostentao do seu poder pessoal, aos objectos e

    lugares onde coloca as suas armas ou a bandeira, que exclua o uso de outras moedas, e que

    procure por todos os meios apresentar os smbolos do seu poder como sinais da

    identificao do chefe com o conjunto dos seus sbditos: as armas do rei tornam-se, assim,

    as armas nacionais, o que significa que a obedincia que se exige de todos os seus vassalos

    se apresenta como uma expresso da sua prpria identidade. pela obedincia ao rei que

    os portugueses se distinguem de todos os outros homens do mundo. por seguirem a

    bandeira do seu rei que na batalha se distinguem dos seus inimigos. Sob a sua proteco

    esto seguros de todos os perigos.

    Numa primeira parte deste texto (pontos 1 a 3) procuraremos examinar as diferentes

    fases por que passou a expresso da identidade nacional desde a fundao da nacionalidade

    (ou melhor, para sermos mais correctos, desde a fundao do Estado) at aos tempos mais

    recentes, seguindo o esquema inspirado em Eric Erikson. Na segunda parte (pontos 4 a 8)

    tentaremos analisar de uma forma mais descritiva os caracteres identificadores dessa mesma

    identidade, procurando tanto quanto possvel acentuar os dados objectivos. Para isso

    observaremos sucessivamente os elementos geogrficos, polticos, sociolgicos e

    comportamentais. A primeira parte retoma uma interveno minha no Seminrio Livre

    Questionar as identidades organizado por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto

    no Gabinete de Sociologia Histrica da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas em 14 de

    Junho de 1994, onde me inspirei no esquema de Eric Erikson apresentado no mesmo

    seminrio por Jorge Vala. A segunda constitui um resumo com algumas alteraes de parte

    de textos redigidos para a obra Portugal. O sabor da terra, em colaborao com a Prof.

    Suzanne Daveau, a quem devo as informaes do mbito da Geografia. Retomo tambm

    algumas ideias j apresentadas no livro Portugal como introduo a fotografias de Nicolas

    Sapieha, editado pela Quetzal em 1989.

  • Sinal de validao de

    Afonso Henriques datado de 1129 (poucos meses depois da Batalha de S. Mamede).

  • O processo de categorizao da identidade nacional

    Do ponto de vista dos sujeitos em causa, a conscincia de pertena a um

    determinado pas exprime-se por meio de uma ideia que se poderia traduzir na frase ns

    somos portugueses; os outros so estrangeiros. Ou seja, eu perteno a uma categoria de

    indivduos que se caracterizam especificamente pela comum condio de portugueses e que

    se distinguem de todos os outros homens por estes no o serem, ou, o que o mesmo, por

    serem estrangeiros. Esta conscincia de pertena a uma determinada categoria nacional

    implica obviamente que se conheam os caracteres dessa mesma categoria. Ora esta

    conscincia no to bvia para todos os indivduos que o registo civil considera

    portugueses como poder parecer primeira vista. sem dvida evidente para a maioria

    dos cidados que j fizeram a escolaridade obrigatria e cumpriram o servio militar, ou

    seja para aqueles que possuem instruo suficiente para saberem o que distingue os

    portugueses dos estrangeiros. Se na actualidade esta conscincia se pode presumir

    praticamente de todos os habitantes do territrio nacional, no era assim em pocas em

    que no havia escolaridade obrigatria para toda a gente nem servio militar para todos os

    jovens do sexo masculino. , por isso mesmo, perfeitamente verosmil a anedota que se

    conta o rei D. Lus quando, j bem adiantado o sculo XIX, perguntava do seu iate a uns

    pescadores com quem se cruzou, se eram portugueses. A resposta foi bem clara: Ns

    outros? No, meu Senhor! Ns somos da Pvoa do Varzim! Como evidente, se os

    pescadores da Pvoa do Varzim podiam responder assim ao rei, trezentos anos depois de

    Cames ter escrito e publicado Os Lusadas, a verosimilhana de uma situao idntica seria

    muito mais provvel no sculo XII, mesmo depois de Afonso Henriques ter assumido o

    ttulo de rei de Portugal. A compartimentao das sociedades medievais fazia prevalecer

    sobre qualquer outra espcie de vnculos a ligao com o senhor da terra e com a

    comunidade da aldeia. A dependncia para com o rei e os seus delegados era vivida como

    um fenmeno de uma ordem completamente diferente daquilo que so hoje os direitos e

    deveres dos cidados. O rei era o senhor dos senhores, ou seja uma espcie de vigilante

    longnquo, quase ideal, de quem os mais velhos diziam, em algumas terras, que tinha

    outrora visitado este e aquele lugar, e que portanto podia um dia aparecer de novo, mas

    nem por isso deixava de ser considerado pela maioria dos camponeses do seu reino como

  • uma espcie de poder extraterrestre. Para os camponeses da Idade Mdia, dificuldade de

    conceber ideias abstractas como a da portugalidade, acrescia a de a elas corresponderem

    pouqussimas estruturas administrativas com qualquer espcie de expresso na vida prtica

    e no quotidiano. Esta situao manteve-se durante toda a Idade Mdia e grande parte da

    Idade Moderna. S comeou a modificar-se decisivamente, mesmo nos lugares mais

    longnquos da capital, para o fim do sculo XIX.

    No entanto, podemos verificar que os primeiros diplomas da chancelaria de Afonso

    Henriques comeam, logo a seguir batalha de S. Mamede, a ostentar uma espcie de

    emblema, em que est escrita a palavra Portugal, e a designar incessantemente o soberano

    por meio do ttulo da sua categoria poltica (rei, prncipe) e da sua vinculao com os

    respectivos sbditos, ou seja como rex portugalensium, rei dos portugueses. Sendo assim, que

    grupo social podia, durante o reinado de Afonso Henriques, conceber tal noo e

    apreender as suas implicaes? Obviamente, em primeiro lugar, aquele que englobava os

    redactores de tais diplomas, ou seja, os clrigos da chancelaria rgia. Mas podemos

    certamente associar-lhes outros clrigos e alguns nobres mais ligados corte. Para eles,

    porm, o vnculo dos portugueses com o rei decorria mais da vassalidade do que

    propriamente do facto de habitarem no territrio que lhe estava sujeito. Assim, as

    obrigaes para com ele dependiam do facto de serem os seus sbditos directos, como

    acontecia com os habitantes do domnio rgio. Pelo contrrio, era muito diferente a

    situao dos dependentes de senhores que reivindicavam um poder prprio, como eram

    todos os nobres detentores de senhorios, ou ainda como os habitantes dos concelhos, que

    inicialmente (at ao fim do sculo XII), por se considerarem membros de comunidades

    autnomas, viam o rei como um senhor com o qual no tinham nenhuma relao directa.

    Sendo assim, como se vem a estender a outros grupos sociais a percepo da pertena

    categoria de portugueses?

    Podemos distinguir alguns momentos decisivos, geralmente marcados por

    confrontaes militares com indivduos de outras nacionalidades ou de civilizaes alheias.

    O primeiro momento o da Reconquista activa, quando o rei de Portugal age como

    chefe dos seus vassalos na luta contra o Islo, e sobretudo como conquistador de novos

    territrios ou como defensor contra invases que ameaam a vida e os bens dos habitantes

    das zonas de fronteira. Dado que tambm outros reis da Pennsula Ibrica combatem o

    mesmo inimigo, a condio de portugueses aparece como uma categoria dentro do

    conceito mais vasto de cristos, por oposio aos inimigos da f. No h que negar a

    importncia deste facto no processo de formao da identidade nacional. Trata-se de um

    factor insistentemente posto em relevo pelos idelogos do perodo nacionalista, para os

  • quais Portugal teria nascido dos movimentos a que chamavam de cruzada. Todavia, no

    se pode tambm esquecer que a sua relao com a ecloso da nacionalidade longnqua,

    dado que no se pode confundir a crena religiosa com o vnculo nacional. Por outro lado,

    preciso tambm ter em conta que as lutas anti-islmicas envolvem em primeiro lugar o

    bando dos cavaleiros que participou activamente nas conquistas afonsinas e nas expedies

    de Sancho I, em segundo lugar os membros da corte e alguns clrigos (nomeadamente os

    Cnegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra) e finalmente os habitantes dos concelhos

    mais prximos da fronteira, sobretudo aqueles que foram mais afectados pelas invases

    almades de 1184, 1190 e 1191. Os restantes habitantes do pas no se sentiam envolvidos

    por tais lutas nem provavelmente as consideravam como suas. Podemos considerar um

    segundo momento com as lutas fronteirias entre os primeiros reis portugueses e os

    soberanos de Leo e Castela, sobretudo nos reinados anteriores a Afonso IV. No me

    parece, no entanto, que devamos atribuir a estas confrontaes o carcter de lutas

    nacionais. Tratava-se antes de lutas feudais, determinadas por questes relacionadas com o

    exerccio de direitos senhoriais e que por isso devem ter exercido uma influncia restrita

    sobre a expanso da conscincia nacional, excepto, talvez, no caso de D. Dinis. com efeito,

    este rei revelou uma conscincia muito ntida do papel da fronteira e do territrio nacional,

    a julgar pela maneira como construiu uma impressionante quantidade de castelos junto

    raia, como procurou nacionalizar as ordens militares, e como oficializou o uso do

    portugus na chancelaria rgia. No podemos, contudo, generalizar as ideias do rei ao

    conjunto dos portugueses do seu tempo.

