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Jubiabá (Jorge Amado)

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Antônio Balduíno é um garoto pobre, criado no morro do Capa-Negro. Ali, convive com os homens mais respeitados do lugar, como o violeiro Zé Camarão e o pai-de-santo Jubiabá. Ainda criança, Baldo deseja que sua história seja cantada num ABC, composição popular em louvor de heróis e santos.Depois que a tia de criação enlouquece, Baldo é entregue à guarda do comendador Pereira. Vivendo confortavelmente na casa nova, tem como companhia a menina Lindinalva. Certo dia, porém, é obrigado a fugir. Têm início assim as aventuras que farão a fama de Antônio Balduíno.O rapaz passa um tempo como mendigo, pelas ruas. Depois, torna-se o boxeador Baldo, o Negro. Freqüenta o Lanterna dos Afogados, bar da beira do cais da Bahia. Compõe e vende sambas. Viaja ao Recôncavo, onde trabalha numa plantação de fumo. Integra-se a uma trupe de circo e coleciona amantes pelo caminho.Mas Baldo permanece fiel ao seu amor platônico por Lindinalva. É graças a um pedido dela que se torna estivador e assume a liderança de uma greve geral em Salvador. Como diz pai Jubiabá, a escravidão ainda não acabou, e Baldo se recusa a baixar a cabeça. Finalmente, o ABC de Antônio Balduíno conta que o negro valente e brigão lutou pela liberdade de seu povo.Quarto livro publicado por Jorge Amado, Jubiabá conta a história de um dos primeiros heróis negros da literatura brasileira. O romance é central na obra do autor: as contradições entre o mundo do trabalho, o conflito racial, a ideologia, a luta e, de outro lado, a cultura popular, o universo das festas, o sincretismo religioso, a miscigenação e a sensualidade vão marcar toda a sua produção.

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BahiadeTodososSantosedo

Pai-de-SantoJubiabá

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BoxeAmultidãose levantoucomose foraumasópessoa.E conservouum

silêncio.Ojuizcontou:—Seis..Porém antes que contasse sete o homem loiro se ergueu sobre um

braço, com esforço, e juntando todas as forças se pôs de pé. Então amultidão se sentou novamente e começou a gritar. O negro investiu comfúriaeoslutadoresseatracaramemmeioaotablado.Amultidãoberrava:

—Derrubaele!Derrubaele!O Largo da Sé pegara uma enchente naquela noite. Os homens se

apertavam nos bancos, suados, os olhos puxados para o tablado onde onegro Antônio Balduíno lutava com Ergin, o alemão. A sombra da igrejacentenária se estendia sobre os homens. Raras lâmpadas iluminavam otablado.Soldados,estivadores,estudantes,operários,homensquevestiamapenascamisaecalça, seguiamansiososa luta.Pretos,brancosemulatostorciampelonegroAntônioBalduínoque jáderrubarao adversárioduasvezes.

Daquela última vez parecera que o branco não se levantaria mais.Porémantes que o juiz contasse sete ele se levantou e continuou a lutar.Houveentreaassistênciapalavrasdeadmiração.Alguémmurmurou:

—Oalemãoémachomesmo...No entanto continuaram a torcer pelo negro alto que era campeão

baianodepesopesado.Gritavamagorasemparar,desejososdequealutativesseumfim,equeessefimfossecomErginestendidonochão.

Um homenzinho magro, cara chupada, mordia um cigarro apagado.Umnegrobaixoteritmavaosberroscompalmadasnosjoelhos:

—Der-ru-bae-le...Der-ru-bae-le...Esemoviaminquietos,gritavamqueseouvianaPraçaCastroAlves.Masaconteceuquenooutro roundobrancoveio comraivaemcima

donegroeolevouàscordas.Amultidãonãoseimportoumuitoesperandoareaçãodonegro.RealmenteBalduínoquisacertarnacarasangrentadoalemão. Porém Ergin não lhe deu tempo e o soqueou com violênciaatingindo-o no rosto, fazendo do olho do negro uma posta de sangue. Oalemão cresceu de repente e escondeu o preto que agora apanhava nacara,nospeitos,nabarriga.Balduínofoinovamenteàscordas,sesegurounelas,e icoupassivamentesemreagir.Pensavaunicamenteemnãocaireseatracavacomforçaàscordas.Nasuafrenteoalemãopareciaumdiabo

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a lhe martelar a cara. O sangue corria do nariz de Balduíno, o seu olhodireito estava fechado, tinha um rasgão por baixo da orelha. Viaconfusamente o branco na sua frente, pulando, e ouvia muito longe osberrosdaassistência.Estavaiava.Viuoseuheróicairegritava:

—Dánele,negro!Issonoprincípio.Aospoucosamultidãofoi icandosilenciosa,abatida,

vendoonegroapanhar.Equandovoltouagritarfoiparavaiar.—Negrofêmea!Mulhercomcalça!Aí,loiro!Dánele.Estavam com raiva porque o negro apanhava. Eles haviam pago os

trêsmil-réis da entrada para ver o campeão baiano dar naquele brancoquesedizia“campeãodaEuropacentral”.Eagoraestavamassistindoerao negro apanhar. Não estavam satisfeitos, moviam-se inquietos e oravivavamo branco ora o vaiavam. E respiraram aliviados quando o gongosooudandofimaoround.

Antônio Balduíno veio para o canto do ringue se segurando nascordas.Aíohomemmagroquemordiaocigarroinútilcuspiuegritou:

—OndeestáonegroAntônioBalduínoquederrubavabrancos?AquiloAntônioBalduínoouviu.Bebeuumgoledagarrafadecachaça

que o Gordo lhe oferecia e virou para a assistência procurando o donodaquelavoz.Vozquevoltoumetálica:

—Quedêoderrubadordebrancos?Desta vez parte da multidão acompanhou o homenzinho disse em

coro:—Quedê?Quedê?AquilodoeuaBalduínocomoumachibatada.Nãosentianenhumdos

socosdobrancomassentiaaquelacensuradosseus torcedores.DisseaoGordo:

—Quandoeusairdaquidouumasurranestesujeito.Marqueele.Equandosoouosinalderecomeçara lutaopretoseatirouemcima

de Ergin. Pôs um soco na boca do alemão e em seguida umno ventre. Amultidãoreconhecianovamenteseucampeãoegritou:

—Aí,AntônioBalduíno!Aí,Baldo!Derrubaele..Onegrobaixovoltouaritmarpancadasnosjoelhos.Omagrosorria.Onegrocontinuavaadaresentiaumagranderaivadentrodesi.Foiquandooalemãovoouparacimadelequerendoacertarnooutro

olho de Balduíno. O negro livrou o corpo com um gesto rápido e como amoladeumamáquinaquesehouvessepartidodistendeuobraçobemporbaixodoqueixodeErgin,oalemão.OcaidaEuropacentraldescreveuumacurvacomocorpoecaiucomtodoopeso.

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Amultidão,rouca,aplaudiaemcoro:—BAL-DO...BAL-DO...BAL-DOOjuizcontava:—Seis...sete...oito...AntônioBalduínoolhavasatisfeitoobrancoestendidoaosseuspés.Depois passou os olhos pela assistência que o vivava procurando o

homemquedisseraqueelenãoeramaisoderrubadordebrancos.ComonãooachassesorriuparaoGordo.Ojuizcontava:

—Nove...dez...Suspendeu o braço de Balduíno. Amultidão berravamas o negro só

ouviaavozmetálicadohomemdocigarro:—Aínegro,vocêaindaderrubabrancos.Alguns homens saíram pelo portão largo e enferrujado. Porém a

maioria se lançou para o quadrado de luz, onde estava o tablado, elevantou nos ombros o negro Antônio Balduíno. Um estivador e umestudanteseguravamnumapernaedoismulatosnaoutra.Levaramassimonegroatéomictóriopúblicoinstaladonolargoqueeraondeoslutadoresmudavamaroupa.

Antônio Balduíno vestiu a roupa azul, bebeu um trago de cachaça,recebeuoscemmil-réisaquetinhadireitoedisseaosadmiradores:

—Obrancoera fraco. . .BranconãoseagüentacomonegroAntônioBalduíno...Eucásouémacho.

Sorriu,apertouodinheironobolsodacalçaesedirigiuparaapensãoda Zara, onde morava Zefa, cabrocha de dentes limados que viera doMaranhão.

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InfânciaremotaAntônioBalduíno icava em cimadomorro vendo a ila de luzes que

eraacidadeembaixo.Sonsdeviolãosearrastavampelomorromala luaaparecia. Cantigas dolentes eram cantadas. A venda de Seu LourençoEspanhol se enchia de homens que iam conversar e ler o jornal que ovendeirocompravaparaosfreguesesdapinga.

Antônio Balduíno viviametido num camisolão sempre sujo de barro,comoqualcorriapelasruasebecosenlameadosdomorro,brincandocomosoutrosmeninosdamesmaidade.

Apesardosseusoitoanos,AntônioBalduínojáche iavaasquadrilhasde molecotes que vagabundavam pelo Morro do Capa-Negro e morrosadjacentes. Porém de noite não havia brinquedo que o arrancasse dacontemplação das luzes que se acendiam na cidade tão próxima e tãolongínqua. Se sentava naquele mesmo barranco à hora do crepúsculo eesperava com ansiedade de amante que as luzes se acendes sem. Tinhauma volúpia aquela espera, parecia um homem esperando a fêmea.Antônio Balduíno icava com os olhos espichados em direção à cidade,esperando. Seu coração batia com mais força enquanto a escuridão danoiteinvadiaocasario,cobriaasruas,aladeira,efaziasubirdacidadeumrumorestranhodegentequeserecolheaolar,dehomensquecomentamosnegóciosdodiaeocrimedanoitepassada.

Antônio Balduíno, que só fora à cidade umas poucas vezes, assimmesmo às pressas, sempre arrastado pela tia, sentia àquela hora toda avida da cidade. Vinha um rumor lá de baixo. Ele icava ouvindo os sonsconfusos,aquelaondaderuídosquesubiapelasladeirasescorregadiasdomorro.Sentianosnervosavibraçãodetodosaquelesruídos,aquelessonsde vida e de luta. Ficava se imaginando homem feito, vivendo na vidaapressada dos homens, lutando a luta de cada dia. Seus olhinhosmiúdosbrilhavam e por mais de uma vez ele sentiu vontade de se largar pelasladeirase irverdepertooespetáculodacidadeàquelashorascinzentas.Bemsabiaqueperderiaojantarequeasurraoaguardarianavolta...Masnãoeraissooqueoimpediadeirverdepertoobarulhodacidadequeserecolhiadotrabalho,Oqueelenãoqueriaperdereraoacenderdasluzes,revelaçãoqueeraparaelesemprenovaebela.

Eisqueacidadejáseenvolvequasecompletamentenastrevas.AntônioBalduínonãoenxergamaisnada.Vinhaumvento frio coma

escuridão.Elenemosentia.Gozavavoluptuosamenteosruídos,obarulho

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queaumentavacadavezmais.Nãoperdiaumsó.Distinguiaasrisadas,osgritos, as vozesdosbêbados, as conversas sobrepolítica, a voz arrastadadoscegospedindoumaesmolapeloamordeDeus,obarulhodosbondescarregadosdepingentes.Gozavadevagarinhoavidadacidade,

Umdiateveumaemoçãoenormequeoarrepioutodo.Chegoua icarem pé, tremendo de prazer. É que distinguiu choro, choro de mulher evozes que consolavam. Aquilo subia como um tropel por dentro dele, oarrastava numa vertigem de gozo. Choro... Alguém, umamulher, choravana cidade que escurecia. Antônio Balduíno escutou o choro doloroso atéque se extinguiu como ruídodeumbondequepassava arranhandonostrilhos.AntônioBalduínoainda icoucomarespiraçãosuspensavendoseconseguia ouvir mais alguma coisa. Porém deviam ter levado a mulherpara longe da rua, pois ele não escutou mais nada. Neste dia não quisjantar e não correu à noite pelas ruas com os companheiros. Sua tiadissera:

—Essemeninoviucoisa...Istoésonsocomoonão-sei-que-diga...Diasbons,também,aquelesemquesentiaacampainhadaassistência

badalando na cidade. Era sofrimento que existia embaixo e AntônioBalduíno,meninodeoitoanos,gozavaaquelespedaçosdesofrimentocomoohomemgozaamulher.

Masas luzesque se acendiampuri icavam tudo.AntônioBalduíno seenvolvia na contemplação das ileiras de lâmpadas, mergulhava os olhosvivos na claridade e sentia vontade de agradar os outros negrinhos doMorrodoCapa-Negro.Sealguémseaproximassedelenaqueleinstanteeleo acariciaria sem dúvida, não o receberia com os beliscões costumeiros,nãodiriapalavrõesquecedoaprendera.Passariasemdúvidaamãosobreacarapinhadocompanheirodebrinquedos, recostariaaopeitodoamigo.E talvez sorrisse. Mas os garotos estavam correndo pelomorro e não selembravam de Antônio Balduíno. Ele icava vendo as luzes. Distinguiavultos que passavam. Mulheres e homens que passeavam talvez. Pordetrás, nomorro, violas repinicavam, negros conversavam. A velha Luísagritava:

—Baldo,vemjantar....Meninoimpossível.Sua tiaLuísa fora-lhepaiemãe.DeseupaiAntônioBalduínoapenas

sabiaque se chamavaValentim,que fora jagunçodeAntônioConselheiroquandorapazola,queamavaasnegrasqueencontravaacadapasso,quebebiamuito,bebiavalentementeequemorreudebaixodeumbondenumdia de farra grossa. Coisas que ele ouvia da tia quando esta conversavacomosvizinhossobreofinadoirmão.Elaconcluíasempre:

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—Era um negro bonito de encher a boca d’água. Também brigão ecachaceirocomoelesó.

Antônio Balduíno ouvia calado e fazia do pai um herói. Com certezaviveraa vidada cidadenahoraemqueas luzes se acendem.Tentavaàsvezes reconstituir a vida de seu pai com os pedaços de aventuras queouvia a velha Luísa contar. A imaginação se perdia logo em atos decoragem heróica. Ficava olhando o fogo, imaginando como seria seu pai.Tudooqueouviacontardegrandeerocambolescojulgavalogoqueopaiizera amesma coisa ou coisamelhor. Quando ele e os outros negros domorroiambrincardequadrilha,eointerrogavamsobrequemqueriaser,ele, que não fora ainda ao cinema, não queria ser Eddie Polo, nem Elmo,nemMaciste.

—Querosermeupai...Osoutrosfaziampouco:—Oquefoiqueteupaifez?—Muitacoisa.—ElenãolevantouumautomóvelcomumbraçosócomoMaciste.—Elesuspendeuumcaminhão...—Umcaminhão?—Ecarregado.—Quemfoiqueviu,Baldo?—Minhatiaviu...Pergunteaela.Esenãogostoudigaoudêseujeito.Váriasvezesbrigoupelamemóriaheróicadopaiquenãoconhecera.

Em verdade ele brigava pelo pai que imaginava, aquele que amaria seconhecesse.

Damãe,AntônioBalduínonãosabianada.Andava solto pelo morro e ainda não amava nem odiava. Era puro

como um animal e tinha por única lei os instintos. Descia as ladeiras domorro em louca disparada,montava cavalos de cabo de vassoura, era depoucaconversamasdelargosorriso.

Cedoche iouosdemaisgarotosdomorro,mesmoosbemmaisvelhosdo que ele. Era imaginoso e tinha coragem como nenhum. Sua mão eracerteira na pontaria do bodoque e seus olhos faiscavam nas brigas.Brincavadequadrilha.Erasempreochefe.Emuitasvezesseesqueciaqueestava brincando e brigava seriamente. Sabia todos os nomes feios e osrepetiaatodomomento.

AjudavaavelhaLuísaafazeromunguzáeomingaudepubaqueelavendiaànoitenoterreiro.Levavaoralo,traziaosapetrechos,sónãosabiaralar coco.Os outrosmeninos no princípio levaramna troça dizendo que

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ele era cozinheira, mas se calaram no dia em que Antônio Balduínorebentou a cabeça de Zebedeu com uma pedrada. Apanhou da tia e nãoconseguiucompreenderporqueapanhava.Porémperdoavarapidamenteas surrasqueavelha lheaplicava.Tambémpoucas correadasoatingiampoiseleeraagilíssimoe icavaquenemumpeixeescorregandodasmãosda tia, se furtando das chicotadas. Aquilo era até um divertimento, umexercíciodoqualmuitasvezeselesaía rindo,vencedor, tendoconseguidoqueváriascorreadasnãooatingissem.ApesardetudoanegraLuísadizia:

—EsteéohomemdacasaAvelhaeraconversadeiraeenvolvente.Osvizinhosvinhamconversar

com ela, ouvir as histórias que ela contava, histórias de assombrações,contos de fadas e casos da escravidão. Por vezes contava ou lia históriasemversos.

Tinhaumaquecomeçavaassim:

“Leitoresquecasohorrívelvouaquivosrelatarmefazocorpotremereoscabelosarrepiarpoisnuncapenseinomundoexistisseumenteimundocapazdeseuspaismatar”.

Era a história da ilha maldita, caso que os jornais haviam relatadocomgrandestítuloseumpoetapopular,autordeABCedesambas,rimaraparavenderaduzentosréisnomercado.

Antônio Balduíno adorava esta história. Ficava pedindo para a velhacontardenovoefaziaberreiroquandonãoeraatendido.Gostavatambémde ouvir os homens contar casos de Antônio Silvino e Lucas da Feira.Nestasnoitesnãoiabrincar.Umavezperguntaram:

—Quandovocêcresceroqueéquevaiser?Elerespondeuprontamente:—Jagunço...Nãosabiadecarreiramaisbelaemaisnobre,carreiraquerequeresse

maisvirtudes,saberatiraretercoragem.—Vocêprecisaédeirparaaescola—diziam.Eleperguntavaasimesmoparaquê.Nuncaouviradizerquejagunço

soubesse ler. Sabiam ler os doutores e os doutores eram uns sujeitosmoles. Ele conhecia o Dr. Olímpio, médico sem clientela que de vez emquando subia o morro à procura de clientes que não existiam, e o Dr.

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Olímpio era um sujeito fraco, magro, que não agüentava um tabefe bemdado.

Também sua tia mal sabia ler e no entanto era respeitadíssima nomorro, ninguém mexia com ela, ninguém tirava prosa. Quando a dor decabeçaaatacava,quemerabestade conversar comavelhaLuísa?Essasdores de cabeça da velha negra atemorizavam Antônio Balduíno. De vezem quando sua tia era atacada, icava como doida, berrava, os vizinhosacudiameelabotavaparaforadizendoquenãoqueriadiabonenhumali,quefossemparaoinferno.

Um dia Antônio Balduíno ouviu duas vizinhas que estavamconversandoquandooataquepegouavelhaLuísa.

Umanegravelhadizia:— Ela tem dor de cabeça é de levar essas latas fervendo toda noite

proterreiro.Vaiesquentandoacabeça.— Qual o quê, Sinhá Rosa! Aquilo é o espírito, não tá vendo logo?

Espíritoedosbons.Dosqueandamperdidossemsaberquejámorreram.Andam vagando procurando um corpo de vivente pra se meter dentro.Espíritodecondenado,JesusCristomeperdoe.

As outras apoiavam. Antônio Balduíno é que icava numa grandedúvida e num grande medo. Temia as almas do outro mundo. Mas nãocompreendiaporqueelasiamhabitaracabeçadesuatia.

Nestesdias Jubiabávinhaà sua casa.AntônioBalduíno ia chamá-loamando de Luísa. Chegava na porta pequena da casa baixa e batia. A vozvinhadeládedentroperguntandoquemera.

— Tia Luisa tá pedindo pra pai Jubiabá ir lá em casa que ela estáatacada.

E saía correndo. Tinha ummedodoido de Jubiabá. Se escondia atrásda porta e pela greta icava espiando o feiticeiro que vinha, a carapinhabranca, o corpo curvoe seco, apoiadonumbastão, andandodevagarinho.Oshomensparavamparacumprimentar.

—Bomdia,paiJubiabá...—NossoSenhordêbom.dia...Iapassandoeabençoando.Atéoespanholdavendabaixavaacabeça

erecolhiaabênção.Osgarotosdesapareciamdaruaquandoviamovultocentenáriodofeiticeiro.Diziambaixinho:

—Jubiabávemaí.Edisparavamnacarreiraparaseescondernascasas.Jubiabá trazia sempre um ramo de folhas que o vento balançava e

resmungava palavras em nagô. Vinha pela rua falando sozinho,

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abençoando, arrastando a calça velha de casimira em cima da qual ocamisu bordado se oferecia ao capricho do vento como uma bandeira.QuandoJubiabáentravapararezaravelhaLuísa,AntônioBalduínocorriaparaarua.Masjásabiaqueadordecabeçadavelhapassaria.

Antônio Balduíno não sabia o que esperar de Jubiabá. Respeitava.omascomumrespeitodiferentedoquetinhapeloPadreSilvino,porsuatiaLuísa, pelo Lourenço da venda, por Zé Camarão e mesmo pelas iguraslendárias de Virgulino Lampião e Eddie Polo. Jubiabá passava encolhidopelos becos do morro, os homens o ouviam com respeito; recebiacumprimento de todos, e em sua porta paravam, de vez em quando,automóveis de luxo. Um dia um menino disse a Balduíno que Jubiabávirava lobisomem. Outro a irmou que ele tinha o diabo preso numagarrafa.

Da casa de Jubiabá vinham em certas noites sons estranhos deestranhamúsica. AntônioBalduíno se remexia na esteira, icava inquieto,parecia que aquela música o chamava. Batuque, sons de danças, vozesdiferentesemisteriosas.Luísaláestavacomcertezacomsuasaiadechitavermelhaedeanágua.AntônioBalduínonestasnoitesnãodormia.Nasuainfânciasadiaesolta,Jubiabáeraomistério.

Eram bem gostosas as noites do Morro do Capa-Negro. Nelas omoleque Antônio Balduíno aprendeu na sua infância muita coisa eprincipalmentemuitahistória.Históriasquehomensemulherescontavamreunidosem frenteàpor tadosvizinhosnas longasconversasdasnoitesde lua. Nas noites de domingo, quando não havia macumba na casa deJubiabámuitos se reuniam no passeio da velha Luísa, que como era diasanti icadonão iavendero seumingau.Nasoutrasportas, outrosgruposconversavam, tocavam viola, cantavam, bebiam um gole de cachaça quesemprehaviaparaosvizinhos,masnenhumeratãograndecomooquesereuniana frentedaportadavelhaLuísa.Até Jubiabáaparecia emcertosdiasetambémcontavavelhoscasos,passadoshámuitosanos,emisturavatudocompalavrasemnagô,davaconselhosediziaconceitos.EleeracomoqueopatriarcadaquelegrupodenegrosemulatosquemoravanoMorrodoCapa-Negroemcasasdesopapo,cobertascomzinco.Quandoelefalavatodos o escutavam atentamente e aplaudiam com a cabeça, num respeitomudo. Nessas noites de conversas Antônio Balduíno abandonava oscompanheirosde corridas edebrincadeiras e sepostavaaouvir.Davaavidaporumahistória,emelhoraindaseessahistóriafosseemverso.

EraporissoqueelegostavatantodeZéCamarão,umdesordeiroqueviviasemtrabalharequeaté jáera ichadonapolíciacomomalandro.Zé

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CamarãotinhaduasgrandesvirtudesparaAntônioBalduíno:eravalenteecantavaaoviolãohistóriasdecangaceiroscélebres.Tocavatambémcoisastristes,valsasecanções,nasfestasdoscasebresdoMorrodoCapa-Negroe em todas as outras festas pobres da cidade, nas quais era elementoindispensável. Era ummulato alto e amarelado, eternamente gingando ocorpo,quecriarafamadesdequedesarmaradoismarinheiroscomalgunsgolpes de capoeira. Havia quem não gostasse dele, quem o olhasse commaus olhos, porém Zé Camarão passava horas e horas ensinando aosgarotosdomorroojogodacapoeira,tendoumapaciênciain initacomeles.Rolavanochãocomosmoleques,mostravacomoseaplicavaumrabo-de-arraia,comosearrancavaopunhaldamãodeumhomem.Eraamadopelagarotadaqueoqueriacomoaumídolo.AntônioBalduínogostavadeandarcomele, de ouvir o desordeiro contar casos da sua vida. E como já era omelhoralunodecapoeiraqueriatambémaprenderviolão.

—Vocêmeensina,ZéCamarão?—Deixaestarqueeuensino.Levava recados para as namoradas de Zé Camarão e o defendia

quandofalavammaldele:—Émeuamigo.Porquenãovaidizernafrentedele?Temmedo,taí.Zé Camarão era dos certos na conversa em frente à porta da negra

Luísa.Vinhagingandoocorponoseu jeitãomalandroe icavadecócoraspitandoumcigarrobarato.Ouviaoscasos,ashistórias,asdiscussões,semfalar. Porém quando alguém contava um caso que impressionava osouvintes,ZéCamarãodescansavaocigarroatrásdaorelhaefalava:

—Hum!Hum!Issonãoénadacomparadocomumcausoquepassou-secomigo.

E vinha uma aventura, uma história cheia de detalhes para queninguém duvidasse da sua veracidade. E quando via nos olhos de algumdosassistentesumsinaldedúvidaomulatonãosealterava:

—Seduvida,seumano,pergunteaZéFortunatoqueestavacomigo.Semprehaviaalguémqueestivera comele. Sempreuma testemunha

ocular que não o deixava mentir. E em todas as coisas de barulho queaconteciam na cidade, Zé Camarão estava metido pelo que ele dizia. Seconversavamsobreumcrimeeleinterrompia:

—Euestavabempertinho...E contava a sua versão na qual ele tinha sempre um papel saliente.

Masquandoerapreciso,brigavadeverdade.QueodissesseoLourençodavendaquetinhanacaradoistalhosdenavalha.Nãoquiseraele,espanholsujo!,botarZéCamarãoparaforadasuavenda?Ascabrochasqueouviam

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as conversas olhavam para ele. Gostavam do seu jeito de desordeiro, dasua fama de corajoso, do modo imaginoso que ele tinha para contar umcasofazendocomparaçãocomelasecomcoisasdelas,osorriso,osolhos,aboca vermelha, e gostavam especialmente de vê-lo cantar ao violão comsuavozcheia.

Nomeiodas conversasquandoalguémacabavade contarumcaso etodosficavamsilenciososumacabrochalembravasempre:

—Cantepragente,Seu...—Ora,aconversatátãoboa,moça—elesefaziamodesto.—Deixedisso,SeuZé,cante...Maseudeixeioviolãoemcasa...—Nãotemnada...Baldovaibuscar...Antônio Balduíno já estava correndo rumo ao casebre onde Zé

Camarãomorava.Masestefazia-serogar:—Hojenãotoucomavozboa...Medesculpe,moças.Agoratodospediam:—Cante,ZéCamarão.—Tábom,voucantarumacoisasó...Mascantavamuitas,tiranas,cocos,sambas,cantigassaudosas,canções

tristes que enchiam os olhos d’água, e ABC aventurosos que deliciavamAntônioBalduíno:

“AdeusSacodoLimãolugarondeeunasciEuvoupresopraBahialevosaudadesdeti”

EraoABCdocangaceiroLucasdaFeira,umdosheróisprediletosdeAntônioBalduíno:

“Entusiasmadoeucarregueipompaemuitagrandezapoisnomeuranchoeutinhabotederapéàprincesa.

FuipresoparaaBahiafizeramgrandefunçãoMaseudesciacavaloeosguardasdepésnochão”.

Faziamcomentáriosbaixinho:—FoiumdanadoesseLucas.

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—Dizquetinhaumapontariacruel.—Dizqueeraumhomembom...—Bom?—Sóroubavarico...Prairbuscarodinheirodospobres...

“Homempobrenuncaroubeipoisnãotinhaoqueroubarmasosricosdecarteiraanenhumdeixeiescapar.”

—Nãotavadizendo?—Machobomdeverdade.

“Mulatasdebomcabelocabrinhasdeboacorcrioulinhassópordebiquebranquinhasnãomeescapou.”

AíZéCamarãopassavaosolhosdocesporsobreogrupodecabrochase sorria o seu melhor sorriso. Elas o admiravam como se ele fosse opróprioLucasdaFeira.Oshomens soltavamgargalhadas.Depois vinhaafidelidadedocangaceiroàsuapalavraeoseuheroísmofanfarrão:

“Nãodigoquemémeusócionemmeconvémadizersehojemevejoperdidonãodeitoosoutrosaperder.

Agrandetelaredondaemtodaaquelaredondezamechamavamcapitãocapitãosoucomgrandeza”.

PorémtinhaumahoraemqueavozdeZéCamarãoeramaischeiaeosseusolhosmaisdoces.EraquandocantavaaletraU:

“uéletravogalcoma,e,i,o,tambémAdeusCaldeirãodaFeiraadeustambémmaisalguém”.

Olhava para a sua preferida e naquele momento ele era Lucas daFeira,ocangaceiro,oassassino,quenoentantoamavaalguém.

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Terminavadebaixodeaplausos:

“Zombeidemoçosevelhoszombeitambémdemeninoshojechegouomeudiavoucumpriromeudestino”.

Vinhamaisumsamba.Bemsaudoso,cantadocomavozmaistristedeZéCamarão:

“Vou-meemboradestaterraquesótemmulhermalvada...vou-meemboradestaterralevandoumasaudade...

Asmulheresgostavam:Étãobonito.—Tristedefazerdó.Umamulherdebarrigão,grávidademuitosmeses, contavaaoutraa

suahistória,sobriamente:— Enquanto eu era bonita ele gostava de mim. Não havia presente

quenãomedesse.Disseatéqueiacasarnopadreenojuiz.—Nojuizenopadre?—Sim,minhafilha...HomemquandoquerenganarépiorqueoSujo...“Prometeu um mundão de coisas... Eu feito besta acreditei nele...

Levamos por aí uma vida ordinária... Me encheu desse jeito... Tive quetrabalhar e amarelei, perdi a cor, ele foi embora com uma cabrochavagabundaqueviviaabrindoosdentespraele..”

—Porquevocênãofazfeitiçopraelevoltar?—Praquê?Estoucumprindoomeudestino...OdestinoéDeusquem

dá.—Poisolhe:eusefossevocêfaziafeitiçopelomenosparadardoença

na bicha que levou seu homem... Então vê lá... Uma mulher leva meuhomem e ica assim... Igual a nada? Fica não, meu amor... Botava feitiço,dava lepra nela e ele voltava direitinho... E com pai Jubiabá que bota tãobem,feitiçotãoforte.

—Praquê?Destinoécoisafeitaláemcima—apontavaparaocéu.—Agente já vemcomo seuparaomundo, temde cumprir... Essequeestáaquidentro—mostravaabarrigaenorme—játemodeleprontinho.

AvelhaLuísaapoiava:

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—Temrazão,minhafilha.Éistomesmo.Aconversageneralizava:— Pois olhe: você conhece Gracinha, uma morena que mora no

GuindastedosPadres?Umamulherzinhaconhecia:—Nãoéumasemdentes,feiacomoumajararacuçu?—Essamesmo... Poisolhe: comaquela cara toda tomouohomemde

Ricardinaqueéummulherão...FeitiçofortequeJubiabáfez.—Ofeitiçoelafeznacama—riuummulato.—DizquetambémqueBalbinomorreufoidefeitiço,— Foi nada... Aquele morreu foi de ruim que era... Ruim como as

cobras.Um negro velho gordo, que raspava a sola do pé com um canivete,

contouemvozbaixa:—Vosmecês sabemoqueele fez comovelhoZequiel?Pois foi coisa

de arrepiar o cabelo... Vosmecês sabem que o velho era homem direito...Homemsério até ali. Eu conheci elemuito, trabalhamo juntodepedreiro.Umhomemdireito...Nãohaviadoisna terra.Masumdia teveamásortededefrontarcomBalbino...Ocoisa-ruimsemeteudeamigodovelhosópralevara ilhadele.VosmecêsselembramdaRosa.Eubemmelembro...Eraa cabrocha mais linda que eu olhei com esses olhos que a terra há decomer.PoisBalbinosemeteudenamorocomela,sófalavaemcasar.

Amulhergrávidadisse:—IgualzinhoaoqueRoquefezcomigo.— Chegaram a acertar o dia... Mas não vê que uma noite o velho

Zequiel foi trabalhar.Nesse tempoeleestavanocaisdoporto...Tinhaumvapor pra carregar... Balbino com a parte de noivo entrou pela casaadentro,levouaRosapramostraroenxovalqueestavaguardadonoquartodovelho.Derrubouelanacamaeeladissequegritavaenãoqueria.Deformasqueeledeunelaatéqueadeixoutodarebentadamesmocheiadesangue que nem assassinada. E ainda teve a calma para abrir amala dovelho e tirar o dinheiro que tinha lá, amiséria de cinqüentamil-réis queera para a festa do casamento. Quando o velho chegou virou doído. AíBalbino, que não era mesmo homem, só tinha era garganta, icou commedo do velho. Passou escondido até que um dia reuniu mais dois epegaramoZequielnoescuro.Deramnovelhodematar...Nem foipreso...Dizquetinhaproteçãodegentealta.

—Dizquemesmo...Umdiaumsoldadodeuneleeprendeuele.Sabemqueaconteceu?Balbinofoisolto,osoldadocomeucadeia.

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—Dizqueeleviviadizendoondetinhacandombléprapolíciafechar.NinguémhaviareparadoachegadadeJubiabá.Omacumbeirofalou:—Maselemorreudemortefeia.Oshomensbaixaramacabeça,bemsabiamqueelesnãopodiamcom

Jubiabáqueerapai-de-santo.—Morreudemorte feia.Neleoolhodapiedadevazou.Ficousóoda

ruindade.Quandoelemorreuoolhodapiedadeabriudenovo.Repetiu:—Oolhodapiedadevazou.Ficousóoolhodaruindade...EntãoumnegrotroncudochegouparapertodeJubiabá:—Comoé,paiJubiabá?—Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar o olho da

piedade...Nãotrazcoisaboa.DisseemnagôentãoequandoJubiabáfalavanagôosnegros icavam

trêmulos:—Õjúànunfótiiká,liôkú.DesúbitoonegrosejogouaospésdeJubiabáecontou:—Eu já fechei oolhodapiedade, gente...Umdia eu fechei oolhoda

piedade...Jubiabá olhou o negro com os olhos apertados. Os outros, homens e

mulheres,seafastaram.—Foi umdia lá no sertão alto. Estava tudo seco.Boimorria, homem

morria, tudomorria. A gente fugiu, a gente era um bocado,mas foi tudoicando pelo caminho. Depois só era eu e João Janjão. Um dia ele mecarregounascostasqueeu jánãopodiamaiscomaspernas...Ele tinhaoolhodapiedadebemabertoeagentetinhaagargantaseca.Osoleraruim,gente...Cadêáguanaquelemundãosem im?Ninguémsabia,não...Umdiaa gente arranjou numa fazenda uma cabaça d’água pra continuar aviagem.JoãoJanjãoiacomela,sódavaáguaderação.Agenteiamortodesede.Foiquandoagenteencontrououtrohomem,umbrancoquejáestavaquasemorrendodesede.JoãoJanjãoquisdarágua,eunãodeixei.Maseujuroquesótinhaumrestinho,nemdavapraeueele...Eeleaindaqueriadarparaohomembranco...Eletinhaoolhodapiedadebemaberto...Masomeusedetinhasecado.Tinha icadosomenteodaruindade...Elequisdaráguaeubrigueicomele...Enaraivaeumateiele.Eletinhamelevadoumdiatodonascostas...

Eonegro icouolhandoonegrumedanoiteNocéubrilhavamestrelasinúmeras.Jubiabáestavacomosolhosfechados.

— Ele tinhame levado nas costas um dia todo... Ele tinha o olho da

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piedadebemaberto...Euquerotirareledaminhafrenteenãoposso...Eleestáali,bemali,olhandopramim...

Passou a mão nos olhos querendo afastar qualquer coisa. Mas nãoconseguiaeolhavafixo.

—Melevouumdiatodonascostas...Jubiabárepetiumonotonamente:—Éruimvazaroolhodapiedade.Trazdesgraça...Entãoohomemlevantouedesceuomorrolevandoasuahistória.

AntônioBalduínoouviaeaprendia.Aquelaeraa suaaulaproveitosa.Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim seeducavameescolhiamcarreiras.Carreirasestranhasaquelasdos ilhosdomorro.Ecarreirasquenãoexigiammuitalição:malandragem,desordeiro,ladrão.Haviatambémoutracarreira:aescravidãodasfábricas,docampo,dosofíciosproletários.

AntônioBalduínoouviaeaprendia.Umdiaumhomemchegoudeviageme seaboletouna casadeDona

Maria, uma mulata gorda que diziam estar enriquecendo à custa dosclientesdeJubiabá.Ohomemvinhaconsultaromacumbeiroporcausadeuma dor antiga emartirizante que tinha na perna direita. Osmédicos jáhaviamdesistidohámuito.Falavamnomescomplicadosedavamremédioscaros. E o homem indo para trás, a perna cada vez pior, ele sem podertrabalhardetantador.

Então resolveu fazer a viagem só para vir consultar o pai-de-santoJubiabáquecuravatudonasuamacumbadoMorrodoCapa.Negro.

OhomemvinhadeIlhéus,acidadericadocacau,equasedestronaZéCamarãodolugardehonraqueocupavaanteAntônioBalduíno.

É que o homem, tendo se curado radicalmente em duas sessões nacasadeJubiabá,veionodomingoconversarnaportadavelhaLuísa.Todoso tratavamcomgrandedeferência, pois contavamqueele erahomemdedinheiro, homemque enriquecerano sul doEstado e quedera um contode réis a Jubiabá. Vestia boa roupa de casimira e até uma carta quechegaraparaSinháRicardinalevaramparaeleler.Porémeledisse:

—Eunãoseiler,dona.Eradeum irmãodelaqueestavamorrendode fomenoAmazonas.O

homem de Ilhéus deu cemmil-réis. Assim todos icaram calados quandoelechegouparaogrupoqueestavanaportadeLuisa.

—Sesenteàvontade,SeuJeremias—Luísaofereciaumacadeiracomapalhinhafurada.

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—Obrigado,dona.Ecomoosilênciocontinuasse:—Estavamconversandodequê?—Prafalaraverdade—respondeuLuísSapateiro—agenteestava

aqui falandonafarturaquehánasuazona.Nodinheirãoqueumhomempodeganharlá.

Ohomembaixouacabeçaesóentãoviramqueeletinhaacarapinhaquasebrancaegrandesrugasnorosto.

—Nãoétantoassim...Setrabalhamuitoeoganhoépouco.—Masosenhormesmoéhomemdemuitasposses...—Nada.Tenhoumarocinhaehátrintaanosqueestounaquelazona.

Játomeitrêstiros.Láninguémestálivredeumatraição.— Os homens lá são valentes? — mas ninguém ouviu Antônio

Balduíno.— Pois olhe que já havia muito homem aqui que queria ir com o

senhor.—Oshomensdelátêmcoragem?—AntônioBalduínoinsistiu.O homem passou a mão na carapinha do pretinho e falou para os

outros:—Láéumaterrabraba...Terradetiroedemorte...AntônioBalduínoestavacomosolhos ixosnohomem,esperandoque

elecontasseascoisasdaquelaterra.—Lásemataparafazeraposta...Oshomensapostamcomoéqueum

viajante vai cair: se do lado direito, se do canhoto. Casam dinheiro... Eatiramsópraverquemganhaaaposta.

Olhou para os outros querendo ver o produzindo. Baixou a cabeça econtinuou:

— Tem um negro lá que já pintou o diabo... José Estique... Negrovalentequesóvendo.Coragemchegoualieparou...Mastambémmalvadocomoelesó...Umapesteemfiguradegente.

—Jagunço?— Não é jagunço porque é fazendeiro rico... Zé Estique tem um

mundãodefazendas,umnuncaacabardepésdecacau...Masumnúmerodemortesaindamaior.

—Nuncafoipreso?Ohomemespioupiscandoosolhinhos:—Preso?—sorriu...—Eleérico...O seu sorriso era um comentário sarcástico. Os outros se olharam

admirados. Mas logo compreenderam e continuaram a ouvir

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silenciosamenteohomemdeIlhéus.— Sabem o que ele faz? Ele entra em Itabunas montado, e quando

passaporumgraúdosaltaediz:abraobolsoqueeuqueromijardentro...Não temhomemquenãoabra...ZÉEstique tempontariaboadeverdade.Uma vez entrou em Itabunas e encontrou uma moça branca, ilha dointendente.Sabeoquefez?Moça,seguraaquiqueeuqueromijar...

“Eerapramoçasegurarnascoisasdele...”—Eelasegurou?—ZéCamarãoriaemgargalhadasaltas.—Quejeitoelatinha,coitadinha.Agora os homens todos riam e simpatizavam com Zé Estique. E as

cabrochasbaixavamorostoenvergonhadas.—Matou,furtou;fezmalaummundodemoças.Tinhacoragemcomo

doido.—Jámorreu?—Morreunasmãosdeumgringofraquinhodelá...—Comofoi?—Umgringoapareceupor lápodandoroçadecacau.Atéelechegar

ninguém podava as roças. Ele fez dinheiro, comprou uma rocinha... Aípegouefoipraterradele.Maseleiaeracasar.Voltoucomumabrancatãoalva,queatépareciaumabonecadessasdeporcelana.

“ArocinhadogringoerapertinhodafazendadeJoséEstique.“Um dia Estique passou e viu a gringa estendendo roupa no

quaradouro.PegouedissepraNicolau.—QueméNicolau?—Ogringo...Pegouedissepraele:deixaessabonecaaí,moço,quede

noiteeuvenhobuscarela.Ogringo icoucommuitomedoefoicontarpraumvizinhode roça.OvizinhodissequeeleoudeixavaoumorriaporqueZéestiquenãoerahomemdeduaspalavras.Dissequevinhabuscar,vinhamesmo.Nãotinhamaistempoprafugir,efugirpraonde?Ogringovoltouquenãopodiamais.Nãoqueriadaramulhertãobonitaqueeletinha idobuscarna terradele.Masentão tinhaquemorrereZéEstiqueaindaporcimaficavacomamulher.

—Oque foiqueele fez?—aassistêncianãosecontinhamais.SóZéCamarãosorriacomoseconhecesseumahistóriamaisimpressionantequeadohomemdeIlhéus.

—DenoiteZéEstiqueveio...Saltoudocavaloe,emvezdeencontraramulher, encontrou mas foi o gringo atrás de um pau com um machadodesta idade. Abriu a cabeça do negro meio a meio... - Uma mortedesgraçada.

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Umamulherdisse:—Merecia...Bemfeito.Outra se benzeu amedrontada. E o homem de Ilhéus se demorou

contandohistóriasemaishistóriasdemortesetirosdasuaterraheróica.Equandoele foiembora,curado,AntônioBalduínosentiuumatristezadequemseseparadeumanamorada.Éque,nasconversasdasnoitesdeluadoMorrodoCapa-Negro,omolequeAntônioBalduínoouviaeaprendia.Eantes de ter dez anos ele jurou a si mesmo que um dia havia de sercantado num ABC, e as suas aventuras seriam relatadas e ouvidas comadmiraçãoporoutroshomens,emoutrosmorros.

A vida do Morro do Capa-Negro era di ícil e dura. Aqueles homenstodos trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregandonavios, ou conduzindomalas de viajantes, outros em fábricas distantes eem o ícios pobres: sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, munguzá, sarapatel, acarajé, nas ruas tortuosas da cidade, negraslavavam roupa, negras eram cozinheiras em casas ricas dos bairroschiques. Muitos dos garotos trabalhavam também. Eram engraxates,levavam recados, vendiam jornais. Alguns iampara casas bonitas e eramcriasdefamíliasdedinheiro.Osmaisseestendiampelasladeirasdomorroembrigas,correrias,brincadeiras.Esseseramosmaisnovinhos.Jásabiamdo seu destino desde cedo: cresceriam e iriam para o cais onde icavamcurvos sob o peso dos sacos cheios de cacau, ou ganhariam a vida nasfábricasenormes.Enãoserevoltavamporquedesdehámuitosanosvinhasendoassim:osmeninosdasruasbonitasearborizadas iamsermédicos,advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam sercriadosdesteshomens.Paraistoéqueexistiaomorroeosmoradoresdomorro. Coisa que o negrinho Antônio Balduíno aprendeu desde cedo noexemplodiáriodosmaiores. Comonas casas ricas tinha a tradiçãodo tio,pai ou avô, engenheiro célebre, discursadorde sucesso, político sagaz, nomorro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradição daescravidãoaosenhorbrancoerico.Eessaeraaúnica tradição.Porqueada liberdade nas lorestas da África já a haviam esquecido e raros arecordavam, e esses raros eramexterminados ouperseguidos.NomorrosóJubiabáaconservava,masistoAntônioBalduínoaindanãosabia.Raroseramos homens livres domorro: Jubiabá, Zé Camarão.Mas ambos eramperseguidos: um por ser macumbeiro, outro por malandragem. AntônioBalduínoaprendeumuitonashistóriasheróicasquecontavamaopovodomorroeesqueceuatradiçãodeservir.Resolveuserdonúmerodoslivres,dos que depois teriam ABC e modinhas e serviriam de exemplo aos

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homensnegros,brancosemulatos,queseescravizavamsemremédio.FoinoMorro do Capa-Negro que Antônio Balduíno resolveu lutar. Tudo quefez,depois, foidevidoàshistóriasqueouviunasnoitesdeluanaportadesuatia.Aquelashistórias,aquelascantigastinhamsidofeitasparamostraraos homens o exemplo dos que se revoltavam. Mas os homens nãocompreendiamou jáestavammuitoescravizados.Porémalgunsouviameentendiam.AntônioBalduínofoidestesqueentenderam.

HaviaumamulherchamadaAugustadasRendasquevivianomorroemorava pegado à casa de Luísa. Chamavam-na das Rendas porque elapassavaodiafazendorendasquevendia,aossábados,nacidade.Quandopensavamqueelaestavaolhandoparaumadeterminadacoisa,elaestavaeracomosolhosperdidosnocéu,numacoisainvisível.EradasassíduasnamacumbadeJubiabáe,sebemnãofossenegra,gozavaanteopai-de-santodeumgrandeprestígio.Dava tostões aAntônioBalduíno, tostões que elegastava comprando queimadas, ou fazendo vaca para comprar umacarteiradecigarrovagabundo,desociedadecomZebedeu.

InventavamhistóriassobreavidadeAugusta,poiselaapareceraumdia nomorro sem dizer de onde vinha nem pra onde ia. Ficou. Ninguémsabianadadasuavida.Mas,comoelatinhaaqueleolharperdidoeumrisotriste,imaginavamcoisassobreela,históriasdeinfelicidadesamorosas,deaventuras tristes. Ela mesma, quando lhe perguntavam algo sobre suavida,diziasomente:

—Minhavidaéumromance...Ésóescrever...Quando estava vendendo rendas (e ainda contava osmetros por um

processomuitorudimentar:juntandoarendaeamãodireitaporbaixodoqueixoeestendendoobraçoesquerdo)nãoraroseatrapalhava:

—Um...dois...três...—paravazangadaeagitada—vinteoquê...Quemfoiquedissequeévinte?Euaindaestouemtrês...

Olhavaparaafreguesaeexplicava:—Eleme atrapalha que a senhora não imagina... Eu estou contando

direito,elecomeçaacontarnomeuouvidodepressaquefazmedo.Quandoeuaindaestouemtrêsdejáestáemvinte....Eunãopossocomele.

Efaziasúplicas:— Vá embora que eu quero vender minhas rendas direito... Vá

embora...—Masqueméele,SinháAugusta?— Quem é, tá aí... Quem pode ser? E esse malvado que vive me

acompanhando.Nemdepoisdemortodeixademeperseguir.Outrasvezesoespíritoresolviasedivertireentãoenlinhavaaspernas

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de Augusta. Ela parava no meio da rua e com uma paciência imensacomeçavaatiraraslinhasqueeletinhapassadonassuaspernas.

—Oqueéqueestáfazendo,SinháAugusta?—perguntavam—Nãoestávendo?Estoutirandoaslinhasqueaqueledesgraçadopôs

nas minhas pernas para eu não poder andar e não vender as minhasrendas...Elequerqueeumorradefome...

E continuava a tirar as linhas invisíveis. Mas se lhe perguntavamalguma coisa sobre quem teria sido aquele espírito, Augusta nada dizia.Ficavaolhandoaolongeesorriaseusorrisotriste.Easmulheresdiziam:

—Augustaépancadaporquesofreumuito...Vidatristeadela...—Masoquefoiqueelateve?—Calaaboca.Cadaqualsabedasuavida.FoiAugustadasRendasquemprimeiroviuolobisomemqueapareceu

nomorro. Era por uma noite sem lua, quando a escuridão dominava nosbecos enlameados do morro e só raros ifós brilhavam nas casas. Noiteassombrada, noite para ladrões e assassinos. Augusta vinha pela ladeiraquandoouviu, nomato, um roncode estremecer.Olhoue viuosolhosdefogodolobisomem.Aténãoacreditavamuitoemhistóriasdelobisomememulas-de-padre.Masdaquelavezelatinhavistocomosseusolhos.Largouo cesto onde levava as rendas e disparou numa carreira até a casa deLuísa. Contou a novidade com grandes gestos de espanto, a voz aindaengasgada, os olhos desta vez esbugalhados, as pernas tremendo dacarreira.

—Bebaumgoled’água—ofereceuLuisa.—Ébomprapassarosusto...—agradecida.Antônio Balduíno ouviu e tratou de espalhar a notícia. Dentro em

poucotodoomorrosabiaqueapareceraumlobisomemenanoiteseguintemais três pessoas viram o monstro: uma cozinheira que voltava dotrabalho,RicardotamanqueiroeZéCamarão,quejogaraopunhalnobichoquedeuumagrandegargalhadaesemeteunosmatos.Enasnoitesqueseseguiramosdemaismoradoresdomorroforamvendoaassombraçãoqueriaefugia.Eomedotomoucontadomorro,fechavam-secedoasportas,aspessoas não saíam à noite. Zé Camarão propôs que izessem uma batidaparapegarobicho,porémpoucaspessoas tiveramcoragem.Sómesmoonegrinho Antônio Balduíno exultou com a proposta e escolheu pedraspontiagudas para o seu bodoque. As notícias do lobisomem continuavam:Luísa viu sua sombra num dia em que voltara mais tarde, Pedro levarauma carreira do bicho.Omorro vivia inquieto e só se falava naquilo. Atéumhomemdo jornalapareceue tirou fotogra ias.De tardesaiuanotícia,

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dizendoquenãotinhalobisomemnenhum,queerainvençãodopessoaldoMorro do Capa-Negro. Seu Lourenço da venda comprou o jornal masninguém acreditou no que ele dizia porque tinham visto o lobisomem elobisomem foi coisa que sempre existiu. Os meninos comentavam o casonosintervalosdascarreiras:

—Mamãemedissequeémeninoruimquevira lobisomem...Meninoquefazmaldade.

—É,sim.Crescemasunhas,depoisviralobisomemnumanoitedeluagrande.

AntônioBalduínoseentusiasmou:—Vamosvirarlobisomem?—Viravocêquequerirparaoinferno.—Vocêéumabesta,ummofino.—Porquevocênãovira?—Poisvouvirar,pronto.Comoé?Haviaummeninoquesabiacomoeraecontou:—Vocêdeixacrescerasunhas,ocabelo,nãose lavamais, todanoite

vai ver a lua. Façamalcriação pra sua tia. Quando for ver a lua ique dequatropés...

—Quandovocêtiverdequatropésmechamequeeumeto..— Eumeto é o braço em você... Suamãe está em casa por que não

metenela?Ooutromeninoselevantou.AntônioBalduínofoidizendo.—Nãogostoudêseujeito.—Poisdoumesmo—elargouamãonacaradonegrinho.Rolaram pelo chão. A garotada torcia. O menino era mais forte que

Antônio Balduíno, porém este era o melhor aluno de Zé Camarão ederrubou logo o outro. E só pararamde brigar quando Seu Lourenço davendapulouobalcãoedesapartou:

—Parecequenãotêmpai.O garoto foi para um canto eAntônioBalduíno com a roupa rasgada

perguntouaoquesabiacomoeraqueseviravalobisomem:—Éprecisomesmoandardequatropés?—Ésim,praseacostumar...—Edepois?— Depois vai virando... Vai icando cheio de cabelos, começa a dar

pinotes como cavalo, a cavar a terra com as unhas. Chega um dia, estálobisomem.Saicorrendopelomorro,assombrandoagente.

AntônioBalduínosevirouparaomeninoquetinhabrigadocomele:

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—Quandoeuvirarlobisomemoprimeiroqueeupegoévocê...Foisaindo.Masdomeiodocaminhovoltouparaperguntar:—Eparadesvirarcomoé?—Ah!Issonãosei,não...Detarde,omeninoquetinhabrigadocomelesechegouedisse:—Olhe,Baldo, vocêdevia começarerapegandoo Joaquimquedisse

quevocêerafundodefutebol.—Eledissemesmo?—Juro—PorDeus?—PorDeus.—Entãoelemepaga.O outro deu um pedaço de cigarro a Antônio Balduíno e izeram as

pazes.Antônio Balduíno tentou virar lobisomem. Fez malcriação à velha

Luísa,levouduasboassurras,deixoucrescerasunhasenãocortavamaisacarapinha.Nasnoitesde lua iaparao fundodacasae icavadequatro,andandoassimdeumladoparaoutro.Enãovierava. Iasedesiludindo, jáandava aborrecido com as pilhérias dos garotos que todos os diasperguntavam quando era que ele virava lobisomem, quando pensou quenão era bastante mau para virar o bicho. Resolveu então fazer umamaldademuitogrande.Passouváriosdiasmatutandooquefaria,quando,uma tarde, viu Joana, uma pretinha mimada, brincando com as bonecas.Tinha muitas que Seu Eleutério trazia, feitas de pano, “bruxas” pretas ebrancas, às quais dava nomes de conhecidos. Fazia vestidos para elas epassava o dia brincando na porta de casa. Realizava batizados ecasamentosdaquelesbonecostodos,eeramdiasdefestasparaagarotadadomorro.

Ainda se lembravam da festa que Joana dera quando batizara aIracema,umabonecadeporcelana, que seupadrinho lheofertaranodiade seu aniversário. Antônio Balduíno foi se aproximando com o plano jáformado.Echegoucomavozamigaedoce:

—Oqueéisto,Joana?—Minhabonecaestánamorando.—Ébonita...Queméonamorado?...Onamoradoeraumpolichinelodepernasbambas.—Vocêquerseropadre?AntônioBalduínoqueriaerapegaropolichinelo.Mas Joanadisseque

nãoefezumbiquinhodechoro.

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—Nãopeguequeeucontoamamãe...Váembora...AntônioBalduínoadoçoumaisavoz,sorriu,baixouos—Deixe,Joana.Deixeeupegarnele.—Não,quevocêquerquebrar.—Esegurouobonecocontraopeito.AntônioBalduínoseassustoucomoumladrãopegadoemflagrante.Comoelateriaadivinhado?Sentiumedoequisrecuar.MasJoanafazia

novamenteobiquinhodechoro, as lágrimasestavama saltardosolhoseele não resistiu. Ficou como cego, como alucinado, atirou-se em cima dosbonecoserebentouquantospôde.Joana icoualimesmoparada,chorandosemgritos.Aslágrimaspingavam,escorriampelorosto,semetiamnaboca.Antônio Balduíno icou espiando, também parado, mas achando Joanabonita com os olhos chorando. De repente a pretinha olhou as bonecasrebentadase se largounumchoroalto, cheiodegritos.AntônioBalduíno,que antes estava com pena e achava ela bonita, icou com raiva. Ficouencostado, gozando o choro. Podia ter fugido e talvez se escondesse atempo de evitar a surra, porque a velha Luísa, quando a raiva passava,achava graça e não batia mais. Porém icou encostado gozando na suaraiva aquele choro sincero. Só saiu dali arrastado. Apanhou da porta deJoana até a cozinha de casa. Neste dia nem pretendeu furtar o corpo àschicotadas. Ainda tinha diante dos olhos a igura de Joana, as lágrimascaindo, entrando pela boca. Depois icou amarrado no pé damesa e aospoucos o gozo foi acabando. Então, como não tinha o que fazer, icoubrincandodematarformigas.Umvizinhodisse:

—Meninojudeu...Esseacabacriminoso.Nãoviroulobisomem.Porémfoiobrigadoalutarcomunsdoisgarotos

e a rebentar a cabeça de um terceiro para conseguir recuperar o seuprestígio entre os moleques do morro. Prestígio que icara seriamenteabalado com ele não ter conseguido se transformar em assombração.Tambémooutrolobisomemdesapareceu,depoisqueJubiabáfezumarezaforte na força da lua cheia, de cima do morro, acompanhado de quasetodos os habitantes. Rezou com um ramo de folhas,mandou que o bichofosse embora, depois jogou o ramo na direção em que o lobisomem foravistoeaassombraçãovoltouparao lugardeondevieraedeixouempazosmoradores doMorro do Capa-Negro. Nuncamais o lobisomem voltou.Masaindahojesefaladelenasconversasdomorro.

Jubiabá,queninguémsabiaquantosanoscarregavanocostadoequemoravanoMorrodoCapa-Negromuitoantesde láhaverqualqueroutrodaqueleshabitantes,explicouahistóriadolobisomem:

—Elejáapareceumuitasvezes.Já izeleiremboraumbocadodevez.

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Maselevoltae temdevoltarenquantonãopagaroscrimesquecometeuaquiembaixo.Elehádevoltarmuitasvezesainda.

—Queméele,paiJubiabá?—Ah!ocênumsabe...Poiseleésenhorbrancoqueeradonodeuma

fazenda. Isso foinos tempospassados,ns temposdaescravidãodenegro.Afazendadele icavabemaquiondenósmoraagora.Bemaqui.OcêsnãosabeporqueessemorrochamadoCapa-Negro?Ah!ocêsnãosabe...Poiséporqueessemorro era fazendadesse senhor.E ele erahomemmalvado.Gostava que negro izesse ilho em negra para ele ganhar escravo. Equando negro não fazia ilho ele mandava capar negro... Capou muitonegro... Branco ruim... Por isso esse morro é do Capa-Negro e temlobisomemnele.O lobisomemé senhorbranco.Elenãomorreu.Era ruimdemaiseumanoiteviroulobisomemesaiupelomundoassustandogente.Agoraeleviveprocurandoolugardacasadelequeeraaquinomorro.Eleaindaquercaparnegro.

—Deust’esconjure.—Elequevenhamecaparqueelevaiter—ZéCamarãoria.— Negro que ele capou era avô, bisavô de nós... Ele procura nós

pensandoqueaindasomosescravodele.—Masnegronãoémaisescravo.— Negro ainda é escravo e branco também— atalhou um homem

magroquetrabalhavanocais.—Todopobreéaindaescravo.Escravidãoaindanãoacabou.

Os negros, os mulatos, os brancos baixaram a cabeça. Só AntônioBalduínoficoucomacabeçaerguida.Elenãoiaserescravo.

Não era muito popular no morro o negrinho Antônio Balduíno. Nãoque fossepiorqueosoutros.Brincavacomeles, jogavacomoeles futebolcombola feitadebexigadeboi, iaespiarasnegrasmijaremnoarealqueicava por detrás da Baixa dos Sapateiros, furtava frutas nos tabuleiros,fumava cigarros baratos, dizia palavrões cabeludos. Porém não era porestas coisas que não gostavam dele. Não gostavam porque era quempensava todas as maldades que os garotos faziam no morro; saíam dacabeça dele todas as idéias de brincadeiras esquisitas, de molequeirasinconfessáveis.

Não fora dele a idéia de irem todos osmoleques domorro assistir àfestadoBon im?Saíramporvoltadastrêshorasdatardeeatéastrêsdamanhã ainda não haviam chegado. As mães corriam a litas de casa emcasa,algumaschoravam,ospaissaíramaprocurar.Paraosmeninoséquea aventura foi admirável: andaram a cidade quase toda, gozaram a festa

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atéo im,brincaramatecansaresóselembraramdevoltarquandojánãoagüentavam mais de sono. Haviam furtado tabuleiros de negras quevendiam doces, tinham beliscado muita coxa de moça, tinham brigadotambém. Quando voltaram, já dia claro, iam amedrontados na certeza dasurra.Ediziamaospais:

—FoiBalduínoquemmechamou...PorémnestediaavelhaLuísanãobateuemBalduíno.Alisouacabeça

dosobrinho,dizendo:—Elesforamporquequis,nãoé,meufilho?TambémJubiabágostavadeAntônioBalduíno.Falavacomelecomose

elefosseumhomem.Eopretinhoiatomandoamizadeaomacumbeiro.Respeitava-o porque ele sabia tudo e solucionava todas as questões

entreoshomensdomorro.Ecuravatodasasdoençasefaziafeitiçosforteseeralivre,nãotinhapatrãonemhoráriodetrabalho.

Noitealta,certavez,gritosdolorososdesocorroespantaramapazdomorro.Ascasasseabriram,homensemulheressaíamparaaruacomosolhos meio fechados de sono. Era na casa de Leopoldo. Mas os gritos játinham acabado, apenas vinham gemidos baixinhos. Correram para lá. Aporta de tábua de caixão estava aberta, a tramela rebentada, e dentroLeopoldoestrebuchavacomduasfacadasnopeito.Osanguefaziapoçaemredor. Leopoldo se suspendeuedepois caiuparanão levantarmais. Saiuuma golfada de sangue pela boca e alguémmeteu na suamão uma velaacesa.Falavamemvozbaixa.Umamulhercomeçouarezarumaoraçãodemoribundos.Eacasaseencheuaospoucos.

Eraaprimeiravezquealguémentravana casadeLeopoldo.Elenãoqueria ninguém lá. Homem de poucas relações, não tinha intimidade, edesdeque semudarapara omorro, nunca visitara ninguém. Sóuma vezfoiàcasade Jubiabáepassou lámuitashoras.Masninguémsoubeoqueele disse ao pai-de-santo. Trabalhava de carpina e bebia muito. Quandobebia na venda de Seu Lourenço icava ainda mais sorumbático e davasemmotivosocosnobalcão.AntônioBalduínotinhamedodele.Ecommaismedoainda icouquandooviumortocomduasfacadasnopeito.Nuncasesoube quem foi o assassino. Porém, um ano depois, certo dia Balduínoestava correndo pela ladeira quando um homem de calça rasgada echapéufurado,caradedoente,seaproximoueperguntou:

—Ómenino,moraaquiumsujeitochamadoLeopoldo?Umnegroalto,sério.

—Jásei...Nãomoramais,nãosenhor.—Jásemudou?

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—Não.Morreu...—Morreu?Dequê?—Defacada.—Assassinado?—Foi,simsenhor.Olhouohomem:—Osenhoreraparentedele?—Quemsabe?Mediga,qualéocaminhodacidade?—O senhor não quer ir lá em cima sabermais nada?Titia pode lhe

dizer... Eu lhemostro a casaondeSeuLeopoldomorava...Agora éde SeuZeca...

OhomemtiroudacalçarotaquinhentosréisedeuaBalduíno.—Olha,garoto:seelenãoestivessemorto,morriahoje...E desceu a ladeira sem esperar resposta. Antônio Balduíno desceu

correndoatrásdohomem:—Osenhornãoquersaberocaminhodacidade?Masohomemnemolhouparatrás.AntônioBalduínonãocontoueste

encontro a ninguém de tantomedo que icou. E em sonhos a imagem dohomemdechapéufuradooperseguiumuitotempo.Pareciaqueelevinhademuito longe e estava cansado.AntônioBalduínopensouqueo olhodapiedadedaquelehomemtinhavazado.

Um,dois,trêsanossepassaramnaquelavidadomorro.Oshabitanteseramosmesmos,avidaamesma.Nadamudava.SóasdoresdecabeçadeLuísaaumentavam.Agorahaviampassadoaserquasediárias,pegandoanegra logoqueelavoltavadavendanoturna,domunguzáedomingau.Anegra icava gritando, botava os vizinhos para fora, vinha Jubiabá e cadavezdemoravamaisparacurarasdoresdeLuísa.Avelhaandavaesquisita;chegava da rua furiosa, berrando, zangando por tudo, batia emBalduínoporqualquernadaqueelefazia,edepoisquandoadormelhoravapegavanosobrinho,botavanocolo,catavacafunénacarapinha,choravabaixinho,pediaperdão.

Antônio Balduíno vivia apalermado, sem entender. Achava a tiaincompreensível, com aqueles acessos de raiva e de carinho. E nasbrincadeiras, de quando em vez, parava para pensar na tia, na dor decabeça que a estava matando. Sentia que em breve a perderia e issoconfrangiaoseupequenocoração,que,noentanto, jáestava tãocheiodeamoredeódio.

A tarde tinhasidosombria, cheiadenuvensnegras.Comanoiteveioumventogrosso,pesado,queapertavaoshomensnopescoçoeassoviava

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nos becos. Enquanto as luzes não acenderam, o vento dominou a cidade,correu com osmoleques pelas ladeiras, visitou asmulheres do Beco dasFlores e do Beco de Maria Paz, levantou nuvens de pó, invadiu casas equebroumoringas. Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta,um temporal comohámuitonãohavia.Os ifósapagavam,não seouviamvozes nas casas. O morro se fechou nos casebres. Luísa estava sepreparando para sair. Antônio Balduíno matava formigas num canto dasala.Atiapediu:

—Ajudaaqui,Balduíno.Ele ajudou a botar uma lata em cima do tabuleiro, que Luísa

suspendeu e colocou na cabeça. Passou a mão no rosto de AntônioBalduíno e se dirigiu para a porta. Antes de abrir a tramela, porém,sacudiucomotabuleiroeaslatasnochão,numgestoderaiva,egritou:

—Nãovoumais.AntônioBalduínoficoumudodeespanto.—Ah!Ah!Nãovoumais,quemquiserquevá.Ah!Ah!—Oqueé,tia?Omunguzá corria pelos tijolos do chão. Luísa icoumais calma e em

vezderesponder,começouacontarumahistoriamuitocompridadeumamulher que tinha três ilhos, um carpina, o outro pedreiro e o terceiroestivador.Depoisamulheriaserfreiraeelapassouacontarahistóriadostrês ilhos.Masahistórianão tinhapénemcabeça.ApesardistoumavezAntônio Balduíno não pôde deixar de rir. Foi quando o carpinteiroperguntouaodiabo:

—Cadêoseuchifre?Eodiaborespondia:—Deipraseupai.FoiquandoLuísa,queestavanomelhordahistóriaatrapalhada,olhou

paraaslatasdemunguzáemingau.Deuumpuloecantarolou:“eunãovoumais...nuncamais...nuncamais...”

AíAntônioBalduínotevemedodenovoeperguntouseelaestavacomdordecabeça.ElaolhouparaosobrinhocomunsolhostãoestranhosqueAntônioBalduínorecuouatédetrásdamesa.

— Quem é você? Você quer roubar omeumingau, moleque. Vou teensinar.

CorreuatrásdeBalduíno,quesedespencouparaaruaesóparouna

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casa de Jubiabá. A porta estava apenas encostada, ele empurrou e foientrando.Jubiabáestavalendoumvelholivroquandoeleentrou.

—Oqueé,Baldo?—PaiJubiabá...PaiJubiabá...Nempodiafalar.Respirouecomeçouachorar.—Oqueé,meufilho?—TiaLuísaestáatacada.O temporal zunia lá fora. A chuva caía em grandes pingos. Mas

Balduínonãoouvianada,sóouviaavozdatiaaperguntaraelequemerae os seus olhos estranhos, olhos que ele nunca tinha visto em pessoaalguma... E eles foram correndo sob o temporal, a chuva caindo, o ventozunindo.Iamsilenciosos.

Quando chegaram, a casa já estava cheia de vizinhos. Uma mulherdiziaaSinháAugustadasRendas:

—Issoédecarregaraquelas latasnacabeça...Euseideumamulherquetambémenlouqueceuporcausadisto...

Antônio Balduíno começou novamente a chorar. Augusta discordavadavizinha:

— Nada disto, comadre. O que ela tem é espírito e do bom. Vai vercomoJubiabáacabacomissonuminstante...

