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JULHO/DEZEMBRO 2009

JULHO/DEZEMBRO 2009 - UFS

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JULHO/DEZEMBRO 2009

EditoraAnamaria Gonçalves Bueno de Freitas

Conselho EditorialAntonio Carlos Ferreira Pinheiro – UFPb

Bernard Charlot – Paris/UFSBruno Bontempi Júnior – PUC/SP

Dilma Maria Andrade de Oliveira – UFSJorge Carvalho do Nascimento – UFS

Lúcia Franca Rocha – UFBaLuís Carlos Sales – UFPI

Marcos Cezar de Freitas – PUC/SPMaria Helena Santana Cruz – UFS

Maria Rita de Almeida Toledo – PUC/SPMiguel André Berger – UFSRenato Janine Ribeiro – USP

RevisãoSônia Pinto de Albuquerque Melo

Secretária ExecutivaVera Maria dos Santos

Editoração EletrônicaAdilma Menezes

revista tempos e espaços em educaçãorevista tempos e espaços em educaçãorevista tempos e espaços em educaçãorevista tempos e espaços em educaçãorevista tempos e espaços em educaçãoRevista Semestral do Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe

Volume 3 julho/dezembro 2009ISSN: 1983-6597

A Revista tempos e espaços em educaçãoRevista tempos e espaços em educaçãoRevista tempos e espaços em educaçãoRevista tempos e espaços em educaçãoRevista tempos e espaços em educação é uma publicação destinada ao público acadêmico da áreade Educação.Os conteúdos dos artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores.Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, desde que devidamente citada a fonte.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Prof. Dr. Josué Modesto dos Passos SubrinhoREITOR

Prof. Dr. Angelo Roberto AntoniolliVICE-REITOR

Prof. Dr. Cláudio Andrade MacedoPRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

Profª Drª Eva Maria Siqueira AlvesCOORDENADORA DO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Apoio técnicoCentro de Educação Superior a DistânciaProf. Dr. Antonio Ponciano Bezerra

Correspondências e assinaturas:Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de SergipeEditor: Profª Drª Anamaria Gonçalves Bueno de FreitasCidade Universitária José Aloísio de CamposAvenida Marechal Cândido RondonCEP: 49000-000 – São Cristóvão – SETel: (79) 2105 6856E-mail: [email protected]: http://www.ufs.br

Revista Tempos e Espaços em Educação/ Universidade Federalde Sergipe, Núcleo de Pós-Graduação em Educação. —Vol. 1, n.1 (2008). -- São Cristóvão: Universidade Federalde Sergipe/Núcleo de Pós-Graduação em Educação, 2009.

Semestral

ISSN: 1983-6597

1. Universidade Federal de Sergipe. Núcleo de Pós-Graduação em Educação.

CDU 37(05)

Esta Revista é integrante da Plataforma dos Periódicos Eletrôni-cos/ UFS (www.posgrap.ufs.br/periodicos) e conta com o apoio ins-titucional da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uni-versidade Federal de Sergipe.

Política EditorialA Revista Tempos e Espaços em Educação é uma Revista semes-tral do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universida-de Federal de Sergipe, com contribuições de autores do Brasil e doexterior. Publica trabalhos em educação e ciências humanas sob aforma de artigo, relato de pesquisa e resenha de livro.

Sumário

- Apresentação ................................................................................................................................................. 7Edmilson Menezes

- Algumas considerações sobre educação em Jean-Paul Sartre ...................................................................... 9Walter Matias Lima

- Notas sobre educação e espaço público em Kant .........................................................................................23Sônia Barreto

- O ensino de filosofia ......................................................................................................................................35Vladimir de Oliva Mota

- As dificuldades da tarefa educativa na civilização, segundo Rousseau .......................................................47Lidiane Brito Freitas

- O Dicionário Filosófico de Voltaire: arma em favor da educação ................................................................57Christine Arndt de Santana

- Reforma social e educação em Platão ...........................................................................................................69Hortencia Maria Dantas Santos

- A disciplina em Locke e a formação do homem burguês .............................................................................79Vera Maria dos SantosMagaly Nunes de Góis

- Normas para publicação ..............................................................................................................................87

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DOSSIÊ FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO (II)

Organizador: Edmilson Menezes

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Editorial

O segundo Dossiê Filosofia da Educação, que agora apresentamos aos leitores da Revista Tempos e Espa-ços em Educação, permanece atendendo ao seguinte princípio: a Filosofia da Educação, concebida como umaárea da pesquisa filosófica, não pode deixar de atrelar-se à metodologia específica, sob pena de excluir-se docampo propriamente filosófico. Em outras palavras, “a Filosofia da Educação deve estar calcada num interessede estudo sólido e investigação técnica dos Clássicos da História da Filosofia, quando os mesmos tratam doproblema da educação”. Para tal fim, seu instrumental de pesquisa continua sendo a leitura: basta seguir omovimento do texto, deixá-lo devastar nossas certezas e, assim, tomar consciência de que já ingressou, semalarde e sem que se saiba, nesse outro modo de pensar. Tal exercício, como nos alerta Lebrun, não tem o menorinteresse, se não for admitido, ao menos por hipótese, que a linguagem filosófica, quando emancipada de todafunção descritiva e de toda referência objetiva, preserve um “sentido” próprio que ainda resta determinar damelhor maneira por nossos meios de investigação, porém, sem jamais acreditar que o apelo a elementosextratextuais pudesse ali lançar alguma luz.

Os textos aqui reunidos trazem a marca dessa inserção nos clássicos que compõem a História da Filosofiae sua análise do fenômeno educativo. Ao leitor interessado pelo âmbito teórico, dirigem-se os trabalhos aquireunidos. Embora possuam interesses diferentes e abordagens próprias, todos trazem a marca do conhecimen-to especulativo: construção especulativa do espírito, que liga conseqüências a princípios. Talvez, pela filosofiada educação, consigamos reavaliar princípios vigentes e, dessa forma, propormos outras conseqüências para onosso combalido sistema educacional. Faz-se urgente um retorno à teoria e aos clássicos, principalmente, emtempos de empobrecimento da inteligência, de valorização do iletrado como herói virtuoso, enfim, de bizarrasexpansões do “saber” e de “universidades metalúrgicas”. Dos textos clássicos analisados, é possível extrairuma proveitosa reflexão, pois, queiram ou não, os edificadores de “novos” paradigmas, amantes da misologia equejandos, estamos falando da possibilidade de instigar o espírito, de ousar pensar!

Prof. Dr. Edmilson Menezes(Coordenador do Grupo de Trabalho Filosofia da

Educação/NPGED, organizador do Dossiê Filosofia da Educação)

9Revista Tempos e Espaços em Educação, UFS, v. 3, p. 9-22, jul./dez. 2009

Algumas considerações sobre educação em Jean-Paul Sartre

Walter Matias Lima

ResumoO artigo pretende identificar a relevância do tema: educação e razão dialética, em algumas obras de Jean-Paul Sartre. Essa abordagem será permeada pela problematização das noções de razão dialética, práxis eantropologia, como as entende Sartre. Nossa intenção é mostrar a relação entre razão dialética e dialética dapráxis e o contributo dessa relação para a prática educativa, a partir da concepção sartriana de antropologia.Partindo do aporte sartriano, compreendemos a educação como totalização que se traduz em projeto pedagógi-co que visa educar para a liberdade pela liberdade, desde que esta seja uma finalidade que se realize nascondições sócio-históricas e existenciais da práxis individual e coletiva. Assim sendo, a educação contém, comotessitura, a revolta, isto é, o poder (através do educador, do educando e das instituições) de protagonizar, semquaisquer tipos de retraimentos e coerções, valores dos projetos pedagógicos e, entre estes, a efetivação daliberdade.Palavras-chave: Sartre; Práxis; Educação; Dialética.

Some commentaries on education in Jean-Paul Sartre

AbstractThe article aims to identify the relevance of the issue: education and dialectical reason, in some works of Jean-Paul Sartre. This approach will be permeated by questioning the notion of dialectical reason, practice andanthropology, as Sartre believes. Our intention is to show the relationship between dialectical reason anddialectics of praxis and the contribution of this relationship to educational practice, from the design sartrianaof anthropology. On the intake sartriano we understand education as aggregation leading to pedagogicalproject aimed at educating for freedom for freedom, since it is a purpose to carry out socio-historical conditionsand existential practice of individual and collective. Therefore, education contains as fabric, the revolt, that is,the power (through the teacher, the student and institutions) to play without any kind of withdrawal andconstraints, values and educational projects, among these, the realization of freedom.Keywords: Sartre; Praxis; Education; Dialectical.

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Revista Tempos e Espaços em Educação, UFS, v. 3, p. 9-22, jul./dez. 2009

Walter Matias Lima

1. Por que a revolta?

Quando nos interrogamos sobre a revolta no mun-do contemporâneo, na literatura e na filosofia con-temporâneas, a experiência de Jean-Paul Sartre éindispensável. Portanto, nosso intento é apresentaralgumas “linhas de fuga” do pensamento sartrianoque, ao nosso ver, contribuem para pensar a relaçãoentre educação, razão dialética e o tema capital daobra sartriana: a liberdade.

No nosso entender, a educação é a práxis que aju-da os homens a sair de sua inércia – da inércia daserialidade, levando os a totalizar eles próprios suasrespectivas práxis em vez de sofrerem “a totalizaçãoreificada”, “alienada” do prático inerte. Assim,desmistificar e reunir e não esquecer nossa presençaconcreta, nossa experiência psíquica, nem o momen-to concreto da história em que nos encontramos,mantendo um questionamento permanente, é o quepõe uma atividade pedagógica como prática-revoltaque se quer, também, desmistificadora e que se inse-re numa prática política que se recusa comoespetacularização da vida e da morte, ensejando umprocesso dialético de superação das condições ideoló-gicas e alienantes em que se encontram os sujeitosdo processo educativo.

O lingüista Alain Ray, em seu livro Révolution,histoire d’un mot, traça o percurso etimológico e se-mântico da palavra “revolte”: revolta 1.

A primeira perspectiva está direcionada para aquestão do movimento. O verbo latim volvere, estána origem de “revolte”, termo que, no início, não serelaciona à política. Tendo as seguintes derivações:“courbe” (curva), “entourage” (ambiente), “tour” (cir-cuito), “retour” (retorno).

No italiano, nos séculos XV e XVI, volutus, volutasugerem a idéia de um movimento circular e, porextensão, de um retorno temporal. Ver, por exemplo,“retournement” (reviravolta).

Na acepção moderna da palavra, aparece o seguin-te: “révolter” e “révolte”, oriundas de palavras italia-

nas; e, tendo preservado o sentido latino de “retornar”e “trocar”, implicam um desvio que será assimilado auma rejeição da autoridade. Assim sendo, no fran-cês do século XVI, “révolter” é puro italianismo e sig-nifica “virar”, “desvirar” (revoltar o rosto para o lado).

No século XVI, a palavra não comporta a noção deforça, mas indica estritamente a oposição: no senti-do de abjurar, desviar-se. Contudo, o sentido históri-co e político da palavra se fixam no século XVII e noinício do século XVIII: Voltaire, em O século de LuisXIV, emprega “revolte” como “guerra civil”, “pertur-bações” e “revolução”.

O verbo latim revolvere aponta sentidos intelec-tuais: “consultar” ou “reler”. “Révolution” passa emfrancês para o vocabulário científico, pois na IdadeMédia, “révolution” imprime o final de um tempo“révolu” (passado).

Portanto, a polivalência de sentidos, contidos notranscurso da palavra “révolte”, mostra que o termovai além do sentido político que tomou nos dias dehoje. A revolta, às vezes, desvia-se segundo a histó-ria. Nós é que temos que realizá-la.

Partiremos do seguinte pressuposto: uma práticaeducativa, que prime pela formação de uma práxisindividual autônoma e livre, só existe ao preço de umarevolta, por uma educação-revolta e por um indiví-duo historicamente situado e, sendo assim, por umaatividade educativa e pedagógica que busca a realiza-ção da liberdade como condição de humanização dohomem. Nenhum de nós se satisfaz sem enfrentarum obstáculo, uma proibição, uma autoridade, umalei que nos permita nos avaliar, autônomos e livres.A revolta que se revela, acompanhando a experiênciaíntima da aprendizagem é parte integrante do pro-cesso educativo. Precisamos de uma educação-revol-ta numa sociedade em que se vive, desenvolve-se enão estagna. Se essa cultura não existisse em nossavida, seria o mesmo que deixar essa vida se transfor-mar numa vida de morte, isto é, de violência física esimbólica, de barbárie. Há urgência em desenvolveressa perspectiva educativa a partir de nossa herança

1 Ver também o livro de Julia Kristeva: Sens et non-sens de la revolte. Paris: Arthéme Fayard, 1996, do qual tiramos asprincipais indicações sobre o tema da revolta em Sartre.

11Algumas considerações sobre educação em Jean-Paul Sartre

Revista Tempos e Espaços em Educação, UFS, v. 3, p. 9-22, jul./dez. 2009

cultural, ética e estética e encontrar para ela novasvariações. Hoje, uma experiência da revolta, comoinstância educativa, pode nos livrar da robotizaçãoda humanidade que nos ameaça.

Nosso mundo moderno atingiu um ponto de seudesenvolvimento, em que certo tipo de educação, decultura e de arte, se não toda a educação e toda acultura, está ameaçada; muitas vezes, impossibilita-da. Certamente, não a cultura-show, nem o que estáse configurando nos moldes neoliberais como educa-ção-show, ou a educação-informação consensuaisfavorecidas pelas mídias, mas justamente a educa-ção-revolta ou a cultura-revolta. E quando essas seproduzem, acontece que mostram formas tão insóli-tas e brutais que seu sentido parece perdido para aque-les que estão inseridos no processo educativo. Comisto, cabe a nós sermos os doadores de sentido, osintérpretes. Assim sendo, compreendemos a revoltacomo transgressão da proibição, como repetição,perlaboração e elaboração da experiência educativa ecomo deslocamento, combinações e jogos dos diversossentidos que construímos através da atividadeeducativa e pedagógica.

Em relação a Jean-Paul Sartre, uma das marcasdo tema da revolta está na sua constante perspectivainterpretadora, e entendemos a interpretação comoum ato de revolta, de reconstruir significativamenteuma experiência. Assim, podemos dizer que uma dascaracterísticas da revolta, para Sartre, é revelar asingularidade da experiência através da interpreta-ção filosófica e literária, mostrando que a liberdadesó existe ao preço de uma revolta. Que a práxis indi-vidual (na nossa perspectiva, quando atravessada pelaatividade educativa) enseja a dinâmica dainteligibilidade da história, assim como a busca daliberdade.

Cremos que uma maneira de compreender o temada revolta, em Sartre, é através de sua noção de li-berdade situada, o que passamos a mostrar a seguir,apresentando uma perspectiva do transcurso dessatemática na obra do filósofo. Certamente, a experiên-cia pessoal de Sartre se revela como uma situação,como uma luta por situar se dentro da situação como fim de superá la. Esta experiência, contudo, não étão pessoal, tão alheia ao comum dos mortais. Sartre

viveu em sua experiência a intersubjetividade e oprojeto fundamental que a define; auto-afirmaçãofrente ao ser acabado, vontade de chegar a ser; com-promisso com os empreendimentos concretos emnome do absoluto do projeto fundamental de deter-minar a existência a partir do futuro, em função deuma comum exigência de sentido e de considerar opassado apenas como o conjunto de condições sobreas quais devemos tomar apoio para intentar-nos anós mesmos.

Em Sartre, esta referência ao absoluto de nossoprojeto fundamental se resume como a aposta dePascal: existe ou não Deus? Pascal apostou em suaexistência, pois, no caso de existir, ganhava tudo e,no caso de não existir, nada perderia. Sartre, por suavez, investiu a favor de seu absoluto, do absoluto dohomem, à possibilidade da autodeterminação, a par-tir do futuro: ou a vida não é nada ou é tudo! Assim,segundo Sartre, consiste concretamente em decidir-mos perder a vida antes de submetê-la ao absurdo.Esta aposta, contudo, apenas pode justificar-se medi-ante uma referência absoluta como ponto de apoiopara ensejar-lhe sentido em cada uma das situaçõescotidianas. O incondicionamento de nossas tomadasde posição radica, segundo Sartre, em nos experimen-tarmos responsáveis por nossa superação em funçãode um futuro homem que devemos inventar: o queimporta é a libertação do homem e, em função dessalibertação, sempre haverá algo que fazer.

O pensamento sartriano põe em jogo, desta ma-neira, uma dialética entre o otimismo da liberdade eo pessimismo de nossa contingência, entre a humil-dade que deve acompanhar o reconhecimento de nos-so ser situado e o orgulho de nos reconhecermos agen-tes da história, entre a desesperança, à qual nos con-vida nossa situação, e a esperança que brota da situ-ação, entre o impossível de nossas vãs ilusões e o pos-sível de nossas pequenas ações. Dessa maneira, seupensamento se revela como uma ética da práxis his-tórica que em seu dinamismo se orienta, não a uminerte universal já realizado, senão à universaliza-ção do ser humano situado.

A intencionalidade ética de Sartre se comprova nofato de que a primeira obra que ele anunciou, inicial-mente, mas que nunca publicou, foi um tratado de

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moral. Apenas em 1975, deram-se a conhecer algunsfragmentos desta obra. É possível que sua não publi-cação se deva à necessidade que tinha Sartre de es-clarecer previamente a correlação liberdade-situaçãoimplicada em sua visão do homem. O problema dapráxis só podia ser enfrentado depois desse esclareci-mento.

Liberdade, situação e práxis constituem, de acor-do com o que foi dito antes, as categorias que expres-sam o problema sartriano. Elas estão em todas assuas obras, mesmo que não seja com o mesmo peso.Assim, até L’Être et le Néant (1943) o interesse deSartre recai principalmente sobre o tema do homemcomo liberdade. A partir de então, até a Critique dela raison dialectique (1960), seu interesse se orientaaté o tema da situação. Nos últimos anos, como sín-tese de sua trajetória, o tema da práxis ocupa o pri-meiro lugar.

A reflexão sobre o homem como liberdade se de-senvolve em dois momentos. O primeiro é de ordempsicológica e esteve orientado a libertar o homem detodo EU (entendendo este como unidade indivisível) ede toda subjetividade entendida como sujeitotranscendental: a partir de uma análise da consciên-cia, Sartre radicaliza sua concepção de ser. O temada situação está presente nestes primeiros momen-tos, mas em termos abstratos, a saber, como estru-tura de todo homem enquanto homem. O ser-corpo, oser-para-outro, o espaço e o tempo, entre outros, comocaracterísticas de toda liberdade em situação, sãoaspectos do ser do homem que Sartre não descuida.O tema central, contudo, é a liberdade como essênciado homem: este não é o que é; é o que não é.

A reflexão direta sobre a situação permite a Sartrerealizar análises concretas do homem enquanto com-prometido dentro de uma determinada situação. Omundo aparece como suporte da liberdade, não omundo como soma de coisas, mas o mundo como con-fluência de “situações concretas”, isto é, o mundotransformado historicamente.

Finalmente, a práxis é abordada, desde uma crí-tica da razão dialética, crítica elaborada a partir deuma determinada concepção do marxismo que pre-tende recuperar a práxis individual como o ponto departida real do pensamento de Marx. Contra o “mar-

xismo dogmático”, que tem absorvido o homem naidéia, Sartre pensa em um “marxismo existencialista”que busca o homem onde quer que se encontre, emseu trabalho, em sua casa, na rua. Isto lhe permiteentregar-se a uma análise das condições reais de todoempreendimento humano, em termo de uma ética dahistória, para oferecer ao homem concreto, como agen-te da história, elementos para controlar a práxis emfunção de uma superação afetiva da contingênciahumana revelada em sua ontologia.

Como abordar o homem como liberdade situada?Sartre encontra elementos em Husserl e emHeidegger.

O que Sartre busca na fenomenologia? Sartre serefere a duas contribuições com relação direta com osentido último de seu pensamento. Por uma parte, aintencionalidade, graças a qual lhe foi dado esvaziara consciência de suas escorias, de seus estados, dedescobrir o nada (a consciência) acossado incessante-mente pelo ser, escapando sempre. Por outra parte, aferramenta indispensável: descobrimos que nos en-contramos situados.

Sartre reconhece sua dívida frente a Husserl dasIdéias com sua ontologia da consciência pura; e paraHeidegger, de Ser e Tempo, com sua analítica exis-tencial da realidade humana. Em Esboço de umateoria das emoções, nosso filósofo já havia escrito:

Existir para a realidade humana é, segun-do Heidegger, eleger seu próprio ser emum modo existencial de compreensão:existir para a consciência é, segundoHusserl, aparecer-se. Porque mostrar-seaqui é absoluto, mostrar-se que é necessá-rio descobrir e interrogar. Desde este pontode vista, em cada atitude humana – porexemplo, na emoção, já que é nosso tema -, Heidegger pensa que encontramos o tododa realidade humana, posto que a emo-ção é a realidade humana que elege e sedirige emocionada até o mundo.Husserl por seu lado pensa que uma des-crição fenomenológica da emoção trará aluz às estruturas essenciais da consciên-cia, posto que uma emoção é uma consci-

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ência. E, reciprocamente, um problema secoloca, problema que o psicólogo não podesuspeitar: cabe conceber-se uma consciên-cia que não restrinja a emoção entre suaspossibilidades, ou melhor, pode nela ver-se uma estrutura indispensável da cons-ciência? Assim o fenomenólogo interro-gará sobre a consciência e sobre o homeme perguntará não apenas o que este sejasenão se pode apreender um ser entre cujoscaracteres haja um que seja precisamentea capacidade de emocionar-se. E, inversa-mente, interrogará a consciência, a reali-dade humana, com respeito a emoção:como deve ser a consciência para que aemoção seja possível e inclusive para queseja necessária? (SARTRE, 1995, p. 77-78).

Este texto sintetiza o que Sartre considerou deessencial em um e outro filósofo e a diferença entre osdois. Seu pensamento já tinha se formado definitiva-mente como para receber a influência posterior deHusserl do mundo da vida ou do Heidegger deHolzwege (caminho do bosque).

Interessado em uma ontologia da consciência emsituação, Sartre radicalizou as oposições entre Husserle Heidegger com o propósito de alcançar uma com-plementação na oposição. Desde este ponto de vista,também seguiu um caminho diferente ao de Merleau-Ponty. Este se interessou a harmonizar os dois filóso-fos em prol de uma síntese. Poder-se-ia dizer queSartre toma de Husserl o método de investigação; ede Heidegger, a realidade humana como objeto destainvestigação. Mas o faz de forma crítica.

Assim, Sartre considera que Husserl se limitou adescobrir o cogito em seu aspecto funcional, descar-tando o problema existencial para não cair no errosubstancialista de Descartes. Ao não transcender apura descrição da aparência enquanto tal, ficou pre-so ao cogito. Portanto, nas Idéias só podemos encon-trar uma ontologia artificial da consciência pura des-ligada do mundo; por conseguinte, de uma consciên-cia que não existe. Heidegger, por sua vez, ao quererevitar o fenomenalismo de Husserl, realizou, de for-ma direta, a análise da existência sem passar pelo

cogito, privando assim, a realidade humana de suadimensão de consciência ou concedendo-lhe uma sim-ples “compreensão”.