    Mais decisivas ainda para o processo de categorizao da identidade nacional

    parecem ser as guerras contra Castela nos reinados de D. Fernando e de D. Joo I, no

    apenas pelo facto de serem guerras nacionais, mas sobretudo por terem trazido ao interior

    do Pas considerveis efectivos de tropas estrangeiras (castelhanos, navarros e ingleses).

    Ora este contacto vivo com indivduos de fala e de comportamento diferente, e que

    constituam uma ameaa para a populao dos lugares onde actuaram, qualquer que fosse o

    rei por quem combatiam, como aconteceu com os ingleses cujos distrbios e violncias

    foram descritos com tanto realismo por Ferno Lopes, tornou evidente, para todos os que

    contactaram com eles e ainda para quem ouviu os seus relatos, qual era a diferena entre

    portugueses e estrangeiros. Estes acontecimentos deram aos habitantes comuns do campo

    e da cidade, sobretudo na Estremadura, a noo clara do outro enquanto oposto aos

    nacionais. Embora no seja lcito projectar na prpria poca dos acontecimentos todos os

    pormenores dos relatos de Ferno Lopes, que escrevia uns cinquenta anos mais tarde,

    podemos facilmente deduzir deles a influncia que teriam sobre o fenmeno que aqui nos

  • interessa. Um dos indcios mais evidentes da relao que aqui estabelecemos o facto de

    datar exactamente desta poca a lenda do Milagre de Ourique, conforme foi demonstrado

    por L. F. Lindley Cintra. No certamente por acaso que se trata da primeira expresso de

    um mito que procura fazer crer na indefectvel proteco divina ao rei de Portugal, e,

    implicitamente, atravs dele, aos seus descendentes e aos seus sbditos. Trata-se da

    primeira expresso de uma crena acerca da sacralidade que envolve os reis de Portugal e

    que por eles beneficia os seus vassalos.

    A Expanso portuguesa, que ps milhares de portugueses em contacto directo com

    outros povos e outras civilizaes, veio evidentemente reforar o sentimento nacional, a

    partir de uma outra experincia vivida. Os outros, com os seus caracteres fsicos e os seus

    costumes, religies e lnguas to diferentes, opunham-se, na sua imensa diversidade, aos

    que partilhavam a condio comum de oriundos do territrio nacional. Perante essas

    diferenas aquelas que opunham os minhotos aos alentejanos ou aos transmontanos, os

    portugueses pobres aos portugueses ricos, os nobres aos clrigos, eram evidentemente

    menores. Estas diferenas evidenciavam o que os portugueses tinham de comum. Embora

    no fossem directamente vividas por toda a populao nacional, sabemos que a sua

    experimentao envolveu, de maneira directa ou indirecta, uma poro enorme de gente de

    todas as condies e origens e que por isso as suas consequncias no processo de

    categorizao da identidade nacional se fizeram sentir mesmo nas reas rurais e no interior

    do Pas.

    A dominao filipina constitui, para esse processo, um perodo um tanto

    contraditrio. provvel que viesse a ter como consequncia absorver sem dificuldades de

    maior os sentimentos de conscincia nacional se se tivesse prolongado durante muito

    tempo (como aconteceu em Arago). No nosso caso, porm, acabou por reforar o

    processo descrito at aqui, pelo facto de levar a distinguir a pura autoridade poltica do

    vnculo que unia entre si os cidados nacionais. Este efeito no se pode presumir no caso

    dos beneficirios da dominao espanhola, mas provocou em outros obras e reflexes cujo

    sentido inegvel. Refiro-me ao aparecimento por esta poca de vrios escritos e de

    movimentos de opinio que revelam uma inequvoca conscincia da identidade nacional.

    Sirva de exemplo o primeiro volume da Monarquia Lusitana redigido por Fr. Bernardo de

    Brito; mencionem-se certas obras em que se distingue o temperamento dos portugueses do

    dos espanhis e se ope o territrio nacional ao resto da Hispnia, como se verifica

    expressamente em Duarte Nunes de Leo (1610), em Tom Pinheiro da Veiga (1605);

    lembre-se, enfim, o movimento sebastianista. Ao mesmo tempo, por uma razo ou por

    outra, as adeses dominao espanhola so muito numerosas, a resistncia organizada

  • mostra a sua evidente fraqueza e as revoltas espordicas tm um carcter nacional

    duvidoso. A Restaurao, ao contrrio do que julgaram os historiadores portugueses do

    sculo XIX, foi um movimento minoritrio e que internamente se imps com dificuldade.

    A prolongada guerra que se lhe seguiu, com o seu enorme cortejo de vtimas e de

    destruies em vastas zonas da fronteira, pelo contrrio, deve ter contribudo mais para

    aprofundar o fosso entre portugueses e espanhis do que todos os acontecimentos

    anteriores.

    Aconteceu o mesmo com as guerras subsequentes, que trouxeram a violncia ao

    territrio nacional, sobretudo com as Invases Francesas. Estas mostravam que os inimigos

    dos portugueses no eram s aqueles que os ameaavam mais directamente, por serem os

    povos vizinhos, mas tambm os que vinham de mais longe, como os franceses e os

    ingleses. Ao contrrio do que se pode presumir ter acontecido nas guerras anteriores,

    verificaram-se ento as primeiras manifestaes de resistncias populares e espontneas a

    que se pode atribuir um carcter nacional. As Guerras Liberais, por sua vez, opuseram os

    portugueses uns contra os outros, mas o facto de ambos lutarem por um poder nico sobre

    todo o Pas mostrava bem que os seus combates no eram territoriais mas ideolgicos. Por

    outro lado, os numerosos exilados liberais em contacto com outras naes sonhavam trazer

    para a sua ptria as instituies liberais e defendiam-nas em nome de um patriotismo cujo

    valor consideram indiscutvel. As suas ideias no eram partilhadas por todos os

    portugueses, mas o seu triunfo contribuiu para difundir o ideal nacional como um vnculo

    que devia unir todos os portugueses independentemente da sua ligao com qualquer poder

    constitudo. O conceito romntico de esprito do povo (Volksgeist) difundiu-se ento

    entre os intelectuais burgueses como uma espcie de dogma. Embora no se possa admitir

    facilmente que tais ideias fossem partilhadas pela maior parte da populao, tem de se

    considerar que a sua influncia foi enorme nos sectores mais influentes da sociedade.

    Todavia, a generalizao da conscincia da identidade nacional pela totalidade da populao

    portuguesa no se pode presumir como um facto antes da difuso de fenmenos

    caractersticos do fim do sculo XIX e que em Portugal se verificaram sobretudo a partir de

    1890, como seja a difuso da escrita e da imprensa, a implantao de um sistema eleitoral, a

    generalizao de prticas administrativas uniformes e a participao activa da populao na

    vida pblica. A avaliao concreta dos indcios que demonstram a difuso do sentimento

    nacional a partir de 1890 foi feita de maneira insofismvel por Rui Ramos. Pareceram-lhe

    to evidentes que intitulou a sua sntese da Histria de Portugal durante o perodo que vai

    de 1890 a 1926 como a segunda fundao. A este respeito convm, todavia, que as

    investigaes de certos autores sobre a ecloso de noes tais como a de soberania

  • popular, cuja relao com a conscincia nacional evidente, no permite extrapolaes

    para alm do restrito meio em que elas so fundamentadas, isto , para alm das elites que

    delas beneficiavam. O facto de se poderem encontrar formulaes precoces de tais noes,

    como por exemplo nas cortes de 1385, no pode fazer esquecer que o povo a

    considerado soberano , na realidade concreta, o conjunto dos que se apresentavam como

    seus representantes. Mesmo quando falavam em nome das respectivas comunidades, a sua

    legitimidade resultava de se considerarem a si prprios como a melior pars, isto , como

    aqueles que eram suficientemente instrudos para terem a percepo dos interesses comuns

    e moralmente dignos de exercer a autoridade, em conformidade com a noo de elite

    prpria da Idade Mdia. Estes antecedentes da democracia ocidental no podem, portanto,

    ser invocados como uma precoce manifestao favorvel conscincia da identidade

    nacional.

    Observe-se, por fim, que as noes romnticas acerca do esprito do povo

    (Volksgeist) conduzem no s a que se tenda a considerar a categoria nacional como

    fundada na Natureza, como j vimos, mas tambm ideia de que essa categoria implica

    diferenas especficas, isto , que tem de se manifestar por meio de uma coerncia interna,

    e consequentemente por meio de caracteres comportamentais comuns a todos os seus

    membros. Da os estudos de certos antroplogos do sculo XIX e mesmo do nosso sculo,

    como por exemplo Jorge Dias. Apesar da tendncia para definir as categorias nacionais em

    termos comportamentais se encontrar j em obras do sculo XVII, sobretudo em relatos

    de viagens de estrangeiros ao nosso Pas, devem-se distinguir os esforos de caracterizao

    por meio de factores culturais, como os costumes prprios de cada nao, das tentativas de

    definio psicolgica. fcil de ver a fragilidade cientfica destas especulaes, tanto pelo

    carcter subjectivo das observaes, como pela dificuldade de as quantificar, mesmo

    grosseiramente. Se, por exemplo, se caracterizam os portugueses como sentimentais,

    impossvel dizer se a percentagem dos que o no so grande ou pequena. Infelizmente

    so muito poucos os estudos objectivos acerca do comportamento social dos portugueses.