Luísa cantava em voz alta, soltava gargalhadas e estava com ZéCamarãoqueapoiavatudoqueeladizia. JubiabáseaproximouecomeçouarezarLuísa.LevaramAntônioBalduínoparaacasadeAugusta.Maselenãodormiu,eemmeioaotemporal,aoruídodoventoedachuva,ouviaosgritoseasgargalhadasdasuatia.Esoluçavaalto.

Nooutrodiaveioumcarrodohospício,doishomenspegaramavelhae a levaram.AntônioBalduíno se agarrou a ela.Não queria deixar que alevassem.Tentavaexplicar:

—Nãoénada,não.Ésódordecabeçaqueelatem.paiJubiabácura...Nãolevaela...

Luísacantarolava,indiferenteatudo.Mordeuamãodoenfermeiroesóosoltouquandootrouxeramàforça

para a casa de Augusta. Então todos foram muito bons com ele. ZéCamarãoveioconversarcomele,falaremviolãoecapoeira,SeuLourençodavenda lhedeu caramelos, SinháAugustadizia “coitadinho, coitadinho”.Veio também Jubiabá que amarrou uma iga no pescoço de AntônioBalduíno:

—Istoéparavocêserforteecorajoso...Eugostodevocê.Ficou uns dias na casa de Augusta. Umamanhã, porém, ela o vestiu

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comamelhorroupaeolevoupelamão.Eleperguntouparaondeiam.— Você agora vai morar numa casa bonita. Vai morar com o

ConselheiroPereira.Elevailhecriar.AntônioBalduínonãodissenada,maspensoulogoemfugir.Quandojá

iampertoda ladeiraencontraramJubiabá.AntônioBalduínobeijouamãodofeiticeiroquedisse:

—Quandocrescervenhacá.Quandotiverhomem.Os meninos estavam todos parados na rua, espiando. Balduíno deu

adeuscomtristeza.Desceu.Lá de baixo ainda via a igura de Jubiabá sentado num barranco do

morro,ocamisuagitadopelovento,folhasdeervasnamão.

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TravessaZumbidosPalmares

Velharuadecasassujasedesobradosdecorinde inida.Vinhanumareta semdesvios.Ospasseiosdas casas é que eramdesencontrados, unsaltos, outros baixos, alguns avançando para o centro da rua, outrosmedrosos de se afastarem da porta. Rua mal calçada de pedrasdesarrumadas,plantadadecapim.

O silêncio eo sossegodesciamde tudoe subiamde tudo.Vinhamdomardistante,dosmontesláatrásdascasassemluz,dasluzesmesmodosrarospostes,daspessoas,baixavamdoarsobreagenteeenvolviamaruae as criaturas. Parecia que a noite chegava mais cedo para a TravessaZumbidosPalmaresqueparaorestodacidade.

Nemomarquebatianaspedras,aolonge,acordavaosonodaruaqueseriaumavelhasolteironaàesperadonoivoquepartiraparaascapitaisdistantes e se perdera na confusão dos homens apressados. A rua eratriste. Uma travessa agonizante. A calma da rua pesava com um ar deagonia.Agonizavatudoemredor:ascasas,omorro,asluzes.Osilêncioeraduroefaziasofrer.ATravessaZumbidosPalmaresagonizava.

Como estavam velhas as casas, como saltavam as pedras docalçamento!

Tãovelhacomoanegraanciãquemoravanacasamaisnegraedava,aos moleques, com gestos maternais, tostões para comprar cocada, epassavaodiapitandoumcachimbodebarro,murmurandopalavrasqueninguémentendia.

Aruaencurvaraeascasasruiriambreve.Osilêncioédemorte.Descedomorro,sobeaspedras.

A Travessa Zumbi dos Palmares agonizava! Uma vez um casal denoivos veio ver uma casa para alugar! Casa confortável e quieta. A noivadisse,porém:

—Não.Nãoquero.Essaruapareceumcemitério...Dois sobrados na esquina, um defronte do outro. O resto da rua era

formadoporcasinhasbaixas,escuras,eumououtrosobradoquejátinhaperdidoacorenosquaismoravaumalegiãodehomenstrabalhadores.

Ossobradosdaesquina, sebemantigos, eram,noentanto,grandeseformosos.Nodadireitamoravauma famíliaque tinhaumdesgostomuitogrande, aperdadeum ilhoquemorreraassassinado.Viviamrecolhidos,não apareciamnuncanas janelas, que estavameternamente trancadas, e

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traziam sempre luto fechado. Quando, por acaso, uma janela se abria,podia-severnasaladevisitasumquadroenormequeeraoretratodeumjovem loiro, fardado de tenente. Trazia um sorriso provocador nos lábiosinos e uma lor na mão alva. O sobrado tinha uma varanda e nestavarandaumamoça loiravestidadepreto.Liaum livrodecapaamarelaejogavaníqueisparaAntônioBalduíno.

Todasas tardesvinhaummoçobonitoepassavaemtodaaextensãodarua.Assoviavabaixinhoatéqueamoçaovia.Entãoelase levantavaevinha para o gradeado da varanda de onde icava sorrindo. O rapazelegante passava várias vezes, cumprimentava, sorria, e antes de iremboratiravaumcravodabotoeirae,apósbeijá-lo,jogava-onavaranda.Amoçaoapanhavarápida,umsorrisonos lábios,orostoescondidonamãolivre.Metiaocravovermelhonolivrodeversosedavaumadeusinhocomamão.Omoçoiaemboraevoltavanooutrodia.Elajogavaumníquelparao negrinho que estava lá embaixo e que era a única testemunha desseamor.

Defronte icava o sobrado do comendador. Gansos passeavam nojardim lorido e mangueiras cresciam na alameda que icava ao lado dacasa.

O comendador comprara aquilo barato nos bons tempos, “umaverdadeira pechincha”, comodizia aos domingos depois que dava a voltanojardimeiadeitarnoquintalaofundo.Moravaalihámuitosanos,desdeque começara a enricar, e talvez gostasse daquela casa velha de tantosquartosnatravessasemmovimento.

Antônio Balduíno é que icou espantado com o tamanho da casa.Nuncaviracoisa igual.NoMorrodoCapa-Negroascasaserampequenas,debarrobatido,portasdecaixão,cobertasdezinco.Tinhamduasdivisõesapenas: a sala de jantar e o lugar onde dormiam. Mas o sobrado docomendador, não. Como era grande, quantos quartos tinha, alguns atéfechados, um quarto de hóspedes sempre mobiliado esperando alguémque nunca vinha, salas enormes, cozinha bonita, a latrina melhor quequalquercasadomorro!

QuandoAugusta,dasRendaschegoucomonegrinho,cansadosambosda caminhada longa doMorro do Capa-Negro até a Travessa Zumbi dosPalmares, estavam almoçando na casa do comendador. A comida detemperoportuguêscheirava.OComendadorPereiraemmangadecamisapresidiaafamiliarfestaqueeraoalmoço.QuandoAugustaentrou,levandopela mão o negrinho, Antônio Balduíno ergueu os olhos e viu logo

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Lindinalva.Na cabeceira da mesa o comendador era um português de grandes

bigodesegrandesgarfadas.Aoladoaesposaquasetãogordaquantoele.E Lindinalva numa cadeira direita da mãe, magríssima e sardenta, oscabelos vermelhos e a boca pequena, fazia o contraste mais ridículo domundo.Mas Antônio Balduíno, que estava acostumado com as negrinhassujas do morro, achou Lindinalva parecida com as iguras das folhinhasqueSeuLourençodistribuíaentreosfreguesespeloNatal.

Ela eraumpoucomais alta queonegrinho, se bem fossemais velhatrês anos. Antônio Balduíno baixou os olhos e icou espiando o assoalhoenvernizado,cheiodedesenhoscomplicados.

DonaMaria,aesposa,convidou:—Sente,SinháAugusta.—Estoubem,DonaMaria.—Jáalmoçou?—Aindanão.—Entãovenha.—Não. Depois eu como na cozinha...—Augusta sabia o seu lugar e

quantohaviadepuragentilezanoconvite.Quando o comendador acabou de mastigar a comida que tinha na

boca, arriou o talher em cima do prato vazio e gritou para os fundos dacasa:

—Trazodoce,Amélia!Enquantoesperavavirou-separaAugusta:—Então,Augusta?—Vimtrazeromeninoquefaleicomosenhor.Ocomendador,amulhereafilhaolharamparaAntônioBalduíno.—Ah!éesse...Venhacá,Benedito—chamouocomendador.AntônioBalduínoseaproximoumedroso,concertandojáumafugadas

mãos gordas do homem. Porém o comendador não lhe queria fazer malalgum.Perguntou:

—Comotechamas?—MeunomeéAntônioBalduíno...—Éumnomemuitogrande.DeagoraemdianteteunomeéBaldo.—Nomorromeuapelidoeraeste...Lindinalvaria...—Baldoparecebalde.Augustafalouparaocomendador:—Entãoosenhorficasemprecomeleparacriar?

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—Fico,sim.— É uma caridade tão grande que o senhor faz... O pobrezinho não

tempainemmãe...Sótinhaumparentequeeraatia.Ficoudoida,coitada.—Porquê?—Achoqueespíritoquedeunela...Espíritodosbrabos.Nãolargatão

cedo.Euconheçomuitodessenegóciodeespírito...AntônioBalduíno faziaumbiquinhodechoro.Ocomendadoralisoua

suacarapinhaedisse:—Nãotenhamedoqueninguémvailhecomer.DonaMariaperguntouaAugusta:—Porfalaremespírito,comovaivocêcomoseu?—Ah!DonaMaria, nemme fale. Cada vezmeperseguemais. Agora

deupra icarbêbadoecaiemcimademeuombro.Éumpesotãograndequeeunãoagüento.Jávivocansada.

—Porquenãovaiaumasessão?—Ah!Euvousim.Todosábadovou.Paijubiabátiraelemaselevolta

denovo.Semprefoiteimoso...—Masissoémacumba.Vocêprecisairéaumasessãodeverdade.Na

LadeiraSãoMigueltemumamuitoboa.—Nada,DonaMaria.SepaiJubiabánãotiraele,queméquevaitirar?

Eeuaténemmeimporto.Sóqueelemeatrapalhamuito.Eagoradeuprabeber.Nãotávendo?Euestouaquimasestoutãocansadaqueasenhoranãoimagina.Eleestátrepadonomeucangote,pesadoquefazmedo...

Virou-separaocomendador:— Deus lhe paga, comendador, essa caridade que o senhor está

fazendocomomenino...Deuslhepagadandosaúdeatodosdestacasa.—Obrigado,SinháAugusta.Agoraleveomeninolápradentroediga

àAméliaparadarcomidaaele.E o comendador atacou o prato de doces de caju. Dona Maria

acrescentou:—Evocê,Augusta,comaalgumacoisa.

Na cozinha Amélia fez uns pratos bem avantajados para eles. EicaramcomendoostrêsenquantoAugustacontavaàcozinheiraahistóriade Antônio Balduíno com grande comoção. A cozinheira limpava aslágrimasnoaventaleAntônioBalduíno,quandoouviu falarna loucuradatia,deixoudecomerparasoluçar.

ApósvenderrendasAugustasedespediudeAntônioBalduíno:

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—Devezemquandoeuvenholhever.Sóentãoonegrinhocompreendeuqueestavaseparadodomorro,que

o haviam arrancado do lugar onde nascera e se criara, onde aprenderatanta coisa, e que o haviam jogado, a ele, o mais livre dos moleques domorro,nacasadeumsenhor.

Destaveznãochorou.Ficouespiandoacasa,pensandonafuga.Mas comoLindinalva veio chamá-lo para brincarem, ele se esqueceu

de fugir. Construiu uma casa para o gato angorá que era a paixão deLindinalva,correucomelapeloquintal,deusaltoesubiuatéogalhomaisaltodagoiabeiraparairbuscarasgoiabasdevezqueelagostava.Ficaramamigosdesdeaqueledia.

Depois vieram os aborrecimentos. Foi pegado fumando, tomou umasurradacozinheira.Revoltou-se.Da tiaelenãose importavadeapanhar.Masda cozinheiranão. Tambémquando soltavapalavrões, e os soltava acadamomento, Amélia dava-lhe um tapa na boca com toda força. Ele foiicando com ódio daquela portuguesa de cabelos compridos (fazia duastranças que icava a admirar no espelho) e dava-lhe língua quando elaestavadecostas.

No entanto o comendador era bom para ele. Até o botou na escolapública, uma que funcionava no Largo de Nazaré com uma professoraranzinza de palmatória em punho. Antônio Balduíno che iou asmalandragens que os alunos da escola izeram naquele ano. Cedo foiexpulsocomoincorrigível.AméliadisseaDonaMaria:

—Negroéumaraçaquesóserveparaserescravo.Negronãonasceuparasaber.

MasAntônioBalduíno jásabiaosu iciente. Já sabia lerperfeitamenteumABCdequalquerdoscangaceiroscélebreseoscrimesqueos jornaisnoticiavam.EquandoestavadebemcomAméliaeraelequem liaànoite,nosjornais,ahistóriadoscrimesqueiamacontecendopelomundo.

Assim ia correndo a sua vida, entre brincadeiras com Lindinalva aquemcadavezmaisadmirava,ebrigascomAmélia,quediariamentefaziaqueixa a Dona Maria das “molecagens deste negro sujo” e lhe dava, àsescondidas,surrasferozes.

Tinha notícias do morro por intermédio de Augusta, que todo mêsvinhavenderrendasaDonaMaria.Sentiasaudadesdavidasoltadomorroevoltavaapensaremfugir.

Num domingo Jubiabá veio à casa do comendador. Conversaram nasalaeordenaramaAntônioBalduínoquevestissearoupamaisnova.

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Saiu com Jubiabá, tomaram um bonde e o negrinho foi revendo acidade e aspirando com força o ar das ruas, a liberdade que estavagozando. Nem se lembrava de perguntar a Jubiabá para onde iam.Tambémele con iava inteiramentenopai-de-santo, quenaqueledomingoestavavestidocomumfraquevelhoetraziaumchapéuridículonoaltodacarapinha. A inal saltaram do bonde, entraram por uma rua larga earejada e penetraram num amplo portão guardado por um homemfardado.AntônioBalduínopensouqueiasersoldadoeriu.Gostariadesersoldado,usarfarda,passearcommulatasnosjardinspúblicos.Maslogosedesiludiu. Não viu soldados no pátio do casarão que era cinzento, dejanelasgradeadascomoumacadeia.Viu foihomensemulheres, trajandotodosumaroupaigual,quepasseavamcomaresapalermados,unsfalandosozinhos,outrosdesenhandogestosnoar.E Jubiabáo levouparao lugarondeestavaavelhaLuísaquediziacomvozfraca:

“eunãovoumais...nuncamais...nuncamais...”

Antônio Balduíno quase não a conheceu. Estava magra e ossuda, osolhos pulados para fora do rosto que andava chupado. Beijou a mão davelhaqueoolhoucomarindiferente.

—Titia,souBalduíno.— Sabe de uma coisa: os moleques querem roubar o meu mingau.

Vocêveiopararoubar,nãofoi?—foiseenfurecendo.Massorriulogoecontinuousuacantiga.

“eunãovoumais...nuncamais...nuncamais...”

Jubiabá o levou de volta. Balduíno ainda icou espiando o casarãolúgubrequepareciacadeia.NobondeJubiabáperguntouseaindatinhaafigaquelhedera.AntônioBalduínopuxoudedentrodopescoçoemostrou.

—Tábem,meufilho.Guardesempre.Dásorte...AntesdesaltardeudeztostõesaBalduíno.Só voltou ao hospício uma vez. Foi novamente com Jubiabá para

acompanhar o enterro da velha Luísa. Diante do caixão, pobre e negro,encontrou quase todos os conhecidos domorro. Novamente foram todosmuito bons para ele e lhe deram abraços. Algumas pessoas choravam.Foram assim até o cemitério, onde deram uma pá para Balduíno atirar

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terra em cima do corpo. Depois o corpo da velha icou lá e só AntônioBalduínoguardoucomamorasualembrançanoseupequenocoraçãoquejáestavatãocheiodeódio.

Foi no dia do enterro da velha Luísa que Jubiabá para distraí-locontou,navoltadocemitério,ahistóriadeZumbidosPalmares.

—OnomedaquelaruaéZumbidosPalmares,nãoé?—É,simsenhor...—VocênãosabequemfoiZumbi?—Eunão.—Balduínovinhatriste,pensandomaisumavezemfugir,e

a princípio prestou pouca atenção à história, apesar de ser Jubiabá queestavacontando:

— Isso foi há um mundão de tempo... No tempo da escravidão donegro.

“ZumbidosPalmareseraumnegroescravo.Negroescravoapanhavamuito...Zumbitambémapanhava.Maslánaterraqueeletinhanascidoelenão apanhava. Porque lá negro não era escravo, negro era livre, negrovivianomatotrabalhandoedançando.”

—Eporquevinhamparacá?—Balduínojáestavainteressado.— Os brancos iam lá buscar negro. Enganavam negro que era tolo,

que nunca tinha visto branco e não sabia da maldade dele. Branco nãotinhamaisolhodapiedade.Brancosóqueriadinheiroepegavanegropraser escravo. Trazia negro e dava em negro com chicote. Foi assim comZumbi dos Palmares. Mas ele era um negro valente e sabiamais que osoutros.Umdia fugiu, juntouumbandodenegroe icou livrequenemnaterradele.AífoifugindomaisnegroeindoprajuntodeZumbi.Foi icandouma cidade grande de negros. E os negros começaram a se vingar dosbrancos. Então os brancos mandaram soldados pra matar os negrosfugidos.Massoldadonãoseagüentavacomosnegros.Foimaissoldado.Eosnegrosderamnossoldados.

AntônioBalduínotinhaosolhosabertosetremiadeentusiasmo.—Aí foi ummundão de soldadosmil vezesmaior que o número de

negros.Mas os negros não queriammais ser escravos e quando viu queperdiam,Zumbipranãoapanharmaisdehomembrancose jogoudeummorroabaixo.Eosnegrostodossejogaramtambém...ZumbidosPalmaresera um negro valente e bom. Se naquele tempo tivesse vinte igual a ele,negronãoseriaescravo.

AntônioBalduíno,naquelediaemquemorrerasuatia,encontrouumamigopara substituir a velhaLuísano seu coração: ZumbidosPalmares.Elefoidaíemdianteoseuheróipredileto.

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Tinha algumas consolações aquela vida atrapalhada pelas encrencasdeAmélia.Haviaemprimeiro lugarLindinalvaquebrincavacomAntônioBalduíno. Ele era capaz de passar horas e horas parado, olhando para orostodesantaqueelapossuía.Depoistinhaocinemaquefoiparaeleumarevelação.E ao contráriode todososmeninos, sempre torcianas itasdecowboy pelo índiomau contra omocinho branco, O sentido de raça e deraça oprimida ele o adquirira à custa das histórias do morro e oconservava latente. Tinha também Zé Camarão que agora vinha ensinarviolãoaunsrapazesquemoravamnosobradovelhodo imdaruaequetambémdavaaulasaBalduíno.

Otrabalhonacasadocomendadornãoeragrande:copeirava, lavavaospratos,iaàsfeiras,faziarecados,Ocomendadoratépensavaemlevá-loparatrabalharnasuacasacomercial.

— Quero fazer alguma coisa por este negro — dizia. Este preto éesperto,essediabo...

Com as surrasAntônioBalduíno aprendera a ser dissimulado. Agorafumavaescondido,diziapalavrõesemvozbaixa,mentiadescaradamente.

Pois foi aquela idéia do comendador demelhorar a sorte deAntônioBalduíno, dando-lhe um emprego na sua casa comercial com ordenado epossibilidade de fazer alguma coisa na vida, que obrigou o negro a fugir.NestaépocaAntônioBalduínojátinhaquinzeanosejáhátrêssuportavaoódiodeAmélia.

O caso que deu lugar à sua fuga passou-se assim: quando ocomendador anunciou num domingo que no outromês Antônio Balduínocomeçaria a trabalhar no armazém, Amélia teve um acesso de raiva. Elatinha verdadeiras crises de ciúme, não podia compreender por que ospatrõesprotegiamaquelenegroequeriamfazerdelegente.

—Negroéraçaruim—repetiasempre.—Negronãoégente...E começou a pensar um meio de desmoralizar completamente o

molecote. Foi quando um dia viu Antônio Balduíno sentado na escada dacozinha espiando com uns olhos religiosos para Lindinalva que, já comdezoitoanos,costuravanavaranda.Bateunoombrodele:

— Aí, hein, negro sem-vergonha! Olhando as coxas de DonaLindinalva.

Balduíno não estava olhando coisa alguma, estava era recordando otempobomemqueerammenoreseeleeLindinalvabrincavamnoquintalda casa.Mas se assustou como se estivesse de fato espiando as coxas damoça.

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Aquilo caiu nos ouvidos do comendador. Todos acreditaram. AtéLindinalva,quenuncamaisolhouparaAntônioBalduínosenãocommedoecomnojo.

O comendador se era um homem bom, sabia na hora da raiva serruim.

—Então,molequedescarado,eulhecriocomoaum ilho, lheajudoevocêficafazendomolecagemaí...

Améliaajuntava:— Esse negro é safado que faz medo. Quando Dona Lindinalva ia

tomarbanhoeleespiavapeloburacodafechadura.Lindinalvasaiuquasechorando.Balduínoquisdizerqueeramentira,

mas comoestavamacreditandoemAmélianãodissenada.Apanhouumasurramedonha,queodeixouestendido,ocorpotododoendo.Masnãoerasóocorpoquedoía.Doía-lheocoraçãoporquenãotinhamacreditadonele.Ecomoaqueleseramosúnicosbrancosqueeleestimava,passouaodiá-losecomelesatodososoutros.

No entanto nessa noite sonhou com Lindinalva. Ele a viu nua eacordou. Então se lembrou dos vícios que os moleques do morropraticavame icousozinho.Não,não icousozinho.DormiucomLindinalvaquesorriaparaelecomseurostode iguradefolhinha,eparaeleabriaascoxas alvas e lhe ofertava os seios duros de criança. E daí por diante,dormisse com que mulher dormisse, era com Lindinalva que o negroAntônioBalduínoestavadormindo.

PelamadrugadafugiudaTravessaZumbidosPalmares.

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MendigoAntônioBalduínoagoraeralivrenacidadereligiosadaBahiadeTodos

osSantosedopai-de-santoJubiabá.Viviaagrandeaventuradaliberdade.Sua casa era a cidade toda, seu emprego era corrê-la. O ilho do morropobreéhojeodonodacidade.

Cidade religiosa, cidade colonial, cidade negra da Bahia. Igrejassuntuosas bordadas de ouro, casas de azulejos azuis, antigos sobradõesonde amiséria habita, ruas e ladeiras calçadas de pedras, fortes velhos,lugareshistóricos, e o cais, principalmenteo cais, tudopertence aonegroBalduíno. Só ele é donoda cidade porque só ele a conhece toda, sabe detodososseussegredos,vagabundeouemtodasassuasruas,semeteuemquantobarulho,emquantodesastreaconteceunasuacidade.Ele iscalizaa vida da cidade que lhe pertence. Esse é o seu emprego. Olha todos osseusmovimentos,conhecetodososvalentesdacidade,vaiàsfestaslíricas,recebeeembarcaosviajantesdetodososnavios.SabeonomedetodosossaveiroseéamigodoscanoeirosquepousamnoPortodaLenha.Comeacomidados restaurantesmais caros, andanos automóveismais luxuosos,moranosmaisnovosarranha-céus.Epodesemudaraqualquermomento.E como é dono da cidade não paga a comida, nem o automóvel, nem oapartamento.

Soltonacidadevelhadesobradosenormeseleadominouesetornouo seu dono. Os homens que passam não sabem disso, com certeza. Nemolham para o negrinho esfarrapado que fuma cigarro barato e traz umbonéemcimadosolhos.Asmulhereselegantes,que lhedãoumníquel,oevitam,paranãosesujaremaoseucontato.

Mas na verdade o negro Antônio Balduíno é o imperador da cidadenegra da Bahia. Um imperador de quinze anos, risonho e vagabundo.TalveznemopróprioAntônioBalduínoosaiba.

Trazumbonéemcimadosolhosefumaumcigarrobarato.Umacalçade casimira preta rasgada e cheia de manchas, e um paletó enorme,herdado de alguém muito mais alto que ele, paletó que no inverno étravesseiro e sobretudo, tal é a vestimenta do imperador da cidade. Eaquelesoutrosnegrosqueorodeiamsãoseussúditosmaisqueridos,asuaguarda de honra. Guarda que não tem farda especial, veste trapos, calçachinelosabandonadosnaslatasdolixo,masquesabelutarcomonenhumaoutraguardadomundo.

O imperador tem uma grande iga amarrada no pescoço. E ele e os

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moleques da sua guarda trazem escondidos no cós da calça navalhas,punhaisecanivetes.

AntônioBalduínoseadianta:—Umaesmola,peloamordeDeus.Ohomemgordomedeonegrodecimaabaixocomosolhosávidosde

umhomemdenegócios,abotoaopaletó,balançaacabeçaironicamente:— Um pedaço de homem desse a pedir esmola! Vá trabalhar,

vagabundo...Nãotemvergonha...Vátrabalhar...Antônio Balduíno primeiro passa os olhos espertos pela rua. Está

muitomovimentada.Entãodiz:—Euchegueide fora,meusenhor...Vimmebatendoporeste sertão

deDeusqueestáseco,semumpingodechuva.Estouaquisemtrabalho...Mas estou procurando... Quero um níquel para tomar café... Tá se vendoqueosenhoréumhomemdireito...

Espiaoefeitododiscurso.Masohomemvaiandando:—Jáestoumuitoacostumadocomessasmentiradas...Vátrabalhar...—Juropelosolquetánosalumiandoquenãoémentira.Vimdebaixo

deum solãode fazermedo... Se o senhor temum trabalho eupeço...Nãotenhomedo de trabalho... Mas desde ontem que não como... Estou aqui...caindodefome.Osenhoréumhomemdireito...

O homem faz um gesto aborrecido, mete a mão no bolso e joga umníquel.

—Nãomeaborreçamais...Váembora...Masonegrinhoaindaacompanhaohomem.Équeo charutoqueele

fumajáestáamaisdemeio.EAntônioBalduínoédoidoporumapontadecharuto. O homem vai pensando em tudo que o negro disse. Será entãoverdadeoqueessespedintestodosdizempelacidade?Ohomemvêacarazangadadetodoseles.Derepentetemmedo,jogaocharutofora,abotoaopaletó novamente e entra num botequim para beber e criar coragem.AntônioBalduínoseapossoudapontadecharutoeabreamãoondeestáoníquel jogado pelo homem. É uma prata de doismil.réis. O negro a atiraparaoar, aparanamãorápidae sai correndopara juntodosoutrosqueestãoconversandosobrefutebol.

—Adivinhequanto,negrada...—Quinhentosréis...AntônioBalduínoriàsgargalhadasaltas:—Umaágua...—Doismil-réis...

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— Caiu como um patinho. — Antônio Balduíno faz um gesto dedesprezo.—Eucáseicantar...

Agora riem todos em risadas claras e soltas. Os homens que passamvêem apenas um grupo de meninos negros, brancos e mulatos, quemendigam.Mas na verdade é o imperador da cidade e a sua guarda dehonra.

Quandovinhamgruposdemulhereselegantes,vestidasdesedacara,rostospintadosespalhandosorrisos,AntônioBalduínosoltavaumassovioespecialeogruposejuntavatodo.Ficavamem ila.OGordodestavezianafrente porque tinha uma voz triste de esfomeado. E uma cara parada deidiota.OGordobotavaasmãosnopeito,faziaumacaramuitocompungidae se dirigia ao grupo de mulheres. Parava diante delas, impedindo quecontinuassemopasseio,osnegrosascercavameoGordocantava:

“Esmolapraseteceguinhos.Eusouomaisvelho,esseéosegundo,osoutrosestãoemcasa,Papaiéaleijado,Mamãeédoente,medêumaesmolapraseteorfãozinhos,sãotodosceguinhos.

OGordo quando acabava estava quase chorando,muito contrito, unsolhostristes,parecendomesmoumceguinhocomseisirmãosceguinhos,amãedoente,opaialeijado,semtercomidanacasapobre.Enãoparava:

“Esmolapraseteceguinhos...Eusouomaisvelho...”

Esticavaodedoparaoqueestavamaisperto:

“esseéosegundo...”

Nofimestendiaasmãosgordasabrangendoogrupoeberrava:

“...seteorfãozinhossãotodosceguinhos...”

Osoutrosfaziamcoro:

“tãotodosceguinhos...”

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O Gordo balançava as banhas e estendia a mão suja, esperando aesmolaquequase semprevinha farta.Asmulheresdavamsempre,umaspor piedade daqueles ilhos da rua pensando nos ilhos que estavam noaconchegodascasas.Outrasdavamparase livrardocercodosmolequessujosquevaliamcomoumaacusação.Asmaiscorajosaspilheriavam:

—Então,comoé...Sãoseteetemaímaisdedez...Sãoórfãosetêmpaiemãedoente...Ceguinhosevêemtudo...Comoéisto?

Eles não respondiam. Apertavam mais o cerco e o Gordo voltava acantaracantigamonótona:

“Esmolapraseteceguinhos.

Nenhumaresistia.Osmoleques iamseaproximandocadavezmais,eperto do rosto elegante e pintado dasmulheres icava o rosto sujo e feiodosmeninos.Eerahorrorosoquandotodosabriamabocaparaocoro.OGordopareciaumprofessorenãoparavaacantilena.AsbolsasseabriameasesmolascaíamnamãoqueoGordoretiravadopeito.AbriamocercoeoGordoagradecia:

—Asenhoravaiganharumnoivobonitoquevemnumnavio...Muitas sorriam, outras icavam tristes. E nas ruas e becos estreitos

ressoava a gargalhada dos moleques, gargalhada livre e feliz. Depoiscompravammaçosdecigarrosebebiamtragosdepinga.

Tinha um loiro. Era omaismoço. Talvez não tivesse ainda dez anos.Um rosto redondo de santo de andor, o cabelo encaracolado, as mãosossudas,olhosazuis.Chamava-seFelipee foiapelidadodeFelipe,oBelo.Não possuía nenhuma história a não ser a que a mãe fazia a vida nosbordéisdaRuadeBaixo,francesavelhaqueumdiaseapaixonaraporumestudante.Formado,eleforaparaaAmazônia.O ilhoseperdeunaruaeamãenoálcool.

No dia que ingressou no grupo houve frege grande. É que enquantodormiamespremidosnaportadeumarranha-céu,deitadosem folhasdejornal,oSemDentesquisarriarascalçasdeFelipe,oBelo.OSemDenteseraummulato fortedeseusdezesseisanos.Cuspiaporentreoscacosdedentes,fazendoumruídoespecial,eacertavaestecuspeondequeria.Suagrandequalidadeeraesta.PoisoSemDentes,molequemalvado,abraçouFelipe e começou a puxar-lhe as calças. Felipe se estrebuchou e gritou.Acordaramtodos.AntônioBalduínoesfregouosolhoseperguntou

—Quefregeéeste?—Ele tá pensandoque eu sou xibungo...Mas não sounão.—Felipe

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queriachorar.—Porquevocênãodeixaomeninoempaz?— Não é da sua conta. Eu faço o que quero... Acho ele um

bombonzinho.—Poisolhe,SemDentes,quembulirnomeninobolecomigo.—Vocêquerécomeromeninosozinho...Assimnãoestádireito.Antônio Balduíno se virou para os outros garotos que estavam na

dúvida.— Vocês sabem que eu nunca quis comer ninguém. Eu só gosto de

mulher.Seomeninofossexibungotádireito.Masaínão icavacomagentequeagentenãoquerfrescoaqui...Omeninoémacho,ninguémbolenele.

—Eseeubulir?AntônioBalduínosentiaqueosmolequesestavamtodosdoseulado:—Poisbula...Levantou-se.OSemDentestambém.PensavaquesevencesseAntônio

Balduínochefiariaosmoleques.Ficaramolhandoumparaooutro.—Bata—disseoSemDentes.AntônioBalduínoarrumouosoco.OSemDentesvaciloumasnãocaiu.

Se atracaram, amolecada torcendo. O Sem Dentes estava por baixomasdeuum jeito e sepôsdepé.UmsocodeAntônioBalduínoopôsno chãonovamente. Quando o Sem Dentes se levantou vinha com um caniveteaberto,brilhandonoescuro.

—Covarde!Nãosabebrigarcomohomem...O Sem Dentes veio com o canivete, mas Antônio Balduíno tinha

aprendido capoeira com Zé Camarão no Morro do Capa-Negro. Jogou aspernas,oSemDentesseestatelounochão,ocanivetevooulonge.

AntônioBalduínoconcluiu:—Sebulirnomeninobolecomigo...Deoutraveztomoocanivete...O Sem Dentes dormiu sozinho numa porta. Felipe, o Belo, icou

definitivamentenogrupo.Eraespecialistaemvelhas.Malapareciaumanoprincípiodarua,ele

consertava o laço da gravata velha que nunca abandonava, jogava fora apontade cigarro,metiaasmãosnosbolsos furados, escondiaanavalhaeseaproximavamuitotriste.Falavabaixinho:

— Bom dia, senhora. Eu sou ummenino abandonado, sem pai, semmãe.Nãotenhoninguémpormim...Tenhofome...Estoucomtantafome...

Começava a chorar. Possuíaum talento especial para chorarnahoraquequeria.Aslágrimascaíam,soluçavaalto:

—Fome...mamãe...asenhoratemfilho...tenhapena...mamãe...

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Ficava lindo chorando, rostinho redondo e alvo cheio de lágrimas, oslábiostremendo.Nãohaviamulherquenãodissesse:

—Coitadinho...Tãopequenininho...Jásemmãe...Davam-lhelargasesmolas.Trêsvezesfoiconvidadoamoraremcasas

ricasdesenhorasricas.Masamavaaliberdadedasruasepermanecia ielao grupo onde já era elemento respeitadíssimo, pois dosmais e icientes.Até o SemDentes o tratava com respeito quando ele voltava de junto deumavelha:

—Caiuumcincão...A gargalhada dosmoleques estrugia pelas ruas, ladeiras e becos da

cidadedaBahiadeTodososSantosedopai-de-santoJubiabá.Omais estranho de todos eles era, porém, Viriato, o Anão. O apelido

fora-lhedadodevidoaserbaixinho,maisbaixomesmoqueFelipe,apesarde trêsanosmaisvelho.Baixoteepesadão,possuíauma forçaprodigiosapara a sua idade. Mesmo quando tomava banho dava a impressão desujeiraedemiséria.Quandoogrupose formou jáelemendigavaatravésdas ruasda cidade.A sua cabeça chatametiamedo.Epara causarmaiorimpressão andava curvo, o que o fazia parecer mais baixo ainda ecorcunda.CustavaarrancardeViriatoumapalavra.Eenquantoosoutrosriamemgargalhadassoltaseleapenassorria.

Masnãoaborrecianinguém,nuncareclamavaquandoogrupopoucofazia, e se contentava com o que havia para comer e com pontas decigarrosparafumar.AntônioBalduínogostavadele,sujeitavaàsuaopiniãomuitasresoluções,dava-lheomaiorprestígio.

Durante o dia Viriato, o Anão, pouco se movia com o grupo. Ficavaparado na Rua Chile, as pernas encolhidas, todo curvo, a cabeça chataacachapadasobreopescoço.Estendiasemumapalavraochapéuaosquepassavam. Parecia fazer parte da porta onde se sentava como umaesculturatrágica,ummonstrodeigreja.Asuafériaerasempregorda.PeloimdatardeseencontravacomogrupoedepositavanasmãosdeAntônioBalduíno o resultado do trabalho do dia. Depois de feitas as contas e dehaver recebido a sua parte ia para um canto, comia, fumava, dormia.Acompanhavaosoutrosnospasseiosmalandrospelasruasdacidade,nascaçadas a criadinhas nos areais, nas brigas, nas festas, sem nenhumentusiasmo. Acompanhava por acompanhar. Era o único, do grupo demolequesquemendigavam,quelevavaasérioaprofissão.

No im da tarde Antônio Balduíno se sentava no chão, reunia osmolequesemtornodesi,e iarecolhendoodinheiroganhoduranteodia.

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Eles remexiam os bolsos das velhas calças, puxavam níqueis e algumaspratasedepositavamnamãodochefe.

—Evocê,Gordo,quanto?OGordocontavaodinheiro:—Cincomileoitocentos.—EoBelo?Felipeatiravacomumgestodesuperioridadeasuaféria:—Dezesseismil-réis.NãoeraprecisochamarViriato:—Dozeecem.Osoutros iamchegando.ObonédeBalduínoseenchiaaospoucosde

pratas e níqueis. Por último Antônio Balduíno vasculhava os bolsos ejuntavaasuaféria.

—Fizpouco...Setemil-réis.Somava tudo, geralmentepelosdedos. Coma ajudadeViriato fazia a

divisão:—Somosnove...Seiseseiscentosparacadaum.Einterrogava:—Estácerto,gente?Estavacerto.IampassandoemfrenteaBalduínoquedavaacadaum

oquelhepertencia.Porvezesotrocofaltava.—OSemDenteslhedáquinhentosréis.—Olhelá...Deoutravezvocêbateutrêstoesmeus...Iam comer e depois se estendiam pela cidade em correrias

procurandomulatasparalevarparaoarealdocais,penetrandoemfestaspobres dos morros distantes, bebendo cachaça nos botequins da CidadeBaixa.

Umdia,noentanto,algodeanormalaconteceu.QuandoZéCasquinhaia entregar a sua féria sorria um sorriso enigmático. Antônio Balduínodisse:

—Trêsmil-réis...ZéCasquinhasorriu:—Emaisisto...Jogou no boné do negro um anel onde uma pedra brilhava à luz do

poste. Uma pedra grande cercada por uma dúzia de pedrinhas. AntônioBalduínolevantouosolhoseafirmou:

—Vocêroubouisso,ZéCasquinha.—Juroquenão...Amoçamedeuumaesmolae foiembora...Quando

eu vi, esse anelão estava junto de mim. Eu ainda corri atrás mas não vi

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maisamoça.—Mentindoemcimademim...Os moleques olhavam a pedra que passava de mão em mão. Nem

ligaramparaaconversadeBalduínoeZéCasquinha:—Contecomofoi,Zé.—Nãotoumentindo,não,Baldo.Foiassimmesmo...—Evocêfoiatrásdela.—Issoémentiramesmo...Masorestoéverdade,eujuro...—Tádireito.Eagoraoqueéqueagentevaifazercomisso?Feliperiu:—Medápramim...Nasciprausaranel...Riramtodos.MasAntônioBalduínoperguntou—Oqueéqueagentefazdisso?Viriato,oAnão,murmurou:—Prego.Dádinheiromuito...Felipepilherioudenovo:—Façoumaroupanova...—Bastairbuscarnaslatasdelixo.— Mas no prego não pode, Viriato. O gringo não tá vendo que não

acreditaqueobrutosejadenós...Chamaapolícia,tátudonacadeia.—Émesmo.—Medápraeuusar—pediuFelipe.—Nãochateie...—Euachoqueomelhoréagenteguardareleumbocadodetempo.

Quandoadonajátiverseesquecidodeleagenteresolve.EAntônioBalduínoamarrouoaneljuntoàfigaquetrazianopescoço.

AntônioBalduínoseaproximoudohomemqueestavadesobretudonoverão,Ogrupoficouespiandodaesquina:

—UmaesmolapeloamordeDeus...—Vátrabalhar,malandro.Destavezaruaestavadeserta.Ninguémpassavaporaquelebeco.Eo

homem de sobretudo ia apressado. Levava uma lor vermelha na lapela.AntônioBalduínoseaproximoumais,Ogrupotambém:

—Medáumníquel...—Tedoumaséumtabefeaqui,moleque...Ogrupoveiopelafrente:—Osenhorérico.Podedarumaprata...O homem não disse mais nada, porque agora estava cercado pelo

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grupo.O rosto de Antônio Balduíno estava bem perto do seu rosto. E o

negrinhotinhaumamãoescondida.Apareceuumanavalha:—Umanota...— Ladrões, hein?— o homem teve coragem de dizer. — Começam

assimmeninos,vãolonge.AntônioBalduíno riu. Abriu a navalha. Os outros cercavamo homem

desobretudo.—Tomem,ladrões.—Olhequeagentepodeseencontrarumdia...—Amanhãvouàpolícia.Mas eles já estavam acostumados com a ameaça e não ligaram.

AntônioBalduínopegouosdezmil-réis,guardouanavalhaeogrupotodoabriu na carreira, se espalhando pelas ruas próximas. Faziam estasviolênciasquandoestavapróximoo carnaval, a festadoBon im, as festasdoRioVermelho.

Um dia Rozendo caiu doente. Uma febre alta, delirava à noite, nãocomianada.Naprimeiranoiteria,dizia:

—Nãovaisernada...Issopassa.Os outros o olhavame riam também.Mas na segundanoiteRozendo

começouatermedo.Quandonãodelirava, icavaagemeremvozbaixa.Epediaaosoutros:

—Euvoumorrer...Vãochamarmamãe...Mamãe...Osoutrosespiavamsemsaberoquefazer,inquietos,umatristezanos

olhosalegres.Balduínoperguntava:—Ondemorasuamãe?—Sei lá.Quando fugimoravanoPorto da Lenha.Mas já semudou...

Procureela,Baldo...Procure,euqueromamãe.—Vouprocurar,Rozendo...Viriatoeraquemtratavadodoente.Dava-lheremédiosestranhosque

sóelesabia.Arranjou,ninguémsabiaonde,umcobertorparaestendernaporta onde Rozendo dormia. E contava histórias ao doente, casosengraçados,mais engraçados ainda porque contados por Viriato, o Anão,queraramentefalavaequasenuncaria.

Viriatoperguntou:—Comoéonomedesuamãe?— Ricardina... É amigada com um carroceiro... É uma negra gorda,

aindamoça,bemconservada.

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Odoenteseagitoufalandodamãe:—Queromamãe,queroela...Euvoumorrer...—DeixeestarqueeueBaldoamanhãtrazemoela.Felipe chorava e desta vez suas lágrimas não eram fabricadas. O

Gordo rezava, misturando pedaços de orações, e Antônio Balduínoapertavaafigaquetrazianopescoço.

No outro dia Balduíno icou comRozendo nomais escuro da escada.Pensava em chamar Jubiabá à noite. Mas, pelo meio da tarde, Viriato, oAnão, trouxeumapreta gorda.Rozendodelirava e não a reconheceu. Elase abraçou com ele e o levou. Foram num automóvel. Antônio Balduínoperguntou:

—Temdinheiro,sinhádona?—Pouco,masdácomaajudadeDeus...AíAntônioBalduínoselembroudoanelquetrazianopescoço:—AgentedáissopraRozendo...Promédico...Osoutrosolhavamcomosolhoslongos.Apretaperguntou:— Vocês roubaram isto? Vocês são ladrão? Meu ilho estava com

ladrão?—Agenteachouissonarua...Anegrapegouoanel.AntônioBalduínoaindaperguntou:—AsenhoraquereulevoJubiabáemsuacasa,elecuraRozendo...—VocêlevaJubiabá?—Levosim.Eleémeuamigo...—Ah!leve,meubem.Leve...Rozendo foigritandonocarro,dizendoquequeriaamãedele,que ia

morrer.AntônioBalduínoperguntouaViriato:—Comofoiquevocêencontrouela?—Omaisdi íciléqueelanão tavamaisamigadacomumcarroceiro.

Agoraéumcarpina...Ficouolhandoaruaquesemovimentava.DerepentedisseaBalduíno:—Eseeuficardoente?Eunãotenhomãe,nempai,nemninguém...AntônioBalduíno botou amãono ombro deViriato, oAnão.OGordo

tremia.Jubiabá foi e curou Rozendo. Numa manhã de muito sol o grupo

apareceu para visitar o companheiro. Rozendo já estava sentado numacadeiraqueopadrastoconstruíraerirammuitorecordandoasaventurasdogrupo.Rozendocontouquenãoiamaismendigar,queagoraiaserumhomemetrabalhardecarpinacomseupadrasto.AntônioBalduínosorriu.

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Viriato,oAnão,ficousério.O imperador da cidade come nos melhores restaurantes, anda nos

automóveis mais luxuosos, mora nos arranha-céus mais novos. E sempagarnada.Depoisdomeio-diavaicomseugrupoaumrestauranteedizqualquercoisaaumgarçom.Estebemsabequenãoénegóciobrigarcomestesmoleques. Dá as sobras de comida embrulhadas em jornais. Certasvezesatésobracomidaqueelesjogamnaslatasdelixo.Evelhosmendigoscomemassobrasdassobra

Fica a esperar que passe o automóvel que lhe agrada. Porque oimperadordacidadenãoandaemautosvagabundos.Quandovêumbemluxuoso, ponga na traseira e viaja bairros inteiros. E se passa outromaisbonito,AntônioBalduínodespedeoprimeiro,montanosegundoecontinuaseupasseiopelacidadequeconquistou.

Eeleeasuaguardadehonrasódormemnasportasdosmaisnovosarranha-céus, onde os empregados sabem que todos aqueles molequestêmnavalhas,punhais,canivetes.

Issoquandonãopreferemdormirno arealdo caisdoporto, olhandoosnaviosenormes,asestrelasnocéu,overdemarmisterioso.

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MolequeOmaréasuapaixãomaisvelha. JádecimadoMorrodoCapa-Negro

ele icavaanamorá-lo,estudandoasvariaçõesdoseudorsoqueeraazul,verde-claroelogoverde-escuro,tentadopelasuavastidãoepelomistérioqueelepercebiaexistirnosgrandesnaviosquedescansavamnocais,nospequenos saveiros que a maré balançava. O mar traz a seu coração umsossegoque a cidadenão lhedá.No entantoda cidade ele é odonoedomarninguémédono.

Vemvê-loànoite.Quasesemprevemsóeseestendenaareiaalvadopequeno cais dos saveiros. Ali sonha e ali dorme o seu melhor sono devagabundo.Certasvezestrazogrupotodo.Entãoéparaograndecaisdostransatlânticosquesedirigem.Vãoveroshomensqueembarcamànoite,misteriosamente,levandosobobraçosobretudoseembrulhos;vãoveroshomens que trabalham na descarga dos navios. São negros e parecemformigasquelevassemenormesfardos.Andamcurvoscomoseemvezdesacos de cacau carregassem sobre as costas o seu próprio destinodesgraçado. E os guindastes, comomonstros gigantescos que rissem doshomens,levantamfardosincríveisque icambalançandonoar.Erangemegritameandamsobretrilhos,guiadospeloshomensdemacacãoqueestãotrepadosdentrodoscérebrosdosguindastes.

Ainda outras vezes Antônio Balduíno vai acompanhado, mas não dogrupo demoleques. É quando ele leva alguma pretinha da sua idade, oupoucomais velha que ele, para dormir sem sonhar nas areias do cais doporto. Então não vai ver nem a paz dos saveiros nem o mistério dostransatlânticos e guindastes. Se dirige para cantos que somente ele ealguns negros conhecem, lugares de onde só a vastidão verde domar éenxergada.AntônioBalduínogostaqueomarvejaassuasamantesesaibaque ele, apesar dos seus quinze anos, já é homem, já derruba umacabrochanaareiaqueémaciacomoumcolchão.

Mas, sozinho ou acompanhado, ele olha sempre o mar como umcaminhodecasa.

Domar, ele tem certeza que lhe virá um dia qualquer coisa que elenãosabeoqueé,masqueespera.

O que faltará ao negrinho Antônio Balduíno que tem apenas quinze

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anos e já é imperador da cidade negra da Bahia? Ele não sabe nemninguém sabe. Mas falta alguma coisa, que para ele achar terá ou quecruzar o mar, ou que esperar que o mar lhe traga no bojo de umtransatlântico,ounoporãodeumnavio,oumesmopresoaocorpodeumnáufrago.

Certa noite no cais os homens pararam de repente o trabalho ecorrerampara a borda onde omar batia. Havia uma lua clara e estrelastão brilhantes que nem se via a luz da lâmpada de um botequim que sechamavaLanternadosAfogados.Oshomensencontraramumpaletóvelhoe um chapéu furado. Alguns negros caíram na água. Voltaram com umcorpo. Fora um preto velho, um daqueles raros pretos de carapinhabranca, que se jogara ao mar. Antônio Balduíno icou pensando que eleentrara pelo caminho de casa, que ele também vinha ao caís todas asnoites.Porémumestivadorexplicou:

— É o velho Salustiano, coitado... Tava sem trabalho desde que saiudaquidasdocas...

Olhouproslados,cuspiucomraiva.—Disseramqueelejánãodavacontadoserviços...Jánãotinhaforça...

Andavaagorapassandofome,cortandoumadureza.Coitado...Outroajuntou.— É sempre assim... Matam a gente de trabalho e depois mandam

embora. Quando a gente já não pode fazer outra coisa senão se jogar nomar...

Eraummulatomagro.Umnegrofortedisse:—Comemnossacarneedepoisnãoqueremroerosossos.Notempo

daescravidão,pelomenos,roíamosossos...SoouumapitoeelesforamvoltandoaosfardoseaosguindastesMasantes,alguémcobriuorostodovelhocomovelhopaletó.Edepoisvierammulheresesoluçaram.

Os homens negros do cais do porto pararam o trabalho em outraocasião.Destavezanoiteerasemestrelasesemlua.Doviolãodeumcegona Lanterna dos Afogados vinham cantigas de escravo. Foi quando umhomem trepou num caixão e começou a falar. Os outros cercaram-no,foramchegandotodosparaperto.QuandoAntônioBalduínoeoseugrupochegaram,jáohomemgritavaapenasvivasaqueamassacorrespondia:

—Viva!AntônioBalduínoeosdeseugrupogritavamcomforça:—Viva!

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Elenãosabiaoqueestavavivandomasgostavadevivar.Eriaporquetambémgostavaderir.

Ohomemqueestavaemcimadocaixãoequepelojeitoeraespanhol,jogou um punhado de papéis que foram disputados. Antônio Balduínopegou um que deu ao estivador Antônio Caroço que era seu amigo. Foiquandoalguémgritou:

—Lávemapolícia...Apolíciaveioeagarrouohomemquediscursava.Elefalavadamiséria

em que o povo vivia e prometia uma pátria nova em que todos tivessempãoe trabalho.Por isso foipresoe comoosoutrosnão compreendessemquefossepresosóporisso,protestaram:

—Nãopode!Nãopode!Antônio Balduíno também gritava “não pode!” E esta era mesmo a

coisadequeelemaisgostava.A inallevaramohomenzinho,masosoutrosguardaramospapéisjogadoseaquelesquenãotinhamconseguidopegarum tomavam o do companheiro emprestado. Era um grupo de mãosestendidas contra os soldados que levavamo orador.Umgrupode carasnegras e fortes e as mãos estendidas lembravam um gesto de rebentargrilhetas.VinhamcantigasescravasdaLanternadosAfogados.

Oapitotocavainutilmente.Umhomemgordodeguarda-chuvaerostorosadodizia:

—Canalhas...Quemsabesenãoserápelocorpodeumsuicidaqueomarindicaráa

Antônio Balduíno o caminho de casa? Ou pela prisão de um homem quefalaempãoeogestodeoutrosqueprotestam?

Foram anos bons, anos livres, aqueles em que ele e seu grupodominaram a cidade, mendigando nas suas ruas, brigando nos becos,dormindono cais.O grupo era unido e osmoleques se estimavam talvez.Apenas sabiammostrar essa estimadando socos nas costas dos outros edizendo nomes feios. Xingar com voz doce a mãe do companheiro era omaiorcarinhoquequalquerdaquelesnegrosrisonhossabiafazer

Eram unidos, sim. Quando um brigava todos brigavam. E tudo queganhavam era fraternalmente dividido entre todos. Tinham o seu amor-próprio e amavam a fama do grupo. Um dia esfacelaram outro bloco demolequesquepediaesmolasnacidade.

Quandoesteblocoapareceu, che iadoporumnegrinhode seusdozeanos,AntônioBalduínoprocurouentraremrelações.Mandouao terreiro,ondeelesestavam,umemissário.FoiFelipe,oBelo,quetinhalábia.Porém

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omeninonempôdeseaproximar.Foiescorraçadomiseravelmente,vaiado,e voltou comosolhos cheiosde lágrimasde raiva. Contou tudoaAntônioBalduíno:

—Issonãofoiporquevocêfoipralácontarvantagem,Belo?—Eunemchegueiperto...Elesforamlogoxingandominhamãe...Mas

eupegoumcaradaqueleserebento...—AntônioBalduínoficoupensativo:—VoumandaroGordolá...OSemDentesseafrontou:—Mandaroutro?Praquê?Agentedeve iré logorebentandoacara

deles... Dá uma lição... Eles vêm tirar nosso pão e você ainda quer fazerpaz...NemdeviatermandadooBelo...Agentepassoufoivergonha...Vamoslogolá...

Osoutrosapoiavam:—OSemDentesfaloudireito...Vamoslá...MasAntônioBalduínoatalhou:—Nada disso... Voumandar o Gordo lá... Quem sabe se eles não tão

passando fome... Se eles quiser icar só com o pedaço da Baixa dosSapateiros,eudeixoelesempaz...

OSemDentesriu:—Parecequevocêtácommedo,Baldo...AntônioBalduínopegounanavalha,masseconteve:— Você nem se lembramais Sem Dentes do dia que a gente pegou

você e Cici morrendo de fome na cidade de Palha... Se a gente quisessepodiatambémacabarcomvocês...Masagentenãoquis...

O Sem Dentes baixou a cabeça e icou assoviando baixinho. Nãopensava mais nos negros que estavam no terreiro, e agora pouco lheimportavaqueAntônioBalduínoacabassecomeles,ouosdeixasseempaz.Pensava naqueles dias de fome, seu pai desempregado, bebendo nosbotequinsodinheiroqueamãearranjavalavandoroupa.Serecordavadasurraque levaranodiaquesemeteraentreavelhaeopaiquandoestequeria tomar o dinheirinho a pulso. E o choro da sua mãe... O pai querepetia:merda...merda.

Depois a fuga. Os dias com fome na cidade. O encontro com AntônioBalduínoeogrupo.Eavidadedepois...Ondeandariasuamãe?Eseupaijáteriaarranjadotrabalho?Quandoeleestavatrabalhandonãobebianembatianamãe.Eracarinhosoetraziapresentes...Mashaviapoucotrabalhoe,desempregado,ovelhomatavaasmágoasnagarrafadecachaça.OSemDentespensavanissotudo.Esentiuumnónagargantaeumódioterríveldomundoedoshomens.

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OGordofoiemcomissão,debaixodossorrisosdeFelipe,oBelo.—Seeunãoarranjeinadaquantomaisvocê...Viriato,oAnão,murmurou:—Faledireito,Gordo.Agentenãoquerbrigar...Querévivercadaum

praseulado...FicaramesperandonaRuadoTesouro.OGordosebenzeuesedirigiu

paraoterreiro.Demorouavoltar.Viriato,oAnão,disse:—Nãoestougostando...OBeloriu:—Eletánumaigrejarezando...Cici achava que ele estava acertando as coisas, mas todos estavam

descon iados que algo acontecera ao embaixador. E acontecera mesmo.QuandooGordovoltou,chorava:

—Mepegaramemederamuma surra... E jogaram forao santoquetavanomeupescoço...

—Evocênáofeznada?—Elessãounscinqüentaeeuumsó...EoGordocontou:—Eucheguei láeles tavatudoserindo,gozandoacarreiradoBelo...

Foram logome xingando,me chamando de porco. Lá vem o porco, era oqueelesgritavam...

—Ora,quevantagem...—disseFelipe.—Elesxingaramminhamãe...— Mas eu não me importei... Fui chegando e quis falar. Eles nem

deram tempo.Mepegaram, eudiziaqueeradepaz...Medeixaramdessejeito...Sãomaisdevinte...

—Tábem.Elesquerembrigar,vamosbrigareéagoramesmo...Se levantaram e iam alegres, apertando os canivetes, conversando

sobrecoisasasmaisdiversas.Os moleques que estavam no terreiro desapareceram para muito

longe, depois da briga, se separaram com certeza, icarammalandreandoavulsamente,mas a verdade é que nuncamais apareceram em grupo. Ogrupo de Antônio Balduíno voltou radiante, menos o Gordo, que nãoconseguiraencontrarosantoqueoPadreSilvinolhedera.

OGordoeramuitoreligioso.

FoiporissoqueoGordosebenzeue icoutodotremendonaquelediaque Antônio Balduíno viu Lindinalva. Nesse dia ele percebeu tudo e, sebemnãodissessenadaaAntônioBalduíno,sesentiuaindamais ligadoao

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negro.ElesestavamnaRuaChile,quandoviramumcasal.Seprepararamem

ila, o Gordo na frente, e se dirigiram para o casal, que parecia denamorados. E casal de namorados dá sempre esmolas. O Gordo botou asmãosnospeitosefoilogocantando:

“Esmolapraseteceguinhos.

Cercaram o casal. Mas quando Antônio Balduíno olhou, viu que eraLindinalva e um rapaz de anel vermelho no dedo. Um jazz tocavabluesnuma confeitaria. Lindinalva também enxergou Antônio Balduíno e seapertounopeitodonamoradocomumgestodemedoedenojo.OGordocantava,ninguémpercebiaacena.AntônioBalduínogritou:

—Parecomisso...Vamosembora!Saiu correndo. Ficarammudos de espanto. Lindinalva tinha os olhos

fechados,Orapazperguntou;—Oquefoi,querida?Elamentiu:—Quecoisahorrorosaessesmeninos...Orapazentãoriu,superior.—Vocêéumamedrosa,querida...Jogouumníquelparaosgarotos.Maselesjáestavamlonge,cercando

Antônio Balduíno que escondia o rosto nas mãos. Viriato, o Anão,perguntou:

—Oqueé,Baldo?—Nada.Euconheçoaquelagente.OSemDentesvoltoueapanhouoníquel.OGordocompreendeutudo,

se benzeu e depois icou junto de Antônio Balduíno contando história dePedroMalazarte.OGordocontavamuitahistóriaesabiacontarmuitobem.Sótinhaqueahistória,pormaisalegrequefosse,viravatristenabocadoGordo e ele metia sempre anjos e diabos no conto. Mas narrava bonito,inventavasempre,mentiamuitoedepoisacreditavaemtodasasmentirasquecontava.

Viveramamesmavidasoltadoisanos.Doisanoscorrendopelacidade,assistindo partidas de futebol e lutas de boxe, brigando, penetrando noCinemaOlímpia,ouvindoashistóriasqueoGordocontava semnotarqueestavam crescendo, icando homens, e que a cantiga que falava em seteceguinhos não servia mais para eles que já estavam uns negros fortes,enormes, derrubandomulatas no cais,malandreando na cidade religiosa

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daBahia.Começavamafazerpoucasesmolaseumdiaforampresoscomomalandrosedesordeiros.

Ummulatodechapéudepalhaeunspapéisdebaixodobraço,queeratiradapolícia,juntouunssoldadoseoslevaram.

Primeiroestiveramnadelegacia,ondenãolhesdisseramnada.Depoisforam levados para um corredor soturno. Penetrava um raio de sol porumafresta.Elesouviramavozdospresosquecantavam.Vieramsoldadose traziam chibatas de borracha. E eles foram espancados sem saber porquê, pois nada lhes disseram. Ganharam assim a sua primeira tatuagem.Felipe, o Belo, icou marcado na cara. O mulato que os prendera ria,puxando fumaçadeumcigarro.Ospresoscantavamláembaixo,ou láemcima, ninguém sabia onde. Diziam na sua canção que lá fora havialiberdadeesol.Eaborrachazunianascostasdosmoleques.OSemDentesgritava e xingava todo mundo. Antônio Balduíno tentava dar pontapés eViriato, oAnão,mordiaos lábios comraiva.NãoadiantavaoGordo rezar,maselerezavaemvozalta:

—Padrenossoqueestaisnocéu...Eachibatazunia.Atéquecorreusanguedocorpodosmolequeseles

nãopararamdebater.Ospresoscantavamtristemente.Passaram oito dias na cadeia, foram ichados e en im soltos numa

manhãclarademuitosol.Voltaramparaavagabundagemdacidade.

Masdemoroupoucoessavolta.Ogrupofoisedissolvendo.OprimeiroairemborafoioSemDentesqueingressounumaquadrilhadebatedoresde carteira. De vez em quando eles o viam. Passava vestido de calça epaletó, calçado com uns sapatos velhos, um lenço amarrado no pescoço,assoviando baixinho como era seu costume. Também Cici foi embora, enuncasouberamparaonde.Jesuínofoitrabalharnumafábrica,casou,teveummundãodefilhos,ZéCasquinhaengajoucomomarinheiro.

EFelipe, oBelo,morreudebaixodeumautomóvel. Era tambémumamanhã clara e Felipe estava cada vez mais lindo. Mesmo a marca dechicoteque lhe icaranacara lhedavaumaraventureiro.Arranjaraumagravata nova e comemorava seu décimo terceiro aniversário. Os outrosriam e brincavam. Foi quando no asfalto da rua brilhou qualquer coisacomoumdiamante.Balduínoenxergouedisse:

—Pareceumbrilhante...Felipe,oBelo,sealvoroçou:— Ah! vou apanhar para usar no meu dedo. É meu presente de

aniversário...—Correuparaomeioda rua.Viriato ainda chegou a gritar

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para avisar da vinda do auto móvel. Felipe olhou rindo e foi seu últimosorriso. Ficou feito um monturo, um bolo de carnes que ainda gemia.Morreu com o sorriso que izera agradecendo o aviso de Viriato. O rostonão foraatingidoeerabelo,radioso,rostodepríncipe.Ocorpo foi levadopara o necrotério. Veio uma mulher pintada e velhusca que dizia entrelágrimas:

—Monchéri...Monchéri...E beijava o rosto de Felipe, o Belo.Mas ele não viamais nada e não

sabia que era suamãeque estava ali.Não sabia tambémqueo grupo sereuniudenovoparaoseuenterro.VeiooSemDentes,veioJesuíno,atéCiciveioninguémsabedeonde.SónãoveioZéCasquinhaqueeramarinheiroeestavaviajando.AmãedeFelipeeasmulherdaRuadeBaixo levaramlores.Eosmolequesovestiramcomumaroupadecasimira,compradaaumturcoquevendiaroupasfeitasaprestação.

Somente Viriato, o Anão, que cada vez estava menor e mais curvo,icou mendigando. Os outros se distribuíram pela cidade em o íciosdiversos, operários de fábricas, trabalhadores da rua, carregadores docais. O Gordo foi vender jornais porque tinha uma boa voz. AntônioBalduíno voltou ao Morro do Capa-Negro, e icou malandreando com ZéCamarão, jogando capoeira, tocando violão nas festas, indo àsmacumbasdeJubiabá.

Iaaocaistodasasnoiteseficavaespiandonomarocaminhodecasa.

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LanternadosAfogadosQuandoSeuAntôniocomprouaLanternadosAfogadosàviúvadeum

marinheiro que amontara hámuitos anos, ela já tinha esse nome, e emcimadaporta ostentava aquela tabuletamal pintada, naqual uma sereiasalva um afogado. O marinheiro que montara o botequim desembarcaraum dia de um cargueiro e ancorara ali, naquela velha sala negra dosobradocolonial.

Amara umamulata escura que fazia arroz-doce para os fregueses eforneciabóiaaostrabalhadoresdocaisdoporto.

Por que chamara ao botequim de Lanterna dos Afogados ninguémsabia.Sabiamporémqueelenaufragaratrêsvezesequecorreraomundotodo.Antesdemorrercasoucomaamásiaparaqueelapudesseherdarojáafreguesadocafé.ElaovendeuaSeuAntônio,quedehámuitoestavadeolhonele,devidoaopontoqueeraótimo.Antônionãogostavadonomedobotequim. Não via razão para aquele título esquisito. E dias após arealização do negócio, a tabuleta apareceu mudada. A nova trazia odesenhomalfeitodeumacaraveladaépocadasdescobertasportuguesaseporbaixoumnome:“CaféVascodaGama”.

Porémaconteceuqueos freguesesolhavamespantadosonovonomedo botequim e não entravam. Com aquela tabuleta nova e a limpeza quehavia sido feitadentroda sala, elesnão reconheciamo seu sujoportodedescanso,ondebebiamcachaçaeconversavamnasnoitesdocais.

SeuAntônioerasupersticioso.Enodiaseguintefoibuscarnosfundosdacasaavelhatabuletaquevoltouaoseulugar.Guardouaquetinhaumacaravelaportuguesaparaquandopossuísseumcafénocentrodacidade.ComatabuletadeLanternadosAfogados,voltoutambémamulataescuraqueforaamantedomarinheiroequecontinuouafazerarroz-doceparaosfregueses e bóia para os estivadores e a dormir na mesma cama queantigamente.Sóqueagoradormiacomumportuguêsconversador,emvezummarinheirosilencioso.QuandoSeuAntôniomontasseumcafénocentroda cidade e botasse nele o nome de Vaso da Gama e uma tabuleta comcaravelas descobridoras, ela icaria na Lanterna dos Afogados, fazendoarroz-doce para os fregueses, bóia para os estivadores e dormiria namesmacamacomonovoproprietário.

Os fregueses voltaram para a Lanterna dos Afogados. Lá discutiamlongos cruzeiros marinheiros loiros e negros. Mestres de saveirosconversavam sobre as feiras do Recôncavo para onde levariam os seus

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barcos cheios de frutas. Tocavam violão, cantavam sambas, contavamhistóriasde arrepiarnasnoites imensasde estrelas. EmulheresdesciamdaLadeiradoTaboãoparaaLanternadosAfogados.

AntônioBalduíno,ZéCamarãoeoGordoeramdosmaisassíduos.EatéJubiabáapareciaàsvezes.

Se no jogo da capoeira o negro Antônio Balduíno fora o melhordiscípulodeZéCamarão,noviolãocedoelebateuomestreesetornoutãocélebrequantoele.

Muitasvezes,quandoandavapelas ruasda cidadenos seuspasseiosmalandros, ele começava a bater no chapéu de palha uma música queinventava e ia cantando uma letra, tudo tirado da sua cabeça. Depoiscantavaosambanovoparaosamigosdomorro:

“Vidadenegroébemboa,mulata...temfestatodososdiasbaticumlánoterreiromorenaparaafolia...”

Faziasucessonasfestas:

“SenhordoBonfimémeusantoelefazfeitiçoforte,eusouémalandro,mulataevocêminhadesgraça...”

Nãohaviacabrochaquenãoseapaixonasse.Uma tarde um homem muito bem vestido apareceu no morro e

perguntouporAntônioBalduíno.Mostraramonegroqueconversavanumgrupo.Ohomemseaproximou,raspandoochãocomabengala:

—ÉvocêqueéAntônioBalduíno?Balduínopensouquefossealguémdapolícia:—Porquepergunta?—Nãoévocêquefazsambas?—ohomemapontavacomabengala.—Inventoumascoisinha.—Quercantarumparaeuouvir?—Semallhepergunto,queinteressetemisso?—Podeserqueeucompre.Antônio Balduíno estava bem preciso de dinheiro para comprar um

sapatonovoqueviranaFeiradeÁguadosMeninos.Foibuscaroviolãoecantouváriossambas.Ohomemgostoudedois.

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—Quermevenderestes?—Paraqueosenhorquer?—Porquegostei...—Vendo.—Douvintemil.réispelosdois...—Tábempago...Quandoquisermais...OhomemfezAntônioBalduínoassoviarasmúsicasetomounotanum

papelcheioderisquinhos.Escreveuasletras:—Depoiseuvoltoaquiparacomprarmais...Desceu com a bengala arrastando. Os moradores do morro icaram

olhando.AntônioBalduínoseestendeunaportadavendaebotouasduasnotas de dezmil-réis em cimada barriga nua. Ficou pensandono sapatonovoqueiacomprarenocortedechitaquelevariaparaJoana.

Ohomemdebengalaqueadquiriraossambasdissedenoitenumcafédocentrodacidade:

—Fizdoissambasformidáveis.Cantoubatendoosdedosnamesa.Ossambasdepoisapareceramem

discoseforamcantadosnorádio,tocadosaopiano.Osjornaisdiziam:“O maior sucesso deste carnaval foram os sambas do poeta Anísio

Pereira,quesãodeenlouquecer”.Antônio Balduíno não lia jornais, não ouvia rádio, não tocava piano.