Fazendo dessa forma, Heidegger formula umaontologia naturalista da existência pré-reflexiva. Deacordo com esta crítica, Sartre assume de Husserl ométodo para descobrir a realidade humana enquan-to consciência, centro de intenções e poder de inicia-tiva, contudo na medida em que o é dentro de suamesma situação, pois do contrário, se alcançaria umaconsciência que, ao apreender-se a si mesma emoposição ao mundo, seria o que não é (coisa). DeHeidegger, nosso filósofo assume a visão da realida-de humana situada no mundo, mas não como cons-ciência que se quer apreender no mundo por fora detoda reflexão; ao contrário, à consciência só seriadado descobrir a impossibilidade de ser o que ela é(consciência).

Sendo assim, Sartre se esforçou por realizar umacomplementação na oposição entre Husserl eHeidegger; uma ontologia que pensará a presença daconsciência a si mesma como inseparável de umaautêntica presença do mundo; uma ontologia respei-tará a correlação da consciência e da existência, daintencionalidade e de suas motivações, da liberdadeque se afirma, quando a intencionalidade lhe conferesentido às motivações, mas que se nega quando asmotivações se convertem em simples causas daintencionalidade.

Resumindo, o método sartriano para a análise dohomem em situação pretende ser um métodofenomenológico que, simultaneamente, permite opor,à tendência husserliana, a consideração da existên-cia das essências, e à tendência heideggeriana, a con-sideração da essência da existência.

A aplicação desse método conduzirá Sartre a umaambígua dualidade das essências: o ser em si da cons-ciência e o ser em si das coisas, dualidade de termosque simultaneamente deixam em descoberto sua in-suficiência: o “ser em si” em sua contingência se ésuficiente a si mesmo, mas não pode justificar suapresença, sua possibilidade de “aparecer a” a consci-ência; o “ser para si”, por sua vez, se é suficienteenquanto consciência para si teórica, mas não podejustificar sua própria existência.

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2. Consciência e liberdade

A reflexão de Sartre sobre o homem como liberda-de se desenvolve em dois registros, como já vimos: oprimeiro, registro psicológico, orientado a libertar ohomem de todo “eu” e de toda subjetividade de ten-dência substancialista. O segundo registro, ontológico,orientado a esclarecer o sentido do ser, tanto do serda consciência como do ser do mundo e a esclarecer arelação entre um e outro: “a primeira tarefa de umafilosofia deve ser... expulsar as coisas da consciênciae restabelecer a verdadeira relação desta com o mun-do, a saber, a de que a consciência é consciênciaposicional do mundo” (SARTRE, 1957, p. 18).

Os escritos sartrianos anteriores a L’Être et leNéant são dedicados à tarefa de expulsar todos osobjetos da consciência e afirmar a falta de umainterioridade no homem: não haveremos de nos des-cobrir em algum retiro, senão no caminho, na cida-de, em meio da multidão, entre as coisas, entre oshomens. Desta época, interessam-nos as seguintesobras: La Transcendance de l’ego: esquisse d’unedescription phénoménologique (1936), Esquisse d’unethéorie des émotions (1939) e L’Imaginaire (1940).

Sartre parte da idéia husserliana daintencionalidade: a consciência é, sempre, consciên-cia de algo, ou seja, ela não existe mais que no mun-do. Se isto é assim, é possível chegar à essência dohomem a partir da análise fenomenológica de consci-ências ou condutas concretas. Toda conduta humanaé conduta do homem no mundo. Por conseguinte, elapode entregar, por sua vez, o homem, ao mundo e àrelação que os une, à condição de que consideremosestas condutas como realidades objetivamenteapreensíveis e não como afetações subjetivas que sedescobririam apenas ante o olhar da reflexão. Sartreescolhe inicialmente duas condutas – emoção e imagi-nação – para esclarecer esta característica humana.

Nas Idéias, Husserl tinha ido mais além do sujei-to empírico até um sujeito transcendental, com o fimde explicar a unificação e a individuação da consciên-cia. Sartre, em La Transcendance de l’ego, sustentaa inutilidade deste recurso, pois, para ele, a unidadeda consciência, mediante a qual se capta um objeto,pode ser explicada a partir da mesma intencionalidade.

A consciência unifica a si mesma e, concretamente,por um jogo de intencionalidades “transversais” quesão retenções concretas e reais de consciências pas-sadas. Em outros termos, é a consciência que é prin-cípio de unidade para si, operando-se essa unificaçãono objetivo que a define, isto é, a intencionalidadeaplicada a um objeto transcendente ou a uma vivênciapassada que por natureza a consciência capta comoprópria.

Na consciência, não se encontra, por conseguinte,nenhum sujeito: nem o psicológico que, de acordo coma redução, é um objeto transcendente para a consci-ência; nem o transcendental, que apenas é uma fic-ção operada a partir do sujeito psíquico. A consciên-cia se define a partir de si mesma e não a partir deuma realidade ou uma substância: ela é existênciapura; em si mesma, não é nada. Daí que ela não ofe-reça um âmbito interior que possa ser circunscritomediante a inspeção e que dê lugar a algo que a defi-na como uma realidade distinta do mundo. A causadisso: o conhecimento não pode ser concebido comoum processo de assimilação da exterioridade por umainterioridade: o mundo não entra na consciência. Pelocontrário, a consciência se define por sua presença aomundo e por sua fuga de uma falsa interioridade co-migo mesma: a consciência não tem um “dentro”,não é senão o fora de si mesma, e essa fuga absoluta,essa negativa a ser substância, é o que lhe constituicomo consciência.

Que significa, então, existir para uma consciên-cia que em si mesma é nada? “Existir” para a cons-ciência não tem o sentido corrente do termo, ou seja,pertencer à ordem da realidade em oposição à ordemdas possibilidades puras. A consciência não é umaparte do mundo, é intenção até o mundo. O “existir”aponta aqui à espontaneidade, a partir da qual seconstitui o mundo como objeto de todas as intenções esignificações.

Enquanto espontaneidade, a consciência “determi-na a existência a cada instante, sem que possa conce-ber-se nada previamente a ela. Assim cada instantede nossa vida consciente nos revela uma criação exnihilo. Não um ordenamento novo, mas uma exis-tência nova” (SARTRE, 1978a, p. 74). Esta esponta-neidade equivale à liberdade pura, isto é, poder de

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auto determinação. A liberdade, por conseguinte, nãoé uma qualidade da consciência senão que é a exis-tência anterior a toda determinação.

Esta liberdade, contudo, não se exerce fora domundo, posto que o mundo é aquilo com respeito aoqual a consciência é criada. Sem ele não haveria cons-ciência. A liberdade é, portanto, uma liberdade es-sencialmente situada. Mas por sua liberdade, a cons-ciência foca, no mundo, possibilidades e sentidos queeste não possui por si mesmo: a escolha livre da cons-ciência sobre si mesma é, ao mesmo tempo, uma es-colha sobre o mundo: “o possível, portanto, não podevir ao mundo senão por um ser que é sua própriapossibilidade” (SARTRE, 1957, p. 144).

Para explicar essa consciência livre, livre ante todasubjetividade e interioridade, Sartre descrevefenomenologicamente a emoção e o imaginar, trans-cendendo-os como simples fatos psíquicos, para quese manifestem como duas maneiras de existir, isto é,como duas possibilidades de eleger-se e compreendera consciência e, portanto, como duas formas de ele-ger e compreender o mundo.

A emoção, por exemplo, não é um acidente; e sim,um modo de existência da consciência, uma de suasmaneiras de compreender seu ser no mundo. Apenasquando se estabelece esta significação, haverá lugarpara as análises empíricas do psicólogo. Mediante aemoção, a consciência transforma irreflexivelmenteum objeto ao não poder adaptar-se a ele: o mundoreal é substituído por um mundo fictício, mágico, noqual desaparecem essas dificuldades. Desta manei-ra, a emoção é um jogo, mas um jogo no qual nóscriamos. O desvanecimento, por exemplo, que umhomem sofre ante um animal feroz é um “refúgio”,uma evasão ante uma situação real, evasão que nãoconsiste simplesmente em uma desordem fisiológica,mas em uma conduta que tem toda sua significaçãoem uma intenção “negadora” da consciência: ante aimpossibilidade de evitar o perigo pelas vias normaise os encadeamentos deterministas, nego esse perigo.Quero aniquilá-lo.

A urgência do perigo tem servido de motivo parauma intenção aniquiladora determinante de uma con-duta mágica. Duas são as conclusões fundamentaisàs quais chega Sartre em sua análise da emoção. Em

primeiro lugar, o mundo real, ainda que possua umaconsistência, pode ser negado: a consciência pode as-sumir frente a ele uma distância que lhe permiteviver no mundo elegido por ela mesma; mundo fictí-cio, sem dúvida, mas que revela como a consciência époder de negação do real. Em segundo lugar, as con-dutas da consciência são conscientes ainda que se-jam reflexivas.

A análise da imaginação confirma esta liberdadeque define a consciência: a imaginação é a consciên-cia toda inteira enquanto que ela realiza sua liberda-de. Os objetos imaginados nunca têm a consistênciados objetos reais. A consciência da cadeira em ima-gem me ensina que a consciência não é umainterioridade, onde se guardam, como simulacros, asimagens das coisas. Ela é um modo de ser da mesmacadeira que se dá na minha percepção. Se a consciên-cia é intencional, imaginar não é possuir na consci-ência algumas imagens, mas uma maneira de es-preitar o objeto, ou seja, sob a modalidade da ausên-cia, modo, essencialmente, diferente ao da percepçãopara a qual o objeto se dá, segundo a modalidade dapresença. Imaginar Pedro em Campinas, não é for-jar uma realidade fantástica que substitua a presen-ça de Pedro, mas ter consciência da ausência dePedro: enquanto me aparece em imagem, este Pedropresente em Campinas me aparece como ausente.

O ato de imaginar revela que a consciência é aomesmo tempo poder negador do mundo e consciênciado mundo. Ela pode conceber outro mundo que é anegação do mundo real. Ao fazê-lo, põe de manifestoseu caráter livre: para que uma consciência possaimaginar, é necessário que ela escape do mundo porsua mesma natureza, é importante que ela possa to-mar distância em relação com mundo. Em uma pa-lavra, é essencial que ela seja livre. No entanto,encontramo-nos ante uma liberdade situada: eu sóposso imaginar a partir da motivação concreta e pre-cisa de uma situação que exclui o objeto mencionadode tudo que realmente me é acessível: porque Pedronão pode estar atualmente presente, eu o posso darcomo ausente.

Uma imagem, dirá Sartre, não é o mundo-nega-do, pura e simplesmente, ela sempre é o mundo ne-gado desde um determinado ponto de vista.

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Ao término das análises de sua psicologiafenomenológica, Sartre crê haver expulsado da cons-ciência todo eu, toda interioridade, todo objeto. A cons-ciência livre não é nada e, como nada, é liberdade.Desde um ponto de vista negativo, o poder da consci-ência livre se manifesta como poder de negação domundo, da situação real dentro da qual se encontra ohomem. Desde um ponto de vista positivo, a consci-ência pode regressar livre e criadoramente ao mun-do, à situação para valorizá-la e dar-lhe sentido. Todoo anterior significa que ser livre, e ser em situaçãosão a mesma coisa: a situação de um ser é sua exis-tência superada e feita significante por sua liberda-de; correlativamente, a liberdade de um não pode,por conseguinte, consistir em escapar a toda situa-ção, senão na superação de sua existência bruta atéuma situação.

Em L’Être et le Néant, Sartre sistematiza e escla-rece os temas alcançados através da psicologiafenomenológica. A psicologia de tradição clássica quisexplicar a realidade humana como uma coleção dedados observados, como um conjunto de qualidadeshereditárias ou como uma substância sujeito de aci-dentes chamados fatos psíquicos. Sartre, com sua psi-cologia fenomenológica, buscou uma compreensãoeidética da realidade humana, a partir da análise decondutas particulares enquanto fenômenossignificantes da realidade humana em sua totalidade.

O aporte fundamental de L’Être et le Néant foi pôrde manifesto o ser da consciência, que a este sercorresponde um “dever ser”: a consciência como exis-tência livre corresponde a formulação de um projetoque lhe permite transcender o real, sem “aliená-lo, atéum sentido e transcender o ato puro de negação, que acaracteriza, até o valor e a consistência deste ato”.

Toda consciência é consciência de algo: “isto sig-nifica que a transcendência é estrutura constitutivada consciência” (SARTRE, 1957, p. 28). Portanto, sequisermos descobrir a estrutura da consciência, te-mos que fazer referência às atitudes fundamentaisdo sujeito motivadas pelo mundo.

De acordo com isto, uma ontologia fenomenológicateria como objetivo esclarecer a ambigüidade do ser:do é de uma presença (a consciência) que não é um“em si” e do é de um “em si” (mundo) que só é definível

a partir da consciência. Ela será a ontologia de umaconsciência que, ao querer-se apreender como opostaao mundo, deve fazer-se o que ela não é e que, namedida que se apreende sobre o mundo, mais alémde toda reflexão, descobre a impossibilidade de ser oque ela é.

A necessidade desta ontologia se impõe, caso te-nhamos em conta que o mundo, como correlato daconsciência, o é de tal forma, que a consciência facil-mente se esquece de si mesma em benefício de ummundo objetivado e converte suas valorizações emsimples constatações e sua presença, em um simplesolhar os objetos como determinados em si mesmos epossuidores por si mesmos de um sentido que só lhespode ser outorgado pela consciência.

O ser em si. A consciência é consciência de algoque lhe é transcendente. Por conseguinte, não temsentido a pergunta sobre como o ser do objeto se dis-tingue do ser da consciência: “ser consciência de algoé estar ante uma presença concreta e plena que não éa consciência” (SARTRE, 1957, p. 27).

Contudo, o ser não se entrega inteiramente emcada uma de suas manifestações: ele se anuncia nofenômeno em forma transfenomenal como um maisalém do fenômeno. Daí que todo fenômeno, que pordefinição é um “ser para a consciência”, seja ao mes-mo tempo um “ser em si”. Ele é para a consciência sóenquanto não é consciência, enquanto é aquilo que aconsciência não é. Por conseguinte, quando se fala do“ser em si”, se quer afirmar que o ser que se dá àconsciência como fenômeno, se dá como possuindo emsi mesmo seu sentido de ser e seu fundamento. O serse cria então a si mesmo? Não podemos afirmar, poisisto implicaria a utilização de categorias que só seaplicam ao homem, isto é, as categorias de atividade epassividade. Do ser só se pode dizer que “é em si”, ouseja, que é idêntico a si mesmo e pleno de si como o serde Parmênides: ele é simplesmente, sem necessidadede nenhuma razão: “Isto é o que a consciência expres-sará – em termos antropológicos – dizendo que o serestá de mais, ou seja, que ela não pode de modo algumderivá-lo de nada nem de outro ser, nem de um possí-vel, nem de uma lei necessária. Não criado, sem razãode ser, sem relação alguma com outro ser, o “em si”está eternamente de mais” (SARTRE, 1957, p. 34).

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Para Sartre, a consciência não pode explicar esteser “em si”. Na esteira heideggeriana, considera quea consciência compreende de forma imediata sua si-tuação sem necessidade de uma explicação: o fenô-meno de ser, como todo fenômeno primeiro, se desve-la imediatamente à consciência, através de meios “deacesso imediato (como) o tédio, a náusea, etc.”(SARTRE, 1957, p. 14). Recordemos Roquetin em LaNausée, quando descobre o sentido concreto da pala-vra “existência”: “de um só golpe a existência se fazpresente a ele, não a existência de um determinadoobjeto que eu posso nomear, utilizar ou definir, masa existência de algo absoluto, a contingência [...] Exis-tir é está aí simplesmente; os existentes aparecem,se deixam encontrar, mas nunca é possível deduzi-los. Tudo o que existe nasce sem razão, se prolongapor debilidade e morre por causalidade”.

O ser para si. O “ser em si”, de acordo com o quefoi posto até o momento, não dá margem a nenhumapergunta. Se alguma pergunta tem surgido, é por-que uma alteridade, que é um não ser, introduz-se nocoração do ser. Trata-se da consciência. Se a consci-ência é algo distinto do objeto do que ela é consciên-cia, ela não é nada mais que consciência desse objeto,até o ponto de que a existência do objeto significaria anão existência da consciência. Algo mais: se a consci-ência é consciência de algo – deste monitor, por exem-plo – este algo é arrancado da massa de ser e consti-tuído como não sendo nada mais do que o que é.

Assim sendo, se segue que esse algo é um ser comrespeito a esse algo. Dessa maneira, a consciência étriplamente fonte de não ser: com respeito a si mes-ma, enquanto ela não é nada do objeto e enquanto elanão é nada sem ele; com respeito ao objeto, enquantoa causa dela, este não é nada mais que o que é, talcomo o expressamos nos juízos de negação; e, comrespeito ao mundo enquanto este, como totalidadeestruturalmente diferenciada, só se dá pelo nada.

Se quisermos saber como o ser pode estar afetadopelo nada, teremos que buscar uma explicação pelolado de uma dimensão do ser que seja portadora desua própria negação, já que o “ser em si” não dá lu-gar a nenhuma diferenciação ao ser idêntico a simesmo. Este ser, que só é graças a “ser o que não é”,é a consciência livre e espontânea. Enquanto tal,

Sartre a denomina “o ser para si”, porque é livre e,por conseguinte, porque propõe “a ser”, ela não ape-nas “e o que não é” com respeito ao “ser em si”, comotambém com respeito a si mesma.

A unidade do em si e do para si. Como poderíamospensar unilateralmente estas duas regiões do ser?“Se o “em si” e o “para si” são modalidades do ser, nãohaveria um hiato no senso mesmo da idéia do ser, enão estaria cindida sua compreensão em duas partesincomunicáveis” (SARTRE, 1957, p. 715). A possibi-lidade de um pensar unitário apenas se pode dar, desdeum ponto de vista do “para si”, posto que, como foidito, o “em si” não é suscetível de nenhum ponto devista.

No olhar do fenomenólogo, o “em si” e o “para si”aparecem, de fato, como correlativos: não temos in-tuição de um “para si” separado e que por isso mesmoseja um puro nada, nem de um “ser em si” puro.Quem se expresse nesses termos, estará se expres-sando em termos abstratos.

Quando a consciência estabelece “o em si”, o fazcomo anterior ao “para si” e anterior às perguntasque ela possa colocar-se, perguntas que, por certo,não a afetam no “em si”, não dão margem à busca deuma origem do ser: “o ser é sem razão, sem causa,sem necessidade” e “todos os ‘por quês’... são posteri-ores ao ser e os supõe” (SARTRE, 1957, p. 713).

A consciência pode, contudo, interrogar-se sobre aorigem de seu próprio ser: “o ser pelo qual o porquêchega ao ser tem o direito de colocar seu próprio por-quê, posto que ele próprio é uma interrogação, um por-quê. A esta questão a ontologia não poderia responder,pois se trata aqui de explicar um acontecimento e nãode descrever as estruturas de um ser” (SARTRE, 1957,p. 714). Deve-se alertar, contudo, que a resposta dadaconstitui uma hipótese metafísica que afirma a apari-ção acidental, absurda contingente da consciência comoum nada que só através de suas escolhas conquistauma essência, essência que surge dessas escolhas li-vres enquanto ultrapassadas pela consciência: a es-sência da consciência é sua existência petrificada. Deve-se sublinhar, portanto, que a consciência, ao não obe-decer a nenhum condicionamento externo, pode refa-zer continuamente sua essência. Neste sentido, a exis-tência precede a essência.

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A consciência, enquanto pergunta, é levada a in-quietar-se sobre a possibilidade de um “ser total”, istoé, de uma síntese unitária do “em si” e do “para si”. Épossível esta síntese? Não, posto que se trata de ter-mos que se excluem: o “ser em si” não pode conver-ter-se em consciência nem a consciência em um “serem si”, pois deixariam de ser o que são. À medida queo homem aceite este projeto impossível, ele é uma“paixão inútil”, um esforço falido de antemão.

A liberdade. “Que deve ser o homem em seu serpara que, através dele, o nada chegue a ser?”(SARTRE, 1957, p. 60). A interrogação sobre umaessência do homem parece contradizer a afirmaçãode que a consciência é apenas existência. A contradi-ção é aparente se tivermos em conta o que se deveentender por essência.

A liberdade não é uma propriedade qualquer demeu ser: ela é “a textura de meu ser” (SARTRE, 1957,p. 514). “O que chamamos liberdade não... se distin-gue do ser da ‘realidade humana’. O homem não éprimeiro, para ser livre depois, não há diferença en-tre o ser do homem e seu ‘ser livre’” (SARTRE, 1957,p. 61). A liberdade é o poder da consciência de negar oser e negar-se a si mesma e, ao fazê-lo, afirma-se a simesma, de determinar-se, de eleger-se, de criar-seperpetuamente. Do homem livre, só se pode captar oque tem sido, não o que é e o que será: “a liberdade éo ser humano colocando seu passado fora de jogo esegregando seu próprio nada” (SARTRE, 1957, p. 65).Este “por fora de jogo” meu passado, radica a possibi-lidade de contemplar meu ser passado como se já nãofosse meu ser e, portanto, a possibilidade de introdu-zir a descontinuidade.

Dessa forma, o homem não é pura existência, oque significaria ser um existente imaterial. Ele é umaessência problemática, porque está sempre por fazer-se a partir de sua liberdade: “a liberdade humana pre-cede a essência do homem e a torna possível; a essên-cia do ser humano se faz em suspenso em sua liberda-de” (SARTRE, 1957, p. 61). Aparece, precisamente, aangústia, esse sentido que acompanha o homem atu-ando sobre a situação, escolhendo-se e escolhendo li-vremente seu mundo, sem leis nem critérios absolu-tos que possa constrangê-lo em um sentido ou em ou-tro e que, por outra parte, lhe assegura o êxito de seu

projeto. A única lei que lhe orienta é sua liberdade:“estou condenado a ser livre. Isto significa que não sepode encontrar mais limites para minha liberdade queesta mesma, ou, se preferirmos, que não somos livrespara deixar de ser livres” (SARTRE, 1957, p. 515).

A angústia se revela, assim, como a apreensão docaráter inelutável da liberdade que deve decidir porsi mesma o dever ser do homem:

Estou emergindo sozinho, e, na angústiafrente ao projeto único e inicial que cons-titui meu ser, todas as barreiras, todos osparapeitos desabam, nadificados pela cons-ciência de minha liberdade: não tenhonem posso ter qualquer valor a recorrercontra o fato de que sou eu quem mantémos valores no ser; nada pode me protegerde mim mesmo; separado do mundo e deminha essência por esse nada que sou, te-nho de realizar o sentido do mundo e deminha essência: eu decido, sozinho,injustificável e sem desculpas” (SARTRE,1957, p. 77).

Assim sendo, Sartre vai insistir no caráter práti-co da filosofia: “Toda filosofia é prática, inclusive aque-la que à primeira vista parece ser a maiscontemplativa” (SARTRE, 1960, p. 16). O reconheci-mento deste caráter prático da filosofia aproximaSartre ao pensamento de Marx.