    Os de Boaventura de Sousa Santos constituem exemplos raros nesse sentido. Faremos mais

    adiante algumas observaes a este respeito.

    Braso de armas de Afonso Henriques segundo uma pintura annima do sculo

    XVIII, provavelmente inspirada no escudo que existiu sobre o seu tmulo at 1580.

  • Atribuio de significado

    Ao falarmos aqui da atribuio de significado no nos referimos propriamente ao

    significado do fenmeno da identidade nacional em si mesmo, mas a uma srie de noes

    complementares da categoria nacional, ou seja de noes que contribuem para lhe dar

    sentido. Considermos aqui as noes de reino, de naturalidade, de ptria, de fronteira,

    de sucesso rgia, de poder sagrado do rei. Deixaremos, porm, a noo de ptria para a

    examinar mais adiante, dado o seu carcter valorativo. A lista no fechada. Poder-se-iam,

    decerto, enumerar outras, mas estas so as que se formam na Idade Mdia e provavelmente

    as que maior influncia exercem sobre a consolidao da conscincia da identidade

    nacional. evidente a sua ntima relao com o poder poltico, como de resto seria de

    esperar, dado o carcter poltico dos factores mais decisivos para a formao da identidade

    nacional. Comecemos pela noo de regnum, reino. Podemos sublinhar a relao do seu

    sentido com o da identidade nacional, ao verificar que a frmula usada na chancelaria rgia

    portuguesa para designar o rei foi at ao fim do reinado de Sancho I a de rex portugalensium,

    rei dos portugueses, mas que com Afonso II (1211-1223) passou a ser a de rex Portugaliae ou

    Portugalensis, isto , rei de Portugal ou rei portucalense. Esta alterao dos usos notariais

    parece significar que na cria rgia passou a ser habitual considerar o reino no apenas

    como um conjunto de pessoas dependentes do mesmo rei, mas tambm como um

    organismo com a sua prpria consistncia, definido por si mesmo e no apenas pela pessoa

    do rei ao qual estava sujeito. A verdade que esta concepo tem pelo menos um

    antecedente expresso na obra intitulada Miracula S. Vincentii, redigida por Estvo, chantre

    da S de Lisboa, um clrigo de origem morabe, entre 1173 e 1185. Este autor fala

    igualmente de reino como de uma entidade dotada de sentido, pois ele, diz, que

    beneficiado no seu todo pela presena do mrtir, embora a obrigao de lhe prestar culto

    pertena sobretudo cidade de Lisboa, onde se veneram as suas relquias. O reino , pois,

    independente do rei. Trata-se de uma noo precoce, embora certamente restrita, no sculo

    XII, aos clrigos e a indivduos mais cultos. Durante o sculo XIII assiste-se sua lenta

    difuso, embora persista longamente a ideia de reino como patrimnio do soberano, como

    se verifica no frequente uso de adjectivos possessivos em documentos que so redigidos

    pela chancelaria em nome do rei: o meu reino. fora de multiplicar o uso de textos e de

  • documentos em que o conceito de reino se usa independentemente daquele que o governa,

    e portanto como uma entidade que permanece no tempo, ao contrrio do soberano, que

    necessariamente efmero, a noo difunde-se lentamente, sobretudo nas cidades e entre as

    pessoas cultas. Todavia, o uso de um possessivo por parte do monarca no deixa, por isso,

    de se prolongar durante sculos, quase at ao fim da Idade Moderna. Para as classes

    populares, porm, o reino podia, certamente, implicar apenas uma noo territorial, sem

    trazer consigo a ideia de uma comunidade constituda por todos os seus habitantes. De

    qualquer maneira, o conceito de reino representou um complemento importante da

    identidade nacional como substantivo que designava os cidados do pas como um todo. A

    naturalidade tambm um conceito medieval. Pressupe, pelo menos a partir do sculo

    XIII, a obrigao de fidelidade para com um determinado soberano pelo facto de se ter

    nascido dentro dos seus domnios. No se deve, porm, esquecer que uma ideia de

    origem feudal. A fidelidade que ela implica impe-se, portanto, em primeiro lugar aos

    dependentes de um domnio senhorial para com o seu senhor. Enquanto prevaleceram as

    instituies feudais, a fidelidade ao senhor sobrelevava a fidelidade para com o rei. Este

    estava, de resto, demasiado longe para que se colocasse o problema da fidelidade para com

    ele, excepto no interior do seu prprio domnio, onde era o senhor directo. O processo de

    centralizao rgia consiste justamente em fazer prevalecer a obrigao de fidelidade ao rei

    sobre a que era devida ao senhor feudal. Este princpio acabou por triunfar, embora custa

    de muitas lutas e contestaes, no reinado de D. Dinis, mas sofreu alguns retrocessos

    durante o sculo XIV. No suscitou contestaes nos concelhos que passaram a ser

    considerados como parte do domnio rgio, quando, pela mesma poca, se dissiparam os

    indcios de uma efectiva autonomia municipal, mas levou a situaes muito diferenciadas

    em territrios onde os senhores leigos ou eclesisticos mantiveram as suas jurisdies.

    Ideologicamente, porm, com apoio das noes do Direito Romano que se difundiu

    durante o sculo XIII, foi-se arreigando o princpio de que todos os habitantes do reino

    eram vassalos naturais do rei. A ideia, que se baseava na noo de nascimento, passou a

    relacionar-se com a noo de natureza, com as consequentes implicaes ideolgicas,

    pelo facto de assim se tornar efeito de uma realidade considerada essencial e por isso

    intocvel e sagrada. Por outro lado, sendo a naturalidade, na sua origem, uma noo de

    carcter feudal, implicava tambm a ideia de que os deveres de fidelidade no eram

    automticos, mas condicionados ao cumprimento dos deveres correspondentes de auxlio e

    conselho a que o senhor estava obrigado para com os seus vassalos. O facto de a condio

    de vassalo se adquirir pelo nascimento no punha em causa o carcter recproco de tais

    deveres. A evoluo posterior, porm, traz consigo a ideia de que se referia a obrigaes

  • automticas. Um dos grandes idelogos peninsulares destas noes Afonso X, o Sbio,

    que considera a traio ao rei como um crime hediondo. Como se v, a evoluo da ideia

    de naturalidade torna-se complementar da de reino e passa a conotar todos os

    indivduos naturais desse mesmo reino. Por sua vez, ao adquirir um sentido territorial, a

    noo de reino passou a implicar tambm a de fronteiras. De facto, enquanto significou o

    poder sobre os vassalos, mais do que o poder sobre o espao que eles habitavam, a noo

    de fronteira era uma realidade humana, mutvel, imprecisa; normalmente uma zona de

    combate ou uma rea deserta. Afectada pela noo de naturalidade, passou a considerar-

    se antes a linha que separava os vassalos de um rei dos do rei vizinho. Tornou-se ento

    complementar da noo de territrio, e este, por sua vez, interpretou-se como suporte

    fsico da diferena para com aqueles que habitavam para alm das respectivas fronteiras. A

    fronteira sempre separou os mossos dos outros, ou seja os nacionais dos estrangeiros.

    Outra noo complementar da identidade nacional por intermdio do conceito de reino,

    foi a da sucesso rgia. Esta muito mais antiga do que aquelas de que falmos at aqui,

    mas adquiriu novas formas durante a Idade Mdia. Tornou-se a expresso mais importante

    da permanncia do poder enquanto vnculo aglutinador dos vassalos. Da a criao de

    mitos que apelam para o seu carcter sagrado como forma de sublinhar a sua

    idefectibilidade, como veremos mais adiante a respeito do mito de Ourique. O rei

    apresenta-se, portanto, como sempre se apresentaram todos os chefes, como centro

    coordenador da colectividade nacional, como o garante da sua unidade e da sua coeso,

    como o defensor contra os inimigos e o protector no meio das mudanas e vicissitudes que

    sempre ameaam o homem. Mas as expresses ideolgicas da permanncia do poder rgio

    foram-se tornando mais incisivas, com as consequentes consequncias sobre a noo de

    comunidade nacional, que assim se viu envolvida pelo mesmo ideal de permanncia e de

    sacralidade.

    Como j observmos a respeito do processo de categorizao, a conscincia da

    identidade nacional s se generaliza de facto depois da difuso da escrita e da participao

    de toda a populao na vida pblica. Do mesmo modo, a influncia das noes que

    acabmos de enumerar sobre a formao do sentido da nacionalidade tambm s muito

    lentamente envolveu a maioria dos portugueses. Atingiu primeiro, obviamente, os

    representantes da autoridade rgia, uma grande parte do clero, sobretudo o que estava mais

    prximo dos bispos das dioceses e dos centros directores das ordens religiosas, mais tarde

    os membros das administraes municipais. A restante populao do Pas foi

    provavelmente mais influenciada no processo de consciencializao nacional pelo uso

    constante de emblemas e sinais concretos, como o escudo de armas do rei, a bandeira

  • nacional e a moeda. Tornaram-se, de facto, sinais identificadores. A sua categoria simblica

    dotava-os de um poder emocional que contribuiu para fazer esquecer o seu sentido

    primitivo de emblemas de dominao. E assim, mesmo quando as mudanas de regime

    faziam alterar a sua forma, como aconteceu frequentemente com a bandeira nacional, o

    escudo de armas do rei permaneceu sempre como elemento permanente, mesmo quando

    deixou de haver rei. Ainda hoje figura na bandeira de Portugal.