ContinuouavendersambasaopoetaAnísioPereira.

Joana trazia os cabelos soltos, cabelos que ela espichavacuidadosamente, e os perfumava com um perfume que tonteava AntônioBalduíno. Ele en iava o nariz chatono cangote dela, suspendia o cabelo eficavaaspirandoaqueleperfume.Eladiziarindo:

—Tiraofocinhodomeupescoço...Eleriatambém:—Quebodumgostoso...Jogavaanegradecostasnacama.Avozdelavinhadelonge:—Seucão...

No dia em que apareceu com os sapatos novos, levando debaixo dobraçoocortedechitaparaumvestido,Joanaestavatambémcantandoumdos sambas que ele vendera ao homem de bengala. Antônio Balduínodisse:

—Sabedeumacoisa,Joana?—Oqueé?

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—Vendiessesamba.—Vendeucomo?—elanãosabiacomosevendiaumsamba.—Apareceu um homenzinho nomorro, e comprou dois sambas por

vintemil-réis.Bembom.—Masparaqueelequeria?—Euseilá...Achoqueeleédoido.Joana icou pensando. Mas Antônio Balduíno lhe deu o corte de

fazenda:—Comodinheirocompreiistoparavocê...—Quebeleza!—Olheaprosopopéiademeusapatonovo...Ela olhou e se jogou no pescoço de Antônio Balduíno, que ria alto,

satisfeito da vida, bem contente com o negócio que izera. E enquantocheiravao cangotede Joana, ela cantavao seu samba.Foi aúnicapessoaquecantouaquelesambasabendoquememverdadeofizera.

AntônioBalduínoavisou:—NóshojevaiàmacumbanacasadeJubiabá.Édiadoteusanto,meu

bem.Iam à macumba e depois se estendiam no areal, onde se amavam

raivosamente, Antônio Balduíno vendo no corpo de Joana o corpo deLindinalva.

Apareciam sempre na Lanterna dos Afogados, se bem Joana nãogostassedeirlá.

—Umlugarondevaitantavagabunda...Sãocapazesdepensarqueeutambémsou.

Joana copeirava numa casa da Vitória e morava num quartinho nasQuintas. Gostava de ir amar no cais, mas só ia à Lanterna dos Afogadospara satisfazer o capricho de Antônio Balduíno. Quando iam os dois, eleicavasozinhocomacabrochanumamesa,bebendocerveja,sorrindopataosoutrosquecumprimentavam.Eleexpunhaaamanteedepoissaíarindo,piscandoosolhoscomoadizerqueagorasedirigiamparaoarealdocais.

Quasetodososdias,porém,AntônioBalduínoiaeracomoGordo,comJoaquimcomZéGrandão.Bebiamcachaça,contavamaventuras,riamcomosóosnegrossabemrir.NanoitedoaniversáriodoGordo,Viriato,oAnão,apareceu. Tinha mudado muito nestes últimos anos. Não que estivessemais alto ou mais forte. É que estava andrajoso, vestido de molambos,apoiadonumabengalatosca.

—Vimbeberàsuasaúde,Gordo...

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OGordomandouvircachaça.AntônioBalduínoperguntou:—Comovãoascoisas,Viriato?—Assim,assim...—Vocêestádoente?— Não. Isso é para arranjar mais esmolas — e riu seu sorriso

apertado.—Porquenuncamaisvocêapareceu?—Poraí,sabe...Jogado...Nemvontade...—Medisseramquevocêtinhatadodoente.— Estive mesmo, maleita braba... A assistência me pegou... Passei o

diabo.Seeucairdoenteoutravezprefiromorrernarua...AceitouocigarroqueJoaquimoferecia:—Fiqueilargadolá,semninguémseimportarcomeu.Sabecomoé?OGordonãosabia,masestavacommedo.—De noite vinha a febre. Eu pensava que iamorrer...Me lembrava

quenãotinhaninguém...Ninguémpramevelar...Ficoucalado.—Masficoubom—disseBalduíno.— Bom, não. Maleita volta. Um dia destes morro na rua como um

cachorro...OGordobotouamãonegraemcimadamesaemdireçãoaViriato:—Morrenada,mano...Joaquimtentourir:—Vasoruimnãoquebra...MasViriatocontinuou:— Você se lembra, Antônio Balduíno, de Rozendo? Ele icou doente

mas teve amãe dele que veio buscar ele. Foi até eu que descobri ela. EFelipe, o Belo, quando morreu teve também a mãe dele que veio proenterro.Trouxeaquelasfloreseveiomuitamulher...

—Tinhaumacomcadacoxão—atalhouJoaquim.— Todo mundo tem pai, tem mãe, tem uma pessoa. Eu não tenho

ninguém.Atirouparaumcantoocigarro,pediuoutrocopodepinga:—Dequevaleavidadagente?Vocêsealembradavezqueagente

apanhoucomocachorronapolícia?Praqueelesfezaquilocomagente?Avidadagentenãoprestapranada...Agentenãotemninguém...

O Gordo tremia. Antônio Balduíno olhava para dentro do copo decachaça.Viriato,oAnão,selevantou:

—Estouchateandovocês...Maseuficosóeficomatutando...

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—Jávai?—perguntouJoaquim.—Voupegarasaídadocinema.Saiusearrastandonabengala,curvo,cobertodefarrapos.—Elejáseacostumouaandarassim—disseJoaquim.—Porqueéqueelesóconversacoisastristes?—OGordonãosabia,

mastinhapenaporqueeramuitobom.—Elesabemaisdoqueagente—afirmouAntônioBalduíno.Naoutramesaummulatodepastinhaexplicavaaumnegro:—Moisésmandoupararomareatravessoucomoscristãotodos...—Euconversoéparamedivertir—falouJoaquim.OGordosequeixou:—Elenãodeviaterfeitoissohojequeeradiadomeuaniversário...—Oquê?—Contarcoisatriste...Tiroutodaagraça.— Nada. Vamos fazer uma farra na casa de Zé Camarão. A gente

arranjaumasmorenas—convidouAntônioBalduíno.OGordopagouasdespesas.Naoutramesaomulatocontavaahistória

doReiSalomãoquetinhaseiscentasmulatas.—Machobom—disseAntonioBalduínosoltandoumagargalhada.Fizeram a farra, se entupiram de cachaça, amaram umas cabrochas

bembonitas,masnãoconseguiramesquecerViriato,oAnão,quenãotinhaninguémparatratardasuamaleita.

Joana fazia cenas por causa de outras mulatas, que eram amadasigualmenteporAntônioBalduíno.Mulataqueaparecessenasuafrenteeramulataamigadacomele.Naforçadosseusdezoitoanosfortesemalandroscriara um grande prestígio entre as cabrochas da cidade, empregadas,lavadeiras,negrinhasquevendiaacarajéeabará.Elesabiaconversarcomelas e terminava sempre por levá-las para o areal, onde se enroscavamsemsentiraareiaqueentravapelacarapinha.

Eleasamavaenãoasviamais.Passavampelasuavidacomoaquelasnuvens que passavam pelo céu, e que serviam para ele fazer ascomparaçõescomelas:

—Osolhosdevocêdetãopretosparecemaquelanuvem...—Xi!vaichover...— Então vamos para casa... Eu sei um lugar onde a gente ica bem

abrigado.Porém Joana tinha aquele perfume no cangote. Se agarrava a ele,

brigava quando sabia que o negro dera em cima de uma cabrocha

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qualquer,dizematéquefezfeitiçoparaqueelenãoaabandonasse.Tinhaamarradonumacuecadoamantepenasdegalinhapreta,eumafarofadeazeite-de-dendê onde cinco vinténs de cobre apareciam. Pôs tudo isso naportadeAntônioBalduínonumanoitedeluacheia.

NafestadacasadeArlindo,emBrotas, izeraumescarcéudanado,sóporqueAntônioBalduínodançaraalgumasvezescomDel ina,umamulatasarará. Quisera dar na outra, chegou a arrancar o sapato do pé. AntônioBalduínoriaalto,gozandoadisputadasduas.

EmcasaJoanaperguntou:—Oquefoiquevocêachoudebonitonaquelapeste?—Vocêtácomciúmedela?— Eu? Vê lá... Daquele couro... uma bruaca velha caindo de podre...

Nãoseioqueéquevocêviunela.—Issoéquevocênãosabe...Elatemseussegredos...Antônio Balduíno ria e rolava com ela na cama cheirando o seu

cangoteperfumado.Lembrava-se de quando a conhecera. Fora numa festa no Rio

Vermelho.Deraemcimadelade longe, tocandocoisasnoviolão.Ela icoutoda caída.Nooutrodia, queeraumdomingo, se encontrarame foramàmatinê do Olímpia. Ela lhe contara uma história muito comprida paraprovar que era donzela e ele acabara acreditando. Ficou desinteressadomas foi ao encontro marcado para quinta-feira porque não tinha o quefazer naquela noite. Ficaram passeando no Campo Grande, ele sem terconversa porque ela era donzela e donzelas não interessam ao negro.Pertodahoradevoltarparaoempregoelacontou:

—Olhe,euviquevocêébonzinhomesmoerespeitador...Poiseuvoufalaraverdadeparavocê.Eunãosoudonzela,não...

—Ah!nãoé,não?—Foimeutio,umtioquemoravaláemcasa.Faztrêsanos.Euestava

sozinha,mamãetinhaidotrabalhar...—Eseupai?—Nuncaconheci...Meutioseaproveitou,mepegouefoiapulso...—Quedesgraçado...—nofundoAntônioBalduínosimpatizavacomo

tio.— Nunca mais conheci homem nesses três anos... Agora gostei de

você...AntônioBalduínodestavezestavaconhecendoqueeratudoinvenção

da cabrocha,mas não disse nada. Não deixou ela voltar para o empregonaquelanoite,e,comonãotinhaparaondea levar, foimesmoparaocais

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doporto,paradiantedosnaviosedomar.Depois alugaram aquele quartinho nas Quintas, onde diariamente

Joanamentiaeciumava.Onegronãoacreditavamascomeçavaaseaborrecer.

Estava na Lanterna dos Afogados, certa noite de temporal, quando oGordo entrou afobado. Joaquim, que conversava com Antônio Balduíno,avisou:

—LávemoGordo..—Vocêssabemoqueaconteceu?—Osestivadoresacharamumdefuntonocais.Aquilo era comum e eles não se impressionaram. Mas o Gordo

acrescentou:—EraViriato.—Quem?—Viriato,oAnão.Saíram correndo. Lá estava na borda do cais. Um grupo de homens

cercava o corpo. Devia ter passado uns três dias na água, pois inchara ecrescera.Osolhosmuitoabertospareciam itarogrupo.Onarizjáandavameiocomidopelospeixesesentia-sedentrodocorposirisquefaziamumbarulhoesquisito.

Pegaramo corpo e levarampara a LanternadosAfogados. Juntaramduasmesaseobotaramemcima.Ossiris faziambarulhopordebaixodapeledocadáver.Pareciamchocalhostocando.SeuAntôniotrouxeumaveladobalcãoparaenfiarnamãoquejánãoabria.Joaquimdisse:

—Sócresceudepoisdemorto.OGordoestavarezando:—Coitado!...Nãotinhaninguémporele.Unshomensquebebiamcachaçavieramver.Asmulheresolhavame

seafastavamcommedo.SeuAntônioaindaseguravaavela,poisninguémtinha coragem de ir botar namão do defunto. Antônio Balduíno pegou avela e se aproximoudomorto.Abriu amãogrossado afogadoemeteu aveladentro.Falou:

—Eleerasozinho,gente...Eletavaprocurandoacertarcomocaminhodecasaeentroupelomar.

Ninguémentendia.Alguémperguntouondeelemorava.Jubiabáquevinhachegandoquissaber:—Boanoitepraocêstodos.Oquefoi?— Ele tava, pai Jubiabá, procurando o olho da piedade. Mas ele não

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achou nunca e sematou. Ele não tinha nem pai nemmãe, nem ninguémpracuidardele.Morreuporquenãoencontrouoolhodapiedade.

NinguémentendiamastremeramquandoJubiabádisse:—Ôjúànunfótiiká,ôkú.OGordocontavacommuitosdetalhesedeumamaneiramuitotristea

históriadeViriato,oAnão,aumdoshomensquebebiamcachaça.SegundooGordo,umavezViriatoviratrêsanjoseumamulhervestidaderoxoqueerasuamãeeoestavachamandoparaocéu.

Aísejogaranaágua.Derepente,nomeiodetodaaquelagente,AntônioBalduínosesentiu

só como cadáver e tevemedo.Ummedodoido. Ficou tremendo,batendoos queixos. Se lembrou de todomundo: sua tia Luísa que enlouquecera,Leopoldoqueforaassassinado,Rozendodoentegritandopelamãe,Felipe,o Belo, debaixo do automóvel, o velho Salustiano se suicidando no cais, ocorpodeViriato,oAnão,cheiodesirisquechocalhavam.

Epensouqueeramtodoselesmuitoinfelizes,vivosemortos.Eosquenasceriamdepoistambém.Sónãosabiaporqueeramtãoinfelizes.

OtemporalapagoualuzdaLanternadosAfogados.

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MacumbaFoi feito despacho de Exu, para que ele não viesse perturbar a boa

marchada festa.EExu foiparamuito longe,paraPernambucoouparaaÁfrica.

AnoitecaíapelosfundosdascasaseeraaquelanoitecalmaereligiosadaBahiadeTodososSantos.Dacasadopai-de-santoJubiabávinhamsonsdeatabaque,agogô,chocalho,cabaça,sonsmisteriososdamacumbaqueseperdiam no pisca-pisca das estrelas, na noite silenciosa da cidade. Naporta,negrasvendiamacarajéeabará.

E Exu, como tinham feito o seu despacho, foi perturbar outras festasmais longe, nos algodoais da Virgínia ou nos candomblés do Morro daFavela.

Num canto, ao fundo da sala de barro batido, a orquestra tocava. Ossons dos instrumentos ressoavam monótonos dentro da cabeça dosassistentes.Músicaenervante,saudosa,músicavelhacomoaraça,quesaíadosatabaques,agogôs,chocalhos,cabaças.

Aassistênciaapertadaemvoltadasala,juntoàparede,estavacomosolhos itos nos ogãs que icavam sentados emquadrado nomeio da sala.Emtornodosogãsgiravamasfeitas.Osogãssãoimportantes,poiselessãosócios do candomblé, e as feitas são as sacerdotisas, aquelas que podemreceberosanto.AntônioBalduínoeraogã, Joaquimtambém,masoGordoaindanãooeraeestavanomeiodaassistência;bemjuntodeumhomembranco e magro, calvo, que espiava a cena muito atento, procurandoacompanharamúsicamonótonacompancadasnos joelhos.Dooutro ladoum jovem negro de roupa azul estava envolvido pela música e peloscânticos,esquecidodequetinhavindoobservar.Orestodaassistênciaeraformada por homens pretos, homens mulatos, que se apertavam deencontro a negras gordas, vestidas com anáguas e camisas decotadas ecolaresnopescoço.Asfeitasdançavamlentamentesacudindoocorpo.

De repenteumanegravelhaqueestavaencostadaparededa frente,pertodohomemcalvo,equedehámuito tremianervosacomamúsicaecomoscânticos, recebeuosanto.Foi levadaparaa camarinha.Mascomoelanãoerafeitanacasa, icouláatéqueosantoaabandonouefoipegarumanegrinhamoçaquetambémentrouparaoquartodassacerdotisas.

OorixaláeraXangô,odeusdoraioedo trovão,ecomodestavezeletinhapegadoumafeita,anegrinhasaiudacamarinhavestidacomroupasdo santo: vestido branco e contas brancas pintalgadas de vermelho,

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levandonamãoumbastãozinho.Amãedoterreiropuxouocânticosaudandoosanto:

“Edurôdêminlonanôyê!’

Aassistênciacantouemcoro.

“Aumbók’ówájô!”

Eamãedoterreiroestavadizendonoseucânticonagô:

“Abramalasparanós,queviemosdançar”.

As feitas rodavam em torno dos ogãs e a assistência reverenciava osantopondoasmãosparaele,osbraçosemângulosagudos,aspalmasdasmãosvoltadasparaoorixalá:

—Ôkê!Todosgritavam:—Ôkê!Ôkê!Osnegros,asnegras,osmulatos,ohomemcalvo,oGordo,oestudante,

todaaassistênciaanimavaosanto:—Ôkê!Ôkê!Entãoosantopenetrounomeiodas feitasedançou também.Osanto

eraXangô,odeusdoraioedotrovão,etraziacontasbrancaspintalgadasde vermelho sobre o vestido branco. Veio e reverenciou Jubiabá queestavanomeiodosogãseeraomaiordetodosospais-de-santo.Deuoutravoltadançandoe reverenciouohomembrancoecalvoqueestavaaliporconvitedeJubiabá.Osantoreverenciavacurvando-setrêsvezesdiantedapessoa,depoisaabraçava,apertando-lheosombros,epunhaacaraoradeumladooradeoutrodadoreverenciado.

Amãedoterreirocantavaagora:

“IyaridêglêôAfidésiómónlôwôAfiilésiómónlérun.”

eelaestavadizendoque:

“Amãeseenfeitadejóias,EnfeitadecontasopescoçodosfilhosEpõenovascontasnopescoçodosfilhos...”

E os ogâs e a assistência faziam o coro pronunciando umaonomatopéia que indicava o ruído das contas “que estavam todas a

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trincar”:

“Ômirôwónrónwónrónwónrónômirô”.

Foi quando Joana, que já dançava como se estivesse em transe, foipossuídaporOmolu,adeusadabexiga.

E saiu da camarinha vestida de roupamulticor, onde predominava overmelho-vivo, as calças parecidas àquelas velhas ceroulas, as pontasbordadas aparecendo sob a saia. O tronco estava quase nu, um panobrancoamarradonospeitos.EotroncodeJoanaeraperfeitodebeleza,osseios duros e pontiagudos furando o pano. Mas ninguém via nela anegrinhaJoana.NemAntônioBalduínoviaasuaamanteJoana,quedormiasemsonharnoarealdo caisdoporto.Quemestava ali, debustodespido,era Omolu, a deusa terrível da bexiga. Da mãe do terreiro vinha a vozmonótonasaudandoaentradadosanto:

“Edurôdêminlonanéyê!”

Sons de atabaque, agogô, cabaça, chocalho. Música que nãomudava,que se repetia sempre, mas que excitava doida- mente. E o coro daassistência:

“Aumbók’ówájô!”

Reverenciavamosanto:

—Ôké!Ôkê!

E Omolu, que dançava entre as feitas, veio e reverenciou AntônioBalduíno. Depois reverenciou pessoas da assistência que podiam entrarparaacasa.ReverenciouoGordo,reverenciouoestudantenegroqueerageralmentesimpatizado,reverenciouohomemcalvo,reverenciouRoqueeváriosoutros.

Agoratodosestavamexcitadosetodosqueriamdançar.Omoluvinhaetirava mulheres da assistência para dançar. Antônio Balduíno movia otroncocomoseestivesseremando.Estiravamosbraçossaudandoosanto.Umardemistérioseespalhavapelasalaevinhadetodaparte,dossantos,da música, dos cânticos e, principalmente, de Jubiabá, centenário epequenino.

Cantavamemcorooutracançãodemacumba:

“Êôlôbiriôb’ajágbákóapéhindá.”

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eestavamdizendoque“ocachorroquandoandamostraorabo”.TambémOxossi,odeusdacaça,veioparaafestadamacumbadopaiJubiabá.Vestiadebranco,verdeeumpoucodevermelho,umarcodistendidocomasualecha,penduradodeumladodocinto.Dooutroladoconduziaumaaljava.Traziadaquela vez, alémdo capacetedemetal comcascodepanoverde,umespanadorde iosgrossos.EnãoésemprequeOxossi,odeusdacaça,ograndecaçador,trazoseuespanadordefiosgrossos.

Os pés descalços das mulheres batiam no chão de barro, dançando.Requebravam o corpo ritualmente, mas esse requebro era sensual edengoso como corpo quente de negra, comomúsica dengosa de negro. Osuor corria e todos estavam tomados pelamúsica e pela dança. O Gordotremiaenãoviamaisnada senão iguras confusasdemulheres e santos,deuses caprichosos da loresta distante. O homem branco batia com ossapatosnochãoedisseparaoestudante:

—Eucaiojánadança...Jubiabá era reverenciado pelo santo. Braços em ângulos agudos

saudavamOxossi,odeusdacaça.Haviaquemapertasseos lábiosemãosquetremiam,corposquetremiamnodelíriodadançasagrada.Foiquando,desúbito,Oxalá,queéomaiordetodososorixás,equesedivideemdois— Oxodian, que é omoço, Oxolufã, que é o velho, apareceu derrubandoMaria dos Reis, uma pretinha de seus quinze anos, de corpo virgem eroliço. Ele apareceu, Oxolufã, Oxalá velho alquebrado, arrimado a umbordão com lantejoulas. Quando saiu da camarinha vinha totalmente debrancoerecebeuasaudaçãodaassistênciaquesecurvouaindamais

—Okê!Okê!Foisóentãoqueamãedoterreirocantou:

“Éinunójá1’ááló,inunliaôlô”.

Elaestavaavisando:

“Opovodafeiraqueseprepare.Vamosinvadi-la”.

Eaassistênciaemcoro:

“Êrôôjáéparámón,éinunójáliaôló”

“Povaréu,cuidado,entraremosnafeira.”

Sim,elesentrariamnafeira,porqueestavamcomOxalá,queéomaiordetodososorixás.

Oxolufã,queeraOxalávelho, só reverenciou Jubiabá.Edançouentreas feitas até que Maria dos Reis caiu estremunhando no chão, assim

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mesmosacudindoocorpono jeitodadança,espumandopelabocaepelosexo.

Na sala estavam todos enlouquecidos e dançavam todos ao som dosatabaques, agogôs, chocalhos, cabaças. E os santos dançavam também aosomdavelhamúsicadaÁfrica, dançavam todososquatro entre as feitasaoredordosogãs.EeramOxossi,odeusdacaça,Xangô,deusdoraioedotrovão,Omolu,deusadabexiga,eOxalá,omaiordetodos,queseespojavanochão.

Noaltarcatólico,queestavanumcantodasala,OxossieraSão Jorge;Xangô,SãoJerônimo;Omolu,SãoRoqueeOxalá,oSenhordoBon im,queéomaismilagrosodossantosdacidadenegradaBahiadeTodososSantosedopai-de-santoJubiabá.Éoquetemafestamaisbonita,poisasuafestaétodacomosefossecandombléoumacumba.

Nasala tinhamoferecidopipocasàassistênciae ládentro foi servidoxinximdebodeedecarneirocomarroz-de-hauçá.NasnoitesdemacumbaosnegrosdacidadesereuniamnoterreirodeJubiabáecontavamassuascoisas. Ficavam conversando noite afora, discutindo os casos acontecidosnos últimos dias. Mas naquela noite eles estavam meio encabulados porcausadohomembrancoquetinhavindodemuitolongesóparaassistiràmacumbadepaiJubiabá.Ohomembrancocomeramuitoxinximdebodeelambera os beiços com o arroz-de-hauçá. Antônio Balduíno soubera queeste homem fazia ABC e andava correndo o mundo todo No princípiopensaraqueelefossemarinheiro.OGordoa irmavaqueeleeraandarilho.Fora aquele poeta que comprava os seus sambas quem lhe trouxe ohomembranco.OhomemqueriaverasmacumbaseopoetadissequesóAntônio Balduíno tinha prestígio para conseguir que ele penetrasse namacumba de Jubiabá. Mas apesar dos elogios, Antônio Balduíno não sesentira muito disposto a falar com Jubiabá. Isso de levar brancos, eprincipalmente desconhecidos, para asmacumbas, não dava certo. Podiaserumpolíciaqueiasóparaprendertodomundo.UmaveztinhammetidoJubiabá na chave, o pai-de-santo passara a noite lá e tinham levado Exu.Foi preciso que Zé Camarão, que era inório como ele só, fosse buscar oOrixá-lá na própria sala do delegado, nas barbas do soldado. Quando omalandrochegaracomExudebaixodocasacofoiumafesta.EhouveumamacumbaquedurouanoitetodaparadesagravarExuqueestavafuriosoepoderiaperturbarasoutrasfestasdepois.

Era por isso que Antônio Balduíno não queria levar o branco. E sófalou com Jubiabá quando o estudante negro, que se dava com ele, veio

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pedir:—Eugarantopelohomem...Écomosefosseeu.Aí o negro quis saber toda a vida do branco. Quando soube que ele

viviacorrendoomundovendoascoisastodas,seentusiasmou.QuemsabeseumdiaaquelehomemnãoescreveriaseuABC?

ObrancosedespediudepoisdedizeraJubiabáqueaquiloforaacoisamaisbonitaqueele jávira.Oestudante foicomeleeosnegroscomoquerespiraram. Agora podiam conversar, discutir suas coisas, falar no quegostavam,mentiràvontade.

ORosadofalouparaAntônioBalduíno:—Vocêjáviuatatuagemnovaqueeufiz?—Não.ORosadoeraummarinheiroquepassavanaBahiadequandoemvez

equeumdia trouxeranotíciasdeZéCasquinhaquenavegavaemmaresdistantes, e que até já falava língua de gringo. O Rosado trazia as costasinteiramente tatuadas com nomes de mulheres, um vaso de lores, umpunhaleumchicote.

Ficourindo,AntônioBalduínoadmiroucomumacertainveja:—Tábonito...— Tem um americano no navio que tem um mapa nas costas. Uma

beleza,rapaz...AntônioBalduínose lembroudohomembranco.Eledeviaveraquilo.

Mas ele fora embora e parecia que ia fugindoporque os negros estavamcomvergonhadele.AntônioBalduínovaimandarfazerumatatuagemnascostas.Masnãosabeaindaoquevaimandarbotar.PeloseugostobotariaomareoretratodeZumbidosPalmares.TemumnegronocaisquetraztatuadoemtodaaextensãodascostasonomedeZumbi.

Damião,umnegrovelho,sorri.—Ocêsquervercostamarcada?Jubiabá faz um gesto para ele não mostrar. Mas ele já arrancou a

camisaeaparecemacostas.Todosvêemqueasuacarapinhajáébranca.Nascostasestãoasmarcasdochicote.Forasurradonasfazendas,andaranostroncosnotempodaescravidão.AntônioBalduínoviulogoabaixodaschicotadasumamarcadequeimadura:

—Quefoiisso,meutio?Quando Damião compreende que ele fala da queimadura, ica de

repenteenvergonhadoecobreascostas.Ficasemfalar,olhandoacidadeiluminada lá embaixo. Maria dos Reis sorri para Antônio Balduíno.Tambémosvelhosqueforamescravospodemterumsegredo.

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ComoJoanativesseidoembora,sozinha,cheiadeciúmes,eMariadosReistambémseretirasseparaacasadesuamãe,AntônioBalduínodesceucomoGordoeJoaquim.Levavaoviolãoparafazerumafarra.

MasoGordo foi logoembora,poismorava longe coma sua avó, umavelhaoctogenária,decavanhaque,quehámuitotempoperderaanoçãodarealidade e vivia nummundo diferente, contando casos que atrapalhavacom outros,misturando as iguras, sem chegar jamais ao im da história.EmverdadeelanãoeraavódoGordocoisanenhuma.OGordoéquetinhainventado aquilo com vergonha de ter recolhido e de sustentar aquelavelha que antes andava solta na cidade.Mas fazia como se ela fosse suaavó, levando-lhe comida, conversando horas e horas com ela, serecolhendo cedo para que a velha não icasse sozinha. Às vezesencontravam o Gordo com um corte de fazenda e pensavam que ele ialevarparaalgumacabrochafaceira.

—Épraminhaavó,coitadinha...Elagastamuitaroupaporquesedeitanochãosujo.Jáestácaduca...

—Elaésuaavóporpartedepaioudemãe,Gordo?O Gordo se atrapalhava. Os outros bem sabiam que o Gordo nunca

conhecera pai e mãe. Mas o Gordo tinha uma avó e muitos deles oinvejavam.

DepoisqueoGordo sedespediu,AntônioBalduínoe JoaquimvieramdescendoaLadeiradaMontanha,assoviandoumsamba.A ladeiraestavadesertaesilenciosa.Unicamentenumajanelapobre,iluminadaporum ifó,uma mulher estendia fraldas de recém-nascido. E ouviam a voz de umhomemquefalavadentrodoquarto:

—Filhinho...Filhinho...Joaquimdisse:—Aqueleamanhãvaidormirnotrabalho...Táfazendodeama-seca.AntônioBalduínonãorespondeunada.Joaquimcontinuou:—Nãoadianta...Praquê?—Oquê?—Nada...nada...AntônioBalduínoperguntou:—VocêjáreparoucomooGordoébom?—Bom?—Joaquimnãotinhareparado...—Bom,sim.Éumsujeitobom.Eletemoolhodapiedadebemaberto.

—ChegouavezdeJoaquim icarcalado.Logoapóssoltouumagargalhada:—Émesmo...OGordoéumsujeitobom...

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—Edequevocêtárindo?—Nada.ÉqueagoraeuviqueoGordoéumsujeitobom.Continuaram a descida calados. Antônio Balduíno revia a cena da

macumba, o homem calvo que viajara omundo todo. O homem tinha idoembora,averdadeéqueohomemtinhafugido.AntônioBalduínopensavaque aquele homem fosse Pedro Malazarte. Mas ele tinha fugido quandovira que os negros estavam envergonhados. Lembrou-se de Zumbi dosPalmares.SetivessehavidooutroZumbi,aquelenegrovelhonãoteriasidochicoteado. Seria um lutador. Então não precisaria se envergonhar dehomembranco.Ohomemsaíranumgestodesolidariedade,enãovoltariajamais. Porém, um dia aquele homem iria escrever o ABC de AntônioBalduíno,umABCheróico,ondecantariaasaventurasdeumnegro livre,alegre,brigão,valentecomosete.

PensandonissoAntônioBalduínosealegroudenovoeriu:— Sabe de uma coisa, Joaquim? Eu acabo tirando o cabaço daquela

negrinha...—Dequal?—Joaquimseinteressouvivamente.—MariadosReis.Elatátodacaídapromeulado...—Qualé?—AquelaqueOxalápegou.Aquelanovinha...— Aquilo é coisa ina, Baldo. Baldo, ela é noiva de um soldado do

exército.Vocêvaisemeteremfunduras...—Quemdisse...Elatácaidinhapelodegas...Tenhonadacomsoldado.

Chamoamorenanospeitos, istosim...Osoldadoquesedane.— JoaquimbemsabiaqueAntônioBalduínoamaria amulata semse importar comosoldado. Mas ele não gostava de barulho com soldado do exército eaconselhou:

—Deixeamorenaempaz,Baldo...EsqueceraqueAntônioBalduínoquandomorresseiasercantadonum

ABCeque todososheróis deABCamamdonzelas comquem se amigamromanticamente pelo espaço de uma noite e brigam com soldados doexército.

Andaram a Cidade Baixa que estava dormindo. Não encontraramninguémpara fazer uma farra. A Lanterna dos Afogados estava fechada.Ninguémpelas ruas, nemuma cabrochapara levarempara o areal.Nemuma venda onde bebessem um rabo-de-galo. Foram andando ao léu,Joaquimabrindoaboca comsono.Entraramporumbecoeviram, então,umcasaldemulatosqueconversavamcomonamoradosrecentes.Joaquim

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avisou:—Umamulata,seumano...—Aquela,Joaquim,táali,estácomida.—Tácomummacho,Baldo.—Vocêvaiverasminhasartes.EdeumpuloAntônioBalduíno se aproximoudamulata.Deu-lheum

empurrãocomforça,amulhercaiunarua.—Então, sinhá cachorra, eu ico trabalhandoevocêvemseesfregar

comummacho...Sem-vergonha,vaiverasurraquevai levar.—Virou-separaomulato.Masantesquedissessealgumacoisaesteperguntou:

—Elaésuaamásia?Eunãosabia.—Minhaamásia?Éminhamulher,casadanopadre,ouviu?Nopadre...Avançavaparaohomem.—Eunãosabia.Osenhormedesculpe...Elanãomedissenada.Saiudecostasenaprimeiracurvadesapareceu.AntônioBalduínoria

comoumperdido.Joaquimquetinha icadoafastado,porqueumhomeméparaumhomem,seaproximou:

—Deucerto,hein?Riram os dois em gargalhadas alegres que despertavam a cidade

adormecida. Veio um riso do chão. Era damulherzinha que se levantava.Umamulatadesdentada,bemclara,quenemvaleraapena tantoesforço.Mas como não haviamesmo outramulher o jeito que tiveram foi levar adesdentadaparaoareal.AntônioBalduínofoiprimeiro,depoisfoiJoaquim.

—Elanãotemdente,masébemboa—disseJoaquim.—Nãopagouapena—fezBalduíno.Deitouno cais, pegoudoviolão e começoua tocar. Joaquimmeteuos

pés na água. A mulher, que estava acabando de endireitar o vestido,chegouparapertodelese icou cantandoa cantigaqueAntônioBalduínotocavaaoviolão.Primeirobaixinho,maslogodepoisemvozalta,eelatinhauma voz bonita e esquisita, quasemasculina. E encheu o cais com a suavoz, até que os homens dos saveiros acordaram, os marinheirosapareceramnaamuradadosnavioseodiaclareousobreomar.

Quandoodiaclareou,naquelajanelapobredosobradodaLadeiradaMontanha,amulheracordouohomem.Ele iaparaumafábricadistanteetinhaqueacordarcedo.Disseparaamulherapontandoofilhinho:

—Essacoisinhaà-toanãomedeixoudormir...Toumortodesono.Sacudiu água na cara, olhou a manhã clara, bebeu o café ralo. A

mulheravisou:

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—Nãotempãoporcausadoleireparaacriança.Ohomem fez umgesto de resignação, beijou o ilho, bateuno ombro

damulher,puxouumcigarrovagabundo:—Mandeabóiaaomeio-dia.Quandodesceu,namanhãqueestava icandoazulada,paraaLadeira

daMontanha,emcaminhodafábrica,seencontroucomAntônioBalduínoeJoaquimquevinhamcomadesdentadaatrás.Balduínogritou:

—Jesuíno,évocê?Era Jesuíno que fora mendigo e moleque como eles. Estava quase

irreconhecíveldetãomagro.Joaquimriu:—Vocêtámalzinho,mano...— Nasceu um ilhinhomeu, Baldo. Quero que você seja o padrinho.

Umdialhelevoparaconhecerminhapatroa...Foi embora, ladeira abaixo, para a fábricaque icava em Itapagipe.E

ele tinha que ir a pé por causa do leite do ilhinho. A mulher estendiafraldasna janelae tambémeramagraepálida.Paraelanão .tinha icadonempãonemcafé.

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LutadorA casa de Jubiabá era pequena mas bonita. Ficava num centro de

terrenonoMorrodoCapa-Negro,umgrandeterreironafrente,umquintalseestendendonosfundos.

A sala espaçosa ocupava a maior parte da casa. Umamesa com umbancodecadalado,ondejantavamJubiabáeassuasvisitas,eumacadeiraespreguiçadeira, virada para a porta do quarto em que o pai-de-santodormia. Nos bancos, em redor da mesa, negros e negras conversavam.Estavam também dois espanhóis e um árabe. Nas paredes retratosinúmeros,emolduradosemconchasbrancaserosas,mostravamparenteseamigosdopai-de-santo.Nonichoumorixá-lánegroconfraternizavacomumquadrodoSenhordoBon im.Oquadrorepresentavaosantosalvandoumnaviodeumnaufrágio.Porém,o ídoloeramuitomaisbonito,poiseraumanegradebelo corpo, segurandocomumadasmãoso seiopujanteebem-feito,numgestodeoferecimento.EeraIansã,deusadaságuas,queosbrancoschamamSantaBárbara.

Jubiabásaiudoquarto,vestidonumlindocamisubordadonospeitos.Ocamisuseestendiaatéaospéseelenãotraziaoutraroupa.Umnegroselevantoudamesaeajudouopai-de-santoasesentar.

OsnegrosvieramebeijaramamãodeJubiabá.Tambémosespanhóise o árabe. Um dos espanhóis estava com o queixo inchado, um panoamarradoporbaixo.Chegouparapertodopai-de-santoedisse:

— Pai Jubiabá, yo estou com um dente danado pra doer. Caramba!Nãomedeixa trabajar,nemhacernada.Caramba! Jágasteiumdinheirãocomodentistaenada.Nãomerestanadaahacer!

Tirou o pano do queixo. Apareceu uma inchação enorme. Jubiabámedicou.

—Botechádemalvaerezeassim:

“SãoNicodemos,saraiessedente!Nicodemos,saraiessedente!

saraiessedente!essedente!

dente!”

Completou:—Vosmecêfazaoraçãonapraia.Escrevenaareiaevaiapagandode

cadavezumapalavra,nãosabe?Depoisvaipracasaebotaochá.Massem

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aoraçãonãopresta.Oespanholdeixoucincomil-réisefoiaplicaroremédio.Depois veio um negro que queria fazer um despacho. Falou em voz

baixa,próximoaoouvidodeJubiabá.Opai-de-santoselevantoueajudadopelonegropenetrounoquarto.Voltaramminutosdepoisenodiaseguinteapareceuum feitiço forte, farinhamisturada comazeite-de-dendê, quatromil-réis em pratas de dez tostões, dois vinténs de cobre e um urubunovinhoaindavivo,naportadeHenriquePadeiroquepegouumadoençamisteriosa e morreu dela tempos após. Uma negra também queria umfeitiço, mas esta não falou em voz baixa nem entrou para o quarto. Foidizendo:

—Aquelasem-vergonhadaMarta tomoumeuhomem.Euqueroqueele venha de novo pra casa. — A negra estava revoltada. — Eu tenhofilhos,elanãotem...

— Você arranje uns cabelos dela e traga que eu faço tudo —respondeuJubiabá.

E des ilaram ante o pai-de-santo todos aqueles negros que queriamfazerdespachos.Algunsforamrezadoscomramosdemastruço.Eraassimque a cidade se enchia na madrugada seguinte de coisas-feitas queentulhavam as ruas e das quais os transeuntes se afastavam receosos.Vinhamuitasvezesgenterica,doutoresdeanel,ricaçosdeautomóvel.

QuandoAntônioBalduínoentrounasala,eraumsoldadoquemestavafalando com o pai-de-santo. Ele procurava falar baixo, mas estavaemocionadoetodosouviramasuavoz:

—...parecequenãogostamaisdemim...deupranãoouviroqueeudigo...achoquetáembeiçadaporoutro...maseunãoquero,pai...euqueroelapramim...eugostodela...soudoidoporela...

Avozdosoldadoestavachorosa. Jubiabáperguntouqualquercoisaeelerespondeu

—MariadosReis.AntônioBalduínoestremeceuelogosorriu.Começouaprestaratenção

àconversa.MasJubiabáestavadespedindoosoldado.—Sótrazendounscabelosdesovacodelaeumaceroulasua.Eufaço

queelanuncamaislarguevosmecê...Ficaamarradacomocachorro.O soldado saiu de cabeça baixa, sem olhar para os presentes,

procurandonãoservisto.AntônioBalduínochegouparapertodeJubiabá,sentounochão.—Parecequeelegostamesmodela.

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—Vocêconheceela,Baldo?—NãoéaquelaqueOxalápegounafesta?—Osoldadogostadela,vaifazerdespacho...Tomecuidado,Baldo...—Nãotenhocagaçodesoldado...—Maselegostadela...—Parecemesmo,gente...Ficou esgravatando o chão com um pedaço de pau. Andava pelos

dezoitoanosmaspareciatervinte.Eraforteealtocomoumaárvore,livrecomoumanimalepossuíaagargalhadamaisclaradacidade.

Largou Joana, nuncamais viu aquela desdentada que tinha uma vozmasculina e cantava os seus sambas, não quis mais saber de cabrochasqueiamparaoareal.

Rondava em companhia do Gordo a casa deMaria dos Reis. Fez umsambaparaela,umsambaquediziaassim:

“Eugostoédevocê,Maria.Vocêtemmeucoração,eufuimalandroumdiamasagoraévocêquemmejudia...”

Essesambaelenãoquisvender.Cantounumafestaemqueelaestava,olhando para ela. O soldado já andava descon iado e não tinha aindaarranjado os cabelos do sovaco da noiva para levar a Jubiabá.Maria dosReis se contentava em sorrir. Olhava para o soldado com os olhos tristespor que sabia que o soldado gostava dela e que por ela mataria um.Lembrava-sedacartaqueeleenviaraparaasuamadrinha,DonaBrancaCosta, pedindo a a ilhada em casamento. Ela guardara em casa, bem nofundodobaú.Diziaacarta:

“Exma.Sra.DonaBrancaSaudaçõescordiaes

Hoje e como nunca sinto-me transportado para um sincerio econfortavel paraiso ahonde paramim sorena intenções intimas e favoravelpeliasquaesobriga-meadeclarar-mesinceriamenteasuaExllaqueamocomumamorpuroesantoatuaestimadaMaria.

Amor que jamais se apagará, e sim pella evolução dos tempos econjuntamente com a vossa attençiossima bondade fará duplicareternamente entre nós um amor nos á de conduzir aos paramos daverdadeira felicidade. E com estas intimas intenções aproveito esta masradiante oportunidade para pedir a V. Esclla. em casamento á tua gentil e

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encantadoraMaria.Queseraaminhamaioraventurapossuirestabrilhantissimaprendado

vosso confortavel coração.Pellaquar esforcarei-meparamuitobrevedaraV.Eclla.eaosdemaisdavossanobrefamiliaestaBrilhantissimasartifação.

Serto de que V. Exclla. não furtar-se-á ao meu pedido aguardo umaresposta favoravel.Retero-meaprezentandoaV.Exlla.osmeusprotestosdeellevadaestimaeconsiderações.

Sub.O.S.Osorio,soldadodo19º."

Amadrinhanãoqueriaqueela casasse comumsoldado,masela fezpé irme e icou noiva, se bem tivesse de deixar a casa da madrinha, Ocasório já estava marcado para agosto, logo depois que ele pegasse asdivisas de cabo que o capitão já lhe havia prometido, quandoMaria dosReisconheceunamacumbade JubiabáonegroAntônioBalduínoqueeramalandro e fazia sambas. Ele não mandara cartas, não falara emcasamento.

Lhe dera quando passavam para a sala de jantar na festa deRibeirinhoumcartãoassim:

DOBRANDOESTECANTOSERÁOSIMDOBRANDOESTECANTOSERÁONÃOPORSIMINHAALMASOFFREEFELIZSERIASEASRTA.ACCEITASSEOSMEUSPROTESTOSDEAMOR.

DevolvendoocartãointactodaráumaesperançaEscondeu o cartão no seio. Fugiu para o quarto da mulher de Seu

Ribeirinho, onde estavam os chapéus dos homens e o violão de AntônioBalduíno.Cândidaforacomelaeviuocartão:

—Dequemé,mulher?—Adivinhe...—Seilá...Pereaíqueeudigo...—pensou.—Nãosei,não...—DeAntônioBalduíno...— Xi! Aquilo não é gente... É o sujo em igura de gente... Não tem

mulherqueelenãopranche...Tomecuidado,dosReis...—Nãoseiporquê.—EOsório?Osórioeraosoldado.MariadosReis icoutristeeemvezdedobraro

canto que dizia sim entregou o cartão intacto. Para Antônio Balduíno foicomoseelativessedobradoocantoquediziasim.

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Agoraiaconversarcomelanaportadacasano imdeBrotasnosdiasemqueosoldadonãoaparecia.Eosoldadosóaparecianasquintas-feiras,sábados e domingos. O resto da semana era de Antônio Balduíno que jásentiracomasmãosocaloreadurezadaquelecorpovirgem.Numaterça-feira houve festa do Cabula e Maria dos Reis foi com umas amigas.EncontraramAntônioBalduínonolargo.Onegroestavamuitoelegantedesapatos vermelhos e camisa vermelha. Fumava um charuto barato.Ficaram conversando. Numa barraca Antônio Balduíno comprou umnúmero para ver a sorte de Maria dos Reis. Foram abrir o papelenroladinhoeeraonúmero41.Odonodabarraca,umespanholgordo,foiveraoquecorrespondia.Gritou:—41—umacaixadepó-de-arroz.

Emcimavinhaumpapelzinhocomunsversos.Eraasorte.

“Vaihavermuitochoro,muitadesgraça,muitabriga,tudoporcausadenamorosóporcausadeintriga.”

AntônioBalduínoriu.MasMariadosReisficoutriste:—EseOsórioaparecesse,bem?Nem que fosse de propósito. Osório vinha fardado em direção ao

grupo.Foilogodizendo:— Eu já tava descon iado... Mas não queria dar crédito de verdade.

Nuncapenseiquevocêfizesseisso...A sua voz tinha aquele tom choroso de canto de igreja. Osório falou

enquanto Maria dos Reis escondia o rosto nas mãos. As amigas riam,inquietas,dizendo“SeuOsório,nãofaçaisso’’.

—Dêseujeito...—Balduínoencolheuosombros.O soldado abriu amão na cara de Antônio Balduíno,mas o negro já

estavaporbaixo,aspernasbatendonasdosoldadoquecaiu.Se levantoucomosabrenamão.AntônioBalduínoabriuanavalha:

—Venhaseéhomem!—Nãotenhomedodemacho...MariadosReisgritava:—Baldo,peloamordeDeus...Asamigasdiziam:—SeuOsório...SeuOsório...—Eunãorespeitofarda—eAntônioBalduínofoiarrancandoosabre

dosoldadoquejálevavaumanavalhadanorosto.DepoisquedesarmouosoldadolargouanavalhaeesperouOsóriona

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escuridão. Vinha gente, homens e guardas e mais soldados. Osório seatirou em cima de Balduíno e recebeu um daqueles socos pesados donegro. Ficou estatelado no chão. Um gringo que apreciava a luta puxouAntônioBalduíno:

—Váemboraquevemmuitosoldadoaí.Bomsoco...Depoiseuqueroencontrarcomvocê...

OnegrolevantouanavalhaeabriuparaosladosdacasadeMariadosReis.Estavaemtempo,poisdetodososcantosiamchegandosoldadosqueao ver o companheiro ferido começaram a distribuir socos. E o barulhogeneralizou-se.

MariadosReisescondeuAntônioBalduínonoseupróprioquarto,semque amãe, que dormia, visse. E quando pelamadrugada o negro saiu, ocorpo da dos Reis ainda era macio e quente, mas não era mais virgem.TinhasidomelhorqueOxalá,omaiordossantos,

FoinaLanternadosAfogadosquediasapós,onegroAntônioBalduínoencontrouogringoqueoajudaraafugir.IaentrandocomoGordoquandoouviuaquelepsiu!Eraogringo:

—Estoulheprocurandohámuitotempo.Desdeaqueledia.Andeiportodoocantosemoachar.Ondesemeteu?

Puxavacadeiras,ofereciacigarros.Sentaram-se.Balduínoagradecia:—Senãofosseosenhornaqueledia,eulevavaumasurradanadados

soldados.—Bomsocoaquele...Belosoco...OGordoquenãotinhaestadopresenteperguntou:—Quesoco?—Oqueeledeunosoldado...PerlaMadonna,quefoiumbelosoco.Pediucerveja.—Vocêjálutouboxe?—Não.Euseiécapoeira...—Poisvocêsequiserpodeserumcampeão...—Campeão?—PerlaMadonna,eujuro...Aquelesoco...Formidável...Ficouolhandoparaasmãosenormesdonegro.Apalpouosombros,os

braçosdeAntônioBalduíno:—Umcampeão...umcampeão...Falavacomoquemtinhasaudadesdeoutrostempos.—Bastaquerer...AntônioBalduínoqueria.—Como?

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—PodeatélutarnoRiodepoisetalveznaAméricadoNorte...Bebeuocopodecerveja:—Eu já fui treinador, hámuito tempo... Fiz boxeadoresquehoje são

campeõesnomundotodo...Masnenhumagüentavaaquelesoco.Bonito.Quando saíramdo botequimAntônio Balduíno estava contratado por

Luigi,otreinador,eoGordoiriacomelescomoajudanteSaíramtodosumpoucoembriagados.NooutrodiaAntônioBalduínodisseàdosReis:

—Agoranãosoumaismalandro... Sou jogadordeboxe...Vouserumcampeão...DepoisvouparaoRio,paraaAméricadoNorte...

—Vocêvaiembora?—Lhelevo,meubem.EramelhorqueOxalá,omaiordossantos.Os jornais anunciaram a primeira luta meses depois. Agora ele era

Baldo,onegro.LuigidavaentrevistaseumjornalatépublicouumretratodeAntônioBalduínocomobraçoestendidoparadarumsoco,aoutramãonuma atitude de defesa. Maria dos Reis colou o retrato na parede doquarto.

Oadversáriochamava-seGentil,edizia-secampeãodepesopesadodaarmada.Naverdadeeraumestivadordocaisdoporto.

NoLargodaSéestavamtodososamadoresdas lutasdeboxeemaisfreqüentadores da Lanterna dos Afogados, inclusive Seu Antônio, osmoradoresdoMorrodoCapa-Negro,osamigostodosdeAntônioBalduíno.Primeiro entrou no tablado o juiz, um sargento do exército que estava àpaisana.Falou:

— Vamos ver uma luta braba. Peço ao público muito respeito eaplausos.

Chegou oGordo trazendoumbalde e uma garrafa. Veio tambémumamarelocomasmesmascoisase icoudooutro lado.AíapareceuAntônioBalduíno acompanhado de Luigi. O pessoal do morro, da Lanterna dosAfogados,dossaveirosedascanoas,gritou:

—AntônioBalduíno!AntônioBalduíno!Ojuizapresentou:—Baldo,onegro.Entravaooutroboxeurqueeraaplaudidopelaassistência:—Gentil, campeãode todos os pesos da gloriosa armada—gritou o

juiz.Palmasegritosdaassistência.Opessoaldomorro,dos saveirosedo

botequimolhavaomulatocomolhosirônicos:

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—Vailevarumasurra.AntônioBalduínotambémolhavaoseuadversárioesorria.Luigidava

conselhos:—Soqueiecomforça.Nabocaenosolhos.Bemforte...OGordoestavanervosoe rezavaparaqueoamigovencesse.Mas se

lembrouquealutadeboxeerapecadoeparouderezar,amedrontado.Soou um sinal e os lutadores avançaram um para o outro. Atrás a

multidãogritava.OnegroAntônioBalduínofoidesclassi icadoporteraplicadoumgolpe

de capoeira no meio da luta, que estava renhida, mostrando todas asgrandes qualidades de Baldo, o boxeur. A assistência não se conformoucomoresultado,vaiouojuizquesaiugarantidopelapolicia.

OsjornaispublicaramoretratodeAntônioBalduínonovamente,eumvendeumuito porque trouxe a sua biogra ia. Foi assim que descobriramque eram feitos por ele os sambas do poeta Anísio Pereira, fato queprovocouescândalonosmeiossociaiseliteráriosdacidade.

Concederam-lhearevanche.Teveumgrandepúblicoedestaveznãofoi aplaudido somente pelo pessoal do morro, dos saveiros, da LanternadosAfogados(SeuAntônioapostaravintemilnavitóriadonegro)quandoojuizdisse:

—Baldo,onegro.Todaaassistênciavivoulongamente.No quinto round o mulato Gentil não era mais campeão da armada.

Estavaestendidono tablado, semmovimentos.OGordoenxugavao suordeAntônioBalduíno.DepoisforamtodosbebernaLanternadosAfogadososvintemilqueSeuAntônioganhara.

Quem viajou foi Maria dos Reis. Suamadrinha tivera outro ilho e omaridoqueerafuncionáriopúblicofoitransferidoparaoMaranhão.MariadosReis foicomeles.AntônioBalduíno tevesaudadesporqueelanão lherecordavaLindinalvapálidaesardenta.

Tomou um porre nessa noite e pensou em engajar comomarinheiroolhando o navio que a conduzia. Ela levou o seu retrato com uma mãoestendidaparadarumsoco,sorrindopelabocaepelosolhos.

Derrubou todos os adversários que se interpunham entre ele e ocampeãodaBahia,umboxeurchamadoVicente,quedeixarade lutarporfalta de jogadores. Depois da aparição de Antônio Balduíno, porém, comseus sucessivos triunfos, Vicente começou a treinar rigorosamente vendononegroumperigoparaoseutítulo.

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Umasemanaantesjáacidadeestavacheiadecartazes.Odesenhodedoishomensquesesoqueavam:

VICENTEOCAMPEÃOBAIANODETODOSOSPESOS

x

BALDO—ONEGROEMDISPUTADOCAMPEONATOBAIANO

NOLARGODASÉ—DOMINGO

Vicente deu uma entrevista aos jornais declarando que venceria nosextoround. Antônio Balduíno respondeu, no dia seguinte, que no sextoround o campeão baiano já estaria dormindo no tablado. Trocaram-sedesaforos e o público se animou.Houvemuita aposta eAntônioBalduínoeraofrancofavorito.

Antesdosextoround,VicentedormiarealmentenotabladoeBaldo,onegro,eracampeãobaianodetodosospesos.

ConcedeuarevancheaVicente.Venceunovamente.Luigiandavafeitomaluco e só falava em vir para o Rio. Entabulara negociações comempresáriosdacapitaldopaís.AntônioBalduínoamavamulatasnoareal,bebianaLanternadosAfogados, iaàsmacumbasdeJubiabá,rianasruasdacidadeasuagargalhadaclara.

Apareceupor lá um campeão carioca de boxe.Desa iou todomundo,fezumbarulhoenorme.AcertaramumalutacomAntônioBalduíno.Houveumgrandeinteressenacidadepelochoquedosdoiscampeões.

Na véspera da luta Antônio Balduíno conversava na Lanterna dosAfogadosquandofoiprocuradopeloempresáriodocampeãocarioca.

—Boanoite...—Boanoite...AntônioBalduínoofereceucerveja.—Euqueriafalarcomvocêemparticular.OGordoeJoaquimforamparaoutramesa.—Éoseguinte:vocêsabe,Cláudionãopodeperder...—Nãopodeperder?—Pelo seguinte: ele estáme custandomuito dinheiro. Se ele perder

devocênãopodelutarmaisaqui...Nãoé?—É...—Masseeleganharlutadenovoelutacomoutros...Pagaadespesa.—Edaí?— Eu lhe dou cem mil-réis para você perder. Depois você tem a

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revanche.AntônioBalduínolevantouamão,masalargouemcimadamesa.—VocêjáfaloucomLuigi?—Luigiéumtrouxa...Elenemprecisasaberdisso.Sorriu:—Edepois,antesdagenteiremboravocêtemarevanche...Estábem?—Odinheiroestáaí?—Lhedoudepoisdaluta.—Não.Eunãovounisso.Sequiserdarhoje...—Esevocênãoperder?—Esedepoisdeeuperderemeesculhambarvocênãomepagar?Antônio Balduíno tinha levantado. O Gordo e Joaquim espiavam da

outramesa.—Nãoéprecisobrigar—disseoempresário.—Sente...Olhouparaonegroqueemborcavaocálicedecachaça:—Acreditoemvocê...Pegueaquiporbaixodamesa...AntônioBalduínopegouodinheiro.Viuqueeracinqüentamil-réis:—Vocêfalouemcem!...—Douosoutroscinqüentadepois...—Assimnão...—Nãotenhoagora,ésério...—Sequiseréagora...RecebeuoscinqüentaquefaltavaefoiparaamesadoGordo.Quando

oempresáriosaiu,AntônioBalduínoriuatéficarcomabarrigadoendo.Nodia seguinte, depois da luta e da sensacional derrotado campeão

carioca, o empresário veio procurar Antônio Balduíno na Lanterna dosAfogados.Vinhacomumacaradosdiabos:

—Vocêéumtratante...AntônioBalduínoria.—Euqueromeudinheiro...—Quemroubaladrãotemcemanosdeperdão...Vouaosjornais,vouàpolícia...—Vá...—Vocêéumladrão...Umladrão...Antônio Balduíno botou também o empresário no chão. O pessoal do

botequim,quenãoesperavaessanovaluta,aplaudia.—Elequismecomprar, gente...Medeucemmil-réisparaeuperder

para. aquele raquítico... Eu disse que perdia... É pra ele não querercomprar homem... Eu só me vendo por amizade, gente... Agora vamos

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beberodinheirodele...ALanternadosAfogadosria.AntônioBalduínosaiue foi levarparaa

Zefa, uma cabrocha que viera do Maranhão e trouxera um beijo da dosReis para o amante (em vez de dar um dera muitos), o colar de contasvermelhas que comprara naquele dia com o dinheiro do empresário docampeãocarioca.

LuigifalavaseriamenteemirparaoRio.

SuacarreiradeboxeurterminounodiaemqueLindinalva icounoiva.Nos jornais que anunciavam a sua luta com o peruano Miguez, AntônioBalduínoleuanotíciadonoivadode“LindinalvaPereira,filhadocapitalistaComendador Pereira, desta praça, com o jovem advogado GustavoBarreiros, rebento glorioso de uma das mais ilustres famílias baianas,poetadeversosrutilantes,oradorprimoroso”.

Tomouumporremãe, foi derrotadono terceiro round porque já nãopodia lutar, apenas recebia os socosqueMiguez, o peruano, lhe aplicava.Correu que ele estava comprado. Ele não explicou a ninguém o seufracasso. Nem a Luigi que chorava nessa noite, arrancando os cabelos epraguejando,nemaoGordoqueolhavacomaquelesolhosdequemesperasempreumadesgraça.Nuncamaisvoltouaotablado.

Naquela noite fria da sua derrota, como não quisesse ir beber naLanterna dos Afogados, foi para o Bar Bahia. Sentou numa mesa dosfundoscomoGordoebebiasilenciosamentequandoumhomemveioparaelesepediuquepagassemumtrago.Balduínoolhou:

—Euconheçoessesujeito...Nãoseideonde,masconheço.Ohomemtinhaosolhosvidradosepassavaalínguanosbeiços:—Ummata.bicho...Paga,camarada...FoiquandoAntônioBalduínoviuotalhoqueeletinhanorosto:—Aquiloéobraminha...Ficoupensando,bateuamãonatesta:—VocênãoéOsório?OGordoacrescentou:—Umqueerasoldado...—É,eujáfuisargento...Puxouumacadeiraesentou:—Jáfuisargento...—passavaalínguanosbeiços.—Ummata.bicho...Balduínoria.OGordotinhapena.—Depoisveioumamulher,umamulher,ouviu?Bonita...Xi!bonita...Só

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vendo...Eraminhanoiva,viu...Eutavaesperandosercabo...—Masvocênãoerasargento?— É isso mesmo; nem me lembro, eu acho que tava esperando ser

capitão. O capitão tinha me prometido, ouviu... O capitão... Me dá outromata-bicho?Menino,trazoutromata-bichoqueéoamigoaquiquempaga...Marcamos o casório... Ia ser um festão... Ela era bonita... Bonita... Mas foicomoutro...

—Eessetalho?—Ah!Foiotal...Maseudeixeielecomastripasdefora...Elaerauma

beleza...Beleza...—Erasim...—Vocêconheceuela?—Vocênãoselembra?Beberamatéo imdanoiteesaíramabraçados,muitoamigos,dando

gargalhadas,esquecidosdeMariadosReisedequetinhamsidosoldadoeboxeur.

Derepenteohomemdisse:—Vocêeraotal.EseafastoudeAntônioBalduíno.—Mastambémperditudo...Seabraçaramdenovoeforamcambaleandopelarua:—Elaeraumalindeza...Antônio Balduíno confundia a negra Maria dos Reis com a branca

Lindinalva.

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CaisGrandescanoasimóveissobreaáguapatada.Os saveiros, velas arriadas, dormiam na escuridão. Assim mesmo

davamidéiadepartida,deviagensporpequenosportosdoRecôncavocomas suas grandes feiras. Mas agora os saveiros dormiam, os nomespitorescosgravadospertodaproa: PaqueteVoador,OViajantesemPorto,Estrela da Manhã, O Solitário . Pela manhã sairiam rápidos, atirados pelovento,asvelassoltas,cortandoaáguadabaía.

Iriam se abarrotar de verduras, de frutas, de tijolos, ou telhas.Correriam as feiras todas. Voltariam depois carregados de abacaxischeirosos, O Viajante sem Porto é pintado de vermelho e corre comonenhum. Mestre Manuel dorme na proa. É ummulato velho que nasceunossaveirosemorousemprenossaveiros.

Antônio Balduíno sabe a história de todos estes saveiros e de todasestas canoas. Desde menino gosta de vir deitar aqui no areal do caís, acarapinhanotravesseirodeareia,ospésmetidosdentrod’água.Aáguaémornaegostosa,aestashorasdanoite.Balduíno,àsvezes, icapescando,silencioso, o rosto se abrindo em sorrisos quando isga umpeixe. Porém,emgeralolhasomenteomar,osnavios,acidademortaláatrás.

Antônio Balduíno tem vontade de sair, de viajar, de correr terrasdesconhecidas,deamaremareiasdesconhecidasmulheresdesconhecidas.MiguezveiodoPeruelhedeuumasurra.

Um navio apita no quebra-mar. Vai saindo iluminando a noite. É umnavio sueco. Ainda há pouco os marinheiros andavam pela cidade,bebendo cerveja nos bares, amando nos braços das mulatas daBarroquinha. Agora estão no mar escuro, amanhã estarão nalgum portolongínquocommulheresbrancasouamarelas.UmdiaAntônioBalduínohádeengajarecorrermundo.Sempresonhoucomisso.Enquantodeitadonaareia,olhaossaveiroseasestrelas.

Onavioestádesaparecendo.Acidadeestendiaosbraçosdas igrejasparaocéu.Docaiseleviaas

ladeiras, as casas velhas e enormes. As luzes brilhavam lá em cima enuvens alvas corriam pelo céu como bandos de carneiros. Pareciamtambém com os dentes de Joana. Antônio Balduíno toda vez que arranjaumacabrochadizaela:

—Seusdentesparecemnuvens...Mas agora que ele apanhou, que perdeu a luta, que cabrocha olhará

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paraele?Andamdizendoqueelesevendeu.Ele se perdia olhando o casario negro da cidade. Havia uma estrela

bememcimadasuacabeça.Nãosabiaqualera,masestavabonita,grande,brilhando num pisca-pisca. Ele nunca havia visto aquela estrela. A luaapareceu muito grande e derrubou pelos fundos das casas uma luz tãoesquisita que ele não conheceu mais a cidade. Pensou que era ummarinheiro e havia chegado a um porto estrangeiro. Um porto longínquocomoestesqueelevênos sonhos todasasnoites.Porque todasasnoitesAntônio Balduíno sonha que desembarca em terras de outros países. Asnuvens corriam pelo céu. Eram carneiros. Alvos, enormes carneiros. NaCidade Baixa não havia ninguém. Também era a primeira vez que elesonhavaassimacordado.ABahia jánãoeraaBahiaeelenãoeramaisonegroAntônioBalduíno,Baldo,oboxeur,queiaàsmacumbasdeJubiabáequeapanharadeMiguez, operuano.Que cidade seria aquela e elequemseria?Paraondeteriaidotodagenteconhecida?Olhouparaoportoeviuonavio.Naturalmentejáestavanahoraderecolher,abordooesperavam.

Olhou a roupadomarinheiro, fez umbamboleio como corpo e disseemvozalta:

—Vouparabordo.Aíumavozgritou:—Hein?Mas elenãoouviu e itoudenovo a cidadebanhadapela luz alvada

lua.Selembroudalutadeboxe.Derepentevieramládecimadomorrounssonsdebatuque.Uma nuvem escura cobriu a lua. Se apalpou, a roupa demarinheiro

tinha desaparecido, ele estava metido na calça branca com camisa delistrasvermelhas.

Otantãaumentavanomorro.Vinhacomoumasúplica,comoumgritode angústia. Ele viu, então, que a cidade era novamente a Bahia, bem aBahia, que ele conhecia toda, ruas, ladeiras e becos, e não um portoperdido de uma ilha perdida na vastidão do mar. Era a Bahia onde deapanhara.

Agora não olhava mais as estrelas, nem as nuvens. Não enxergavamais bandos de carneiros no céu. Para onde teriam ido os saveiros quefugiramparalongedosolhosdeAntônioBalduíno?

Apenasouvia.Eramsonsdebatuquequedesciamde todososmorros, sonsquedo

outro ladodomarhaviamsido sonsguerreiros, batuquesque ressoavampara anunciar combates e caçadas. Hoje eram sons de súplica, vozes

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escravas pedindo socorro, legiões de negros demãos estendidas para oscéus. Alguns daqueles pretos que já tinham a carapinha brancaguardavam nas costas marcas de chicote. Hoje as macumbas e oscandomblésenviavamaquelessonsperdidos.

Era como uma mensagem a todos os negros, negros que na Áfricaainda combatiam e caçavam, ou negros que gemiam sob o chicote dobranco. Sons de batuque que vinham do morro. Se dirigiam tambémangustiososeconfusos, sonsreligiosos, sonsguerreiros, sonsdeescravos,a Antônio Balduíno que estava e tendido na areia do cais. Os sons lheentravampelosouvidosebuliamcomoódiosurdoqueviviadentrodele.

Antônio Balduíno se rojava na areia desesperado. Nunca tivera umaangústiatamanha.Ódioqueserevolviadentrodele.Via ilasdenegros,viaaquelemarcadonascostasqueeleconheceranacasadeJubiabá.Viamãoscalosas, batendo no chão, via negras terem ilhos mulatos de senhoresbrancos.Via ZumbidosPalmares transformarobatuquede escravos embatuquedeguerreiros.Jubiabá,nobreesereno,dizendoconceitosaopovoescravo. Via a si próprio se levantando contra o homem branco.Mas eleperderaaluta,tomaraumasurradeMiguez,comoumvendido.

Masnãovianadaporquevoltouaclaridadeperturbadoradaluaeossonsmorriamnasladeiras,nosbecossemiluminação,nasruascalçadasdepedra.

Comosúltimossonsdebatuqueeobrilhoatordoantedo luar, ele seachoudiantedorostosardentoebrancodeLindinalva.

Estavalindaesorria.Faziadesaparecerobatuqueeoódio.Antônio Balduíno passou a m pelo rosto para afastar a visão que o

acovardava e olhou ixo para o outro lado. Enxergou novamente as luzesdossaveiroseMestreManuelqueandavapelocais.Masnomeiodasluzesestava Lindinalva bailando. Tudo porque ele perdera a luta e estavadesmoralizado.

Fechouosolhosequandoosabriusóconseguiuveraluzdatriste,dapequenalâmpadadaLanternadosAfogados.

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UmatoadatristevemdomarA luz da Lanterna dos Afogados brilha como um convite. Antônio

Balduíno deixa o cais, levanta-se da areia que o acaricia e se dirige emgrandes passadas para o botequim. A lâmpada de poucas velas maliluminaatabuletaquetrazodesenhodeumamulherbonitacomcorpodepeixeeunsseiosduros.Porcimaumaestrelapintadacomtintavermelhaderrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz clara que a tornamisteriosaedifusa.Elaretiradaáguaumsuicida.Eporbaixoonome:

“LANTERNADOSAFOGADOS”

Dedentrovemumgrito:—Évocê,Baldo?—Soueumesmo,Joaquim!Láestãonumadasmesas sebentasoGordoe Joaquim. Joaquimgrita

damesa,asmãospostasemcimadosolhosparavermelhoràluzvacilantedoposte:

—Entra.Jubiabáestáaqui.Na sala pequena, quase envolta na escuridão, cinco ou seis mesas

ondecanoeiros,mestresdesaveirosemarinheirosbebem.Coposgrossoscheios de cachaça. Um cego toca num violãomas ninguém o ouve. Numamesamarinheirosalvoseloiros,alemãesdeumcargueiroquecarreganoporto,bebemcerveja e cantamembriagados.Duasou trêsmulheres, quenestanoitedesceramdaLadeiradoTabuãoparaaLanternadosAfogados,estãocomeles.Riemmuitomastêmumarespantado,poisnãoentendemacanção.Osmarinheirosestãoabraçadosebeijamasmulheres.Embaixodamesa inúmeras garrafas de cerveja vazias. Antônio Balduíno passa juntodeles e cospe. Um marinheiro levanta um copo, Antônio Balduíno sepreparaparabrigar.Numcantoocegogemenoviolãoeninguémoescuta.AntônioBalduínoselembraqueJubiabáestánobotequim,baixaobraço,evaisesentarjuntodoGordoedeJoaquim.