Conceber a consciência como um elemento da na-tureza, ou tomar literalmente que “o ser determina aconsciência”, é não apenas negar a liberdade da cons-ciência, como também cair no idealismo que se querrechaçar, pois é apontar à natureza uma teleologia:“é certo que o ser determina a consciência, mas setinha, em certa maneira, ‘o projeto’ de determiná-la,então voltaríamos à idéia hegeliana”. O que faz dopensamento de Marx “a filosofia de nosso tempo” nãoé esse parco materialismo, mas o “ser a tentativamais radical de esclarecimento do processo históricona sua totalidade” (SARTRE, 1960, p. 29) respeitan-do, simultaneamente, a especificidade da existênciahumana e o caráter concreto do homem em sua rea-lidade objetiva.

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Podendo, por tudo isso, em que o existencialismopoderia influir no marxismo? Para Sartre, o marxis-mo se tem detido ao fazer de seus princípios dogmas,convertendo-se em um idealismo voluntarista. Oexistencialismo pode acrescentar ao marxismo umabase para pô-lo em marcha, a saber, sua concepçãode práxis individual, graças à qual a vida não é umfenômeno estático, mas dinâmico.

Para compreender o homem, nós temos que situá-lo, prontamente, no seio da totalidade, mas tambémtemos que pô-lo em relação com o devir concreto: “paramim, escreve Sartre, a verdade devem, é e será nodevir. É uma totalidade que se totaliza sem cessar;os fatos particulares não são nem verdadeiros nemfalsos, embora não são relacionados pela mediaçãodas diferentes totalidades parciais com a totalizaçãoem curso” (SARTRE, 1960, p. 30).

Para abordar a história, como verdade que estáem devir, temos que utilizar a razão dialética. Utili-zar a razão analítica – válida no conhecimento domundo natural – seria aceitar de antemão umdeterminismo que anularia a consciência como pro-jeto e liberdade.

Sartre se opõe, contudo, à interpretação da dialéticapor parte do marxismo francês e soviético porque, pre-cisamente, esta interpretação assume que o devir his-tórico e o devir do universo poderia ser explicado apartir de leis universais, expressões de uma dialéticaexistente na natureza. Para Sartre, não é a naturezaa que procede dialeticamente como negação, negaçãoda negação e subsunção desta numa negação mais rica.Apenas a consciência pode introduzir, através da práxisintencional, a negação no universo do ser-em-si.

Quais são os limites da razão analítica? A formu-lação das leis de tudo o é e chega a ser no mundonatural, mediante a observação, a experimentação, aredução do complexo a seus elementos simples, à de-dução e à síntese. Este conhecimento permite ao pes-quisador esclarecer os fatos novos, reduzindo-os aopassado. O pesquisador pode, por conseguinte, sen-tir-se orgulhoso de sua capacidade de predição. Mas arazão analítica nada pode dizer-nos acerca dos fenô-menos sociais que são produtos de uma práxis que, acada instante, cria o novo que rechaça toda instaura-ção de cadeias causais para sua explicação.

A razão dialética pode encontrar “a partir das es-truturas sincrônicas e de suas contradições, ainteligibilidade dinâmica das transformações históri-cas, a ordem de seus condicionamentos. A razão inteli-gível da irreversibilidade da história, isto é, sua orien-tação” (SARTRE, 1960, p. 156). As mudanças históri-cas, enquanto provenientes de uma consciência livre,são imprevisíveis. Se elas são compreensíveis, o sãoporque são intencionais e porque podem ser integra-das no fenômeno humano em seu conjunto: a práxishumana remete à totalidade da humanidade.

Nesse sentido, Sartre não desenvolve o métododialético. Sua dialética é mais uma teoria do conheci-mento, uma lógica que pretende explicar de maneiranão contraditória os momentos da totalização, lógicada ação criadora, lógica da liberdade. Para Sartre, ohomem, mediante a práxis, deve satisfazer suas ne-cessidades num mundo de “escassez”. Daí que estaimplica privar o outro necessariamente de algo, ori-ginando assim um antagonismo violento. Apesar dis-to, o homem pode interiorizar as situações ereexteriorizá-las através de uma práxis orientada aoreconhecimento e à libertação do Outro. É este cará-ter teleológico da práxis o que, finalmente, distingueo homem do animal, tornando o homem histórico eético.

A Crítica da Razão Dialética também se colocacomo problema estabelecer ou “deduzir” as condiçõesde possibilidade da história. Sartre diz que a reali-dade da história, em sua generalidade, já está asse-gurada pelo próprio estatuto da práxis, a qual, desdea emergência orgânica, constitui-se como capacidadede superação e de totalização. Portanto, o que deveser fundado é nossa história, caracterizada pela ex-ploração e pela violência. O materialismo sartriano érigoroso: é preciso que a possibilidade do devir dra-mático da humanidade se instaure na relação práti-ca primordial. Portanto, ele admite como um dado ofato da escassez. Fornecendo previamente um con-teúdo “econômico” à “guerra de todos contra todos”,designada por Hobbes como estado natural, Sartreirá compreender doravante toda história como algoque se explica sobre o pano de fundo dessa carênciaradical. É nesse sentido que é interpretada a fórmulamarxista, segundo a qual os homens viveram até aqui

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sua pré-história, pois a história só terá início quandoeles tiverem vencido a adversidade natural.

É a partir da perspectiva abordada acima, queentendemos a práxis educativa como a realização deuma educação-revolta e efetivação de uma aborda-gem antropológica que põe em evidência a busca daliberdade e a constituição da inteligibilidade da his-tória.

Assim, insistir em uma abordagem que enfatize adimensão antropológica da atividade educativa possi-bilita descobrir que a práxis individual, no seu esfor-ço incessante para se objetivar, para cumprir o proje-to de ser, apreende-se como inteligível e histórica emsi mesma. Subjacente a esta práxis individual de ser,há sempre uma escolha que a define precisamentepelo seu fim, sem prejuízo de assumir um passadoque traça a situação que a envolve e a constrange nolimiar da historicidade, uma vez que o sujeito desco-bre que não está sozinho. O projeto2 e a decisão que osustém identificam a liberdade do homem enquantoexprimem a sua atitude (revolta), a sua perspectiva,diante de uma situação que, inevitavelmente, o ul-trapassa.

Como podemos depreender, aparece aqui a proble-mática da liberdade humana na sua dimensão subje-tiva e na sua relação com a necessidade objetiva dasdeterminações históricas. Eis que ambas as situa-ções se resolvem não tanto pela imposição de um ououtro dos pólos da questão em jogo, mas precisamen-te pela afirmação da atividade educativa do homem,a ser exercida na prática, mas sempre assente noconhecimento da verdade em toda a sua objetividade.É, aliás, assim que o homem é levado a olhar o futuro

e a querer acelerar a sua ocorrência pela representa-ção que dele pode fazer por antecipação. A educaçãotem, dessa maneira, por significação e por tarefa,participar na realização dos fins da história e abrir avia às mudanças que devem necessariamente inter-vir na compreensão dos homens, de maneira a fazê-las realizar.

Portanto, a educação detém um papel decisivo nodesenvolvimento conjunto da civilização e da existên-cia humana; enquanto o projeto social de ambas ul-trapassa necessária e concorrentemente o presente,desafiando-o, ou seja, inculcando nele a sua presençasuperadora. Tal presença será tanto mais ativa quan-to mais consciente, isto é, quanto mais despertos –pela práxis educativa – estiverem os indivíduos paraessa realidade evolutiva que, de uma só vez, os ultra-passa, os atinge e os solicita, apelando à sua partici-pação num projeto que, sendo coletivo (muito emborapossa ser concentrado no sujeito singular), implica aadesão pessoal. Favorece ao mesmo tempo e, dessaforma, a realização histórica das sociedades e de cadahomem tomado como um indivíduo nelas integrado.

E é dessa maneira que entendemos a noção deeducação-revolta: uma prática educativa e pedagógi-ca que leva o indivíduo a ultrapassar, negar ou modi-ficar os limites da sua própria condição, a saber: anecessidade de estar no mundo, de aí estar com osoutros e de ser mortal. Estes limites, se são objetivos,porque condicionam todos os indivíduos; são igualmentesubjetivos, porque são vividos por cada um e nada sãose o homem os não viver. Nessas circunstâncias, todoo projeto existencial e educacional, sem prejuízo de serindividual, desfruta de um valor universal.

2 Projeto entendido também como atividade educativa e pedagógica e, portanto, como projeto antropológico.

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Sobre o autor:Walter Matias Lima é Doutor em Educação pela UNICAMP, professor do Centro de Ciências Humanas,Comunicações e Artes da Universidade Federal de Alagoas. Professor Adjunto do Curso de Licenciatura emFilosofia e dos Mestrados de Sociologia e de Nutrição, da mesma universidade. Coordena o Núcleo de Estudose Pesquisa em Ética e Ensino de Filosofia.

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Notas sobre educação e espaço público em Kant

Sônia Barreto

Resumo:O artigo aborda algumas passagens do projeto pedagógico de Kant, concebendo como horizonte temático oprincípio kantiano da destinação humana, destacando alguns passos presentes nas lições Sobre a Pedagogiae seus nexos com sua Filosofia prática, notadamente, com a Filosofia do Direito enquanto instância legitimadorado espaço público.Palavras-chave: Kant; Pedagogia; Direito; Publicidade

Notes about education and space public in Kant

Abstract:The article discusses some passages of pedagogical designing of Kant as the thematic horizon of principleKantian of human destination, highlighting some steps in this lesson On Education and its linkages with itspractical philosophy, especially with the Philosophy of Law as the legitimacy of public space.Keywords: Kant; Pedagogy; Law; Publicity

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Revista Tempos e Espaços em Educação, UFS, v. 3, p. 23-34, jul./dez. 2009

Sônia Barreto

I

O artigo aborda alguns aspectos da ordenação sis-temática da filosofia de Kant, com base no seu proje-to pedagógico e sua relação com a filosofia prática,notadamente, com sua Doutrina do Direito. Com essepropósito, tomamos como fio condutor a idéia diretrizdo projeto pedagógico de Kant, segundo a qual “Umprincípio de pedagogia, o qual mormente os homensque propõe planos para a arte de educar deveriam terante os olhos, é: não se deve educar as crianças se-gundo o presente estado da espécie humana, mas se-gundo um estado melhor, possível no futuro, isto é,segundo a idéia de humanidade e da sua inteiradestinação” (KANT, 1999, p. 22).

Convém notar, primeiramente, que a instaura-ção de um princípio de pedagogia, visando a possibi-lidade da inteira destinação da humanidade, énorteado por um horizonte temporal futuro, o quepermite não somente a abrangência da espécie, mastambém comporta a idéia de aperfeiçoamento, o quejustifica a possibilidade de aperfeiçoamento da edu-cação. Observemos que esse princípio comparece napedagogia de Kant em consonância com o desenvol-vimento político e, conseqüentemente, é referido aodesenvolvimento efetivo do Estado, uma vez que, aoprivilegiar a educação pública, o filósofo a associa aomelhoramento do estado social, enquanto condiçãode possibilidade da finalidade ética. Nesse horizon-te, Kant considera que,

A educação pública tem aqui manifesta-mente as maiores vantagens: aí se apren-de a conhecer a medida das próprias for-ças e os limites que o direito dos demaisnos impõe. Aí não se tem nenhum privilé-gio, pois que sentimos por toda parte re-sistência, e nos elevamos acima dos de-mais unicamente por mérito próprio. Essaeducação pública é a melhor imagem do

futuro cidadão (KANT, 1999, p. 34, it.nosso).

Assim, podemos considerar que a efetivação de umestado de coexistência das liberdades, tal como é exi-gido para a instituição do estado jurídico, funda-se noconhecimento dos limites, que nos são impostos pelavontade livre e implica o respeito ao direito do outro,o que assegura a base da indissociável relação entrea finalidade do agir ético, em consonância com apolítica no pensamento de Kant, uma vez que esta seinscreve na seguinte perspectiva: perseguir a idéiade uma sociedade justa, o que implica o entusiasmopelo dever moral-jurídico de viver em paz1. Na filoso-fia crítica, a destinação do homem à vida em socieda-de comparece como uma disposição pertencente àhumanidade2.

Nesse sentido, uma vez que Kant considera a edu-cação um projeto em contínuo aperfeiçoamento, o fi-lósofo adverte que não devemos educar as crianças,seguindo o modelo presente do estado em que se en-contra a espécie humana; mas considerando, sobre-tudo, “um estado melhor, possível no futuro”. Assim,parece permitido afirmar que, em seu projeto peda-gógico, encontram-se presentes, em germe, todos oselementos – desde os mais rudimentares, para a con-secução da idéia de comunidade; até a constituiçãoda educação em um projeto que visa à orientação e aotrato dispensado para os outros, enquanto interessepela humanidade, o que culmina no sentimento cos-mopolita.

Visualizando um estado melhor no futuro, a ori-entação formativa que a educação deve perseguir, põe-se como condição de possibilidade do progresso sociale indica, a partir de princípios, uma preocupação como aprimoramento das relações e com o espaço com-partilhado, não somente visando o atual estado, mas,sobretudo, construindo e estendendo o âmbito dasrelações políticas, de tal modo que a direção das açõestenha como horizonte o futuro da espécie sob o ponto

1 Sobre o tema, ver Loparic, 2003.2 Cf. CU, §41, p. 161-163, CJ, § 41, p.142-143.

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de vista cosmopolita; o que pode ser interpretado,contemporaneamente, como um princípio fundativoda responsabilidade social3.

Nas lições Sobre Pedagogia, Kant utiliza umametáfora que traduz sua idéia de comunidade e depublicidade. Ele diz: “Uma árvore que permanece iso-lada no meio do campo não cresce direito e expandelongos galhos; pelo contrário, aquela que cresce nomeio de uma floresta cresce ereta por causa da resis-tência que lhe opõem as outras árvores, e, assim,busca por cima o ar e o sol” (KANT, 1999, p. 24).Verifica-se que o crescimento é possibilitado pelo con-flito, pelas relações de oposição e resistência, ou, con-forme Kant, assinala, em Idéia de uma história Uni-versal de um ponto de vista cosmopolita, pelainsociável sociabilidade.

Sendo assim, uma condição necessária ao projetoeducativo, assinalada por Kant, consiste em perse-guir a idéia de um aprimoramento constante e talfinalidade se traduz como parte constitutiva de umprojeto político mais amplo, que almeja a idéia deuma organização em comunidade, tendo como finali-dade última um estado melhor. É nessa direção quea finalidade da moralidade é a justiça social e esta,por sua vez, implica o reconhecimento de deveres edireitos, obrigações e leis externas ou numa legisla-ção jurídica que possibilite a conciliação entre direi-to privado e direito público, o que justifica a idéiaefetiva de uma comunidade jurídica-política.

Contudo, uma vez que Kant considera a necessi-dade de uma legislação jurídica, esta implica, porsua vez, uma legislação moral; então se faz necessá-rio ao homem um processo formativo, porque somen-te pela educação ele pode dar os primeiros passospara a sociabilidade, sendo o primeiro destes a disci-plina. Esta, primeiramente “transforma aanimalidade em humanidade” (KANT, 1999, p. 12).Considerando assim, vemos que o conceito de hu-

manidade, caro à filosofia prática, consiste num es-tado alcançado somente pela educação, promovidopela disciplina, responsável pela retirada do homemdo estado de rudeza em direção à civilidade. Sendoassim, a condição de possibilidade da civilidade esua exeqüibilidade implicam, originariamente, aimplementação de um projeto educativo cosmopoli-ta, fundado em bons princípios, uma vez que o ho-mem “Não é bom nem mau por natureza, porquenão é um ser moral por natureza. Torna-se moralapenas quando eleva a sua razão até aos conceitosdo dever e da lei” (KANT, 1999, p. 95).

Ora, por não ser nem bom nem mal por natureza,o homem é, originariamente, tanto impulsionado pe-los vícios e inclinações, quanto pela razão, que lhesolicita o uso de princípios e leis. Na Crítica da Ra-zão Prática Kant afirma que:

[...] a lei moral, da qual nos tornamosimediatamente conscientes, (tão logo pro-jetamos para nós máximas da vontade),que se oferece primeiramente a nós e que,na medida em que a razão a apresentacomo um fundamento determinante semnenhuma condição sensível preponderan-te, antes, totalmente independente delas,conduz diretamente ao conceito de liber-dade (KANT, KpV, p.53, trad. 2003, p.101).

Tal condição peculiar justifica, ao mesmo tempo,a frase com a qual Kant inicia suas lições: “O ho-mem é a única criatura que precisa ser educada”(KANT, 1999, p. 11). Conforme já assinalamos, aeducação consiste num processo com base no qualuma geração educa a outra. Nesse sentido, Kant diráque se há pessoas que se interessam “pelo bem dasociedade e estão aptas para conceber como possível

3 Na Filosofia contemporânea, o tema da responsabilidade é amplamente debatido por Hans Jonas nas obras DasPrinzip Verantwortung: Versuch einer ethic für die Tecnologische Zivilisation, Insel Verlag, Frankfurt am Main, (Trad.bras. O Princípío Responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a Civilização tencológica, de Marijane Lisboa e LuizBarros Montez, Rio de Janeiro, Editora PUC Rio e Contraponto, 2006) e Das Prinzip Leben: Ansätze zu einerphilosophischen Biologie, Insel Verlag, Frankfurt am Main, (Trad. bras. O Princípío vida –Fundamentos para umabiologia filosófica, de Carlos Almeida Pereira, Petrópolis, Editora Vozes, 2004).

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um estado de coisas melhor no futuro”, então “A dire-ção das escolas deveria, portanto, depender da deci-são de pessoas competentes e ilustradas” (KANT, 1999,p. 24). Essa afirmação assinala e confirma a conside-ração de Kant acerca do modo como se deve gerir asinstituições públicas e de que modo os pretendentesaos postos de direção devem alcançá-los: unicamentepor mérito próprio. Ora, podemos afirmar que, ana-lisando cuidadosamente as Lições sobre a Pedago-gia, lá encontramos todos os requisitos necessáriospara um projeto que visa atender o pleno desenvolvi-mento da espécie, que consiste na possibilidade deatingir um estado justo.

Visando perseguir essa idéia, a educação consistenum projeto que implica um conjunto de condiçõesconexas: disciplina, cultura, habilidade, civilidade e,por fim, a moralidade. Esta precede a legalidade, en-quanto condição da coexistência das liberdades a qualrequer, por sua vez, uma ciência do direito, acerca daqual Kant já adverte na pedagogia, ao tratar da edu-cação prática: “Para educar as crianças na honesti-dade falta um catecismo do direito em versão popu-lar de casos referentes à conduta que se há de man-ter na vida cotidiana, e que implicariam naturalmentesempre a mesma pergunta: isso é justo ou injusto?”(KANT, 1999, p. 91, grifo nosso). Essa afirmação deKant conduz-nos à seguinte consideração: porque so-mente a educação forma o homem para o exercício dacidadania, o filósofo propõe que, desde cedo, inicie-seuma doutrinação elementar acerca do direito.

Vejamos: que um projeto formativo não estejadesvinculado, também, de um catecismo do direito,tal condição nos permite afirmar que o estatuto dapublicidade em Kant tem raízes na educação e porisso, o funcionamento do estado depende daimplementação de um projeto pedagógico calcado emprincípios éticos. No Conflito das Faculdades lemosque “A ilustração do povo é a sua instrução públicaacerca dos seus deveres e direitos no tocante ao Esta-do a que pertence” (KANT, 1993, p. 106).

Seguindo o horizonte da exposição, percebemos umarelação de co-pertença entre educação e ética. A par-tir de então, consideremos o grau de complexidadequando se trata da legitimação do exercício da liber-dade, uma vez que esta depende da educação e com-

porta, por sua vez, a realização do direito público quedeve promover a passagem efetiva à práxis da políti-ca. Nesse sentido, podemos retomar o princípio dedestinação da humanidade como o móbil da pedago-gia kantiana, com base no qual se pode inferir, queda efetivação de um projeto pedagógico calcado emprincípios, implica a legitimação de um estado justopossibilitado pela sociabilidade, o que demonstra aestreita relação entre a educação e o direito como con-dutores da publicidade.

Sendo assim, os mecanismos desenvolvidos naesfera pública, têm como finalidade conciliar os inte-resses individuais, enquanto parte constitutiva de umpropósito maior que se refere a toda humanidade. Porisso, vemos que as bases que sustentam o edifício daeducação devem promover, no homem, para além dacivilidade, o sentimento de respeito, de dignidade, deautonomia que se traduz na moralidade, como parteformativa do caráter. Este terá como norte a distin-ção relacional e estrutural das bases nas quais seassentam o público e o privado, calcados no direito,que em conexão com a política, possibilita a fórmulapositiva da publicidade. Esta, implica na capacidadede fazer uso da razão diante do público, de tornarempúblicas as suas idéias através da escrita, de contes-tar o comportamento da unanimidade artificial, o quegarante o princípio transcendental da política. Em Apaz perpétua, Kant afirma que

A verdadeira política não pode, pois, darum passo sem antes ter rendido preito ámoral, e embora a política seja por si mes-ma uma arte difícil, não constitui no en-tanto arte alguma a união da mesma coma moral: pois esta corta o nó que aquelanão consegue desatar, quando entre ambassurge discrepância (KANT, AK.B, 94-96,trad. p. 106).

II

Com base no estatuto do projeto pedagógico de Kante frente à unidade sistemática da sua filosofia, pode-mos inferir que as reflexões contemporâneas volta-das para a análise, o planejamento, a gestão e a exe-

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cução das políticas públicas não podem prescindir deuma fundamentação filosófica, considerando-se que,em se tratando de um estado jurídico, a legitimidadee efetivação dos princípios fundantes da educação, dodireito, da política e do uso do espaço público, impli-cam a relação positiva entre a educação, o direito e apolítica, o que pressupõe a aplicação da fórmula doprincípio da destinação humana, que se refere aomelhoramento do estado, no sentido de formar cida-dãos livres, o que remete à necessidade do conheci-mento e da adoção dos princípios, enquanto possibili-dade da formação e conservação dos cidadãos, segun-do as leis da liberdade ou de acordo com o princípio daautonomia, o que caracteriza uma razão livre ouesclarecida. Acerca do uso prático da razão, Kantafirma que “A razão faz conhecer os princípios [...]não se trata da razão especulativa, mas da reflexão arespeito do que acontece segundo as suas causas eefeitos. Trata-se de uma razão prática em sua econo-mia e em sua disposição” (KANT, 1999, p.70).

Vemos, portanto, que na construção do seu siste-ma, Kant considera distintamente o domíniofenomênico, no qual se inscrevem os aparecimentos epossibilita sua teoria dos juízos determinantes, dodomínio da liberdade, no qual se inscrevem as açõeshumanas. Esses dois domínios exigem, respectiva-mente, uma metafísica da natureza e uma metafísicados costumes.4 Assim, Kant elabora propriamenteuma arquitetônica, a qual traduz e assegura o seumétodo, de tal forma que este visa às condições depossibilidade do conhecimento científico, quando setrata dos princípios metafísicos da natureza, bemcomo do sistema completo da liberdade, no queconcerne à metafísica dos costumes. Esta, por suavez, compreende os aspectos essenciais da atividade

humana, a exemplo da educação, da moral, do direitoe da política, questões com as quais se ocupa a pre-sente investigação.

Considerando ainda que a unidade sistemáticaconstitutiva do método comporta a copertinência dametafísica da natureza, como fundamentação lógicada dimensão especulativa da razão pura e dametafísica dos costumes, enquanto dimensão práticadessa mesma razão, trataremos, a partir de então,dos princípios norteadores presentes na pedagogiakantiana privilegiando, conforme já assinalamos, arelação da educação com o direito e seu papeldeterminante no âmbito da publicidade, visando de-monstrar que a exeqüibilidade da relação entre o di-reito e a política, que possibilita a publicidade, estácondicionada à educação5.