  • Atribuio de valor

    O valor atribudo identidade nacional tanto mais positivo quanto mais

    importante se considera a sua defesa como meio de beneficiar os indivduos que dela

    participam. Na medida em que se consideram os interesses da colectividade superiores aos

    dos seus membros, pode at tornar-se um valor supremo. Sendo assim, faz parte integrante

    de um cdigo de conduta que convida a todos os sacrifcios, mesmo o da vida, para

    garantir o bem comum. Estas noes tornaram-se inerentes ideia de ptria, como valor

    fundamental, sagrado, indiscutvel. Ao considerar eterna a noo de identidade nacional, a

    ideologia nacionalista tendeu tambm a considerar eterno o valor supremo que atribuiu

    Ptria. Ora a investigao histrica no permite confirmar tais teorias. O significado

    primitivo da palavra diferente e embora implicasse desde muito cedo um sentido

    emocional e fortemente valorativo, estava bem longe de designar o conjunto dos

    portugueses. De facto j se podem encontrar nos sculos XI e XII testemunhos da locuo

    pr ptria mori (morrer pela ptria) como expresso de um ideal altamente venerado, mas o

    sentido de ptria a diferente daquele que veio a adquirir muito mais tarde. Significa a

    terra dos antepassados ou aquela onde se nasceu. At ao fim do Imprio os textos jurdicos

    falavam de uma communis ptria para designar Roma, que todos os cidados romanos,

    mesmo sem a terem nascido, podiam invocar como ptria comum; mas esta acepo da

    palavra desapareceu com o colapso do Imprio e o advento do cristianismo, reduzindo-se

    apenas ao seu sentido original. Como diz Bernard Guene, para um monge a ptria era o

    seu mosteiro, para um campons, a sua aldeia, para um burgus, a sua cidade. No sculo

    XII um autor ingls aplica o termo monarquia insular e na segunda metade do sculo

    XIII certos juristas franceses recuperam a antiga noo romana para a aplicarem Frana.

    Este sentido difunde-se sem dificuldade entre os juristas e usado por alguns intelectuais

    que pretendem transferir para o conjunto da monarquia a carga afectiva e valorativa que se

    ligava ao pas natal. Trata-se de um uso nitidamente ideolgico. Mas a sua recepo em

    meios mais vastos to lenta como o prprio conceito de nacionalidade. Alm disso,

    permanece como uma palavra latina: a sua adaptao francesa data do sculo XVI e a

    portuguesa talvez do sculo XV (Jos P. Machado). Est ligada ao movimento humanista

    ou renascentista. A atribuio de um valor identidade nacional resulta, pois, de um

  • processo muito lento. Tentemos reconstituir os seus passos, apoiando-nos em alguns

    testemunhos histricos.

    A primeira manifestao de um valor atribudo aos portugueses por oposio aos

    estrangeiros aparece muito precocemente nosAnnales Domni Alfonsi Portugalensium regis

    (Anais de Afonso Henriques), redigidos em Santa Cruz de Coimbra por volta de 1184 ou

    1185. O contexto em que se encontra o da notcia acerca da batalha de S. Mamede. Diz o

    autor que Afonso Henriques se apoderou com mo forte do reino de Portugal, quando

    certos (homens) indignos e estrangeiros cobiavam o reino de Portugal com o

    consentimento da rainha D. Teresa, sua me. A censura contra os estranhos repete-se a

    seguir quando o mesmo autor diz que o Infante tomou o poder com ajuda dos seus amigos

    e dos senhores mais nobres de Portugal que preferiam de longe que ele reinasse do que

    sua me ou do que os indignos e de nao estrangeira. Ao designar Portugal como um

    reino estava, obviamente, a projectar sobre o passado uma realidade que s se verificou

    depois de S. Mamede. O que importa, porm, que, para o fim do reinado de Afonso

    Henriques, j um autor designava negativamente os galegos como estrangeiros e

    considerava suficiente para legitimar a sua expulso o facto de o serem. Como evidente, o

    mrito da aco atribui-se a Afonso Henriques e no propriamente aos portugueses. Para o

    fim do sculo XIV, por volta de 1380, encontramos j um texto em que o aspecto positivo

    se atribui a um conjunto de cavaleiros por serem portugueses, independentemente do valor

    do seu chefe. Trata-se da narrativa dos feitos de Rodrigo Forjaz de Trastmara redigido

    pelo autor a quem se devem as ltimas interpolaes do Livro de linhagens do Conde D. Pedro,

    no seu ttulo XXI. um texto meramente ficcional, atribudo poca das lutas do rei

    Garcia de Portugal e Galiza, no sculo XI. O heri destes feitos formula por duas vezes um

    rasgado louvor a estes boos fidalgos de Portugal.

    Numa delas diz-se mesmo que os fidalgos de Portugal sempre guardaram verdade e

    lealdade. O seu autor um desconhecido que trabalhava para o Mestre da Ordem dos

    cavaleiros do Hospital, lvaro Gonalves Pereira, pai de Nuno lvares Pereira, no tempo

    do rei D. Fernando, ou seja na poca das guerras deste rei com Castela, cujo carcter

    nacional j mencionmos. Os acontecimentos que se lhes seguiram, depois da Revoluo

    de 1383 viriam acentuar ainda mais o antagonismo para com o estrangeiro, como vimos

    anteriormente. Foi efectivamente nesse contexto que surgiu a lenda de Ourique, construda

    a partir de uma tradio que sobrevalorizava uma vitria memorvel de Afonso Henriques

    contra cinco reis mouros. O acontecimento que serviu de base empolao posterior deve

    ter sido verdico. Mas o seu relato j no fim do sculo XII era amplificado com elementos

    pouco verosmeis, como se pode verificar nos j citados Anais de D. Afonso rei de

  • Portugal. Depois de sucessivamente reinterpretado, sem o acrescentamento de sucessos

    substancialmente diferentes, o relato passou, no fim do sculo XIV, a incluir o clebre

    episdio da apario de Jesus Cristo. Segundo esta verso dos acontecimentos, teria sido

    em memria dessa apario que Afonso Henriques, depois da batalha, fixou o desenho das

    armas reais, dando-lhe a forma de uma cruz azul em campo branco, departindo a cruz em

    cinco escudos e meteo trinta dinheiros em cada um dos escudos, em reverncia da morte e

    paixo de Nosso Senhor Jesu Cristo que foi vendido por trinta dinheiros. Os reis

    posteriores, para poderem representar as armas em objectos de menores dimenses, teriam

    reduzido o nmero total de dinheiros a trinta, ou seja a cinco por cada escudete.

    Assim, embora nesta verso do Milagre de Ourique no se diga que as armas

    tinham sido dadas pelo prprio Cristo ao rei de Portugal, a relao do combate com a

    apario do Crucificado significava s por si a proteco sobrenatural a Afonso Henriques.

    A afirmao explcita de que esta proteco se estendia a todos os reis de Portugal, e

    consequentemente ao prprio reino, muito posterior. Como observou Carlos Coelho

    Maurcio, s se verificou durante o reinado de D. Manuel. Passou a letra de forma no

    clebre apcrifo em que Afonso Henriques se apresenta a prestar juramento sobre a

    apario de que tinha beneficiado na batalha de Ourique, um texto que foi longamente

    glosado e comentado durante os sculos XVI e XVII.

    A evoluo posterior da lenda fez esquecer o significado das suas diversas fases. De

    facto, nas duas verses do princpio do sculo XV, a de 1416 e a de 1419, trata-se ainda das

    armas reais e no das armas do reino. Como disse, no se manifestava ainda a crena na

    proteco divina aos reis de Portugal sucessores de Afonso Henriques, nem muito menos

    ao reino por eles governado. As armas no tinham sido dadas pelo prprio Cristo, mas

    criadas pelo rei em memria da apario do Senhor. Todos estes elementos so tardios. A

    transferncia sucessiva de significado, progressivamente mais valorativo, faz-se por meio de

    uma sacralizao cada vez mais explcita da funo rgia e do emblema que a representa.

    Pode-se associar a estes textos o sentido que se deduz da cronstica rgia dos sculos XV a

    XVII. Como se sabe, a primeira crnica dos reis de Portugal data de 1419. uma obra

    compilada por Ferno Lopes, inacabada, redigida a partir de uma considervel quantidade

    de materiais dispersos, mas que representa a primeira verso da histria dos reis

    portugueses desvinculada da memria peninsular. Com efeito, todos os seus antecedentes

    tinham por objectivo perpetuar feitos de um personagem (como Afonso Henriques ou o

    Mestre Pro Pais Correia, por exemplo), a fundao de um mosteiro, os milagres ou a vida

    de um santo, ou inseriam a histria dos reis portugueses no contexto peninsular (como a

    Crnica Geral de Espanha de 1344). Assim, foi necessrio a Ferno Lopes coligir dados de

  • natureza diversa para reconstituir a narrativa dos feitos rgios portugueses. Ora, tanto a

    crnica de 1419 como as que se lhe sucederam at meados do sculo XVII, narram mais a

    histria dos reis do que a histria da Nao. Para alm de insistirem na continuidade da

    sucesso como factor de legitimidade (o que se torna bem patente na esquemtica Crnica

    Breve do Arquivo Nacional, de 1429), do o maior relevo aos episdios vitoriosos, aos perigos,

    ameaas e sofrimentos de que os reis saem triunfantes, para transmitirem intacto aos seus

    sucessores o reino que haviam recebido anteriormente. Nelas, o espao nacional visto

    como um todo, sem qualquer distino que pudesse dar a entender que a autoridade rgia

    no era acatada da mesma maneira em todas as partes do reino. As guerras civis, as

    contradies e as lutas internas so geralmente ocultadas, a no ser, em alguns casos, para

    contar histrias de traies sempre vencidas e castigadas.