—CadêJubiabá?—EstáládentrocomSeuAntôniorezandoamulherdele.SeuAntônioéumportuguêsvelho,amigadocomumamulatacomcara

furada de bexiga. Um garoto pálido serve as mesas, correndo.CumprimentaAntônioBalduíno:

—Boanoite,SeuBaldo.

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—Trazumapinga.OGordoestáatentoàcançãodosmarinheiros:—Ébonito...—Evocêentende?—Não,masmebolecádentro.—Lhebole?—Joaquimnãoentende.MasAntônioBalduíno entende e já não sente vontadedebrigar com

osalemães.Agoraelegostariaédecantarcomosmarinheiroserircomasmulheres.Bateosdedosnamesaeassovia.Osmarinheirosestãocadavezmaisbêbadoseumdelesjánãocanta.Arriouacabeçaemcimadamesa.Ocegotocaviolãonumcantonaescuridão.Ninguémoouve,excetoogarotopálidoqueserveobotequim.Entreascarreirascomcoposdecachaçaeleespiaocegocomadmiração.Esorri.

Masde longe,doescurodomar,vemumavozquecanta.Apesardasestrelas não se vê de quem é, nem de onde vem, se das canoas, se dossaveiros, se do forte velho. Mas vem do mar esta toada triste. Uma vozforte,longe.

AntônioBalduínoespia.Tudonegroemredor.Sóháluzdasestrelaseno cachimbo de Mestre Manuel. Os marinheiros já não cantam, asmulheres já não riem, o cego parou de chorar no violão para tristeza dogarotopálidoqueserveobotequim.

JubiabávoltouparaamesaeSeuAntônioparaobalcão.Ovento,queinvadeobotequimcomouma carícia, traz a tristuradavoz.Deondeviráela?Omarétãograndeetãomisteriosoquenãosesabedeondevemessavelhavalsatriste.Maséumnegroqueestácantando.Porquesóosnegroscantamassim.MestreManuelestámudo.SeráqueelepensanacargadesapotisqueseusaveirovaipelamadrugadareceberemItaparica?Não.Eleouveatoadadavalsa.Elesevoltaparaoladodeondepareceviravozqueenche o mistério do mar. O Gordo está com os olhos perdidos.Naturalmente a valsa bole com ele. Ele e todos se voltam para o lado domar:Deondeviráavozdonegro?

“Senhor,daítréguasaosmeusais...”

Será que ele está no forte velho e é um velho soldado? Será que eleestánumacanoae éumcamponêsmoçoquevende laranjasnaFeiradeÁguadosMeninos?SerádeumcanoeiroqueestánasuacanoanoPortodaLenha?Virádeumrápidosaveiroasuavoz,deummarinheironegroqueesqueceuaamadanumportodistante?

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“Senhor,daitréguasaosmeusais...Mata-meestadorDeeunãovê-lamais...”

De onde virá a toada triste que atravessa os saveiros, as canoas, oquebra-mar, o cais, a Lanterna dos Afogados, a baía toda, e que vai seperdernasladeirasdacidade?

O Gordo bem vê que Antônio Balduíno ouve nervoso. Ele pensa emLindinalvae julgaqueopretocantaunicamenteparaelequeestá tãosó.Mas o negro canta para todo o mundo, não é só para Antônio Balduíno.CantaparaoGordo,paraoMestreManuel,paraosmarinheirosalemães,para todos os negros dos saveiros e das canoas, para todos os alvosmarinheirosdosnaviossuecos,paraomartambém.

Asluzesdacidadebrilhamnomorro.Aindahápoucovinhadomorroumbaticumdecandomblésemacumbas.Porém,agoraacidadeestálongee o brilho das estrelas está muito mais perto deles que as lâmpadaselétricas. Antônio Balduíno vê a brasa do cachimbo deMestreManuel. Avoz do negro vem para dentro dele, de repente se afasta, foge pelomarafora. Mas volta e ica vibrando no botequim. Uma tristeza baixa sobretudo:

“Tãosóqueheidefazermaisdoquegemer...maisdoquegemer...”

Nãofalam.Osmarinheirosalemãesescutam.Jubiabáestendeasmãosnamesa.OGordoestátremendoeAntônioBalduínovêLindinalva,branca,pálida, sardenta, nas águas, no céu, nas nuvens, no copo de cachaça, nosolhosdogarototísicoqueserveobotequim

Aquela lua amarela descambou de novo sobre a Lanterna dosAfogados. A voz que vem em surdina trazida pelo vento. O Gordo treme.MestreManuelfumadevagar.Avozparounobotequimegiracomabrisa:

“Atéquedemimtenhadóvolveoteuolharoteusagradoamorparamim...”

Foiemboraatoadatriste,Ocegoaprocuracomosolhossemluz.

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Jubiabáresmungapalavrasqueninguémouve.Joaquimpergunta:—Temumcigarro,mulato?Fuma em grandes tragadas. Os marinheiros bebem cerveja. As

mulheres têm os olhos puxados para o mar. Jubiabá estira as pernasmagraseespiaanoite.Aluaamareloutudo,prateouomareocéu.Maseisquevoltaavelhavalsa.Avozdonegroestáperto,muitomaisperto:

“MATA-MEESTADORDEEUNÃOVÊ-LAMAIS”.

A voz se aproxima cada vezmais. Mestre Manuel volta ao cachimboquebrilhacomoumaestrela.Umsaveiroatravessouomarláaolonge.Vaisilenciosotambémouvindoatoadatristequevemcomovento.

AntônioBalduínotemvontadededizer:—Boaviagem,amigos...Porém, icacalado,ouvindo.Avozfoiemboralevadapelovento.Voltou

emsurdina,baixinho:

“deeunãovê-lamais...”.

A lua entrou pelo botequim. Os marinheiros ouvem como seentendessemavalsadonegro.Asmulheresqueagoraentendemnãoriemmais.Joaquimfala:

—Dequevalevoltar?OGordoseassustou:—Oquefoiquevocêdisse?AntônioBalduínodizparaJubiabá:—PaiJubiabá,euhojetiveumsonhoesquisito,deitadonoareal.—Oquefoiquevocêsonhou?Jubiabá está murcho e pequenino na cadeira. O Gordo pensa em

quantosanosteráJubiabá.Centoequantos?AntônioBalduínoestáforteeenorme.Nãodizqualfoiosonho,masfala:

—Viaquelenegrocomascostasmarcadas,paiJubiabá...Avozcantabemnobotequim:“Senhor

“Tãosóqueheidefazermaisdoquegemermaisdoquegemer...”

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AntônioBalduínofala:—...gemendo,pai,gemendo...Aquelenegrochicoteadonascostas...Eu

vi no sonho... Estava horroroso. Eu tenho vontade de bater naquelesmarinheiros.

OGordoseespanta:—Porquê?—Onegromalhado...malhado...Jubiabá se levanta na cadeira. Está com o rosto enrugado aberto em

ódio.Todosoouvem:—Aconteceuhámuitotempo,Baldo...—Oquê?—Ahistóriaqueeuestoucontando...Opaideseupaieramenino.“NumaroçadeumsenhorbrancoericolánoCorta-Mão...Uma toada triste, uma velha valsa que um negro canta não se sabe

onde,dominatudo:

“daitréguaaosmeusais...”

Jubiabáestácontando:—Agenteeraummontãodenegros...Agentetinhadesembarcadoe

nãosabiaafaladosenhorbranco...Foihámuitotempoisso...LáemCorta-Mão...

—Oquefoiqueteve?— Senhor Leal não tinha feitor... Mas tinha um casal de gorilas, uns

macacõesnegros,amarradosnumacorrenteenorme.Osenhorchamavaomacho de Catito e a fêmea de Catita. O macho andava com um copoamarradonacorrenteeumchicotenamão...Eraofeitor.

Que foi feitodavelhavalsa tristequenãoenchemais coraçãodestesnegros,queosdeixasozinhoscomahistóriade Jubiabá?Ondeestáavozdonegroquecantava?Agorasóocegogemenoviolãoetodosoouvem.Omeninopálidoe tísicorecolhenumpratode landresmoedasparaocegoqueéseupai.Umhomemdiz:

—Nãodou,não.Ovelhonãosabetocar.Porém,todosoolhamcomtaisolhosqueelebotaumníquelnoprato:—Tavabrincando,meubem.AvozdeJubiabá:— A macaca Catita matava galinhas, andava pelas casas. O macaco

levavanóispra roçae sentavanocepo.Quandonegronão trabalhavaelesurrava negro. Às vezes surrava sem motivo. Ele matou negro com o

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chicote...As luzes trememna Lanterna dosAfogados.O cego toca umbaticum

noviolão.— Senhor Leal gostava de soltar Catito em cima das negras.... Catito

matava elas pra gozar nelas... Um dia o senhor soltou Catito em cima deumanegranova,casadacomumnegronovo.SenhorLealtinhavisitas...

O Gordo está tremendo todo. Volta ao longe a toada triste... Cessa oviolãodocegoquecontaosníqueisrecolhidos.

—CatitosejogouemcimadanegraeonegroemcimadeCatito...Jubiabáolhaaolongeanoite.Aluaestáamarela.— Senhor Leal atirou no negro que já tinha dado duas facadas no

macaco... A negra tambémmorreu. Ficou umbocado de sangue no lugar.Asvisitas icou tudorindomuitoalegre.Menosumamocinhabranca,queficoudoidadenoitevendoomacacoeonegro...

Avalsatristecantaperto.—Mas de noite um irmão do negromatou Senhor Leal. O irmão do

negroeuconheci.Foielequemmecontouahistória.O Gordo está junto de Jubiabá. O cachimbo deMestreManuel brilha

comoumaestrela.Noescurodomarumavozcantaumatoadatriste:

“Mata-meestadordeeunãovê-lamais.

Avozcantaalto,sonora,saudosa.Jubiabádiz:—Euconhecioirmão...AntônioBalduínoseguraopunhalnaalturadopeito.

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“Ôjúqnunfótiiká,liôkú”Jubiabádizia:—Ôjúanunfótiiká,liôkú.Sim,AntônioBalduínobeàsabiaqueoolhodapiedadejávazaraeque

icara somente o olho da ruindade. Na noitemisteriosa do cais, cheia demúsicasdiversas,elequissoltarasuagargalhadaalta,queeraoseugritode liberdade. Mas ele a havia perdido. Estava desmoralizado. Já não eraimperadordacidade,jánãoeraBaldo,oboxeur.Agoraacidadeoapertavacomo corda no pescoço de suicida. Diziam que ele tinha se vendido. E omarbatendonaspedras,osnaviosquesaíamiluminados,ossaveirosquepartiamcomumalanternaeumviolãovaliamcomochamadosirresistíveis.Ali estava o caminho de casa. Viriato, o Anão, entrara por ele, por eleentraraovelhoSalustiano,outrosentraram também.NopeitodeAntônioBalduínoestavamtatuadosumcoração,umLenormeeumsaveiro.

PegouoGordo e fugiupelomarnum saveiro. Ia procurar nas feiras,nascidadespequenas,nocampo,nomar,asuagargalhada,oseucaminhodecasa.

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Diáriodeumnegroemfuga

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SaveiroOViajante sem Porto corta a água que re lete as estrelas. Ele é todo

pintado de vermelho e traz uma lanterna que espalha em torno uma luzamarela como a luz da lua que apareceu nessemomento, saindo de umanuvem.Gritamdeoutrosaveiroqueatravessaabaía:

—Quemvemlá?—Boaviagem!Boaviagem!A estrada domar é larga. As águas passammurmurando. Um peixe

salta na luz da lanterna. Mestre Manuel vai no leme. O Gordo vai semcompreender. Antônio Balduíno está estirado no saveiro olhando oespetáculodomar.Doporãovemumcheirodeabacaxismaduros.

Passaumventosuaveeumaestrelaclarabrilhanocéu.Nacabeçadonegro Antônio Balduíno aparece um samba que vem se bater nos seusjoelhos em palmadinhas compassadas. Agora vai assoviando e em breveencontraránovamenteasuagargalhadaperdida.Osambavaisaindoefalaem mulher, em malandragem, em negro livre, nas estrelas do céu, naestradalargadomar.

Pergunta:

“Aondevaipararessaestrada,Maria?”

Ediz:

“Asestrelasdosteusolhosestãonocéu..obarulhodoteurisoestánomar...vocêestánalanternadosaveiro”...

Falavaassimosamba.DiziamaisqueonegroAntônioBalduínoamavasomente duas coisas:malandragem eMaria.Malandragemna língua queelefalaquerdizerliberdade.EMariaquerdizermulata.

Onde irá parar essa estrada? Para Mestre Manuel, que é um velhomarinheiro,elanãotemmistérios.

—Aqui—avisaele—éondeomaramaorio...Terminou a barra. Entraram no rio Paraguaçu. Nas margens, velhos

castelosfeudais,ruínasdeengenhosdebangüê,deriquezaspassadas,têmsombrasdescomunais,parecendofantasmas.BemdizoGordo:

—Parecemula-de-padre.Esse barulho que a água faz agora é o amor do mar e do rio. É o

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barulhoque vemdamata Já atrásdeve serde algumaamantedepadre,que morreu e virou mula-sem-cabeça e anda vagando por esses matosescurosquecobriramostúmulosdosnegrosescravizados.

O saveiro corre suavemente na água mansa do rio. No leme MestreManuel fumacachimbo.Apontaascoroasnegrasdepedra.Aestradanãotemmistérios para ele. Antônio Balduíno acabou de cantar o seu sambaque o Gordo já sabe de cor. Ele acha que é o samba mais bonito queAntônio Balduíno já fez, pois fala em mulher, em malandragem, emestrelas.Pede:

—Nãovendamaissamba,Baldo.Onegrori.Osaveirovaipelorio,correndo:—Ninguémsepegacomele—dizMestreManuelacariciandoobarco

comoseacariciasseumamulher.Vem um vento que empina as velas e refresca os homens. Do porão

sobeumcheirodeabacaxismaduros.Mestre Manuel possui saveiro hámuitos anos. Antônio Balduíno era

menino e foi naquela época que o conhecera e aoViajante sem Porto . Noentanto muito antes Mestre Manuel já viajava com o seu saveiro pelosportosdoRecôncavo,levandofrutasparaasfeiras,trazendotijolosetelhasparaasconstruçõesdacidadenova.

Aparenta trinta anos. Ninguém lhe dará os cinqüenta que traz nocostado. Todo ele é de uma cor só, um bronze escuro, e é di ícil dizer seMestreManuelébranco,negrooumulato.Éummarinheirocordebronze,issosim,ummarinheiroqueraramentefala,equeérespeitadoemtodaazona do cais do porto da Bahia, da Feira de Água dos Meninos, dosbotequinsdocais,dosbotequinsdetodosospequenosportosondepáraoseusaveiro.OGordocortaoseusilênciocomumapergunta:

—Vocêjásalvouafogado,mestre?MestreManuelabandonaocachimbo,estiraaspernas:—Umdia de temporal, na boca da barra, um saveiro virou. O vento

apagouaslanternastodas.Foiumdiaterrível,pareciadiadeJuízo...OGordosecertificaqueanoiteemquevãoestáclaraeamiga.— Eu vinha navegando também nesta noite, me agüentando no

temporal.Minhalanternatambémtinhaseapagadoeninguémenxergavatiquinhonafrentedosolhos.

Antônio Balduíno gosta da vida dos mestres de saveiro. Sorri. MasMestreManuelestásério.Puxouumafumaçadocachimbo

—A gente via luz da Bahia. Parecia bempertinho,mas estava longecada vezmais:A gente nunca chegavapra perto dela.Nessa noite omar

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andavabrabo,tinhabrigadocomorio.Fezumacaraséria:—Éruimquandoomarestázangadocomorio...Dáemtempestade...—Eosaveiro?MestreManuelpareciateresquecidoosaveiro:— Ia levando uma família que vinha das festas de Cachoeira. Eles

tinhapressaemchegarenão icaramparaonavioquesó tinhanooutrodia.Osjornaisfalavamnisso...

Puxououtrafumaça:Eles tinha pressa e icou tudo nomar... A gente só salvou os corpos.

Assimmesmo,doisnuncaninguémencontrou.OViajantesemPortovairápido,todoviradodeumlado,contornando

orioqueécheiodecurvas,seabrindoderepenteembacias,sefechandodepoisemcanaisestreitos.

—Melembrodaáguaquefaziagluglujuntodosaveirovirado.MestreManuelimitavaaágua:—Gluglu...pareciaqueestavacomendoalgumacoisa.—Nãotinhaumamulhergritandopelonoivo?Nemoanjodaguarda

dosafogados?—perguntouoGordoquetremia.—Tavatudomortoquandoagentechegou.—Nemoanjodaguardatinhaescapado—riuBalduíno..—Afogadonãotemanjodaguarda.Amãe-d’águalevatudoqueelaé

mesmoumatentação.OGordohaviainventadoonegóciodoanjoedanoivamasafirmouque

tinhavistonosjornais—Masvocênãotinhanascidoainda.—Entãofoideoutravez...Vocênãoassistiu?OGordo pensa que é uma estrela nova e grande que está brilhando

umpoucoatrás.Gritanaalegriadadescoberta—Olhequeestrelanovaebonita...Éminha,éminha...—Eleestácom

medoquealguémaroube,atomedelequeadescobriu.Osoutrosolham.MestreManuelescarnece:—Estrelanada.Aquilo éoPaqueteVoadorquevemvindo... Ele tava

em Itaparica quando a gente passou, vem aí pra pegar a gente... Querpegar carreira com você. — Mestre Manuel agora está falando com oViajantesemPortoeoacaricia

Olhaoscompanheiros.— O barco corre, Guma é bom no leme... Mas com este ninguém se

pega,vãover.

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OGordoestátristeporqueperdeuasuaestrela.AntônioBalduínopergunta:—ComoéquevocêsabequeéoPaqueteVoador,Manuel?—Pelaluzdalanterna.MasaluzéigualatodasaslanternasdossaveiroseAntônioBalduíno

sónãopensacomooGordoqueelaéumaestrelanovaporquesemoveatodo o momento. Porém, duvida que seja o Paquete Voador. Pode serqualquerumdosrápidossaveirosdoporto.Ficaesperando.OGordoolhaocéuparaver sedescobreoutraestrelaquesubstituaaqueeleperdeu.Porém, as que brilham já são todas conhecidas e todas já têm dono. Osaveiroseaproxima.MestreManuelvaidevagar,esperando.

ÉmesmooPaqueteVoador.Gumagrita:—Vamospegarumacarreira,Manuel?—Praondevocêvai?—Maragogipe..— Eu vou pra Cachoeira mas a gente corre até Maragogipe... Tá

valendocincão...—Távalendo.AntônioBalduínoapostatambém.Gumapegadoleme:—Vamos.Os saveiros vão inteiramente de lado e oPaquete Voador ganha

distância.Balduínoavisa:—Olheosmeusdezmilqueestãonofogo,Manuel.Omestresorri:—Deixaelecorrer.Gritaparaofundo:—MariaClara!A mulher que dorme e sonha, desperta e aparece. Mestre Manuel

apresenta:—Minhapatroa...A surpresadelesé tãograndequenãodizemnada.Ela tambémestá

caladaemesmoque fosse feia, seriabela assimempéno saveiroque seinclina, o vestido levantado pelo vento, os cabelos voando. Um cheiro demar se mistura ao cheiro de abacaxis. O cangote dela, os lábios dela—pensaAntônioBalduíno—devemcheirar amar, a água salgada. E senteumdesejorepentino.OGordopensaqueelaéumanjodaguardaequerrezar uma oração. Porém, ela não é nada disso; é a mulher de MestreManuelqueavisa:

—ToucorrendocomGuma.Canteumacanção...

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Acançãoajudaoventoeajudaomar.Sãosegredosquesóumvelhomarinheirosabe,segredosqueseaprendemnoconvíviodomar.

—Voucantarosambaqueaquelemoçoestavacantando.Estãotodospenetradosdela.Ninguémsabeseelaébelaou feia,mas

todosaamamnessemomento.Elaéamúsicaquecompraomar.Estádepéeseuscabelosesvoaçamabandonadosaovento.Canta:

“Aondevaipararessaestrada,Maria...

O Viajante sem Porto corre fazendo um ruído na água. Já se vênovamenteoPaqueteVoadorqueéumpontoluminosonanoite

“Asestrelasdosteusolhosestãonocéu...

AquilobrancoéaveladoPaqueteVoadorqueestámaisperto.

“Obarulhodoteurisoestánomar...

Aonde irãoelesnessa carreira louca?Não sebaterãonumacoroadepedrasnegrasenão irãodormirno fundodomar?MestreManuelvaideolhos fechados no leme. Antônio Balduíno estremece gozando a mulherquecanta.ParaoGordoelaéumanjo.Eelereza.

“Vocêestánalanternadosaveiro.

Passam junto da lanterna do Paquete Voador, Guma sacode umembrulho de dinheiro dentro do Viajante sem Porto. Quinze mil-réis.MestreManuelmeteoscinconobolsodacalçaegrita:

—Boaviagem,Guma.Boaviagem.—Boaviagem—avozvemládetrás.AntônioBalduínopegaosdezmil-réisqueganhou:—Compreumvestidopraela,Manuel.Foielaqueganhou..

“Aestradadomarélarga,Maria.

Antônio Balduíno pensa onde andará o homem branco e calvo quenaquele dia apareceu na macumba de jubiabá. Onde ele estará, ondeestará o homem que Antônio Balduíno julga ser Pedro Malazarte, oaventureiro? É preciso que ele não esqueça essa viagem de saveiro,quando escrever o ABC do negroAntônio Balduíno valente e brigão, queamaaliberdadeeomar.

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MestreManuelentregouo lemeaAntônioBalduínoagoraqueorioélargo.Foicomamulherparaofundodosaveiro.Estãoescondidosatrásdacamarinha.Masseouvemosruídosdoscorposnoamor.Vêmgemidosemvoz baixa, súplicas de beijos. Vemuma onda alta que cobre os aman tes.Eles riem entre beijos.Nessemomento estarãomolhados e o amor aindaserámelhor.

Antônio Balduíno imagina jogar o saveiro sobre as pedras do rio.Morreriamtodoseosgritosebeijosseextinguiriamnomar.OGordo,queperdeunessanoiteumaestrelaeumanjo,fala:

—Elenãodeviaterfeitoisso.

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CheirodocedefumoCheirodocede fumo!Cheirodocede fumo! Invadeas largasnarinas

doGordoqueentontece.O saveiro icounoportounicamenteosdiasdasfeiras das cidades vizinhas: Cachoeira e São Félix. Depois partiu paraoutros portos pequenos,Maragogipe, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas,Itaparica, levando SeuManuel e amulher que cantava durante a noite echeiravaamar.Abriuasvelasepartiunamanhãsaudosa.Valiacomoumadespedida

Antônio Balduíno e o Gordo icaram na cidade velha de Cachoeira,medindoocomprimentodasruasnumavagabundagemforçada.Sentiamacidadepelocheiro.EraaquelecheiroadocicadodefumoquevinhadeSãoFélix defronte, das fábricas brancas que tomavam quarteirões inteiros eque eram gordas como os seus donos. Cheiro que tonteava, que faziapensaremcoisasdistantes,queobrigavaoGordoacontarlongashistóriasinventadasou repetidas.Nas fábricasde charutosnãohavia trabalho.Aliquase só mulheres pálidas e macilentas, mulheres de olhos compridos,fabricavamcharutoscarospara insdebanquetesministeriais.Oshomensnão tinham jeito, possuíamasmãos grossas demais para aquele trabalhoque,noentanto,erapesadoedifícil.

Na tarde chuvosa do dia da chegada, eles atravessaram o rioParaguaçuqueseparavaascidades.Nofundoaponteenorme.OGordoiacontando uma história, que o Gordo nascera mesmo para poeta e sesoubesseescreverelerpoderiaganharavidafazendoABCehistóriasemversos.MasoGordonuncaforaaescolaesecontentavaemnarrarcomasuavozbaixaesonoraoscasosqueouvia,asvelhaslendasqueaprenderana cidade, e as histórias que inventava quandobebia. Se não fosse a suamaniademeterosanjosemtodasashistórias,aindaseriamelhor.MasoGordoeramuitoreligiosotambém.

A canoa evitava as pedras. O rio estava seco e homens de calçasarregaçadasedorsosnuspescavamojantar,oGordoiacontando:

—EntãoPedroMalazarte,queeraumbichosabido,disseaohomem:“é um rebanho enorme de porcos... tem mais que quinhentos... quequinhentosquenada...temémaisdemil...doismil...trêsmil...detantosquetematé jáperdiaconta...”Ohomemdepanelasóviaosrabosenterradosnaareia.Eraummundoderabospretosqueoventoremexia.Eles icavatudo bulindo que nem que tivesse porco mesmo, vivo de verdade,enterrado na areia. E Pedro Malazarte foi dizendo: “e esses porcos são

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mágicos... Quando eles obra sai é dinheiro. É tudonota de cincomil-réis...Quandovãocrescendosósainotadedezeatédecontode réiselesbotaquandojátãovelho.Eutrocotudoissoporsuapanela...”

—Eohomemnãodesconfiou?—interrompeuocanoeiro.— Nada, o homem era um tolo e estava com os olhos cheios dos

porcos.Pegouetrocouapanelacomcarneefeijoadapelorebanho.PedroMalazarteavisou:“Vosmicêdeixeelesenterradosatédemanhã.Demanhãeles saievãoobrardinheiro”.Eohomem icouesperandoqueosporcosaparecesse.Passouatarde,passouanoite,passouooutrodiaeatéhojeohomemestáláesperando...Sequiserésóirver..

O canoeiro ria, Antônio Balduíno queria agora ouvir a aventura dapanela. Amava as histórias de Pedro Malazarte, malandro que sabiaenganar os demais e levava uma vidinha gozada. Imaginava-o vivo,correndo o mundo, sabendo coisas de todos os países, pois até no céuPedro Malazarte já fora levar dinheiro para o marido da viúva rica queestava passandomiséria numhotel vagabundo do paraíso. E tinha quasecerteza que aquele homem calvo que aparecera namacumba de Jubiabánão era outro senão Pedro Malazarte, disfarçado. Aquele homem nãocorreraomundotodoenãoviratodasascoisas?

— Eu penso naminha cabeça que aquele homem careca que foi namacumbadepaiJubiabáeraPedroMalazarte.

—Quem?—oGordonãoselembrava.—NaquelediaqueOxalápegoudosReis...— Ah! Já sei... Mas não era não. Aquele branco era andarilho e

escreviaABC.Euseiahistóriadele...Elefugiuumdianumcavaloalazãodafazendadopaidele,queeracriadordecavalos,ecorreuomundotodonoseu cavalo alazão, escrevendo os ABC dos homens mais corajosos queencontrou,dasmulheresmaismalvadasqueviu...

—ElevaiescrevermeuABC...—Oseu?—Ohomemmaisvalentequeele jáviufoionegroAntônioBalduíno.

Eusouémachoparaqualquerum...Elemesmomedisse...O Gordo icou admirando o amigo. Antônio Balduíno trazia dois

punhaisembaixodocasaco,umdecadalado.Acanoaencostounalamadocais.

Dasfábricasvemessecheiroqueentontece.Oshomensquepescavamestãoserecolhendoeconduzempeixesparao jantarmagro.Das fábricassaiaomesmotempoumapito ino,prolongado.Éo imda jornadadodia.

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AntônioBalduínofoiparaarranjarumamulher,umamulataaquemamarno meio das operárias das fábricas. E icou na esquina, rindo a suagargalhada para as histórias do Gordo, esperando a passagem dasmulheres.

Mas eis que elas saem e são tristes e cansadas. Elas vêm tontasdaquelecheirodocedefumoquejáseimpregnounelas,queestánassuasmãos,nosseusvestidos,nosseuscorpos,nosseussexos.Saemsemalegriae são muitas, é uma legião de mulheres que parecem todas doentes.Algumas fumam charutos baratos, depois de terem fabricado charutoscaríssimos. Quase todas mastigam fumo. Um homem loiro conversa comuma mulatinha que ainda não perdeu a cor nas fábricas. Ela ri e elemurmura:

—Lhemelhorodecondição.AntônioBalduínodizaoGordo:—Aquelaéaúnicaqueécomível...Masjáestácomogerente.As mulheres passam silenciosas como se estivessem bêbadas do

cheiro de fumo, entram pelas ruas estreitas que já escurecem e rumampara os becos sem iluminação do fundo da cidade. Vão tristes assim,conversando em voz baixa, ainda com medo das multas por causa dasconversas nas fábricas. Passa uma grávida, a barriga estendida para afrente, e adiante pára e beija um homem que traz peixes namão. Agoraseguem de braço e ela conta a multa que sofreu por que parou nummomentoqueabarrigapesavaedoía.Derepentediz:

—Eosdiasqueeuvouperderquandotiveromenino...Quantosdias...Asuavozétrágicaeangustiada.Ohomembaixouacabeçaefechouas

mãos.AntônioBalduínoouviueescarrou.OGordoestátremendo.Passamasmulheresdasfábricasdecharutos.

Vêem-seosgrandescartazescomostítulos.Enumbotequimumanúncio:— os melhores charutos do mundo... Para banquetes, jantares, almoços.Passam asmulheres que fabricam os charutos. Vão tristes que ninguémdiriaquevãoparaolar,paraomarido,paraosfilhinhos.OGordodisse:

—Pareceacompanhamentodeenterro.Amulatinhabonitavaicomoalemão.Amulhergrávidachoranobraço

domarido.

No hotel de Cachoeira, que é cômodo e mesmo suntuoso, moçosalemães bebem uísque e jantam jantares feitos especialmente para eles.Mulheres vieram da Bahia para dormir com esses moços loiros esimpáticos. São ilhos dos donos daquelas fábricas de onde saíram as

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mulheres operárias. Conversam emmeio às bebidas e falam na salvaçãoda Ale manha pelo hitlerismo na próxima guerra mundial que elesvencerão.Equandoabebidativersubidoparaascabeças,cantarãohinosguerreiros.Umacriançainterrompeojantarediz:

Umaesmolaqueminhamãeestámorrendo.

Mas a lua cheia, que saiu dosmorros e está sobre o rio, não é vistapelos loirosalemães.Nabeiradorioosmaridosdasoperáriascantamaoviolãoeasmulheresapresentamcriançasàlua:

“BênçãodindinhaluaTomebebezinhopravocê

emeajudeacriar”.

No im da tarde chuvisquenta o canoeiro chegou para perto deAntônioBalduínoedoGordo:

—Entãocamarada...Nãovaiboiar...—Nósvai,sim...—Sequerirboiarláemcasa...Ecomidadepobre...Sótempeixe,mas

secomeeéoferecidodeboavontade.Virou-separaoGordo:—Vocêcontaunscasospraminhavelhaouvir.Eladevetáchegando

dafábrica...Tenhocincomeninasedoismeninos...Sorri esperando a resposta. Entram por um beco que vai dar numa

ruaenlameadaquelembraaAntônioBalduínooMorrodoCapa-Negro.Dentrodascasasbrilhaaluzvermelhados ifós.Criançasbrincamnas

portasfazendobonecoseboiscomobarropretodomassapê.—Éaqui—dizocanoeiro.As paredes são sujas de fumaça. Um quadro com Senhor do Bon im,

umviolãopendurado.Umgarotodormeestendidonumacamade tábuas.Terátrêsmesesquandomuito.Acordoucomobeijodohomemeestendeuasmãozinhas, rindo comaboquinhanegra.Umquemal está andando seagarra às saias damãe. Já possui a barriga estofada como os outros queestãofazendobonecosdebarroláfora.

Ocanoeirofazasapresentações:—Dois amigos. Este aqui— aponta o Gordo— sabe contar história

queéumabeleza...Vocêvaiver.Amulhermascafumo.Temosbeiçosarrebitadoseumacaraamarela

de quem sofre maleita. Pega os peixes que o homem traz e vai para a

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cozinha.Ouvemasuavozchamandoosfilhos.AntônioBalduínopegouoviolão.OGordopergunta:—Avidaaquiédifícil?—Trabalhoédi ícil, é...Aqui só tem trabalhopramulher,oshomens

ficampescando,ouarranjandounsvinténscomascanoas.—Easpatroasganhambem?—Nada...Quebem...Eaindatemasmultas,temasfaltasporcausadas

crianças, doenças, e icam logovelhas, acabadas...A gente corta ino aqui,seumano...

—Étriste...— Triste?— o homem ri.— Tem gente que passa fome que é uma

beleza...Quandoumamulhersaideuma fábrica,nãoarranjaempregonaoutra.Elestêmumacombinação...Enãoétododiaquetempeixe,não.

Um rapaz negro está na porta, silencioso. Aprova com a cabeça. OGordosesenteculpadodeterpuxadoaquelaconversatriste:

—MasDeusvaiajudando..— Dando doença, só se for assim.Minha patroa tem esse quadro aí

maseuaténemacreditomais... Jácurtifomedura.Umanoitenemcomidapromaispequenoqueeraaquela—mostraumamulatinhadecincoanos—nãotinha.Deusseesqueceudospobres.

Amulherapareceunaportadofundoecuspiuumasalivaescura:—Nãodigaheresia,homem.Deuscastiga.Orapazdaportafala:—Masnomeucoraçãoeunãoacreditotambém.Sódabocaparafora.

Quersaber?Poisoalemãocachorro tádandoemcimadaMariinha...Falaquemelhoraela...OndetáDeus?

OGordorezaemvozbaixa.PedeaDeusquenãodeixeoalemãolevarMariinha e que não faça faltar comida na mesa do canoeiro. AntônioBalduínosabequeoGordoestárezandoequeéinútil.Diz:

—Podeserheresia,minhagente...Masavontadequeessenegroqueestáaquitemématarosbrancostodos...Matavaenãotinhapena.

O peixe está servido na mesa. O rapaz negro desapareceu e mesesdepois foi condenado a trinta anos porque matou o alemão que deixouMariinhacomumfilhoesememprego.Acomidaépoucaparatantasbocase os garotos reclamam mais. A luz vermelha do ifó torna as sombrasenormes.

OGordocontouahistóriadapaneladePedroMalazarteeascriançasdormiram. Uma delas ainda traz fechado na pequena mão negra um

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bonecodebarro,aleijadodeumbraço.Enoseusonhoobonecopretodebarroéumabonecaloiradelouçaquediz“mamãe”efechaosolhosparadormir.Saíramparaoladodorio.Oshomenscantamàluacheia.Mulheresde vestido remendado andam na amurada. O rio passa e desapareceembaixodaponte.

OGordocantaaCantigadoVilelaqueAntônioBalduínoacompanhaaoviolão.Oshomensestãotodosatentosà lutahistóricadocangaceiroVilelacomo“alferesnegreiro”.Acantigaéheróica.Oalferesfoiumherói;Vilelafoimaisheróicoainda:

“OAlferesfoivalenteEdevalenteenforcou-se!MaisvalentefoiVilela:Morreu,foisantoesalvou-se

—Bonito—falaumhomem.Nuncavidizerque jagunçovirasse santo—atalhaumamulherzinha

magra.—Temmuitojagunçoquemerecesersantomesmo...—ohomemque

explicabateosdedosnaamuradadocais.—Vocês jáviu jagunçoroubarpobre?Jagunçoépobrecomoagente...Jagunçotemcoraçãocomoagente...Jagunço...eugostodejagunço.

— T’esconjuro, sujo! Parece que não viu o que eles izeram com oCoronelAnastácio...Deixouohomemsemasorelhas...semonariz...atéascoisasdelearrancou...Ficouparecendoumbicho,Deusmeperdoe...

Riemse lembrandodecomo icaraohomem.Masoqueestábatendonaamuradadocaisdiz:

—MasvosmecênãoselembradoqueoCoronelAnastáciofezcomasilhas do Simão maneta... Eram quatro, ele não deixou uma... Papoutodinhas...Ovelho icoufeitodoido...Maistivesseemaisocoronelchamavaaospeitos.Jagunçoéquemvingaagente...

Virou-separaoGordo:—Canteoutramodinha,camarada.Mas foi Antônio Balduíno quem passou a cantar sambas emodinhas

quefizeramasmulherestristes.Dosinodaigrejavêmasbatidasdasnovehoras.—VamosaosambadacasadoFabrício,minhagente?—convidaum

negroforte.Vaiumgrupo.Osdemaissedirigemparaascasasouaindademoram

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nocaisolhandoalua,orio,aponte,cinemaqueelestêm.

Fabríciorecebiaosconvidadoscomocopodecachaçanamão:—Nãoquermatarojejum?Todosqueriameocopopassavadebocaemboca,umcopogrossoque

Fabrícioenchiaconscienciosamenteatétransbordar.OcanoeiroapresentavaAntônioBalduínoeoGordo:—Doisamigos...— Vá entrando... Vá entrando... A casa é dos amigos— e distribuía

grandesabraços.Eles foram entrando. Um mulato de bigodinho tocava harmônica Os

pares rodopiavam pela sala. Antônio Balduíno não sentiu o cheirocaracterísticodenegro.Até ali, no bairrodistante, o cheirodocede fumodominava. Os pares rodavam, o homem da harmônica se abaixava e selevantavaeno imdamúsica,de tãoexcitado,ele tocavadepéedançavatambém,roçandoosparesquepassavamaoalcancedasuamão.

Quandoamúsicaparouocanoeirogritou:—Meupovo,essenegroaquitocaviolãocomoumsanto...Eessegordo

sabecadahistórialinda.AntônioBalduínodisseaoGordo:— Eu estou pensando na minha cabeça que vou arranjar mulher

aqui...Foiládentrobebercachaçacomodonodacasaequandovoltou,ante

a insistência das negras, tocou ao violão seus melhores sambas que oGordo cantou. O homem da harmônica estava ressentido mas não dizianada,QuantoAntônioBalduínoacaboudissepraele:

—Vamostomarumtrago,mano?Vocêtocabemdeverdade...—Euarranho...Vocêéumbamba...IndicoumulheresparaAntônioBalduíno:— Aquela ali topa... Olhe aqui, aminhamulata tem uma amiga... Por

quevocênãotopacomela?Ohomemvoltoua tocarharmônica.Agora todaa sala rodava.Ospés

batiam no chão, os umbigos batiam nos umbigos, as cabeças se tocavam,estavam todos embriagados, uns de cachaça, outros de música. Ouvia-seum baticum que os homens acompanhavam com as mãos. Os corpos seuniampelascinturasedepoissesoltavam,giravamsozinhosevoltavamaseencontrar,barrigacombarriga,sexocomsexo.

—Aí,meubem.Obaticumcontinuava,oshomensdos instrumentosestavamentreos

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dançarinos,asalaestavadecabeçaparabaixo,estavadelado,derepenteestavacerta,logodepoisnãoestavamais,elesestavameranoteto.Os ifósaindaatrapalhavammais.Dançavamsombrastambémeelasdançavamnaparede,gigantescas,espantosas.Ochãodesaparecera,ospésnãosentiammais,sósesentiaocorpoqueeratocadoetraziaumafaíscadedesejo.Asmulheres eram de mola, quebravam o corpo todo no mexido, as ancasaumentavam,asnádegasremexiamsozinhas,comosetivessemumavidaàpartedocorpo.Dançavamoshomens,asmulheres,assombrasea luzdoifó. Desaparecera a sala, desaparecera a luz, não se via mais nada. Sóicaraobaticum,ocheirodocedofumoeosumbigosqueseencontravam,Desapareceutambémodesejo,desapareceutudo,eagoraépuradança.

AntônioBalduínoescreveunaareiadorioumnome:Regina.Amulherque estava a seu lado, deitada no cansaço do amor, sorriu satisfeita ebeijou o negro.Mas veio uma onda pequena e apagou o nome que tinhasido escrito com a ponta do punhal. Antônio Balduíno soltou a suagargalhadaqueestremeceutudo.Amulherteveraivaechorou.

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MãoO campo de fumo se estendia pelo morto e parecia não ter im.

Primeiroeraaquelaplaníciequedepoissubiapelomorroedescambavaláatrás,campoverdeinacabável,deplantasbaixas,defolhaslargas

Oventobalançavaasfolhase,senãofosseasacolaprotetoradepano,espalhariaassementesdofumonumaplantaçãoinútil.

As mulheres que estavam curvadas colhendo as folhas com gestoscansados levantaram o corpo e se agitaram. Foram as últimas a largar otrabalhoeumadelaseravelhaeenrugada,enquantoaoutra,quefumavaum charuto de cinqüenta réis, era uma mulherona moça e forte, Oshomensjáiamadianteepareciamtodoscorcundas.Conduziammontesdefolhasde fumoquedependuravamna frentedas casas, resguardandodosolmuitoforteedachuva.Asfolhasquejáestavamsecascediamlugaràsfolhasrecém-chegadasquefaziamaquelacortinaemfrentedascasasdostrabalhadores.

Existiamquatrocasasembloco, formandoumquadradonocentrodoqualoshomenssereuniamparaconversaretocarviolão.Amulhervelhaentrounumadascasasondeocompanheiroprestavaatençãoaofeijãoquecozinhava.Amoça icou tirandodoisdedosdeprosa comoshomensqueestavamno“terreiro”,queeracomoeleschamavamoquadradoque icavaentreascasas.

OGordoestavacomsaudadesdaavóefalava:—Ficousozinha,comDeussomente...Quemdácomidaaela.—Deixaestarqueelanãomorredefome,não...— Não tou falando nisso — o Gordo se atrapalhava. — Eu estou

dizendo...Amulherbotouasmãosnascadeirasparaouvirmaiscomodamente:—Entonceoqueé?—Nãosabe?Elaestávelhaeacabada...Sócomedandonaboca...Amulherriu,oshomensfizerampilhérias:— Isso parecemais umamulata que você tem... Esse negócio de dar

comidanaboca...Ébonita?— Juro que é minha avó... Juro... Ela não tem mais dente e já anda

pancada...Outroshomens iamchegando.AntônioBalduíno seestendeunomeio

doterreiro,abarriganuaparacima:—Toucansado,gente...

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OGordoperguntou:—Nãoéverdadequeeutenhoumaavó?Elanãocomedadopormim

naboca?Oshomensriram.Amoçaatalhou:—Tuamulherétãovelhaassim,Gordo,quevocêchamaeladeavó?VieramgargalhadasqueaumentaramaconfusãodoGordo:—Juro...Juro...—beijavaosdedosemcruz.—Mandabuscar elapra cá,Gordo. Eudou comidanabocadela,me

casocomela...—Elaéminhaavó,juro..—Nãofazmal...Mesmovelhaserve...AntônioBalduínoselevantouemcimadobraço:—Eu tômaginandoaquidentro—batianacabeça—quevocêssão

tudounsbestas...oGordotemumaavó,émesmo...EoGordotemumanjoda guarda... O Gordo tem coisa que ninguém tem... O Gordo é bom, vocêsnãosabe...

OGordoseatrapalhava.Oshomensestavamcaladoseamoçaolhavaagoracomespanto.

—OGordoébom,agenteéruim...OGordo...Ficouolhandoasplantaçõesdefumoqueseperdiamdevista.Ricardomurmurou:—Mesmovelhaeucomia...Masamulher,antesdeentrarnacasa,chegouparapertodoGordoe

pediu:— Você reza pra mim? Reza pro anjo fazer Antônio arranjar uns

cobrespragenteirprasfazendadecacau.—Olhouasfolhasdefumo.—Látemdinheirodefazermedo...

Ricardodisse:Esseanootrabalhoestápesado...AsafraégrandeeSeuZequinhanão

botamaisgente...Nemseicomobotouvocêsdois...—Agente tavaquasemortode fomeemCachoeira.Por issoa gente

veio...—Paraganhádeztõespordia...Um jumento zurrou no campo. AntônioBalduíno disse pro velho que

vinhadacasacomendo:—Cumprimentateupai,velho,queestáreclamando...—Etunãopedeabênçãoateuavô?Olha,queeuconhecituamãe...Riram.AntônioBalduínobaixouavoz:—DeixeláqueSinháTotonhaéumpedaço...

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—Semeta com ela pra ver... Antônio tem quatromorte no costado...Elenãobrincanemerrafogo...

—Euseiéquetouseco...Doismesessemmulher...Ovelhoriu.Ricardoolhoucomraiva:—Vocêriporqueécasado...Temmulher...Podeserumcouromasé

mulher...Eeuquejáfazquaseumanoquenãovejoumaéguanacama...— Tou rindo não é disso, não. Quando eu vim para essas bandas

colherfumojáeraassim.Eupasseiumadureza...AtéquepegueiaCelestequeviviaaíquasemenina...Hojetáumcouromasnaqueletempoeraumatentação...Negrodavaemcimaquenemurubuemcarniça.MastudotinhamedodovelhoJoãoqueeraferoz.Eletinhaditoquenegroqueroubasseailhadeletavamorto.Mas,homem,eunãoviacheirodemulher faziadoisano...Dissequemorrererabesteira,queagentesómorrequandochegaotempo. Numa noite tava um chuvisquinho eu chamei a Celeste paraconversar.Ovelho tavadentrodecasa, limpandoarepetição.Ainda faloucomigo,serindo...Eunãotinhaaindamedo,tivenaquelahora...MasCelestejá vinha, eu não pude mais. Ali mesmo, nuns mato que tinha perto,derrubeiabicha.

Os homens estavam com os olhos baixos. Antônio Balduíno riscava ochão comumpunhal.Ricardobatia asmãosumanaoutra impaciente...Ovelhocontinuou:

—Faziadoisanoqueeunãosabiaoqueeramulher...Ela icoucomovestido todo rasgado... Eu fugi por essematodeDeus, esperandoo velhopramematar.

—Edepois?—Nooutrodiatomeicoragem,fui láfalarcomovelhoJoão...Eletava

limpandoarepetiçãoequandomeviuencostouabichanochão.Eusabiaqueelemematava,maseuqueriaandarcomaCelestedenovo...Pegueiedisse a ele tudo. Falei que queria casar, que era um homem direito etrabalhador... Aí o velho fechou a cara, eu pensei que tivesse chegadominha hora. Mas ele não fez nada, só disse: “Isso tinha que acontecer...Aquinão temmulher ehomemprecisademulher. Leve elapra sua casamas se case com ela”. Eu iquei sem acreditar e João disse ainda: “Gosteiquevocêveiocontartudo.Homemfazéassim”.DepoischamouaCelesteemandouqueelafossecomigo.E icoulimpandoarepetição.Masquandoeusaíeujuroqueeletavachorando...

Os homens icaram calados. O vento balançava os pés de tabaco, asfolhaslargaslembravamsexosestranhosdemulheres.Ricardoengoliuemsecoedisse:

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—Nãoseicomoagentepodetrabalharsemtermulher...Aquisótemessasduascasadas...

—EafilhadeSinháLaura?—Eucasavacomelaseelaquisesse...—disseRicardo.AntônioBalduínoenfiouopunhalnaterra.Umnegroaltoafirmou:—Umdiaeuchamoelaaospeitos,eladeixeounãodeixe...—Maséumameninadedozeanos—seespantouoGordo.Osmontesatrás,cobertosdeneblina.Aestradadeferroquepassava

longe.Devezemquandoumtremqueapitavacommulheresquedavamadeusnasportinholas.Aestradaondeoshomenspassavamlevandosacosdefrutasparaasfeiras,conduzindoburroscarregados,levandoboisparavenderemFeiradeSantana.Oraseguravamsacosenormescomasmãoscalosas, ora tangiamos burros ou conduziamos bois. Passavam enormesboiadas,osvaqueiroscantandotristemente:

—Ouuuuuubooiiiii.Easmãosqueseabaixavamparaaterra,mãosgrandesecalosasque

colhiam as folhas cheirosas de tabaco. As mãos se baixavam e selevantavam num certo ritmo sempre igual. Pareciam pessoas quechoravam. E aquele trabalho dava uma dor nas costas, dor ina eprolongada que icava pela noite adentro, magoando. Zequinha passavaolhando o serviço, dando ordens, brigando.Montes de folhas de fumo sejuntavame,quandoatardevinha,asmãosdoshomenshaviamganhodeztostões que eles não viam, porque já deviam ao patrão quantiasdesconhecidas.

Com as mãos calosas e feias acenavam adeuses aos trens quepassavamapitando.

Nacasadetaipamoravamquatro:Ricardo,onegro,Filomeno,AntônioBalduíno e o Gordo. Filomeno só falava em tiros e mortes, isso quandofalava, porque geralmente estava calado ouvindo. Ricardo tinha em cimadas tábuas em que dormia, colado na parede, o retrato de uma atriz decinema,todanua,comumlequeapenascobrindoosexo.Haviapregadooretrato na parede com muito cuidado, retrato que lhe dera o ilho dopatrão, há uns três anos, quando viera à fazenda. E colocava o ifó de taljeitoquealuzvermelhadavabememcimadaatrizqueparecianuacomoumconvite.OGordotinhaumsantoemcimadacama,santoque“trocara”por quinhentos réis nas festas do Bon im. Antônio Balduíno juntava nospésdojiraua igaqueJubiabálhederaeospunhaisquetrazianocinto,OnegroFilomenonãotinhanada.

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Vinhampara o terreiro após o jantar e eles que não tinham cinema,nem teatro, nem cabarés, tocavamviolão e cantavamaodesa io.Asmãosbrutas dos homens negros tiravam das cordas sonoridades que enchiamde alegria e de tristeza os camponeses todos das plantações de fumo.Cantavamcantigastristes,sambasalegres,enodesa ioRicardoeraperito.As suas mãos corriam pelas cordas do violão e não eram mais aquelasmãoscalosasdaenxadaedaterra.Erammãosdeartista,rápidasecertas,que levavam ao coração dos homens a história de amores e de lutas. Asmãos que antes davam o pão, davam agora a alegria na terra semmulheres. Os violões repinicavam noite afora e era o cinema, o teatro, ocabaré. As mãos rápidas corriam pelas cordas e a música se espalhavaentre as plantações de fumo que, à luz da lua, apresentavam aspectosestranhos.

Quandoosilênciobaixavasobretudo,quandonãoseouviamaisosomdas violas e os homens já estavam estirados nos jiraus, o ifó apagado,Ricardo olhava o retrato da atriz nua com um leque cobrindo o sexo.Estava com os olhos itos nela e eis que ela se move. Porém agora estávestidaeelesnãoestãomaisnasplantaçõesde fumo.Estãonumagrandecidade, numa cidade que Ricardo nunca viu, cidade iluminada, cheia deautomóveisedeavenidas,maiorqueCachoeiraeSãoFélixreunidas.Deveser a Bahia e talvez seja até o Rio de Janeiro. Passam mulheres loiras,mulheresmorenasetodassorriemparaRicardoqueestáelegante,vestidodecasimira,comunssapatosvermelhoscomoosqueeleviranumalojadeFeiradeSantana.Asmulheresriemetodasoquerem,maseleestácomaatrizqueconheceunumteatroequesedependuranobraçodeledeumamaneira que roça os seios no seupeito. Agora vão cear num restaurantechique, de mulheres decotadas, onde bebem vinhos caros. Ele já beijourepetidasvezesamulherquesemdúvidaoama,poisconsentequeelelhemachuqueos seios e suspendaporbaixodamesao seu vestidode seda.Mas, agora, elaestánovamentenoquadro, como lequeemcimadosexo,porqueojirauestábalançandomuitoeAntônioBalduínosemoveunasuacamade tábua,nooutro ladoda sala.Ricardoesperacomraivaque tudoiquecalmodenovo.Puxaacobertaesburacadaatéoqueixo.Voltacomamulher ao restaurante para, logo depois, tomarem um automóvel e sedeixarem icar num quarto onde há cama e perfumes. Ele a despedevagarinhogozandoosseusencantosumaum.Poucolheimportaagoraque o jirau ranja e queAntônioBalduíno semova.Não, não é a suamãocalosaqueele tememcimado sexo.Éo sexoalvodaatriz loira, quenão

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está com vestido nem com leque e que ama Ricardo, trabalhador dasplantações de fumo. Acorde quem quiser, porque ele não está fazendonadademais,estáamandoumamulherbonita,deseiosdurosedeventreredondo.Asuamãoéumamulher.

A atriz voltou para o quadro, o sexo tapado como leque.Na estradabrilhaa luzdeum ifóqueiluminaasplantaçõesdefumo.Ricardodeitaacabeçasobreastábuasdojirauedorme.

Num domingo Ricardo disse que ia pescar nas águas do rio. Tinhacompradoumabombaecomelaesperavamatarmuitopeixe.Convidouosoutros.SomenteoGordoseresolveuair.Conversaramocaminhotodo.Namargemdorioeletirouacamisa,oGordosedeitounarelva.Asplantaçõesde tabaco se estendiam lá atrás. Passava um trem. Ricardo preparou abomba e acendeu amecha. Sorria. Estendeu asmãos para a frente,masantesque jogasseabombaelaestourou levando-lheasmãoseosbraços,encharcandooriodesangue.Ricardoolhouoscotosdosbraçoseeracomosehouvessesesuicidado.

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Sentinela

Arminda, a ilha de Sinhá Laura, que ao terminar o trabalho corriapeloscamposasuameninicededozeanos,nãocorremaisetrabalhacomorostoangustiado.AtéumavezpediulicençaaZequinhaparairemcasa.Éque,háumasemana,SinháLauraestáestendidaemcimadeumacama,inchando com uma doença desconhecida. Antes Arminda era alegre etomavabanhonorio,nadandocomoumpeixe,excitandooshomenscomoespetáculodoseucorpodemenina.Agoraapenastrabalhaporquesenãotrabalharmorredefome.

Naterça-feiranemnotrabalhoapareceu.Totonha,queveiodacasadadoente,avisou:

—Avelhaesticouascanelas...Oshomenspararamotrabalhoporumminuto.Umdisse:—Jáestavanaidade...—Estáinchadaquenemumboi...Fazatémedo...—Quedoençamaisesquisita.—Ninguémmetiraqueaquilofoiespíritoruim...Zequinhavinha chegando.Oshomens se curvaramdenovo sobre as

folhasdefumo.Totonhafaloucomeleedepoisavisou:—Euvouficarcomamenina.Denoitetemsentinela...OnegroFilomenosegredouparaAntônioBalduíno:—Quemmederasereu.Sozinhocomela,eraumDeusnosacuda.O Gordo bebeu um trago de cachaça porque tinha muito medo de

defunto.E,nahoradoalmoço, icaramrelembrandohistóriasdedefuntosconhecidos,contandocasosdedoençasedemortes.OnegroFilomenonãofalava.Estavacomumplanonacabeça.PensavaemArminda,nafrescuradasuacarnemoça

Os ifós pareciam andar. A luz vacilante se aproximava da casa detaipa. Não se viam as pessoas. Somente aquela luz vermelha quebruxuleavaemudavadelugarcomoumaalmapenada.Naporta,Totonharecebia as visitas que vinham fazer a sentinela da morta. E distribuíaabraçoserecebiapêsamescomose fosseparentedeSinháLaura.Estavacomosolhosúmidosenarravaossofrimentosdadefunta:

—Coitada,gritavatanto...Tambémcomaqueladoençadanada...—Aquiloeraespírito...—Deudeinchar,ficoucomabarrigaestofada...

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—Agoradescansou...Umamulhersebenzeu,OnegroFilomenoperguntou:—EArminda?—Táládentrochorando...Coitadinha,ficousemninguémnomundo...Ofereceucachaçaquetodostomaram.No único cômodo da casa dois bancos se alinhavam ao lado de uma

parede. Alguns homens e mulheres, de pés descalços e cabeçasdescobertas, velavam a morta. Do outro lado da sala uma cadeira velhaonde Arminda sentada chorava um choro sem lágrimas, intercalado desoluços altos. Tinha os olhos tapados com um lenço vermelho. Os recém-chegadosforamatéondeelaestavaeapertaram-lheamãosemqueelasemovesse.Nãodiziampalavra.

Enomeiodasala,estendidoemcimadeumamesa,queeranosdiascomuns cama e mesa de jantar, estava o cadáver, inchado, parecendoquerer estourar. Uma coberta de chitão, de grandes lores amarelas everdes, cobria o corpo, deixandodo ladode fora o rosto enrugado comaboca torcida e ospés enormes e achatadosdededos abertos.Oshomensaovoltar espiavamo tostodamorta e asmulheres sebenziam.Umavelaestava colocadapertoda cabeçadadefuntaedespenhavaa sua luzbaçasobre o rosto parado, ainda torcido numa expressão de sofrimento. Eaquelesolhosparadospareciamolhar ixamenteoshomenseasmulheres,queagoraestavamtodossentadosnosbancosecochichavam.Umagarrafade cachaça passou de mão em mão. Bebiam pelo gargalo em grandestragos.Doishomenssaíramparafumarláfora.Zequinhachegouepassouamãona cabeçadeArminda.Então começaramasoraçõespuxadaspeloGordo:

“Senhor,tomaiessaalma”.

Ospresentesrespondiamemcoro:

“Oraiporela”.

Agarrafadecachaçacorriapelaroda.Bebiampeloprópriogargalo.Avela brilhava sobre o rosto damorta, que cada vez inchavamais. O corovinhacomoumlamento:

“Oraiporela”.

AntônioBalduíno levantouosolhoseespiouArminda.Elachoravanooutro lado da sala. Mas o rosto inchado da defunta impede que ele vejadireito.

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TambémonegroFilomenoolhaparaaórfã.AntônioBalduínobemvêqueosolhosdonegroestãopousadosnosseiosdeArmindaquesobemedescem com os soluços que lhe sacodem o colo. E Antônio Balduíno temraiva.Murmuraparaovizinho:

—Miseráveldonegronemrespeitaosmortos.Mas ele também olha os seios que se movimentam por baixo do

vestido. De repente, o negro Filomeno desvia o olhar e espia as pessoasqueestãonasala.Eleestácommedo,todosestãovendo.Dequeseráquetem medo o negro Filomeno?, pensa Antônio Balduíno. E olha quaserisonho o decote do vestido de Arminda. A luz do ifó bate em cima docomeçodosseios.Equerentrar...Sim,aluzdo ifóquerentrarpelosseiosdeArmindacomoumamão.Láestáelatentando...AntônioBalduínoseguea cena comosolhosbrilhantes.A inal, parecequea luz conseguiuentrarpelo decote. Naturalmente agora está amassando os seios que sobem edescem.AntônioBalduínosorriequasemurmura:

—Conseguiu,apeste...Masagoraeletambémretiraoolhareestátremendo.Poisnãoéquea

morta ixou nele os olhos parados com uma expressão de ódio? AntônioBalduínoolhaochão,espiaasmãosgrossas,massentequeoolharraivosodadefuntaoacompanha.Pensa:

— Por que o diabo desta velha não toma tento com o peste doFilomenoquequercomerafilhadela?

Se recorda que ele também tem más intenções e foge do olhar davelha.OlhaparaoGordocujabocaseabreesefechacantandoasrezasdedefuntos.

QuerversepensanumamoscaentrandonabocaGordo.MasamortaestáolhandoparaeleeFilomenoestáespiandoosseiosdeArminda.

— Diabo de velha que ainda tá tomando conta da ilha... Não jámorreu...

—Hein?—fezovizinho...—Nãodissenada...OGordoestácantando.AntônioBalduínorepetecomotodomundo:

“Oraiporela’

Aquela mosca é capaz de entrar na boca do Gordo. Ia entrando, oGordo fechou a boca. Lá vai ela de novo. Parou no nariz. Está esperandoqueoGordoabranovamenteaboca.Éagora.Masamoscalevantouvôoefoi pousar em Arminda, no outro lado, O negro Filomeno se remexeu nacadeira.AntônioBalduíno icaimaginandocomoserãoosseiosdeArminda

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fora do vestido. Olhe que bicos grandes que eles têm. Chegam a formaruma bola no vesti do. A mosca está sentada bem em cima de um deles,exatamente no esquerdo. Ela não usa porta-seios, está logo se vendo. Osseusseiosserãodurosecarnudos...Porqueseráqueelachora?—pensaAntônioBalduíno...Temunsolhosgrandes,pestanudos.Comosoluçoqueagitou seu peito o seio quase pula fora do vestido. E a mosca fugiu. Foipousar em cima do rosto da defunta. Como ela inchou! Quase não cabemaisnamesa.Eo rostoentãoestá enorme, apele esverdeadaeosolhosesbugalhados.Maspor que ela olhaparaAntônioBalduíno?Oque é queele está fazendo? Ele nem está olhando paraArminda. O negro Filomenosimquenão tira os olhos dela. Entãopor que amorta não o larga, não odeixa sossegado, olhando para onde quiser? E como está inchada,disforme. A mosca sentou em cima do nariz. Serão bagas de suor quebrilham no rosto da defunta? Naturalmente ela quer oração. AntônioBalduíno, emvezde estar rezando comos outros, está é espiando a ilhadela.Eonegrofazcoro:

“Oraiporela”

Foi gozado porque ele disse tão alto que assustou Filomeno querepetiutardiamente

“Oraiporela”.

Nãoeraahora.OGordojáestavadizendooutracoisa.passaagarrafade cachaça. Antônio Balduíno tomou um gole grande e tentou espiarnovamente Arminda. Mas a morta está implicando com ele. AgoraincharamtantoosolhosquequandoBalduínoespianãoconseguevermaisquemetadedorostodeArminda.Vêbem,vêmuitobemmesmo,osolhosdadefunta que o acompanham comódio. Será que ela adivinhouque elevai pedir água à Arminda só para que ela vá com ele para a outra sala,onde ele poderá agarrá-la? Os mortos sabem tudo. Ela já soube comcertezaenãoolargamais.Eleestávendoorostomedonhodavelhamorta.Ninguém tem um rosto daquele. O rosto de Arminda é risonho. Mesmoquandoelaestáchorando,comoagora,temumrostoalegre.Porqueseráqueexistempessoasassim?Orostodadefuntaestáverdeecheiodebagasde suor. Está pegajoso. Antônio Balduíno esfrega asmãos uma na outra,querendose livrardavisão.Espiaparao teto.Massentequeosolhosdamorta estão itos nele. Ficoumuito tempo espiando as traves e as telhaspretas. De repente baixou a vista e olhou os seios de Arminda. Sorriusatisfeito:tapeouavelhamorta.Masfoipior,foimuitopior:ela icoucoma

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boca torcida de raiva, esbugalhou ainda mais os olhos. Tem uma moscapousada na sua boca. Parece uma ponta de cigarro, preta da saliva.Antônio Balduíno tenta acompanhar as orações. E quando pensa que amorta não está mais olhando para ele, abre a boca para pedir água aArminda.Mas láestãoosolhosdadefuntabempostosemcimados seus,num ar de desa io. Reza de novo. Bebe cachaça. Quantas vezes já teriapassadoporeleagarrafa?Essaestáno inzinho.Quantasterãoaindaqueabrir?Numa sentinela se gastamuita cachaça... E agora que amorta nãoestá espiando,AntônioBalduíno se levantadevagarinho, circundaamesaondeestáocadáver,tocanoombrodeArminda:

—Venhamedarumgoled’água.Elaselevanta.Vãoparaoquintal,nofundoondeestáumatinad’água

e um caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote dovestidoAntônioBalduínovêosseios.Entãosegurounosbraçosdameninaegiroucomelaque icoudefrenteparaele,olhando-oespantada.Maselenãovênadaanãoseraquelabocaeaquelesseiosqueestãonasuafrente.Vaiapertaroabraçoea suaboca sedirigeparaabocadeArminda,queaindanãocompreende,quandoosolhosdadefuntachegame se colocamentreosdois.AvelhaLauradeixouseulugaremcimadamesaesemeteuentre eles. Ela está tomando conta da ilha. Os mortos sabem tudo e elasabia o que Antônio Balduíno pretendia fazer. Está ali entre os doisolhando o negro. Ele solta Arminda, põe as mãos nos olhos, derruba ocanecocomáguaeentranasalacomoumcego.Amortainchouaindamaisnamesa.

O negro Filomeno ri como quem compreendeu a idéia de AntônioBalduínoaopedir água.Elevai fazeromesmocomcerteza.Quebesta—pensa Balduíno — ele está julgando que vai levar alguma vantagem.Quando chegar lá encontra a inada espiando para ele. A inada sabe detudo, ela adivinha tudo... Porém os olhos da morta não acompanharamFilomeno.SeráqueelavaideixaraquelenegroimundotocaremArminda?Ele se levantou e pediu água aArminda e amorta não fez nada. AntônioBalduínomurmuraparaorostoimpassível:

— Vá! Vá! Não está vendo aquilo? Não está vendo? Aquele negro émalvado.

Masamortanãoatendeaoaviso.Pareceatéqueelaestárindo.Ouve-seumruído ládentro.Armindavoltaparaasalaeagorachoraumchorodiferente.Ovestidoestámachucadono lugardosseios.OnegroFilomenoentra sorrindo. Antônio Balduíno torce as mãos com raiva, levanta e dizaltoparaoGordo:

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—Vocênãodissequeelaéumameninadedozeanos?Cadê?Cadêamortaquenãofeznada...

Zequinhadiz:—Tábêbado..Alguémcerraosolhosdamorta.

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Fuga

Nocinto,porbaixodopaletó,AntônioBalduínotrazdoispunhais.Zequinha correu para cimadele com a foice namão. Se atracaram e

rolaram no barro duro da estrada. Zequinha caiu e a foice voou longe.Quandoele se levantoue correunovamenteparaAntônioBalduíno, viuopunhalnamãodonegro.Parouirresoluto.Ficoucalculandoogolpe.Depoisdeu um pulo. Antônio deu um passo para trás, a sua mão se abriu e opunhalcaiu.Zequinhariucomosolhoserápidocomoumgatoseabaixoupara apanhar a arma do inimigo. E enquanto ele se abaixa, AntônioBalduíno tira do cinto o outro punhal que inca nas costas de Zequinha.AntônioBalduíno traz sempredois punhais no cinto... E a sua gargalhadaassustaoshomensmaisquealuta,queapunhaladaeosangue.

Eradenoiteeonegroganhouomato.

Abre caminho pelo mato. Corre entre as árvores que se fecham. Hábemtrêshorasqueelecorreassimcomoumcãoperseguidopelosgarotosmalvados. No silêncio domato os grilos se fazem ouvir. Corre sem rumo,perdido, varando o mato, com os pés doidos evitando as estradas, serasgando nos espinhos. A sua calça de mescla está lanhada de cima abaixo.Elenemviuquandoelaserasgou.Eomatosem imseestendenasua frente.Não vê nada na escuridão. Agora pára.Ouve ruídos dematosquebrados.Quemvemlá?Jáoperseguirão?Ficaatento,amãonanavalha,única arma que lhe resta. Está atrás de uma árvore e é di ícil que sejavisto.Sorripensandoqueoperseguidorquepassarprimeirodormiráparasempre.Anavalhaestáabertaemsuamão.Erápidocomoumavisãopassana frente um habitante daqueles matos. Que bicho teria sido? AntônioBalduíno não o reconheceu sequer e ri do medo que teve. Continua acaminhada,abrindocaminhocomasmãos.Caisanguedoseurosto.Omatoé implacável para com os que o violam. Um espinho rompeu o rosto donegroAntônioBalduíno.Maselenãovênada,nãosentenada.Sabeapenasquedeixouumhomemcaídonasplantaçõesde fumo.Enas co’stasdestehomemestavaumpunhal que era seu, que foramanejadopela suamão.Antônio Balduíno não tem remorsos do que fez. Zequinha foi o únicoculpado. Foi ele quem fez tudo para aquela briga. Ele o perseguiamuito.Aquilo tinha que acontecer... E se ele não viesse com a foice na mão,AntônioBalduínonãopuxariaopunhal.