Com base na filosofia prática de Kant e sua deli-mitação a partir do princípio da liberdade, a pesquisaencontra-se circunscrita no âmbito do domínio dejuízos práticos, cuja validade se expressa na fórmulado imperativo categórico a partir da consciência daobrigação moral, que tem como fio condutor o senti-mento de respeito. Na Fundamentação da Metafísicados Costumes, Kant afirma que

[...] embora o respeito seja um sentimen-to, não é um sentimento recebido por in-fluência; é, pelo contrário, um sentimentoque se produz por si mesmo através dumconceito da razão, e assim é especificamentedistinto de todos os sentimentos do pri-meiro gênero que se podem reportar à in-clinação ou ao medo. [...] respeito que nãosignifica senão a consciência da subordi-nação da minha vontade a uma lei, sem

4 O tema é tratado por nós no artigo Do co-pertencimento das duas metafísicas de Kant na implementação do seu projetopedagógico. Revista do Mestrado em Educação, vol. 10, p. 43-50.

5 Esse percurso, que parte da disciplina à moralidade pela via da destinação humana, inclui sistematicamenteelementos presentes nos opúsculos sobre a história, Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita,na Resposta à pergunta: O que é ilumineismo?, no Conflito das Faculdades, na Fundamentação da Metafísica dosCostumes, na Crítica da Razão Prática e em outros opúsculos. No segundo passo, reunimos alguns elementos daDoutrina do Direito do texto Teoria e Práxis e da Antropologia. Cf. Kritik de rpraktischenVernunft, Ueber Paedagogie,Idee zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Kritik derreinen Vernunft, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, Metaphysik der Seitte- Rechtslehr. Além dos textos básicosnos apoiamos em outras obras de Kant e de estudiosos da filosofia crítica, conforme consta no referencial bibliográfico.

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intervenção de outras influências sobre aminha sensibilidade (KANT, AK, BA16,nota, trad. p.70).

Notamos, assim, que o sentimento de respeitosubordina a vontade a uma lei, a qual se produz a simesma necessariamente e, dessa forma, à medidaque a liberdade é considerada como fato (Faktum) darazão, esta legitima a condição de possibilidade sub-jetiva do uso imanente das leis práticas, ou, dafacticidade da razão6 do que se infere a sua legitimi-dade no uso público. A filosofia kantiana não somen-te nos possibilita uma aproximação com os proble-mas contemporâneos, mas, à medida que o atual es-tado político reivindica novos princípios reguladorespara as políticas públicas, notadamente no que tangeà educação, nossa pesquisa visa relacionar a educa-ção e o conceito positivo de espaço público, uma vezque essa perspectiva permite uma análise profícuaacerca da relação de conseqüência entre educação esegurança pública, concebendo a segunda como con-dição de efetivação de uma proposta pedagógica pau-tada em princípios éticos, o que promoveria a forma-ção de sujeitos livres, executores de ações pautadasnuma razão disciplinada e autônoma, condição indis-pensável à legitimação do direito público e da efetivacondição de cidadãos livres, partícipes de um estado.Nessa direção, a pedagogia é considerada por Kantcomo uma “arte raciocinada”; conseqüentemente aformação deverá conduzir à sabedoria do uso da li-berdade para que o homem possa viver como um serlivre, o que implica numa razão disciplinada, exigên-cia que precede e possibilita o seu uso público.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,Kant demonstra a necessidade de procurar os funda-mentos da moralidade para então, partindo destes,apresentar regras que se estendem para o domíniopúblico. Em sua articulação interna, a investigaçãoconduz à descoberta dos princípios da moralidade edos modos como esta, exercendo sua influência, atuasobre os arbítrios humanos. Em outro texto, o opús-

culo intitulado O que é o esclarecimento? (Was istAufklärung?) Kant afirma ser o esclarecimento o pas-so que permite a saída da menoridade para a autono-mia, o que implica a consciência de si como agentemoral, movido pelo sentimento de respeito pela lei.Esta, quanto à forma, diferencia-se das leis da natu-reza, uma vez que a consciência da existência da leimoral deve conduzir à necessidade do respeito a essamesma lei. Assim, em conexão com a moralidade, oprojeto pedagógico de Kant se inscreve no campo dapráxis humana e diz respeito a um domínio específi-co: a liberdade como base de todas as ações, a partirda qual o homem deve unicamente agir.

Assim posto, o respeito possibilita a recepção dalei moral e esta receptividade consiste no modo comoa lei se torna acessível para a pessoa. Se, por umlado, esse sentimento não “fundamenta” a lei; poroutro, ele consiste no modo de manifestação da lei.Isso implica dizer que a submissão à lei, não implicao afastamento daquilo que eu mesmo sou, porque,sujeitando-me à lei, eu me sujeito a mim mesmo comorazão pura, o que permite que eu me determine comoente livre e digno de respeito.

III

Podemos afirmar que a possibilidade de determi-nação para o agir livre está conectada ao conceito deeducação, que, na filosofia de Kant, é pensado de talforma que o processo pedagógico deve servir comoponto de partida para a realização da destinação hu-mana, uma vez que o homem formado que passoupor todas as etapas da educação, tornar-se-ia um ho-mem esclarecido. Assim, se o processo pedagógicoconsiste na formação do homem, desde a aquisição deconhecimentos, até o mais alto grau de esclarecimento,este implica conseqüentemente a sua saída da meno-ridade e a ousadia de aprender a pensar por si pró-prio, o que culmina no ideal do uso público da razão,possibilidade da qual depende o conhecimento de di-reitos e deveres.

6 Cf. Loparic, 2003.

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Na Introdução da obra Sobre a Pedagogia, sãoexpostas as fases do desenvolvimento formativo, as-sim como os obstáculos que impedem a realizaçãoplena desta idéia. Seguindo a direção esboçada porKant, a educação se divide em duas fases: o Cuidadoou a Educação Física e a Formação ou a Educação Prá-tica/Moral. Na primeira, o constrangimento é mecâni-co, modo pelo qual as crianças aprendem diversas artespara sua vida presente; na segunda, o constrangimentoé moral, fase na qual se deve desenvolver a naturezahumana de forma que as projeções visem o melhora-mento das gerações futuras, o que demonstra a dinami-cidade de tal projeto, a possibilidade de ser retomado,revisado e ampliado, além do fato da dimensão de ummelhoramento do estado social, com base na idéia daconstrução futura de em estado melhor, pelo aprimo-ramento dos projetos pedagógicos.

Considerando, portanto, que a formação se divideem disciplina e cultura, primeiro a criança deve serdisciplinada, a fim de aprender a dominar ou moldarseus instintos e pautar-se por ações raciocinadas enão por impulso; o papel da disciplina consiste noauxílio que esta presta, quando se trata da submis-são civilizada às leis da humanidade, o que se põecomo condição de possibilidade da sociabilidade e daefetivação da publicidade, enquanto condição do con-vívio na esfera pública. Nesse sentido podemos en-tender a importância do caráter negativo da discipli-na. De acordo com Kant

[...] as crianças são mandadas à escola nãopara que aí aprendam alguma coisa, maspara que aí se acostumem a ficar senta-das tranqüilamente e a obedecer pontual-mente aquilo que lhes é mandado, a fimde que no futuro não sigam de fato e ime-diatamente a cada um de seus caprichos.Mas o homem é tão naturalmente inclina-do à liberdade que, depois que se acostu-ma a ela por longo tempo, a ela tudo sa-crifica. Ora, esse é o motivo preciso, peloqual é conveniente recorrer cedo à disci-plina; pois, de outro modo, seria muitodifícil mudar depois o homem (KANT, AK,442, trad. p.13).

Relacionando, pois, a disciplina à cultura, estaúltima torna o homem “prudente”, uma vez que, co-nhecendo o seu lugar na sociedade, ele pode agir compolidez e modos corteses e gentis. Assim, a cultura ea instrução são as condições prévias necessárias aodesenvolvimento da capacidade do homem de esco-lher, entre os fins, apenas aqueles que se destinam àperfeição da humanidade, o que constitui um passoimportante no processo de moralização. Acerca dadiferença entre a civilidade e a moralidade, Höffe faza seguinte observação: “Instruído por Rousseau, Kantnão infere do refinamento do gosto uma correspon-dente elevação do sentimento moral; a civilização nãosignifica já moralização; o desenvolvimento do senti-do comum tem só significado estético, e não tambémsignificado moral” (HÖFFE, 2005, p. 304).

Mas, conforme assinalamos, Kant estabelece adiferença entre a educação pública e a educação pri-vada, mostrando as vantagens que o estado teria seinvestisse na formação pública, considerando-se queesta seria ministrada por instituições de ensino queem tese deveriam depender da decisão “de pessoascompetentes e ilustradas”. Tal afirmação está emperfeita conexão com o projeto pedagógico de Kant,uma vez que o filósofo adota como princípio a realiza-ção do pleno desenvolvimento da destinação huma-na, o que implica outro requisito para o seu cumpri-mento: “Uma educação pública completa é aquela quereúne, ao mesmo tempo, a instrução e a formaçãomoral” (KANT, AK. p.452, trad. p.30).

De tal modo, a indissociável relação entre educa-ção e moralidade, no âmbito público, visa à dignidadehumana, com base na qual todos os homens estari-am, ao mesmo tempo, sujeitos à lei moral, o que re-presenta o primeiro passo na efetivação das leis ex-ternas, notadamente do direito público, que garantea sociabilidade a qual somente se exerce plenamentena esfera do espaço público. Visando tais realizações,Kant reconhece que um projeto de educação é sempreapenas um esboço.

Ora, se Kant reivindica o aperfeiçoamento de cadageração, então cada uma deve ampliar, pela via daeducação, o seu grau de eficácia e, sendo a arte deeducar uma “arte raciocinada”, ela não pode ser con-cebida apenas de forma mecânica, visando à utilida-

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de presente, mas deve ser pensada de tal forma queapresente como fio condutor uma proposta que viseao melhoramento das futuras gerações que em Kantse traduz em termos morais.

Contudo, lamenta Kant, parece que os governantessão sempre desfavoráveis à educação, porque os prín-cipes ou governantes, quando se envolvem em guer-ras, gastam com isso todos os recursos financeirosdos Estados, esquecendo-se das instituições de ensi-no, e, conseqüentemente do aperfeiçoamento da hu-manidade7. Ora, se todos os problemas relacionadosà educação são reproduzidos no estado, por sua vez, omelhoramento do estado social é um objetivo a seratingido somente pela educação.

Nessa direção, Kant aponta duas possibilidades:uma estaria ligada ao empenho do povo em aperfeiço-ar-se e não somente esperar a ajuda dos governos; equanto aos governos, empenharem-se em melhorar aeducação, tirando-a dos graves erros a que estáinserida. Tais procedimentos implicariam na adoçãodo seguinte princípio: os homens devem se empenhar,com o objetivo de sempre ultrapassar, de fazer mais emelhor, no que tange ao acúmulo de conhecimentosherdados de uma geração anterior. Tal princípio seliga à idéia de progresso da humanidade, uma vezque uma época civilizada, não implica que seja, exa-tamente por isso, moralizada.

Ainda quanto ao co-pertencimento entre educaçãoe moralidade, que tem implicações diretas com asrelações públicas, Kant considera que, ao elaborar-mos um projeto pedagógico, faz-se necessário aindasabermos se em sua aplicação ele dará certo. Paraisso, é necessário detectarmos seus pontos falhos afim de tentarmos inserir as modificações, o que re-quer que se observe primeiro a sua aplicação na prá-tica, de modo que a experiência nos diga onde, como eporque melhorar; tal procedimento implica, portantoa implementação de escolas experimentais:

Crê-se geralmente que não é preciso fazerexperiência em assuntos educacionais eque se pode julgar unicamente com a ra-zão se uma coisa será boa ou má. Quantoa isso erra-se muito e a experiência ensi-na que as nossas tentativas produziramde fato resultados opostos àqueles que es-perávamos. Vê-se, pois, que sendo nesseassunto necessária a experiência, nenhu-ma geração pode criar um modelo com-pleto de educação (KANT, AK. p.451,trad. p. 29).

Podemos afirmar que, entre os importantes ele-mentos que podem ser retomados da pedagogiakantiana, um constitui, especificamente, um elementopropulsor para a retomada de Kant na atualidade: ofato de seu projeto pedagógico ser motivado pela pre-ocupação com o melhoramento, com o aperfeiçoamentodo seu modelo didático e moral, o que implica a res-ponsabilidade política de cada geração para com asgerações futuras.

Nessa direção, se a educação é pensada como for-mação, ela contribui para a legitimação da práxispolítica, enquanto é condição do aperfeiçoamento dasrelações públicas, porque o princípio da publicidadepossibilita a passagem da teoria do direito à práxisda política, tendo em vista os interesses do povo esuas exigências morais: aqui destacamos um nexopossível entre a educação e a segurança pública.

Nesse sentido, podemos dizer que a plausibilidadeda relação entre a educação e o conceito positivo deespaço público se fundamenta numa proposta peda-gógica pautada em princípios éticos, o que promove-ria a formação de sujeitos livres, condição indispen-sável para o efetivo exercício da publicidade, umavez que, para Kant, na moral, tudo o que é corretopara a teoria deve também valer para a prática.

7 Cf. Idee zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, (oitava proposição)

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Sobre a autoraSônia Barreto Freire é doutora em Filosofia pela UNICAMP. Professora de Filosofia no Departamento deFilosofia da Universidade Federal de Sergipe. Atua nas áreas de Filosofia Moderna e Contemporânea. Émembro pesquisador do NEPHEM e coordena o Grupo de Estudos Kant – NEPHEM. É membro da SociedadeKant brasileira, do Grupo Criticismo e Semântica – UNICAMP e da Sociedade Brasileira de Fenomenologia.

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O ensino de filosofia

Vladimir de Oliva Mota

Resumo:O que se pretende aqui é indicar uma resposta à pergunta: “ensinar história da filosofia é ensinar filosofia?”,esboçando a defesa da seguinte idéia: a história da filosofia é, de fato, o instrumento principal de ensino dafilosofia e, para a filosofia, fonte permanente de inspiração. Com esse propósito, é preciso legitimar a históriada filosofia enquanto filosofia e, conseqüentemente, o ensino da história da filosofia como ensino de filosofia,tendo em vista que ensinar filosofia é ensinar história da filosofia, pois história da filosofia é filosofia.Palavras-chave: História da filosofia; Filosofia; Ensino.

The teaching of philosophy

Abstract:The intention here is to indicate an answer to the question: “Is to teach History of Philosophy to teachPhilosophy?”, an outline for the following idea: the History of Philosophy is indeed the main tool in theteaching of Philosophy and, for Philosophy, source of permanent inspiration. With this purpose, there is aneed to legitimate the History of Philosophy as Philosophy and, consequently, the teaching of History ofPhilosophy, as the teaching of Philosophy, once teaching Philosophy is teaching History of Philosophy, becauseHistory of Philosophy is Philosophy.Keyword: History of philosophy; Philosophy; Teaching.

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Vladimir de Oliva Mota

A defesa da idéia, segundo a qual ensinar históriada filosofia é ensinar filosofia, passa pela discussãoda seguinte questão: a da legitimidade da história dafilosofia, enquanto filosofia, e, conseqüentemente, darelação dessa história com seu ensino, como ensinode filosofia; ou seja, é preciso responder à pergunta:“história da filosofia é filosofia?” Caso a resposta sejanegativa, não se ensina filosofia pela sua história,porque não é possível ensinar filosofia pelo que elanão é. Caso seja positiva, é preciso explicar por queensinar história da filosofia é ensinar filosofia.

Parte-se aqui do seguinte pressuposto guéroultia-no: “a história da filosofia é, antes de tudo, filosofia”1.Todavia, para Guéroult2, a legitimidade da históriada filosofia é, periodicamente, colocada em dúvida e,por conseguinte, também o ensino de filosofia via suahistória. Mas o que inspira essa dúvida? Segundo esseautor, essa dúvida é inspirada em dois sentimentosingênuos, a saber: a) de que qualquer filosofia só épossível pela negação ou, até mesmo, pela ignorânciadas doutrinas passadas, pois a filosofia partiria deuma reflexão autônoma mais ou menos genial; b) deque a filosofia é semelhante à ciência e, por essa ra-zão, como a única ciência válida é sempre a maisrecente, a única filosofia válida deveria ser tambéma mais recente.

Entre os múltiplos exemplos, na tradição filosófi-ca, da crítica à legitimidade da história da filosofiaenquanto filosofia e do ensino, dessa história, comoensino de filosofia, são levados em consideração aqui,em caráter ilustrativo, dois pensadores representati-vos da tradição filosófica que se inspiram no senti-mento ingênuo de que qualquer filosofia só é possívelpela negação ou pela ignorância das doutrinas passa-das: Descartes e Nietzsche.

Para Descartes, a relação da filosofia com a suahistória só pode ser de oposição absoluta. AsseguraCarlos Alberto Ribeiro de Moura: “E Descartes nãodeixará de lembrar que o procedimento histórico écontrário ao científico, já que ter a ciência de algonão é conhecer historicamente, não é ser informadosobre o objeto, mas é reconstruí-lo pelo entendimen-to”3. Essa exclusão é evidenciada na obra cartesiana,por exemplo, na regra III das Regras para a direçãodo espírito:

Mesmo que fossem [os filósofos] todos deuma nobreza e de uma franqueza extre-mas, nunca nos fazendo engolir coisasduvidosas como verdadeiras, mas nos ex-pondo tudo com boa fé, como, entretan-to, mal um avança uma idéia outro apre-senta a contrária. E de nada serviria con-tar os votos para seguir a opinião garan-tida pelo maior número de autores, pois,se se trata de uma questão difícil, é antesmais crível que sua verdade tenha sidodescoberta por um pequeno número doque por muitos. Mesmo que todos esti-vessem de acordo, seu ensinamento nãonos bastaria: nunca nos tornamos mate-máticos, por exemplo, [...] se nosso espí-rito não for capaz de resolver todas espé-cie de problemas; não nos tornaríamosfilósofos, por ter lido todos os raciocíniode Platão e de Aristóteles, sem poder for-mular um juízo sólido sobre o que nos éproposto. Assim, de fato, pareceríamos teraprendido, não ciência [entenda-se filo-sofia], mas história4.

1 GUÉROULT, Martial. Revue de métaphisyque et morale. Apud GOLDSCHMIDT, Victor. Tempo histórico e tempológico na interpretação dos sistemas filosóficos. In: A religião de Platão. Tradução Ieda e Oswaldo Porchat Pereira.São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. p. 140.

2 Cf,: GUÉROULT, Martial. Le problème de la légitimité de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoirede la philosophie (Livre I). Paris: Vrin, 1956.

3 MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. História stultitiae e história sapientiae. In: Racionalidade e crise: estudos dehistória da filosofia moderna e contemporânea. São Paulo: Discurso Editorial; Editora da UFPR, 2001. p. 24.

4 DESCARTES, René. Regras para a orientação do espírito. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: MartinsFontes, 1999. p. 12.

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Carlos Alberto Ribeiro de Moura explica que Des-cartes não apenas deseja que a verdadeira ciênciaocupe o lugar da falsa – da erudição; mas o filósofonão vê nenhuma utilidade na leitura dos clássicos econdena toda cultura baseada no estudo da tradição.

Pois, como o melhor método para adqui-rir o conhecimento é encontrar por si mes-mo as verdades [...], mesmo que o saberestivesse depositado nos livros, seria per-da de tempo buscá-lo ali. E ele consideraaté mesmo prejudicial a freqüentação aopassado, que faz sempre que corramos orisco de nos habituarmos aos erros dosantigos e não nos livramos mais deles5.

Ensinar filosofia pela sua história, nesta perspec-tiva, enfraquece o espírito; para Descartes, consagrarmuito tempo às letras é um vício da educação.

A crítica de Nietzsche à história da filosofia, en-quanto via de acesso ao ensino de filosofia, é, como sepode esperar, a marteladas, mais dura. Na III Consi-deração intempestiva: Schopenhauer educador6,Nietzsche afirma que a história do passado nunca foitarefa do verdadeiro filósofo. Conseqüentemente, casoum professor de filosofia se encarregue de trabalharhistória da filosofia, pode-se dizer dele, no máximo,que é um bom filólogo ou um bom historiador, nuncaque é um filósofo. Para Nietzsche, nos trabalhos eru-ditos dos “filósofos universitários”, só se encontrammuito tédio e pouco rigor científico. Conclui CarlosAlberto Ribeiro de Moura acerca dessa posiçãonietzscheana:

A filosofia não se confunde com a históriada filosofia e, ao ministrá-la aos jovens, o

máximo que se consegue é desencorajá-losde ter uma opinião pessoal, exibindo-lhes‘o amontoado confuso de todas as opini-ões’. Pior ainda, parte-se de uma imagembem extravagante do que seja educaçãofilosófica, quando se quer introduzir noespírito juvenil dezenas de sistemas filo-sóficos seguidos de dezenas de críticasdesses sistemas7.

Admitindo o argumento cartesiano, conseqüente-mente, o ensino de filosofia pela sua história consisteem afastar-se da filosofia; esse sucedâneo de pensa-mento, que é a história da filosofia, só atinge umaúnica meta: ridicularizar a própria filosofia e entra-var a ação da verdadeira filosofia.

Todavia, para Martial Guéroult, esses diagnósti-cos do ensino de filosofia pela sua história – tais quaisos de Descartes e Nietzsche – são frutos daincompreensão do que é a verdadeira história da filo-sofia. Isto é, semelhantes diagnósticos são resultadosda redução da história da filosofia à doxografia; nessesentido, a história da filosofia seria uma disciplinaerudita sem qualquer interesse filosófico. Diz CarlosAlberto Ribeiro de Moura a esse respeito:

Reduzida a uma coleção de ‘opiniões filo-sóficas’, das quais se analisa o modo peloqual se produziram e se apresentaram nasérie do tempo, essa ‘história exterior’ [poisvista de “fora” da particularidade de cadasistema] tem todas as características deuma galeria de bobagens ou, pelo menos,dos erros em que o homem se lança com opensamento [...]: em face do amontoadodas diversas opiniões e dos muitos siste-mas, não se sabe a qual deles se prender,

5 Cf.: MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. História stultitiae e história sapientiae. In: Racionalidade e crise: estudos dehistória da filosofia moderna e contemporânea. Op. ci. p. 24-25.

6 Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Nietzsche. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: Escritos sobreeducação. Tradução Noéli Correia de M. Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.

7 MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. História stultitiae e história sapientiae. In: Racionalidade e crise: estudos dehistória da filosofia moderna e contemporânea. Op. ci. p. 13.

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e o indivíduo fica embaraçado; a toda opi-nião de um grande, outra opinião a refu-ta, outro grande espírito a contradiz...Como escolher? Agora a multiplicidadedos sistemas funciona como razão paraum ceticismo preguiçoso, que vai usaressa diversidade de sistemas e a impossi-bilidade de escolher entre elas como pro-va da inutilidade da filosofia. [...] Ora, nãoé nada surpreendente que isso ocorra, seo historiador, travestindo-se de doxógrafo,cortou as relações da história da filosofiacom a filosofia. Sem poder resolver aantinomia aparente entre o eterno e o pe-recível, contida na própria expressão ‘his-tória da filosofia’, o doxógrafo só pode rom-per qualquer relação da história da filoso-fia com a filosofia, fazendo da história ter-ritório de mera erudição8.