    Assim, atravs desta imagem ideal dos reis, perpassa implicitamente a noo de que a

    continuidade do poder garante a segurana do conjunto dos seus vassalos. Vai-se

    difundindo a ideia subentendida de que, assim como os reis vivem para o reino, assim os

    seus sbditos se devem sacrificar pelo bem comum.

    A primeira obra em que os portugueses aparecem como sujeito , talvez,

    significativamente, as Dcadas de Joo de Barros (1552-1563). De facto, longe do reino,

    seria difcil narrar os feitos gloriosos dos portugueses a partir do protagonismo rgio.

    Embora, como natural, a narrativa se organize em torno dos feitos dos personagens mais

    salientes, o conjunto apresenta-se, na realidade, como monumento a uma epopeia colectiva.

    O seu significado nacional, porm, s atinge um auditrio de maiores dimenses por

    intermdio da obra que ele parcialmente inspira, ou seja, atravs dOs Lusadas de Cames.

    A comear pelo prprio ttulo, trata-se efectivamente de uma epopeia colectiva e no da

    histria dos seus chefes. Os portugueses, laureados por uma designao que os liga ao

    passado clssico (o povo que reivindicava a glria de ter resistido longamente aos

    Romanos), tornam-se o centro de uma intriga que apaixona o prprio Olimpo. A sua

    conquista dos mares, apoiada por Vnus e temida por Neptuno, fora preparada por uma

    histria gloriosa, feita de combates e de paixes, cujo destino imparvel ameaava o

    prprio poder dos deuses. O povo que estava no extremo da Europa chegara aos confins

    do mundo. O impacto dOs Lusadas sobre o imaginrio nacional de tal ordem, que se

    torna difcil exager-lo, se no se compara o sentido do seu discurso com o de todos os

    textos anteriores que j referimos. Exprime uma espcie de imensa euforia resultante da

    viso da histria nacional como um conjunto cujo relato evidencia uma lgica que antes

    ningum podia ter percebido. A forma potica, retrica, enftica, do discurso imprime-lhe

    uma fora persuasiva enorme. Aqueles que se consideram membros do mesmo povo no

  • podem deixar de se convencer que aquela de facto a sua prpria histria. Assim, os

    receptores identificam-se eles prprios com os heris, no como quaisquer ouvintes de um

    relato empolgante, mas como representantes do colectivo que ali desempenha as funes

    de principal actor. O povo, que at ento fora apenas uma massa cinzenta e ignorada, cuja

    existncia s se percebia como suporte da autoridade rgia, passa para o primeiro plano das

    aces mais hericas, independentemente de qualquer chefe. um colectivo, e portanto

    um ser abstracto, mas, ao tornar-se protagonista de uma histria gloriosa, adquire

    personalidade, isto , uma identidade compreensvel para as mentes mais simples ou mais

    rudes. Resta o problema de saber quantos portugueses leram o poema, nessa poca e no

    sculo seguinte... verdadeiramente pattico observar que a publicao dOs Lusadas se

    verifica pouco antes de Portugal perder a sua independncia, e num momento em que se

    acentuavam j os sinais do desmoronamento do imprio. O imaginrio que o poema

    representa e fortalece, porm, adquire uma tal potncia, que no deixar mais de alimentar

    os sonhos mais utpicos acerca do destino nacional, at aos dias de hoje. Por outro lado, ao

    tornarse uma representao fortemente interiorizada, contamina a prpria historiografia,

    mesmo aquela que se pretende cientfica e objectiva, sobretudo a partir do sculo XIX.

    Com efeito, a ideia de decadncia que viria a tornar-se uma verdadeira obsesso da

    histria nacional, pelo menos desde meados do mesmo sculo, resulta em grande parte de

    se ter interiorizada a ideia de que o passado nacional havia alcanado dimenses de tal

    modo sobre-humanas que qualquer confrontao com a realidade presente teria de ser

    necessariamente desoladora. As interpretaes da imaginada decadncia passaram ento a

    buscar bodes expiatrios, fossem eles a corrupo moral trazida pelas riquezas do Oriente,

    a degenerescncia dos reis portugueses, a cobia da aristocracia nobilirquica, a ganncia da

    Igreja catlica, o obscurantismo da Inquisio, o maquiavelismo dos Jesutas, o absolutismo

    monrquico, o conservadorismo miguelista, a sujeio Inglaterra, a perda do Brasil. A

    comparao da inferioridade econmica e tcnica com o desenvolvimento dos pases do

    Norte da Europa tornava as cores mais sombrias, e a busca dos caminhos regeneradores

    mais cheia de ansiedade. Em tudo isto se verifica uma atitude cujo pressuposto constante

    o do valor indiscutvel da Nao.

    No devemos esquecer, porm, que nem todos os portugueses dos sculos XVI,

    XVII e XVIII leram Os Lusadas. No se pode, portanto, projectar o seu significado sobre a

    opinio de todos eles, nem atribuir a todos os conceitos subjacentes ao poema. Os leitores

    foram, sem dvida, muito numerosos, sobretudo no sculo XIX, a sua influncia enorme,

    mas no verosmil estend-la para alm de uma camada suficientemente culta da

    populao citadina. De outro modo, no poderamos explicar a anedota j mencionada a

  • respeito dos pescadores da Pvoa do Varzim. Quer isto dizer que apesar do forte impulso

    dado por Cames ao processo de consciencializao da identidade nacional, no se podem

    atribuir ao sculo XVI portugus fenmenos que s se verificaram de facto a partir da

    ltima dcada do sculo XIX. Os escritos e reflexes sobre a chamada decadncia

    nacional intensificaram-se, como se sabe, com a Gerao de 70. Mas os autores desta

    poca no se limitaram a tentar explic-la e a propor remdios para a combater.

    Procuraram tambm compreender a Nao!, definir e explicar as suas caractersticas,

    nomeadamente por meio de estudos sobre as origens do povo portugus e a averiguao

    exacta da sua histria, propor-lhe metas e objectivos a alcanar, colaborar na sua edificao,

    apontar os caminhos atravs dos quais ela podia regenerar-se ou adaptar-se ao mundo

    moderno, servindo-se para isso de processos intelectuais, como a averiguao exacta da

    histria portuguesa, ou de meios mais realistas como o desenvolvimento dos transportes e

    a industrializao. A partir de 1890, o movimento que assim procuramos descrever

    ultrapassa pela primeira vez o mbito da populao burguesa e minimamente instruda. O

    acontecimento que aparentemente desencadeou uma reaco popular a que se pode sem

    hesitao apelidar de patritica e nacionalista foi o Ultimatum de 1890. A diferena em

    relao ao passado no passou desapercebida a Ea de Queiroz, num texto em que

    manifesta a sua surpresa pela profuso e emotividade das manifestaes populares, que

    atribui ao ressurgir de uma ideia colectiva, e em que se escandaliza por essa barafunda

    sentimental e verbosa, em que o estudante do liceu e o negociante de retalho me parecem

    tomar de repente o comando do velho Galeo Portugus (cit. por Rui Ramos). Entre 1870

    e 1890 dera-se a difuso da imprensa jornalstica e a multiplicao das escolas. O nmero

    de portugueses capazes de captar a conscincia da identidade nacional e de assumir como

    um valor os interesses da Ptria tornou-se consequentemente muito maior. A partir da, a

    interveno dos mentores da Nao deixou de se dirigir apenas queles que tinham

    capacidade de deciso poltica, militar ou cultural, para se orientar sobretudo para as classes

    populares. Tomou a forma de apelo ao esprito cvico, como decorrente da obrigao de

    qualquer cidado, e utilizando os processos mais persuasivos, como as grandes

    comemoraes colectivas de feitos nacionais gloriosos nas datas dos seus centenrios ou a

    exaltao de heris da Ptria, como sementes de novos heris. Para alcanar os efeitos de

    massa pretendidos pelos mentores no era preciso insistir no valor da Ptria. A persuaso

    estava garantida partida. O patriotismo tinha alcanado o grau mais elevado da escala de

    valores; podia, pois, ser invocado com toda a segurana como motor de aco. A ideia de

    identidade nacional depressa se tornou uma convico profundamente arreigada e passou a

    estar presente na conscincia de todos. Foi invocada por todos os regimes polticos a partir

  • de ento, desde o liberalismo ao salazarismo, passando pelo republicanismo de todas as

    cores. S os anarquistas o puseram em dvida. Por isso foram ferozmente combatidos por

    republicanos e salazaristas. Salazar podia tranquilamente propor como trilogia bsica dos

    valores defendidos pelo regime a frmula Deus, Ptria e Famlia. Apontemos, finalmente,

    como elementos com semelhante valor emotivo, os acontecimentos da Histria nacional

    evocados pela memria colectiva como constitutivos dessa mesma identidade, sobretudo

    quando so atribudos Nao no seu conjunto e no apenas aos seus chefes. J

    apontmos um conjunto deles a propsito dOs Lusadas: os Descobrimentos e a Expanso.