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Omatoé ralomaisadiante.Atravésdas folhasonegrovêasestrelasque brilham. O céu está claro. Farrapos de nuvens brancas correm. Seestivesse ali uma mulata, Antônio Balduíno diria que os dentes dela separeciamcomasnuvensbrancasdocéu.Elepáraeadmiraocéudanoiteestrelada.Senta.Estánumaclareiraenãoserecordamaisdabriga.SedosReis estivesse ali... Mas dos Reis foi com uma família para São Luís doMaranhão.Foipelomar,numnavionegrocheiode luzes.Seelaestivesseali eles se amariam no silêncio do mato. O negro olha as estrelas. QuemsabesedosReisnãoestáolhandoestasmesmasestrelas?Estrelaestáemtodo lugar. Serão as mesmas?— pensa Antônio Balduíno. Dos Reis estávendo esta estrela e Lindinalva também.Quandopensa emLindinalva seaborrece.Porqueestápensandonela?Elaébranca,temsardasnorosto,enão dá ousadia a um negro como ele. É melhor pensar em Zequinha,estendidonobarrocomumpunhalnascostas,quepensaremLindinalvaque odeia o negro. Se ela soubesse que ele estava fugido, sem dúvidacontaria a polícia. Dos Reis o esconderia, mas Lindinalva não. AntônioBalduíno abre os lábios grossos num sorriso porque se lembra queLindinalva não sabe de nada e não poderia denunciá-lo. Fica irritadocontraasestrelasqueofazempensaremLindinalva.Viriato,oAnão,tinharaivadasestrelas.Umavez lhedissera.Quando?AntônioBalduínonãoserecordava. Viriato quase que só conversava sobre a sua tristeza de sersozinho. E um dia entrou pelo caminho domar, como aquele outro velhoquefoiretiradodaáguanumanoiteemqueoshomensdocaiscarregavamum navio sueco. Será que Viriato encontrou sua casa? O Gordo diz quequem semata vai para o inferno.Mas oGordo émaluco, não sabe o quediz.AntônioBalduíno está com saudadesdoGordo.OGordo tambémnãosabedenada,nãosabequeelematouZequinhacomumapunhaladanascostas.FaziajáquinzediasqueoGordosefora,cheiodesaudadesdaavóquenão tinhanaBahiaquem lhedessecomidanaboca.OGordoémuitobom,é incapazdedarumapunhaladaemalguém.Nuncafoihomemparaumabriga.AntônioBalduínoselembraperfeitamentedosdiasdeinfânciamendigando na Bahia. O Gordo sabia pedir esmolas como nenhum. Maspara brigar não servia. Felipe, o Belo, ria dele. Era bonito Felipe, o Belo.Quandoelemorreudebaixodoautomóvel,nodiadoseuaniversário, todomundochorou.Oseuenterropareceuenterroderico.AsmulheresdaRuadeBaixolevaram lores.Umafrancesavelhachorava.EraamãedeFelipe.E tinhamvestidonele uma roupabonita de casimira e tinhamposto umagravatanova.Felipedeviater icadocontente.Eleeraelegante,gostavadeumagravata...AntônioBalduínobrigouporcausadeleumavez.Sorriaose

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recordar do fato. Fora uma surra bonita que dera no Sem Dentes. SemDentes também viera com um canivete em cima dele e ele não puxaraarma nenhuma. ComZequinha ele puxara o punhal. Agora ele está certoque não gostava de Zequinha, que implicara com aquela cara desde oprimeirodia.Esenãofosseelequeoapunhalasse,outrooapunhalaria.Onegro Filomeno também tinha uma sede danada em Zequinha. E tudoaquiloporcausadeArminda.ParaqueZequinhaseamigoucomela?Elestinham chegado antes. Na noite da sentinela Antônio Balduíno só não alevouparacasaporqueamortanãoolargavacomaquelesolhosinchados.E o negro Filomeno não tinha amassado os peitos dela? Então para queZequinha se meteu e levou a menina? Era uma menina de doze anos, oGordosempredisse.Umameninadedozeanos.OGordoqueriadizerqueelanãoeramulherainda,quefazeraquilocomelaeraumamalvadez.MasZequinhafez,bemquemereciaumapunhalada...Éverdadequeseelenãoizesse o negro Filomeno faria oumesmoAntônioBalduíno. Sim, ele sabequenão foipor issoquecravouopunhalnascostasdeZequinha.Elaeraumameninadedoze anos...Mas elematouo capataz foi porque ele icoucomelaquandoonegroaquerianoseu jirau.Ela tinhadozeanosmas jáeramulher...Jáseriamesmo?EseoGordotivesserazão?Seelafosseumamenina e aquilo uma malvadez? Então Zequinha não faria mais, porqueestavaestendidonobarrocomumpunhalnascostas.Porémdequevaleu?AgoraonegroFilomenojáalevouparacasa,comcerteza.Essaéaleidasplantações de fumo.Mulher é bicho raro e quandouma ica semhomemencontralogooutroquealevaparacasa.Anãoserqueelapre irairparaas ruas de mulheres da vida em Cachoeira, em São Félix, em Feira deSantana.Aísimqueseriaumamalvadez.Porqueelaéumameninadedozeanos e todos a quererão. Depois ela icará velha e tomará cachaça, nãolavará mais os cabelos, seus seios murcharão, terá doenças ruins, teráquarentaanosnodiaquecompletarquinze.Talveztomeveneno.Outrassejogamnorionasnoitesescuras...Eramelhorqueela icassecomZequinha,colhendo fumo nos campos. Mas Zequinha está apunhalado... AntônioBalduínoouvevozesatravésdomato.Seaproximamaisparaouvir.Aindaé um ruído indistinto. Serão homens que passam na estrada? Mas aestrada está longe, está do outro lado, o que existe ali é uma simplespicada.AntônioBalduínoseaproximamais.Agoraouve.Oshomensestãopróximos,separadosdeleapenasporuma itademato.Sãooshomensdafazenda. Estão todos com repetições e fumam sentados na picada. Estãoatrás do negro Antônio Balduíno que apunhalou o capataz. E não sabemqueonegroestáalijuntodeles,quaserindo.Porémtremequandoouveos

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homens dizerem que ele está cercado na capoeira e que oumorrerá defome,ousairáparaserpreso.AntônioBalduínoseafastavagarosamente,evitandoos ruídos, e se internanovamentenomato.Dooutro lado temaestrada. Mas nela haverá homens também como em volta de toda acapoeira.Eleestácercado,estáacuadocomoumcãodanado.Oumorreráde fome,ouserápresocomoassassino.Osgrilos irritamcomoseuruído.NacasadeZequinhaestáhavendosentinela.EonegroFilomeno—pensaAntônio Balduíno—o negro Filomeno estará ali armado de repetição ouestará na sentinela olhando paraArminda pronto para levá-la para casa.SeelepudesseapunhalartambémonegroFilomeno...Maseleestácercadocomoumcãodanado,estáacuadonacapoeiraecomeçaasentir fomeeasentirsede...

Os pés estão doídos da caminhada. Ele poderia ter dado uma surraunicamenteemZequinha.PoiselenãoeraBaldo,oboxeur?Nãoderrubaratantos outros no Largo da Sé na Bahia?.. Sim, ele poderia ter derrubadoZequinha a socos. Mas ele viera com uma foice. O homem não briga defoicee traiçãosepagacomtraição...Por issopuxaraopunhaleodeixaracairparacravarooutronascostasdeZequinha.Equemganharacomtudoisso fora Filomeno, que agora devia estar na sentinela olhando paraArminda... Elemataria Filomeno se pudesse ir até a casa de Zequinha. Ocadáver estaria estendidono jirau coma feridanas costas. Filomenopôs,comcerteza, seupunhalno cinto edepoisporáArmindana sua casa.EledeviatermatadoeraFilomeno.Agoraestavaacuadonacapoeira,cercadodetodososlados.Senãofosseasedequesentiatudoiriabem...Masasuagarganta está seca. Não lhe importam os pés doídos, o rosto que sangrarasgadopelosespinhos,arouparetalhada,Só lhe importaagargantaquearde de sede. Gostaria de comer também. Naquelemato não tem frutas.Não é época de goiabas, as goiabeiras não têm um só fruto. Uma cobrapassa silvando. Os grilos fazem um ruído insuportável. Agora ele não vêmaisasestrelasqueomatoécerrado.Easedeaumenta.Fuma.Felizmenteoscigarroseosfósforosestavamnobolsodacalça.Quehorasserão?Meia-noitetalvez,talvezsejamaistarde.Ocigarrofazesquecerasedeeafome.Desdequandoele fuma?Nemse recordamais.AindanoMorrodoCapa-Negro ele já fumava. Apanhou por causa disto. Se sua tia Luísa o visseagora, que diria? Ela dava.lhe surras mas gostava dele. Enlouqueceu,coitada,detantocarregarmingauemunguzáparavendernoterreiro.Nafrentedasuacasa,nomorro,homenssereuniamparaconversar.UmdiaveioaquelehomemdeIlhéusquecontouhistóriasde jagunçoscorajosos.

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EhojeAntônioBalduínoestavaacuadocomosefossetambémumjagunçocélebre.SeohomemdeIlhéusovissecomcertezaoadmiraria tambémejuntaria a sua história àquelas que contava pelas noites adentro. Eletambém quisera ter um ABC. Pensava que aquele homem calvo, queapareceranamacumbadeJubiabá,escreveriaumdiaoseuABC.OGordodisse que a vida do homem calvo era escrever os ABC dos homensmaiscorajososque conhecia e quepara isso vivia correndoomundomontadonumcavaloalazão.AntônioBalduínojámereceráumABC?Elenãoosabe.Talvez que o homem de Ilhéus conte um dia a sua história a homens emeninosdeoutromorroqueoadmirarãoepensarãoemsercomoele.Ah!masseelesairdestacapoeira,ondeestácercadoporhomensarmadosderepetição, merecerá ser cantado num ABC. Quantos serão osperseguidores?Sevieramtodosdafazendafazemmaisdetrinta.Masnãovieram todos com certeza. O negro Filomeno não veio, icou lá comArminda,dizendomentiras,prometendocoisas.Eleconheceaquelenegro...Negro que quase não fala é negro ruim... Aperta a navalha. Com aquelaarmasomente,eleatacariaFilomenoseovisseagora.Diriamissotambémno seu ABC. Somente com uma navalha atacou ematou um jagunço quetraziaumarepetição.

Atira fora o cigarro inútil. Diabo, a garganta está seca, o estômagoarde,esenteumadorviolentanorosto.Passaamãoetocanaferidafeitapeloespinho.Agoraqueosanguedeixoudecorrerelaestádoendo.Éumtalhogrande,lanhoutodooseurosto.Tambémseuspéssangram,asmãosestãoemferidas.Easedequeotortura,oshomensqueocercam,osgrilosque fazemruído...Vênovamenteasestrelasagoranomato ralo. Seaindahouvesseágua.

Sechovesse...Masnãohánuvensnegrasnocéu.Somentefarraposdenuvens brancas que o vento carrega. E a lua que saiu, a grande lua alvaqueestábonitacomonunca.QuevontadequeeletemdeestarnocaisdaBahiacomoseuviolão,comaquelamulherque tinhaumavozmasculina,cantando uma valsa, uma coisa bem velha que falasse em amor... Depoisrolariamnaareiadocais,oscorposembolados...Ah!comoerabom.AquelaestrelaparecealuadaLanternadosAfogados.Beberiaumtrago,ouviriaamúsica do velho cego que canta ao violão, conversaria com o Gordo eJoaquim. Talvez até Jubiabá aparecesse e ele lhe pediria a bênção. PaiJubiabá tambémnãosabequeeleestáacuadonacapoeira.NãosabequeelematouZequinha.MasJubiabácompreenderiaepassariaamãonasuacabeçaedepois falariaemnagô.Não,elenãodiriaqueoolhodapiedadevazou,que icousomenteoolhoda ruindade...Porqueelehaviadedizer

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isso? Antônio Balduíno ainda tem bem aberto o olho da piedade. MatouZequinha,matou...Masfoiporqueeleestavaandandocomumameninadedozeanos...Umamenina,nãoeramulherfeita...QuepergunteaoGordosequiser.Umamenina, tãomeninaqueamãequandomorreutomavacontadela...PergunteaoGordo,sequiser...MaséinútilmentirapaiJubiabá.Elesabe tudo, que ele é pai-de-santo e tem força junto a Oxalá... Sabe tudocomo a velha defunta... Não, elematouporque queriaArminda para ele...Ela tinha doze anos, mas já era mulher... O Gordo não entende destascoisas... Como é que alguém pode acreditar no Gordo... O Gordo nãoentendenadademulheres,oGordosóentendederezas.EdepoisoGordoémuitobom,nãotemolhodaruindade.PaiJubiabádeveéfazerumfeitiçoparamataronegroFilomeno...OnegroFilomenoéruim,elevazoutambémo olho da piedade... Um feitiço paramatar ele, um feitiço forte que tenhacabelo de sovaco de mulher e penas de urubu... Por que será que paiJubiabá balança a cabeça? Ah! ele está dizendo em nagô que AntônioBalduínotambémvazouoolhodapiedade...Eleestádizendo,sim...AntônioBalduínopuxaanavalhacomagargantasecadesede.Se Jubiabárepetireleomatará também.Edepoispassaráanavalhanoprópriopescoço.Vê,nocéuazul,onegrovelho.Nãoéa lua,não.É Jubiabá.Eleestárepetindo,eleestárepetindo...EAntônioBalduínoseprecipitadenavalhaempunhoequasebatenosperseguidoresqueestãoconversandonaestrada. Jubiabádesapareceu. Balduíno tem sede. E volta correndo para o mato cerrado,onde não vê a lua, não vê as estrelas, não vê o cais da Bahia com aLanterna dos Afogados. Se estira no chão, estende as mãos para o ladoondeestáaestrada:

—Amanhãeumostrosenãofujo...Eusouémacho...O rosto dói e ele tem sede.Mas quando cerra os olhos dorme logo e

nãotemsonhos.

Acorda com os passarinhos que trinam. Olha tudo em redor e nãocompreende como se encontra ali e não num jirau nas plantações.Mas asedequeapertaasuagargantaeotalhoquedóinorostolembram-lheosfatosdavéspera.Eleestáacuadonumacapoeira,elematouumhomemnavéspera.Eestácomsede,umasededoida.Orostoinchouduranteanoite.Passaamãonotalho:

—EspinhovenenosoAindaessaporcaria...Ficadecócoraspensandonoquefazer.Talveztenhamdeixadopouca

gente no cerco durante o dia... O rosto dói. Tem sede. Sai de mansinho,evitando outros espinhos e evitando de fazer barulho. Agora com a

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claridadedodiaseorientamelhor.Aestradaestáàsuadireita.Maselesedirige para a picada onde deve termenos gente. Se não fosse a sede elenãose importaria.Nãosente fomeagora.Sóqueoestômagoestádoendo.Masésuportável.Asedeéqueéruim,parecequeapertaagargantacomouma corda. Não, ele precisa passar nem que seja para ser preso. Já nãopodedesede.Pode lutaratéque lhedêemumtiroqueacabecomaquilo.EngraçadoéqueninguémgostavadeZequinhaetodosgostavamdele,Maso patrão mandou, com certeza, e quem não for cercar o criminoso serádespedidodo trabalho... Se tiver gentenapicadavaihaverbriga... Ele vaimorrermaslevaráum:

—Umvaicomeu.Ri tão alto que parece alegre. E está alegre, sim, porque resolveu

acabarcomaquiloe lutarpelavida.Acoisaqueelemaisamaébrigar.Sóagoraéqueo sente.Nasceuparabrigar,paramatareumdiamorrerdeum tironas costas,deumapunhaladanopeito,deumanavalhada talvez.Os que voltarem contarão que ele morreu como um homem macho deverdade,comanavalhanamão.Equemsabesenãocontarãoaos ilhoseaosamigosahistóriadoAntônioBalduíno,quefoimendigo,boxeurfazedordesambas,desordeiro,quematouumhomemporcausadeumamenina,equemorreunafrentedevinte,massedefendendo?Quemsabe?

Deparacomapoçadeágua,bebeemgrandesgoleselavaaferidadorosto.

Água!Água!Eelequenuncatinhareparadocomoaáguaeragostosa!Melhorquecerveja,melhorquevinho,melhormesmoquecachaça.Queocerquemagora,queodeixemacuadocomoumcão.Quelheimporta!Temáguaparabeberepara lavara feridadorostoquedóieestá inchado.Seestira à beira da poça, e descansa con iante, sorridente, feliz. Durante anoite, com a escuridão, ele não vira as poças de água. São várias. Águabarrenta, suja, mas gostosa como quê. Passa muito tempo deitado,matutando. Quando fugir para onde irá? Poderá entrar pelo sertão, seacoitar numa fazenda, tratar de bois. Tem tanto assassino por aí... Se operseguissemmuitoentrarianumbandodecangaceiroseiriaviveraquelavida que ele sempre admirou. O pior é que agora está sentindo fome.Talvez encontre alguma fruta como encontrou água. Sai pelo matoexaminandoasárvores.Nãoencontranada.Maspelocorrerdodiatalvezmateumanimaleocoma.Eletemfósforo,faráfogo.Não,nãofaráfogoqueisso chamaria a atenção dos homens que estão na estrada a tocaiá-lo.Lembra-seentãodeverse icarammuitos.Tocaamãonorostoquecada

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vezdóimais.Estáfeioaquilo.Comcertezaeraespinhovenenoso.Pai Jubiabá sabe remédiosmilagrosos para feridas assim. São folhas,

folhas do mato. Ali deve ter destas folhas. Ele olha o chão. Mas quaisservirão?SópaiJubiabásabe,queelesabetudo...Chegapertodomatoqueo separa da picada. Espia. Lá estão os homens. Estão todos, nenhum foitrabalhar... O patrão está mesmo disposto a liquidar o negro AntônioBalduíno. Deu folga aos trabalhadores. Eles comem carne-seca econversam. Antônio Balduíno volta devagar. Botou a navalha no cintonovamente.Vaipensativomasderepenteri:

—Comigonãolevamvantagem...Opiorénãoteroquecomer.Edenoite icarsozinho.Elenuncateve

medo de icar sozinho. Mas hoje ele não quer. Fica pensando besteiras,vendoosmortosconhecidos,vendopaiJubiabá,oslugaresporondeandoue vendo Lindinalva. Se ele não visse Lindinalva não tinha nada. Ficatambém pensando em Arminda que deve estar amigada com o negroFilomeno.Masonegronãotemculpa.Seelenão icarcomArmindaoutroqualquer icará.Nãohámulheresnasplantaçõesdefumo.PorissoeraqueRicardo agitava tanto o jirau durante as noites. Como se arranjará eleagora que não tem mãos? Vive em Cachoeira pedindo esmola. Terámulher?Quemsabesenãoteráumaquetratedele...Elebemquemerecia,era um mulato bom, camarada para tudo... Se ele estivesse na fazendaestaria cercando Antônio Balduíno? Tem uma névoa em frente aos seusolhos. Isso é fome, ele já ouviu dizer. E sai desesperado em busca decomida...

Quandoanoitechegouelefumavaoúltimocigarroequasenãovianafrentedosolhos.Orostoinchadodoíadeenlouquecer.

Anda para o lado das poças d’água cambaleando como um bêbado.Está com o almoço da véspera, pois nemhavia jantado na hora da briga.Vai cambaleandoevãocomelemuitosconhecidos.Onde foiqueeleáviuaquelehomemmagroqueestágritando:

—QuedêBaldo,oderrubadordebrancos?Está gritando e está rindo.Onde foi que ele o viu?Agora se recorda.

Foi naquela luta de boxe contra umalemãoque ele batera. Sorri. Já umavezaquelehomemdisseissoenoentantoelevenceraobranco,odeixaraestendido no tablado. Poderá atravessar o cerco também e alcançar aliberdade.MasporqueéqueoGordoestá rezandoaoraçãodedefunto?Elenãomorreuainda...Porqueentãotodosrespondem?

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“Oraiporele.”

Por que respondem?Não vêemque aquilo fazmal ao negroAntônioBalduíno que está com fome e traz no rosto um talho feio onde osmosquitospousam?Continuam.AntônioBalduínodeitoujuntodeumapoçad’água. Bebeu.Depois icou olhando o cortejo que o acompanha. Estendeasmãos.Estápedindoqueelesseafastem,queodeixemmorrerempaz.

—Vãoembora!Vãoembora!Elesnãovão.AvelhaLaura,mãedeArminda,chegounestemomento.

Veiocomosolhos inchados,ocorpo inchado,a línguadefora.Ficourindodele.

—Váparaoinferno!Váparaoinferno!Levanta. Vão todos atrás dele. Até o Gordo que era tão seu amigo.

Jubiabádizqueelevazouoolhodapiedade.Éverdadesim,éverdade.Masqueodeixemempazquejávaimorrerequermorrercomoumhomemeassimnãopode,eassimnãopode.

Rezamasoraçõesdedefuntos...Eletropeçanumaraizecai.Deixou-se icarestendido.Equandose levantatrazumaresoluçãono

olhar.A estrada está à sua direita. Marcha para lá a pés irmes. Vai ereto

como se não tivesse fome, como se há dois dias não estivesse sem vervivos,vendofantasmassomente,elevaanavalhanamão:

—Umvaicomeu...Porém a sua aparição súbita na estrada põe os homens atônitos. Ele

ainda tem força para derrubar umque está na sua frente. E atravessa ogrupocomanavalhabrilhandonamão.

Desaparecenaescuridão.Ouvem-setirosaoacaso.

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Vagão—Játavacriandobicho.OvelhotratavadorostodeAntônioBalduíno,queincharacomotalho

eapareciadisformeevermelhocomoumamaçã.Botouemcimadaferidaervasmisturadascomterra.Jubiabáfariaomesmo.

—Obrigado,meuvelho...Vocêébom...—Vaifecharnuminstante.Essafolhaésanta,fazmilagre...Onegro chegaraali extenuadoda corridapelamataquemargeavaa

estrada, fugindo das plantações de fumo. O velho morava num casebreimundo, perdido no mato, com uns pés de mandioca na frente. Deu-lhecomida,deu-lhecama,tratoudaferidaedepoisexplicouqueZequinhanãomorrera por um triz, mas que o patrão queria pegar Balduíno para darumasurraqueficasseparaexemplo.

AntônioBalduínoriu:—Comigofiafino,meutio...Eutenhoocorpofechado...Bebeuumcanecodeágua:— Agora vou me botar no mundo Se um dia puder lhe pago, meu

velho.— Se botar no mundo pra quê? Assim o talho não seca, homem de

Deus... Pode se arriar... Fique acoitado aqui... Ninguém descon ia, eu souhomempacato...

Antônio Balduíno icou três dias esperando o talho fechar. Comia dacarnedovelho,bebiaasuaágua,dormiunoseujirau

Despede-sedovelho:—Vocêébom...Toma o leito da estrada de ferro. Quando chegar a Feira de Santana

arranjaráumcaminhãoqueolevaráparaaBahia.Evaifelizporcausadaaventura que teve, da luta que sustentou, do cerco que furou. Ele éinvencível...Éohomemmaiscorajosodaquelasbandas.Alinocéuestãoasestrelasque foramtestemunhasdecomoele lutou.Eseoshomensqueocercavamnãotivessem icadoapalermadoscomasuacoragemelelevariaumconsigoparaasestrelas,paraograndecéuazul.Brilharialácomasuanavalhanamão... Seria visto por dosReis, pelamulher de vozmasculina,por Lindinalva, e possivelmente seria descobertopeloGordoque semprequis terumaestrela...EnganariaMestreManuelquehaviadepensarqueera a luz de um saveiro que queria pegar corrida com o Viajante semPorto... OuviriaMaria Clara cantar seus sambas. Tudo isso aconteceria se

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os homens não tivessem icado besti icados quando ele apareceu naestradacomanavalhanamãoeumtalhonorosto.Cairiamemcimadeleeele levaria um. Talvez furassem todo o seu corpo com tiros... Mas oshomens quemorrem lutando e que levam um consigo viram estrelas nocéuetêmumABCnaterraquecantaosseusfeitos...Eleseriaumaestrelavermelhacomumanavalhanamão. Jubiabásempredissequeoshomenscorajosos viram estrelas... E o negro Antônio Balduíno solta a suagargalhadaquesilenciaosgriloseassustaosanimaisnastocas.Umcheirode folhas se espalha na noite silenciosa. Passa um vento que anunciachuva.Asfolhassedobrameexalamperfume.Maisadiantenaestradaháqualquer coisa negra e uma lanterna que brilha. Vozes de homensdiscutem.Éumtremqueparou.NaturalmentelevaparaFeiradeSantanaospassageirosdonavioquechegouhojeemCachoeiravindodaBahia.Oshomensexaminamumaroda.AntônioBalduínocontornapelooutroladoechegapertodeumvagãode carga. Seaportaestiveraberta iráde trem.Empurraa largaportacomtodaa forçaeela cede.Estáaberta, sim.Pulacomopulamosanimais,rápidoesutil.Fechaaportapordentroesóentãonotaqueamedrontouunsvultosqueseescondemnofundodovagãoentreosrolosdefumo:

—Ué,gente...Eusoudepaz...Tambémnãogostodepagarpassagem.Eri.

Amulher estava grávida. A barriga ainda não estofaramuitomas senotava perfeitamente a gravidez. Um dos dois homens era velho esegurava um bordão. Fumava quase dormindo. Na escuridão do carroquandoabrasadocigarro iluminava,obordãopareciaumacobraprontaparaobote.Ooutrovestiacalçasdesoldadoeumpaletóvelhodecasimira.Não tinha barba mas tentava ostentar um bigode com raros ios quenasciam em cima do lábio. Passava constantemente a mão no bigodeimaginárioenquantoconversava.“Ummenino”,pensouAntônioBalduíno.

O trem estava parado, era por isso que eles se conservavam emsilêncio.Houveraumdesarranjoqualquer,coisacomumnaquelestrens.Eeleshámeiahoraqueseconservavamemsilêncioesperandoqueo trempartisse.Asvozespoderiamserouvidasláforaeochefedotremhaviadeencrencarcomaquelesviajantesclandestinos.OvelhoabriuoolhoedisseaAntônioBalduínoquandoelefalou:

— Cala o bico, negro, se quiser viajar... Se não jogam a gente aí naestrada.

E mostrou com os olhos a mulher grávida. Antônio Balduíno icou

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pensandoseele seriaomaridooupaidela.A idadeeradepai,masbemque podia ser marido. Calcule aquela mulher com a barriga grandeandandoapéparaFeiradeSantana.Pariaantesdechegar lá...Eonegroriu baixinho. O rapaz com calças de soldado olhava para ele. E torcia obigode.Parecianãoestarmuito satisfeito comoaparecimentodeAntônioBalduíno.Foiquandoouviramvozesque seaproximaram.Erao chefedotremqueexplicavaaospassageirosdeprimeiraclasseoatraso:

—Umdesarranjotolo...Agoravamosembora...—Masperdemosquaseumahora...—Issoaconteceemqualquerestrada...—Estaéumaesculhambação...Logodepoisumapito, ino,prolongadoedolorosoanunciouapartida.

Mesmo escondido no vagão de portas fechadas Antônio Balduíno deuadeus.

—Deixasaudades?—perguntouovelho.—Sósefordascobras—riuonegro.Masbaixouacabeçaefalousemolharninguém:—Umamenina...Umameninamesmo...—Bonita?—fezorapaztorcendoobigode.—Cutuba,menino...Pareciaatédacidade...—Evocêdeixouela?—Elaeradeoutro...Eelenãomorreu...—Euseideumhomemqueroubouumamulher—contouovelho.— Eu sei de um que deu uma facada noutro por causa de uma

bruaca...Depoispassoudoisdiascomfomeescondidonomato...—AntônioBalduínocontavasuaprópriahistória.

—Commedo?—Cala aboca,menino... Tu sabedenada... Ele tavamas era cercado

detodojeito...Sequerverseeleéhomemounãoteatiraemcimademim.—Entonce...foivocê?...—eorapazolhoucommaisrespeito.Amulherguardavasilêncio.Mas,quandoelagemeu,ovelhodisse:—Bemqueohomemdisseque issoeraumaesculhambação... Sena

primeiraclasseéassim,pobredenósqueviajadefavor,escondido.— Eu paguei dois mil-réis ao rapaz das malas pra me pôr aqui —

gemeuamulher.— Quando eu era soldado viajava de primeira classe e gratuites—

vangloriou.seorapaz.—Deprimeira?—AntônioBalduínoduvidava.—Deprimeira, simsenhor...Entoncevocênãosabequesoldado tem

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regalia...Vocêmoranessecu-de-judas,nãosabedenada...—Eunãosoudaquinão, faxineiro...Eutouaquiédepasseio...Sópra

me divertir... Eu nasci foi na Bahia. Você já ouviu falar num lutadorchamadoBaldo?Poiséesseseucriado...

—Ah!évocê?EuvivocêbrigarcomChicoMoela...—Foiumasurraboa,nãofoi?—onegrosorriu.—Foibraba,foi...Eeunãopagueientrada...Soldadotemregalia.—Eporquevocêlargouafarda?—Terminoumeutempo...Edepois...Ovelhoabriuoolho:—Oquefoiqueteve?—Umcabo...Sóporquetinhaumadragona...Caboemerdaéamesma

coisa...Maselepensavaquenão...—Embirroucomvocê—ovelhoapoiavaobraçonobastão.—Foimesmo...Amulatagostavaerademim.Elepegoufezintriga,eu

sóvivianachave...Tudopraeunãosairnosdiasdefolga...Vávercomotáacaradele...

—Tougostandodevocê,menino...Quantosanosvocêtem?—Dezenove...— Tu não viu nada ainda, menino... Eu tou cansado da vida —

amargurou-seovelho.—Cansado,meupai,porquê?—interrogouAntônioBalduíno.— Menino, eu já fui tudo, eu já corri isso tudo. Aqui todo mundo

conheceAugustodaCerca...DaCercaporcausadeumabrigaqueeutive...Oquefoiqueganhei?...Doençasó...Maisnada...

Oex-soldadoofereceucigarros.AntônioBalduínoacendeuum.Na luzdo fósforoviuorostodamulherqueespiavaocéupela frinchadaporta.Ela tinha um ar cansado de quem já viveu muito. O velho continuava afalar:

— Eu já tive muito gado que trazia para Feira de Santana... Ummundãodegadodeencheroolho...Játiveroçadefumoantesdosalemãesvirparaaqui...Játiveterra...Muitacoisa,mesmo...

Parou.Parecequeestádormindo,masvoltaafalarcomavozabafada:— Eu já tive até família... Parece?... Nem parece... Mas eu tive duas

ilhasqueatéboteinocolégio.Eraumasgracinha...Tomaramtudo,ouviu...Tudo.Ogadosefoi...Umbrancobotoufeitiçonuma,carregoucomelanemseipraonde...AoutraviveaíemCachoeira,parecendoumadoidacomoscabeloscortados,fazendoavida...Essaeuseiondetáeaoutra?

Amulherdesviouosolhosdaporta:

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—Vosmecêtemmuitaraivadasmulheresdavida?—Umasperdidas...Tudodecabelocortadoevermelhãonacara...—Vosmecênãosabeoqueéavidadelas...Vosmecênãosabenada...O

queéquevosmecêsabe?Ovelhoficouatrapalhado.Entãooex-soldadofalou:—Eujátiveumaamantequeeramulherdavida.Elafaziaavidaaté

meia-noite,depoiseuiapracasadelaeficavaatédemanhã...Erabom...—Evocêporquetáfalando?—Eunãotavadizendonada...—Não tava...— fez amulher com raiva.—Vocês falam sem saber...

Falaporfalar...EuqueestouaquisónãomorridefomenestavidaporqueDeusnãoquis.

Antônio Balduíno icou espantado dela estar grávida. Mas nãoperguntounada.

Ovelhoabriuosolhosedisse:—Eu não digo nada, Deusme perdoe. Emesmo se não fosseminha

ilhadequeéquevivia?Éelaquemesustenta...Eelamerespeitamuito,issosim...Quandoeuvou lábotaoshomenspara fora...Seelanão tivessecortadoocabelo

Amulherriu.AntônioBalduínofalou:—Avidadepobreévidadesgraçada...Pobreémesmoqueescravo...Oex-soldadocontou:—Euconheciumcaboquediziaomesmo...—Eraoquetomousuamulher?—Não. Era outro. E Romão não tomou ela, não... Ela gostava era de

mim...—Masandavaeracomooutro...—riuBalduíno.—Vocênãoconheceuela...Erabonitadeverdade...Nãotinhamulher

quechegassepertodela...O trem parou numa estação. O silêncio voltou ao vagão. Homens

caminhavam perto, do lado de fora. Alguém disse: “adeus, adeus E outrapessoa:“dêlembrançasaJosefina”.Pertocochichavam:

—Vocêvaiseesquecer.Eraumavozdoídademulher.Umhomemprotestavaquenão,quenão

esqueceria.—Nãovádeixardeescrever...Umbeijoeoapitodamáquinacortandoasdespedidas.Agoraoruído

dasrodasnostrilhos.Oex-soldadoexplicou:—Amáquinaestádizendo“voucomDeus,voucomoDiabo”.Olhesó

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comoéigualzinho...—Parecemesmo...—Foiminhamãequemedissequandoeueradecolo.Outramáquina,

uma grande que carregavamuito carro, fazia diferente. Era assim: “cafécomleite,pãocommanteiga”.Igualzinho,nãoé?

Ficouserecordando.—Vocêtemmãe?—perguntouamulher.—Vou icarcomela...Elachorouquandoeuengajei...Vocêsabecomo

é mulher... A velha pensa que eu ainda sou menino... — e retorcia umbigodequenãoexistia.

— Tudo é o mesmo — disse a mulher. — Você viu — se dirigia aAntônioBalduíno—aquelaque tavana estaçãopedindoaohomemparaescrever?

—Euouviconversando...Nuncamaiselavêele...Eutambém—ecalou-se.—Oquê?Ovelhoabriuosolhos.—Nada...Besteira...—começouaassoviarumamúsica.—Essemundoéruim—cuspiuovelhocomraiva.—Nósnascepra

sofrer.— A vida é boa, velho... Você fala porque tá incongruado... — o

ex.soldadoriu.—Avidaéboapraquemtemdinheiro—afirmouamulher.—Entãotutemumamãe?—perguntouAntônioBalduínovirando-se

para o soldado.— Eu nunca vi minha mãe. Minha tia maluqueceu... E oGordotemumaavó...

—QueméesseGordo?—Umsujeitoquevocênãoconhece.Umsujeitobom..—Bom?—escarneceuovelho.—Nãoháninguémbom...Queméque

ébomnessemundo.—OGordoébom...Mas o velho parecia dormir novamente. Foi a mulher quem

respondeu:— Tem gente boa, sim... Pobre é que é desgraçado de nascença... A

pobrezafazagenteruim.O trem vai rápido. O ex-soldado se estendeu no vagão. Ele está

espiandoorostodamulher.Elaestámuitoenvelhecidaeabarrigajáestáfeia.

MasassimmesmoAntônioBalduínopercebeosorrisonosseuslábios.Elaolhaocéupelafrinchadaporta:

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—Éapobreza, sabe?... Épor issoque eunão amaldiçôo ele... Elemedeixoudebarrigão.

—Seumarido?—perguntouoex-soldado,gentil.—Eusoumulherdavida...Nuncafuicasada...—Pensei.—Oqueéqueelepodiafazer?Elenãotinhadinheiromesmo...Comoé

que ia criar o ilho... Fugiu de noite como um ladrão... Deixou as coisastodasláemcasa...Eeuseiqueelegostavademim...

—Fugiu?Quandoviuquevocêiaparir?—Foi...Eu tinhadeixadoavidaparamorar comele, sabe...Eu icava

lavandoroupa,agenteatépareciacasada...Eleerabom...Erabommesmo...Podiaestarnumaltar...

—Vocêgostavadeleumpedaço...— É verdade que eu tou dizendo... Era um santo... Um dia eu falei

muitoalegrequeiaterum ilho...Ele icouassimfeitobestacomacaranoar...Depoisriumuito,mebeijou...Eratudotãobom...

—Eu tenhoumanamoradanaminha terra— falouo ex-soldado.—Elaéumatentação.Nósvaisecasarumdiadestes.

Quemovisseagoradiriaqueeleestavamorto.Comosolhosfechados,abocasorrindo,obelorostoredondofelizcomoodeummorto.

Amulherbalançouacabeça.Elaviveumuitocomcertezaporquetemum ar de cansado no rosto ainda jovem. E agora ela tem pena do ex-soldado. Ele é tão bonito e viveu tão pouco. Ele vai casar... Mas AntônioBalduínoperguntou:

—Edepois?...Elacontinua:— Foi porque ele era pobre... Mal a gente vivia num buraco... O

dinheiro,dele, juntocomoqueeuganhava lavandoroupa,nãodava...Foiporisso.

Ela está com pena do ex-soldado que levantou a cabeça no braço eescutaansioso.

—Elenumanoite arribou.Eunemvi...Deixouas coisas todas, soubequefugiuparanãoverdepoisomeninopassarfome.

—Eagora?—Dizque ele tá em Feira de Santana trabalhando. Eu vim pra junto

dele.O soldado está triste. Ele agora pensa em dinheiro para sustentar a

mulherquandocasareosfilhosdepois:— Mas ela é tão bonita... E depois eu trabalho. Não tenho medo de

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trabalho.Amulheroanima:—É,sim...Maseleestáduvidando,todosvêem.AntônioBalduínodizàmulher:—Euvouserpadrinhodeseufilho...—Eu izumatoucaparaele...Umavelhadeuunscueirosvelhos...Esó

oqueeletem...Jánascesofrendo...Oex-soldadofalou:—émelhornãocasar...Tãobonita...AquiéaEstaçãodeSãoGonçalo.Saltampassageiros.Acidadedorme

cheia de jardins. O barulho do trem acordou uma criança numa casapróxima.Ouve.seochoro.Amulhersorri,feliz.

— Agora vai ser bom para você— diz Balduíno— vai ter um... Denoitechora...

—Queroquesejamenino.Comoapitodotremqueparteovelhoacordou:—Temgenteboa,sim...Eutavamentindo...Minha ilhaéboa...Eutou

falandodeMaria...Zefa,não..Elaéruim...Nuncadeunotícia...Quemsabesemorreu?MasMariaéboa,medádinheiro...Sóquebrigaporqueeubebo...MaseubeboéporcausadaZefa,quenãoseiondeestá...Mariaéboa...

Eovelhodescambanovamenteacabeçaevoltaadormir.Oex.soldadofalaparaamulher.

— É pancada, tá se vendo... Entonce você quer um menino? Eutambémqueroummeninoquandocasar...Dizquetemhomemquesofreasdoresquandoamulherpare...

Estánovamentefelizeolhaamulhersemnenhumdesejo.Seucoraçãoestápuro e elepensa comuma ternura imensa emMariadasDoresqueestá em Lapa a esperá-lo. Sorri porque pensa na surpresa dela ao vê-lo.Quepenaqueobigodenãohouvesse crescidomesmo...Está tãopequenoainda...Elanoprimeiromomentonãooreconheceria...

—Seráqueelavaimeconhecer?—Quem?—seespantaAntônioBalduíno.—Nada.Toupensando...O velho acordou. Treme de frio. Volta o vento que anuncia temporal.

Envolveotremquebalançanostrilhos.—Essadesgraçaacabavirandocomagente—falaAntônioBalduíno.— Pobre tem que sofrer... Uns nasce pra gozar: são os ricos. Outros

prasofrer:sãoospobres.Issoéassimdesdeoprincípiodomundo.Agoraéoex-soldadoquemdormefeliz.Roncasurda-mente.Nãoouve

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oventoquepassaassoviando.—Vai terchuvagrossa...—ovelhosearrastouatéaportaporonde

espia.—Euvimdeum lugar,meu tio, ondeopovo eramuitodesgraçado...

Ganhavadeztãopordia...—Nasroçasdefumo?—Alimesmo,velho..— Tu não sabe, negro... Eu sou velho aqui... Já vi coisa de arrepiar...

Quersaber?—háumbrilhoestranhonosseusolhoseeleafastaobordãoparaselevantar.—Pobreétãoinfelizquequandomerdaderdinheiro,cudepobreaperta.

Antônio Balduíno riu. O velho não se equilibra e rola em cima dosfardosdefumo.Amulheracode:

—Semachucou?Osoldadoronca.Amulher icoupróximadeAntônioBalduínoedizem

vozbaixa:—Eunãodissesópraelenão icartriste...—apontaoex-soldado.—

Mas pra falar direito eu nem sei por que foi que Romualdo foi embora.Talvezporcausadepobrezamesmo...Euéquepensoassim...Umamulherládejuntodissequeelefoiporcausadeoutra,umatalDulce...Esefoi?—alteiaavoz.—Masnãofoi,não.Elenãoiamedeixarassim.

Osoldadodormefelizcomoummorto.—Assim...Comumfilhonabarriga...Masparaquefoiembora?...Antônio Balduíno risca um fósforo e na luz vê que a mulher chora,

sacudindo os ombros. O negro ica confuso, procura o que dizer emurmura:

—Nãoseimporte...Vaiserummenino...

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CircoO encontro com Luigi fora inteiramente casual. Antônio Balduíno

passaraorestodanoitevagandopelacidade.Oex-soldado tomara logoaestradapara Lapa, o velho tinha onde icar e amulher foi procurar umaamiga.PelamanhãAntônioBalduínotratoudearranjarumcaminhãoqueolevasseàBahia,degraça.Chegouparapertodeumquecarregavaefoidizendoaochofercomoquemnãoquerianada:

—VaipraBahia,mano?— Vou sim — respondeu o chofer que era um mulato esguio e

sorridente.Quermandarumaencomenda?— Queromas é mandar esse negro que tá aqui— e batia no peito

rindo.—Xi!QueaBahiatádanadadeboaagoracomasfestas,rapaz...AntônioBalduínoacocoroujuntodochofer,aceitouocigarro:— Eu ando com uma saudade, mano... Faz quase um ano que vim

embora...Ochofercantou:

“ABahiaéboaterra,elaláeeuaqui..”

—Nãodiga...ABahiaéboamesmo...Tousecopravoltar.—Querirhojenocaminhão?Euvoudepoisdabóia...—Maséquetoulimpo,rapaz...—Asmulheresgastouaseconomia...—riuochofer.—Quemsabe?—eBalduínopiscouoolho.—Nãotemnada...Eutousemajudante...Vocêvainolugardele.—Tácerto.—Seeutiverdefazerforçavocêajuda...Quehorasaimesmo?—Depoisdabóia...Umahora,horaemeia.—Entãoatéjá...—Paraondevai?—Vouverosamigos.—Umahoraaqui...—Tácerto...Antônio Balduíno icou passeando pela cidade. Não tinha nenhum

amigo a visitar mas não queria que o chofer soubesse que ele não ia

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almoçar. Porém, jantaria na Bahia, ou com o Gordo ou com Joaquim oumesmocomJubiabá. Iapensandonestascoisasenomeiodearranjarumcigarroquandoouviuumgrito:

—PerlaMadonna!ÉBaldo.Voltou.se.NasuafrenteestavaLuigicomumaroupamuitosovadaeos

raroscabelos:—Luigi...Luigipegounosseusombros,virou-oemtornodesiedissealegre:—Magnífico...—Queéquevocêtáfazendoaqui,Luigi?—Ventosmaus,menino...Ventosmaus...—Quediaboéquetemoventocomisso?—Depois que você desistiu da carreira, Baldo, nuncamais as coisas

correrambemparamim...Olhavaonegrocomtristeza:— Uma carreira tão bonita que você estava fazendo. Uma pena...

Largouderepentesemdizerparaondeia...—Fiqueidanadocomaquelasurra...— Besteira... Besteira... Qual é o lutador que não apanha uma vez?...

Demaisvocêestavabêbadocomoumporco...—Masquediabovocêtávendoaqui,Luigi?Temalgumlutadornovo?—Lutador?Nuncamaisapareceumcomovocê...AntônioBalduínoriusatisfeitoedeuumsoconopeitodeLuigi.—Nuncamais...Agoraestoucomumcirco...—Circo?—Umnegóciodesgraçado...Nemlheconto.Entraramnumbotequim.Luigipediucafé.AntônioBalduínodisse:—Pedeunscigarrospramim...Touanenhum,Luigi...Sabia que com Luigi podia conversar francamente. Lembrou-se de

qualquercoisaedisse:—Vocêfoioúnicoquenãomeapareceuquandoeuestavacercadona

mata,quasemorto.—Masseeunãosabia,menino...Comofoi?...—Nada...Eu tavaeracom fomeequasemorto.Vi todomundo, sabe,

Luigi... Vi todo mundo que vinha me aporrinhar cantando coisa dedefunto...Sóvocênãoveio...

Luigiaindanãotinhacompreendidodireito.AntônioBalduínonarrouabrigacomZequinha,afugapelamata,asvisões.Falousombriamente,semdetalhes,porqueestavadoidoparasaberdonegóciodocirco:

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—Quenegócioéeste?Luigibalançouacabeçatristemente:—Umnegócio da desgraça... Quando você foi embora, eu iquei sem

teroquefazer...—Ficounamão..— Issomesmo. Foi quando apareceu por lá um circo... Grande Circo

Internacional. De um patrício meu, chamado Giusepe... Fez dinheiro naBahia.Maseletavamuitoatrapalhado,devendooquenãotinha.Eupeguei,entrei para sócio... Um sócio desgraçado... Temos andado por todos osburacos... Per la Madonna! O circo não dá nada... Tem um despesãocachorro...Dinheironãoentra.Estáquasefalido.

Luigiabanouasmãosecontoudetalhes.AntônioBalduínodisse:—Táodiabo...MasLuigimirava-onovamenteefalava:—Maseu tenhouma idéiaqueé capazdemudaras coisas... Preciso

devocê.—Demim,velho?Eununcafuiartistadecirco.—Tambémnãoerajogadordeboxeeeutefiz...Sorriam ambos relembrando os tempos passados. E quando se

levantaram da mesa do café, Antônio Balduíno estava contratado peloGrandeCircoInternacionalcomolutador.Onegropassoujuntodochofereavisou:

—NãomebotomaisparaaBahia,mano.—Asmulhernãodeixa...—riuochofer.—Quemsabe?—eonegropiscouoolho.O contrato verbal que izera com Luigi a irmava que ele teria casa,

comidaedinheiroquandohouvessedinheiro.Masdinheiroera coisaquenãofaziafaltaaonegroAntônioBalduíno.

A tabuleta ainda estava estendida no chão. Lia.se em grandes letrasazuis:

“GRANDECIRCOINTERNACIONAL”

EaoladodatabuletaGiusepedormiacomoumporco.Luigiavisou:—Tábêbado...Andasempreassim...Empurrou-ocomopé.Elemurmuroupalavrasincoerentes:— Peço silêncio... É hora do salto mortal... Uma palavra e o grande

trapezista...perderá...a....vida...Homensabriamburacosnochão.Outrosmontavamasarquibancadas.

Trabalhavam todos, artistas, empregados, mata-cachorros. Luigi levou o

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negroAntônioBalduínoparasuabarraca.EaprimeiracoisaqueonegroviufoioseuretratoemposiçãodelutadorcomosaíranumjornaldaBahia.

Luigi arriou-se em cima da cama (que não passava de um divã quetambém entrava em cena com oHomem-Cobra) e continuou a explicar aAntônioBalduíno:

— Cinco contos pra quem ganhar... Não aparece ninguém, você vaiver...

—Mastemqueterlutasenãoopessoalficadanado...—Masquemdissequenãotem?Agentecontrataumsujeitoqualquer

porvintemil-réis.Nãofaltaquemqueira.Vocêdáumasurramestre.—Eseaparecerumsujeitometido,dispostomesmoabrigar?.—Aparecenada...—Eseaparecer?Luigiapontouoretratonaparede:—Vocênãoémaislutador,rapaz?Antônio Balduíno fez que sim com a cabeça. Passou a mão sobre o

retrato,assoviou.Luigicomentou:—Vocêjátemsaudades?Entãoestáenvelhecendo...—Naqueletempoeunãotinhaessetalhonorosto...—Issoébompraimpressionar.Batiamnaporta.Luigiabriu.Eraumamulherzinhaquevierareclamar

osalárioatrasadodemêsemeio:—Assimnãotrabalho...Nãocontecomigoamanhã...—Amanhãvocêrecebe,mulherdeDeus...—Tododia isso, tododia isso“Amanhãvocêrecebe...”Hádoismeses

quenãoouçooutracoisa...Toucansada...Nãocontecomigoamanhã....—Mas amanhã recebemesmo... Vocênão sabeoquevai acontecer...

— Virou para Balduíno: — Esta é Fi i, a trapezista... Ela está um poucozangada...

Amulherzinhaolhouparaonegro.—EsteaquiéocélebreBaldo...Vocêjáouviufalarnelecomcerteza...Amulhernuncatinhaouvidomasbalançouacabeçadizendoquesim.

Luigifalavadepressaparaimpressionaramulher:—Poisé...Omaior lutadordoBrasil...NoRionãotevehomemquese

agüentasse com ele... Chegou hoje da Bahia que eu mandei contratar...Tomouumautomóvel,sebateuparaaqui...

Amulherdesconfiava:— Com que dinheiro você contratou este fenômeno, Luigi? Está me

cheirandoqueéfalso...Comocoisaqueeujánãoviestenegroguiandoum

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caminhãoaqui...Olheaqui,rapaz,sevocêdeixouocaminhãopensandoquevaiganhardinheiroestáenganado...Dinheiroécoisaquenãotemaqui...

Deu um repelão no corpo e se dirigiu para a porta. Mas AntônioBalduínofoimaisrápidoepegou-lhenobraço,comraiva:

— Pere aí, dona... Eu sou lutador mesmo... Fui campeão baiano detodosospesos.Távendoaquelealinaparede?Éesseseucriado...

Amulherolhoueseconvenceu:— Se é assim... Mas por que veio se meter aqui? Aqui não tem

dinheiro...— Vim para servir um amigo... — bateu no ombro de Luigi — um

amigocerto...—Ah!sóseforassim...—Eamanhãvocêvaiverdinheiroarodo...Amulherseconfundiaemdesculpas:—Temumchoferqueéversuacara...Igualzinho...Daportaaindasorriu.AntônioBalduínoolhouparaLuigi:—AquelaconversadeRionãopegou,mano...Luigiredigiaoanúncioparacircularnodiaseguinte.Balduíno liapor

cimadosombros:— Meu nome eu quero em letras bem grandes. Aquelas deste

tamanho.Eabriaosbraçosmostrandootamanho.

Giusepe quando icava bom dos porres tornava-se ativo e resoluto.Parecia que ia salvar tudo, resolver a situação di ícil do circo, pagar ossaláriosdosartistasedosmata-cachorros.Masasuaatividade icavanosgestos,naspalavrasqueelegastavacomlargueza:

—Vamosverisso!Istonãoanda!Essegalinheirojádeviaestardepé.Euquemeafobe.Semmimissonãovaiparadiante!

Equandoumartistareclamava:—Tambémvocêsósabepedirdinheiro...Eaartenãovalenada?No

meu tempo a gente trabalhava pela arte, pelos aplausos, pelas lores.Flores, está ouvindo? Flores... Eram asmoças que jogavam lores. Lençosbordados... Eu podia ter uma coleção se quisesse... Mas eu não ligo paraestas coisas. Naquele tempo se pensava na arte. Um trapezista era umtrapezista...

Virava-separaFifi:—Umatrapezistaeraumatrapezista...Atrapezistaficavacomraiva.Elecontinuava:

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—Hojeoqueéquesevê?Umatrapezistacomovocê,queatédáparaacoisa,sófalaemdinheiro,comoseaspalmasnãovalessemnada.

—Eunãocomopalmas...—Maséaglória...Nemsódepãoviveohomem.FoiCristoquemdisse.—Cristonãoeratrapezista...— Hoje... No meu tempo, não... Palmas, lores, lenços, lenços,

compreendeu,tudoissotinhaoseuvalor...Vocêquerdinheiro,nãoé?Poisbem,amanhãteráseudinheiro...Pagareitudo...Tudo...

Masterminavasemprepedindo:— Você sabe, Fi i, que a gente tá mal... Que é que eu posso fazer,

desgraçado demim... Eu sou um artista velho... Corri a Europa toda... Eutenhoosálbunslánabarraca...Agoraestouaquimasmeconformo...Vocêpensaqueeutenhodinheiro?Sótenhodívidas...Tenhapaciência,Fi i.Vocêéumameninaboa..

—Mas,Giusepe,eunãotenhomaisroupa.Osaioteverdejáestáumavergonha.Nãopossoaparecermaiscomele...

—Garantoqueoprimeirodinheiroquearranjaréparavocê.E saía para dar ordens inúteis, reclamar contra o serviço atrasado,

olhar tudo que Luigi tinha feito, discordar de tudo e terminar numbotequim, contando aos desconhecidos, que pagavam cachaça, as suasglóriasdetrapezista.

Naquela noite, quando voltava cambaleando para a barraca do circo,depoisdetermarcadocomumcarvãoatestadeváriosmeninosparaqueentrassem de graça no espetáculo, encontrou Antônio Balduíno queaparentava.olharasestrelasenquantoespiavaparaabarracaondeestavaRosendaRosedá,abailarinanegra,onúmerodemaiorsucessodoGrandeCircoInternacional.Eraqueàluzdavela,eleviraanegraquecomeçavaamudarderoupaemostravaumascostasquenemveludo,Onegrocantavaumdosseussambasdemaiorsucesso:

“Minhamulataédeveludo.Chegaatéaarrepiar.

Quando viu queGiusepe vinha fez que olhava as estrelas. Qual seriaLucas da Feira?Uma vez haviam lhemos trado a estrela que Zumbi dosPalmarestinhavirado.Maselanãoestábrilhandoaqui.SóbrilhanaBahia,nasnoitesdemacumba,quandoosnegrosfestejamOxossi,odeusdacaça.Ele toma conta dos negros, brilha quando eles estão alegres, se apagaquando eles estão tristes. Teria sido o Gordo quem lhe contou aquelahistória? Não, foi pai Jubiabá, numa noite no cais. Se fosse o Gordo ele

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botaria umanjo na história. Pai Jubiabá é que sabia coisas de Zumbi dosPalmares e de outros negros grandes e valentes. Bem que ele pode daroutraespiada,agora,paraabarracadeRosendaRosedá,porqueGiusepevem cambaleando tanto que não chegará tão cedo. Mas não é que eladesapareceu e apagou a luz? Se não fosseGiusepe—aquele bêbado!—ele a teria visto nua. Era um peixão... Podia não haver dinheiro, masenquantoela icassenocircoAntônioBalduíno icaria...Quenegrabonita...AquilonaLanternadosAfogadosseriaumsucessodanado.Ficariamtodosdequeixocaído.

Giusepe chegou. Quando quis cumprimentar o negro, quase perde oequilíbrio.

— Estou cansado... Esse trabalho aqui me mata. Trabalho como umcachorro...

—Tásevendo...Elepassou.Levoupertodemeiahoraparachegaràsuabarraca.— É capaz de tocar fogo na barraca quando riscar o fósforo para

acender a vela — pensa Antônio Balduíno que se aproxima. Mas ele jáacendeu a vela e agora está sentado perto de uma mesinba de pérebentado. Em cima estão uns livros ricamente encadernados, masestragadospelotempo.Acuriosidadeabsorveonegroqueespiacomoumladrão. Que haverá naqueles livros para Giusepe acariciá-los com tantoamor?Está fazendoomesmoqueonegro faz coma carnedas coxasdasmulatas.Passandoamãomuitodeleve,comcuidado,luxuriosamente.Masele se virou e Antônio Balduíno viu os olhos. Tem sujeitos que quandobebem icamassimtristes.Outros icamalegres, riemecantam...Mas temos que icam tristes e dão para chorar. Giusepe é dos que icam tristes.Antônio Balduíno não resiste e entra na barraca de Giusepe que icoutristedetantobeber.

Foi na Itália e era na primavera. Aquele ali no álbum, o de bigodões,eraseupai.Todaasuafamíliativeracircos.Nafotogra iamaisvelha,aqueestá amarelada pelo tempo, aparece o seu avô fardado. Não era general,não... Era donode um circo... OGrandeCirco Internacional...Mas naqueletempoeraumcircodeverdade...Sóleõestinhaparamaisdetrinta.Vinteedoiselefantes...Tigres...Todososbichos...

—Bebiunstragos,masnãoestoumentindo,não...AntônioBalduínoacredita.Osbigodesdeseupai faziamsucesso.Eleerameninoeassimmesmo

se lembrava.Quandoo velho subia no trapézio parecia que o circo vinha

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abaixo de tantas palmas. Um delírio. Também os saltos que ele dava detrapéziopara trapézio,o salto-mortaldadonoar, trêsvoltas semseguraremnada... Era de fazer os corações pararem. Suamãe andava no arame.Vestia de azul e parecia uma fada... Ia com a sombrinha japonesa, seequilibrando. Ele era de uma família de gente de circo. Herdou tudoquando o paimorreu. Só leões tinha não sei quantos. Cavalos ensinados.Pagavaumafortunadesalárioaartistas.OsmaisfamososdaEuropa...

—Etodosrecebiamnosábado.Nuncanenhumseatrasou.Umdiaorei,oprópriorei,vieraaoseucirco.Quediaaquele...Antônio

Balduínonão estava acreditando, comcerteza, porqueo estava vendo ali,bêbadoemalvestido.Maseleforaaplaudidopelorei...Oreisó,não.Todaafamília real que estava num camarote de luxo. Foi em Roma e era naprimavera.Quandoeleapareceu,quecoisa,meuDeus.Nuncaseviucoisaigual.

—Penseiqueaspalmasnãoacabavammais.Estavaalinoálbumoseuretrato naquele tempo. Vestido de casaca, sim. Era como ele entrava naarena.Depoistirandoaroupaaospoucos.Acasaca,ascalças,opeitoduro.Ficavavestidocomumaroupademeia, assimcomoestavanaquelaoutrafotogra ia.Eerabonito.Nemparecido comhoje...Hojeestáumesqueleto.Mas naquele tempo as mulheres se apaixonavam. Houve uma que eracondessa.Loira.Cheiadejóias.Marcaraumaentrevistacomele.

—Evocêchamouaospeitos?—onegroseinteressava.—Umcavalheironãocontaestascoisas.Oreiestavalánoseucamarotedeluxo.Todaafamíliareal.Eledeuo

duplo salto.mortal e — pode não acreditar — o rei não se conteve elevantou.se para aplaudir. Que noite aquela... Também Risoleta estavabonita comonuncaestivera.Equandopulou comele foiumsucesso... Elavendiaoretratodosdoisaosespectadores,aqueleretratoqueestavabemnomeio da página do centro do álbum e no qual se via umamulher ematitudedequemagradeceaspalmas,amãoseguraporumhomemvestidodeumaespéciederoupadebanho.OlhandobemseviaqueohomemeraGiusepe.

—Ummulherão...—falouAntônioBalduíno.—Eraminhamulher...Ela vendia aquele retrato aos espectadores e não havia quem não

comprasse. Pois não era primavera e ela tão linda como as lores daprimavera?Erauma lordaprimavera e todosos romanosqueriamumalembrançadaestaçãoqueseia.Ficavamcomoretratodela.Naqueleoutroretratoelaestavaemcimadocavalocomumapernalevantada.EraJúpiter

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onomedaquelecavaloevaliaumbomdinheiro.FicoucomumcredordaDinamarca numa das vezes que o circo andara lá. Aquele retrato deRisoletaemcimadocavaloforatiradopoucosdiasantesdelacair.Andavatão bonita naquela primavera, tão moça que ninguém diria que iaaconteceraquelacoisaestúpida.Giusepenuncapensarasequerqueaquilopudessesedar.—Poisela caiu.Tinha tantagentenaquelanoitenocircoque parecia um mar. Eles eram o grande sucesso daquela primavera.Todos falavam emI Diavoli, nome por que eram conhecidos. QuandoRisoleta aparecia na rua as mulheres paravam para vê-la. Imitavam osseusvestidos,queelasabiaserelegante,nãoerabonitasomentenocirco,pulandonotrapézio.Oshomensviviamdoidosporela.Eleseramosucessodaprimaveraqueestava loridaemRoma.Naquelanoitetinhamuitagentenocirco.Esteretratoédelavestidacomtrajesdesair.

Giusepe olha o retrato. Caminha até a cama e traz uma garrafa decachaça.

—PingadeSantoAmaro,hein?—riuBalduíno.Assim Giusepe está bebendo demais. Não tira os olhos da mulher.

TambémAntônioBalduínovêqueelatinhaorostotristedemulherpresa.Giusepebemsabiaqueelanãogostavadaquelavidadecirco,queaspiravaa andar na sociedade, bem vestida, elegante, fazendo furor entre oshomens. Mas quem diria que ela ia cair naquela noite? Não haviamquebradonenhumespelho...Elesentraramnaarena,foiaquelemundodepalmas. Ela cumprimentou sorrindo e subiram. No princípio tudo correubem. Mas no salto mortal... Nunca tinha acontecido aquilo. O trapéziobalançoumenos...ElanãoalcançouaspernasdeGiusepeparasesegurar.Ficouumapostadecarnenochão.QuandoRex,oleão,pegouJohn,aqueledomador inglês, e o estraçalhou, não icou tão feio. Porque Risoleta tinhaviradoumapostadecarnesemrosto,sembraços,semnada.Elenãosabecomo não caiu também, como teve forças para descer. Lá fora eraprimaveraepassavamcasais.Depoisopalhaçodissequeeletinhafeitodepropósitoporquesouberaqueelatinhaumamante.Chegaramafazeruminquéritoqueresultouemnada...DesdeessediacomeçouadecadênciadoGrandeCircoInternacional.

—Davaum romance—a irmouBalduíno—bastava escrever... VoucontaraoGordo.

— Mas você acredita que ela tivesse um amante?... Disseram,mostraramele,mostraramcartasdeleparaelaqueestavamnomeiodascoisasdela...Maseramentira,nãoera?Gentedecircoéruim...Vocênãoseieemgentedecirco.Égenteinvejosa...Elalápodiaterumamante!...Eles

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tinham era inveja do sucesso que ela fazia. O queme dá raiva eme fazbeberépensarqueelapodiatermesmoumamante.Tinhaascartas.Maselaeratãoboa.Gostardaquelavidanãogostava,não.Masnãoeramulherpara teramante.Mas tinhaas cartas.Falavaemencontros...Eu sóqueriaelavivaparamedizerqueeramentira,queeratudoinveja.Vocênãoachaqueera?

Seráqueelevaichorar?Apertouacabeçanasmãosecerrouosolhos.AgoraéAntônioBalduínoquemviraagarrafadecachaçaebebeumtragoenorme.Láforaestáumanoitedeprimaveratambém.

—Eopalhaçooqueé?—Éladrãodemulher...—Olhaanegranajanela...—Comcaradepanela...O palhaço Bolão vai montado de costas num jumento. No fundo da

cidadeo circoadomina.Cheiodebandeiras, comdois anúnciosnaporta.Denoiteamúsicatocaráalienegrasvenderãococada.Acidadesófalanocirco, nos artistas, na negra que dança quase nua e principalmente nonegro Baldo que desa ia os homens de Feira de Santana. Os homens nagrandefeiracomentam.Luigiesperouasegunda-feiraparaestrear.Équenestediahá feiradegadoevêmhomensde todaa redondezavenderosseusbois.OpalhaçoestáatravessandooLargodaFeira:

—Hojetemespetáculo?—Tem,simsenhor...Os meninos, que vieram das fazendas trazer rapadura e requeijão

paravender,olhamcominvejaosmolequesdacidadequeacompanhamopalhaçoeentrarãodegraçanocirco.Umcamponêsdizaoutro:

—Xi.Eugostodecircoquemeacabo...—Jávium,menino,umchamadoEuropeuqueerabatuta...—Dizqueesseébom...—Queégrandeé...Seopalhaçofordeverdade...—Euvoudormiraquisóprair...—Dizquenãotemmaislugar.Tátudovendido.Moleques combinavam entrar por baixo do pano. O palhaço

continuava a sua passeata gloriosa por entre os camponeses. Das casascomerciais os empregados espiavam.Nomeio da feira o palhaço parou epediusilêncio:

— Respeitável público Baldo, campeãomundial de luta livre, boxe ecapoeira, que veio do Rio de Janeiro expressamente (carregava no

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expressamente) para trabalhar no Grande Circo Internacional, ganhandotrêscontospormês,casa,comidaeroupalavada.

—Upa!—murmurouumcamponês.— ... temoprazerdedesa iarqualquerhomemdestaheróica cidade

paraumalutanaarenadocirconestanoite,ouduranteaestadadocirco.SehouverumhomemquevençaBaldo,ocircodaráaesteheróiaquantiadecincocontosderéis.Cincocontosderéis—repetiagritando.—EBaldoaposta mais um conto como não perderá. Não há quem aproveite estaoportunidade?Adiantoaorespeitávelpúblicoquedoishomensjáforamaoescritóriodo circoparadesa iar o grande campeãoBaldo, que aceitouosdesa ios. Quem quiser lutar é só aparecer no Grande Circo Internacionalesta noite. As lutas terminarão com amorte de um dos lutadores. Com amorte.

E,comosenãoestivessecansadododiscurso,continuouoseupasseiopelacidade,montadodecostas,o jumentoempacandodequandoemvez,ele fazendo que caía, se segurando no rabo do animal, fazendo a cidadetodarir,fazendoomesmodiscursoondehaviagentereunida.

Todaacidadecomentavaalutademortequehaveriaejásesabiaqueum chofer, um empregado no comércio e um camponês gigantescoestavam dispostos a aceitar o desa io de Baldo, o gigante negro, e adisputaroscincocontos.Acidadeanoiteceunervosa.

Quandoo camponês entrou, um rapazque faziapiadasno galinheirogritou:

—José,docasaldeguaribasquevocêencomendou,omachojáchegou—eapontouocamponês.

Todo mundo riu. O camponês quis se zangar mas acabou rindotambém.Um gigante, aquele camponês de alpercatas e de bordão. Ele seriaporquepensavanoscincocontosqueiaganharlutandocomaqueletalde Baldo. Na roça ele derribava árvores com poucas machadadas ecarregava troncos enormes através de enormes distâncias. E quando sesentoutinhaumsorrisovitorioso,sebemfossemodestoedesconfiado.

Entravamnegroscarregandocadeirasqueeramparaas famíliasquevinham para os camarotes. O circo não tinha cadeiras. Os espectadorestraziam.

—Éporissoqueeusóvenhoprogalinheiro...Émaisbaratoeagentenãotemquetrazernada.Sóocorpo.

—Lávemoempregadodojuiz..O negro entrou, colocou as cadeiras no camarote e foi lá fora buscar

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maisedepoisseaboletounaarquibancada.Vaiavamumsujeitoquefoiparaumcamarote:—Aí!ChicoPeixeiro.Decamarote,hein?QuemfoiNaninha...Foraeralindodeluzesedecores.Atabuletadocirco—GrandeCirco

Internacional — brilhava em vermelho, azul e amarelo, as lâmpadaspiscando.Negrasdeanáguaecolaresvendiampipocas,acarajés,mingau,emunguzá. Todo o largo estava iluminado pela luz do circo. Molequesrondavam os lugares por onde podiam entrar de carona. Um homemvendia caldo de cana e um negro sorveteiro só queria era acabar logo avasilha de sorvete para poder entrar pro galinheiro também. E davagrandesrisadasantegozandoopalhaçoqueeramesmobrincalhão.Opovocomprimia-se na bilheteria da geral, onde Luigi esfregava as mãos decontente. E as velhas da cidade estão espantadas com aquelemovimentonaterrapacataquedormeàsnovehoras.Équeocircorevolucionoutudo,ocircoéanovidade,éviagem,sãoasferasdosoutrospaíses,éaaventura.Negrosinventamhistóriassobreosartistas.