Guéroult percebe que, desde Aristóteles, o métodode análise da história da filosofia não parte da experi-ência histórica para descobrir, graças ao conhecimentodas condições de possibilidade dessa experiência, aessência do tipo de verdade que é seu fundamentoúltimo (isto é, o valor da filosofia e de sua história:sua “sistemática própria”, seu “sentido filosófico”); maspara conferir à história da filosofia uma consistêncianecessária, fixou-se, tradicionalmente, seu objeto edefiniu-se o conceito mesmo de filosofia em geral: par-tindo de uma definição a priori, desce aos fatos paraexplicá-los pela conseqüência de um princípio. O alvode Guéroult aqui é Hegel. Certamente, pensaGuéroult, o gênio dialético hegeliano acomoda-se me-lhor a um método sistemático dessa natureza9. Toda-via, esse método tradicional não contorna a seguinteobjeção: com que direito, no ponto de partida da in-

vestigação, substituir uma doutrina particular da fi-losofia, anunciando com antecedência o que essa dou-trina “deve ser”, segundo sua essência ideal, para afilosofia tal qual ela é dada na história?

Esse método tradicional não legitima a históriada filosofia, mas a nega! E, por conseguinte,inviabiliza o ensino da filosofia pela sua história. Aoinvés de mostrar uma filosofia toda feita para justifi-car seu sentimento da realidade da história, Hegel,diz Guéroult, “[...] deveria partir desse sentimentopara descobrir pouco a pouco as condições que a tor-nam, ou não válidas”10. Portanto, o inconveniente dométodo tradicional de proceder a investigação da es-sência da história da filosofia é que, segundo tal méto-do, o que se investiga – a essência da história da filoso-fia – é estabelecido antecipadamente e entregue ao ar-bítrio de decisões a priori, subjetivas e individuais11.

Para Guéroult12, aqueles que levam em conta –entre eles, principalmente, Hegel – o conhecimentoprévio da essência da filosofia como condição necessa-riamente preliminar a qualquer consideração sobrea história da filosofia confundiram duas coisas: é cer-to que é impossível tratar da história da filosofia sefalta um “sentido filosófico” (uma “sistemática pró-pria”) que responde à sugestão de doutrinas conser-vadas pela história e, graças ao qual, é possível reco-nhecer tais doutrinas como realidades filosóficas subs-tanciais e vivas. Com efeito, é a esse título que a his-tória as conservou, e não a título de fatos termina-dos, esvaziados de sua seiva como as opiniões dadoxografia. Mas essa urgência, por um “sentido filo-sófico” que responde à sugestão de doutrinas conser-vadas pela história, não significa que a investigaçãofilosófica concernente à história da filosofia suponhacomo condição sine qua non uma “filosofia prévia daessência da filosofia”.

8 Ibidem. p. 20-21.9 Cf.: GUÉROULT, Martial. Introduction: le problème de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire de

la philosophie (Livre II). Op. cit. p. 27.10 Idem.11 Cf.: GUÉROULT, Martial. Le problème de la légitimité de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire

de la philosophie (Livre I). Op. cit.12 Cf.: Idem.

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O “sentido filosófico” que reconhece em cada dou-trina uma vida própria convida a assumi-las, segun-do sua vida respectiva. Uma doutrina particular quedetermine a essência de todas as filosofias como con-dição da solução do problema de sua validade não as-sume as outras doutrinas conforme a vida própria decada uma, mas conforme a sua própria vida. Confun-dir o “sentido filosófico” com uma “condição prévia daessência da filosofia” não apenas nega qualquer pos-sibilidade de ensinar filosofia pela sua história, as-sim como suprime, também, seu objeto, fazendo-oesvaecer-se em si. Existem, nesse caso, tantas filoso-fias da história da filosofia quantas são as filosofias.Elas se excluem reciprocamente umas às outras comoas diversas filosofias. Destinadas a justificar umahistória da filosofia como perenidade de filosofias tem-poralmente indestrutíveis para a consciência filosófi-ca, elas terminam por destruí-la em proveito da vali-dade atemporal e absoluta de uma doutrina particu-lar. Aqueles que levam em conta uma filosofia préviada essência da filosofia para, em seguida, fazer qual-quer consideração sobre a história da filosofia, abo-lem o fato que pretendiam fundamentar, eliminam aprópria história da filosofia.

Contra essa noção de história da filosofia comodoxografia, é preciso afirmar que o estudo da históriada filosofia é o estudo da própria filosofia, e não vernisso tão somente como falta de “sentido filosófico”. Oestudo da história da filosofia possui um interessefilosófico, pois o passado da história da filosofia é rele-vante para a reflexão filosófica do presente. Nessesentido, ensinar filosofia é ensinar história da filoso-fia. Ou, como afirma Guéroult: a história da filosofiaé de fato o instrumento principal de iniciação à filoso-fia e, para a filosofia, fonte permanente de inspira-ção13. Por quê? Para dar essa resposta, é preciso, an-tes, expor o segundo sentimento ingênuo que colocaem dúvida a legitimidade da história da filosofia e do

ensino da filosofia pela sua história: filosofia comosemelhante à ciência.

Nenhuma expressão reúne conceitos mais contra-ditórios do que “história” da “filosofia”: a história é anarração dos acontecimentos com suas datas e arevivescência do passado como tal. A história, comociência, investiga uma explicação objetivamente vá-lida dos fatos que ela examina, sua explicação proce-de de causas particulares. O encadeamento das cau-sas particulares leva a considerar o presente comodependente do passado.

A relação da história da filosofia e a filosofia éespecífica, pois a história da filosofia é filosofia, en-quanto que história da ciência não é ciência.Guéroult explica:

Certamente, a história das ciências, porexemplo, a da física, seria impossível sema intelecção das doutrinas físicas passa-das; mas não é porque elas têm uma talsignificação física que elas são objetos des-sa história, é unicamente por que elas ti-veram tais conseqüências sobre o fato pre-sente que é a física ulterior, a física de hoje.Assim, o físico é, enquanto tal, isto é, en-quanto ávido de verdades físicas, indife-rente à história da ciência14.

O cientista se interessa pela história da ciênciatão somente para evitar erros do passado. De acordocom Guéroult, a filosofia e sua história são indissolú-veis. Assim, a relação história da filosofia e filosofia édistinta da relação história da ciência e ciência. Osenso comum dissipa a filosofia em proveito da ciên-cia e o principal argumento do senso comum é quefalta à filosofia um progresso. Falta à filosofia, se-gundo o senso comum, verdades certas, definitiva-mente adquiridas, porque apenas uma verdade ad-

13 GUÉROULT, Martial. Le problème de la légitimité de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire de laphilosophie (Livre I). Op. cit.

14 GUÉROULT, Martial. Introduction: le problème de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire de laphilosophie (Livre II). Paris: Aubier, 1979. p. 22

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quirida lança ao nada, para sempre, as soluções pas-sadas. Afirma Guéroult:

Ora, o conhecimento de tais verdades [ad-quiridas] só é possível nas ciências positi-vas, seja de demonstração universal, sejade verificação experimental. Apenas nasciências é possível um progresso. [...] Arejeição do passado só é possível para afilosofia sob a condição de um reconheci-mento para ela de um progresso análogoao das ciências positivas15.

Nesse sentido, a história das ciências é inútilpara a ciência, porque apenas conta a ciência atual,aquela da última hora. Por analogia, o senso comumtoma a história da filosofia como devendo ser de ma-gro proveito para a filosofia. E assim, perde-se o sen-tido de ensinar filosofia pela sua história.

A oposição entre ciência e filosofia, aqui ressaltada,advém da presença, na ciência, de verdades adquiri-das, o que não se dá na filosofia. Na ciência, a polêmi-ca não se encontra no plano da história, pois as verda-des adquiridas limitam a polêmica às doutrinas maisrecentes porque são as únicas válidas, a razão disso éque a ciência nada tem a ver com sua história. Umaciência é como tal quando adquire verdade, a ciêncianão é de ontem nem de hoje. Uma ciência só é de on-tem em razão dos erros hoje denunciados que a tor-nam uma não ciência. A história da ciência não pode,então, de nenhum modo, fazer parte da própria ciên-cia. A ciência só possui uma história do progresso, por-que é a história da aquisição da verdade; o que estiverafastado da verdade, o que lhe for estranho, não per-tence à história da ciência, isto é, ao processo de aqui-sição da verdade. A história da ciência é a história dasdescobertas e não dos erros, pois esses só são conheci-dos como tais em virtude das descobertas.

Conseqüentemente, conclui-se que: primeiro, é aciência que esclarece e fecunda a sua história e não ocontrário; segundo, o ensino da ciência se faz atravésde sua prática. Se se admite a associação entre filoso-fia e ciência, ensinar filosofia seria não ensinar a suahistória, mas ensinar a última novidade, a última“descoberta filosófica”. O que não tem sentido, poisnão é possível legitimar o ensino de filosofia atravésde sua produção mais recente quando é levada emconsideração fundamental dessa legitimação a idéiasegundo a qual, assim como a ciência, a única filoso-fia válida é a mais recente porque, ao contrário daciência, em filosofia, há a possibilidade de se atribuirà filosofia do passado a “verdadeira filosofia”, o quelhe dá uma autonomia frente às “verdades adquiri-das da ciência”. Afirma Guéroult:

Toda filosofia [...] coloca-se [...] como umaconstrução autônoma do pensamento abs-trato, construção pela qual trata de [...]fornecer a razão última das coisas ou dese pronunciar sobre a possibilidade defornecê-la. Ela enuncia princípios e teori-as de uma generalidade máxima. É essen-cialmente sistemática, [...] as doutrinasfixam uma verdade declarada de sistema-tização explícita [...] ou [...] proclamam avontade inversa. [...] Em nome da contra-dição mesma de todo pensamento filosófi-co, elas [as doutrinas] permanecem sem-pre [...], organismos nos quais todas aspartes se comandam mutuamente e depen-dem do todo harmonioso que elas consti-tuem. A vontade de sistema não é senão,em todo caso, a de não se contradizer e deempregar o máximo de rigor na afirma-ção filosófica16.

15 Ibidem. p. 29.16 Ibidem. p. 31-32.17 Ver, por exemplo: D’ALEMBERT, Jean Le Rond. Discours préliminaire de l’Encyclopédie. Paris: Gonthier, 1965.

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É preciso lembrar aqui a distinção entre “espíritode sistema” e “espírito sistemático” , estabelecido porD’Alembert, Diderot, Condillac, dentre outros17: a sis-tematização do conhecimento – o desejo de coerência– não significa, necessariamente, um espírito de sis-tema, isto é, verdade declarada de sistematizaçãoexplícita, a concatenação da explicação do mundo apartir de princípios a priori. Não obstante tal distin-ção, em ambos os casso, há o desejo de não se contra-dizer em suas afirmações filosóficas, é essa relaçãoharmônica entre os enunciados que se está chaman-do de sistema. Uma doutrina não possui um princí-pio sistemático quando se constitui fora de uma orga-nização interna e coerente dos pensamentos, sem umprincípio diretor, ainda que secreto, de tal coerência.

A filosofia é autônoma, pois é a “ciência” de imu-tável, uma vez que a filosofia se apresenta como umesforço de criação radicalmente independente e origi-nal. A condição mesma de sua possibilidade é o exer-cício da razão na sua autonomia, liberada do jugo dastradições, dos preconceitos, das autoridades, do lega-do de um passado morto18. Então: com que direitotratar a filosofia como um acontecimento ligado aopassado? Como reincorporar em uma série temporalo que se coloca como verdade última, uma e sempre amesma, além das vicissitudes de todo o devir? En-fim: como falar de uma história da filosofia? É pelacaracterística de imutável que a filosofia se distingueda história, ciência da mudança. O que a filosofiaconstrói, constrói em nome da razão, diz Guéroult:

ou segundo princípios ou regras as quaisela atribui um valor universal. Ora, a evi-dência racional é por definição a evidên-cia eterna. Mesmo quando utiliza materi-ais antigos [textos antigos], o filósofo tema consciência de que elabora um conjunto

cujo elenco [...] e a estrutura lhe são for-necidos pela razão atemporal19.

As doutrinas filosóficas pretendem impor umaverdade à universalidade dos seres racionais,

recorrendo apenas a evidências, análises,demonstrações que dependem diretamen-te da razão, ou que a razão assume indi-retamente ao habilitar fatores irracionaiscomo elementos de prova, ou como viasde acesso […], os conceitos e os raciocíni-os são para o filósofo o meio, não simples-mente de comunicar sua doutrina, […]mas de construí-las para si mesmo e torná-la válida aos seus olhos. Por meio deles,não traduz uma intuição original caída docéu, mas promove uma intuição e umaforma de intelecção à qual ele se sente ne-cessariamente forçado a aderir como auma verdade20.

Segundo Guéroult21, a filosofia e sua históriasão indivisíveis, independente da forma que possa serconcebida, essa história é sempre e ao mesmo tempofilosófica. História da filosofia é aqui tomada comodepositário de um conteúdo próprio que faz com quecada doutrina, independente de sua significação his-tórica, encerre uma matéria eternamente instrutivado ponto de vista filosófico. “Donde se conclui que:restituir à história da filosofia seu valor próprio é adistinguir inteiramente da história das ciências”22. Ahistória da filosofia é uma seqüência de doutrinas,cujo valor histórico, do ponto de vista filosófico, é quecada uma possui um sentido. Em razão dessa defini-ção, a história da filosofia deve aparecer como objeto

18 Cf.: GUÉROULT, Martial. Introduction: le problème de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire dela philosophie (Livre II). Op. cit.

19 GUÉROULT, Martial. Introduction: le problème de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire de laphilosophie (Livre II). Op. cit. p. 39.

20 GUÉROULT, Martial. Método em história da filosofia. Tradução Leandro Sardeiro. In: Philosophica: revista defilosofia da história e modernidade. Op. cit.. p. 140 (grifos do autor).

21 Cf.: GUÉROULT, Martial. Le problème de la légitimité de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoirede la philosophie (Livre I). Op. cit.

22 Ibidem. p. 18

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privilegiado da filosofia. Se a história conserva essasdoutrinas como objeto, porque elas têm um sentidofilosófico, “é, evidentemente, na medida em que a his-tória da filosofia é filosofia que ela [a história da filo-sofia] é possível”23.

O que se busca numa pesquisa histórica da filoso-fia não são suas verdades históricas, mas a valoriza-ção das capacidades de sugestão filosófica que essaverdade encobre a título de filosofia. Não se trata desatisfazer uma vã curiosidade erudita, nem a umapreocupação em relação à psicologia, sociologia, en-tre outras; mas de assegurar o melhor contato efeti-vo entre o pensamento filosófico do momento e o au-têntico pensamento de outrora, em vista de fortificare de estimular a reflexão filosófica presente.

A filosofia possui uma base sólida: sua própriahistória. Esta é indispensável, porque “fazer filoso-fia” é ingressar em sua história – como explica OlivierReboul24; desta forma, ensinar filosofia é levar o alu-no a perceber que os nossos problemas já foram ven-tilados, que encontraram decerto soluções mais oumenos válidas, mas que, no mínimo, fornece umaestrutura ao nosso debate. A leitura da história dafilosofia adquire, assim, um caráter propedêutico25.

A história da filosofia revela, sobretudo, a cada um,o que pensa de maneira confusa e, por vezes, contradi-tória; permite, assim, levantar os problemas, reconduzira uma reflexão plurissecular que os situa e os esclarece.Agora, a leitura dos clássicos da filosofia assume umcaráter profilático26. A história da filosofia seria para afilosofia, mutatis mutandis, o que as Escrituras são

para os teólogos, a saber: o fundamento sobre o qualpensa. Por conseguinte, salta às vistas o que a distin-gue da tradição religiosa: enquanto o teólogo recebe asEscrituras como uma verdade que deve interpretar, oque a filosofia espera de sua história é uma lição que eladeve começar por compreender, mas que depois tem deretomar discutindo-a, confrontando-a com outras para,finalmente, a aplicar aos problemas de seu tempo27. Naspalavras de Guéroult: as filosofias são “monumentoseternos do pensamento humano, fonte sempre viva,geradora incessante de meditações e luz.”28 Conseqüen-temente, o objeto da filosofia confunde-se com a “ativi-dade do espírito”.29 E assim deve ser ensinada.

Dessa maneira, a filosofia está presa à sua histó-ria, a filosofia não pode se colocar em sua liberdadeautônoma sem se determinar em relação ao que aprecedeu – como filosofia ou não filosofia, segundoum processo de repulsão e de acomodação. O valor dafilosofia e de sua história está na sua sistemática pró-pria que se constrói na busca pela demonstração per-feita, pelo encadeamento irrefutável de conceitos, oque lhe atribui um sentido.

Mas, se nenhuma doutrina pode provar definiti-vamente sua verdade, nenhuma pode, igualmente,refutar definitivamente as outras; em uma palavra:a ausência de verdades adquiridas em filosofia nosleva ao ceticismo? Ou seja, a transformação das dou-trinas em eventos fugazes supõe, conseqüentemente,a negação de sua pretensão comum à verdade filosófi-ca, pois a verdade permanece e não é fugaz. Portan-to, a história da filosofia, do ponto de vista da histó-ria, não parece possível exceto sendo esvaziada de toda

23 Ibidem. p. 21.24 Cf.: REBOUL, Olivier. Filosofia da educação. Tradução António Rocha e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2000.25 Cf.: ARANTES, Paulo Eduardo. Um departamento francês de ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosófica

uspiana (uma experiência nos anos 60). São Paulo: Paz e Terra, 1994.26 Idem.27 Conclui Reboul: “Para filosofar é preciso ir à escola dos filósofos, recordando, todavia, que uma escola é um lugar de

onde se deve sair, uma instituição cujo fim verdadeiro não é apenas aprender tal ou tal verdade, mas aprender apensar. ‘Não se aprende filosofia’ – dizia Kant – ‘aprende-se a filosofar’”(REBOUL, Olivier. Filosofia da educação.Tradução António Rocha e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 11-12).

28 GUÉROULT, Martial. Método em história da filosofia. Tradução Leandro Sardeiro. In: Philosophica: revista defilosofia da história e modernidade. p. 132.

29 Cf.: GUÉROULT, Martial. Introduction: le problème de l’histoire de la philosophie. In: La philosophie de l’histoire dela philosophie (Livre II). Op. cit. p. 21. Importante não confundir aqui filosofia e psicologia. Psicologia é uma ciênciapropriamente dita na medida em que toma como matéria primeira fenômenos, os quais é necessário compreender,como fatos, pelas causas; mas não, como idéias, pelo sentido, caso este da filosofia.

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verdade filosófica. A esse respeito, assim se expressaCarlos Alberto Ribeiro de Moura:

Se é fato que existe uma sucessão históri-ca das doutrinas, sobre o prisma estritoda história ela deverá apresentar-se comouma série de acontecimentos explicáveispor causas. Essa sucessão leva então aoceticismo filosófico: a transformação dasdoutrinas em acontecimentos fugidiossupõe a negação de sua pretensão comouma verdade. Como o historiador da filo-sofia não crê na ‘verdade’ de uma doutri-na mais que na de outra, e como todastêm pretensão exclusiva à verdade, crerem todas é equivalente a negar a preten-são de todas30.

Se todas as doutrinas aparecem como privadas deum conteúdo filosófico válido, que razão subsistirápara as considerar como objetos possíveis de uma his-tória da filosofia? Não se estaria fazendo, assim, his-tória do nada? A resposta é negativa! Trata-se do fatohistórico da subsistência, do ponto de vista filosófico,através do tempo, de filosofias contrárias entre si. Aausência, nessas filosofias, de verdades adquiridas éapenas uma condição da possibilidade de uma sub-sistência, esse elemento constitui-se num princípiopositivo da indestrutibilidade das filosofias.

Para Guéroult, a história da filosofia se legitima– enquanto filosofia – na busca pela interioridade daobra pela qual determinado filósofo apresenta suasrazões, e abandona toda pressuposição de subjetivi-dade; o trabalho do historiador da filosofia deve ser aidentificação das relações internas travadas entre osconceitos apresentados pelo filósofo.

A cada movimento da estrutura, há algu-ma razão determinante para que este con-ceito seja preferido àquele e, então, todafilosofia na verdade é fundada sobre umaordem de razões. Assim, a diferença espe-cífica da filosofia em relação aos demaisramos do saber ocorre no momento mes-mo em que a sua pretensão de verdade atransforma em objeto fechado sobre simesmo31.

Essa é a única via para legitimar a história dafilosofia. É essa, também, um meio de se ensiná-la: abusca pela sistematicidade própria de cada uma dasobras.

Qualquer filosofia – declara Guéroult – só se edificae se torna válida, estabelecendo uma doutrina da qualse extrai uma “verdade de juízo” (uma “representa-ção do real” que se esforça por validar como concor-dando com o real, explicando-o em seus fundamentosautênticos) construída pela teoria. A teoria visa sem-pre, portanto, a uma “verdade de juízo”. Essa filoso-fia é indestrutível para a história da filosofia e para oseu ensino, pois é objeto eternamente válido para umareflexão filosófica possível. Por conseguinte, talindestrutibilidade não pode ser fundamentada numa“verdade de juízo”, não se trata de perceber se a ver-dade de uma doutrina se adéqua à coisa que ela pre-tende representar e penetrar, pois as doutrinas secontradizem todas (todas possuem “direito à cidada-nia”). Assim, o valor filosófico não pode residir naverdade de juízo que cada filosofia visa, mas na vali-dade que possui, ou não, para uma reflexão possível.Esta é a direção de seu ensino. As obras filosóficasmantêm-se indestrutíveis por uma verdade interna(uma “sistemática própria”, a coerência da obra) in-teiramente diferente de sua pretensa “verdade de

30 MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. História stultitiae e história sapientiae. In: Racionalidade e crise: estudos dehistória da filosofia moderna e contemporânea. Op. cit. p. 27.

31 SARDEIRO, Leandro. Apresentação a: GUÉROULT, Martial. Método em história da filosofia. Tradução LeandroSardeiro. In: Philosophica: reviste de filosofia da história e modernidade. p. 129-130.

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juízo”. Muito embora a preocupação de cada filosofiaseja com a “verdade de juízo”.

Portanto, ensinar história da filosofia é ensinarfilosofia, quando se pretende procurar as condiçõesque tornam possível a indestrutibilidade das históri-as da filosofia (isto é, a “sistemática própria”, a coe-rência da obra), ou seja, procurar de que maneira,em cada filosofia, há a instauração de uma verdadeintrínseca, independente de toda “verdade de juízo”.A disciplina indicada por Guéroult para tal atividadechama-se “Dianoemática”, isto é, uma disciplina quese refere às condições de possibilidade das filosofiascomo objeto de uma história possível; em uma pala-vra: “Dianoemática” é a filosofia das filosofias dadasde fato.