    Podemos agora acrescentar outros, como a batalha de Aljubarrota e sobretudo as

    revolues nacionais, tais como as de 1383, 1640 e 1910. Alguns autores interpretaram

    mesmo como nacionais acontecimentos tais como a batalha de S. Mamede ou a batalha

    de Ourique.

    Projectavam sobre o passado um conceito que s teria razo de ser alguns sculos

    mais tarde. Para um historia-dor moderno tambm discutvel o carcter nacional das

    revolues mencionadas: todas elas foram desencadeadas por uma minoria ou mesmo por

    um pequeno grupo (como a de 1640) e a adeso da maioria nem sempre foi to rpida e

    espontnea como pretenderam os historiadores nacionalistas. Aqui, porm, o que nos

    interessa no so os acontecimentos em si mesmos, mas a interpretao que deles foi dada

    em funo da identidade nacional. Ao atriburem-se ao conjunto da Nao passam a

    significar, por um lado, que ela sujeito de aco autnoma, e por outro, que capaz de se

    regenerar a si mesma por meio de actos colectivos que funcionam como actos fundadores

    de novos perodos, como se em cada um desses momentos se recuperasse uma pureza

    primitiva anteriormente perdida. O papel destes acontecimentos de tal modo importante

    para a identidade nacional, que o regime salazarista no deixou de se apresentar como

    igualmente legitimado por uma Revoluo Nacional em 1926. Acontece, porm, que o

    prprio regime acabou depois por renegar esse conceito, temendo atribuir uma fora

    positiva a qualquer espcie de movimento revolucionrio (todas as revo-lues teriam sido

    perniciosas): alm disso, o progressivo descrdito do regime como movimento de massas

    acabou por esvaziar o carcter propagandstico que inicialmente se havia atribudo ao 28 de

    Maio.

    A anlise do processo por meio do qual se verifica historicamente a identidade

    nacional mostra claramente, portanto, que ela inseparvel da sua prpria percepo

    colectiva. Ou melhor, entre o momento em que Afonso Henriques se apropria do poder

    sobre o condado portucalense at quele em que a populao de Lisboa e do Porto se

    manifesta contra a Inglaterra em nome dos interesses da Ptria, vai um longo caminho,

  • atravs do qual se vai formando a conscincia de pertena ao colectivo nacional. O

    processo tem um ponto de partida meramente poltico: a apropriao do poder por um

    chefe com uma autoridade prpria sobre um conjunto de homens; tem um ponto de

    chegada que j no se pode classificar como meramente poltico, mas que se situa no

    domnio dos fenmenos da sociologia ou da psicologia social. O processo que conduz de

    um ao outro consiste, em primeiro lugar, no alargamento progressivo do conjunto de

    homens que considera um valor a pertena a esse colectivo e que capaz de compreender

    o seu interesse em lhe pertencer; e em segundo lugar na conotao da ideia de colectivo

    nacional, de forma a poder formul-la atravs de representaes mentais simultaneamente

    adaptadas compreenso simples e a uma averiguao complexa de sua natureza. Sendo

    assim, pode questionar-se o carcter natural, essencial ou eterno da identidade

    nacional, ou mesmo a sua longa durao. No pode deixar de constituir um fenmeno

    cultural, talvez efmero, apesar da sua enorme potencialidade. Estas questes, porm, s

    podem ser aprofundadas no mbito das cincias sociais e no apenas com a contribuio da

    Histria.

    Anjo Custdio de Portugal, pintura de Garcia Fernandes na Igreja de S. Francisco de

    vora

    Vrios autores do sculo XIX procuraram em razes naturais, como vimos, os

    fundamentos da Nao. O racionalismo ento dominante tentava, assim, adaptar ao

    pensamento moderno a causa divina a que os pensadores da poca anterior atribuam a sua

    fundao: iam buscar entidade quase sagrada da Natureza os fundamentos de uma

    realidade social to importante como essa, e que, por isso mesmo, no podiam considerar

    arbitrria, irracional ou perecvel. No admira, pois, que as tentativas para encontrar os

    fundamentos geogrficos da individualidade portuguesa s aparecessem nessa poca. Os

    seus adeptos, porm, no foram muitos. De lise Reclus (1876) a Orlando Ribeiro (1977),

    passando por Barros Gomes (1878) e Oliveira Martins (1879), foi-se progressivamente

    firmando a convico de que no havia nenhuma identidade geogrfica de base fsica.

    Com efeito, apesar de algumas tentativas de sentido contrrio, h muito que os

    gegrafos esto de acordo em afirmar que a individualidade natural do territrio portugus,

    como um conjunto definido face Espanha! pelas suas fronteiras polticas, praticamente

    insignificante. A maioria das unidades de relevo atravessada* como que ao acaso, pela

    fronteira, e prolonga-se para alm dela. A maior parte da raia, seca ou fluvial, divide

    paisagens pouco acidentadas e semelhantes de ambos os seus lados. Quanto ao clima, os

  • lugares onde se verifica uma mutao ntida, devido presena de barreiras montanhosas,

    no coincidem nunca com a fronteira. Por isso, a maior parte dos autores concluram que

    Portugal no se distingue do resto da Pennsula Ibrica por nenhum elemento diferenciador

    de carcter natural. O Pas foi uma construo dos homens, e no da Natureza. O

    problema da nossa individualidade geogrfica est hoje, portanto, esgotado. O debate que

    suscitou teve como resultado mais positivo a determinao das condies naturais, no do

    conjunto do territrio portugus, mas da sua diviso regional, ou seja das diferenas que o

    repartem. Acentuou a sua falta de unidade. Como mostrou Orlando Ribeiro em 1945,

    podem-se distinguir trs grandes reas naturais em Portugal: o Norte Atlntico, o Norte

    Trasmontano e o Sul; mas todas elas se prolongam pelas regies espanholas que as limitam.

    Sendo de base natural, esta diviso tripartida foi considerada como um elemento

    fundamental da explicao de grande parte dos aspectos humanos da Geografia que

    caracterizavam o Pas at meados deste sculo: os modos de ocupao e de explorao da

    terra, a densidade da populao, as tradies culturais e a repartio social. A existncia de

    regies com diferenas profundas, embora divididas por zonas de transio que dificultam

    o traado dos seus limites, constitui, pois, uma nota marcante da identidade nacional. At

    aos anos 60, os gegrafos tendiam a considerar a oposio Norte-Sul mais importante do

    que o contraste entre o Interior e o Litoral. Todavia, a actual organizao territorial, que

    tende a esvaziar as terras do Interior e a concentrar a populao e as principais actividades

    econmicas e culturais na faixa litoral, veio acentuar uma tendncia diferente, agora de

    bases pouco naturais. Com efeito, no h uma relao evidente entre as caractersticas

    fsicas do conjunto atlntico e o seu recente desenvolvimento acelerado, custa de regies

    cujas condies naturais no parecem justificar, s por si, o progressivo esvaziamento.

    preciso recorrer a factores complexos para explicar o fenmeno. Seja como for, tornou-se

    uma caracterstica do nosso Pas pelo menos to forte como a diviso Norte-Sul. Por outro

    lado, convm notar que o limite entre o Norte e o Sul de Portugal bastante claro na parte

    interior do Pas, onde a Cordilheira Central constitui um marco de grande relevo. No

    existe nenhuma separao anloga no Litoral, o que explica os diferentes traados de

    fronteira propostos pelos gegrafos, assim como o facto de um deles, Amorim Giro,

    natural da Beira e que viveu sempre em Coimbra, ter dividido Portugal, no em duas, mas

    em trs faixas latitudinais: Norte, Centro e Sul. Na sua arrumao, a Cordilheira Central

    perdia o seu papel separador, para se tornar o eixo ordenador de todo o Centro. Mais

    recentemente P. Birot (1950) manifestou uma opinio semelhante.

    A diviso Norte-Sul, todavia, tem mais adeptos, e conta com a autoridade de

    Lautensach e de Orlando Ribeiro.

  • A Cordilheira Central, que a marca, prolonga, de resto, uma fronteira geogrfica que

    vem de mais longe e que separa tambm a Meseta Norte e a Meseta Sul. A sua funo foi

    confirmada por fenmenos de vria ordem, observados por especialistas de outras

    disciplinas, como a dialectologia (Lindley Cintra), as tcnicas agrcolas (Jorge Dias e

    Ernesto Veiga de Oliveira), a estrutura do parentesco (Robert Rowland e Joaquim

    Nazareth), a prtica religiosa (Lus de Frana), o comportamento eleitoral depois de 1974

    (Jorge Gaspar, entre vrios outros) ou as estruturas poltico-administrativas (Jos Mattoso).