Eisquevemamúsica.AgoraestádobrandoaRuaDireitaejáseouveo somdamarcha carnavalesca.No circo todos se levantam.Os que estãonosbancosmaisaltosdageralespiamporcimadopano.Osmolequesqueestão na porta do circo correm e acompanham a Euterpe 7 de Setembroque vem garbosa, marcial, vestida de verde e azul. Seu Rodrigo dafarmáciaéumbichona lauta,Opistãoatirasonsque icamvibrandonoarevãosebaternacabeçadeAntônioBalduínoque fogedabarracaevemolhar a música. Banda bonita. Estão bem vestidos como o diabo! Aquelequevaialidecostaséomaestro.AntônioBalduínobemquetrocavaoseulugardelutadorpelohomemmagroquevaidecostasdirigindoaEuterpe7 de Setembro. Mas é bonito de verdade, pensa o negro. Como todas asmulatasolhamparaele!Todoopovo.Eleébemumheróidacidade,umaglória de Feira de Santana. Como o lautista também. São conhecidos detodos e cumprimentados por todos. O juiz tira o chapéu para eles e osrapazes do banco quando querem fazer uma farra convidam o lautistapara ircomelesepagambebidaseo tratamde igualpara igualcontantoque ele leve a sua lauta. Mas Giusepe arranca Antônio Balduíno dacontemplaçãodabandademúsica.Onegrovaiparaabarracalevandonocoração a vontadededirigir umaeuterpe.A7de Setembrovai entrandono largo do circo. Vem cercada de gente importante, cônscia do seuprestígio.NaportadoGrandeCircoInternacionalomaestrodáumaordeme todos os músicos param. Na geral, nas cadeiras, nos camarotes, nabarraca dos artistas, também, todos estão ouvindo o dobrado que a

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euterpe executa na porta do circo. E todos pensam que é divino e queFeira de Santana tem, sem dúvida, amelhor banda demúsica de todo oEstado.Acabadoodobradoentramnocircoevão se instalarpor sobreaporta num tablado que ali está, especialmente para eles. Agora que amúsicajáchegouosespectadoresreclamamoiníciodoespetáculoqueestátardando.

—Palhaço!Quesaiaopalhaço!Acriançadagrita,gritamoshomenseatéojuizjáconsultouorelógioe

disseparaconsorte:— Passam cinco minutos da hora. A pontualidade é uma grande

virtude.Masaconsortenãoseimpressiona,queelajásecansoudosconceitos

domarido. No camarote vizinho, um grupo de empregados no comércio,quefizeramumavaca,comentamaluta.

—Serádemortemesmo?—Apolícianãodeixa.—MasdissequeesseBaldoéumbicho.Agripinoviuonegrobrigar

naBahiacomumalemão.Dissequeéumtouro.Batem os pés na geral. Gente da geral émal-educada— pensam os

rapazesdo comércio.Quem já viu espetáculo começarnahora?Gentedageral émal-educada.Masnãoépormáeducaçãoqueeles estãobatendoos pés. Os moços do comércio não sabem. Eles batem os pés, gritam ereclamam,porqueassimsedivertemmais.Circosempiadasnogalinheiro,semgritos,semreclamaçõesnãopresta.Poisseaquiloéomelhordocirco.Ficar comagarganta roucade tantogritar, ospésdoendode tantobaternastábuasdogalinheiro.Umanegrareclama:

—Vábeliscarascoxasdaquepariu.Há umprincípio de sururu ao lado esquerdo. Bolinarmulher casada

dánisso.Umhomemcaiudogalinheiro.Maslevantoulogoevoltouparaoseu lugardebaixodeumavaia tremenda.NaarenaapareceLuigivestidocomo fardãodeGiusepequeencornounumporremãe.Osilênciobaixousobreocirco.

—RespeitávelpúblicoOGrandeCircoInternacionalagradeceavossapresença no seu espetáculo de estréia e espera que os seus grandesartistasmereçamosvossosgentisebenevolentesaplausos.

Luigi forçava o seu sotaque italiano.Assim impressionavamelhor.Osmata-cachorros entraram, estenderam um tapete velho e furado queatravessava a arena de lado a lado e então houve a apresentação dacompanhiaquefoiumdelírio.PrimeiroentrouLuigiquetraziapelamãoo

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cavalo Furacão com uns arreios que brilhavam. Depois entrou Fi i, atrapezista, e os aplausos redobraram. Vestia um saiote de pano verde emostrava as coxas aos olhos ávidos dos negros, dos empregados nocomércioedojuiz.Cumprimentoususpendendomaisumpalmodosaiote.Elessãocapazesderebentarasarquibancadasdetantoaplauso.OpalhaçoBoiãoentrafazendopiruetas:

—Boanoiteparatodosocês,minhagente,Gargalhadas. A bombacha é azul com estrelas amarelas e uma lua

vermelhanasnádegas:—Estouvestidodecéuede todasasestrelas.Vestidoqueuma fada

medeu.é tão engraçado o palhaço!... O Homem-Cobra parece mesmo uma

cobra naquela roupa pegada ao corpo cheia de coisas que brilham. Aroupacontornaoseucorpoeeleéassexuado,pareceumamenina,pareceum menino, e os homens dizem piadas. Mas pedem silêncio em altosbrados.Ohomemquecomefogotemcabelosruivos.OgrandeequilibristaRobert encanta as mulheres com a sua casaca sovada. Pelo nome ele éfrancês e tambémpelo cabelobemalisado emcimada cabeça, abertonomeio, um encanto. Atira beijos com asmãos que são recolhidos nos seiosdas donzelas românticas. Uma solteirona velha suspira. “Sujeito bonito”,murmura alguém na geral. Juju quase passa despercebida porque todosolham para omacaco, para o urso. O leão está na jaula ao fundo e urralugubremente.Lúgubreeferozmente.Umamulherexplicaaoutraquenãogostadeviraocircoporquetemmedoqueoleãosesolte.Leãodanervosonela.Jujuémeiovelha,temrugasqueapinturanãoencobremais,porém,aindaassim, édonadeumcorpobem-feito.RosendaRosedávemvestidadebaiana:

—Boanoite,meupovo...Correemvoltadocirco,saltando,suspendendoasaiaquefazarodae

que volteando com o vento parece até o pano do circo. Os homensesquecem Juju, Fi i, o grande equilibrista Robert, o urso, o leão, e até opalhaço, para só verem a negra Rosenda Rosedá que está vestida debaianaesacodeasancasnumremelexo.Osolhosestãocheiosde luxúria.Osempregadosnocomércioesticamoscorposparaafrentenocamarote.Ojuizbotouosóculos.Asuamulherdizqueéumaimoralidade.Osnegrosnageralestãoroucosdetantogritar.Rosendaconquistouopúblico.SónãoapareceBaldo,ogigantenegro,queládentroseguraGiusepebêbadoquequerapulsocumprimentaropúblico.Reclamamapresençadonegro:

—Quesaiaolutador,quesaiaolutador.

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—Táseescondendo?Luigi explica que Baldo, o gigante negro, o grande lutador, campeão

mundialdeboxe, luta livre e capoeira, estádandoosúltimos treinos e sóaparecerá no momento da luta que vai sustentar contra os campeõesdaquelaheróicacidade.AcompanhiaseretiraecomeçaoespetáculocomJujueoseucavalo.OcavaloFuracãocorreemgalopespelaarena.Jujutrazumchicotenamãoe veste culote.Ospeitos enormes apertadosnablusa.Pulanocavalo.Vaiempéemcimadasancasdoanimal.Paraelaécomoseestivessenumautomóvel.DáumsaltoemcimadeFuracão.Aplausos.Fazoutraspiruetaseseretiraentrepalmas.

— Já vi coisa melhor — diz um homem que é examinado comadmiraçãoporqueéviajado.ElecontaqueestevenaBahiaenoRio.

—Issoéporcaria.Oshomensqueestãocomvontadedeaplaudirficamencabulados.Mas

depoisperdemomedoebatempalmascomforça.Éque,depoisdabandatocarumsamba,opalhaçoentroudandocambalhotas.DiscutiucomLuigi,pegouamalaaberta(via-seumacuecaqueaparecia),obengalãoequisseretirar.Depoisquefezumasmágicas,Luigiperguntou:

—Vocêestevenaescola,Bolão?— Se estive... Levei dez anos na jumentalidade... Eu sou formado em

burro,ouviu?—opúblicoriadeseacabar.—Entãomediga:emquantosdiasDeusfezomundo?—Eusei...—Entãodiga.—Euseimasnãodigo,pronto,queeunãoquero.—Vocênãosabe.—Nãosei...Quemlhedissequeeunãosei...Quemfoiqueeuvoudar

umasurranele.E foiassim,dizendoestascoisas,queopalhaço fez todaaquelagente

feliznanoitedaestréiado circo.Osempregadosno comércio riam,o juizria, os negros da geral gargalhavam. Só o homem viajado achava queaquilo tudoeraumaporcariaeosdez tostões jogados fora.Masele tinhaperdidoapureza,háanos,nasgrandescidadesondeforaestudante,antesdopaimorrereeleterquepegarnometrodacasadoSeuAbdula.

Omacaco dançou. O urso bebeu uma garrafa de cerveja. O Homem-Cobraeraassexuadoe se torcia todo.Davanervoso.Botavaa cabeçanospés, virava o corpo para o lado,metia os pés na boca, icava deitado emcimadeumacaixapequenasócomoventrequeerademulher,aspernasnas costas, a cabeça também. Trabalhava bem, mas irritava os homens

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porquenãotinhasexode inidoeeles icavamangustiadossemsaberseodeviamamar,pensarnele comoemumamulher,ousedeviamaplaudi-locomo se aplaude um homem macho. Só nos olhos do homem viajadobrilhava uma luz estranha e criminosa. O Homem- Cobra agradeceu comseurostodeanjo,jogoubeijoscomoRobert,ograndeequilibrista,curvou-se como Fi i, a trapezista célebre. As mulheres recolheram os beijos, oshomensoscumprimentos.Sóohomemviajadodeixouoseulugarporqueoespetáculoestavaacabadoparaele.Levouasuamisérianocoraçãoenosolhosenãodormiu.

O grande equilibrista Robert não estréia esta noite. As mulheres seentristecem.EmcompensaçãoaliestáRosendaRosedá,aincomparável.

AINCOMPARÁVELROSENDAROSEDÁSENOSAPRESENTAORGULHOSA

EMFORMIDÁVELTORMENTAEMOCIONALATINGINDOOÁUREOPORTODASUA

CARREIRANOTABLADO

A tormenta emocional é um maxixe emocionante. Será que pordebaixoda largasaiadabaianaelanãotemroupanenhuma?Parecequenãoporquemostraascoxasatéaomeioenãosevêpanoalgum.Emcimados peitos traz colares de contas multicores. Faz grandes XX com aspernas.

Amulherdo juizachaquedecididamenteéuma imoralidadeequeapolícia não devia permitir. O juiz não concorda, cita a Constituição e oCódigo, diz que a mulher não é civilizada e não quer conversa, quer éespiarascoxasdeRosendaRosedá,a incomparável.Masagoratodostêmcoisamelhor para olhar. Ela rebola as ancas... Desapareceu toda, só temancas. As suas nádegas enchem o circo, do teto até a arena. RosendaRosedá dança. Dançamística demacumba, sensual como dança religiosa,ferozcomodançada lorestavirgem.Elaestámostrandoocorpotodomaso seu corpo é um segredopara os homens, porquemal aparece, a saia ocobre,oesconde.Elesestãoirritadose ixamavista,maséinútil.Adançaérápidademais,éreligiosademaiseelessãodominadospeladança.Nãoosbrancos que continuam nas coxas, nas nádegas, no sexo de RosendaRosedá. Mas os negros sim. Eles estão nos movimentos, na cadência dadança ritmada e religiosa demacumba,maxixe brabo, e pensam que elaestá possuída por um santo. Ela atinge o áureo porto da sua carreiraquando descansa as nádegas nas pernas e recebe a manifestaçãoestrondosa da assistência que está de pé e não ouve o dobrado que abandacomeçaaexecutar.Eeladançadenovoasua“tragédiaemocional”,maxixeemocionante,dançareligiosadosnegros,macumba,deusesdacaça

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edabexiga, a saiavoando,os seios saltandosobos colaresparaosolhosdo juiz.Aspernasenádegasdosnegrosdançamnageralqueameaçavirabaixo.Atingiuoáureoportodasuacarreiranotablado.Ojuizselevantoupara aplaudir. Parece até o rei comGiusepe. Rosenda tira de debaixo dasaia lores,pétalasderosa,quejoganacabeçacalvadojuiz.UmaidéiadeLuigi.Omomentoédeemoção.Elaatingiuoáureoportodasuacarreiranotablado. E quando o espetáculo acabar virá um negro de alpercatas eapanharáumadaquelaspétalasderosaqueconservaoperfumedosexode Rosenda Rosedá e a levará junto do coração para as plantações defumo.

Opalhaçoentradenovoenovamenteoshomensriemeseacalmam.DepoisapareceLuigiqueanuncia:

—Respeitávelpúblico!Baldo,ogigantenegro,queconheceisdenome,desa ia qualquer homem desta cidade para uma luta que termine com amorte.A empresadá cinco contosdeprêmio ao vencedor eBaldo apostaumcontoderéisnasuavitória.

Há um sussurro namultidão. Luigi sai e entra com o negro AntônioBalduíno que traz sobre o corpo musculoso uma pele de tigre que épequenaparaeleelhetolheosmovimentos.Cruzaosbraçossobreopeitoe olha os espectadores com um olhar de desa io. Ele sabe que Rosendaestá espiandoequerque apareçaumhomempara lutarde verdade. Elavendeuretratosenabarracacontouosníqueis.Depoisdisseaeleque iaveraluta.Porém,agoranãoaparecenenhumhomemdispostoalutarcomele. Luigi explica ao respeitável público que os dois homens que haviamvindo ao escritório da empresa não apareciam. E se não aparecesseninguémBaldo lutariacomourso.Masmalacabarade falar,o camponêsqueparecia umguariba se levantou e caminhoumeio encabuladopara aarena:

—Éverdadeestenegóciodoscincocontos?.—Verdadeverdadeira—disseLuigiespantado.O camponês tirou as alpercatas, a camisa, e icou somente de calça.

LuigiolhouparaAntônioBalduíno.Onegrosorriudizendoqueestavabem.Trouxeram um colchão para omeio da arena e Antônio Balduíno tirou apeledetigree icousomentecomumasunganosexo.Otalhodoseurostobrilhava à luz das lâmpadas. Os homens aplaudiam o camponês. Luigi sedirigiunovamenteaopúblicopedindoumhomemqueentendessede lutaparaserosegundojuiz.

Apareceu um dos empregados no comércio. Conversou com Luigicombinandoascondições.Oitalianoexplicouaopúblico:

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— A luta só terminará com morte ou com a desistência de um doslutadores.

Fezasapresentações:— Baldo, o gigante negro, campeão mundial de boxe, luta livre e

capoeira,odesafiante.Perguntoualgumacoisaaocamponês:—TotonhodaRosinha,queaceitouodesafio.AntônioBalduínoveioapertaramãodoadversário.Masestepensou

que já era começo da luta e quis se atracar com o negro. Luigi deuexplicação e a coisa correu bem. Ficaram ambos em cima do colchãoolhandoumparaooutro.

RosendaRosedáolhavaládetrásonegroAntônioBalduíno.Nãohaviacincocontos,nãohavianemsalário,mashaviaocorpoquentedeRosenda,a incomparável. E Balduíno se sentiu feliz. Se conseguisse ser chefe daeuterpeestariacompletamentefeliz.Oempregadonocomérciocontou:

—Um...dois...três...OcamponêsveioemcimadeBalduínoque icoucorrendoemvoltado

colchão. A multidão vaiou o negro. Rosenda fez um muxoxo para todomundo. Mas de repente Baldo se virou e acertou um soco no rosto deTotonho. Foi o mesmo que nada. O camponês nem pareceu sentir. Veioatrásdonegronovamenteelevouumarasteira.“Aquisócapoeira”,pensouBalduíno.Sejogouemcimadocamponêscaídoesoqueouasuacara.MasTotonhoprendeuaspernasnascostasdeAntônioBalduínoeovirou.Ficouporcima.MasfoiquandoAntônioBalduínoviuqueoadversárioeracanja.Elenãosabiasequersoquear,sótinhaforçabruta.Quandoselevantaramo negro acertou vários socos no camponês que não sabia se livrar.Correram assim em volta do colchão até que Totonho pegou AntônioBalduíno pela cintura, suspendeu.o no ar e soltou o negro no chão comtoda a força. O negro se estatelou. Levantou com raiva. Até ali ele estavabrincando, mas agora icara com raiva. Derrubou o camponês com umgolpe de capoeira, pegou-lhe o braço e torceu rudemente. O adversárioestava preso nas suas pernas e Baldo torcia-lhe o braço. A multidãoaplaudiu.Ocamponêssoltouumberro,desistiudalutaedoscincocontos.Saiu entre vaias, pegando no braço que parecia quebrado. AntônioBalduínocumprimentoueseretiroudebaixodepalmas.

—Onegroébommesmo...LádentroperguntouaRosenda—Gostou?Elaestavacomosolhosúmidosdeentusiasmo.

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Ummata-cachoroveiocomumatabuletaondeselia:“INTERVALO”

Os homens saíram e foram beber caldo de cana. A banda executoudobradosemarchas.

Robert era um dos sargentos, Antônio Balduíno o outro. O grandeequilibrista icavaelegantíssimonasua fardadesargento francês,Porém,a deAntônio Balduíno icava pequena que fora feita para o engolidor deespadas que trabalhara no circo anos atrás. Apertava o negro todo e osabre icava ridículo de tão pequeno. Mas se fosse isso só, tudo estariabem.OpioréqueFi iqueria receberosseussaláriosatrasadosantesdecomeçarasegundaparte,naqualseriarepresentadaacélebrepantominaOs três sargentos.Luigi aindanão izeraas contasdasdespesas forçadasdocircoenãoqueriapagar,anãosernodiaseguinte.Fifinãoianisso:

—Oupagaagoraounãoentroemcena...Ela fazia o papel do terceiro sargento e icara bela de roupa de

homem. Vermelha de raiva, esticava o dedo, ameaçando. E fardada desargento,berrando,gritando,acaboufazendoLuigiterumataquederiso:

— A farda tomou conta de você... Você está pensandomesmo que ésargento.

—Nãodeboche,ouviu?Giusepe veio bêbado lá de dentro falando em arte, em palmas e

chorou. Luigi pediu a Fi i que esperasse, que ele ia fazer as contas epagaria essa noite mesmo. Que não demorasse a continuação doespetáculo. Ouvisse: o público, lá dentro, já reclamava, batia os pés,impaciente.Luigipuxavaosraroscabelos,numquasedesespero.RosendaRosedásecomoveu:

— Deixa de ser estraga-prazeres, mulher. O espetáculo hoje correutãobem.

Fifisabiadisto,sabia.Enãogostavadeserestraga-prazerestampouco.Sim,oespetáculocorreubem,forammuitososaplausos,haviamuitagentenaplatéia.Todosestavamsatisfeitoseela também.Mas juntodo seu seioestava a carta da diretora do colégio. E ela devia ser forte, devia resistir,devia brigar. Fazia doismeses que não pagava o colégio da ilha. Se nãopagasse dentro de dez dias, a diretoramandaria amenina de volta parajunto dela. E ela não queria sua ilha no circo. Isso não. Devia ser forte,tinhaqueser forte.MasnãopodeespiarparaosolhosdeLuigiqueroga.Luigisempreforabomparaela,aajudaramesmo.Masseelanãoexigisse,

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após o espetáculodeixaria para o outrodia, no outrodia apareceriamasdespesas forçadas e a menina viria se bater ali, e adeus todos os seusplanos,todososseussonhos,acalentadosduranteesteslongosquatroanosem que pagara com tanto sacri ício o colégio de Elvira. Quando a ilhanasceuelaacabaradelerElvira,amortavirgem.Agoranemdinheiroparacomprar romances ela tinha. Mandava tudo para a diretora do colégio eassim mesmo mal dava. Já estava no im. Se ela não fosse forte, se nãoresistisse, cairiam todos os seus castelos, alimentados à custa de tantosacrifício.

Acidadeerapequena,menoraindaqueFeiradeSantana.Cadeiradeprofessora de primeira classe é di ícil de conseguir. Mas casa nesseslugaresébarata.Teriaumjardinzinhonafrenteondeelacultivaria lores,cravosqueeramasuapaixão,eondehaveriaumbancopara lerosseusvelhosromancesdecapasamarelas.Aescolafuncionarianaprópriacasa.Elviraensinariaàscriançaseelaajudariaa ilhanostrabalhosdomésticos,fariaacomida,arrumariaacasa,botaria lores,cravosvermelhos,namesadaprofessora.SeriaumaavóparaascriançasqueaprenderiamcomElviraas primeiras letras. Conheceria toda a gente da cidade. Ninguém saberiaque ela fora artista de circo, cantora nos teatros vagabundos devariedades, marafona nos dias maus. Os cabelos brancos lhe haviam dedarumarmaternaldesenhoraboaepobre.Seriaumavelhicefeliz.Fariarendas— ainda se recordará?— para os vestidos das garotinhas maisnovas. Seria amada por todos e principalmente por Elvira. Quando avelhice baixasse completamente sobre ela, Elvira a deitaria no colo ealisariaasuacabeçacomoelafaziacomascrianças.Acasateriaumjardimnafrentecomcravosvermelhos.Masparaissotudoeraprecisoserforte,passarpormá,porestraga-prazeres.

E,rubradepudor,mostrouacartadadiretoradocolégio,desvendouoseu segredo. Luigi icou comovido, botou as mãos em seus ombros eprometeu:

— Eu lhe garanto, Fi i, que depois da representação lhe pago. Nemquetenhaqueficarsemdinheiroparaacomidadoleão.

O público assoviava, vaiava osmata-cachorros, consultava relógios. Apantomina começou. Tinha uma hora que Antônio Balduíno beijavaRosendaRosedá.Onegronão sabia o seupapel direito, nuncaderaparadecorarascoisas,masnahoradobeijoserecordavaperfeitamente.Sorria,piscava o olho para Rosenda que aparentava não dar pela coisa. Masquando chegou a hora, o negro estalou um beijo na cara da dançarina edisse-lhenoouvido:

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—Nabocaéqueégostoso...Apantominafezmuitosucesso.Giusepe deve estar na sua barraca a rever aquele álbum de

fotogra ias.Robert foraparaocabaré localparaarranjarumamulherdegraça com o seu cabelo alisado. Fi i escrevia uma carta à diretora docolégiopedindodesculpaspeloatrasodopagamentoeenviandoodinheirodos doismeses. À luz da vela que aparecia na barraca distante, AntônioBalduínoviaLuigifazendocontas.Coitado,andavaatrapalhadocomaquelecirco. Por mais sucesso que izesse, as coisas já estavam tão encravadasquenãohaviasantoquesalvasse.

Por que será queRosenda demora tanto paramudar a roupa? Ele aesperaencostadonaportadocirco,atabuletadeluzesapagadasbemporcimadasuacabeça.Oleãourra.Deveserfome.Oleãoandamagro,sótemossos.Oursoaindaé felizporquebebe, todas asnoites emque trabalha,uma garrafa de cerveja. Luigi já andoupensando em substituir a cervejaporágua.Encheriaagarrafa...Tapeouosespectadoresmasnãoenganouoursoqueserecusouabeber.Onúmeroforaumfracasso.AntônioBalduínogozaraquandoRosendalhecontaraaquelahistória.Elademoraasevestir.Rosenda Rosedá, que nome esquisito... Ela se chama mesmo Rosenda. ORosedáéquefoiinvençãodoLuigi.

Mulatadespachadaaquela,muitocapazdeiràsfuçasdequalquerum.Falavadi ícil,contavacasosdosmorrosdoRio,MorrodaFavela,MorrodoSalgueiro, descrevia as festas de clubes de lá, o Ameno Jasmineiro, asCaprichosasdaEstopa,oLíriodoAmor.Tinhaumjeitoelegantederebolaras ancas quando caminhava, coisa mesmo de carioca. A verdade é queAntônioBalduínogostadanegra.Elaécheiadebesteiras,devaidades,sefurtando sempre na hora em que Antônio Balduíno pensa que a tem àsmãos,mas ele está gostando dela um pedaço. Será que ela acabou de sevestir?Porquefechoualuzeabreacortinaqueservedeporta?Apareceunaclaridadedaluz:

—Tavalheesperando...—Amim?Gentes,quemhouveradedizer.Saíram passeando. Ele contando as suas aventuras por estemundão

afora,elaescutandoatenta.Eleseentusiasmaquandocontaafugaatravésdo mato, o cerco furado, os homens espantados dele aparecer com umanavalhanamão.Elaseencostanele.Osseusseiosestãotocandonobraçodonegro.

—Noitebonita—dizele.—Quantasestrelas...

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—Negrovalentequandomorrevaiserestrelanocéu...—Euaindaquerodançarnumteatrograndedeverdade...Comoosdo

Rio...—Praquê?— Gosto de dançar. Quando eu era menina juntava os retratos de

artistasdeteatro.Papaieraportuguêsetinhaumavenda.OcabelodeRosendaRosedáéespichadoa ferro.Fica lisoparecendo

cabelodebranca.Ficamaislisoaté.—Eta,negracheiadebobagem...—pensaAntônioBalduíno.Mascomosenteosseusseiosnobraço,dizqueeladançandoémesmo

cutuba.—Vocênãoviu?Opessoalpareciamaluco...Erasópalma...Elaseencostamais.Eleconvence:—Eugostodeummaxixebemdançado...—Euquisentrarproteatro.. .Umhomemquemoravapertodeláde

casa conhecia um porteiro do Teatro Recreio. Mas papai não deixou. Elequeriamecasarcomumcaixeiroqueeletinha,ummarotofedorento.

—Masvocênãoseamarrou?— Eu sou lá besta! Eu não gostava mesmo dele, não tá vendo? Um

portuga...Ficou como quem queria dizer qualquer coisa. Antônio Balduíno

perguntou:—Oqueé?—DepoisveioEmanuel.Papaidiziaqueeraumvagabundo,semeira

nembeira.“Eeramesmo.Nãotinhadoqueviver.Assimcomovocê,malandro...Se

engraçou demim, a gente dançou no Ameno e foi aquela desgraceira. Ovelho icou danado, por causa do tal do portuga que gostava demimumpedaço.Dissequeeueraumaamaldiçoadaemebotounoolhodarua.”

—Oquefoiquevocêfez?— Primeiro iquei no morro com Emanuel. Mas quando ele vinha

pingado, gostava de dar em mulher. Logo da primeira vez eu arrumeiminha trouxa e pulei fora. Depois andei roendo um osso. Trabalhei decozinheira,decopeira,deama-seca.FoiumpalhaçodeumcirconoRioquememeteu nesta vida. Pegamos um namoro, acabamos amigados. Um diafaltou uma artista, uma espanhola que ia dançar de castanholas, e euentreinolugardela.Sevocêtivesseláiaverosucesso.Masmeaborrecidopalhaçoeentreiparaoutrocirco.Vimacabarneste.Táaí.

AntônioBalduínosósouberesponder:

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—Émesmo.— Mas um dia eu entro pra um teatro de verdade. Assim mesmo

negra. Que é que tem? Na Europa tem uma negra que os brancos viveatrás.Umapatroaqueeutivemecontou.

—Eujáouvifalar.—Poisentro...Vocêaindavaivermuitagentefalarnestanegra.AntônioBalduínosorri:—Vocêatéparecealua!—Porquê,meuDeus?—Parecequeestápertomasestálongedagente.—Euestoutãopertodevocê...O negro apertou a cintura deRosendaRosedá.Mas ela corre para a

barraca.

Agoraestánocabarétristedacidade.Hojetemmaisgenteporcausadoespetáculodocirco. Senão todomundo teria idodormiràsnovehorasquandobatesse o sino da igreja. Robert está numamesa,muito elegante,olhando uma mulher que dança. Antônio Balduíno se senta. Robertinterroga:

—Tambémveioarranjarmulher?—Não.Vimbeberumtrago...AsmulheressãopoucasequasetodasaquelaparaquemRobertespia

éumavelhaEstãoespalhadaspelasmesasesorriemparaoshomens.—Porquevocênãochamaamulherparaamesa?—Estoupronto.Masnocantoestáavirgem.Porqueseráqueaquelaidéiaseaboletou

nacabeçadeAntônioBalduíno?Elejábebeuestanoitemasnãoserecordade ter icado bêbado com dois cálices de cachaça. Por que, então, pensaqueamulherdecabeloslisoserostopálidoévirgem?Elaestánumcantosem ver nada, sem olhar para ninguém, distante do cabaré, dosfreqüentadores, do copo de bebida que está na sua frente. Se o Gordoestivesse aliAntônioBalduínopediria que ele inventasseumahistóriademenina abandonada, sem anjo da guarda, nem ninguém nomundo. E sefosse Jubiabá quem estivesse ali ele pediria ao pai-de-santo para fazerfeitiço contra o homemque está explorando a virgem, que a obriga a virpara o cabaré e a beber aquelas bebidas. Antônio Balduíno olha paraRobertquepiscaparaavelha.Bemquepodenãoservirgem...Masqueméque não conhece logo que ela é virgem e que um homem a explora? Elaestá no cabaré, bem na mesa do canto, mas os seus olhos não estão

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olhando para nada, estão perdidos para além da janela. Ela pensará nosirmãossozinhos,pequenos,namãedoente.Opai jámorreu.Serápor issoqueelaestáaqui?

Ela veio vender a sua virgindade esta noite para comprar remédios.Pois amãe não está doente, quase àmorte e semmédico, semumúnicovidroderemédio?AntônioBalduínopensaemiratéelaetemvontadedeoferecerdinheiro. Emverdade está semumníquel,mas furtaráde Luigi.Um empregado no comércio a tirou para dançar. É um tango. Ela vaivenderavirgindadeaquemdermaisdinheiro.Porém,queentendeeladedinheiro?Ecapazdenemrecebernadaeamãemorrer.

Tudo é inútil. Sua mãe não se salvará, os irmãozinhos morrerãotambémdemaleita,poisasbarrigas sãoenormeseos rostospálidos.Umhomem virá — por que não Robert, o equilibrista? — e a explorará,venderáoseucorpovirgememoçonafeira.Venderáaoscamponeses,aoschoferes,atodososhomens.Eelaseapaixonarápelo lautista,Robert lhedarásurras,elamorreráumdiatuberculosacomoamãe.Enãoterá ilhaque se prostitua para arranjar dinheiro com que comprar remédio. Masnão é que ela vai sair com o em pregado no comércio? Não, o negroAntônio Balduíno não consentirá. Ele irá roubar o dinheiro de Luigi,dinheiro que é para a comida do leão, mas não deixará que ela perca avirgindade.Seatiraparaafrenteeencostaamãonoombrodorapaz:

—Solteela.—Vásemeteremsuavida.Amulhertemosolhosdistantes.—Elaédonzela,vocênãosabe?Ela távendosesalvaamãequevai

morrer.Masnãoadianta.O rapaz empurra o negro com a mão... Antônio Balduíno, de tão

bêbado que está, cai por cima de umamesa. Chora como uma criança. Orapazsaicomamulherqueláforadiz:

—Acachaçadaqueledeuprameachardonzela.Masporqueéqueorapazestárindo?Ela tambémquerrir,querrir

muito da cachaça do negro,mas não pode, tem um nó na garganta. Umaangústiarepentinaatomatodaeela,semexplicações,abandonaohomemque ainda ri sem compreender, e vai sozinha para o seu quarto, ondedorme um sono de virgem do qual não acordará mais porque tomoucianureto.

No cabaré Antônio Balduíno cada vez mais bêbado canta entreaplausos e toma a velha de Robert, o equilibrista. Sai um princípio debarulho com o dono do cabaré porque eles não têm com que pagar as

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bebidas.AovoltarparaocircoentranabarracadeRosendaRosedá,quefoiparaissomesmoqueelebebeutanto.

Luigivivedelápisempunhofazendocontas.EleãoberratantonasuajaulanãoédeferocidadequetãomansocomoocavaloFuracão.

Eleberraassimédefome,porquenemdinheiroparaasuacomidaocircotem.

Não adianta Luigi fazer tantas contas. Há dois dias que Giusepe nãobebe,porquenemparaumapingaelearranjadinheiroeninguém lhe iamais.EparaGiusepeavidaétristesemcachaça.Acachaçaotransportaaopassado,trazparajuntodeleaquelasaquemeleamouequejámorreram.Sembebidaeletemquetomarconhecimentodasdi iculdadesdocirco,dafaltadedinheiroquetornaosartistasbrutosepreguiçosos.Nuncamaisocircopegouumaenchentecomoadanoitedeestréia.EssesquinzediasemFeiradeSantanatêmsidomaus.Emdoisespetáculosocircodeutodososnúmeroseemdoisespetáculostodaapopulaçãoveioaocirco,Sónaoutrasegunda.feiraaindahouvegente:algunscamponesesqueficaramda-feira.Assimmesmopoucos porque não havia luta e eles gostavam era de luta.NãotinhaaparecidomaisnenhumadversárioparaAntônioBalduíno.Nãovaleraapenaaempresaaumentarparadezcontosoprêmioaovencedor,e Baldo, o boxeur, apostar dois contos na sua vitória. A fama do negrocorrera pela redondeza e ninguém queria passar pela vergonha deapanhar. Agora Antônio Balduíno suspendia marombas nos espetáculospoucofreqüentadosdocirco,lutavacomoursoquesedeixavavencercomamaior facilidade, e terminou acompanhando Rosenda Rosedá ao violão.Paraelepoucoimportavaqueexistisseounãodinheiro.

Havia Rosenda. Não pensava noutra coisa. As noites passadas comRosenda pagavam bem a maçada de suportar os porres de Giusepe, osilênciodeRobert,asqueixasdeBolãoqueviviaselastimandodavida.

“Queabandonaraocursonosegundoano,tinhatiradoatéboasnotasnoexame,anãoseremdireitocivilquepassaracomsimplesmente4porperseguiçãodoprofessor,quenãogostavadeledesdeavaianaaula.OpaideBolãopareciarico, todaagentediziaqueeleestavacheiodoburrododinheiro.Ovelhogastavacomoumhomemdeposses:moravanumacasadealuguelcaro,pianoparaafilha,professoresdefrancêseinglês,projetosde viagem à Europa. Era cardíaco e disso ninguém falava, nem ele sabia.Morreuderepentequandoatravessavaarua.Foramver,sótinhadeixadodívidas. Fora assim que o Bolão terminara, usando o apelido que lhetinham posto no colégio, no picadeiro de um circo vestido de azul com

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estrelasamarelaseumaluavermelhanosfundilhos.”Repetiaaquelahistóriadiariamenteparaterminardizendosempre:— Podia ter me formado. Me metia na política que sempre dei pra

coisaehojeeracapazdeestardeputado.Fi i resmungava que a sorte é Deus quem dá. Antônio Balduíno

escapavaparaabarracadeRosendaondeesqueciaBolão,Fi iquequeriaterumavelhicerisonha,Giusepequequeriamorrer,LuigiquefaziacontaseRobertquenãodizianadanemreclamavaosalário.

Para o circo viajar para Santo Amaro venderam o cavalo Furacão eparte das tábuas das arquibancadas. Luigi fazia contas. Ninguém queriacomprar o leão e o leão comia muito. Uma noite Robert desapareceuninguém sabe para onde. Luigi pensou que ele tivesse roubado algumdinheiro, do pouco que o italiano tinha guardado na barraca para asdespesas do dia seguinte. Mas Robert não levara nada. Devia ter ido nonavioquepartiranaquelanoite para aBahia.ApareceuumhomemparalutarcomBalduíno, foivencidonoprimeirorounde foià custadesta lutaqueo circo se locomoveuparaCachoeira, passandonovamenteporFeirade Santana em dois caminhões. Quando chegara ocupara sete e assimmesmoporsovinicedeLuigiqueapertaratudoparacabertantacoisaemtão poucos carros. Agora iam em dois caminhões e chegava com sobra.Giusepese recordavaquequandoviajaramparaaFrançapossuíamumaverdadeira frota, pois tinhamdois barcos e por terra iam trinta e quatrocarrosenormesquelevavamopessoal.Giusepebebeuefaztodaaviagempensandonos grandesdias doGrandeCirco Internacional. Luigi depositaesperançasemCachoeiraeSãoFélix.SãoduascidadesvizinhaseSãoFélixpossuiduasfábricasdecharutos.TalvezatéelearmeocircoemSãoFelix.MaséinterrompidoporFi iqueperguntacomoirámandardinheiroparaocolégiodafilhaestemês.Luigiencolheosombros:

—Nemseicomosevaicomer.Bolão conta mais uma vez ao Homem-Cobra a sua vida. O Homem-

Cobra ouve indiferente. No outro caminhão Antônio Balduíno e RosendaRosedá riemàsgargalhadas.AntônioBalduínopegadoviolãoe cantaumsambaquecomeçaassim:

“Avidaéboa,mulata.

Fí i pensa que não, Bolão também, Giusepe chora, Luigi se irrita.SomenteoHomem-Cobravaiindiferente.

ArmaramocircoemSãoFélix.CircoédivertimentodegentepobreeSão Félix uma cidade de operários. Apareceu um homempara lutar com

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Antônio Balduíno. Era um negro que já fora marinheiro. A luta foivastamenteanunciada.Luigiesfregavaasmãosumanaoutra,satisfeitodavida, e já ouvia sem se irritar os sambas de Antônio Balduíno. O palhaçocorreu a cidade, os homens comentaram, asmulheres riram.Na noite daestréia a frente do circo estava iluminada, veio a orquestra com osmoleques atrás, pretas venderam munguzá na porta. As pessoasimportantes trouxeram cadeiras e chegou muita gente de Cachoeira.Primeiro entrou Fi i (como a companhia estava reduzida, sem Robert esemo cavaloFuracão,Luiginão fezapresentações)queandounoarame.Depoisopalhaçodivertiuosespectadores.VeioRosendaRosedáedançou.Desta vezAntônio Balduíno não a acompanhou ao violão porque ele estanoiteeraBaldo,ogigantenegro.Jujuapresentouomacacoeourso.Láemcimaestavamtrapézios.Fi i fariaoutronúmeroparaencheroespetáculo.Estavanahoraeosmata-cachorrosprepararamostrapéziosque icarambalançandonoar.Todosolhavamparacima.Fi iapareceudesaioteverde,cumprimentou e subiu. Experimentava o trapézio quando uma igurainvadiuopicadeirovestidacomumaroupasovadadecasimiraeandandocomo bêbado. Era Giusepe. Luigi se precipitou atrás dele, mas como amultidão aplaudia pensando que fosse outro palhaço, deixou-o correndopelaarenaegritandoparaosespectadores:

—Elavaicair!Elavaicair!Opúblicoria.Eriuaindamaisquandoeleafirmou:—Euvousalvarapobrezinha.Ninguém conseguiu agarrá-lo mais. Subiu pela corda com uma

agilidade que ninguém acreditaria possível nele, soltou o outro trapézio.Fi i do outro lado olhava assombrada, sem saber o que fazer. Osespectadores não percebiam nada. Luigi e dois mata-cachorros subiampara o trapézio. Giusepe deixou que eles se aproximassem e quando ossentiu bem perto voou com o trapézio, se soltou no ar, deu o mais belosalto-mortaldetodaasuacarreiraeprocuroucomasmãosa litasooutrotrapézio. Caiu no picadeiro e as suas mãos angustiadas, procurando otrapézio, pareciam dar adeus. Mulheres desmaiavam, pessoas corriampara a porta, outras se aproximavam do corpo. As mãos pareciam daradeus.

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“ABCde

AntônioBalduíno”

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InvernoOinvernolavoutudo.Lavouatéasmanchasdesangueque icaramno

lugaronde foiopicadeirodoGrandeCirco Internacional.Luigivendeuastábuasda arquibancada, opanogrande, omacaco aumdos alemãesdasfábricas, distribuiu o dinheiro pelo pessoal e declarou o circo dissolvido.JujupartiuparaacidadedeBon imporondeandavaoutrocirco...Talvezarranjassetrabalho...Antesdepartirdisseaosoutros:

—Nuncaviumcircotãosemdinheiro...Maseugostavadele...LuigijuntouoleãoeFi ieforamperegrinarpelascidadesdointerior,

fazendo de barracões teatros, cobrando quinhentos réis de entrada. OHomem-Cobra deu um espetáculo em seu bene ício no teatro local edesapareceu. Antônio Balduíno pensava que se ele fosse para asplantaçõesdefumoseriamcapazesdeotomarcomoaumamulher.Eleàsvezespareciaumadama,outrasvezespareciaumadolescente.MaséqueonegronãoviraemCachoeiraumhomemqueumdiaapreciaraaestréiadocircoemFeiradeSantana.Umhomemviajado, já estiveranoRioenaBahia, eque se retiroudocircomalacabaraonúmerodoHomem-Cobra.Fugiranumautomóvel. Sódepoiséque se soubequeapolíciaprocuravaaquele homem que furtara todo o dinheiro de uma loja onde eraempregado.

NadivisãodascoisasqueLuiginãoconseguiravender,oursocouberaaAntônioBalduínoeaRosenda.RosendanemperceberaqueaquilotinhasidocombinadoentreAntônioBalduínoeLuigi.Onegrofalou:

—A gente não pode dividir o bicho... Para vender, a gente não achaquemdêummil-réisdemelcoadoporele.

—Oqueéqueagentefaz?—Agente leva elepraBahia. Toupensandonaminha cabeçaque a

gentepodeganhardinheirocomelenaFeiradeÁguadosMeninos..—Ounoteatro...—arriscouRosenda.—Também—onegroapoiavaporquenãoquerdiscutir.No cais souberam que o saveiro de Mestre Man chegaria dois dias

depois.EsperaramoViajantesemPorto.Masoinvernobatianaságuasdorio.Chuvasgrossasenfarruscavama

facedaságuas.Oriodesciacaudalosoe trazia troncosquearrancaranasplantações, cadáveres de animais, e passou até uma porta que a águatirara de uma habitação. As coroas de pedras haviam desaparecido e os

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homensnãoentravammaispelorioparabuscaropeixedoalmoço.Orioestava traiçoeiroe roncavacomoumanimaldosmatos.Grupos icavamaespiá-lode cimadaponte e elepassava embaixo comouma serpente.Decima vinha cheiro doce de fumo. O rio já engolira dois saveiros nesseinverno.Haviaumaoperáriaenlutadanumadasfábricas.

Caem grandes cargas-d’água durante a noite. Não há, porconseqüência, razão para Rosenda Rosedá sair esta noite da pensão deDona Raimunda e inventar esta história de passeio. Foi para Cachoeiracomcerteza.Elaqueriaeradeixá-loalicomoumabesta,tomandocontadourso,queandavaimpacientecomachuvaquedesabavanotelhado,comoruídodorio,comocheirodefumo.Nãopodemdeixaroursosozinho,issoé verdade. Mas para que este passeio de noite? — e o negro AntônioBalduínobate amão fechadanamesa. Se elapensaqueele éburro,quenãoentende,estáenganada.ElapensaqueelenãoviuaquelealemãoatrásdelesanoiteemqueGiusepemorreu?Nuncamaisdeixaradesegui-los,deprocurar conversa, de dizer coisa. Por duas vezes Antônio Balduínoquisera interrogá-lo, perguntar oque elequeria.Agora se lembravabemqueumatardedisseraaRosenda:

—Euvouperguntaraestegringoseelenuncameviu...Rosendaachouquenãovaliaapena,queerabesteirabrigar,quecom

certeza o gringonemestava olhandopara eles. E o arrastoudali.Mulherquando quer tapa os olhos da gente. Mas agora ele estava com os olhosbem abertos e compreendia. Ela saíra para se encontrar com o branco.Andariampor qualquer parte, ela abrindo as coxas para ele.Negra sem-vergonhaaquela!Queeragostosaeramesmo,maselenãoerahomemdeser enganado assim. Sempre se gabara de largar as suas amantes eRosenda queria brincar com ele. Onde andaria? Teriam se metido numhotel? Era bem capaz, que o gringo era sujeito de dinheiro. Mas ele ospegariaedariaumalição.Achuvabatenotelhado.Valeráapenasairparaprocurá-los?Talvezsejamelhor icaremcasaetrancaraportadoquarto.Elaquedurmanarua.Porém,malformulaestepensamento,sentefaltadocorpo esguio e quente de Rosenda. Demais, ela quando dorme com umhomem é como se dançasse. Sabe coisas aquela negra! Antônio Balduínosorri.Anoiteéfria,achuvacaicomviolência.Umgatoseenroscanassuaspernas procurando calor. A cama velha é macia. Bom colchão o daquelequarto. Emmuita pensão cara não tem um colchão assim. E Rosenda emque camaestará como gringo?Talvez sejaumcolchãoduro. Elamereciauma surra. Não vale a pena, um homemmatar outro por causa de umavagabundacomoRosenda.EleesfaqueouZequinhamasArmindaerauma

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meninadedozeanos,quenadasabiadavida.Aquelenegro,quehápoucosdias foi condenado a dezoito anos de prisão, matou um gringo, masMariinha era donzela e noiva do negro. Ele devia era dar uma surra noalemãoelargarRosendaporaí.Mascomoestáfrio!Botaogatonocolo.Obichano ica satisfeito, esfrega a cabeça nas suas pernas. Assim ele nãosairá para procurá-los. O urso está inquieto. Talvez ele tenha medo dachuva, talvez tenha saudadesdealguém.Masurso lápode ter saudades?Coitado daquele urso... Há quantos anos não vê uma fêmea? AntônioBalduíno não pode passar uma semana sem ter mulher — ri comsatisfação. Talvez o urso seja capado. Vai examinar. O animal se encolhezangado.Nãoécapadonemémacho.Éfêmea, issosim.QueiráfazercomaqueleursonaBahia?.

Bom seria soltá-lo no Morro do Capa-Negro. Pensariam que era umlobisomem. A chuva melhorou. Ele se levanta. Irá procurar Rosenda.Sacodeogatolonge.MasRosendaRosedáacabadeentrarevemrindo,osdentesbrancosàmostra.

Repara logona cara zangadadeAntônioBalduíno.Vemrindoparaonegro.

—Tázangado,benzinho?Foiourso?—Vocêfazdebesta,negra.Entãopensaqueeunãoseiquevocêfoise

encontrarcomaquelegringo?—Quegringo,meuDeus?Será verdadeira esta surpresa que se estampa no seu rosto? Mas

Balduíno pensa que mulher é bicho ruim e traiçoeiro. Toda vez que elepensa em mulher ruim se lembra de Amélia, a empregada da casa docomendador.Améliamentiacinicamente,comamesmacaradequemestáadizeramaiorverdadedomundo.BemqueRosendapodeestarmentindoparacimadelecomaquelacarainocente:

—Entãoondeeraquevocêtava?—Agentenempodeirdarumdedodeprosanacasadeumavizinha,

gentes?—Vizinha...—Ésó irperguntaràmulherdeSeuZuca.Eu tava lá...Elaconheceu

unsparentesmeusqueteveporestasbandas.O urso impacientava-se cada vezmais. Antônio Balduíno agora sente

pouca vontade de discutir. Está disposto a aceitar todas as desculpas. Oque ele quer é deitar no colchão fofo tendo junto de seu corpo o corpoquente de Rosenda. A chuva aumentou novamente e escorre pelostelhados.Tem.umagoteiranomeiodoquartoquevai fazendoumburaco

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no chãodebarrobatido,Ourso andava emvoltada corrente.Rosendaoagarra,passaamãonasuapele.Masoursocontinuaimpaciente.Denadavalem as carícias deRosenda. AntônioBalduíno, estirado na cama, pensanummeiode fazeraspazes.ElequeréRosenda juntodele,ocorpo juntodoseu,oventredançandoencostadoàsuabarriga.Talvezamanhãlhedêumasurraeaabandone.Porém,hojenão.Eleprecisadela,doseucorpo,dasuaquentura.Opioréquejábrigouenãopodefazeraspazesassimderepente. Ela ainda está zangada e agrada o urso. Ele não sabe comocomeçar.Fechaosolhosmaselanãovemparaacama.Enoentantochoveláfora,oventopassanaruazunindo,entrapelafrinchadaporta.Seráqueela não sente esse convite? Ela está muito zangada. Talvez tenha razão.Bem que ela podia estar com a vizinha, aquelamulher de Seu Zuca quesabedavidadetodomundo.Elatiraovestido.Ovestidonãoestámolhado.Se ela tivesse ido longe, se tivesse ido como gringo, volveria encharcada,com certeza. Ele icou sozinho, começou a pensar besteira. O gato seenroscounos seus pés e faz um calor gostoso.Mas o resto do corpo estaabandonadoaofrio.Achuvabatenotelhado.EleselembradeunsversosqueoGordosabe.Falamdamúsicadachuvanotelhadoedeumamulherquechegapelamadrugada.Elenãotembemcertezaseelavinhaacavaloouapé.CaiuacombinaçãodeRosendaRosedáeagoraosseiosdanegraencheramoquarto.ÉsóoquevêemosolhosdeAntônioBalduíno.Poucasdonzelasterãoosseiosqueelatem,eretoseduros.AntônioBalduínoatiraocigarrofora.Efazendoumesforçoenormediz:

—Vocêsabequeesteursoéumaursa?—Oquê?—Oursoéfêmea,negra.Osseiossedespencamsobreopeito.Enocenáriodachuvaedofrio,

doventoquezunena rua,Rosendadançaunicamenteparaele.Empurracomopéogatoquesaimiando.

OViajantesemPorto entrounocaisdebaixodoaguaceiro.MariaClaraprepara um café para eles. Partirão logo noite, mal o saveiro estejacarregado. O urso ica amarrado no porão.MestreManuel dá notícias doGordoquevoltouavenderjornaiseenterrouaavó.Jubiabácontinuavivoa fazer feitiços e a prestigiarmacumbas. Joaquim é visto diariamente naLanternadosAfogadoscomZéCamarão.AntônioBalduínoquernotíciasdetodososconhecidosetambémdacidade,docais,dosnaviosquechegamepartem.Novamenteelevaiparaomistériodomar.Quandoelefugiu(tinhaapanhado uma surra tremenda do peruano Miguez) não sabia rir mais.

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Andava com a cabeça atravancada com as histórias de Jubiabá, com avergonhadasurraquetomara,como imdasuacarreiradeboxeur,comonoivado de Lindinalva. Agora sabia rir de novo e iria com certeza gostardas histórias trágicas de Jubiabá. Porque na sua fuga de dois anos viramuitamiséria.Asuagargalhadatemhojeumtomcruel.Enoseurostoháum talho. Foram os espinhos da noite do cerco.MestreManuel perguntapela história daquele talho. Maria Clara ica espiando no fundo. AntônioBalduínocontaepensanomar,nosguindastesdocais,nosnaviosnegrosquepartemnanoite.

Foi numa noite assim de temporal que Viriato entrou pelo maradentro. Os siris habitaram o seu corpo e chocalhavam. Também o velhoSalustiano foi procurar nomar o caminho de casa. E umamulher que sejogarana água comumapedranopescoço?O saveiro balançanas águasem cima das coroas de pedra. Hoje ninguém vê as coroas. As águastaparamtudoeMestreManuelnãocederiaolemeaninguém.

Seriarápido.Osaveirobaterianumiacoroa,acabariaaconversaentreMariaClaraeRosendaRosedá.(MariaClaratemoscabelosemdesordematirados pelo vento e deles vem um perfume de mar. Talvez ela nuncatenhahabitadonumacasa,talvezseja ilhadomar.)OcachimbodeManuelseapagaria.Easáguasdoriocobririamtudoqueorioestácheioechegaafazer ondas como se fosse omar.MasMestreManuel não cede o leme aninguém.Oventosacodeasárvoresnasmargens.Muitoao longebrilhaalanternadeoutrosaveiro.Naescuridãodosmatososvaga-lumespiscam.Ovento carrega o saveiro que voa sobre as águas como uma lancha agasolina. Neste momento, no meio do temporal, eles estão bem perto damorte.Umdesviodolemeeelesse jogarãosobreascoroasdepedraqueestão invisíveis. Antônio Balduíno vai de papo para o ar, pensando estascoisas. No céu não vê nenhuma estrela, somente nuvens negras ecarregadas correm açoitadas pelo vento. DeMaria Clara vem este cheirode maresia. E o mar está próximo. O saveiro está chegando na boca dabarra.Asmargensdoriovão icandoparatrás,ospovoadosdormemsemluz.AntônioBalduínopensaquea inalavidaébesta,quenãovaleapenaviver.Viriato,oAnão,sabiadestascoisas.Eaestradadomarélarga.Hojeélargaerevolta.Odorsoverdedomarseagita.Tambéméumconvite.Ele,negro valente e decidido, desde criança pensava em ter um ABC quecontasse aosoutrosnegros a suahistória cheiade lancesde coragem. Seele fosse engolido agora pelas águas, não contariam a sua história. Umnegrovalentenãosemata,anãoserparanãoseentregaràpolícia.Eumhomem de vinte e seis anos ainda tem muito que viver, ainda tem que

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brigar muito para merecer um ABC. Mas o mar é um convite. Ali está ocaminho de casa. Vem deMaria Clara um cheiro demaresia. Ela fala nomar, conta casos acontecidos com mestres de saveiros, histórias denaufrágios e demortes. Fala em seu pai que foi pescador e desapareceunumajangadanomeiodeumtemporal.Delavemocheirodomar.Nelaomar está semprepresente, é amigo e inimigo e já se incorporounela.NonegroAntônioBalduínonadaseincorporou.Jáfoitudoenãoénada.Sabeque luta e que precisa lutar aindamais. Porém, tudo isto aparecemuitoesfumaçadamentedentrodele.A sua lutaéuma lutaperdida.Eleo sentenosnervosque afrouxaram.Como sedesse socosno ar. E agoraomarochama, como na vinda o chamavam os lábios de Maria Clara. MestreManuel aponta. Ao fundo aparecem as luzes da Bahia. O vento voa emredordas suas cabeças.E traz todooperfumedemarqueestáno corpodeMariaClara.AsluzesdaBahiafaíscamcomoumasalvação.

RosendaRosedá icouna casa doGordo. Jubiabá veio denoite e elesbeijaramasuamão,Onegrovelhoseacocoraaumcanto.Aluzdo ifóbateemcheionasuacaraenrugada.NacasadoGordonão tem luzelétrica.OGordo sorri na alegria de rever o amigo. Todos ouvem as histórias deAntônio Balduíno. O urso dorme a um canto. E resolvem que no diaseguinteirãotodosparaaFeiradeÁguadosMeninos,paraverseganhamalgum dinheiro com o trabalho do urso. Descem para a Lanterna dosAfogados, onde se embriagam. Depois Antônio Balduíno leva RosendaRosedáparaoarealeaamadiantedomar.Maselasequeixadaareiaquedóinoseucorpoequesemeteunoseucabeloalisadoa ferro.Onegroricomgosto.Ovultodosguindastesnocais.

AFeiradeÁguadosMeninoscomeçananoitedosábadoeseestendepelodomingoatéaomeio-dia.Porém,nanoitedesábadoéqueébom.Oscanoeiros atracam as suas canoas no Porto da Lenha, os mestres desaveiros deixam os seus barcos no pequeno porto, homens chegam comanimais carregados, as negras vêm vendermingau e arroz doce. Bondespassam perto, cheios de gente. Todo mundo vem à Feira de Água dosMeninos.Unsvêmparacomprarmantimentosparaasemana,outrosvêmpelo prazer do passeio, para comer sarapatel, para tocar violão, paraarranjarmulher.AFeiradeÁguadosMeninoséumafesta.Festadenegro,com música, violas, risadas e brigas. As barracas se estendem em ilas.Porém amaior parte das coisas não está nas barracas. Está em grandescestos, em caçuás, em caixões. Camponeses de chapéu largo de palha,sentados ao lado, conversam animadamente com os fregueses. Raízes de

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macaxeira e de inhame, montes de abacaxis, laranjas e melancias. TemtodasasespéciesdebanananaFeiradeÁguadosMeninos.Temde tudona feira.Umhomemquetirasortecomumperiquito.Custaduzentosréiscadasorte.RosendaRosedátirouasua.Diziaoseguinte:

“SORTE

Não con ies empessoasque te adulamporque tudo é falso. És aindaingenuapor julgares a todospor ti. Tendesumbomcoraçãoenão julgasninguemmáu.Mas tudo issonão inspiramuito cuidadoporquenascestesn’umaboaestrella.Asuamocidadeseráumacorrentezadeamoreseterásnoamormuitasdesavenças.Casaráspor imcomumrapazaquemmenosimportânciadarásnoprincipioepor imtomarápossenoteucoração,queseráounicoqueamaráavidainteiracomverdadeiroaffecto.Darásluza3lindosbebés,osquaes criarás commuito cuidadoe te trarãoverdadeirapazaocoração.

Viverá80annos.TerássortenaLoteriacomon.04554.—S.U.O”

Rosendariu,AntônioBalduínoavisou:—Vocêvaiparirtrêsvezes.— Uma cigana disse que eu ia ter oito ilhos. E que ia fazer uma

viagemgrande.Aviagemjáfiz.VimdoRiopraBahia.Elaacertou.MasAntônioBalduínopensanopedaçoda“sorte”emquediz: “asua

mocidade será uma correnteza de amores e terás no amor muitasdesavenças”. Decididamente ele está enrabichado pela negra. Até pareceque ela fezmandinga com pai Jubiabá. Jubiabá não veio à feira. Ainda écedo para ele. Hoje é sábado e vai muita gente procurar o pai-de-santo.Gentequesofre.Uns,doentesquequeremremédiosparaocorpo:feridas,tuberculose,lepra,moléstiadavida.Jubiabávaidistribuindofolhaserezas.Outros vêm porque sofrem traição de mulher, ou porque desejam umamulherquenãodáousadia,vêmembuscadefeitiçosfortes,demandinga,de coisa-feita. No domingo as ruas amanhecem cheias de mandinga. PaiJubiabá protege amores, acaba amores, arranca mulher de cabeça dehomem, bota homem na cabeça de mulher. Sabe segredos de graúdos,sabedavidadospobres,oqueéqueelenãosabenasuacasinhadoMorrodoCapa-Negro?Maistardeeleviráarrimadoaobordão.Jácurougente,jáacertouosnegóciosdemuitaspessoas.Chegaráaliondeelesparamagora.OGordo jáchegoucomourso.AntônioBalduínoatrapalhasempreavidado Gordo. O Gordo está muito bem, vendendo os seus jornais quandoBalduínochegaearranjaoutronegócio.Elelargaosjornais,segueoamigo.

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De repente tudo acaba e o Gordo volta a apregoar jornais com sua vozsonora e triste. Agora está com esse urso pra cima e pra baixo. Nãoprincípioeletinhamedodourso.Masdepoisseacostumoucomobichoe,comosuaavójámorreu,étodocarinhoscomoursoquetemcomidafartamesmoqueoGordo iquecomfome.Oursoestáaliamarradopelofocinho,prontoparaganharavida.CamponesessereúnememredordoGordoqueinventa uma história para o urso. Mas ele se encontra com umadi iculdade:ursoteráanjodaguarda?Elenuncaouviudizer.MashistóriassemanjosperdemagraçaeoGordoresolvedarumanjoaourso,quandoBalduínochegaerepeteoqueouviaLuigidizeracercadoleão:

—Essemonstroquetáaqui,respeitávelpúblico,foipegadonasselvasafricanas.Étrêsvezesassassino,jámatoutrêsdenodadosdomadores.(SelembrapalavraporpalavradodiscursoqueLuigirepetiatodasasnoites.)É um assassino... Pois ele irá trabalhar e todos podem observá-lo porémcomcuidado.Nãoseesqueçamqueelejámatoutrês...

OGordoolhaparaofocinhodoursoedescobrequeeletemunsolhosmeigosdecriançaeéincapazdematarquemquerqueseja.Nãoédireitoque Balduíno o chame de assassino.Mas o urso está andando de cabeçapara baixo e o grupo aumenta em torno. Rosenda lê amão dos homens.Eles gostamporque ela faz uma cócega engraçada que dá uma comichãono corpo. Rosenda sabe ganhar dinheiro. Diz rindo para um mulatopachola:

—Temumacabrochaqueestádoidinhaporvocê...Omulato sorri para Rosenda. Bem que podia ser elamesma. Ela vai

guardandoosníqueisdecruzado.OGordorecolhedinheiroparaoursonochapéudepalha.AntônioBalduíno,muitoelegantecomsapatosvermelhose camisa vermelha, faz o elogio do bicho.A feira semovimenta em redordeles.

Umautomóvelestáparadonarua.Enguiçou.Ochofersemetedebaixodocarroaprocuraromotivodaencrenca.Umhomemexplicaaogrupo.

— Não estou dizendo? Máquina não vale de nada... O cavalo Fogosonuncaencrencou.Vocêsjáviramumcavaloencrencar?

Antes ele estava contando a história do cavalo Fogoso que seucunhado possuía. Ele é contra o cavalo motor. Faz a apologia do cavaloanimal,docarrodeboi.CitavaaBíblia. Jubiabáouveencolhido.Osoutroscortam a conversa com sinais de aprovação. Quando Jubiabá chegou elescontaramodinheiroque tinhamganho—cinqüentaenovemil-réis,umafortuna— e icaram se divertindo na feira que está animada. O urso vai

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atrásdeles. Em frente àbarracaonde Joaquimbebe, eles todosparam.EficamouvindoohomemquecontavaahistóriadocavaloFogoso:

— E naquele tempo, quando não tinha aquilo — aponta o autoencrencado — os homens viviam muito... Matusalém viveu novecentosanos...TánaBíblia...

—Támesmo—apóiaummulatoclaroevelho.—Todomundoviviaduzentosanos,trezentos.Cementãoerabesteira.

VejanaBíblia...—Dizquepapagaiovivemaisdecemanos...Ohomemolhou zangadoparao aparteante.Masquandoviuque era

Rosendafezumsorriso.—Viviamesmo.Noéviveunãoseiquanto tempo.Naquele tempoera

carrodeboi.Bebeuapinga.Omulatoclaroapoiou:—Era,sim.Omulato queria provar que também tinha conhecimentos.Umnegro

apoiavacomacabeça.EstavaadmirandoohomemquecitavaaBíblia.—Umhomemsaíadecasanumcarrodeboi,sabiaquechegavaonde

queria ir. Agora um sujeito sai num bicho destes — apontava o autodesmoralizado—e icanomeiodocaminho...Faltagasolina.Emcarrodeboinuncafaltougasolina.Éporissoquehojeoshomensmorremmeninos.MáquinanãoéinvençãodeDeus.Écoisadodiabo.

Omulatoclaroapoiou.Ohomemcontinuou:—Notempodocarrodeboimulherdavaàluzcomcemanos...—Tá,nissoeunãoacredito.Medesculpe,masmulherparircomcem

anosnãomeentra...—declarouAntônioBalduíno.Todosriram,menosomulatoclaro.—PoisestánaBíblia...—fezohomem.Masnãohavia jeitodeAntônioBalduínoacreditar.“Mulherparircom

cem anos?” Não, ele não ia nisso. Aquele homem estava fazendo eles debesta,bobeandotodomundocomaquelashistórias.Eelevaiabrirabocaparadizeristomesmo,quandoJubiabáfala:

—Notempodocarrodeboitinhanegrocomfome.Hojetambémtem.Pranegroéamesmacoisa.

Omulatovelhoapóia:—Ah!Issoémesmo—ealargaoconceito—parapobre.Masafeiraestávivendoatrásdelese,enquantoJubiabáconversacom

ohomemqueodeiaos automóveis (ele agora está contando ahistóriadeuma doença que sofre há muitos anos), saem pela feira, sem rumo

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de inido, parando nas barracas, conversando com os camponeses,comendocoisas.UmhomembêbadoolhaRosendaediz:

—Eta!Mulatabatuta...AntônioBalduínoseofendemasRosendanãoodeixa—Nãoestávendoqueohomemtábêbado?—Eelenãoestávendoquevocêvaicomummacho?Não,ohomemnãoestávendonadaqueelebebeumuitoemtodasas

barracasonde temcachaça.Mas soubeverRosenda, soubeverqueelaéumacabrochabonita. Já afastadoAntônioBalduínoainda temvontadedevoltareinterrogarohomem.

Maisadiantesaiumbarulho.Jubiabávemdizerquevaiembora.Atrásdelesegueohomemqueodeiaosautomóveisequeagoratemumagrandecon iança de se curar com as rezas de Jubiabá. O barulho aumentou nooutro ladodafeira.AntônioBalduínonotaqueoGordonãoestácomeles.Pergunta:

—QuedêoGordo?—Deveestaraícomourso.JoaquimsótemolhosparaRosenda.Seelanãoestivesseamigadacom

Balduínobemqueele lhepassariaumacantada.Ele sabe láondeandaoGordo.

—AquelabrigaécomoGordo—dizAntônioBalduínoqueseafastouumpouco.

—ComoGordo?—Rosendaseespanta.Antônio Balduíno e Joaquim correm. Rosenda apressa os passos. O

Gordo se defende das pancadas de um sujeito que puxa a corrente dourso.Oshomensemtornogritam:

—Deixa...Deixaver.AntônioBalduínoatravessaogrupo,botaamãonoombrodoGordo:—Oqueéqueelequer?—Querenfiarocharutononarizdourso.— Só para ver o que é que ele faz... — ri o homem, mostrando o

charuto aceso. O homem tem uma cicatriz no queixo e o bigode ralo emcimadolábio.—Eletemumacaratãoengraçada.Voubotar...

Riem em redor. Antônio Balduíno morde a mão. Joaquim está pordetrásdohomem,queouveoquelhedizemosdoismulatos.Ohomemdecharutoresmunga:

—Quenada...Besteira...Voubotar.—Podebotar—dizAntônioBalduíno.Ohomemseaproximadourso.Levantaocharuto.Oursorecua.Mas

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agora o charuto está junto do focinho do bicho e o Gordo vai gritar. OhomemseestendenochãocomosocodeBaldo,oboxeur.Osdoismulatosqueestavampordetrásdohomemavançamparaonegro.Masumdelesica nasmãosde Joaquime o outro recebena bocado estômagoo pédeAntônioBalduíno.OGordoquer dar umapancada no homemdo charutoqueestáselevantando.Masacertanacaradeumnegroquenãotemnadacom a história e que revida. O irmão do negro também entra na briga.Mestre Manuel, que vendia abacaxis, aparece, com ele vêm mais três. ÉAntônio Balduíno quem está brigando, então ele briga também. E os trêsrapazes que o acompanham entram com ele no barulho. Vários homensentram para desapartar e icammetidos na briga. Um soldado puxa umsabre.Masdequevaleumsabrecontratantasnavalhasquebrilham?Umguarda apita inutilmente na rua. AntônioBalduíno soqueia com força umsujeitoqueelenãosabequemé,umsujeitoquenãotinhanadaavercomonegócio,quesóentrouparadesapartar.Ohomemdocharutobatenumdosqueentraramdeseu lado.OGordoseafastoucomoursoeapreciaacena,RosendaRosedámordeoshomensqueatacamBalduíno,estácomovestidorasgadoetemnamãoumanavalhaquetiroudameia.TodaaFeirade Água dos Meninos briga. Briga por brigar, sem saber a causa, peloprazer ísicode se atracar comoutro, ede rolarna areia trocando socos.Osnegrosesqueceramtudo,asraízesdeinhame,osmontesdetangerina,os abacaxis, e os beijus. Querem agora é brigar, que brigar é bom comocantar, comoouvirumahistória, comomentir, comocontemplaromardanoitedocais.

OGordofurtaumagarrafadecervejaparaourso.Alguémgrita:—Lávemacavalaria.Rápido como começou, o barulho acaba. Os homens voltam às suas

barracas,osseusmontesdefrutasebeijus.Acavalarianãoencontramaisnada, apenas um pouco de sangue no local. Um homem tapa o talho quetemnorostocomumlenço.Asnavalhasdesapareceram.Eosnegrosriemsatisfeitosporquenestanoite já sedivertiram.OhomemdocharutodizaAntônioBalduíno

—Foiumturumbambadosdiabos.Oferece cerveja, alisa a cabeça do urso. A chuva cai molhando os

negros.

