José Sérgio Leite Lopes - Lygia Sigaud (1945-2009)

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  • LYGIA SIGAUD (1945-2009)

    Jos Srgio Leite Lopes

    Lygia Sigaud legou-nos a plenitude daquilo quefez e dos planos do que estava por fazer. Sua car-reira pode ser acompanhada atravs das diferentesvariaes em seu relacionamento com o campoemprico de pesquisa, onde a Zona da Mata per-nambucana tem lugar especial. Durante toda a suatrajetria ela analisou de diversos ngulos as per-cepes e as apropriaes da entrada efetiva dodireito e suas condies de possibilidade no mun-do tradicional da plantation canavieira. A solidez desua etnografia de longa durao notabilizou-a noBrasil e no exterior. Sua morte interrompeu umtrabalho de sistematizao dessa contnua elabora-o analtica no seu momento de maturidade, commais de trinta anos de experincia emprica parale-la sua vivncia acadmica.

    Na juventude, Lygia Sigaud passou pela expe-rincia liminar do movimento estudantil secunda-rista, antes de entrar para a Escola de Sociologia e

    Poltica da PUC do Rio de Janeiro, que foi, na dcadade 1960, importante celeiro de futuros cientistassociais profissionais. Nos seus ltimos anos de gra-duao em sociologia, trabalhava como jornalistana editoria internacional do Jornal do Brasil. Foi comessa experincia anterior que ingressou, em 1968,na primeira turma de mestrado do Programa dePs-Graduao em Antropologia Social do MuseuNacional. Como tambm ocorreu com seus cole-gas de turma inicial, Lygia Sigaud participou doprojeto Estudo Comparativo do Desenvolvimen-to Regional, fazendo um survey na Regio Nordes-te. Depois, no fim de 1969 e no primeiro semestredo ano seguinte, foi para a Zona da Mata pernam-bucana com Moacir Palmeira, j com sua pesquisaindividual sobre as categorias usadas pelos traba-lhadores rurais em relao sua concepo de tem-po e hierarquia daquele mundo social especfico.Ela escolheu como centro de suas preocupaes a

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    categoria nativa direitos, como marcador do tem-po histrico e como operador central na vida coti-diana da rea estudada (Sigaud 2008a).

    Em 1972, Lygia Sigaud foi a campo juntamentecom os pesquisadores orientados por Palmeira e jcomeava a coletar material sobre o processo deexpulso, pelos patres, dos trabalhadores residen-tes nos engenhos. Os patres alegavam que com aefetivao dos direitos (preconizados no Estatutodo Trabalhador Rural, de 1963, e no Estatuto daTerra, de 1964), no podiam mais manter a maiorparte dos moradores; j os trabalhadores e os sin-dicalistas alegavam que as expulses eram motiva-das pela sonegao dos direitos. Era tambm emrelao aos direitos que eram identificados e se iden-tificavam os dois segmentos da fora de trabalho:os fichados, com contrato e com direitos; eos clandestinos, sem contrato e sem direitos(Sigaud, 2008b). Os trabalhadores expulsos foramse instalando nas pequenas cidades da Zona daMata, em novos bairros precrios chamados deponta de rua. Dali passariam a ser recrutadospor empreiteiros para os trabalhos nas proprieda-des canavieiras.

    Essa pesquisa teve um segundo perodo decampo, em 1974, resultando na tese de doutoradodefendida na USP, em 1977, e publicada dois anosmais tarde (Sigaud, 1979). Este livro se divide emduas partes. A primeira analisa a liquidao da mora-da, os mecanismos de expulso dos trabalhadores,a ruptura e o enfrentamento entre estes e os patrese, finalmente, o estabelecimento dos trabalhadoresnas pontas de rua das pequenas cidades da rea.A segunda parte percorre as novas formas de sub-misso da fora de trabalho, faz uma etnografia darelao entre empreiteiros e trabalhadores clan-destinos e descreve as estratgias contra o desem-prego durante a entressafra. Os captulos finais ana-lisam a utopia dos trabalhadores do engenho li-berto, isto , da improvvel reunio entre as van-tagens da ordem tradicional e os benefcios dosdireitos, e discutem a relao dos clandestinoscom o sindicato. Sua anlise sobre o aparente para-doxo da simultaneidade de uma idealizao dopassado da relao de morada, por parte dos tra-balhadores residentes dos engenhos tradicionais,com a busca por direitos sociais, no presente, foi

    inspiradora do interesse crescente dos cientistas so-ciais e historiadores do pas pelas concepes e pelosusos do direito por parte dos trabalhadores na his-tria brasileira recente.

    Por ter estudado as relaes sociais na Zona daMata pernambucana desde a virada da dcada de1960 para 1970 at os anos recentes, Lygia Sigaudnos fornece um panorama completo das transfor-maes ocorridas sucessivamente na rea, que re-metem a processos semelhantes ocorridos em ou-tras partes do pas. O desvendamento de formasde dominao tradicionais e de suas transforma-es em novas formas de dominao, atravs doacesso s experincias dos trabalhadores rurais napoca de auge da ditadura militar, era motivo deseu entusiasmo diante da abertura de novas possi-bilidades de ao no mundo. Em 1973 fez, comVera Echenique, uma etnografia do Segundo Con-gresso dos Trabalhadores Rurais, realizado pelaCONTAG, em Braslia. Em maio de 1979 acom-panhou o Terceiro Congresso da CONTAG, jun-to com outros colegas de pesquisa, e depois estevepresente durante as campanhas salariais e as grevesna Zona da Mata pernambucana, iniciadas em se-tembro de 1979, e que voltaram a ocorrer, de for-ma generalizada, em 1980 e nos anos seguintes.Logo aps o final da maior delas, a de 1980, LygiaSigaud publicou a descrio e a anlise do que ob-servou e da documentao disponvel (Sigaud,1980). Em 1984, por solicitao de sindicalistas,coordenou um trabalho de levantamento do cum-primento das convenes coletivas firmadas apsos movimentos grevistas. Coordenou tambm umcenso dos processos trabalhistas, tendo como pea-chave as peties iniciais, que passavam pelas Jun-tas de Conciliao e Julgamento nas comarcas darea canavieira. Em seu esforo mais recente dereflexo sobre esse material, tratava de reconstituiros elos entre o ato de recorrer Justia e a histriadas relaes sociais no mundo dos engenhos, nointuito de examinar o modo como as inovaesjurdicas produzem efeitos sobre o mundo social(Sigaud, 2008b).