    As referidas discrepncias de interpretao serviram sobretudo para mostrar o

    carcter esquemtico, ou mesmo arbitrrio, de qualquer diviso primria de uma realidade

    muito complexa, onde se entrelaam no poucos elementos contraditrios, de extenso

    desigual e em evoluo constante. De facto, a influncia das condies geogrficas sobre a

    identidade nacional no se exprime apenas atravs da diviso regional. As modalidades de

    ocupao e de organizao do solo tambm a marcaram diferenciadamente. Para o verificar

    preciso ter em conta factores fsicos, como a altitude, o modelado e a natureza pedolgica

    do solo, como determinantes das condies climticas, da facilidade ou dificuldade da

    circulao humana e da explorao da terra, enfim das condies propcias ou

    desfavorveis ao rendimento do trabalho agrcola. Tomados em conjunto, determinam o

    grau de atraco ou de repulso que a terra exerce sobre as comunidades humanas e

    consequentemente sobre os caracteres de cada regio. A este respeito no se pode esquecer

    que em Portugal se encontram poucas terras fundas, planas, ricas em hmus,

    suficientemente hmidas, e, por isso, favorveis agricultura intensiva, como acontece, de

    resto, na maioria dos pases mediterrnicos, onde o relevo acidentado, o clima seco, a terra

    delgada e pobre, e os solos rochosos reduzem os campos frteis a manchas dispersas de

    solo arvel. Uma das reas que rene melhores condies naturais e que por isso sempre

    atraiu os cultivadores o Minho. Encontram-se condies semelhantes entre o Douro e o

    Vouga, na Estremadura e no litoral algarvio. Por razes que se prendem mais com a

    extenso de plancies de aluvio, podem-se tambm apontar zonas frteis no Baixo

    Mondego e no Ribatejo. No interior do Pas, as reas favorveis agricultura so mais

    raras. Mencionem-se, em todo o caso, as vrzeas de Chaves e da Vilaria, em Trs-os-

    Montes, a Cova da Beira, a rea situada entre vora e Portalegre e as terras de barro que

    circundam Beja. Mas a proporo de terras com pouco rendimento muito superior. Por

    isso, sendo Portugal um pas cuja actividade econmica predominante foi sempre, at h

    pouco tempo, a agricultura, nunca produziu excedentes bastantes para sustentar uma

    exportao significativa no mercado internacional. Exceptuam-se o Douro, com o seu

    vinho, e o litoral algarvio, de onde saam os frutos e passas destinados Europa do Norte.

  • Na histria portuguesa houve frequentes tentativas para aproveitar melhor os

    recursos agrcolas, por meio do desbravamento de terras desocupadas. Suscitaram os

    arroteamentos de que h notcias, nos sculos XI e XII, e que acompanharam um

    crescimento significativo da populao. Certas reas desertas ou de pastoreio comearam

    ento a ser ocupadas. Mais tarde, na segunda metade do sculo XIII, houve novos

    aproveitamentos de solos at ento incultos. Nesta poca, esto documentados secagens de

    terrenos pantanosos no Baixo Mondego, na Alta Estremadura e no Ribatejo, desbastes de

    florestas na Estremadura, fundaes de pvoas martimas no Minho e na Estremadura.

    Mas a crise demogrfica e econmica que se seguiu, durante os sculos XIV e XV,

    provocou o abandono de muitos terrenos pouco produtivos. Muitas das vilas mortas

    conhecidas, ou para sempre esquecidas, datam dessa poca. O aproveitamento intensivo do

    solo parece ter ficado mais ou menos parado desde essa poca at ao sculo XVIII. Mas o

    crescimento da populao portuguesa desde o fim deste sculo at meados do sculo XX

    levou a nova expanso! agrcola. Este movimento teve a sua intensidade mxima entre o

    fim do sculo XIX e meados do seguinte, dando lugar a sucessivas campanhas de

    desbravamentos!! sobretudo em terras da Estremadura, da Pennsula de Setbal, do

    Ribatejo meridional e do Alentejo. Algumas delas voltaram de novo ao bravio, sobretudo

    no Baixo Alentejo.

    Outro aspecto das condies naturais do territrio portugus directamente

    dependente das condies fsicas do solo a sua influncia sobre os transportes e a

    comunicao humana. No interior do Pas vrias serras constituem obstculos evidentes

    circulao, sobretudo quando mais elevadas, mais compactas ou mais recortadas, Muitas

    delas so praticamente desertas. Por isso, o Gers, deserto e spero, serve de raia entre

    Portugal e a Galiza; o Maro, escarpado, separa os trasmontanos dos minhotos; os

    habitantes das planuras a norte e a sul da Serra da Estrela pouco comunicavam entre si; e

    os algarvios iam mais facilmente ao Golfo de Cdiz, do que ao vizinho reino de Portugal.

    Estas dificuldades no se devem generalizar a todo o Interior. As vias de

    comunicao tradicionais contornavam as montanhas sem grande dificuldade; os

    almocreves e viajantes atravessavam-nas, mesmo em pontos agrestes. Aparentemente, a

    construo de estradas e de caminhos-de-ferro, ao acentuar o contraste entre os lugares

    mais ou menos acessveis, que veio determinar o isolamento dos povoados hoje perdidos

    nas serras, mas que outrora, quando os seus habitantes estavam habituados a caminhar

    durante vrias horas, mantinham relaes frequentes com a plancie. Maiores obstculos

    constituram as gargantas escarpadas, ao longo de rios caudalosos. Assim aconteceu no

    Douro e no Tejo em pontos onde se fixaram trechos de fronteira abandonados durante

  • sculos aos contrabandistas. Podem-se-lhe comparar alguns passos dos vales mdios do

    Lima, do Cvado, do Mondego, e de alguns afluentes, como o Zzere desde a Cova da

    Beira at ao Tejo, igualmente repulsivos para a ocupao humana; mas a principal razo

    que levou os homens a evit-los foi a escassez de fundos planos favorveis ao regadio. O

    profundo vale portugus do Douro s comeou a atrair o povoamento quando se

    organizou a exportao do vinho do Porto. Mas as regies de percurso mais difcil, em

    Portugal, so as serras de xisto miudamente recortadas. A Serra Algarvia e a mole da

    extremidade sul-ocidental da Cordilheira Central sempre constituram reas separadoras.

    Uma isola o Algarve do resto do Pas; a outra serve de fronteira Estremadura, ao

    Ribatejo, Beira Baixa, Beira Alta e Beira Litoral. Com a mesma funo repulsiva, mas

    por razes diferentes, podemos apontar a antiga Charneca da margem sul do Tejo, que

    recentemente se cobriu de sobreiros e eucaliptos, mas continua deserta, com a excepo

    dos estreitos vales regados do Sorraia. A excepcional aridez do solo fez dele o principal

    obstculo que separa o Sul portugus das regies mais activas do Centro e do Noroeste.

    O que acabamos de ver acerca do solo portugus e da paisagem fsica contribui para

    explicar que os pontos de concentrao populacional no se distribuam uniformemente

    pelo territrio. Alguns caracteres fundamentais da actual estrutura tm ntidos precedentes

    histricos, como se pode observar comparando o mapa traado a partir do levantamento

    mandado fazer em 1527 por D. Joo III com o mapa da distribuio correspondente em

    1940. Para os perodos anteriores s existem documentos indirectos, como o rol das igrejas

    de 1320, mas eles confirmam que o essencial da distribuio dos estilos de povoamento j

    se encontrava configurado nessa poca. Em cinco sculos, a populao portuguesa cresceu

    muito. era, em 1940, 5 a 6 vezes maior do que no comeo do sculo XVI, e atinge hoje

    cerca de 8 vezes o mesmo valor. Assim, s se podem comparar os tipos de distribuio

    regional; mas verifica-se que perduraram muitas caractersticas da distribuio antiga do

    povoamento.

    Em 1527 era ainda fortemente influenciada pelos factores naturais. Resultava

    sobretudo da atraco das terras mais fecundas ou mais fceis de cultivar, da capacidade de

    circulao permitida ou proporcionada pelos acidentes fsicos, mas tambm da distribuio

    dos lugares onde se foram fixando os detentores do poder. O mapa de 1940 corresponde

    expanso mxima do povoamento rural, como resultado do aumento da populao nos 150

    anos anteriores, do rendimento obtido com o uso de adubos qumicos e dos primeiros

    resultados da industrializao. A localizao em ncleos densos ou em casas dispersas

    estava j regionalmente definida em 1527. Por exemplo, em Entre-Douro-e-Minho, apenas

    21 % da populao se concentrava em lugares juntos, enquanto os 79 % restantes viviam

  • dispersos em casais. Pelo contrrio, em Trs-os-Montes, 90 % dos moradores viviam

    aglomerados, e esta proporo seria ainda maior se se exclusse a rea de transio do

    Sudoeste da provncia. No se sabe, porm, por que razo os transmontanos

    permaneceram em lugares aglomerados, com a preservao dos seus usos comunitrios, ao

    passo que nos vales do Minho as casas se intercalavam entre os stios anteriormente

    ocupados, o mais perto possvel das terras cultivadas. Em 1527 j existia na Beira central

    uma multido de pequenos concelhos rurais, cada um deles encabeado por uma vila,

    muitas vezes uma simples aldeia. A maioria perdurou at que o governo liberal suprimiu os

    menores, anexando-os a outros mais importantes. Na Estremadura, a rede de aldeias e vilas

    j se encontrava instalada no sculo XVI, e o crescimento posterior da populao fez-se

    por disperso intercalar, provocando um tipo de povoamento muito emaranhado. No

    Alentejo, encontrava-se j, em quase todos os concelhos, uma vila ou cidade de certa

    importncia, em geral amuralhada, sita em lugar alto, s vezes provida de um arrabalde, e

    com aldeias e casais apartados formando um povoamento disperso. Ao contrrio da

    Estremadura, o povoamento alentejano pouco aumentou depois do sculo XVI. Muitos

    centros urbanos mal duplicaram o nmero de habitantes (ao passo que a Populao do

    Pas, como vimos, aumentou umas 6 vezes) e perderam as suas funes no rurais. Mas o

    esqueleto de uma densa rede de centros de povoamento aglomerado perdurou, mantendo

    uma paisagem muito especfica. Actualmente continuam a perder a sua populao jovem

    em proveito das cidades do Litoral. No sculo XVI, o estilo regional de povoamento j

    estava, portanto, assente. Mas o peso relativo da populao de cada regio e a configurao

    global da sua distribuio modificaram-se bastante. A alta densidade do Minho e do baixo