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CriouléuO Liberdade na Bahia icava na Rua do Cabeça, num segundo andar

servidoporumaescadaestreita.Éumasalaampla,cadeirasemredordasparedesparaasdamas,umestradoonde icavao jazz.Háaindaumpátiode cimento com mesas, onde é servida a bebida, pois é rigorosamenteproibido beber na sala de baile. Ao lado a latrina, O quartinho onde asdamasarranjamocabeloébempequeno,mastemumespelhogrande,umbanquinho para elas se sentarem. Tem também um pente e uma lata debrilhantina.Nosdiasdosgrandesbailes—quandoocarnavalseaproximaouseaproximamasfestasdoBon im—asala icaengalanadacom loresecom itasdepapelde todasascores.MasagoraoqueestápróximoéoSão João e do teto pendem balões inúmeros e inúmeras bolas cheias devento.Vai seruma festade arrocho ade São João.OLiberdadenaBahiatem tradições a zelar e o seu baile de junho reunirá, sem dúvida, toda acriadagem das casas mais ricas, todas as mulatas que vendem doces narua, os soldados do 19, os negros que estão espalhados na cidade. É ocriouléumaiscélebredacidade.NaBahianãosãomuitososcriouléus.Osnegrospreferemirdançarnasmacumbasadançareligiosadossantosesóvêm aos criouléus nos dias de grande baile. Mas o Liberdade na Bahiaconseguiu o apoio de Jubiabá que icou sendo presidente honorário eassimprosperou.Demaistinhaumjazzdobarulho,queseformaraali,masque andava ganhando dinheiro nas festas da cidade. Festa de gente ricasem o Jazz dos 7 Canários não prestava. E os negros até já vestiamsmoking.Porém,elesdavamtudoeranafestadoLiberdadenaBahia.Nãohavia dinheiro que izesse o jazz tocar emoutra festa nos dias emque ocriouléu dava baile. Ali eles dançavam, vestiam uma roupa qualquer,estavamentreamigosehaviadiscursos.OLiberdadenaBahiaandavanoaugeetinhatradiçõesazelar.Preparava-seobailedeSãoJoâo.

TodavezqueAntônioBalduínoviao Jazzdos7Canáriospensavaemsermaestro de uma banda demúsica ou de um jazz. De uma banda demúsica seria melhor porque os seus componentes vão fardados e omaestrovainafrente,decostas,comumabatutanamão.AntônioBalduínoamava as cores vistosas, as fardas rutilantes dosmaestros de bandas demúsica. Os homens dojazz vestiam uma roupa qualquer ou envergavam(nas festas ricas) smokings que não tentavam o negro. Assimmesmo, nafaltadabandademúsicaelesecontentariacomserochefedojazz,aquele

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quecantaesapateia.Hámuitotempoqueelenãofaziaumsamba.Também,nasplantações

defumo,elenãotinhatempoparanada.Porém,agora,malvoltaraparaaBahia, izeradoissambasqueaténorádiotinhamsidocantadose,maisdoque isso, izera o ABC de Zumbi dos Palmares, onde cantava a vida queimaginavaparao seuherói. Pelo seuABCnasceranaÁfrica, brigara comleões,matara tigrese,umdia,enganadopelosbrancos,entrounumnavioqueotrouxeescravoparaasplantaçõesde fumo.Maselenãogostavadeapanhar, fugiu, lutou junto com outros negros, matou muitos soldados eparanãosedeixarprendersejogoudeumamontanhaabaixo:

“Áfricaondeeuvialuzeumealembrodetiviviasolto,caçandocomendofrutaecuscuz.

PalmaresondeeubrigueiLuteicontraaescravidãoMilpolíciasaquiveioenenhumanãovoltou.

ZumbidosPalmaresentãodomorroabaixosejogoudizendo:meupovo,adeus,voumorrerporqueescravoeunãosou”.

OGordodecoraralogooABCeorecitavanasfestasacompanhandoaoviolão.

AntônioBalduínoprocurouaquelepoetaquelhecompravaossambasparaverseelequeria icarcomoABC.Masopoetasóquisosdoissambas,dissequeoABCnãovalianada,queosversosestavamquebradoseoutrascoisasqueBalduínonãoentendia.OnegrosezangouporqueachavaoABCmuito bonito e, depois de ter recebido trinta mil-réis pelos dois sambas,disse umbocadode desaforos ao poeta quenão reagiu. Coma alma leveAntônioBalduínoseretirouecantouoABCparaRosendaeJubiabáqueoacharamumabeleza.JubiabáarranjoucomSeuJerônimodomercadoqueo ABC saísse naBiblioteca do Povo (coletânea das melhores poesiassertanejas, trovas populares, histórias, modinhas, recitativos, orações,receitasúteis,anedotas,etc.,aopreçodeduzentos.réis).Saiu juntocomaHistória doboimisterioso e comO caboclo e o recém-nascido e depressa

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foi decorado pelos estivadores do caís, pelosmestres de saveiros (que olevaram para os cegos das cidades do Recôncavo), pelos malandros dacidade,portodososnegros.AgoraAntônioBalduínosópensavaementrarparaoJazzdos7Canários.

ErasóciodoLiberdadenaBahiamasnãoapareciamuitoporlá.TinhasemprefestasaondeirenoLiberdadenaBahiaabebidaerapagaebóianãohavia.Sómesmopor.causadeumamulataeleseabalavaparaoclubeondeSeuJuvêncio,osecretário,umnegrogordoqueeratambémmestre-sala,lhediziainvariavelmente:

—Atéqueen im,SeuBalduíno,deuessahonraaoclube.Parecequedesprezaagente.

Não desprezava nada.Mas no Liberdade na Bahia não podia dançaragarrado que era proibido, não podia icar conversando com a dama nomeio da sala, não se admitia gente bêbada. Tudo isso desagradava aonegro que não sabia se conter, que apertava as negras na dança, quemuitas vezes icava bêbado. Lembra-se bemda primeira vez que fora aoclube.Faziamuito tempo.Malentrara tiveraumabrigacomSeu Juvêncio.Ojazzestavatocandonumentusiasmodelirante.Porsinalqueeraumdosseus sambas, dos primeiros que vendera ao poeta. Ele tirou umamulatapara dançar (a Isolina, com quem andava de namoro). Começaram adançar pela sala e o negro apertou amulata. Foi o que bastou para. SeuJuvênciosemeter:

—Issonãopode...—SeuJuvêncioeraummestre-salamuitorigoroso.—Queéquenãopode?—Issoaquinãoélugarparamolecagem.—Queméqueestáfazendomolecagem?—Osenhorcomestadama.Balduínomandouamãona carado secretário. Formoubarulho,mas

Jubiabá se meteu e desapartou. Seu Juvêncio explicou que tinha quemanteramoraldoclube.Se fossepermitirmolecagemali,as famíliasnãoviriam mais e que haviam de dizer os pais das moças donzelas quecon iavamnoclube?Nãoimportavaqueninguémsegostasse.Issonão.Elelá tinhanadacomavidadosoutros!Masdentrodoclube,não.Aliqueriarespeito e muito respeito. Ali não era casa de mulher-dama. Era umasociedaderecreativaedançante.Issosim.AntônioBalduínoachouqueeletinha razão e izeram as pazes. O negro continuou a dançar e a beber.AcontecequeoGordoveio tambéme icarammuitoalegres.Masquaseàuma hora da manhã um sargento do exército começou a dançar muitoescandaloso com uma branca. Seu Juvêncio reclamou a primeira vez, o

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sargentonem ligou.Seu Juvêncioreclamoudenovo.Na terceiravezdisseque o sargento nãopodia continuar dançando.O sargento empurrou SeuJuvêncio. Antônio Balduíno semeteu, apoiando Seu Juvêncio, derrubou osargento que saiu desmoralizado, ameaçando. Depois foi beber umacervejacomosecretário.Masnãoéqueosargentovoltoucomumaturmadesoldados?Esaiuumbarulhofeio.Foiumapancadariamedonha.Houvequem se trancasse na latrina e até tiros os soldados dispararam. A festaacabou com cabeças quebradas e gente na cadeia. Antônio Balduínoconseguiu escapar. Ficou célebre no Liberdade na Bahia e quandoaparecia, Seu Juvêncio fazia muita festa, mandava descer cerveja. Mas averdadeéqueelepreferiaasfestasdoMorrodoCapa-Negro,dasruasdeItapagipe,doRioVermelho,aosbailesdoLiberdadenaBahia.Nocarnaval,sim, é que gostava do clube porque saía vestido de índio, com penasvermelhaseverdes,cantandocançõesdemacumba.Nocarnavalerabom.MasnoSãoJoãoelepreferiairparaafestaqueJoãoFranciscodavanasuacasa,noRioVermelho,comumafogueiraenormenaPorta,ummundodebalões,foguetes,muitacanjicaelicordeJenipapoMasesseanoteriaqueiraoLiberdadenaBahia,poisRosendaRosedá izeraumvestidodebaileequeria estrear na festa do clube. Era vaidosa aquela mulatas Ele bempreferiairàfestadeJoãoFrancisco.

AntônioBalduínovinhapensandoqueRosendaRosedáestava icandoinsuportável.Queriamandarnele.Umdiadesteseledava-lheumpontapéeabotariaparaforadecasa.Anegraviviaquerendocoisas, izeravenderoursoparacomprarumvestidodebaile(podiacompraràprestaçãoaumturco),naquelediapediraumcolarqueviranumacasadaRuaChilepordozemil-réis.ElesaíraparacomprarmasseencontraracomVicenteedeudez mil-réis para o enterro de Clarimundo, que morreu debaixo de umguindaste no cais do porto. O sindicato ia fazer o enterro mas osestivadores queriam arranjar algum dinheiro para a viúva e andavamfazendo uma coleta. Iam levar uma coroa também. O pobre morreradebaixo do guindaste, aquela bola de ferro batera na sua cabeça (elecarregavaumfardoenãopodiaolharparacima),edeixavaamulhercomquatro ilhos pequenos. Antônio Balduíno deu os dez mil-réis e icou defalar com Jubiabá para ver se o pai-de-santo conseguia arranjar maisalguma coisa para a mulher. Balduíno conhecera muito o negroClarimundo, sempre risonho, cantando, e que casara com uma mulataclara. “Uma tábua”, como dizia Joaquim. Um bom companheiro, quedesapertavaumamigoquandoestavacomdinheiro.Agora tinhamorrido,

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amulher ia viverdoqueos outrosdessem.Deque valia trabalhar, viverdebaixo dos fardos carregando os navios? Depois morria e deixava osilhossemterdequeviver.OvelhoSalustianopegaraesejogaranaágua.E foi de tanto pensar nestas coisas que Viriam, o Anão, sematara numanoitedetemporal.AntônioBalduínonãogostadepensarnestascoisas.Elegosta é de rir, de tocar violão, de ouvir as histórias bonitas do Gordo, ashistóriasheróicasdeZéCamarão.Mashojeeleestáaborrecidoporquevaiperder a festa de João Francisco. Tem que ir com Rosenda ao baile doLiberdadenaBahia.AntespassaránacasadeClarimundoqueénomeiodocaminho.Iráveromortoquefoiseuamigo.Omelhoreranãoirafestanenhuma, era icar fazendo sentinela ao morto. Ia falar com pai Jubiabáparaqueofeiticeirofosseencomendarocadáver.ÉbemcapazdeJubiabáestaremsuacasa,conversandocomoGordo.AcasadoGordoficapertodoMorrodoCapa-Negroedevezemquando Jubiabádesceparaconversar.Jubiabá não envelhece. Quantos anos ele terá? Já deve ter passado doscem.Tambémsabetantacoisa.Jubiabáaumentaaangústiaquedequandoemvez tomaAntônioBalduíno. Jubiabádizumas coisasque icamdentrodo negro e o fazem pensar no mar onde Viriato se jogou, onde o velhoSalustianoesqueceuafomedos ilhos.AntônioBalduínopensaquenãoéomesmo,quenãoétãoalegrecomoantigamente.Agorapensacoisastristes.E alimesmo, na rua, o negro ri alegremente, alto. Transeuntes se voltamespantados.Onegrocontinuaa rir.Mascompreendequeestá rindomaisparairritarosoutrosqueporalegria.Continuaaandarcomopassomoleapressado. Parece até que está correndo. Porém, quando chega a casa jáficoucalmo,epensanaroupabrancaquevaibotarnobailedanoite.

—Meucolar,benzinho?AntônioBalduínoolhapara amulata comuma caradesconsolada. Só

agorase lembroudocolardeRosenda.Tambémdezmil-réis icaramcomVicente para a mulher do Clarimundo. A prata de dois mil-réis está nobolso.Rosendafazumardesconfiado:

—Vocênãotrouxemeucolar?—Vocêsabequemmorreu?MasnãoadiantaporqueRosendanãoconheceClarimundo.—Eutantoqueriaevocênãotrouxe...Sóderuindade...Depoisdizque

gostademim.Masdeixeestar...É véspera de São João e todo mundo está alegre na rua. Antônio

Balduíno gostaria também de estar alegre. Os homens passavam por elecom as isionomias risonhas e as casas de fogos estavam cheias defregueses.Todossepreparavamparaumanoite feliz.Soltariamtraquese

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estrelinhas. Os negros só conversavam sobre a festa de João Francisco esobre o baile do Liberdade na Bahia. No entanto Antônio Balduíno nãopode icar alegre esta noite. Clarimundo morreu e ele só pensa noestivador.Rosendaestá implicando, fazendo-sedebesta.Nãorespondeàsperguntas da negra que começa a chorar. Vai até a porta. Na casa deOsvaldo levantam uma fogueira. Vai ser enorme. No sobrado de fronte,moçasprocuramoretratodonoivonumabaciacheiad’água.Todosestãoalegres hoje. Só ele está triste, está aborrecido. Também a viúva deClarimundodeveestarchorandoMaselatemummotivo.Perdeuomarido.Mas ele não tem motivo algum a não ser o aborrecimento de Rosenda,Assimmesmo istoerabesteira.Podiadarumpontapénelae irà festadeJoão Francisco. Ela anda muito chata. Antônio Balduíno sai da porta.Rosendachoranoquartoedizquenãovaimais,OnegropegaochapéuevaiparaacasadeJubiabá,avisaropai-de-santodamortedeClarimundo.

Quando voltou, depois de ter conversado com Jubiabá e o Gordo (oGordo partiu logo para o velório), encontrou Rosenda de cara amarradamassepreparandoparaobaile.

— Sabe, Rosenda, a gente tem que passar um minuto na casa deClarimundo

—QueméClarimundo?—perguntouelaamuada.— Um estivador que morreu hoje. Foi pro enterro dele que dei o

dinheirodocolar.—Eoqueéqueagentevaifazerlá?—Veramulherdele,coitada.—Assimdevestidodefesta?—Oqueéquetem?Porém, Rosenda está furiosa com o negócio do colar e ica

resmungandoquenãoestádireitoirnacasadeummortocomvestidodebaile. Enquanto isso vai se aprontando. Antônio Balduíno toma o café. AspalavrasdeRosendavêmdoquarto.

—Visitardefunto...Quemjáviu?Ela bemquemerecia uma surra...Mulata vaidosa! Queria ir de colar

para a festa, o pescoço enfeitado de contas azuis. Um colar de dozemil-réis...Dez tinhamidoparaaviúvadeClarímundo.Osoutrosdoisestavamno seubolso.Davamparauma cerveja.Um colar nopescoçodeRosendaicavabonito.Masvermelho icavamaisbonitoqueazul.AntônioBalduínogosta é de vermelho. Aquela negra sabia ser mulher. Em cima de umacamanãohaviacoisamelhor.Masforadalierabesta,cheiadechiquês,de

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dengues. Uma negra dengosa. Gostava que lhe catassem cafuné. E viviafalando em entrar para o teatro sem querer se empregar como copeira.Quenãonasceraparaaquilo,eraoquedizia.Ocaféesfriou.Ealémdissoestavaralo.Cafésóbemforteparaprestar.NemcaféRosendafazdireito.AmulherdeClarimundoéque faziaumcafégostoso.Seelanãoarranjarumhomemé capazdepassar fome.Os temposestão ruins e lavar roupanãosustentacasadeninguém.Demaiselanãoagüenta.Étãomagra...AvozdeRosendavemdoquarto,irritada:

—Vocêquerirounão?—Porquê?—Nuncamaisvemmudararoupa.Quehoraquerchegar?Aindavai

passar em casa de defunto. Que despropósito,meuDeus. Visitar defuntodevestidodebaile.Nuncaviemminhavidasedizer.

Antônio Balduíno veste o branco, mas, como vai passar na casa deClarimundo,nãopõeagravatavermelha.Saiaborrecidodavida.Rosendatambém.Vãoafastadoscomosenãoseconhecessem.Sobembalõesparaocéu.AcenderamafogueiranacasadeOsvaldo.Estouramtraquesebusca-pés.

Clarimundo não verá mais os balões deste São João! Na sua porta,nestadata, nuncadeixoude arderumagrande fogueira, nemde espocarfoguete. Os amigos vinham beber vinho de jenipapo e cachaça. AntônioBalduíno veio muitas vezes. Soltavam busca-pés que corriam atrás dostranseuntes descuidados. Certa vez izeram subir um balão colossal, deseismetros,em formadezepelim,que tinha trêsbocas.Foraumabeleza.Um jornaldeuoretratonodiaseguinte.Asala icavacheia.Hoje tambémela está cheia mas a fogueira não arde na porta. Estendido no caixão,Clarimundo temos olhos fechados.Os balões passamno céu. Clarimundonão os vê. Não vê a fogueira da casa de Osvaldo. Nos outros anos elesapostavamparaverquem fazia fogueiramaior.EsteanoadeOsvaldo foimaior porque na casa de Clarimundo só tem a vela que arde ao lado dodefunto.Acara icouirreconhecível.Aboladeferrodoguindasteamassoua cabeça do estivador, rebentou os ossos, acachapou tudo aquilo. Hoje,soltaram um balão em forma de zepelim também. Todos correm para asjanelasparaver.Vaicheiodeluzesatravessandoocéuazul.SóClarimundonão vê porque o guindaste o matou no trabalho do cais. Os outrosestivadores estão ali. O sindicato vai fazer o enterro. Daqueles que estãoali,muitosvãoaobailedoLiberdadenaBahia. Jubiabáéquenãoirá,poisestá encomendando omorto. Namão tem folhas que balançam. O Gordotambém não irá, com certeza O Gordo vai icar velando Clarimundo,

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ajudando Jubiabánaencomendação.Passambalõesnanoite.Clarimundo,negroClarimundo,estanoitenãotemfogueiranafrentedetuacasa.Masonegro Antônio Balduíno tomará um porre por causa da tua morte. E deagoraemdianteolharáosguindastescomoinimigos.

A voz da mulher de Clarimundo é resignada e como que liberta deumaopressão:

—Isso tinhadeacontecer.Todavezqueele saíaeupensavaqueelevoltavanosbraços,mortopelosguindastes...

A ilhamaisvelha,dedezanos,choraencostadanamesa.Omenor,detrêsanos,espiaosbalõesquepassamnocéu.Jubiabáencomendaomorto.AntônioBalduínotomaráumporreestanoite.Vemamúsicadeumsambadeumacasapróxima.Invadeacasadodefunto.

OLiberdadenaBahiaestácomosalãorepleto.Gargalhadasvibramnoar. Um cheiro de suor enche a sala, mas ninguém o sente. O Jazz dos 7Canáriosestádelirante.Osparesquasenãopodemsemovernasala.SeuJuvêncio deixou as funções de mestre-sala para vir dizer a AntônioBalduíno:

—Atéqueenfimdeuessahonraaoclube...SeuJuvêncioestáderoupaazul.BalduínoapresentaRosendaqueveio

de vestido verde de baile. Ficam na entrada até que amúsica acaba. Osparessesoltamnasalaeelesentram.AsmulatasapontamparaRosendaRosedá.O vestido verde faz sucesso.Os negros estão todos olhandoparaela.RosendadizaAntônioBalduíno:

—Parecequenuncaviramgente...Masemverdadeestásatisfeita,todarisonha.Seelativessevindocom

ocolaréqueestariabonitade fato.AntônioBalduíno icouvaidosocomaentrada da negra. Todos estão olhando para eles e cochicham. RosendaRosedáquandocaminhabalançaasnádegascomosedançasseumsamba.Param no meio da sala, bem debaixo das luzes. Rosenda vai até acamarinhaparaarranjaro cabeloesticadoa ferro.Negrosvêm falar comAntônioBalduíno.Joaquimjáestámeiobêbado:

—Acoisatáboa,seumano...Jáandeibebendoporaí...—EutavapensandoquevocêiaprafestadeJoãoFrancisco.— E vou mesmo... Mas primeiro vim dar um pulo aqui, para ver as

coisas.Issotábom.Amulatatácutuba,hein?—Rosenda?Querelapravocê?—Nãogostoderestodosoutros...Os negros riem. Um pergunta a Antônio Balduíno quando arranjou

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aquele talhonorosto.Onegromente, inventandoahistóriadeumabrigacom seis homens. Zefa está no baile e espia Antônio Balduíno. Ele seaproxima e ela se queixa dizendo que “parece que não conhecemais ospobres”.Rosendasaidacamarinhaesorri.Osdentessãoalvos.Zefaolhacominveja:

—Lávemtuapatroa.RosendasesentajuntodeZefanolugarondeestavaAntônioBalduíno,

que foi beber um trago, lá dentro, com Joaquim e Seu Juvêncio. A dançaestá demorando porque os músicos estão bebendo um copo de cerveja.Masderepenteexplodenasalaamúsicadeumamarchacarnavalesca.DamesaAntônioBalduínoespia.Sãomuitosospares.Nãovaleapenadançaresta vez. Olha os sapatos vermelhos e novos. Se se metesse na dançapisariam os seus sapatos no vos. Joaquim acha os sapatosmuito bonitos.Antônio Balduíno diz que vai buscar Rosenda para beber uma cerveja.Quando se levanta, vê a negra dançando com um branco. Vira-se paraJoaquim:

—Queméaquelecara?Qual?—QueestádançandocomRosenda.—ÉCarlos,umchofer.Metidoabrigão...Onde foi que já se viu uma dama, que vem acompanhada para um

baile, dançar com um desconhecido sem falar com o cavalheiro que atrouxe? Aquilo não está direito. Rosenda está bobeando ele. Ela icoudanada como negócio do colar e agora quer irritar o negro. Zefa não foidançar.Vemparaamesadeles,aceitacerveja:

—Tuamulatatácutuba,Baldo,Olhacomotárindoparaobranco.SeuCarloséumdanado...

Joaquim tira Zefa para dançar. Zefa foi rindo, rindo de AntônioBalduíno.TodospensamqueeleestáenrabichadoporRosenda,queelafezfeitiço para prender o negro. Antônio Balduíno pede cachaça ao garçom,umcapengaqueandacomumapernadepau.Namesavizinhaumhomemquerbrigarcomtodomundo.

As negras dançam na sala. O jazz se acaba de tanto entusiasmo.Rosendaestádançando.Carlosfalanoseuouvido.Issoéproibido.PorqueéqueSeuJuvêncionãoreclama?AntônioBalduínopensa:

—Seráqueestoucomdor-de-corno?Que mulata bonitinha a que icou sem dançar junto daquela velha

gorda.Temumacaraqueéumprimor.Unspeitinhospequenos.Rosendapassa perto da janela e ri. Por que é que Antônio Balduíno não podepensar namulatinha? Pedemais cachaça. Tudo por causa daquele colar.

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Mas ele havia de não dar o dinheiro a Vicente para a mulher deClarimundo?Clarimundomorreudebaixodoguindaste.Ocolareraazul.Seainda fosse vermelho! Rosenda passa outra vez se rindo. Ele acabadesfeiteando o chofer. Querem se rir dele? Parece que não conhecem onegro Antônio Balduíno. Sente o contato da navalha que está no cós dacalça. Ficaum lapobonitona caradeum.Demais o colar azulnão icariabonito com o vestido verde. Outro copo de cachaça. Se fosse um colarvermelho... Amanhã a mulher de Clarimundo começará a lavar roupa.Trabalho desgraçado. E ela émagra, acaba icando tuberculosa. Rosendamereceuma surra.Nuncanenhumanegra fez aquilo comele.A sala estácheia. As negras de vestido de baile dançam como mulheres elegantes.Poucas mulheres se vestem tão bem como a negra Joana. Mas hojeRosendaestámaisbonita.Ochofervaisatisfeito,exibindoopar.Odinheirodo colar ele deu a Clarimundo. O jazz pára mas as palmas o obrigam arecomeçar. Namesa vizinha um homem quer brigar seja com quem for.Balduínosevolta:

—Toucomvocê,mulato.—Obrigado,patrício...Nãovêqueninguémsemetecomigo...Ereclamacontraogarçom,reclamadocompanheirodemesa.—Euhojefaçoumfregeaqui.AntônioBalduínobemquepodiapediraJubiabáque izesseumfeitiço

paraRosendaficarcaidinhaporele.Umnegrocantanojazz.

“Mulata,tumedesprezaste...”

Mas ele não gostava de mulher arranjada com feitiço. E pouco seimportava que Rosenda fosse embora. O que não admitia era umdesrespeitodaqueles.Entãoeleatraziaeelaiadançarcomoutrosemlhedar satisfação.Queria bobear o negro.As negras se rebolamno ritmodamarcha. Um preto velho conta uma história do outro lado. O homemquequer brigar interrompe com apartes. Um cheiro de suor se espalha. UmsujeitoquerconvencerumamulatadesaircomeleNaturalmenteochoferestá pedindo a mesma coisa a Rosenda. Ela ri. Balduíno se levanta. OdinheiroforaparaamulherdeClarimundo.Chegajuntodochofer,puxaobraçodeRosenda:

—Venhadançarcomigo.Ochoferseofende:—Estadamaestácomigo.—Quemtrouxeelafoieu.Essevestidofoieuquemdeu.Elaqueriaum

colarmaseudeiodinheiroparaamulherdeClarimundo,queoguindaste

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matou.PuxaRosendaque icaindecisa,commedo.Elabemsabequeonegro

AntônioBalduínogostadebrigar.Maso choferéquenãoestádispostoacederadama.Amúsicaacabaeeles icamnomeiodasaladiscutindo.SeuJuvêncio vem dizer que não é permitido icar nomeio da sala parado. Ochoferseamola:

—Váembora...Joaquimseaproxima:—Oqueéquehá?RosendapeganobraçodeJoaquim:—Baldo quer brigar só porque eu estava dançando comeste rapaz.

Nãodeixe,não,SeuJoaquim.Agora quase todos estão olhando para eles. O homem bêbado que

queriabrigarpõeospréstimosàdisposiçãodeAntônioBalduíno:—Precisademim,patrício?Seu Juvênciodizqueéumabesteira epedemúsica aomaestro.Vem

umfox.AntônioBalduínopegaRosenda.Ochoferdiz:—Agenteseencontra.Rosenda ica dengosa. Agora que Balduíno a conquistou de outro,

novamenteela ica ternaeseapertanosseusbraços.Onegropensaquese ela estivesse comumcolar vermelhonopescoço icariamaisbonita.Ohomemquequeriabrigarconseguiuformarumbarulhoaofundo.Ochoferestá na porta espiando. Desapartaram o barulho. A dança continua. SeuJuvêncio bate palmas na sala. Este fox parece música de defunto de tãotriste que é. Clarimundo morreu e não verá mais balões de São João.QuandoacabamdedançarAntônioBalduínoseaproximadochofer:

— Olhe, eu só queria era lhe mostrar que você não tomava mulherminha.Agorapode icarcomela,queeunãoqueroessecouronemprametocarbronha.

Ocriouléusedespedaçanadança.EonegroterminaanoiteregendooJazzdos7Canários.Omaestro icoubêbadodecair.OchoferdesapareceucomRosenda.Ocriouléucheiraasuor,osnegrosriem,sedespedaçamnomaxixe.

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RomancedaNauCatarinetaLindinalva lia na varanda poesias de amor, romances românticos.

GostavadaNauCatarineta.

“LávemaNauCatarinetaQuetemmuitoquecontar.”

ANauCatarinetapodia lhe trazerumnoivo,quemsabe.Umavezummeninoquepediaesmolasdisseraqueseunoivovirianobojodeumnaviocortando os mares. Ela o espera. E enquanto espera lê na varandaromancesromânticos,poesiasdeamor.

Depoisdocasamentodamoçadosobradodefronte,aTravessaZumbidos Palmares perdeu o que lhe restava de poesia. Nunca mais o rapazcruzouaruaeatiroucravosnavaranda.Osnoivosforammorarnumaruamovimentada e o sobrado fechou completamente as suas janelas,encobrindooretratodojovemmilitarquemataracomasuamortetodaaalegriadaquelafamília.Lindinalvaseentristeceuquandoelessecasaram.Ela icava nos jardins do comendador a olhar o namoro da vizinha, e nocravo que o rapaz jogava para a namorada ela tinha uma parte. Aquelenamoroeraomotivo românticoda rua.Depois casarameLindinalvaquenunca conversara com a vizinha se sentiu mais isolada, mais solitária.Amélia envelhecia na cozinha. Um ano depois de Antônio Balduíno terfugido,Lindinalvachorouamortedamãe.Ocomendadorviúvosedividiaentre os negócios e amores fáceis que arranjava. Dera de beber(desgostoso,diziamosvizinhos)eLindinalvaviviaabandonadanocasarão,onde os gansos haviammorrido e as lores murchavam. Lindinalva lia ahistóriadaNauCatarinetaedespetalavarosas.Umdiaseunoivochegarianum navio. Lindinalva sonhou tanto com isso que não teve surpresaquandosoubequeGustavo(Dr.GustavoBarreira,advogado,dasmelhoresfamílias da capital) chegara há pouco do Rio trazendo uma carta debacharel e uma vontade decidida de fazer fortuna. Foi advogado docomendadornumnegócioeassimconheceuLindinalva.Assardasdorosto,se não deixavam Lindinalva ser bonita, a tornavam esquisita. E o corpomagrodeseiosaltosepontudos tentavaosolhosdoadvogado,Onoivadocorreu risonho e a Travessa Zumbi dos Palmares adquiriu nova vida.Andavam de passeio de braço dado e ele dizia coisas românticas. Dograndesobradodefronteaspapoulassedebruçavamnomuroparaveros

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namorados.Papoulasvermelhas,carnudascomolábios.Eledisseumavez:—Aspapoulasconvidamaopecado...—eabeijara.Oventobalançavaaspapoulas.Lindinalvaeratãofelizqueesquecera

o negro Antônio Balduíno com quem sonhava nas noites de pesadelo.Sonhava agora com o noivo, com uma casinha, um jardim com papoulas,muitaspapoulasvermelhascomopecados.

O comendador faliu (as mulheres comeram a casa — diziam oscomerciantes). O noivo foi de uma dedicação rara. Trabalhou muito masnãoconseguiunada.OcomendadorpassouavivernascasasdasmulheresmaisbaratasdavidaeonoivovinhaverLindinalvatodaatarde.Umdiasemudaram do sobrado que icou para os credores. Foram morar muitolongeeeraonoivoquemsustentavaacasa.

Num dia de temporal dormiu lá. O comendador andava na casa dasmulheres. A porta do quarto de Lindinalva estava apenas encostada.Gustavoentrou.Elaseescondeunolençol.Sorrindo.

PorémLindinalvanãopensouquetudomudasseassimtãoderepente.Dormiram juntos várias vezes e no princípio tudo eramuito bom. Noitesdocesdeamor,beijosquemagoavamos lábios,mãosquemachucavamosseioscomosedesfolhassempapoulas.Masaospoucos foiseafastando,sequeixando dos negócios que não prosperavam, das di iculdades docasamento próximo que foi adiado três vezes. O comendadormorreu nacasadeumamulherdavida.Osjornaisderam.Gustavosesentiuofendidocom aquilo, declarou que a sua carreira estava irremediavelmentecomprometidaenodiadoenterronãoapareceu.Diasdepoisenviouduasnotasdecemmil-réis.Lindinalvamandoudizerquequeriavê-lo.Passou-seuma semanae ele veio.Veio tão sombrio e com tantapressaque elanãochorounemdissequeestavagrávida.

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CantigadeamigoFoi Amélia quem disse a Antônio Balduíno que Lindinalva estava na

vida. Amélia icara maternal e terna desde que a desgraça se abaterasobreacasadocomendador.ForapaiemãeparaLindinalva.Mas,quandose mudaram, Lindinalva fez questão que ela procurasse outro emprego,que não os acompanhasse. Ela bem que quisera ir. Mas Lindinalva nãodeixara,sezangaramesmo.AméliativeraqueirparaacasadeManueldasAlmas, português rico que possuía uma confeitaria na cidade. Por estaépoca Antônio Balduíno andava pelas plantações de fumo. QuandoLindinalvaderaàluzforaAméliaquemaajudara.Abandonaraoempregopara vir icar com amenina, que era como ela chamava Lindinalva. Foradelaodinheiroparaoparto,ela foraenfermeiradedicadaeboa.TãoboaqueLindinalvanãosentiahumilhação.Gustavo,quecasaracoma ilhadeum deputado, mandara cem mil-réis para a criança e um pedidoangustioso de silêncio. Lindinalva respondeu que ele podia icardescansadoqueelanuncarevelarianada.NovamentefezAméliaprocurarum emprego. E aceitou um convite de Lulu, uma caftina que possuía apensãomais cara da cidade, para ir fazer a vida na PensãoMonte Carlo.AntônioBalduínoouviutudoissodecabeçabaixa,passandoamãonotalhodacara.Anoiteláforaerachuvosa.

A criança, um menino forte como o pai e triste como a mãe, seguiuAmélia. Lindinalvanaquelanoite feza suaestréianaPensãoMonteCarlocom um vestido de baile bem decotado. Lulu lhe havia dado instruções:pedir bastante bebida e bebida cara. Procurar de preferência os gordoscoronéisquevinhamdasplantaçõesdecacau,defumo,decana-de-açúcar.Ela tinha um tipo esguio de virgem que devia agradar aos velhos. E queexplorasseomaisquepudesse.Eraavida.

Amúsicaeraumavalsalentaquandoelaentrounasaladapensão.Noseio levava a chave do quarto que devia entregar ao homem que aconvidasse para amesa. Com aquela chave abririam os segredos do seucorpo...Lindinalvanãoestácomvontadedechorar.Amúsicaéqueétriste.Pares se arrastam pela sala. Ainda é cedo e não tem muita gente napensão. Apenas duas mulheres estão ocupa das numa mesa de rapazesquebebemcerveja.

Lindinalvasenta-senumamesademulheres...Umaloiraexplica:—Éanovata.AsmulheresolhamcomindiferençaparaLindinalva.Sóamulataque

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bebeumcálicedecachaçapergunta:—Oqueéquevocêveiofazeraqui?Amúsicasearrastacomtristeza.AvozdeLindinalva—Nãoencontreitrabalho.Umafrancesaoferececigarros:— Quem me dera que o Coronel Pedro viesse hoje. Preciso de

dinheiro.Amulata espia o cálice e de súbito solta uma gargalhada. As outras

não se preocupam, pois já estão acostumadas com as maluquices deEunice.MasLindinalvaseassusta.Porqueamúsicaétãotriste?Bemquepodiamtocarumsambaalegre.Daruavemumruídoconfusodevozesede bondes. Um ruído de vida. A pensão parece um cemitério ondehouvessemúsica.ÉoqueEuniceestádizendo:

— Nós tamos mortas e não sabemos. A vida acabou para a gente.Mulher.damaéquasedefunto.

A francesa espera o Coronel Pedro. Ela precisa de dinheiro, recebeuumacartadosparentesqueestãonumaprovínciadaFrança.Oirmãozinhoestáquasemorto.Epedemqueela,quevaitãobemcomacasademodasnoBrasil,mandemaisalgumdinheiro.Elabateosdedosnamesa:

—Casademodas...Casademodas...Euniceemborcaocálice:—Tudomorta...Tudo...Cemitério.—Estoubemviva...—retrucaumamorenanova.—EssaEunicetem

cadaidéia...—esorri.Lindinalvaolhaparaela.Équaseumacriança.Umacriançaalegrede

cabelosmorenos.A loura éque é velha, tem rugas eumar longínquodequem vive em outras paragens. A música da valsa se extingue. Doissujeitos entram na pensão e pedem misturas complicadas. A meninamorena vai icar com eles. Pegam nas coxas dela, pedem mais bebidas,falam coisas no ouvido. Lindinalva sente uma tristeza imensa e umavontade imensa de acariciar a menina morena. Eunice pede um cigarro.Seráqueelatambémtempenadameninamorena?

—Mulher-damaéescarradeiradetodomundo...—Eunicepensaqueestásorrindo.

Agoraéumtangoqueaorquestra toca.Falaemamor,emabandono,em suicídio. Entram homens ricos da cidade. Aquele comercianteLindinalva conhece. Uma vez, quando os negócios do comendador iamprósperos, ele almoçou na sua casa. O comendador acabou assim naspensões alegres e morreu no quarto de uma mulher. Quantas mulheres

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dali tinham conhecido o comendador? Quantas teriam se rido dele?Quantas o esperariam para pedir dinheiro? Agora Lindinalva esperatambémum comendador que lhe traga dinheiro, que gaste bebidas paraqueLulu iquesatisfeitaenãoaboteparafora,Otangofalaemabandono.Napensão, Lindinalva não quer se recordar do ilho.Nessemomento eleestenderáosbracinhosparaAmélia.Quandoeledisser“mamãe”seráparaAmélia.Quandoelesorrir,Lindinalvanãoestarápresente.Osdoisrapazescochichamcomameninamorena.Queseráqueelespropõem?Eladizquenão.Masodiaestámau,tempoucagentenapensão.Elesinsistemeelavaicom os dois para o quarto. Eunice cospe com força. Ela está com raiva.Lindinalva tem vontade de chorar. Lulu sorri e mostra Lindinalva aoscomerciantes.Dizqualquercoisaemvozbaixa.Euniceavisa:

—Chegousuavez...AqueleLindinalvaconhece.Comeunamesmamesaondecomiamsua

mãeeseupai.Comaqueleelanãoquerir.Preferequalqueroutro,preferemesmo o negro Antônio Balduíno. Mas o homem a chama com o dedogordo.Ameninamorenanãovaicomdois?Lindinalvaselevanta.Lulufazcomamãoqueelaseapresse.Euniceergueocálicedecachaça:

—Àsuaestréia...A francesa faz um gesto com a mão. Que importa? Todas elas estão

mortas,o tangoestádizendo,Eunice jádisse.ElanãoémaisLindinalva,apálidaLindinalvaquecorrianoParquedeNazaré.Elaestámorta,seu ilhoestá com Amélia. Quando passa por Lulu, a caftina avisa que peçachampanha. A menina morena volta do quarto com um ar espantado elágrimasnosolhos.Osdois rapazesrieme trocam impressões.Lindinalvapede champanha.Depoisnoquarto, o comerciante (comeraemsua casa)perguntaoque éque ela faz alémdonormal.Mas estão todasmortas, jámorreram todas. Eunice bebe mais cachaça, o tango soluça. Foi assim arecepçãodeLindinalva.

Cedo icouvelhaparaaspensõescaras.Oshomensricosnãovãomaiscom ela. Agora sua boca conserva sempre um travo amargo de cachaça.Eunice já foi para a Rua de Baixo onde mulheres cobram cinco mil-réis.Hoje é Lindinalva que irá. Alugou o quarto na mesma casa que Eunice.Durante o dia foi ver o ilho no quartinho ondeAméliamora. Gustavinhoestá lindo, os grandes olhos vivos, a boca carnuda como aquela lorvermelhadequeGustavofalava.Lindinalvanemserecordaonome.Agorasabepalavrasfeiasemfrancêsetodaagíriadasmulheresdavida.Masomeninodiz“mamãe,mamãe”,eelasesentepuracomoumavirgem.Conta

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histórias ao ilho, históriasqueouviradeAmélianoutros tempos, quandoelaeraLindinalva.Nacasaondevaimoraramulherdissequeseunomeseria Linda de agora em diante. Conta ao ilho a história de MariaBorralheirae icafeliz,muitofeliz.(Quebomseomundoacabassenaquelemomento,setodosmorressem.)

Ficamnasalaatrásdasjanelassemi-abertas.Homenspassamnaruaeelaschamam.Unsentram,outrosdizempiadas,algunspassamapressadoselevamembrulhos.Euniceestábêbadadizendoquejámorreu,quetodasestãonoinferno.Apolacavelhasequeixadasuafaltadesorte.Navésperanãoarranjarahomem.Hojetampouco.Talveztenhaque irparaaLadeirado Tabuão onde as mulheres cobram mil e quinhentos, fazem tudo, emorremdepois.Lindinalvaestálongedali,estácomofilhonoquartopobrede Amélia. Este sorri e diz “mamãe”. Vontade doida de beijar os lábioscarnudosdo ilho,decontinuaracontardurante todaavidaahistóriadeMariaBorralheira.Adonadapensãobotaumavitrolapara tocarna salade jantar. Os peitos moles de Eunice aparecem sob a combinação. Elachama os homens da janela. Gustavinho quando icar rapaz talvez passenessas ruas. Quando isso se der, Lindinalva já terá morrido e ele não aencontraráatrásdasjanelasachamarhomens.DeLindinalvaeleguardaráarecordaçãodeumamoçasimplesebonitaquecontavahistóriasdeMariaBorralheira.

Eunice está dizendo que estão todasmortas. A polaca pede doismil-réis emprestados. Um rapaz de cabeleira atende ao chamado deLindinalva.Eunicediz:

—Boasorte,Linda—esuspendeumcáliceimaginário.Noquartoorapazperguntaquenomeelatem,quersaberdetodasua

vida, diz que é poeta, recita versos (conta a doença damãe que está nosertão, diz que ela é linda como as acácias, compara os seus cabelos aostrigais, promete fazer um soneto sobre ela). A vitrola se desespera numsamba na sala de jantar. O rapaz gosta é de um tango bem romântico.PerguntaaopiniãodeLindasobrepolítica

—Eumanojeira,nãoé?FoiassimarecepçãodeLinda.

Lindinalvadesceuváriasladeiras.Foi icarbempertodaCidadeBaixa,foi icar na Ladeira do Tabuão. Da Ladeira do Tabuão as mulheres sósaíamouparaohospitalouparaonecrotério.Dequalquermaneirasaíamdeautomóvel:ounaassistênciaounocarrovermelhodoscadáveres.

NaLadeiradoTabuãoastoalhasnasjanelasecarasnegrasnasportas

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Lindinalva tinha ido ver Gustavínho que convalescia de sarampo. Eleestirouosbraçosesorriunaalegriadereveramãe:

—Mamãe,mamãe.Depoisfazumacarasériaepergunta:—Quandoéquetuvemmorarcomagente,mamãe?—Mamãevem,filhinho,umdiadestes.—Quandovocêviervaiserbom,mamãe.LindinalvapassoujuntodovelhoelevadorqueligaascidadesBaixae

Alta.Sorriuparaosorrisodocondutordebondeeseguiuparaonúmero32,ondealugaraoquarto.

Gustavinho precisava engordar. Com o sarampo, emagrecera.Empurrouaportacolonial,pesada,comumaargolona.Onúmero32estavaescritocomtintaazul-clara,umnúmeromuitogrande.Gritaramládecima:

—Quemé?Lindinalva foi subindo as escadas sujas. Tinha os olhos quase

fechados, o peito arfava. Passara a noite pensando. A princípio tentaradormir mas quando conciliou o sono teve pesadelos horríveis, onde viamulheres si ilíticas de dedos enormes, todas juntas na porta de umhospitalzinho minúsculo. Carregavam um carro de assistência... Não, nãoeraumcarrodeassistência...Eraocorpodocomendadorquemorreranacasa de uma mulher da vida... E depois era o corpo de Gustavinho quemorrera de sarampo... De repente acabou tudo e icou o negro AntônioBalduínodandograndesgargalhadasdegozo,comumanotadecincomil-réiseunsníqueisnamão.

Acordousuada,bebeuágua.Noitehorríveldasuavida.Lindinalvaagoranãopensava.A inalerao

destino... O destino era assim mesmo. Para uns, bom, para outros,miserável. Cada pessoa já nasce com o seu destino, ele não vem na NauCatarineta.Odestinodelaeradestinoruim,quejeitoelapodiadar?

Subia as escadas condenada. Na véspera a mulata que alugava osquartosdoquintoandarforafranca:

—Daqui,meuamor,ouparaaassistênciaouparaoburaco.Olhouocéupelajanela:—Jávisairtantas...Lindinalvasobeasescadascomoolhosdistantes.Ondeandaráaquela

LindinalvaqueriaebrincavanoParquedeNazaré?Ela vai curvada e as suas faces magras levam lágrimas que rolam.

Lindinalvachora,sim...Caemlágrimasdosseusolhos, lágrimasque lavamasujeiradaescada.

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Lindinalva vai curva, o rosto sardento e branco escondido no braço.Deslizam lágrimaspela sua face triste. Lindinalva temum ilho e gostariadeviverparaele.MasdaLadeiradoTabuãoasmulheressósaemparaocemitério.

Noquintoandarumamulherdizaoutra:— É a Sardenta que vem chegando. Nada de conversas porque a

pobrevemchorando...Essavozquefalatemumapiedadeardente.FoiassimarecepçãodaSardenta.

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GuindastesIrãoparaaLanternadosAfogados,paraocaisondeanoiteébonita.

SaemdaBaixadosSapateirosedescemaLadeiradoTabuão.FinalmenteoGordodescobriuumaestrelaquenuncatinhavisto:

—Espie...Umaestrelanova.Aquelaéminha.O Gordo ganhou uma estrela e vai satisfeito. Jubiabá diz que as

estrelas são os homens valentes quemorrem.Hoje deve termorrido umhomemvalente, umhomemquemereçaumABC,pois oGordodescobriuuma estrela nova. Joaquim procura uma mas não encontra. AntônioBalduínopensa emquem teriamorridoestanoite.Temgente valente emtoda parte. Quando ele morrer brilhará no céu também. O Gordodescobriráoutalvezsejadescobertoporumacriança,porummolequedaruaquepeçaesmolasetenhaumanavalhanocósdacalça.Elesgostamdepassearassimpelasruasdesertasquandoaluaécheiaeiluminaacidadecoma luzamarela.Nãoandaninguémpelasruas,ascasas têmas janelasfechadas, oshomensdormem.Eles sãonovamentedonosda cidade comonotempoemquemendigavam.Sãoosúnicoshomenslivresdacidade.Sãomalandros, vivemdo que aparece, cantamnas festas, dormempelo arealdo cais, amam as mulatas empregadas, não têm horário de dormir e deacordar. Zé Camarão nunca trabalhou. Já está começando a envelhecer esempre foimalandro,desordeiro conhecido, tocadordeviolão, jogadordecapoeira.AntônioBalduínofoioseumelhordiscípulo.Efoialémdomestre.Foitudonavida.Atétrabalhadornasplantaçõesdefumo,jogadordeboxeeartistadecirco.Porémviveédefazerumsambadequandoemvezedecantá-lo nas festas dos negros da cidade. Joaquim trabalha três, quatrodias por mês, quando tem vontade. Carrega malas para outroscarregadoresqueestãocommuitoserviço.OGordovendejornaisquandoBalduínonãoestánaBahia.Balduíno chega, tudoacabou-se.Vai atrásdonegronaquelavidagostosadenãofazernada,deviveràsoltapelacidadequedorme.AntônioBalduínopergunta:

—AgentevaiancorarnaLanternadosAfogados?—Vai,sim...ALadeiradoTabuãoésilenciosaaestashorasdanoite.Oserviçodo

velho elevador já terminou e a torre se debruça sobre a cidade. Nasjanelasmaisaltasbrilhamluzes.Sãoasmulheresdavidaquevoltaramdaruaequedespachamosúltimoshomens.

Joaquimassoviaumsamba.Elesvãocalados.Sóoassoviode Joaquim

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cortaosilêncio.AntônioBalduínovaipensandonoqueAmélia lhecontou,nahistóriadeLindinalva.Agoraeladeveestarsemorgulhoeelenahoraque quiser poderá possuí-la. Ela não émais a sua patroa, a ilha rica docomendador, é umamulher da vida que está na Ladeira do Tabuão e sevendeaoshomensporqualquerdoismil-réis.Comoascoisasmudam!Nodiaqueelequisersubiráasescadasdosobradoondeelaestáeateránosseus braços. Basta pagar uma prata. Ele se recorda da fuga da TravessaZumbidosPalmares.SeAmélianãohouvesse inventadoaquelasmentirasele continuaria com o comendador, vendo em Lindinalva uma santa,trabalharianacasacomercial, talvez impedissea falênciadopatrão.Teriasido um escravo. Amélia tinha feito um bem em querendo fazer ummal.Ele era livre e até podia possuir Lindinalva na hora que quisesse. Erasardenta e tinha um rosto de santa. Ele nunca a olhara com olhos dedesejo. Mas desde que Amélia inventou que ele a espiava quando elatomavabanho,AntônioBalduínonãopossuiuoutramulher.DormissecomquemdormisseeracomLindinalvaqueeledormia.MesmodormindocomRosendaRosedá.ElederaRosendaaochofer.Agoraelaandavadançandonumcabarébarato, fazendo a vida também, e jámandarapedir dinheiroemprestado.Rosendaeramulatavaidosa,estava tendoapaga.Lindinalvanão era vaidosa mas icara com ódio dele. Tivera a sua paga também.Andava na Ladeira do Tabuão onde vivem as mulheres mais baratas emais gastasda cidade.Elepodiapossuí-lanodiaquequisesse.Entãoporquenão icaalegre,porqueseentristeceenãoolhamaisoespetáculodalua cheia? Ele não esperou toda a vida que chegasse o dia de possuirLindinalva?Entãoporquenãosobeatéoquintoandardosobradonúmero32daLadeiradoTabuãoenãobatenaportadoquartodeLindinalva?Aliestáosobrado.Elesvãopassardefronte.Aruadormenosilêncioeouve-seapenas o assovio do Joaquim. Que vento frio vem do mar e faz AntônioBalduíno tremer? Da porta do 32 uma mulher sai de súbito, os cabelossoltos. Mal ela aparece na porta, Antônio Balduíno tem certeza que éLindinalva. Mas é um trapo humano, uma igura que perdeu o nome naLadeiradoTabuão.Rostosardentoeencovado,asmãos inastremendo,osolhossaltadosebrilhantes.Oventosacodeoscabelosdamulher.Elapáradiantedoshomens,agitaosbraçosetorceasmãosemgestosdesúplica:

—Doismil-réisparabeberumacerveja...Doismil- réispor amordesuamãe.

Oshomensestãomudosdeespanto.Elapensaqueelesnãovãodar:—Entãoumcigarro...Umcigarro...Hádoisdiasquenãofumo.Joaquimestendeocigarro.Elaoapertanosdedosmagroseri.

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É Lindinalva, sim. Por isso Antônio Balduíno treme como se tivessefebre. Um vento frio vem do mar. Com a chegada da mulher um terrorprofundo o invadiu. Ele treme, ele está commedo, quer correr, fugir dalipara o imdomundo.Mas está preso ao solo olhando o rosto sardento edescarnadodeLindinalva.Elanãooreconhecenemovê, sequer.Fumaocigarroeperguntacomvozdoce,vozquerecordaaquelaoutraLindinalvaquecorrianoParquedeNazaréebrincavacomonegrinhoBaldo:

—Eacerveja?Vocêsvãomedar,nãovão?Antônio Balduíno consegue tirar os dez mil-réis do bolso. Entrega à

mulher que ri e soluça. E tremendo de medo, tremendo de pavor, sai acorrerladeiraacimaesótemdescansonacasadeJubiabá,chorandojuntoaopai-de-santoqueoacariciacomonodiaemqueLuísaenlouqueceu.

Quandoopavorpassou(eduroudias)elevoltouàcasadeLindinalva.No quarto, onde a cama de casal tomava o maior espaço, Lindinalva seacaba. Amélia contém as lágrimas. Ele entra devagar, como lherecomendouaprostitutaque soluçanaporta.Amélianão se admiradeover.Botaodedonabocanumsinaldesilêncio.Evemparajuntodele,quepergunta:

—Doente?—apontaLindinalvacomodedo.—Morrendo.ComamortequeseaproximaelatornouaseramesmaLindinalvada

Travessa Zumbi dos Palmares. Seu rosto está sereno e belo. Seu rostosardento, rosto de santa. As mãos que tocavam piano e machucavam asrosassãoasmesmas.NadarestadaLindinalvadaPensãoMonteCarlo,daLinda da Rua de Baixo, da Sardenta da Ladeira do Tabuão. Ela agora énovamente a ilha do comendador que morava na casa mais bonita daTravessaZumbidosPalmareseesperavaumnoivonaNauCatarineta.Masela se move e aparece outra Lindinalva. Esta Antônio Balduíno nãoconheceu.Mas Amélia sabe qual é. É a noiva de Gustavo, é a amante deGustavo, é amãedeGustavinho.Um rosto risonhode senhora jovem.Elamurmuraqualquercoisa.Améliaseaproximaepega-lhenamão.Elaestádizendo que quer o ilho, que o tragam que ela vaimorrer. Amélia voltachorando.AntônioBalduínopergunta:

—Eodoutor?—Nãopôdefazermaisnada...Dissequeagoraéesperaramorte.MasAntônioBalduínonãoseconforma.Temumainspiração.—VoubuscarpaiJubiabá.—Passeemminhacasaetragaacriança.

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E ele que veio ali para se vingar, para a possuir e depois jogar doismil.réisnoseu leito...Veiopara insultá-la,paradizerquebrancanãovalenada,queumnegrocomoelefazoquequer.AgoravaibuscarpaiJubiabáparaverseasalva.Seela icarboaeledesaparecerá.Masseelamorrer,que poderá ele fazer na vida? Não lhe restará outro caminho se não ocaminho domar por onde entrou Viriato, o Anão, que tambémnão tinhaninguém no mundo. Só então Antônio Balduíno compreende que seLindinalvamorrereleficarásó,semnenhummotivoparaviver.

Volta comomenino. Jubiabánãoestava.Ninguémsabiaporondeeletinha ido e Antônio Balduíno o procurou inutilmente. Amaldiçoou o velhofeiticeiro.Acriançavempelasuamãoesedábemcomele.TemonarizdeLindinalva. Asmesmas sardas na cara. Perguntamuita coisa, quer saberdetudo.AntônioBalduínoexplicaeseadmiradapaciênciaquetem.

Carregaomeninonaescada.Améliaavisa,abafandoossoluços:—Entre...Elaestámorrendo.AntônioBalduínodepositaa criança juntoà cama.Lindinalvaabreos

olhos:—Filhinho...Quissorrir,setorceunumacareta.Acriança icacommedoecomeça

a chorar. Amélia a afasta depois de Lindinalva beijar-lhe as faces. Elaqueria beijar os lábios carnudos do ilho, os lábios que eramdeGustavo.Masnãopode.

Agora chora e tem pena de morrer. Ela que pediu a morte tantasvezes.Pressentequehámaisalguémnoquarto.PerguntaaAmélia:

—Quemé?Amélia icaconfusa,semsabersedevedizer.MasAntônioBalduínose

aproximacomosolhosbaixos.Seumdosamigosovisseagora talveznãocompreendesse por que ele está chorando. Lindinalva procura sorrirquandooreconhece:

—Baldo...Fuiruimcomvocê...—Deixedisso...—Meperdoe.—Nãodigaisso...Nãofaçaeuchorar...Elapassaamãonacarapinhadonegroemorredizendo:—AjudeAméliaacriarmeufilho,Baldo...Olheporele.AntônioBalduínosejoganospésdacamacomoumnegroescravo.Ele quer que o caixão seja branco, como um caixão de virgem. Mas

ninguém o compreende, nem Jubiabá que sabe tanta coisa. O Gordo só

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concordaporqueémuitobom,masnofundoestáespantadoporquenuncaviucaixãodeprostitutaserbranco.ApenasAméliaparececompreender:

—Vocêgostavamuitodela,nãoera?Eufizintriga.Andavacomciúmesdospatrõesgostaremtantodevocê.Hávinteanosqueeuestavacomeles.Eucrieiamenina.Elamereciaumdestinomelhor...Tãoboazinha.

Então Antônio Balduíno estende as mãos e explica com aquela vozpesadaquetemdequandoemvez:

—Elaeravirgem,gente...Eujuroqueera...Ninguémteveela...Elanãofoi deninguém... Viviadissomasnão sedava... Só euque tive ela... Só eu,gente...Quandoeuandavacomumamulhertavacomacabeçanela...Queroumcaixãobrancoparaela.

Sim, ninguém a possuiu porque todos a compraram. Só o negroAntônio Balduíno, que nunca dormiu com ela, a possuiu e de todas asformas,nocorpovirgemdadosReis,nasancasquedançavamdeRosendaRosedá.Sóeleapossuiunocorpodetodasasmulheresquedormiramcomele. Na maravilhosa ventura de amor do negro Antônio Balduíno e dabranca Lindinalva esta foi branca, preta e mulata, foi também aquelachinesinha do Beco de Maria Paz, foi gorda e magra, teve uma vozmasculinacertanoitenocais,mentiacomoapretaJoana.Maselanãopodeir vestida de virgem, Antônio Balduíno. Amélia está explicando que elaamou Gustavo, que a possuiu de verdade, sem a comprar. Mas AntônioBalduíno não quer escutar e pensa que aquilo é outra intriga de AméliaparaoafastardeLindinalva.

Para ajudar o ilho de Lindinalva o negro Antônio Balduíno entrouparaaestivano lugardeClarimundoqueoguindastematara. Ia terumapro issão, ia ser escravo da hora, dos capatazes, dos guindastes e dosnavios.Massenãoofizessesólherestariaentrarpelocaminhodomar.

Assombrasenormesdosguindastesaparecemnomar.Eomarverdee oleoso chama o negro Antônio Balduíno. Os guindastes fazem escravos,matamoshomens, são inimigosdosnegrose aliadosdos ricos.Omar fazlibertos. Será ummergulho só e terá tempo para soltar sua gargalhada.MasLindinalvaacariciousuacabeçaepediuqueeletomassecontadoseufilho.

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PrimeirodiadagreveAntônioBalduínopassaraanoitedescarregandoumnaviosuecoque

trazia material para a estrada de ferro e que nas noites seguintes seriaabarrotado de cacau. Carregava ummolho pesado de ferros, quando, aopassarjuntodeSeverino,ummulatomagricela,estelhedisse:

—Agrevedopessoaldosbondesrebentahoje.Aquelagreveeraesperadahámuito.Pordiversasvezesopessoalda

companhiaquedominavaaluz,otelefoneeosbondesdacidadetentaraselevantar em parede pedindo aumento de salário. Chegaram a fazer umagreve anteriormente, mas foram tapeados com promessas que aindaestavam por se cumprir. E agora, há oito dias que a cidade esperavaamanhecer sem bondes e sem telefone. Mas a greve não rebentava,sempreadiada.Por issoAntônioBalduínonão ligoumuita importância aoavisodeSeverino.Logodepois,porém,ouviaumnegroaltodizer:

—Agentedeviaaderir,ficarcomeles.Osguindastesdepositavamnocaisenormesrolosde ferro.Osnegros

iam debaixo deles para os armazéns, parecendo monstros estranhos, eainda assim conversavam. O apito do capataz dava ordens. Um brancopassouobraçonatestaesacudiulongeosuor:

—Seráqueelesconseguemalgumacoisa?Voltaramcorrendoparajuntodosrolosdeferro.Severinomurmurou

enquantosuspendiaofardo:—Osindicatodelestemdinheiroparaagüentaragreve...Saiu correndo com o fardo. Antônio Balduíno levantava pedaços de

trilhos:—Todomêsvaidinheiroprosindicato.Osindicatotemdeagüentar.Oapitodocapatazmandavaa turmaabandonaro trabalho.A turma

dodiaestavaàesperaesubstituiuimediatamenteaquesaía.Osmateriaisparaaestradadeferrocontinuamaandarparaoarmazémdasdocas.Osguindastesrangiam.

Saem em grupos e na porta Antônio Balduíno se recorda de umhomemquefoipresoaliquandofaziaumdiscurso.Eleeramolequederuamas se lembrava perfeitamente. Gritara, e com ele o grupo todo,protestandocontraaprisãodohomem.Gritaraporqueamavagritar,vaiara polícia, jogar pedra em soldado. Hoje ele precisa de gritar novamente,como no tempo em que corria solto pela rua e não via os guindastesinimigosprontosalherebentaremacabeça.

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AntônioBalduínovemsozinhopelarua.Tomouumcopodemingaudepubanoterreiro.Juntodanegra,homensconversavamsobreagreve.

AntônioBalduínosaicantandocoisasdeLampião:

“MinhamãemedêdinheiropracomprarumcinturâoprafazerumacartucheiraprabrigarpraLampião”.

Umconhecidogrita:—Alô,Baldo!Onegrofazumgestocomamãoecontinuaacantar:

“AmuiédeLampiãoquasemorredeumadorporquenãofezumvestidodafumaçadovapor”.

Agoracantaemsurdina,entredentes:

“ÉLamp,éLamp,éLamp,éLamp,éLamp,éLamp,Lampião”.

Coma grevequeparalisouosbondes a cidade icou festiva.Temummovimentodesconhecidohoje.Passamgruposdehomensqueconversamanimadamente. Rapazes empregados no comércio caminham rindo,gozando a caradopatrãoquenãopoderá reclamar o atrasoda chegada.Uma mocinha atravessa a rua apressada com medo de alguma coisa. Acidade está cheia de condutores de bonde, de operários das o icinas dacompanhia. Discutem com calor. Antônio Balduíno sente inveja delesporqueestãofazendoalgumacoisa(daquelascoisasqueAntônioBalduínogostavadefazer)eonegronãotemnadaparafazernestamanhãdetantosol. Os grupos passam. Vão todos para o sindicato que ica numa rua aliatrás. Balduíno segue sozinho pela rua deserta. Ouve o ruído dasconversas na outra rua. Parece que alguémestá fazendoumdiscurso nosindicato Ele também é do sindicato dos estivadores. Por sinal que já lhefalaram em ser candidato à diretoria. Devem saber que ele é um negrovalente.Mas umhomem loiro, quemastiga um cigarro e que amanheceubêbado,seatravessanasuafrente:

— Tu também vai fazer greve, negro? Tudo por culpa da PrincesaIsabel.Ondejáseviunegrovalerdenada?Agoraoqueéquesevê?Negrofaz até greve,deixaosbondesparados.Devia era entrar tudono chicote,

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quenegrosóserveparaescravo...Vaipratuagreve,negro.Osburrosnãolivraramessacambada?Váemboraantesqueeutecuspa,filhodecão.

O homem cospe no chão. Ele está bêbado mas Antônio Balduíno oempurra com força e ele se estatelano cimento.Depois onegro limpa asmãose começaapensarnomotivoporque estehomem insulta assimosnegros.Agreveédoscondutoresdebondes,dosoperáriosdaso icinasdeforça e luz, da companhia telefônica. Tem atémuito espanhol entre eles,muitobrancomaisalvoqueaquele.Mastodopobreagorajávirounegro,éoquelheexplicaJubiabá.

Do terreiro vem um rumor de brigas. São os trabalha dores daspadariasqueaderiramàgreve.Eosentregadoresdepãoderrubaramoscestosnarua.Osmolequescaememcimaeatécriadasdecasasricasvêmapanharpãodegraça.

Vãoencontrá-lonoquartodeAmélia,degatinhasnochão,brincandocomGustavinho:

—Eusouolobisomem...Selevantadeumpulo.Severinobotaamãonoseuombroeavisa:—Agenteprecisadevocê,Balduíno.—Queé?—onegropensalogoembrigar.—Osindicatovaisereunir.OnegroHenriqueenxugaosuordacara.—Deutrabalhopralheachar.Elesestãoolhandoomeninobrancoqueestásentadonochão.Antônio

Balduínoexplicameioconfuso:—Émeufilho.—Agentequeraderiràgreve...Agenteprecisadovotodevocê.EledeixaGustavinhocomoGordoesairindo,alegre,porquetambém

vaifazerasuagreve.Nosindicatoháumabarulheirahorrível.Todosfalamaomesmotempoeninguémseentende.Adiretoriatomaassentoàmesaepedesilêncio.UmsujeitopálidodizaBalduíno:

—Tempolíciaaqui.MasBalduínonãovênenhumsoldado.Opálidoexplica:—Disfarçado.Severino faz um discurso. Não são somente os operários da Circular

queestãopassandofome.Tambémeles,dasdocas,nãotêmoquecomer.EdemaistêmumdeverdesolidariedadeparacomosoperáriosdaCircular.Sãotodosirmãos.Elesdevemaderiràgreve.Osdiscursossesucedem.Umdos capatazes (um homenzinho vermelho que nas horas de folga jogava

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dadoscomelesnaLanternadosAfogados)recitaumdiscursodizendoqueaquilotudoerabesteira,quenãoviamotivosparagreve,quetudoestavamuito bem. Mas é aparteado e vaiado. O negro Henrique bate a mão namesaediz;

—Eusouumnegroburroenãoseipalavrasbonitas.Masseiquetemhomensaquiquetêm ilhoscomfomeemulhercomfome.Aquelesgalegosquedirigemosbondestambémestãocomfome.Agenteénegro,elessãobrancos,masnestahoratudoépobrecomfome...

Foi votada a adesão à greve. A vitória foi dada pelo voto de AntônioBalduíno. Só depois se descobriu que votaram contra pessoas que nemeramdaestiva,quantomaisdosindicato.

Foi redigidoummanifesto.E foidesignadaumacomissãopara levaraosoperáriosemgreveasolidariedadedosestivadores.AntônioBalduínofaziapartedestacomissãoeiaalegreporqueiabrigar,entrarembarulho,gritar,fazertodasascoisasdequeelegostava.

“COMPANHEIROSDACIRCULAR

Os estivadores reunidos em assembléia, no seu sindicato de classe,resolveram aderir ao movimento grevista dos seus companheiros daCompanhia Circular. Vêm assim trazer o seu apoio incondicional aosgrevistasnalutapelasreivindicações.OscompanheirosdaCircularpodemcontar com os estivadores. Pelo aumento de salários! Por oito horas detrabalho!Pelaaboliçãodasmultas!

a)ADiretoria.”Antônio Balduíno leu o manifesto entre aplausos. Os condutores de

bondes se abraçavam. Já os padeiros haviam aderido. Agora eram osestivadores.Agreveseria,semdúvida,vitoriosa.

Estavamparados todosos serviçosdebondes e telefone.Ànoitenãohaveria luz elétrica. Os operários haviam enviado à alta direção dacompanhia ummemorial com suas pretensões. A diretoria declarara quenão concordava e recorrera ao governo. Por falta de energia elétricanãocircularam jornais.Haviamuitagentena ruaegruposdeoperárioseramencontrados em todas as esquinas, conversando. Passavam patrulhas decavalaria. Corriam boatos de que a Circular estava contratando osdesempregadosapesodeouroparaquefurassemagreve.Umadvogado— Dr. Gustavo Barreira — presidente de uma associação de operáriosprocurou o governador e conversaram longamente sobre o assunto. Aovoltardeclarounosindicatoqueogovernoachavajustasaspretensõesdosoperáriosequeiaentrarementendimentoscomadireçãodacompanhia.

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Houve muita palma. O jovem advogado estendia as mãos e parecia jácolher os votos que o haviamde eleger deputado. Severino disse em vozalta:

—Tapeação.

Antônio Balduíno já estava cansado de ouvir tanto discurso. Masgostava. Aquilo era uma coisa nova para ele, uma das coisas que amariafazer.Maserabom.Eletinhaa impressãodequenaquelemomentoeramdonosdacidade.Donosdeverdade.Elesnãoqueriam,nãohavia luz,nembondes,nemtelefoneparaosnamorados,onaviosueconãodescarregariaos trilhos para a estrada de ferro nem carregaria os sacos de cacau queenchiam o armazém 3. Os guindastes estavam parados, vencidos pelosinimigos que eles sempremataram. E os donos daquilo tudo, os homensquemandavamneles, seescondiammedrosos, semcoragemdeaparecer.Antônio Balduíno sempre tivera um grande desprezo pelos quetrabalhavam. E preferiria entrar pelo caminho domar, se suicidar numanoite no cais, a trabalhar, se Lindinalva não lhe houvesse pedido quetomassecontado ilho.Masagoraonegroolhavacomumoutrorespeitoostrabalhadores.Elespodiamdeixarde serescravos.Quandoelesqueriam,ninguémpodiacomeles.AqueleshomensmagrosquevieramdaEspanhae viviam nos estribos do bonde cobrando passagens, aqueles negroshercúleosquecarregavamfardosnocaisoumanejavamasmáquinasnaso icinasdeeletricidadeeramfortesedecididosetinhamavidadacidadenasmãos. No entanto passam rindo,mal vestidos, os pés no chãomuitasvezes,eouveminsultosdosqueseachamprejudicadoscomagreve.Maseles riem porque agora sabem que são uma força. Antônio Balduínotambémdescobriuistoefoicomosenascessedenovo.