    Na dcada de 1990 passou a analisar o fenme-no das ocupaes de terra e a srie de acampamen-tos de trabalhadores nos prprios engenhos, quan-do de um perodo de declnio das propriedades

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    canavieiras, quando ento reuniu uma equipebinacional de pesquisadores e alunos do PPGAS-MN e da cole Normale Superieure de Paris paraestudar diferentes aspectos dessas transformaes.(Sigaud, 2000; Sigaud e LEstoile, 2006). Em 2002,coordenou a exposio temporria Lonas e Ban-deiras, no Museu Nacional, resultado estticoaudiovisual da pesquisa sobre os acampamentos(Sigaud, 2003). A exposio ps em cena as ocu-paes de terra na Zona da Mata pernambucanapara um pblico mais amplo na cidade do Rio deJaneiro, em um de seus espaos simblicos nobres,assim como trouxe para a universidade alguns dosseus protagonistas entre os trabalhadores para osdebates que ocorreram na semana inaugural daexposio.

    Dessa rica experincia Lygia Sigaud pde seservir posteriormente para refinar a sua anlise daentrada do direito (com todos os seus personagens)no mundo social, o que a ocupou at o final da vida.Nas dcadas de 1990 e 2000, ela centrou sua atuaonas repercusses propriamente acadmicas de suaproduo intelectual, no Museu Nacional, em revistasinternacionais, com equipes em centros de pesqui-sa franceses e, mais recentemente, com a antro-pologia e a sociologia da Unicamp e com equipesda Universidade de Buenos Aires. Seu investimentonos ltimos anos foi no sentido de aprofundar oefeito explicativo de suas etnografias, dando-lhesuma perspectiva mais geral pelo uso sistemtico dereferncias pertinentes histria social da antro-pologia, que ela bem conhecia e para a qual tam-bm deu contribuies. Inversamente, sua refle-xo sobre a histria social da antropologia podiatrazer resultados originais por ser lastreada na sualonga experincia emprica particular, fornecendomotes e questes bem fundados que desvendamaspectos pouco explorados da prtica terica dadisciplina.

    Ao ser convidada para fazer a apresentao datraduo do clssico de Edmund Leach, Sistemaspolticos da Alta Birmnia, Lygia Sigaud viu a ocasiode servir-se do instrumental de anlise de trajet-rias em um campo intelectual especfico. Nessa alen-tada apresentao de 45 pginas (Sigaud, 1996), fezuma leitura meticulosa de vrias fontes publicadase de uma carta de circulao restrita ao Kings

    College, escrita logo aps a morte de Leach porStephen Hugh-Jones, enviada para ela pelo autor.Ao defrontar-se com a aceitao acadmica de umantroplogo considerado hertico e explicitamen-te desafiante dos principais autores da disciplina,Lygia Sigaud foi se interessando pelas condiesde possibilidade da originalidade e da inovao cien-tficas reconhecidas pela prpria doxa estabelecida.Em seguida, praticou a crtica hertica leiturahegemnica do clebre Ensaio sobre o dom, deMarcel Mauss (Sigaud, 1999), interessando-se pelascondies de possibilidade da formao da doxada disciplina (Sigaud, 2007).

    Sua pesquisa sobre direito e mundo social, porsua vez, estava prestes a culminar com um livrosistematizador das mltiplas elaboraes j feitasem artigos anteriores. O tema das repercusses dodireito nas transformaes sociais, da histria com-parada das ocupaes de terra e das reivindicaesde reforma agrria em Pernambuco, Rio de Janei-ro e Rio Grande do Sul, assim como o das condi-es sociais da originalidade na teoria antropolgi-ca, esto presentes nesses manuscritos em estadoadiantado de redao (Sigaud, 2008b). Esse livroter sua publicao aguardada por seus amigos ecolegas com aquela ponta de mistrio de uma obrainacabada.

    Alm do rigor acadmico, da grande capaci-dade de pesquisa e do comprometimento institu-cional que a caracterizavam, Lygia Sigaud sempremanifestou um forte engajamento poltico na am-pliao do processo de democratizao no Bra-sil, atravs dos resultados de suas investigaes cien-tficas, atravs do assessoramento a trabalhadoresrurais, atravs da participao em diretorias de as-sociaes universitrias. O sentimento de cidada-nia, de coisa pblica e de solidariedade social fo-ram uma constante em sua vida, precocementeabreviada.1

    Nota

    Este texto baseia-se na nota publicada na pgina daABA e na pgina do PPGAS-Museu Nacional (feitaem colaborao com Beatriz Heredia e RosileneAlvim) e em artigo de minha autoria sobre a trajet-ria de Lygia Sigaud (Leite Lopes, 2009).

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