Seguindo o caminho interpretativo de JeanMaugüé, é possível perceber que a filosofia não seapresenta como um conjunto de conhecimentos obje-tivamente transmissíveis – como as matemáticas,por exemplo, que são um conjunto de proposições ver-dadeiras, dedutivamente encadeadas independentesda arte de serem transmitidas aos estudantes. Omesmo não se pode dizer da filosofia, o que dificultaseu ensino é que este vale o que vale o pensamentodaquele que a ensina: “A filosofia é o filósofo” 32. Con-tudo, entre as condições requeridas para o ensino dafilosofia (primeira é a exigência de uma cultura pré-via, vasta e precisa), encontra-se aquela que indicaque a filosofia vive no presente. Para Maugüé, “não écorajosamente filósofo senão aquele que cedo ou tardeexpressa seu pensamento acerca das questões atu-ais.”33 Mas então, como relacionar o ensino da filoso-fia com sua história? Maugüé assegura que não hánada mais atual do que Platão, Descartes e outros.Por quê? Porque

a filosofia deve conhecer-se a si mesma,deve reconhecer-se no seu passado. Destemodo, os prolegômenos de toda filosofiafutura são o conhecimento da filosofia vi-vida, aquela que nos transmite a história.Esta nos proporcionará grandesensinamentos. O ensino da filosofia deve-rá ser, pois, principalmente histórico [nascondições já aqui explicadas para alegitimação dessa história da filosofia, istoé, como busca da instauração da verdadeintrínseca]. Será a seguir mais segura-mente contemporâneo. [...] As transposi-ções do passado ao presente se farão porsi, uma vez desperto o espírito do estu-dante34.

É possível que a seguinte dúvida seja gerada emalgum aluno, sobretudo, nos iniciantes: que interes-se há em reavivar o trato com pensadores comoHeráclito, Platão, Santo Agostinho, Voltaire, entreoutros? Uma resposta possível seria a seguinte: es-ses autores dão um sentido a uma época, são eles quetornarão uma época consciente, diz Maugüé:

fazendo com que ela [a época] possa aferiro que tem ganho em poder sobre a nature-za, em clareza na inteligência e em justiçana vida moral. Em navegação, a posição eas novas rotas são dadas em referência acertos astros, considerados fixos. Os filó-sofos clássicos são os pontos fixos da his-tória. Se o presente não se situar exata-mente em relação ao passado, será comoum navio que perdeu a rota35.

Enfim, quando se diz que o ensino da filosofia deverepousar sobre o conhecimento da história da filoso-

32 MAUGÜÉ, Jean. O ensino da filosofia: suas diretrizes. In: Revista brasileira de filosofia. São Paulo. Vol. V, FascículoI, Outubro-Dezembro, 1955. p. 643.

33 Ibidem. p. 645.34 Idem.35 Ibidem. p. 646.

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fia, é necessário que se entenda: a história da filoso-fia não é uma recapitulação de doutrinas, uma espé-cie de lista de nomes ilustres aos quais se distribui-ria, segundo uma justiça universitária, o elogio ou acensura. Conclui Maugüé:

A história da filosofia consiste na retoma-da do contato, na comunhão com os gran-des espíritos do passado. Platão, São To-más de Aquino, Espinosa ainda são vivos

em seus textos. Causa surpresa, e até in-dignação, observar como quase em todaparte se ensina filosofia, sem que se leiamos filósofos. [...] É certo que a filosofia setrai a si mesma quando negligencia aque-les que efetivamente a representaram. Nãose pode todavia imaginar proveito maiordo que aquele que nos dá o contato, quenos dá a familiaridade e, logo, a afinidade,com as inteligências do passado. O ensino– e aqui ele escapa completamente ao pro-fessor – será, não apenas histórico, massobretudo pessoal e íntimo. Um estudanteapenas pode considerar-se no caminho dafilosofia no dia, mais só no dia em que, nosilêncio do seu quarto de estudo, começa ameditar por si mesmo sobre algum trechode um grande filósofo36

36 Ibidem. p. 645-646.

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Sobre o autor:Vladimir de Oliva Mota é doutorando em Filosofia (USP); professor da FACE/FANESE e do SeminárioMaior Nossa Senhora da Conceição/Aracaju; coordenador do Grupo de Estudos de História da Filosofia Moder-na (NEPHEM/UFS) e membro do GT Filosofia da Educação (NPGED/UFS).

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As dificuldades da tarefa educativa na civilização, segundo Rousseau

Lidiane Brito Freitas

Resumo:O objetivo deste artigo é analisar como Rousseau estabelece um nexo entre natureza e civilização, no queconcerne ao papel da educação como possibilidade de orientar o homem no curso de suas ações. Ao formularuma educação natural, Rousseau não descarta a necessidade de uma formação que engloba aspectos oriundosdo processo civilizatório. Essa educação tem a função de equilibrar as diferenças entre a natureza e a socieda-de, permitindo que o homem entre no mundo da cultura, sendo guiado pelos princípios da natureza. Fazeruma incursão pelos clássicos da filosofia rousseauniana – Discursos, Contrato Social, Emílio ou da Educaçãoe Júlia ou a Nova Helöísa – possibilitará uma reflexão rigorosa sobre conceitos necessários à construção deum entendimento acerca da possibilidade de superação do impasse estabelecido entre natureza e civilização.Palavras-chave: Natureza; Civilização e Educação.

The difficulties of educational task in civilization, according to Rousseau

Abstract:The aim of this paper is to analyze how Rousseau establishes a link between nature and civilization, in whatconcerns the role of education as a possibility of guiding men in the course of their actions. When creating anatural education, Rousseau does not forget the need of an education that encloses aspects from the civilizingprocess. That education has the task of balancing the differences between nature and society, allowing man toget into the world of culture, being guided by the principles of nature. Studying the classics of Rousseau’sphilosophy - Discursos, Contrato Social, Emílio ou da Educação e Júlia ou a Nova Helöísa – is going to allowa rigorous reflection upon necessary concepts to the construction of an understanding about the possibility ofovercoming the established problem between nature and civilization.Key-words: Nature; Civilization and Education.

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Lidiane Brito Freitas

Os representantes do século das Luzes identifi-cam a educação como um instrumento de melhoriadas condições de vida dos homens. A preocupação coma formação do homem burguês encontra, nesse sécu-lo, um ambiente propício para as novas diretrizes queserão traçadas, a fim de promover a sua efetiva par-ticipação nos direcionamentos da sociedade.1

Ao formular um processo educativo capaz de ga-rantir ao homem o pleno desenvolvimento de todasas suas potencialidades, Rousseau teoriza uma situ-ação em que o homem vive de acordo com os preceitosda natureza por não contrair os vícios oriundos davida civilizada. Diante da concepção pedagógica, quevaloriza e resgata os princípios da natureza, pode-secompreender o lugar de destaque, que tem Rousseau,no contexto do movimento iluminista.

Ao construir, logicamente, um estado que não exis-te, que nunca existiu e que talvez jamais existirá,Rousseau não vislumbra, em nenhum momento, avolta ao estado natural (mesmo que fosse possível),como alguns pensadores interpretaram, muitas ve-zes, ironicamente2. Teorizar um estado em que acorrupção não faz parte das relações entre os seme-lhantes permite construir um argumento sobre oselementos originários da natureza, sem a influênciados aspectos corruptores da vida social. A simplicida-de dos costumes denunciava como era radicalmentediferente o homem natural que, bastando-se a si pró-prio, não necessitava utilizar-se das mais diversasestratégias para conviver com os seus semelhantes.

Não se pode refletir sobre os costumes semse comprazer com a lembrança da ima-gem da simplicidade dos primeiros tem-pos. É uma bela praia, ornada unicamen-te pelas mãos da natureza, para a qual in-cessantemente se voltam aos olhos e da

qual com tristeza se sente afastar-se. Quan-do os homens inocentes e virtuosos ama-vam ter os deuses como testemunhas desuas ações, moravam juntos na mesmacabana, mas, assim que se tornam maus,cansaram-se com esses espetáculos incô-modos e os isolaram em templos magnífi-cos (ROUSSEAU, 1978a, p. 346).

No estado pré-civil, o homem não tinha porque seservir de todas as potencialidades que o capacitariama garantir melhores condições de vida, uma vez que oseu único objetivo era lutar pela sobrevivência. Ali-ás, nesse estado, ele não possuía a moralidade quefaria dele um ser com consciência e razão. Pela ne-cessidade de aprimorar capacidades adormecidas noestado de natureza, torna-se imprescindível que ohomem, imerso na sociedade, utilize essas capacida-des para agir e melhor conduzir as suas ações.

Embora nesse estado se prive de muitasvantagens que frui da natureza, ganhaoutras de igual monta: suas faculdadesse exercem e se desenvolvem, suas idéiasse alargam, seus sentimentos se enobre-cem, toda a sua alma se eleva a tal ponto,que, se os abusos dessa nova condição nãoo degradassem freqüentemente a uma con-dição inferior àquela donde saiu, deveriasem cessar bendizer o instante feliz quedela o arrancou para sempre e fez, de umanimal estúpido e limitado, um ser inte-ligente e um homem (ROUSSEAU, 1978b,p. 36).

Na sociedade, as disposições originárias da natu-reza perdem fortemente a influência no modo de vi-

1 O século das Luzes pode, também, ser considerado o Século da Pedagogia pelas importantes e decisivas discussõestravadas pelos seus representantes no que tange ao papel da educação. Os iluministas atribuem à educação umvalor imprescindível por acreditarem que, a partir de um ensino voltado para as reais necessidades do educando,poder-se-ia preparar a humanidade para uma era de desenvolvimento em todas as dimensões inerentes à constituiçãodo ser humano.

2 Este é o caso de Voltaire. Cf. VOLTAIRE. Carta de Voltaire a Rousseau. Revista Arca. Edição organizada porDorothée de Bruchard. Porto Alegre: Paraula, 1994, p. 55.

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ver do homem. Ele passa a valorizar mais as necessi-dades surgidas com o convívio do que aquelas que lheproporcionavam um estilo simples de vida, como é ocaso da luta pela conservação. Portanto, abre-se ocaminho para a corrupção dos costumes: o homempassa a desejar coisas que vão além da satisfação dassuas necessidades básicas.

Desperta necessidades e paixões que o ho-mem natural jamais conheceu e coloca-lhenas mãos os recursos sempre novos parasaciá-las sem freios. A sede de dar o quefalar de si, a ânsia de se distinguir dosoutros: tudo isso nos torna incessante-mente estranhos a nós mesmos, tudo issonos transporta, de certo modo, para forade nós mesmos (CASSIRER, 1992, p. 217).

Por produzir um cenário, no qual os homens sedistinguem radicalmente dos seus semelhantes, afas-tando-os da condição natural, a sociedade recebe umasevera crítica pelo fato de ser, para Rousseau, a res-ponsável por muitos males que assolam o gênero hu-mano. Contudo, ele ressalta a importância de seaprender a conviver em sociedade, já que a passagempara esse estado é um acontecimento inevitável.

A partir das considerações acerca da maneira pelaqual o homem atua em sociedade, é importante des-tacar a forma artificial encontrada pelos homens paraconseguirem conviver com todos os elementos consti-tuintes do estado social, tendo em vista o desenvolvi-mento de novas disposições e sentimentos própriosda convivência. Acerca do modo artificial de se viverno ambiente social, é possível assinalar:

As “falsas luzes” da civilização, longe deiluminar o mundo humano, velam a trans-parência natural, separam os homens unsdos outros, particularizam os interesses,destroem toda possibilidade de confiançarecíproca e substituem a comunicação es-sencial das almas por um comércio factícioe desprovido de sinceridade; assim se cons-titui uma sociedade em que cada um seisola em seu amor-próprio e se protege

atrás de uma aparência mentirosa(STAROBINSKI, 1996, p. 35).

Quando Rousseau pensa uma educação da na-tureza, ele quer assinalar a necessidade de que oprocesso formativo desenvolva, desde a infância, asdisposições originais, no intuito de que o homemnão se corrompa pelos diversos elementos existen-tes na vida civil. O pensamento pedagógicorousseauniano aponta para uma valorização do serinfantil em toda sua espontaneidade, delineandouma nova maneira de conceber uma educação apro-priada às crianças.

Compreender a infância como uma fasedeterminante na vida do ser humano possibilita umaposição contrária ao discurso pedagógico da época, oqual identificava a criança como um adulto em mini-atura, sem necessidade, portanto, de um tratamentodiferente do que fora estabelecido pelos métodos deensino vigentes. Proclamar a especificidade infantilsignifica, para Rousseau, respeitar a ordem da natu-reza no que concerne ao ritmo de desenvolvimento dacriança.

A natureza [...] quer que as crianças se-jam crianças antes de serem homens. Sequisermos alterar essa ordem, produzi-remos frutos precoces que não terão nemmaturidade nem sabor e não tardarão acorromper-se; teremos jovens doutores evelhas crianças. A infância tem manei-ras próprias de ver, de pensar, de sentir,que lhe são próprias. Nada é menos sen-sato do que a elas querer substituir asnossas e preferiria exigir que uma crian-ça tivesse cinco pés de altura a exigir quetivesse julgamento aos dez anos(ROUSSEAU, 1994, p. 486).

A formulação clássica sobre o estado de naturezapermite estabelecer uma comparação com a fase an-terior ao pleno desenvolvimento físico, intelectual emoral, que se constitui no ponto de partida de todoprocesso formativo do indivíduo. Por conseguinte, iden-tificar a imaturidade infantil não como uma defor-

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mação, mas como um estágio a ser desenvolvido gra-dualmente, empreende uma revolução nos princípiosque nortearão a educação das crianças.

Ao propor não apenas que a infância é umafase autônoma e diferente da vida adulta,com características próprias que devem serrespeitadas, que o menino não é um “adul-to defeituoso” e sim um microcosmo au-tônomo; mas muito mais que isso, que acriança é superior ao adulto porque ela,com sua inocência natural, tem em si o“estado de natureza” que, para Rousseau,é a condição original de existência: a in-fância é inocente como o “estado de natu-reza” (HILSDORF, 1998, p. 77).

A preocupação de que o uso das faculdades nãoseja antecipado constitui-se numa das principais re-comendações feitas por Rousseau no Emílio. Ele com-preende que as faculdades são despertadas e estimu-ladas no momento certo, momento este que é prescri-to pela natureza. Todavia, a atitude de apressar asatividades do intelecto conduz a uma distorção noprocesso de constituição do ser infantil. A criançapossui um ritmo de desenvolvimento próprio que nãopode ser contrariado, a menos que se queira formarum indivíduo incapaz – física, mental e moralmente– de encarar as adversidades próprias da vida.

Tratai-a pois conforme sua idade, apesardas aparências, e evitai esgotar suas for-ças exercitando-as demais. Se aquele jo-vem cérebro se esquenta, se virdes que estácomeçando a ferver, deixai-o primeiro fer-mentar em liberdade, mas não oprovoqueis jamais, para que nem tudo seexale; e, quando os primeiros espíritos seevaporarem, retende, comprimi os outros,até que com os anos tudo se transformeem calor vivificante e em verdadeira for-ça. Caso contrário, perdereis vosso tempoe vosso trabalho, destruireis vossa própriaobra e, depois de vos terdes indiscretamen-te embriagado com todos esses vapores in-

flamáveis, só vos restará um resíduo semvigor (ROUSSEAU, 1999, p. 111).

Admitir que antes da razão outras faculdades de-vem ser plenamente aprimoradas, tornar-se-ia a prer-rogativa daqueles que desempenham a importantetarefa de educar o homem. Em vista disso, os profes-sores devem ser pacientes no que se refere ao uso darazão, pelo fato de ser uma faculdade que necessitade um tempo maior para se desenvolver completa-mente.

Por conseguinte, a razão é uma faculdade que fazdo homem um ser singular pelo fato de proporcionar-lhe a capacidade de orientar as suas ações, haja vistaque, aliada à liberdade, ela promove a formação deum ser autônomo. Apesar de ser a responsável poralguns males, é com o desenvolvimento da razão queo homem consegue aprimorar-se moralmente.

Só a razão nos ensina a conhecer o bem eo mal. A consciência que nos faz amar aum e odiar o outro, embora independenteda razão, não pode, pois, desenvolver-sesem ela. Antes da idade da razão, faze-mos o bem e o mal sem sabê-lo, e não hámoralidade em nossas ações, embora àsvezes ela exista no sentimento das açõesde outrem que se relacionam conosco(ROUSSEAU, 1999, p. 53).

Entendendo a razão como uma faculdade impor-tante para a constituição de um ser bem formado, oque distingue Rousseau dos demais iluministas? In-vertendo o pólo norteador do movimento – a plenaconfiança nos poderes da razão –, ele identifica o sen-timento como o verdadeiro princípio do conhecimen-to. “O aspecto específico e peculiarmente novo queRousseau proporcionou a sua época parece residir nofato de libertá-la do domínio do intelectualismo. Àsforças do entendimento reflexivo nas quais se baseiaa cultura do século XVIII, ele opõe a força do senti-mento” (CASSIRER, 1999, p. 81).

Ao receber o prêmio da Academia de Dijon, res-pondendo negativamente à questão proposta: “Orestabelecimento das Ciências e das Artes terá con-

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tribuído para aprimorar os costumes?”, Rousseaucritica o princípio, dominante na época, de ser a ra-zão o instrumento que conduziria a humanidade aodesenvolvimento filosófico, intelectual, cultural e po-lítico. E o desenvolvimento moral?

A tese de que o progresso científico e intelec-tual não levou os homens a um aperfeiçoamento mo-ral permite compreender o lugar ocupado por Rousseauao questionar o curso do processo civilizatório. A ati-tude de criticar as bases teóricas do Iluminismo, de-nunciando o mal desencadeado pelas ciências e pelasartes, evidencia a repercussão que a sua primeiragrande obra filosófica teve no círculo dos ilustrados ea importância das suas reflexões no conjunto de idéi-as do século das Luzes. “O Discurso sobre as ciênciase as artes, que marca a estréia de Rousseau na car-reira literária, é a acusação do mal – do veneno – queatinge as sociedades civilizadas à medida que progri-dem as funestas luzes, as vãs ciências”(STAROBINSKI, 2001, p. 163-164).

Não menos surpreendente que o fato de alguémque fizera parte do grupo dos iluministas tenha ata-cado ferozmente o princípio organizador do movimentoé a decisão da Academia de Dijon – instituição querepresenta a República de Letrados – de dar o prêmioa um pensador que se insurgiu contra ela. Dessemodo, poder-se-ia identificar o estabelecimento demais um dos paradoxos recorrentes na trajetória in-telectual de Rousseau?

Como ousar censurar as ciências peranteuma das mais sábias companhias da Eu-ropa, louvar a ignorância numa Academiacélebre e conciliar o desprezo pelo estudocom o respeito pelos verdadeiros sábios?Reconheci estes obstáculos e eles de modoalgum me demoveram. Não é em absolu-to a ciência que maltrato, disse a mim mes-

mo, é a virtude que defendo perante ho-mens virtuosos. É mais cara a probidadeàs pessoas de bem do que a erudição aosdoutos (ROUSSEAU, 1978a, p. 333).

Não obstante a vida e a obra do filósofo se mescla-rem, é importante atentar para o fato de que a argu-mentação rousseauniana, acerca da civilização, pos-sui a consistência necessária para se proceder à res-posta de tão importante questão. A fim de identificara relação entre a vida e a obra do filósofo, pode-seencontrar, nas Confissões, a passagem na qual elenarra o momento de iluminação que culminou nonascimento da sua primeira obra filosófica: o Discur-so sobre as Ciências e as Artes.

Naquela ocasião lembro-me perfeitamen-te de que, ao chegar em Vincennes, estavanuma aflição que raiava o delírio. Diderotpercebeu-a; expliquei-lhe a causa e li paraele a prosopopéia de Fabricius, escrita alápis debaixo dum carvalho. Aconselhou-me a dar largas às minhas idéias e a con-correr ao prêmio. Assim o fiz e desde en-tão fiquei perdido. O resto todo de minhavida e minhas infelicidades foram o inevi-tável efeito daquele momento de desvario(ROUSSEAU, s/d, p. 375).

Nesse sentido, torna-se relevante indagar: qual opapel da educação? Como é possível o ato de educar oindivíduo para que este participe efetivamente da so-ciedade? Em suma, qual o papel da educação na críti-ca à civilização empreendida por Rousseau?

Ao desferir um golpe contra as ciências, ou me-lhor, ao uso que delas fazem os responsáveis pela edu-cação dos homens, Rousseau empreende um sérioquestionamento à função da educação3 numa socie-

3 Semelhante à crítica da educação civilizada empreendida no Primeiro Discurso, Rousseau faz um severo julgamentoacerca da educação da sua época no Emílio: “Não posso encarar como instituição pública esses ridículosestabelecimentos chamados colégios. Tampouco considero a educação da sociedade, pois, tendendo essa educação adois fins contrários, não atinge nenhum dos dois; só serve para criar homens de duas faces, que sempre parecematribuir tudo aos outros, e nunca atribuem nada senão a si mesmos” (ROUSSEAU, 1999, p. 12-13).

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dade civilizada. Quando promove uma crítica à soci-edade “iluminada”, o filósofo também se posicionacontra a educação do seu tempo. Por conseguinte, jáno Primeiro Discurso é evidenciado o prejuízo queuma educação má orientada pode causar no processode formação do indivíduo.

Se a cultura das ciências é prejudicial àsqualidades guerreiras, ainda o é mais àsqualidades morais. Já desde os primeirosanos, uma educação insensata orna nossoespírito e corrompe nosso julgamento. Vejoem todos os lugares estabelecimentos imen-sos onde a alto preço se educa a juventudepara aprender todas as coisas, exceto seusdeveres (ROUSSEAU, 1978a, p. 347).

Segundo Rousseau, uma verdadeira educação temcomo finalidade formar o homem para a vida. Nessesentido, a relação estabelecida entre a educação danatureza, das coisas e a dos homens tornar-se-á fun-damental para um entendimento sobre um processoformativo que contempla todas as dimensões da exis-tência humana, produzindo um sujeito autônomo econsciente do seu papel na sociedade da qual ele éparte integrante.

A educação da natureza apresenta-se como o pro-cesso em que a criança precisa fortalecer a sua cons-tituição física, demandando, para tanto, uma ativi-dade educativa que estimule tal fortalecimento. Eladeve ser estimulada, desde a mais tenra idade, a tra-balhar todas as suas potencialidades, no sentido deformar um organismo são, forte e preparado para asdiversas adversidades.

Em relação à educação das coisas, Rousseau com-preende a aprendizagem através dos princípios peda-gógicos da observação, associação e expressão; logo, apartir desses três princípios, funda-se um conheci-mento, a partir do concreto para o abstrato. Ele ain-da salienta a importância de que, nessa fase prepara-tória, a criança se depare com as próprias coisas an-tes de elaborar um juízo mais sólido acerca delas.

Os processos de aprendizagem se desen-volvem então em três momentos funda-

mentais: a “observação”, que é o ponto departida de todo conhecimento, que deveser colocada no centro da atividade esco-lar, cujo lema deve ser “poucas palavras,muitos fatos”, usando-se um material bas-tante variado que deve ser manipulado eobservado diretamente pela criança; a “as-sociação”, que organiza, embora de formaelementar, o ambiente que a criança ob-servou na direção do espaço e do tempo,dando lugar aos conhecimentos fundamen-tais da geografia e da história; a “expres-são” que pode ser concreta ou abstrata: aprimeira refere-se aos trabalhos manuais,à modelagem e ao desenho: a segunda, àlinguagem, ou seja, à leitura e à escrita(CAMBI, 1999, p. 528).