    Vouga e a capacidade de atraco da Estremadura, que j se podem verificar no sculo

    XIII, mantiveram-se. Certos grandes espaos quase vazios continuaram despovoados,

    como aconteceu nos lugares que mencionmos anteriormente. Mas noutros casos

    verificaram-se importantes modificaes. Note-se o forte despovoamento relativo de Trs-

    os-Montes, da Beira oriental e do Alto Alentejo. Em 1527, as regies fronteirias do Sul,

    hoje esvaziadas, eram povoadas e activas, enquanto o Litoral era pouco mais ocupado do

    que o Interior, com excepo do Minho. A esta alterao, pode-se opor uma caracterstica

    global permanente: a elevada densidade do Noroeste comparada com o resto do Pas. Esta

    assimetria estvel vem j, provavelmente, desde a Pr-Histria. S nos tempos mais

    recentes que o contraste comeou a atenuar-se devido ao aumento do peso relativo da

    populao no Centro litoral, sobretudo da regio que rodeia Lisboa. Este fenmeno

    esboava-se j no sculo XVI, quando a Estremadura, comeava a ter uma ocupao

    comparvel com a do Minho. O rpido aumento da populao da Regio Metropolitana de

  • Lisboa representa um espectacular resultado do mesmo movimento. Mas o aspecto mais

    saliente o desequilbrio crescente entre o povoamento do Litoral, excepto ao longo da

    costa alentejana, e o do Interior. Quando se compara um mapa do aumento da populao

    por concelhos nos ltimos vinte anos com o mapa correspondente da sua diminuio,

    verifica-se que aquele se d apenas no Litoral entre Viana do Castelo e Setbal, e esta em

    todo o Interior. A aglomerao em lugares com melhores possibilidades de emprego

    comeou a manifestar-se a partir de 1950. S o crescimento moderado de alguns plos

    urbanos do Interior, e a sua aproximao dos lugares mais progressivos, por meio da

    nova rede de estradas, pode de alguma maneira compensar a fuga macia para o Litoral.

    Passemos a examinar o grau relativo da concentrao urbana e da disperso rural em

    1527. Traando o mapa das sedes administrativas com mais de 100 fogos, verifica-se o

    forte contraste que ope duas categorias de regies: em Trs-os-Montes, na Beira a norte

    da Cordilheira Central e no Baixo Alentejo ocidental nenhuma reunia mais de 500; a grande

    maioria congregava apenas 100 ou 200; na fachada atlntica de Viana do Castelo at ao

    baixo Sado, no Algarve litoral e a sul da Cordilheira Central, desde Beja at Covilh,

    multiplicavam-se as aglomeraes com mais de 1000. curioso notar que os trs grandes

    conjuntos de regies de povoamento mais urbano, viriam a ter destinos diferentes. As

    duas faixas litorais continuaram a desenvolver-se sob o impulso dos seus centros,

    sobretudo do Porto e de Lisboa. Pelo contrrio, o espao urbanizado encostado fronteira

    castelhana, cuja rede se havia mantido sem grandes alteraes desde a poca romana, graas

    sua ligao com as antigas capitais da Btica e da Andaluzia, ficou paralizado depois de

    inserido no territrio portugus. No sculo XVI, s vora, animada pela presena

    frequente da Corte, escapava ainda ao estiolamento que j afectava as regies interiores do

    Sul. Mas, a partir de 1580 cessou de vez este privilgio. Permanecendo como a principal

    cidade do Alentejo, no conseguiu polarizar o conjunto da provncia.

    Portugal desenvolveu-se, portanto, ao longo da fachada litoral, onde os centros

    urbanos prosperaram,] implantados nos stios de contacto entre a navegao! martima e a

    fluvial, e onde os rios eram cruzados pela via terrestre norte-sul. Este eixo, j importante na

    poca romana, ligava o baixo Tejo, onde se fixou a capital, com o Noroeste, povoado e

    rico, solar da mais antiga nobreza do reino, e onde o Estado se formou a partir do

    Condado Portucalense. Foi ao longo dele que o Poder se deslocou do norte para sul, entre

    o fim do sculo XI e meados do sculo XIII. Os centros urbanos do Interior ficaram cada

    vez mais dependentes dele, com excepo dos do Algarve.

    preciso distinguir as vilas ou pequenas cidades com um papel de animao local,

    dos centros urbanos com funes nacionais ou regionais. A localizao daquelas explica-se

  • por razes econmicas de abastecimento ou de trocas, num mbito espacial reduzido,

    baseadas nos contrastes naturais que marcam os seus arredores. Assim acontece em Trs-

    os-Montes e ao redor da Cordilheira Central. Outros centros urbanos foram instalados em

    stios de valor estratgico, no cimo de montes escarpados, mas desprovidos de quaisquer

    recursos locais. Apesar de protegidos pelo poder central como pontos de defesa fronteiria,

    tiveram grande dificuldade em manter-se. Estiolaram, como Miranda do Douro e Marvo,

    ou desapareceram por completo, como Numo e Marialva. A Guarda resistiu, por ter um

    anexo frtil no vale do Mondego, por ter conservado a sua sede episcopal e por estar junto

    a um cruzamento ferrovirio com ligao directa Europa.

    A relao entre os centros urbanos e a organizao regional fraca. Nenhuma cidade

    portuguesa se pode considerar o centro de qualquer grande diviso regional. A maior parte

    apresenta uma fisionomia marcada pelas caractersticas do lugar ou como elemento de uma

    famlia urbana mais vasta. Inserem-se na respectiva regio mas no a comandam. S

    escapam regra as duas cidades que polarizam as Regies Metropolitanas de Lisboa e do

    Porto. S as capitais de distrito comearam recentemente a criar alguma relao clara com a

    respectiva rea envolvente. Por razes bvias. O distrito e a sua sede foram definidos pelo

    poder central em 1835. A sua funo regional, fraca na origem, ou disputada por outra

    cidade, foi reforada pelo exerccio de funes novas, e pela presena de novos organismos

    como quartis, escolas ou universidades, o que estimulou a sua actividade e promoveu as

    suas ligaes com o territrio dependente. O crescimento regular das sedes de distrito vem

    confirmar a influncia das funes administrativas sobre a evoluo dos centros urbanos.

    As grandes comarcas regionais definidas no tempo de D. Dinis no passavam, na

    origem, de uma diviso pouco mais do que nominal. No tinham sedes urbanas e os

    respectivos corregedores circulavam por todo o seu territrio. A vida das populaes

    dependia mais das autoridades municipais do que dos representantes do poder rgio.

    Assim, apesar da influncia crescente da organizao distrital, a conscincia de origem da

    maioria dos portugueses, marcada por tradies vindas do fundo dos sculos, exprime-se

    pela ligao ao concelho e no ao distrito. A diviso regional portuguesa parece, portanto,

    nada dever a uma organizao territorial de carcter urbano. Lisboa domina, de longe, a

    maior aglomerao urbana de Portugal. Parece ter sido assim desde que se podem usar

    dados quantitativos para estabelecer comparaes! com outras cidades. A concentrao que

    nela se deu das principais actividades produtivas, administrativas e polticas de todo o Pas

    corresponde ao precoce e tradicional centralismo do Estado Portugus. A este fenmeno

    chamou-se, em tempos, a macrocefalia portuguesa termo que exprime bem a

  • desproporo entre a concentrao das funes econmicas e polticas no centro e o

    atrofiamento das mesmas funes na periferia.

    O fenmeno da urbanizao do espao, em termos econmicos, sociais, culturais e

    poltico-administrativos no tem deixado de se acentuar ao longo dos sculos, exerce uma

    influncia crescente sobre a configurao das regies. Pode parecer que a uniformizao

    dos padres* culturais imposta pelos media tem uma potencialidade capaz de cobrir por

    completo as diferenas culturais da base regional. No se sabe, porm, quais vo ser os

    resultados efectivos neste campo. Em pases que atravessam actualmente estdios muito

    mais adiantados de urbanizao, surgem caractersticas prprias de certas! cidades que lhes

    conferem um papel correspondente aos! antigos padres culturais de base rural. No

    provvel, por exemplo, que se venha a atenuar a antiga rivalidade que ope o Porto a

    Lisboa. Os caracteres especficos de cada grande cidade e da sua respectiva rea

    metropolitana podem evoluir, mas devem manter as suas diferenas. Mesmo com uma

    tnue ligao com o factor da territorialidade, os sinais identificadores que distinguem as

    comunidades humanas a nvel regional e local, expressos, agora, em comportamentos de

    origens bem mais complexas, continuaro decerto a marcar uma populao fortemente

    urbanizada, da mesma maneira que os sinais outrora ligados terra. Como concluso de