O homem do sobretudo se levantou da mesa do bar e interpelou ooperário:

—Porqueestagreve?—Pramelhorarosalário...—Masdequeéquevocêsprecisam?—Dedinheiro...—Queremserricostambém?Ooperário icoumeioatrapalhado.Naverdadeelenuncapensaraem

serrico.Queriaeramaisdinheiroparaqueamulhernãoreclamassetanto,para poder pagar uma visita do médico (a ilhinha estava doente), paracompraroutraroupaqueaquelaestavanofio.

—Vocêsqueremmuitacoisa.Ondeseviuoperárioprecisarde tanta

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coisa?...Ooperárioestavaconfuso.AntônioBalduínochegouparapertodeles.

Ohomemdesobretudocontinuavaafalar:—Querumconselho?Deixedestabesteiradegreve.Issosãosujeitos

que querem perturbar a ordem... Inventam coisas. Você vai acabarperdendo o emprego e esse dinheiro que ganha. Quer muito, acaba nãotendonenhum.

Ooperárioselembroudamulherreclamando,do ilhodoente.Baixouacabeça.AntônioBalduínoinsultouohomemdesobretudo:

—Quemlhepagouparavocêcontarestahistória?—Vocêéumdostais,nãoé?—Souémuitohomemparalhemeteramãonofocinho..—Sabecomquemestáfalando?—Nemquerosaber...Para que saber se a cidade era deles? Hoje ele podia dizer o que

quisesseporqueelesmandavamnacidade.—PoiseusouoDr.Malagueta,ouviu?—MédicodaCircular,nãoé?Quem disse isso foi Severino que se aproximava. Vinham com ele

vários outros operários. O negro Henrique era gigantesco. O homem desobretudodobrouaesquina.Ooperárioqueconversaracomelesereuniuaogrupo.Severinoexplicou:

—Rapaz, greve é como esses colares que a gente vê nas vitrinas. Épresoporumalinha.Secortaralinhacaemtodasascontas.Éprecisonãofuraragreve.

Ooperáriochamava-seMariano:fezquesimcomacabeça.Antônio Balduíno foi com eles para o sindicato dos trabalhadores da

Circularesperarasoluçãodaconferênciadogovernocomosdiretoresdacompanhia.

Namesadadiretoriadosindicatoumnegroacabavaumdiscurso.—Meu pai foi escravo, eu também fui escravo, mas não quero que

meusfilhossejamescravos.Háhomenssentadosemuitosestãoempéporquenãohámaislugares

vagos.Umadelegação de padeiros vemprestar seu apoio aos grevistas e lê

ummanifesto incitando todooproletariadoàgreve. “Grevegeral”, gritamnasala.Uminvestigadordepolíciafuma.Estáencostadonaportaenãoéoúnico.Masnemprestamatençãoaele.Agorafalaumrapazdeóculos.Diz

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que os operários são uma imensa maioria no mundo e os ricos umapequenaminoria.Entãoporqueosricossugavamosuordospobres?Porqueestamaioriatrabalhavaestupidamenteparaoconfortodaminoria?

Antônio Balduíno bate palmas. Tudo aquilo é novo para ele e o queestãodizendoécerto.Elenuncaosoube,porémsempreosentiu.Porissonunca quisera trabalhar. Os ABC diziam também aquelas coisasmas nãodiziamtãoclaramente,nãoexplicavam.ComonasnoitesdoMorrodoCapa-Negro ele ouvia e aprendia. O rapaz desceu da cadeira de onde falou. OnegroquefalaraantesficabemjuntodeAntônioBalduínoqueoabraça:

—Eutambémtenhoumfilhoenãoqueroqueelesejaescravo...O negro que discursava sorri. Está falando um representante dos

estudantes, O sindicato dos estudantes de direito estava solidário com osgrevistas.Dizia no seudiscursoque todos os operários, os estudantes, osintelectuais pobres, os camponeses e os soldados se deviam unir na lutacontraocapital.AntônioBalduínonãooentendeumuitobem.Masonegroquediscursoulheexplicaquecapitalericosqueremdizeramesmacoisa.Eleentãoapóiaoorador.Derepentesentevontadedesubirnumacadeirae falar também.Ele também temoquedizer, ele já viumuita coisa. Furapelasalaetrepanumacadeira.Umoperárioperguntaaoutro:

—Quemé?—Umestivador...Umquejájogouboxe...Antônio Balduíno fala. Ele não está fazendo discurso, gente. Está é

contandooqueviunasuavidademalandro.Narraavidadoscamponesesnasplantaçõesde fumo,o trabalhodoshomenssemmulheres,o trabalhodasmulheresnas fábricasde charuto. PerguntemaoGordo sepensaremque é mentira. Conta o que viu. Conta que não gostava de operário, degentequetrabalhava.Masfoitrabalharporcausado ilho.Eagoraviaqueos operários se quisessem não seriam escravos. Se os homens dasplantaçõesdefumosoubessem,tambémfariamgreve.

Quase é carregado. Não tomou ainda perfeito conhecimento do seutriunfo. Por que o aplaudem assim? Ele não contou nenhuma históriabonita,nãobateuemninguém,nãofezumatodecoragem.Contousomenteoqueviu.Masoshomensaplaudememuitosoabraçamquandoelepassa.Um investigador o ita procurando não esquecer aquela cara. Cada vezAntônioBalduínogostamaisdagreve.

O rapazdeóculos se retira eum investigadoro segue.Dopaláciodogovernotelefonamparaosindicato.ÉoDr.GustavoBarreiraavisandoquea conferência se prolongará até a noite quando terãopossivelmente umasolução.

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—Favorável?—perguntaosecretáriodosindicato.—Honrosa...—respondeoDr.Gustavodooutroladodofio.Ossinosbatemseishoras.Acidadeestáàsescuras.

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PrimeiranoitedagreveAnoiteébela,nãohánuvensnocéuqueestáazulecheiodeestrelas.

Parece uma noite de verão. No entanto os homens se recolhem e nãosairão nesta noite a passear. É que a cidade está às escuras, nem umalimpada brilha nos altos postes pretos. Até a limpada da Lanterna dosAfogadosseapagou.

O cais nunca esteve tão silencioso. Os guindastes dormem porquenesta noite os estivadores não virão trabalhar. A marinhagem do naviosuecoseestendepelascasasdasmulheresdavida.Tambémnas ruasdacidade não hámovimento. Os homens icam receosos quando a luz falta.Dentrodascasasaluzvermelhadaslamparinasaumentaassombras.Ealuzbaçadasvelaslembrasentinelasdemortosqueridos.AntônioBalduínoserecordadasplantaçõesde fumoenquantocaminhanarua.Umhomempassaencostadonaparede.Seguraacarteiraporcimadopaletó.Quemovissediriaqueelevaisegurandoocotação.AcidadeéenvolvidapelossonsdebatuquequevêmdamacumbadeJubiabá.HojeessessonsdebatuquesoamaosouvidosdonegroAntônioBalduínocomosonsguerreiros, comosonsdelibertação.AestrelaqueéZumbidosPalmaresbrilhanocéuclaro.Um estudante certa vez se riu do negro Antônio Balduíno e disse queaquelaestrelanãoeraestrela,eraoplanetaVênus.MaseleridoestudanteporquesabequeaquelaestrelaéZumbidosPalmares,negrovalentequemorreu para não ser escravo, é Zumbi que brilha no céu e vê o negroAntônio Balduíno lutando para que Gustavinho não seja escravo. Aqueledia de greve fora dos mais bonitos da sua vida. Tão bonito como a fugaatravésdomato furandoocercodoscapangas.Tãobonitocomoodiaemque ganhou o campeonato de boxe, derrubandoVicente.Mais bonito até.Ele agora sabe por que luta. E vai assim depressa para avisar todos osnegrosqueestãonamacumbadepaiJubiabá.Vaiavisaratodos;aoGordo,a Joaquim,aZéCamarão,a Jubiabá.Elenãocompreendeporque Jubiabáainda não lhe ensinara a greve, JubIabá que sabia tudo. Zumbi dosPalmares,queéoplanetaVênus,piscaparaeledocéu.

Será que Exu, Exu, o diabo, está perturbando a festa? Será que seesqueceramde fazerodespachodeExu, seesqueceramdeenviá-loparabemlonge,paraoutroladodomar,paraacostad’África,paraosalgodoaisda Virgínia? Exu está teimando em vir à festa. Exu quer que cantem edancem em sua homenagem. Exu quer saudação, quer que Jubiabá seinclineparaeleediga:

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—Ôkê!Ôkê!Querqueamãedoterreiropeçapassagemparaosanto:

“Edurôdémimlonanôyê!”

Querqueaassistênciarepitaemcoro;

“Aumbók’owáJô!”

Exu não vai embora. É a primeira vez que aquilo acontece numamacumba de Jubiabá. Os sons do batuque escorregampela ladeira e vãomorrerláembaixonosbecosdacidadegrevista.Asfeitasdançam.Osogãsolhamespantados.AntônioBalduínopenetrademansonafesta.Eleéogãetoma seu lugar dentro do círculo das feitas que dançam. E com a suapresençaExuvaiembora.OGordodizquea festaédeOxossi.Masantesqueodeusdacaçavenhadançarnocorpodeumafeita,AntônioBalduínofala;

—Meupovo,vocêsnãosabenada...Eutoupensandonaminhacabeçaque vocês não sabe nada... Vocês precisam ver a greve, ir para a greve.Negro faz greve, não émais escravo. Que adianta negro rezar, negro vircantarparaOxossi?Os ricosmanda fechar a festadeOxossi.Umavez ospolícias fecharam a festa deOxalá quando ele eraOxolufã, o velho. E paiJubiabá foi com eles, foi pra cadeia. Vocês se lembram, sim. O que é quenegropodefazer?Negronãopodefazernada,nemdançarparasanto.Poisvocês não sabem de nada. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes,párabonde,cadêluz?Sótemasestrelas.Negroéaluz,éosbondes.Negroebrancopobre,tudoéescravo,mastemtudonamão.Ésónãoquerer,nãoémaisescravo.Meupovo,vamospragrevequeagreveécomoumcolar.Tudojuntoémesmobonito.Caiumaconta,asoutrascaemtambém.Gente,vamospralá.

EAntônioBalduíno sai sem ver os que os acompanham.OGordo vaicomele,JoaquimeZéCamarãotambém.Jubiabáestendeasmãosediz:

—Exupegouele...

No sindicato ainda não têm nenhum resultado da conferência nopalácio.Severinorepeteparaquemquiserouvir:

—Tapeação.Nãoestávendoqueaqueledoutoréumamarelo?Outrosdefendem.Eleéumadvogadoesabemuito.Aestashorasele

sebaterápelodireitodosoperáriosexplorados.Um iscaldebondefazumdiscursoelogiandooDr.Gustavo.Háapoiadosevaias.

No salão do palácio se realiza a conferência.Mas não chegam a uma

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conclusão. Gustavo pede em lindas tiradas oratórias que os operáriossejamsatisfeitosnassuaspretensões:

—Nãopeço,exijo...Fala em humanidade, em homens que passam fome, que trabalham

dezoito horas por dia, que morrem tuberculosos. Lembra o perigo darevoluçãosocialseesteestadodecoisascontinuar.

Oshomensquerepresentamacompanhia(umamericanomoçoeumsenhor velho que é advogado da companhia e fora parlamentar noutrostempos) não cedemno entanto.Omais quepodem fazer, declara o velhoadvogado, é ceder em cinqüenta por cento nas reivindicações dosoperários Assimmesmo por amor ao povo, para que a cidade não iqueprivadados bondes, da luz, do telefone. Para os operários a solução seráótima,declara.Masdartudooqueelespedem,não.Émelhorentregardeumavezacompanhiaaeles.Eosacionistas?Osoperáriossópensamemsi,não se recordam dos estrangeiros que con iaram na nossa gente eempregaram seu dinheiro em empresas no Brasil. Que não dirão eles?Dirão que foram furtados pelos brasileiros e isto com certeza não éhonrosoparaonomedopaís.(Oamericanoapóiacomacabeçaecomyes.)ElenãoqueracreditarqueoDr.GustavoBarreira,queéumhomemcultoeinteligente(Gustavoseinclina),possapensartãoimpatrioticamente,quequeira ver o nome do país arrastado à lama no estrangeiro. Que osoperários não pensemnisso, é justo. São uns ignorantes que já têmmaisqueodevidoeque sãoarrastadospelas invençõesdehomensalheiosaomeio.Elenãoquersereferir—frisabem—aoDr.GustavoBarreira,cujahonestidadeconheceecujotalentoadmira.(Gustavoseinclinanovamentee murmura: “Eu nunca pensaria. Minha honra está acima de qualquersuspeita”.) A companhia, para não deixar o povo na falta de coisasessenciaisà suavida, concederia cinqüentapor centodoaumentopedidopelosoperários.Alémdisso,nadafeito.

Chegara a hora do jantar. E a conferência termina sem resultados.Ogovernador se retira. O americano oferece o automóvel para conduzirGustavo.Oadvogadodacompanhiafala:

—Vamosjantarjuntosedebarrigacheiadiscutiremosmelhor...

Como é confortável aquele Hudson, pensa Gustavo ao recostar noautomóvelentreoamericanoeoadvogado.Oamericanooferececharutos.Vão algum tempo em silêncio. O automóvel é macio, o chofer fardado.Corremcoladosaostrilhos.Oadvogadoperguntaaoamericano:

—Eaquelaidéiasua,MisterThomas?

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—Ah!Yes...OadvogadoexplicaaGustavo:— Veja o que é coincidência, doutor... Ainda há dias falávamos no

senhor—Yes,yes—fazoamericano,puxandoumafumaçadocharuto.—Eujámesintocansado,estouvelho.—Nãodigaisto.— Não digo que ainda não advogue, isso não. Mas o serviço da

companhia é muito pesado para mim, Estivemos pensando, eu e MisterThomas,emconvidaralguémparaocuparolugardesegundoadvogadodacompanhia. A companhia comporta bem dois advogados. E pensamos nosenhor... Não, não pense que é para lhe agradar. Não, senhor... (Gustavosuspende o gesto que dizia que a sua consciência não permitiacambalachos e a irma que não iria nunca pensar que o Dr. Guedes oquisessecomprar.Nãoeracapazdepensartalcoisa.)Acompanhiapensouno senhor, digo melhor dizendo que Mister Thomas e eu (Gustavoagradece) pensamos, devido às suas ligações com os sindicatos detrabalhadores da companhia. O senhor é advogado dos operários.Representaria na companhia o pensamento daqueles humildestrabalhadores. Seria uma ligação entre o operariado e a companhia. Osinteresses dos operários seriam entregues ao senhor. O senhor é moço,temumabelacarreiranasuafrente.OParlamentooespera.Opaísesperamuitodo seu talento.Vejabemqueos intuitosda companhia sãoosmaisnobres possíveis. Muita gente pensa que a companhia não se interessapela sorte dos operários. Engano... A prova de que a companhia seinteressa pela sorte dos seus operários está aí: convida o paladino delesparaseradvogadodacasa.Assimosoperários terãonaprópriadiretoriaumdefensor.Equedefensor!...Poraíosenhorpodeveraboa-fécomqueacompanhiaage.

O automóvel é macio. Zuleíka vive pedindo um auto móvel. Com acompanhia na mão ele chegará ao parlamento na próxima legislatura. Oamericanoéprático:

—Oshonoráriossãodeoitocontospormês,doutor.MasGustavoprotestaqueestaquestãodedinheiroointeressapouco,

quesó lhe interessadefenderosoperáriosquepodemserexcessivos,elenãodizo contrário,masque têmas suas razões.Seaceitar seráparaserumasentinelaavançadadosdireitosdosoperários.Éclaroquenãoapóiaexcessos,issoéclaro.

QuandofindaojantaroDr.Guedesdiz:

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— Pois pode levar a boa nova aos operários, doutor. Que aquelascrianças (sim, são umas simples crianças— a irma Gustavo— fáceis decontentar) voltem amanhã ao trabalho. Terão cinqüenta por cento deaumentoedevemistoàirradiantesimpatiadoDr.Gustavo.

Quandoelesaioamericanocospe:—Jávisujeitosnojentos.OvelhoGuedesriepedechampanhaparacomemorarofimdagreve—Porcontadacompanhia,hein?..

Um automóvel para a mulher, reputação, uma casa em Copacabana,possivelmenteumafazendadecacau.Cinqüentaporcentodeaumentoeramuitacoisa.Cemporcentocomoqueriamosoperárioseraexigirdemais.Alémdissosepedecemparaconseguirdez.Eleconseguiracinqüentaparaos operários. Uma vitória, sim senhor. E ainda impedira que o nome dapátriafosseenxovalhadonoestrangeiro.

No sindicato onegroAntônioBalduíno faz o seu terceirodiscursododiasóparaqueo ilhodoDr.GustavoBarreiranãosejaescravocomoeleé,comosãotodososnegrosebrancosoperáriosdocais,daspadarias,dacompanhiadebonde,luzetelefone.

Mariano entra em casa de cabeça baixa. Quando ele saiu a mulherainda não sabia que a greve tinha sido declarada. E só à noite ele tevecoragemdevoltarparacasa,dereverosolhos febrisdamulherzangada,osolhosmortosdafilhadoente.Maleleentraamulhergrita:

—Vocêestámetidonisso,Mariano?—Emquê?—Olhaacriancinhaquerendosefazerdeinocente.Toufalandodesta

malditagreve...Vocêestámetidonisso,nãoestá?—Malditaporquê,Guilhermina?...Agentequerganharmais,agente

querterumpoucomaisdedinheiro.ÉremédioparaLilaqueeuquero. . .Maldita,nãovejoporquê...

—Querdinheiro?Vocêsquermasémalandrear,nãofazernada, icarbêbado pela rua, chegar em casa de madrugada. Pensa que eu nãoconheçovocês?Pensaquevocêmeengana?Ficaporaívadiandoedepoisvem com esse verso em cima demim... Quer remédio para Lila... Se vocêestivesse trabalhando direito, sem semeter nestas coisas, já era iscal, jáestava ganhandomais... Greve é coisa de demônio, Padre Silvino diz tododia. Issoécoisaqueodemôniometenacabeçadosdoidoscomovocê...Sevocênãoandassesemetendonestascoisasjáestavafiscal.

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Marianoouvesemreplicar.Quandoamulherterminaebotaasmãosnascadeirasesperando,Marianoapenaspergunta:

—ELilacomovai?— E Lila como vai?— ela arremeda.— Vai nomesmo, como é que

podia ir?Vocêpensamuitonasortedela,semetendoemgreves.PreferiaqueDeusmematassequevermeumaridoassimmetidoem invençãododiabo.

SeafastadeMarianocomoseelefosseoprópriodemônio.Ooperáriovaiatéacamaeolhaa ilha.Elaestádoentedosintestinos,omédicodissequefoiterraqueelacomeu.Nosdiasqueelepassoudesempregadoquasenão havia comida em casa. É capaz do Dr. Gustavo resolver tudo com acompanhia esta noite e amanhã eles voltarão ao trabalho. Poderá pagaroutraconsultaaomédico.Traráremédiosda farmácia.Esenãoresolver?Seagreveduraroito,dezdias?Aíserátrágico,faltaráacomida,ameninamorrerá por falta de remédios. Ele não quer que Lila morra. Mesmoquando Guilhermina está terrível, Lilá sorri para ele e beija seu rostobarbado. Mas a greve, Mariano, é um colar de contas ligado por um io.Caindo uma conta, caem todas. Ele ouve a voz de Severino e afasta opensamento ruim. Beija a ilha. De longe, na rua, ainda escuta a vozzangadadeGuilhermina.

OnegroHenriquepalitaosdentescomumaespinhadepeixe.Botaofilhonocoloepergunta

—Jásabealiçãod’amanhã,tição?Onegrinhorie,botandoodedononarizgarantequesabenapontada

língua.Ercídiavemdacozinhaeavisa:—Amanhãvaiserarraiadenovo.—Enquantotiverarraia,tátudobom,negra.Henrique ri com o pretinho. Não é que o tiçãozinho sabe todas as

lições,consegueatéfazercontas?—Táumbicho,hein,Ercídia?A negra sorri. O ilho quer que ele conte uma história. O negro

Henriquediz—Umpretobatutafezumdiscursonosindicatodizendoqueos ilhos

dagentenãoiasermaisescravo...Tiçãozinhonãovaimaisserescravo.—Agreveganha?—Ora,seganha!Queméquepodecomagente?Táali,táganha,você

vaiver.Tábonito...TemumnegroBalduínoquefalaqueéumabeleza.Contaàmulherosfatosdodia.Osseusmúsculosdegiganteaparecem

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sobacamisadelistras.Depoispegaofilho,põeempédiantedesi:— Tição, você não vai ser mais escravo... Você vai ser governador,

tição.Agenteémuito,elessãopoucos.Agenteacabagovernandoeles.Bate continência ao futuro governador. Ri em gargalhadas, certo de

suaforça,darazãodagrevequeestáfazendo.AnegraErcídiasorriparaomaridocomternura:

—Amanhãtemarraiadenovo...

OdonodaPadariaDoisMundos, umespanholbaixote, contaos fatosdo dia. Amulher estendida numa cadeira de balanço ouve em silêncio. Ailha martela um samba com os dedos. O dono da Padaria Dois Mundosnarraahistóriadagreve,osprincipaisfatosdodia.Ocandeeirotemaluzvacilante.Miguelterminadecontarecerraosolhos.Amulherperguntadacadeiradebalanço:

—Masapadariaestádando,nãoestá,MigueI?—Está,sim.Comessesdiasdegrevevaihaveralgumprejuízomaso

lucrocompensa.— Então eu acho que eles têm razão. Eles passam uma miséria

horrorosa.—Têm, sim. Eu pormimdava o aumento. Já disse na associação. Os

outros, o Ruiz das Pani icações, é que não querem.ORuiz, então! Parecequenãosecontentacomnadaaquelehomem...Eupormimdava.

Afilhainterrompe:—Praquedar,papai?SeuRuiz temrazão... a genteprecisade tanto

dinheiro.Euqueroumabarata,umrádio...Osenhormeprometeu...Nãoselembramais?Agoraquerdarparaessespretossem-vergonha.

—Quemquertudoficasemnada,minhafilha—respondeMiguel.Amulherpensaquea ilhajánasceunumacasaconfortável,nãoveio,

comoelaeomarido,dasfábricasdeMadri,naterceiraclassedeumnavio,não passou fome nunca. Quer um auto, um rádio, quanta coisa mais. Osnegrosqueremtãopouco.Repeteparaomarido:

— Se bata pelo aumento, Miguel. Seu Ruiz é um avarento, só sabeamealhardinheiro.

A ilha sonha com a baratinha que cortou a rua. O namorado seaproximadajanela:

—Eu soupela greve. Porque assim, só coma lua, você ainda émaisbonita.

Quandoelativerabaratinhanãoprecisaránamorarcomumcaixeirode armarinho, ouvir frases românticas. Namorará um estudante, um

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acadêmico,eiráàsfestaselegantes.

ODr.GustavoBarreirasaltadotáxiesobededoisemdoisosdegrausdaescadadosindicato.Fazemsilêncioquandoeleentra.Sentaàmesanolugarqueopresidentelhecede.Pedeapalavra.

— Senhores, como vosso advogado trabalhei toda a tarde junto aosdiretores da Companhia Circular. Testemunhamelhor domeu trabalho edo meu esforço honesto é a grata nova que vos trago. Senhores, sereiconciso. O caso foi solucionado completamente... (Os ouvintes se projetamparaafrente.Assimouvemmelhor.)graçasaosesforçosempregadospelovosso humilde patrono. Após discutirmos toda uma tarde chegamos àconclusão de que o caso icaria perfeitamente liquidado, com honra paraambas as partes, se todos cedessem um pouco (ouve-se um zunzum nasala).—Deum ladoacompanhiasaíadasua intransigênciaquechegavaaopontodenãoadmitirnenhumentendimentocomosoperáriosenquantoelesseconservassememgreve,enãosóentraraementendimentoscomochegaracomele,orador,aumacerto.Osoperárioscederiamemcinqüentaporcentodassuasexigênciaseacompanhiasatisfariaosoutroscinqüentaporcentocomeçandoasnovastabelasavigorarnodiaseguinte.

— Isso é política de advogado ou de operário? — interrompeuSeverino.

— Essa é a melhor política... — Dr. Gustavo sorri seu sorriso maiscaricioso—éapolíticadeconquistaraospoucosaquiloquenãopodeserconquistado de um só golpe. Se derdes ouvidos aos agitadorespro issionaisalutaseráperdidaparavós,poisseextremardesdemasiadoela se voltará contra vós como um punhal de dois gumes, pois a fomebateráàvossaporta,amisériahabitaráovossolar.

—Osindicatotemdinheiroparagarantiragreve.—Mesmoqueelaseeternize?— Ela tem que acabar que a cidade não pode icar sem luz e sem

bonde. Eles têm que dar o que a gente quer! Não vamos desanimar,companheiros!

ODr.Gustavoestárubrodecólera:— Você não sabe o que diz. Eu sou um advogado, entendo destas

coisas.—Agenteéquesabedequantoprecisaparanãomorrer...—Bonito,negro—apóiaBalduíno.Umrapazpedeapalavra.Começaramabaterpalmasmaleleaparece

namesa.

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—Quemé?—perguntaAntônioBalduínoaonegroHenrique.—Éumoperáriodaso icinas.SechamaPedroCorumba.Umhomem

escreveuoABCdafamíliadelequepassouodiaboemSergipe.Eujáli...Eleéumlutadorvelho,Grevistavelho.JáfezgreveemSergipe,noRio,emSãoPaulo.Euconheçoele.Depoislheapresento.

— Quando eu saio de casa digo a meus ilhos: vocês são irmãos detodas as crianças operárias do Brasil. Digo isso porque posso morrer equero quemeus ilhos continuem a lutar pela redenção do proletariado.Companheiros,agenteestásendotraída.Essanãoéaprimeiravezqueeufaço uma greve. Eu sei o que é traição. Operário não pode acreditar emninguémquenãosejaoperáriomesmo.Osoutrostapeiam,enganam.Essequeestáaqui—apontaoDr.Gustavo—éumamarelo,Quemsabese jánãotemumempregonacompanhia,senãolhederamdinheiro?...

O Dr. Gustavo bate na mesa, protesta, diz que o orador o estáinsultandoequeeleécapazdereagir.Masosoperários têmosolhosemPedroCorumbaquecontinua:

—Companheiros,agenteestásendotraída.Agentenãopodeaceitaresta proposta da companhia. Assim eles pensam que a gente está fraco,amanhãtiraoaumentoedeixaagentenamão.Agentecomeçoutemquelevaratéo im.Eupre iromorreraabandonaragrevequejácomeçou.Agentevaivencer.Agentetemquevencer.Oproletariadoéumaforçaesesouber se conduzir, se souberdirigir a sua luta, conseguiráoquequiser.Companheiros, tudodentrodanossaproposta.Nadadetapeações.AbaixoGustavo Barreira e a Companhia Circular! Viva o proletariado! Viva agreve!

— Viva!— a multidão tem os olhos abertos. Mariano sorri, o negroHenriquemostraosdentes.AntônioBalduínofala:

— Os estivadores concordam com o que disse o companheiroCorumba.Elesnãoestãocomo seucasoainda resolvido.ElesapoiaramagrevedosoperáriosdaCirculareesperamqueestesosapóiem.Elesnãoqueremtapeação.Queremqueassuaspropostassejamaceitascomoestãoenãopelametade.

Propõe queGustavoBarreira, que os estava traindo, seja expulso damesa. SeAntônioBalduíno soubessequeele forao amantedeLindinalvaele não sairia vivo desta sala. O advogado se retira garantido pelosinvestigadores.Umavaiaoacompanhapelaescada.Porémpedemsilêncio.Severinofalaeavisaqueagoraalutavaisermaiscruel,maisdi ícil,poisosinimigosirãodizerqueeleséquenãoqueremacordo.Propõequeselanceummanifestoàpopulação.Lêomanifestoquejáredigiuequeéaprovado.

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Omanifestoexplicaqueelesforamtraídosmasquesustentarãoalutaatéo im e que só voltarão ao trabalho quando a companhia aceitar ascondiçõespedidasdesdeoprimeiromomento.

Um sujeitomoreno pede para ser ouvido. Ele é contra a continuaçãodagreve.Achaque sedeveaceitaro aumentode cinqüentapor cento. Jávai servindo. Quem quermuito de uma vez, acaba perdendo tudo. O Dr.Gustavo tinha razão. Qual é a força que operário tem? Operário não temforçanenhuma.Apolíciapodiaacabaragrevenahoraquequisesse.

—Como?Como?—Ora,sepodia.Elesdeviamsedarporfelizescomoaumento.Propõe

queaassembléiaaproveaterminaçãodagreveeumvotodelouvoraoDr.Gustavo.

Vozesgritam:—Vendido,vendido!Traidor,traidor!Outros pedem que ouçam o orador. Vários operários, Mariano entre

eles,estãoquaseconcordandocomorapazmoreno.Cinqüentaporcentojáé alguma coisa. Depois podem perder tudo e será muito pior. Quando orapazdesce,ganhaalgunsaplausos.MasAntônioBalduínogritamesmodolugarondeestá.

— Gente, o olho da piedade de vocês já secou. Ficou somente o daruindade?Vocêsparecequenemse lembramdagentequeapoiouvocês.Osestivadores,ostrabalhadoresdapadaria.Sevocêsqueremsertraídos,sejam. Cada um é dono de sua cabeça.Mas se vocês são tão burros quequeremperdertudoparaganharumaporcaria,eugarantoquerebentoacabeça do primeiro que passar naquela porta. E eu ico na greve atévencer!

Severino sorri. Mas vários se impressionam com o discurso deBalduíno.OGordoquenuncaviuumacoisaassimestátremendo.Onegroque faloude tardediscursavanovamente.Mostraquehouve traição, queeles foram vendidos. Pedro Corumba fala também, cita exemplos dasgreves de São Paulo e do Rio quando con iaram em promessas deadvogados que se diziam amigos do proletariado. Mas a assistência estáindecisa, os homens conversam entre si e os que aceitam a propostaconquistamadeptos.

O presidente vai pôr em votação Aqueles que concordam com acontinuação da greve se levantem. Os que acham que devem aceitar aproposta da companhia, se conservem sentados. Porém, antes que avotaçãosejafeita,umjovemoperárioinvadeorecintoegrita:

—OcompanheiroAdemar foipresoquandosaiudaquide tarde.Ea

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companhiaestáalugandogenteparafuraragreve.Páraetomafôlego:—Edizqueapolíciavaiobrigarospadeirosaentregarpãoamanhã.Então a assembléia se levanta toda e vota pela continuação da greve

comosbraçosestendidos,ospunhosfechados.

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SegundodiadagreveParaquedormirnestanoitetãobonita?OnegroAntônioBalduínonão

vai dormir. Passa o resto da noite na companhia do Gordo e de Joaquimpregandomanifestospela cidade,omanifestoqueSeverino redigiuequeexplica os motivos da continuação da greve. Todos os postes têmmanifestos. Também nos muros do Ramos do Queirós, da Baixa dosSapateiros,pregarammanifestos.Umgrupoche iadopelonegroHenriquefoiparaos ladosdoRioVermelho.ElesvãoparaaEstradadaLiberdade,outros seguempara aCalçada, outros estãonaCidadeBaixa.A cidade seenche de manifestos e todos sabem as razões por que os operárioscontinuam em greve. A companhia não é geralmente simpatizada e ospequenoscomerciantesvêmdemarineteparaosseusnegócioseolhamosoperários com simpatia. A companhia fez espalhar o boato de que se agrevevencesseospreçosdaspassagensnosbondes,asassinaturasdeluze telefone subiriam. Mas o golpe falha, apenas traz maior animosidadecontraacompanhia.Otempocontinuaclaroconservandoobomhumordapopulação.Eestebomhumoréaliadodosoperários.

Antônio Balduíno (quanta coisa ele aprendeu naquele dia e naquelanoite!)explicaagreveaoGordoeaJoaquim.EseespantadeJubiabánãosaber coisas de greve. Jubiabá sabia coisas de santos, histórias daescravidão, era livre mas nunca ensinara a greve ao povo escravo domorro.AntônioBalduínonãocompreendia.

Dos lados da Ladeira do Pelourinho vem um barulho, uma agitação.Homenspassamcorrendo.Dosindicatoouvemoruídodeumtiro.Alguémqueentradiz:

—Apolíciaquerobrigarospadeirosaentregarpão.Saíumgrupodosindicato.Masobarulhojásedesfezenochãojazem

cestos onde estavam os pães envelhecidos que os donos de padariaqueriamobrigaroscesteirosaentregar.

Umcesteiroqueestácomoolhoarroxeadodeumapancadaexplica:—Veioatésoldadodecavalaria.Masagentenãoentregoumesmo.Um outro avisa que a Padaria Galega vai mandar entregar o pão

dormido.Contaqueelesforamcontratardesempregadosdandooduplodosalário.Demais,garantiamoempregoparaorestodavida.

Umforneirovelhogrita:—Agentenãodevedeixar.TemmuitagentenasjanelasdaLadeiradoPelourinho.Edosindicato

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dos operários da Circular chegam a todo momento novos grupos. Vozesaplaudemoforneiro:

—Vamosmostraraelesquenãosedevefurargreve..AntônioBalduínoconvida:—Agenterebentaacaradeles.—Nadadisso—dizSeverino.—Vamosláeexplicamosparaelesque

não devem servir de instrumento contra os operários como eles. Não éprecisobarulho.

—Masparaquetantodiscursoquandoagentepodiarebentarlogoacaradestesamarelos?

— Eles não são amarelos... Eles não sabem de nada. Nós vamosexplicar...—Severinosabeoqueestádizendo.

Antônio Balduíno cala. Aos poucos ele vai aprendendo que na grevenão é umhomemquemanda.Na greve eles todos fazemum corpo só. Agreve é como um colar... Mas não sente tristeza de não ser o chefe dagreve. Todos são chefes. Obedecem ao que está certo. Aquela luta édiferentedaqueelesustentouemtodaasuavida.Masdestaqueresultou?Resultoueleescravoaosguindastes,olhandoomarcomoumcaminho.Nalutadagreve,não.Eles iamperderumpoucodaescravidão,ganharmaisalgumaliberdade.Umdiafariamumagreveaindamaiorenãoseriammaisescravos. Jubiabá tambémnão sabenadadesta luta...Oshomensquevãoentregar os pães não devem saber também. Severino tem razão. Nãoadiantadarpancada.Adiantaéconvencer.EonegrosegueogrupoparaaPadariaGalegaqueficanaBaixadosSapateiros.

Os cesteiros vão saindo. Parecem iguras de carnaval com aquelescestos na cabeça. Severino começa a falar trepado num poste ao qual seagarra comumadasmãos. Explica aoshomensquedevem ser solidárioscom os seus irmãos que pedem aumento. Que não devem servir aosinteresses dos patrões. Que não devem entregar aquele pão, que nãodevemtrairaclasseaquepertencem.

—Masagentenãotemtrabalho...—dizumdeles.—Eporissovaitomarolugardosoutros?Éjustoquevocêvátomaro

lugar de um companheiro que está lutando pelo bem de todos? É umatraição...

Umcesteiroarriao cestodepão.Outrosacompanham.Amassagritade entusiasmo. Mesmo os mais recalcitrantes, aquele que dera o aparte,um que tem família a sustentar, largam os cestos ante o entusiasmo damultidão.Doisquequeremsairparaentregarospãessãoimpedidospelospróprioscompanheiros.Eentreosgritosde“vivaagreve”vãotodospara

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osindicatodospadeiros.

Mas,pelatarde,acoisafoi icandofeiaparaoladodospadeiros.FoioGordo,quetinhaidocomeresedemoraramuito,quemtrouxeraanotícia.O dono das Pani icações Reunidas havia mandado buscar forneiros eamassadores em Feira de Santana. Tinha feito os homens virem deautomóvelenodiaseguintejáhaveriapão,poisagoramesmodetardeoshomenscomeçariamatrabalhar.

Houve um começo de pânico entre os padeiros. Homens foramenviadosaossindicatosdosoperáriosdaCircularedosestivadores.SeasReunidas conseguissembotarpãona rua a grevedospadeirospodia serdada como terminada e os grevistas teriam perdido, além do aumentopedido, o próprio emprego. E isso afetaria grandemente a greve dosoperários da Circular e dos estivadores. Vencidos os padeiros a greveperdia um dos braços. Seria muito mais fácil contra os restantes.Começaramachoverosdiscursosnosindicatodospadeiros.EnquantoissohaviaumcomícionaPraçaCastroAlvespedindoa libertaçãodooperáriopresonavéspera.Nomeiodocomícioalguémfalounocasodospadeiros,nofuroqueasReunidaspretendiamfazernagreve.Ocomíciotomouaíumcarátermaisviolentoedesceram todosparao sindicatodospadeiros.Dosindicatodosestivadoresjáiagente.OGordopassoupelodosoperáriosdaCircularparaavisar.

No sindicato dos padeiros (a sala era pequena para tanta gente)falaram os representantes dos trabalhadores das padarias, dosestivadores, dos condutores de bonde, dos estudantes. Falou tambémumoperário de uma fábrica de sapatos que entraria em greve geral mal asituaçãoexigisse.Cadavezchegavamaisgenteaosindicato.Severinofalourouco,jáquasesemvoz.Foilançadoummanifestoconcitandoosoperáriosàgrevegerale icouresolvidoque iriam impediro trabalhodospadeirosvindosdeFeiradeSantana.

AsPani icaçõesReunidas eram três grandespadarias.Uma icavanaBaixadosSapateiros,aoutranoCorredordaVitóriaeaterceiranumaruadocentro.Osgrevistassereuniramemtrêsgrandesgruposeforamparaa frente das padarias. Apenas Severino e uns poucos foram entrar ementendimentoscomosoperáriosdealgumasfábricasecomoschoferesdemarinetes e de automóveis de praça. Preparavam a greve geral. ACompanhia Circular e a companhia que explorava as docas não queriamsequer entendimentos com os grevistas. Só tomariam conhecimento dassuas propostas quando eles voltassem ao trabalho. Os donos de padaria

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procuravamfuraragreve.

Foifácilimpedirqueosoperárioscontratadosparaaspani icaçõesdoCorredordaVitóriaedocentrodacidadetrabalhassem.Elestinhamvindocompromessasformidáveis,masdecomeçoRuiz,oproprietário,senegaraapagarmetadedotrabalhoadiantadocomoprometera.Disseraquesónodia seguinte, o serviço feito, pagaria. Com apelos ao sentimento desolidariedade e com a certeza, que se lia no rosto dos grevistas, que nãodeixariamosoutros trabalharem,os recém-vindos consentiramemvoltarparaFeiradeSantananumautomóvel.Eseforamdandovivasàgreve.

Porém nas Reunidas da Baixa dos Sapateiros a coisa foi diferente.Quando os grevistas chegaram a polícia já se encontrava guarnecendo apadaria. Investigadores se envolviam entre os operários, a mão norevólver. O grupo icou parado na rua esperando que os contratadoschegassem. Quando o caminhão que os trazia desembocou na rua, umoperário se postou na sua frente, impedindo-o de continuar a marcha.Imediatamenteoutrotrepounumposteecomeçouumdiscursomostrandoaos padeiros de Feira de Santana qual a situação e o que os patrõesqueriam fazer. A rua estava cheia. Homens que não tinham nada com ocasoparavamparaveremquedavaaquilo.Umdisseaocompanheiro:

—Apostoqueelesvoltam..—Cincãocomoficam...Meninosemeninasquebrincavamnumbecopróximocorrerampara

apreciar o espetáculo. Achavam aquilo divertido como Antônio Balduínoachara divertida a prisão daquele agitador no caís do portomuitos anosatrás. Gritavam quando os operários gritavam. E se divertiamimensamente.Trepadonoposte o operário continuavao seudiscurso.OspadeirosdeFeiradeSantanaescutavamealgunsestavamconvencidosdevoltar.

De repente choveu bala. Os investigadores atiravam, a cavalariainvestiucontraosoperários.Houvecorreria,gentepisada, lutadehomemcontra homem. Antônio Balduíno já derrubara um quando viu o Gordocorrendo na sua frente com os olhos esbugalhados e as banhas da carabalançando. O operário continuava o seu discurso mesmo entre balas.AntônioBalduínoagoravêoGordoquelevantaocadáverdeumanegrinhabaleadaesaigritandopelarua:

—OndeéqueestáDeus?QuedêDeus?...

Os padeiros de Feira de Santana voltaram no mesmo caminhão.Estendidos na Baixa dos Sapateiros icam dois grevistas. Um está morto

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masooutroaindapodesorrir.Quemé aquelenegroque vai assimdebraços estendidospelas ruas

calmasoumovimentadasdacidade?Porqueeleblasfema,porquechora,por que pergunta onde está Deus? Por que ele leva os braços assimestendidosparaafrentecomosecarregassealgumacoisaepassasemvernada,semrepararnoshomensemulheresquereparamnele,semolharavidaquesemovimentaemtorno,semverosolquebrilha?Paraondeelevai alheio a tudo?Que levará ele nosbraços, que coisa será essa que elebalança com tanto carinho? Que coisa será essa que olhos humanos nãovêemequeeleaconchegaaopeito suavemente?Quequereráessenegrogordodeolhostristesquepassapelasruasdacidadenashorasdemaiormovimento?Elerepeteatodosquepassampertodesiamesmaperguntaangustiada:

—OndeestáDeus?OndeestáDeus?Sua voz é desolada e trágica. Quem é esse homem que impressiona

todosquepasseiamnacidade?Ninguémsabe.Os operários que izeram a greve sabem que é o Gordo que

enlouqueceuquandoviuabaladorevólverdeuminvestigadormatarumanegrinhaemfrentedeumadaspadariasdasPani icaçõesReunidasnodiadeumcomício.

Sabemqueelecarregaraocadáverdapretinhaatéacasadepai-de-santoJubiabáequeforatodootemporepetindoaquelamesmapergunta:

—OndeestáDeus?Ele era muito religioso e enlouqueceu. Agora anda com os braços

estendidos como se ainda levasse a pretinha baleada. Não faz mal aninguém,éumloucomanso.

Porémnemmesmoestessabemdetudo.ElesnãosabemquedesdeodiadocomíciooGordocarregaaquelapretinhacertoquedeummomentoparaoutroDeusselembrarádela,mostraráqueébomeacolocaráempé,a brincar com as outras crianças na Baixa dos Sapateiros. Nesse dia oGordodeixaráderepetirasuapergunta,baixaráasmãoseseusolhosnãoserão mais tristes. Mas se ele soubesse que ela tinha morrido, que seucaixãopobreforaenterradohámuito,então,elemorreriatambémporqueatéoolhodapiedadedeDeus,queédotamanhodomundo,teriasecado.Então ele não acreditariamais emorreria desgraçado. Por isso é que elevai assim como um loucomanso, de braços estendidos, aconchegando aopeito o corpinho magro da criança negra que morreu no comício. Nãoimportaqueoshomensnãovejamopequenocorpobaleado.ElepesanosbraçosdoGordoeelesenteasuaquenturaquandooencostaaocoração.

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SegundaNoitedeGreveAcidadeperderaaqueletomfestivo.Desdeoprimeirotiroteioqueos

boatos invadiram a cidade e aos poucos o movimento das ruas foidiminuindo.Asmarinetescorriammaslevaramrarospassageiros,eestes,assimmesmo,serecolhiamacasamedrososdebrigas,debalasperdidas:

—Balanãolevaendereço.Dentrodascasas,oambienteentreasfamíliaseradequaseterror.O

encontro entre padeiros grevistas e a polícia na Baixa dos Sapateirosassumiaproporçõestremendas.Davamdezoitomortos,dezenasdeferidos.Corriaqueossindicatosiamseratacadoseosgrevistasdissolvidosabala.As senhoras tremiamepassavam trancas nas portas enquanto acendiamasvelaseoscandeeirosdentrodecasa.Acidadeestavaintranqüila.

FaltouojantarnacasadeClóvis.Ele icaradetrazerqualquercoisadacidade e Helena esperou por toda a tarde. Ele não apareceu. Corriam osboatos mais desencontrados. Quando ela soube do tiroteio na Baixa dosSapateiros correu à rua. Mas foi informada que Clóvis não estava nomomentodobarulho,tinhasidodogrupoqueforafecharapani icaçãodoCorredor da Vitória. Voltou mais descansada e continuou a esperar omarido.Os ilhos eram três, corriampela porta, brincandodepicula.Queiria dar às crianças para comer? O fogão parado esperava inútil na cozinha. Não havia nada. Até a farinha terminara naquele dia. Já para oalmoçoelapediracomidaàsvizinhaseprometerapagarquandoomaridovoltasse, porque as pobres também precisavam, pois os homens quemoravamnaquelebecooueramempregadosdepadariaouestivadoreseandavamemgreve.Helenaestavaenvergonhada.Que fariadascrianças?Mandariapedirmaiscomida?Elesestavamemgreveeoshomensdiziamque era necessário que uns ajudassem os outros. Ela não era contra agreve,não.Achavaqueelestinhamrazão,queosalárioeramuitopequenoenãodava.Elesestavamnoseudireitodepedirmais,deixardetrabalharaté que os patrões aumentassemo salário.Mas temia os dias que iam seseguir. Não havia mais comida em casa, nas dos vizinhos faltaria logo eondeéqueosindicatoarranjariadinheiroparasustentartantagente?Seagreve demorassemais alguns dias, a fome os derrubaria. Chega à janela.NacasavizinhaapareceErcídia:

—SeuClóvisjáchegou,Helena?—Aindanão,SinháErcídia...—É capaz de não vir...Henriquemedisse que eunão esperasse... A

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grevetábrabahojeeoshomensprecisamestarnarua.Anegrasorria.—Achoquevoujantarsemele..Sorriunovamente.MasporqueHelenanãosorri,nãoachagraça?Ela

estáchorando.Ercídiasaíeentranacasadavizinha:—Oqueé,Helena?Ofogãoestáparadonacozinha.Anegraalisaacabeçadaoutra:—Não se importe,menina, deixedebesteira. Lá em casa temarraia

quechegue.Edepoiselesganhamagreveeagentetemmaisdinheiro.Helenasorrientrelágrimas.

Após acomodar as crianças, que icaram dormindo, Helena bota umxalenosombrosetomaocaminhodaGraça,ondemoraDonaHelenaRuiz,esposa do patrão de seumarido. Ela fora lavadeira deDonaHelena, queera uma senhora sempre preocupada em fazer bem aos pobres e que achamavasemnenhumabesteirade“xará”.

—Vejalá,xará.Queroestaroupabemalva.Apesar de riquíssima,DonaHelena continuava a tomar conta da sua

casa. Dizia que quem não tem nenhuma ocupação se ocupa compensamentos ruins. E se bem tivesse muitas festas a que ir, cinemas aassistir, passeios a dar, arranjava sempre tempo para zelar pela casa. Omaridorogavaqueentregasseaquiloàscriadas,quenãoestragasseseusvinteedoisanosrisonhos,maselanãodavaouvidos:

—Seeuentregarissoaempregadasvocênuncamaisteráumaroupaquepreste.Edemaiseugosto.

Omaridoabeijavanorostoedepois iamaocinemamuitounidos.Elelhecontavaosnegócios,falavaorgulhosodaprosperidadedasPani icaçõesReunidas(pretendiaabrirmaisumaemItapagipe),elasorriasatisfeitadomaridoqueDeuslhedera.Eledizia:

—Vocêéquemmedácoragem.Senãofossevocênãoseioqueseriademim.

Fora por intermédio deDonaHelena que Clóvis arranjou o empregonapadaria.A lavadeirapediraàpatroa,nooutrodiaClóvistiverao lugar.A lavadeira ia.àcasadapatroa(faziadoisanosquenãoavia,desdequeClóvis se empregara) pensando nisso tudo. Será que Dona Helena serecordadaxará?

DonaHelenaestánasala fazendoumbordado.Omaridotomabanholá em cima, pois chegou da rua suado, depois de passar o dia todo emconferências,providenciandohomensparatrabalharnaspanificações.

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Malsabequealavadeiraestáaíequerfalar,DonaHelenamandaqueela entre. Larga o bordado que fazia à luz do candeeiro (o marido járeclama:vocêestragasuavista,Helena...)esorriparaamulherquetemosolhosnochão.

—Então,xará,nuncamaisveionosver?—Ocupada,DonaHelena.Osmeninosnãodãotempoparanada.—Sabequenuncamaistiveumalavadeiracomovocê,xará?Helena sorrimeio encabulada. Dona Helena se recorda que ela veio

falar:—Oqueéquevocêquer?Helena não sabe como começar. Agita as mãos, se atrapalha. Dona

Helenapergunta:—Oqueéquevocêtem?Aconteceualgumacoisacomosmeninos?ou

comseumarido?—Acontecernãoaconteceu,DonaHelena...Éagreve.—Ah!Agreve...Ruiztambémandaaborrecidocomestagreve.—Masésóelequerer...DonaHelena não sabe de nada. A lavadeira conta a vida do beco, os

homens ganhando uma miséria na padaria, sustentando as famílias comestesaláriodefome,os ilhosdoentes.Comagreve,grevejustaparapedirunstostõesamais,asfamíliasestavamsemteroquecomer.Osseus ilhossó tinham comido naquele dia porque uma vizinha se compadecera.Mastinhameninospassandofome.

DonaHelenaseagitanumassombro.Suavozédolorosa:—Meninospassandofome?Nãoépossível,meuDeus...Passando fome,sim.Eumapretinhamorreranumtiroteioesta tarde.

Aindaforafeliz.Asoutrasemcasapediamcomidaechoravam:— Se isto demorar a gente tem que pedir esmolas. E os homens

queremtãopouco!DonaHelenaselevantaemocionada.ComcertezaRuiznãosabedisso.

Se ele soubesse desta situação já teria aumentado os salários dos seusoperários.—Eleétãobom...

Dona Helena leva a lavadeira à cozinha. Faz um farnel para ela. Doque há de melhor. E ainda lhe dá vinte mil-réis em dinheiro. Quando amulhersai,curvacomoumaescravaechorandocomoumaescrava,DonaHelenalhediz:

—Vádescansada, xará.Agoramesmovou falar comRuiz. Ele ignoraestas coisas. Mas eu vou contar e ele aumenta logo os homens. Você vaiver.Eleétãobom.

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AntônioRuiz,oproprietáriodasPani icaçõesReunidas,vesteacamisade seda quando a mulher entra no quarto. Olha espantado para o rostodela:

—Oqueéquevocêtem,minhafilha?Seaproximaebeijanovamenteaesposa.—Estátriste?Porquenãovaiaocinemahoje?Ri:—Agrevenãodeixaamorzinhotercinema...—Ésobreagrevemesmoqueeuquerofalarcomvocê,Ruiz.—Estámetidaempolítica,filhinha?No outro quarto dorme a ilha do casal entre bonecas numberço de

fadas.DonaHelenaserecordadascriançasquepassamfomenosbecos:—Vocêprecisaconcordarcomoshomensedaroaumento...Omaridosevoltanumsalto.— Hein? — a sua voz tem uma brutalidade que Dona Helena não

conhece.Maselesearrependeedizcomvozdoce:—Vocênãosabenadadessascoisas,meuamor.— Quem foi que lhe disse que eu não sei? Sei mais do que você...

(DonaHelenatemdiantedosolhosoquadrodascriançasesfomeadas.)Seidecoisasquevocênãosabe.

E narra ao marido, com emoção, o que lhe contou a sua lavadeiraHelena.Porfimsorrivitoriosa:

— Eu não lhe disse que sabia coisas que você não sabia? Suamulherzinhaandainformada.

—Masquemfoiquelhedissequenãoseidisso?—Vocêsabe...sabe...e...Bateram muito em Dona Helena. Deram-lhe marteladas na cabeça,

deram-lhetantoqueelaperdeuavoz.Omaridoseaproxima:—Oqueéisso,Lena?Eusei,sim.— E não faz nada? Não aumenta estes homens? Concorda com esse

crime?—Quecrime,Lena?—oespantodeRuiznãoéfingido.—Que crime?—DonaHelena vai de espanto em espanto.— Então

vocêachaquenãoéumcrimedeixaresseshomens,essasmulheres,essascrianças,Ruiz,criançaspassaremfome.

—Mas, minha ilha, eu não digo nada. Desde o princípio do mundoqueéassim...Semprehouvepobresericos...

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— Mas, Ruiz, são criancinhas passando fome... Você já pensou emLeninhapassandofome?Éhorrível,meuDeus...

Ruizandadeumladoparaooutro,agitado:—Paraquevocêsemetenisso?Vocênãoentendedisso...—Evocêqueétãobom...Parecia...—Eusouigualaosoutros.Nempiornemmelhor.Há um silêncio no quarto. Ouvem a respiração forte que vem do

quartovizinho.Ruizexplica:—Vocêsabeoqueéqueelesquerem?—Queremtãopouco...— Mas é preciso não dar nada. Se a gente der hoje esse aumento,

amanhã, quererão outro, depois mais outro, e um dia quererão aspadarias.

— Sei é que tem crianças com fome. E eles ganham mesmo umamiséria.Vocênuncamefalouquesabiadestascoisas.Eeunãosabia.Seeusoubesse...

Ruizseirrita:— Se soubesse o que é que fazia? Você lá sabe de nada. Eu estou

defendendoo seuautomóvel, a sua casa, o colégiodeLeninha.Vocêachaqueeudevotrabalharparaessescanalhas?

—Maselesqueremtãopouco,Ruiz.Nãoépossívelquevocêgostedeverosofrimentoalheio.

—Eunãogostodenada.Masaquinãoéquestãodesentimentalismo.Écoisamaisséria.Eunãosoueu,nãotenhonadacommeussentimentos.Eusouopatrão, tenhoquedefendermeus interesses. Seagente cederopé, amanhã eles quererão a mão... Você quer icar sem automóvel, semcasa, sem criadas para Leninha? Eu estou defendendo isso tudo, estoudefendendooqueénosso,nossodinheiro...Defendendooseuconforto!

Andapeloquarto.Páradiantedaesposa:— Então você pensa, Lena, que eu sinto prazer em saber que tem

gentepassandofome?Nãosinto,não.Masnaguerracomonaguerra...A respiração da ilha vem do outro quarto. Crianças passando fome,

criançassemteroquecomer,chorandopelojantar.Eomaridoaliachandotudotãonatural.Omaridoqueelasabequeébom,incapazdefazermalauma formiga. Deve haver qualquer mistério nisso tudo, mistério que elanãoentende.Masascriançasestãopassandofome.QuerdizerqueseRuiznão houvesse prosperado, seria Leninha quem estaria passando fome.Rogaaomarido,entrelágrimas,queconcedaoaumento.

—É impossível,minha ilha, impossível. A única coisa que não posso

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lhefazer.Etentaexplicarnovamentequealiéumaguerra,queseelederopé

elestomarãoamão,ummêsdepoisquererãooutroaumento:—Heidesujeitá-lospelafome...Vemparajuntodaesposaeestendeamãoparaalisarosseuscabelos:—Nãochore,Lena...Passaosbraçosemtornodela.Criançasestãoesfomeadasnosbecos.—Nãoseaproximedemim...Vocêéummiserável...Nãoseaproxime.E ica soluçando, icadesgraçada, compiedadede si, compiedadedo

maridoecominvejadosgrevistas.Emurmuranoseuchoro:—Criançascomfome...Criançascomfome.

Clóvis icou foi ouvindo os discursos no sindicato. A greve tomou umcaráter novo depois dos tiroteios. Os homens estão agitados e queremreagir.Dátrabalhocontê-los.Sãolançadosmanifestosexigindoaliberdadeimediata para os grevistas presos. Correm notícias as maisdesencontradas. Certa hora um operário entra correndo na sala e avisaqueapolíciavematacarosindicato.Todossepreparamparareagir.Masforarebatefalso.Emtodocasooataqueéesperadoaqualquermomento.Àsnovehorasdanoiteocasodosestivadoreséresolvidocomavitóriadosgrevistas.Porém,emsessãorealizadanoseusindicato,elesdeclaramquecontinuarãoaparedeatéquesejamsolucionadasasquestõesdospadeirosedosoperáriosdaCircular.Evãotodosparaosindicatodosúltimoslevara sua resolução. Em meio aos discursos estoura uma notícia. A políciaprendera vários operários e queria obrigá-los a trabalhar debaixo depancadas. O sindicato está agitado como um mar. Saem todos. Vãocomissões conferenciar com os choferes das marinetes e dos carros depraça.Outrosvão seentender comosoperáriosde fábricasdiversas.Umgrupo grande marcha para os escritórios da Companhia Circular parafazer uma manifestação de desagrado. Os ânimos estão exaltados aomáximo.Sãodezhorasdanoite.

Emfrenteaosescritóriosdacompanhiaestáparadoumautomóvel.ÉoHudson do diretor, um americano que ganha doze contos pormês. E elevemde charuto na boca, descendo as escadas.O chofer prepara o carro.AntônioBalduíno,quevemnogrupodegrevistas,grita:

—Vamosprenderele,pessoal.Assimagentetambémtemumpreso.O diretor é cercado. Os guardas que garantiam o prédio correm.

AntônioBalduínooagarraporumbraçoerasgaaroupabranca.Gritamda

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multidão:—Lincha!Lincha!Antônio Balduíno levanta o braço para descarregar o soco.Mas uma

vozsefazouvir.ÉSeverinoquemfala:—Nada de bater no homem.Nós somos operários e não assassinos.

Vamoslevá-loparaosindicato.AntônioBalduínobaixouobraçocomraiva.Maselecompreendeque

aquiloénecessário,queagrevenãoéfeitaporum,masportodos.EentregritosoamericanoélevadoparaosindicatodosoperáriosdaCircular.

A notícia da prisão do americano corre rápida pela cidade. A políciaquer que ele seja solto. O consulado americano se move. Os grevistasexigemquesejampostosemliberdadetodosospresospolíticos.Equenãoobriguemosoperáriosa trabalhar.Àsonzehorasosqueestavampresosaparecemnosindicato.Dizemqueocônsulamericanopediraqueapolíciaossoltassecommedoqueosoperáriosmatassemodiretordacompanhia.Estevaiempazdepoisdeouviralgunsdichotes.Nosindicatoreinaomaiorentusiasmo.AntônioBalduínodizaonegroHenrique:

— Esse foi assim...Mas se aquele Dr. Gustavo cair emminhasmãos,ah!...

Eesfregaasmãos,satisfeitodavida.Agreveéumacoisaboa.Meia hora depois é lido entre palmas ummanifesto: Os choferes de

marineteseautosdepraça,osoperáriosdeduasfábricasdetecidos,osdeuma fábrica de cigarros se declararão em greve no dia seguinte se aquestão dos padeiros e dos operários da Circular não for resolvida estanoite.PedroCorumbácomeçaumdiscursoassim:

—Osoperáriosunidospodemdominaromundo...AntônioBalduínoabraçaumsujeitoquenuncaviu.

No palácio do governo, àmeia-noite, os representantes da Circular edosdonosdepadariascomunicamàcomissãodegrevistasqueresolveramconcederoqueelespedem.Asnovastabelasvigorarãododiaseguinteemdiante.Agreveestáterminadacomavitóriaintegraldosgrevistas.

AntônioBalduínovaiparaacasadeJubiabá.Agoraolhaopai-de-santode igualpara igual.E lhedizquedescobriuoqueosABCensinavam,queachouocaminhocerto.Osricostinhamsecadooolhodapiedade.Maselespodem, na hora que quiserem, secar o olho da ruindade. E Jubiabá, ofeiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxolufã, Oxalá velho, omaiordossantos.

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Hans,omarinheiroAntônioBalduínoapertanobolsodacalçaoscentoevintemil-réisque

ganhou esta tarde jogando no jacaré. A noite se estende pouco a poucosobre a cidade. Há alguns dias as luzes não se acendiam. A greveparalisaratudo.Tudo,não.Porque–pensaAntônioBalduíno–asuavidaéqueestavaparalisada.Comagreveeleenxergavaoutraestradaevoltaraalutar. Passou-se mais um mês. No entanto, ainda hoje, ele vai cantandobaixinho um samba intitulado A vitória da greve que apareceu no diaseguinte ao triunfo dos operários. Antônio Balduíno vai cantando e serecordandodosacidentesdaquelesdoisdias:

“UmsindicatodeoperáriosselevantouemgreveparaaumentarosseussaláriosaderiutodasasclassesparareforçarEhouveumafortecorrenteContraaCircular”

A letra é de Permínio Lírio. Canta-se com amúsica deÉ de amargar .Foi vendido copiosamente na cidade, e no dia seguinte ao do término dagreve, era só o que se cantava nas ruas onde os bondes novamentecirculavam. A greve fora novamente para o negro Antônio Balduíno umaverdadeira revelação. A princípio ele a amara como luta, como barulho ebriga, coisas de que gostava desde criança. Porém, aos poucos, a grevecomeçou a tomar para o ex-boxeur um aspecto novo. Era qualquer coisamais séria que barulho, que briga. Era uma luta dirigida para um im,sabendooquequeria,uma lutabonita.Alinagreve todos seamavam, sedefendiam e lutavam contra a escravidão. A grevemerecia umABC. NãobastaosambaqueAntônioBalduínocantaenquantopensa:

“NãoteveiuzetambémnãotevepãoFicoumudootelefonesemtercomunicaçãoDuranteagrevenãohouvejornaltambémnãotevebonde

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paranenhumramal”.

Verdadetudoaquiloqueosambadizia.Aqueleshomens,queAntônioBalduíno sempre desprezara como escravos incapazes de reagir,paralisaramtodaavidadacidade.AntônioBalduínopensavaqueeleeosseusmalandros,desordeirosqueviviamdenavalhaempunho,équeeramlivres,fortesedonosdacidadereligiosadaBahia.Eestasuacerteza izeraqueele icassetristeequasesuicidaquandotevequetrabalharnasdocas.Mas agora ele sabe que não é assim.Os trabalhadores são escravosmasestãolutandoparaselibertar.Bemqueosambadiz:

“AsfabricantespararamuminstanteatéqueosoperáriossaíssemtriunfantesagorareinagrandealegriaVivaosoperáriosdanossaBahia”.

Ele julgara que a luta, luta aprendida nos ABC lidos nas noites domorro, nas conversas em frente à casade sua tia Luísa, nos conceitosdeJubiabá, na música dos batuques, era ser malandro, viver livre, não teremprego.Alutanãoéesta.NemJubiabásabiaquealutaverdadeiraeraagreve, era a revolta dos que estavam escravos. Agora o negro AntônioBalduíno sabe. É por isso que vai tão sorridente, por que na greverecuperoua suagargalhadadeanimal livre.Cantaosdoisúltimosversesdosambaemvoztãoaltaqueassustaapálidaprostitutaquepareceumavirgem e que na janela da velha casa da Ladeira da Montanha rega umvasodeflores.

Anoitedesceuealuasobedomarjuntodasestrelas.OGordoandaránaRuaChile,debraçosestendidos,aperguntarondeestáDeus.ZumbidosPalmareséquebrilhanocéu.Paraoshomensbrancos,éVênus,oplaneta.Paraosnegros,paraAntônioBalduíno,éZumbi,onegroquemorreuparanãoserescravo.ZumbisabiaaquelascoisasquesóagoraAntônioBalduínoaprendera. Os saveiros dormem. Apenas o Viajante sem Porto sai delanterna acesa, carregado de abacaxis. Maria Clara vai em pé cantando.Dela vem um cheiro poderoso de mar. Ela nasceu no mar, o mar é seuinimigoeoseuamante.AntônioBalduínotambémamaomar.Sempreviunomarocaminhodecasa.EquandoLindinalvamorreu,elequepensavaque seu ABC já estava perdido, que nada mais faria, quis entrar pela

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estradadomarparaserfelizcomoummorto.Porémoshomensdocais,oshomensdomar, lheensinaramagreve.Omar lhemostrouo caminhodecasa.Eeleolhaparaomarverde,amareladopelalua.DemuitolongevemavozdeMariaClara.

“Aestradadomarélarga,Maria...”

Umvelhonocaisdeserto tocarealejo.Amúsicavememsurdinaeseespalha pelos saveiros, pelas canoas, pelos transatlânticos, pelo grandemarmisteriosodeAntônioBalduíno.Senãofosseagreveomarengoliriaoseucorponumanoiteemquealuanãobrilhasse.Senãofosseagreveeleteria desistido de ser cantado num ABC, de ver Zumbi dos PalmaresbrilhandocomoVênus.Umvultopassaaolonge.SeráRobert,oequilibrista,quedesapareceumisteriosamentedocirco?Maspouco importa.Amúsicado realejo é plangente. A voz de Maria Clara se sumiu no mar. MestreManuel irá ao leme. Ele sabe todos os segredos do mar. E amará MariaClara à luz da lua. As ondas domarmolharão os corpos e assim o amoraindaserámelhor.Aareiaalvadocaisprateadacomalua.AareiaalvadocaisondeonegroAntônioBalduínoamou tantasmulatasqueeram todasLindinalva,a sardenta.Senão fosseagreveoseucorpodeafogadoseriadepositadonaareiaeossirischocalhariamcomochocalharamnocorpodeViriato,oAnão.Brilhaaluzdeumsaveiro.Oventolevaráatéeleamelodiadorealejoqueovelhoitalianotoca?Umdia–pensaAntônioBalduíno–heideviajar,heidesairparaoutrasterras.

Umdiaeletomaráumnavio,umnaviocomoaqueleholandêsqueestátodo iluminado, e partirá pela estrada larga do mar. A greve o salvou.Agorasabelutar.AgrevefoioseuABC.Onaviovailargar.Osmarinheirossouberam da greve, contarão em outras terras que aqueles negroslutaram.Osque icamdãoadeuses.Osquevão limpam lágrimas.Porquechorar quando se parte? Partir é uma aventura boa, mesmo quando separte para o fundo do mar como partiu Viriato, o Anão. Mas é melhorpartir para a greve, para a luta. Um dia Antônio Balduíno partirá numnavio e fará greve em todos os portos. Nesse dia dará adeus também.Adeus, minha gente, que eu .já vou. Zumbi dos Palmares brilha no céu.Sabe que o negro Antônio Balduíno não entrará mais pelo mar para amorte. A greve o salvou. Um dia ele dará adeus e agitará um lenço dotombadilho de um navio. Amúsica do realejo chora uma despedida.Maselenãodaráadeuscomoesteshomensemulheresdaprimeiraclasse,quedãoadeusparaosamigos,parapaiseirmãos,paraesposaschorosas,paranoivas tristes. Ele dará adeus como aquele marinheiro loiro que está no

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fundo do navio e agita o boné para a cidade toda, para as prostitutas doTabuão, para os operários que izeram a greve, para os malandros queestão na Lanterna dos Afogados, para as estrelas onde está Zumbi dosPalmares,paraocéuealuaamarela,paraovelhoitalianodorealejo,paraAntônio Balduíno também. Ele dará adeus comomarinheiro. Adeus paratodos,queelefezagreveeaprendeuaamaratodososmulatos,todososnegros,todososbrancos,quenaterra,nobojodosnaviossobreomar,sãoescravos que estão rebentando as cadeias. E o negro Antônio BalduínoestendeamãocalosaegrandeerespondeaoadeusdeHans,omarinheiro.

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“ABCdeAntônioBalduíno”

“EsteéoABCdeAntônioBalduínoNegrovalenteebrigãoDesordeirosempurezamasbomdecoração.Conquistadordenaturezafurtoumulatabonitabrigoucommuitopatrão......................................................morreudemortematadamasferidoatraição.”

(doABCdeAntônioBalduíno)OABCdeAntônioBalduíno,trazendonacapavermelhaumretratodo

tempoemqueonegroerajogadordeboxe,évendidonocais,nossaveiros,nasfeiras,noMercadoModelo,nosbotequins,pelopreçodeduzentosréis,acamponesesmoços,marinheirosalvos,a jovenscarregadoresdocaisdoporto, amulheresqueamamos camponeseseosmarinheiroseanegrostatuados,delargosorriso,quetrazemouumaâncora,ouumcoraçãoeumnomegravadonopeito.

PensãoLaurentina(ConceiçãodaFeira),1934.

RiodeJaneiro,1935.