Depois da educação sensitiva, tem-se a educaçãointelectual, que começa com a constituição de umarazão sólida. Pode-se perceber que, antes dessa fase,Rousseau não fala de educação positiva, uma vez queantes dos quinze anos a razão do homem ainda seencontra em estágio de amadurecimento. Antes des-sa idade, Rousseau condena uma educação puramen-te livresca e erudita, tecendo uma crítica severa aoslivros que, neste momento, não permitem às crian-ças apreender as informações contidas neles, masapenas exercitam a memorização.

Odeio os livros; eles só ensinam a falar doque não se sabe. Dizem que Hermes gra-vou em colunas os elementos das ciênci-as, para pôr suas descobertas ao abrigode um dilúvio. Se as tivesse bem gravadona cabeça dos homens, ter-se-iam conser-vado por tradição. Cérebros bem prepara-dos são os monumentos onde com segu-rança se gravam os conhecimentos huma-nos (ROUSSEAU, 1999, p. 232).

A partir dos quinze anos, começa a educação doshomens, na qual as noções morais e sociais já podemser trabalhadas, posto que, a essa altura, o alunotem condições de estabelecer um juízo sobre os ho-

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mens e suas relações em sociedade. Através de al-guns ensinamentos, Emílio adquire preceitos impor-tantes para a sua inserção na vida coletiva como, porexemplo, o respeito ao bem alheio.

Qual o objetivo da educação na apreciação, a res-peito dos progressos da civilização? O que a educaçãopode fazer no sentido de proporcionar o aprimoramentodo indivíduo em todos os aspectos, sobretudo o mo-ral? Se Rousseau entende que o desenvolvimento dasciências relegou a uma posição subalterna o progres-so moral, como o processo educativo pode promoveruma melhoria da humanidade? Eis estabelecido oparadoxo da civilização: chegou-se a um alto nível deaperfeiçoamento técnico, intelectual, e cultural; con-tudo, a dimensão que seria primordial para se consi-derar uma época iluminada foi seriamente sacrificadaem prol de uma confiança ilimitada na razão: a di-mensão moral.

Quando Rousseau promove uma investida contraa razão, é interessante ressaltar que esse ataque éempreendido não à faculdade em si mesma, mas aomau uso que dela fizeram os responsáveis pela orga-nização da sociedade. Por conseguinte, Rousseau dáà razão o lugar que melhor convém à sua condição;isto não quer dizer que o seu papel seja minimizado;mas, antes, ordenado de acordo com os preceitos danatureza humana.

Um erro comum a todos os pais que crê-em ter luzes é o de supor que desde o nas-cimento seus filhos sejam capazes de raci-ocinar, e de falar-lhes como homens antesmesmo que saibam falar. A razão é o ins-trumento que se pensa usar para instruí-los enquanto os outros instrumentos de-vem servir para formá-la e enquanto, detodas as instruções próprias do homem,aquela que ele adquire mais tarde e commais dificuldade é a própria razão(ROUSSEAU, 1994. p. 486).

Analisar a filosofia da educação de Rousseau ébuscar a compreensão sobre um processo de forma-ção do indivíduo capaz de proporcionar-lhe as condi-ções viáveis, ou melhor, primordiais para uma efeti-

va participação na sociedade. Repensar a educaçãopermite a Rousseau estabelecer um novo parâmetropara o entendimento acerca das especificidadesconcernentes à infância e ao ato de educar.

A infância – natural por definição – prin-cipia desde cedo a ser degenerada pelanódoa de uma sociedade de máscaras econstrições. A espontaneidade seria veda-da em um modelo de educação pautadopela vigilância do social sobre o natural.O custo disso seria, sem dúvida, a felici-dade. Para Rousseau, pelo contrário, ha-via que se buscar no homem o homem ena criança a criança. Com maneiras pró-prias de olhar e de sentir, a infância seria,ainda, objeto a ser descortinado. Substi-tuir o olhar infantil pela razão adulta se-ria perturbar a maturação natural exigidapela ordem do tempo (BOTO, 1996, p. 28).

Como formar o homem para o convívio? Como con-ciliar a natureza e os acréscimos da civilização? Comoencontrar um ponto de equilíbrio entre dois conceitosinconciliáveis? Uma educação deve equilibrar a ten-são entre a natureza e a sociedade, uma vez queRousseau formula uma educação que insere o homemno mundo da cultura, permitindo que o mesmo sejaorientado mediante os preceitos da natureza.

Investigar como se dá a educação em Rousseau étravar uma forte discussão sobre o papel de uma for-mação que busca preparar o homem através do de-senvolvimento de todas as potencialidades inerentesà sua natureza. Nesse sentido, o Discurso sobre asCiências e as Artes apresenta-se como uma dura crí-tica à civilização e à educação de seu tempo pelo fatode Rousseau entender que os iluministas privilegia-ram o aspecto intelectual, na formação do indivíduo,em detrimento do aspecto moral, identificado, por ele,como o verdadeiro responsável pela melhoria dos ho-mens.

Diante dessa constatação, Rousseau formula umaeducação que possibilite o contato do homem com a na-tureza. Essa educação tem como finalidade proporcio-nar as condições para que ele possa viver em sociedade

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sendo afetado, o mínimo possível, pelos elementos quepromovem a degeneração dos princípios originais. Ele-mentos como a desigualdade e o amor-próprio são consi-derados como responsáveis pelo progressivodistanciamento do homem da natureza. Por essa ra-

zão, Rousseau assinala a necessidade imperiosa de li-dar com o impasse estabelecido entre natureza e civili-zação a partir de um entendimento sobre a importânciade uma educação que reaproxime o homem de sua na-tureza, reorientando elementos próprios da vida civil.

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Revista Tempos e Espaços em Educação, UFS, v. 3, p. 47-56, jul./dez. 2009

BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre oIluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo:UNESP, 1996.

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Referências

Sobre a autora:Lidiane Brito Freitas é licenciada em Filosofia e mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe.Atualmente é doutoranda em Educação pela mesma universidade. É professora da Faculdade Amadeus. Mem-bro do Grupo de Trabalho Filosofia da Educação (NPGED/UFS) e do Grupo de Estudos de História da FilosofiaModerna/NEPHEM.E-mail: [email protected]

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O Dicionário Filosófico de Voltaire: arma em favor da educação

Christine Arndt de Santana

Resumo:Este artigo tem como objetivo expor a razão de ser o Dicionário Filosófico, obra de Voltaire, publicada em1764, uma arma eficaz em favor da educação, formação da humanidade. Para tanto, apresenta a análise dealguns de seus verbetes, com o objetivo de sustentar a tese de que a preocupação primeira de Voltaire era coma instrução dos homens. Nesse sentido, ao escrever suas obras, o Patriarca de Ferney estava em consonânciacom a Ilustração e seu projeto pedagógico-civilizatório, traçado para o gênero humano.Palavras-chave: Voltaire; Dicionário Filosófico; Educação.

Voltaire’s Philosophic Dictionary: a weapon in favor of education

Abstract:The aim of this article is to explain the purpose of the Philosophic Dictionary, Voltaire’s work, published in1764, an effective weapon in favor of education, humanity training. To achieve this goal, it presents theanalysis of some of the dictionary entries, in order to sustain the thesis that Voltaire’s first concern was withthe instruction of men. Accordingly, when writing his works, the Patriarch of Ferney was in line with theIllustration and its project of educate and civilize, planned to mankind.Keywords: Voltaire; Philosophic Dictionary; Education.

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Christine Arndt de Santana

O que defendia Voltaire em seu combate? Questi-ona-se Berl, em seu “Préface” à obra Mélanges. Res-posta: no início, o bom gosto1. Voltaire estava persua-dido de que, como dissera nas Cartas Filosóficas, apoesia seria a “[...] eloqüência singela [...]”2. Ele re-provava a má linguagem e os maus escritos e nãoduvidava que regras edificadas pela razão encontra-vam-se na arte. “O talento lhe importa menos do quea verdade [...] ele trabalha não para bem escrever,mas para bem pensar”3. Porque o que está nas entre-linhas de suas obras é o projeto que a Ilustração tra-çou para o gênero humano; ou seja, o principal objeti-vo de Voltaire estava pautado na sua determinaçãoem educar, através de seus livros, de sua literatura,os homens; uma vez que ela, a literatura, pode trans-mitir valores morais caros à sobrevivência da socie-dade.

Lanson, em sua Histoire de la LittératureFrançaise, disse que Voltaire era o “[...] filósofo ne-cessário a um mundo de burocratas, de engenheirose de produtores”4. De acordo com a perspectiva queeste texto segue, no que diz respeito à função educativaque a literatura possui, essa necessidade ocorre jus-tamente porque a literatura tem esse caráter peda-gógico específico, no sentido de que ela encarrega-sede educar moralmente os homens. Especificar buro-cratas, engenheiros e produtores, é deter-se em pro-fissionais que geralmente estão à frente de cargosimportantes em uma sociedade; que têm sob sua res-ponsabilidade a vida de centenas de milhares de pes-soas e, por conta disso, têm a obrigação de se condu-

zirem, da melhor maneira possível, no que diz res-peito ao comportamento moral. Porém, estes buro-cratas, engenheiros e produtores, na maioria das ve-zes, não recebem uma formação no sentido amplodesse termo, no sentido grego de paidéia5. Dessa for-ma, aposta-se na educação doméstica que essas pes-soas receberam de seus pais. Contudo, por se tratarde uma aposta, tudo pode acontecer. E, quando o queestá em jogo é a subsistência de uma sociedade, é amelhor maneira de se viver de forma comum, é afelicidade do homem; os resultados precisam ser, parao bem de todos, os melhores possíveis, tendo em vistao bem-estar da coletividade. Logo, o estilo voltairiano;sobrecarregado pedagogicamente, já que seu autordeseja, através de sua pena, educar; pauta-se nas re-gras edificadas pela razão para poder confeccionar asua arte literária e, assim, preocupar-se mais com obem pensar do que com o bem escrever, uma vez que oprimeiro, conseqüentemente, levará ao segundo.

Pomeau também lança uma questão: se Voltairenão teria filosofado em verso. E como Berl, ele mes-mo responde, explicando que sim e dando como exem-plo alguns poemas voltairianos com temas filosófi-cos6. Ele diz que estes textos são pouco lidoscontemporaneamente, e afirma que, para demons-trar seu pensamento, Voltaire possui um meio maiságil que a poesia: a prosa7. Mas, mesmo utilizando-seda prosa, há, na obra voltairiana uma constante: aprimazia do literário8. Esta primazia ocorre por con-ta de um estilo, de uma opção que ele faz, uma vezque esta maneira escolhida para escrever seus textos

1 BERL, Emmanuel. “Préface”. In:VOLTAIRE. Mélanges. Paris: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1995. p. XIII.2 VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção “Os

Pensadores”). p. 42.3 BERL, Emmanuel. “Préface”. In:VOLTAIRE. Mélanges. Op. cit.. p. XV.4 LANSON, Gustave. Histoire de la Littérature Française. Apud: POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Paris: Seuil,

1970. p. 187.5 Paideía significa: “Educação ou cultivo das crianças, instrução, cultura. O verbo paideúo significa: educar uma criança

(paîs-paidós em grego), instruir, formar, dar formação, dar educação, ensinar os valores, os ofícios, as técnicas, transmitiridéias e valores para formar o espírito e o caráter, formar para um gênero de vida. Da mesma família é a palavrapaidéia, ação de educar, educação, cultura”. (CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia dos pré-socráticosa Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994. Volume I. p. 356.). (grifo nosso).

6 Alguns exemplos são: Epître à Julie (1722); Epître à Uranie (1734), que é Mme du Châtelet; Discours em vers surl’homme (1745) e La loi naturelle. Cf.: POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltairepar lui-même. Paris:Éditions Complexe, 1994. VIII.

7 Id.8 Ibid., p. XIII.

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permite que ele alcance seu objetivo último: esclare-cer os homens, educá-los. E é esta primazia do literá-rio que permite que a função educativa da literaturase exerça nos textos de Voltaire.

Juntamente com o artifício do literário, usado parafins pedagógicos, Voltaire sabe se utilizar das boasregras da retórica9: ele opta, muitas vezes, por finaisabruptos, como acontece em Le Siècle de Louis XIV(1751), Micrômegas (1752), O Branco e o Negro (1764),Cândido (1759). Vale ressaltar: não é somente esseartifício literário que é encontrado nos textosvoltairianos. Estes estão repletos de outras técnicas10,utilizadas a serviço da primazia do literário que, comofora dito, possui função específica no plano que Voltairetraçou para o ofício pedagógico de suas obras.

Como indicado, o intuito de Voltaire, que está pre-sente em todos os seus escritos, é esclarecer os ho-mens, educá-los. É importante chamar a atenção parao fato de que o autor das Cartas Filosóficas fez uso dediversas formas de expressões literárias para difun-dir seu pensamento, para colocar em prática o proje-to pedagógico-civilizatório da Ilustração.

Várias nações que durante muito tempotiveram chifres e ruminavam começamagora a pensar. Quando chega o tempode pensar, é impossível tirar dos espíritosa força que adquiriram; [...] É a liberdadede pensar que faz eclodir, entre os ingle-ses, tantos livros excelentes; porque os

espíritos foram esclarecidos, foram co-rajosos11.

Nesse mesmo texto, Voltaire indica as contribui-ções dos philosophes que possibilitaram a Ilustração,ao produzirem “[...] os escritos sólidos [...] que ridi-cularizaram a tolice dos nossos pais que de agora emdiante é impossível que seus filhos sejam tão tolosquanto eles”12.

Seus contos também são testemunhos do pro-jeto ilustrado. Através da fala de seus personagens,Voltaire expõe, a seus leitores, o que estes precisamaprender. Em Memnon ou a sabedoria humana, con-siderado por Sérgio Miliet um esboço do Cândido13,Voltaire explica que é impossível ao homem alcançara perfeição e que, portanto, não cabe a ele lamentar-se. Outro aspecto levantado pelo “Patriarca de Ferney”é o que diz respeito à autonomia dos seres humanos.Memnon diz: “[...] tenho com que viver independen-temente; esse é o maior dos bens”14. Em o Ingênuo(1767), mais uma vez aparece, agora na voz do Hurão,a importância da autonomia nas linhas voltairianas:

O Ingênuo respondeu-lhe que não tinhanecessidade do consentimento de nin-guém; que lhe parecia extremamente ridí-culo ir perguntar a outros o que deviamfazer; que quando dois estão de acordo,não há necessidade de um terceiro paraacomodá-los15.

9 Deve-se entender retórica como o estilo utilizado para convencer, ou seja, a expressão literária a serviço, no casoespecífico de Voltaire, da filosofia; é o uso da literatura para instruir, esclarecer, educar os homens. Sobre esteconceito de retórica como sendo o estilo usado para persuadir, ver: REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. TraduçãoIvone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção “Justiça e Direito”). XIII.

10 Tais técnicas são elencadas por Auerbach e podem ser assim resumidas: colocar o problema desde o primeiromomento, fazendo com que a solução que se espera já esteja na colocação; “iluminar” de maneira excessiva umaparte pequena de um todo, deixando o resto na “escuridão”, resto este que serviria de contrapeso do que foi “clareado”;simplificação dos problemas, tornando a velocidade da narrativa extremamente alta e o uso constante de metáforas.(Cf.: AUERBACH, Erich. “A ceia interrompida”. In: Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 4ªed. Tradutores não nomeados. São Paulo: Perspectiva, 2002 (Coleção “Crítica”). p. 360-362).

11 VOLTAIRE. “Réflexions sur les sots”. In: Mélanges. Op. cit.. p. 353. (grifo nosso).12 Ibid., p. 355. (grifo nosso).13 MILLIET, Sérgio. “Nota introdutória ao conto ‘Memnon ou a sabedoria humana’”. In: VOLTAIRE. Contos. Tradução

Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2005. p. 175. Miliet afirma que este conto, juntamente com o Discours em vers surl’homme (1745), “[...] formam um conjunto de conselhos sobre a arte de bem viver”. (Id).

14 Ibid., p. 177.15 Ibid., p. 394.

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Christine Arndt de Santana

A importância da utilidade, para o movimento ilus-trado, é uma preocupação do Ingênuo. Quando eleconversava com um alto funcionário do exército, as-sim se expressou: “[...] Numa palavra, quero ser útil:que me empreguem e me promovam”16. Assim, a pre-ocupação de Voltaire com a educação dos homens semantém presente nos seus escritos; tanto os propria-mente literários quantos os que não possuem, neces-sariamente, essa característica.

Em 28 de setembro de 1752, na sala de refeiçõesdo castelo do soberano Frederico II, deparara-se reu-nido um grupo de intelectuais que, após o jantar, ini-ciara uma conversação. Num determinado momentodo diálogo, tais intelectuais decidem escrever um di-cionário contra os preconceitos, a superstição e o fa-natismo. Voltaire, que era um dos participantes des-sa reunião, entusiasmou-se mais do que os outros e,nos dias que se seguiram, redigiu os verbetes: Abraão,Alma, Ateu, Batismo, Juliano, Moisés. Os outros par-ticipantes da interlocução esqueceram-se do projeto;o que acabou dando mais estímulo ao philosophe.Demoram alguns anos para que o dicionário fiquepronto, porque, mesmo sendo um escritor fecundo erápido, Voltaire debruça-se sobre outras tarefas, o queacaba tomando um pouco do seu tempo. Em 1764,publica-se o primeiro volume dessa obra, intituladaDicionário Filosófico. Esse escrito causou escândalo.Foi condenado em Genebra, Amsterdã, Paris e teveum exemplar queimado, juntamente com La Barre17,na fogueira, já que ela, a obra, tinha sido condenadapelos poderes secular e laico. Contém 118 artigos emsua forma definitiva.

Voltaire, descrente acerca da eficácia da Enciclo-pédia, persuadido de que 20 volumes in-folio não fa-riam a revolução, e que são os livros de bolso os temi-dos na grande batalha contra a Infame, adota a fór-mula do dicionário, que lhe parece adaptável ao com-bate – uma vez que ele pretende criticar e ridiculari-zar as crenças oficiais (civis e eclesiásticas), o poderestabelecido e o costume dos poderosos, além de edu-car os homens. Ele não permanecia estrangeiro àstendências editoriais, uma vez que o século XVIII é a“idade de ouro” dos dicionários. Ao lado da Enciclopé-dia de Diderot e D’Alembert, surgiram vários livrosdessa natureza18. Em 18 de fevereiro de 1760, ele anun-cia a Mme du Deffand19 que está trabalhando em umdicionário de idéias. Absorvido por esse projeto, ren-de-se ele mesmo à ordem alfabética (apesar dadescontinuidade aparente de temas, uma vez que es-tes não parecem estabelecer nenhuma relação entresi), para falar sobre tudo o que ele deve pensar sobreeste mundo e o outro20. O primeiro título dessa obrafoi La Raison par alphabet. Em 1760, ele adota otítulo Dicionário Filosófico.

Do artigo “Abraão” ao artigo “Virtude”,esta obra, que escolheu a descontinuidadealfabética, está estruturada, em profundi-dade, por sua orientação anti-religiosa.Três quintos dos artigos são consagradosà crítica judeu-cristã. Os outros se divi-dem entre artigos puramente filosóficos,como “Bem (tudo está)”; “Cadeia dos Acon-tecimentos”; “Fim, Causas Finais”; “Idéia”;

16 Ibid., p. 404.17 La Barre foi um jovem brutalmente condenado por cantarolar, na rua, canções consideradas ímpias; e, também, por

não ter tirado o chapéu quando passava, por ele, uma procissão.Voltaire expõe, resumidamente, essa história emsua obra Tratado sobre a Tolerância (1763), que tem como mote um outro caso de intolerância cometido na França, ocaso Calas.

18 VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE. Dictionnairede la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXV. Sobre essa afirmação, ver também: TROUSSON, Raymondet al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Bruxelle: Hachette, 1994. p. 54.

19 Em 24 de março de 1760, Mme du Deffand responde à carta de Voltaire, acerca do Dicionário Filosófico, que lhe foraenviada. Assim ela se expressa: “Aquilo que chamais de escritos requentados, senhor, proporcionaram-me muitoprazer; deveríeis enviar-me alguns artigos do dicionário de vossas idéias, seria delicioso, e me faria pensar. [...]Enviai-me alguns artigos de vosso dicionário, peço-vos de joelhos; cuidai de meu divertimento; sou a alma maisabandonada do purgatório deste mundo.” (DU DEFFAND DE LA LANDE, Marie Anne de Vicky Charmond. Cartasa Voltaire. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Mandarim, 1996. p. 39-41). (grifo nosso).

20 TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Op. cit.. p. 54.

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“Liberdade”; artigos de conotação políti-ca, como por exemplo “Igualdade”; “Esta-dos, Governos”; “Mestre”; “Tirania”; arti-gos que tratam sobre problemas judiciais,como “Leis”; “Tortura”. Outros que tra-tam de questões relativas à psicologia hu-mana, como “Amor-próprio”; “Amizade”;“Glória”; “Orgulho”. O eixo principal é oda denúncia de imposturas, absurdos,horrores da Bíblia, do estabelecimento doCristianismo, da instrução religiosa.Voltaire dessacraliza o Livro, do qual elecontesta a inspiração divina [...]21.

Segundo Trousson, este Dicionário é filosófico,no sentido em que o século XVIII entendia algo comofilosófico. Para Voltaire, ele deveria gerar uma “revo-lução nos espíritos”, fundada sobre o “[...] exercícioda razão, da lucidez crítica que permite se desfazerdos preconceitos, libertar-se de antigas sujeições, pen-sar livremente”22. Vista dessa ótica, a filosofia não émais um domínio reservado a especialistas, mas umaatividade própria dos homens, das pessoas, (deshonnêtes gens). “Esses devem se ‘transformar emphilosophes sem se vangloriarem de o ser’”23.

Nessa obra, - primeiro livro de bolso da história24,para facilitar sua circulação e manuseio, que foradistribuído, dentre outros lugares, em bancos de pra-ça, possibilitando o acesso a todos, - muitos verbetes

versam sobre a necessidade da educação. A própriamaneira em que a obra foi preparada e veiculada étestemunha da preocupação de Voltaire em educaras pessoas. Esse livro tem um propósito: criticar eridicularizar as crenças oficiais (civis e eclesiásticas),o poder estabelecido e os costumes dos poderosos. Se-gundo Voltaire, no prefácio que ele escreveu para umadas edições do Dicionário, esse é um livro útil, pois,“Os livros mais úteis são aqueles que deixam espaçoao trabalho dos leitores; eles entendem os pensamen-tos dos quais lhe apresentamos o gérmen; eles corri-gem o que lhes parece defeituoso e fortalecem pelassuas reflexões o que lhes parece fácil”25.

A estratégia de Voltaire, ao colocar “[...] tudoem dicionário26”, faz com que os assuntos se tornemmais atrativos, chamando, dessa forma, a atenção doleitor. Além disso, ao praticar essa estratégia em seusescritos, ele concentra todas as suas forças em umúnico ponto: “Ele pensa por artigos. [...] O movimen-to do espírito de Voltaire o condenaria ao dicionário:por natureza, sua razão é uma ‘Razão por alfabeto’”27.As grandes obras desse autor são organizadas,construídas em trechos, extratos curtos sobre umdeterminado assunto, que tem em seu título o anún-cio do que cada um desses trechos irá tratar. Estafragmentação seria, em efeito, um perigoso instru-mento de polêmica. Porém, não se deve deixar de con-siderar que, apesar de aparentemente sem nenhumarelação entre si, esses extratos fazem parte de um

21 Ibid., p. 54-55. Quando Trousson diz que a obra em questão é uma “descontinuidade alfabética”, a descontinuidadese refere aos temas e não à ordem alfabética em si.

22 Ibid., p. 55.23 Id.24 Versaille explica que entre 1770 e 1772, isto é, após a publicação do Dicionário Filosófico, Voltaire abandona a idéia

de livro de bolso e publica Questions sur l’Encyclopédie, em nove volumes. Contudo, o princípio dos fragmentosordenados alfabeticamente é mantido. Este estilo de Voltaire não é um artifício literário gratuito. Dessa forma, elediscute de maneira direta e familiar com o leitor e o convida a refletir com ele. De acordo com Pomeau, Voltairetransformou o artigo de dicionário em gênero literário. Apesar da suposta desordem, da suposta falta de continuação,suas obras apresentam uma coerência, mesmo que redigida em fragmentos. Seus artigos podem ser lidosautonomamente e em seqüência. Isso ocorre, também, nas Cartas Filosóficas, seu primeiro ensaio, no qual tecereflexões sobre questões da sociedade; em Commentaire sur le livre ‘Des délits e des peines’; em Filósofo Ignorante, entreoutras obras. “Tudo se passa como se este princípio da descontinuidade na continuidade fosse a melhor maneira,para Voltaire, de se explicar”. (VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.”In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXVII.).

25 VOLTAIRE. “Préface”. In: Dictionnaire Philosophique. Paris: Garnier-Flammarion, 1964. p. 20.26 POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. VIII.27 POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 92-93.

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todo, alicerçando-o, de modo que à retirada de qual-quer um deles, “[...] todo o edifício vem abaixo”28. Essafragmentação, relativamente arbitrária, é auto-sufi-ciente, visto que “[...] abre-se o volume à letra que sequer. Benefício da descontinuidade: lê-se um artigosem se associar daquele que o precedeu ou que o se-gue”29. A disposição por artigos apresenta a vanta-gem de recolher o real em sua desconcertante diver-sidade. O “patriarca de Ferney” acumulara muitomaterial para as suas grandes obras. A partir de todoesse saber, anteriormente recolhido, Voltaire diver-te-se com sua “Raison par alphabet”30. Ele assim clas-sifica essa obra: “[...] honestas reflexões alfabéticas[...]”31.

A ordem alfabética oferece uma leitura que nãonecessariamente precisa ser continuada, seqüencial,dando a possibilidade de retornos, comparações entrealguns artigos. Voltaire preconiza, com isso, uma lei-tura ativa.

Esse dicionário de idéias, que se dá porobjetivo, de maneira clássica, a instruçãoe o prazer, pertence à literatura. Ele visamenos à exposição de um saber do que àapresentação, sob forma de ensaio ou delivre proposta, opiniões, humores e refle-xões de Voltaire32.

Estrategicamente falando, seu autor explora muitasformas, nessa obra. Todas elas tendem a fazer do Dicio-nário uma máquina de guerra de perigosa eficiência.

“Eu escrevo para agir”, proclama Voltaire.Obra de uma arte freqüentemente sutil,sempre surpreendente, o Dicionário Fi-

losófico é profundamente militante. Oautor ousa pensar sem temor e, anima-do de uma vontade pedagógica, elepretende aprender [ensinar] a pensar aoseu leitor de boa fé33.

Mesmo que os seus ledores não sejam capazes decompreender seus artigos na íntegra, ao menos elesterão achado que se instruíram se divertindo.Versaille, ao tratar da necessidade que Voltaire pos-suía de compreender e de se fazer compreender, afir-mou que mesmo espantando-se, maravilhando-se etentando dar conta do mundo, este philosophe não foium homem contemplativo.

Diante das crenças estabelecidas, dos há-bitos de pensar, dos automatismos inte-lectuais, este bisneto de Sócrates não párade raciocinar para fazer refletir seu leitor:“É um grande prazer colocar sobre o pa-pel seus pensamentos, de compreender bemclaro, e esclarecer os outros, esclarecen-do-se a si mesmo”34.

Não é de se espantar, então, que ele publique umDicionário Filosófico, no qual discute os assuntos queo preocupam e propõe ao seu leitor o fruto de suasreflexões “[...] mais exatamente de suas interroga-ções”35. Portanto, ao se questionar a intenção deVoltaire com a publicação de um dicionário, a respos-ta a esse questionamento nos leva à mesma encon-trada para o motivo da publicação das Memórias36:esclarecer os homens para que essa educação propor-cionasse sua autonomia e, dessa forma, a convivên-cia social fosse a menos penosa possível.

28 Ibid., p. IX.29 Ibid., p. VII.30 POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. X.31 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. 2ª ed. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção “Os

Pensadores”). p. 293. Verbete: Tortura.32 TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Bruxelle: Hachette, 1994. p. 55.33 Ibid., p. 56. (grifo nosso).34 VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE. Dictionnaire

de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXIV. A citação entre aspas simples é uma carta de Voltaire aD’Argenson, escrita em 14 de dezembro de 1770.

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Para que se possa ter uma idéia da intenção deVoltaire em seu Dicionário Filosófico, faz-se necessárioa exposição e análise de alguns de seus verbetes. Com aexposição destes, além de se ter uma visão geral de suafilosofia, tem-se a percepção do caráter pedagógico queessa obra possui. Assim, Voltaire, de um só golpe, di-vulga o seu pensamento e esclarece os seus leitores.

No verbete “Caráter”, Voltaire afirma ser o ho-mem perfectível. A esse respeito, ele assim se expres-sa: “[...] podemos aperfeiçoar, burilar, esconder asvirtudes e os defeitos com o que a natureza nos dotou:nada mais”37. Esse aperfeiçoamento é possível atra-vés da educação. No verbete “Consciência”, o filósofodiz que o homem possui uma disposição para receberprincípios morais e, estes princípios, geram a nossaconsciência. Voltaire, nesta parte do Dicionário Filo-sófico, concorda com o pensamento lockeano, segun-do o qual o homem não possui nem idéias, nem prin-cípios inatos. Em razão dessa constatação, é impor-tante que se dê ao homem uma boa educação, ou seja,que se passe da melhor maneira esses princípiosmorais, para que o homem possa desenvolver suaconsciência da forma mais acertada possível. “Daísegue-se evidentemente precisarmos muito que nosponham na cabeça boas idéias e bons princípios, des-de que possamos usar a capacidade do entendimen-to”38. A nossa consciência é formada pela educação.Voltaire humaniza a consciência e tem como princí-pio filosófico a idéia de que o homem é o que é atravésda educação que recebe:

[...] Resulta disso tudo que só temos a cons-ciência que nos é inspirada pelo tempoe pelo exemplo, por nosso temperamen-to, por nossas reflexões. O homem nas-

ceu sem princípio algum, mas com a fa-culdade [disposição] de receber todos39.

Nesse mesmo verbete, o autor, ao tratar do selva-gem, que não terá nenhum problema de consciênciaao comer outro selvagem que lhe fora dado pelo pró-prio pai, expõe como fundamentos da sociedade civila piedade e o poder de compreender a verdade.

A natureza preveniu contra esse horrordando ao homem a disposição para a pie-dade e o poder de compreender a verdade.Esses dois presentes de Deus são o funda-mento da sociedade civil [...] pais e mãesdão a seus filhos uma educação quelogo os torna sociáveis e conscientes40.

É necessário que o homem receba esses bons prin-cípios, ou seja, receba uma educação para que possaconviver, de maneira pacífica, em sociedade. Casocontrário, não é possível exigir que o homem seja so-ciável. Alguém precisa incitá-lo, criar uma emula-ção, mostrá-lo como viver em comum com outros ho-mens, civilizá-lo.

Uma religião e uma moral puras, conve-nientemente inspiradas, modelam detal forma a natureza humana, que [...] nãose pratica qualquer má ação sem que aconsciência deixe de reprová-la. [...] Nadúvida quanto à bondade ou à maldadede uma ação, abstém-te. [...] É, portanto,muito bom de vez em quando desper-tar a consciência com uma moral quepossa impressioná-los41.

35 Id.36 Memórias é uma obra de Voltaire, considerada por alguns como uma autobiografia. Entretanto, ao se analisar tal

livro a partir do conceito de autobiografia como sendo um texto que coloca o acento sobre quem o escreve, percebe-seque essa obra, assim como todas as outras, tem como preocupação a instrução de seu leitor, e não exposição da vidade Voltaire, seu autor.

37 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Op. cit.. p. 117. Verbete: Caráter.38 Ibid. p. 125. Verbete: Consciência.39 Id. (grifo nosso).40 Id. (grifo nosso).41 Ibid., p. 126-127. (grifo nosso).

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A leitura dos textos voltairianos leva seus leitoresa perceber o projeto ilustrado, do qual Voltaire eraum dos maiores representantes, que pretendeu fazercom que os homens pensassem por si mesmos, com-preendessem o mundo e guiassem suas vidas, tendocomo objetivo o bem da sociedade. Porém, vale res-saltar mais verbetes importantes para que se com-preenda o papel de Voltaire e dos seus companheirosda Ilustração e a relação existente, nesse período, en-tre Literatura e Filosofia – relação essa que determi-na, sobremaneira, o que pretendeu a Ilustração e, maisainda, é a responsável pelos resultados obtidos por essemovimento: a revolução causada nos espíritos.

Em “Letras, Gente de Letras e Letrados”, é possí-vel observar a relação entre filosofia e Universidade.Na França, isso não ocorreu. Os philosophes eramcontrários à Sorbonne. Eles não tiveram vínculos coma Universidade. Assim Voltaire expõe:

As pessoas de letras que mais serviços pres-taram ao reduzido número de entespensantes espalhados pelo mundo são le-trados isolados, os verdadeiros sábios en-cerrados em seus gabinetes que não argu-mentaram nos bancos das universidadesnem disseram coisas pela metade nas aca-demias; e esses têm sido quase todos perse-guidos. A nossa miserável espécie é feita detal maneira, que aqueles que marcham emcaminhos já batidos atiram sempre pedrasaos que ensinam um caminho novo42.

O que resta a esses pseudos letrados, segundoVoltaire, é fazer louvores a pessoas importantes, de-dicar poemas às amantes dos reis, porque os que sepropõem a iluminar os homens são esmagados pelospoderes secular e laico; ou seja, os que “ensinam um

caminho novo”, em razão da inveja daqueles que per-manecem trilhando caminhos “já batidos”, são perse-guidos, rotulados de “espíritos fortes”, “inovadores”,“rebeldes” que têm a ousadia de se deixar seduzirpelas opiniões enganadas dos que têm olhos e duvi-dam da infalibilidade do mestre que, por sua vez, nãopossui o sentido da visão e quer, a todo custo, fazerum juízo das cores43.

A maior desgraça de um homem de letrasnão será talvez tornar-se o objeto dos ciú-mes dos confrades, a vítima da cabala, dodesprezo dos grandes do mundo; a suamaior desgraça é ser julgado por parvos.[...] O homem de letras está sem socorro;[...] Todos os homens públicos pagam tri-butos à malignidade; mas são pagos emdinheiro e em honras. O homem de letraspaga igual tributo sem nada receber; des-ceu à arena por prazer, a si mesmo se con-denou às feras44.

Sendo assim, os homens de letras, os philosophes,não tinham o poder ao seu lado e precisavam, urgente-mente, educar a sociedade para, dessa forma, instau-rar o império da razão, principal objetivo do movimen-to ao qual faziam parte. Ao tornar essa a sua principalfunção, os philosophes, como afirmou Voltaire, conde-naram-se a si mesmos ao covil das feras.

No verbete “Liberdade de Pensamento”, Voltairecria um diálogo, no qual os interlocutores discutemacerca do tema que indica o título. Medroso afirmaque “[...] como não podem condenar-nos a um auto-de-fé pelos nossos pensamentos secretos, ameaçam-nos de sermos eternamente queimados por ordem dopróprio Deus se não pensarmos como osdominicanos”45. E Boldmind, interlocutor de Medro-

42 Ibid., p. 236. (grifo nosso). Verbete: Letras, Gente de Letras e Letrados.43 Ver: VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Paris: Le Livre de Poche, 1994. p. 486.44 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Op. cit.. p. 236-237. Verbete: Letras, Gente de Letras e Letrados. Em sua obra

Memórias, Voltaire explica que os homens de letras só podem ser livres para escrever se tiverem condições financeirasde se manter, se forem independentes. Cf.: VOLTAIRE. Memórias. Tradução de Marcelo Coelho. Rio de Janeiro:Imago, 1995 (Coleção “Lazuli”). p. 59.

45 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Op. cit.. p. 239. Verbete: Liberdade de pensamento.

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so, defende a posição de que se os primeiros cristãosnão tivessem tido a liberdade de pensar, não haveriaCristianismo. Ele diz a Medroso: “A vós apenas cabeaprender a pensar; haveis nascido com espírito; [...]Quem não sabe geometria, pode aprendê-la; qualquerhomem pode instruir-se [...] Ousai pensar por vósmesmo”46. Eis o Sapere Aude, lema da Ilustração,que orientou os passos dos philosophes, na tentativade educar os homens para que estes pudessem ousarsaber e, assim, guiarem o curso dos acontecimentose de suas próprias vidas47. Como explicado por Voltaireno verbete “Consciência”, os homens nascem com adisposição para receberem bons princípios, que sãopassados através do exemplo, ou seja, da educação, epossibilitam que a consciência humana seja forma-da. Nesse sentido, cabe ao homem ousar pensar porele mesmo para, dessa forma, sair da heteronomia,da menoridade em que se encontra.

Em “Necessário”, também escrito em forma dediálogo, Voltaire deseja falar do que é imprescindívela todos os homens, e não das convenções, que mu-dam de lugar para lugar. Logo, ele vai falar da LeiNatural. Para ele, há noções comuns a todos os ho-mens, que são úteis para que estes vivam em socie-dade. E, para terminar a série de verbetes que têmuma estrutura literária, o intitulado “Leis civis e ecle-siásticas” foi escrito em forma de aforismos, que tra-

zem, de uma maneira geral, a idéia voltairiana deque é possível educar pelo exemplo – “Que os suplíci-os dos criminosos sejam úteis. Se um homem enfor-cado não serve para nada, um homem condenado atrabalhos públicos serve ainda à pátria e constituiuma lição viva”48.

Portanto, a diversidade de temas expostos no Dici-onário indica a preocupação do seu autor em tratar,de forma aparentemente simples, objetiva, inteligível,os assuntos que podem levar os homens ao esclareci-mento, uma vez que essa diversidade permite, ao lei-tor, escolher sobre que assunto aprender, independen-te da ordem escolhida acerca do assunto. Não é precisoiniciar pelo primeiro verbete para, em seqüência, che-gar até o último. Pode-se escolher qualquer um deles,não importando a ordem de sua apresentação. Porém,essa mobilidade do espírito voltairiano, que lhe permi-tiu a universalidade dos temas, foi também motivo decríticas. Alguns dos seus censores afirmam que os as-suntos, em Voltaire, foram tratados de maneira su-perficial. Contudo, acerca desse aspecto, como fora in-dicado anteriormente, essas observações negativas fei-tas ao autor das Memórias não procedem49. Voltairenão se recusa a nenhum debate. Não há uma questãosequer que não seja filosófica para ele.

Sua obra é grandiosa, o que dá a falsa impressãode que ela é um “caos de idéias claras”50, uma vez que

46 Ibid., p. 240. Verbete: Liberdade de pensamento.47 Sobre essa mesma idéia de que o homem pode pensar por si mesmo, bastando querer se esforçar para aprender,

posiciona-se Kant: “Esclarecimento [‘Aufklärung’] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio éculpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. Ohomem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na faltade decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teupróprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [‘Aufklärung’].” (KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Queé “Esclarecimento” (Aufklärung)? In: Textos Seletos. Tradução Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 100.) ODicionário Filosófico foi publicado em 1764 e o texto de Kant em 1784, vinte anos depois.

48 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Op. cit.. p. 239. Verbete: Leis Civis e Eclesiásticas. (grifo nosso).49 Roberto Romano afirma o seguinte, a respeito desse aspecto: “Não compartilhando da seriedade dos filistinos

românticos, [...] Voltaire foi visto como “não sério”. Não exercendo a “profundidade” romântica, [...] Voltaire foibanido para a pátria gaiata e incômoda da superficialidade. Com ele, o século XVIII inteiro foi acusado deingenuamente acreditar no progresso, na técnica, na razão. [...] Quem ri não é sério. Esta equação é moderna,conservadora, romântica e irracionalista.” (ROMANO, Roberto. “Voltaire e a sátira”. In: O caldeirão de Medeia. Op.cit.. p. 194). Casini também trata desse assunto quando fala da crítica feita à leitura de Voltaire às obras deNewton. Ver: CASINI, Paolo. Newton e a consciência européia. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: EditoraUNESP, 1995. p. 83.

50 FAGUET, Emile. La politique comparée de Montesquieu, Rousseau et Voltaire. Paris: s.l.p., 1902. Apud. VERSAILLE,André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée deVoltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXVII.

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ele falou de tudo. Porém, poucas criações, dessagrandiosidade, conseguem conservar uma coerênciatão forte. Ao lê-la, em suas várias representações, ouseja, em seus diversos livros, encontram-se as mes-mas interrogações atormentadas, os mesmos questi-onamentos. Voltaire preocupa-se com a inteligibilidadedos seus escritos. Ele fica intrigado com a facilidadecom a qual os homens inteligentes abandonam o seubom senso, afirmando que esses, tão cheios de saga-cidade e de gênio, são formados de erros populares,que os tornam fanáticos51. E é contra isso que se re-sume a sua missão: contra essa ação do homem deentregar-se ao fanatismo. Eis o motivo de sua dedica-ção em educar os seres humanos. O autor do Dicio-nário questiona o sentido mesmo do saber, entenden-do que essa acumulação pouco importa.

Se a história, por exemplo, resume-se aum catálogo de fatos insignificantes, ela éapenas uma ciência inútil. [...] Uma certaforma de erudição é mesmo inteiramenteperniciosa: ao sobrecarregar um espíritode noções absurdas e ininteligíveis, a gen-te o tornaria, sem dúvida, sutil, mas nãointeligente. Ao contrário, é esta sutilezamesma que o impede de ver as coisas comoelas são, que o fará oscilar “da ignorânciaselvagem à ignorância escolástica”52.

Tudo para Voltaire merece questionamento e, ésobre este princípio que ele redige o Dicionário Filo-sófico. “Entretanto, contrariamente ao princípio ge-ral do dicionário, que se consulta para achar respos-

tas às suas questões [...]53”, os verbetes dessa obralevam os leitores a se depararem com novos questio-namentos. Seu autor não dá respostas aos que o lêem,mas os ensina a duvidar, porque é pela dúvida que seaprende a pensar. Ele faz com que, ao lerem aquelelivro, os leitores observem as questões a partir doângulo da razão e da experiência. Não se trata maisde meditar sobre as coisas, mas sim de experimentá-las54. Isso explicaria a quantidade de exemplos queVoltaire fornece, ao tratar de um determinado as-sunto. A linguagem metafísica não possui relação coma realidade. Ao escrever, Voltaire parece chamar oleitor, o tempo inteiro, para o mundo; por essa razão,ele faz com que se experimentem as coisas, tornando,assim, sua linguagem inteligível aos olhos do leitor,uma vez que este consegue estabelecer relações doque é dito por Voltaire e o seu universo. Inclusive, emsua vigésima quinta carta das Cartas Filosóficas,que se destina a falar sobre os pensamentos de Pascal,o autor explica que “Uma comparação [...] serve [...]na prosa, para esclarecer e para tornar as coisas maissensíveis”5. Através da comparação – que além detornar as coisas muito mais claras estabelece a rela-ção entre as idéias e o mundo, possibilitando o acessode um número maior de pessoas ao que foi escrito –Voltaire coloca em atuação o seu projeto pedagógico-civilizatório, visando submeter o mundo ao impérioda razão, ao fazer com que os homens se esclareçam.Portanto, deixemo-nos guiar pelas palavras escritaspelo Patriarca de Ferney; assim, aprende-se a duvi-dar, a pensar, a ser um homem esclarecido. Voltaireestá presente em suas obras, esperando-nos, com aintenção de nos ensinar. Nossa tarefa: escutá-lo.

51 Ibid., p. XXXVIII-XXXIX.52 Ibid., p. XXXIX.53 Id.54 Id.55 VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit. .p. 56.

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Sobre o autor:Christine Arndt de Santana é Mestre em Educação, Professora Substituta do Departamento de Letras daUniversidade Federal de Sergipe. Professora da FANESE e FACE. Membro do GT Filosofia da Educação(NEPHEM/NPGED/UFS). Membro do Grupo de Estudos de História da Filosofia Moderna (NEPHEM/UFS).

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Reforma social e educação em Platão

Hortencia Maria Dantas Santos

ResumoAo diagnosticar que todas as cidades do seu tempo estavam doentes, Platão decide pensar a política comoepisteme. Assim, na sua obra A República, idealiza um modelo de cidade, na qual a justiça seria o princípioordenador. Essa cidade deveria ser composta por três classes sociais à semelhança das três funções da alma,com cada uma exercendo sua função específica. Entretanto, para determinar o lugar e a função dos cidadãosnas classes e, consequentemente na pólis, o filósofo estabelece um projeto educacional, o qual, de modo seletivo,formaria o verdadeiro político, possibilitando ao mesmo governar de acordo com a parte melhor da alma, ouseja, a parte racional. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo refletir sobre o que é a educação paraPlatão e como ela tem um papel significativo na reforma social.Palavras-chave: Platão; Educação; Ordem social.

The social reformation and education in Plato

AbstractWhen he discovers that all the cities of his period were ‘sick’, Plato decides to think the politics as episteme.Thus, in his literature The Republic, idealizes a city model, in which justice would be the principle. This citywould have to be composed for three social classes to the similarity of the three functions of the soul, with eachone exerting its specific function. However, to determine the place and the function of each citizen in theclasses and consequently in polis, the philosopher establishes an educational project, which in selective waywould formulate the true politician, making possible the same in accordance with the best part of the soul,that is, the reasonable. In this direction, this work has as goal to reflect on what it is education by Plato andhow it has a significant utility in the social reform.Keywords: Platão; Education; Social Order.

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Hortencia Maria Dantas Santos

Considerar Platão o fundador da teoria social éconsiderar que essa afirmação vem sempre acompa-nhada de questionamentos como: não existiram, naGrécia antiga, anterior a Platão, homens que tam-bém pensaram em reformar o Estado? Certamenteque sim, a exemplo de Sólon, que estabeleceu a igual-dade social com o objetivo de pôr fim à disputa entrericos e pobres. Porém, o que distingue o pensamentopolítico de Platão dos seus antecessores não é tanto asolução encontrada por ele para os problemas sociais,mas o modo como problematizou, ou seja, como for-mulou o problema. É uma questão que, em vista daresposta, deve ser tratada a partir de etapas, atravésde um método determinado.

De acordo com seu relato, na Carta Sétima, todasas cidades estavam doentes em decorrência dos seusgovernantes, que assumiram o poder sem pensar nobem do Estado e, consequentemente, dos seus cida-dãos. Esse diagnóstico fazia Platão desistir de parti-cipar ativamente da vida política e dedicar-se à orga-nização de um projeto social fundamentado na Filo-sofia, que consistia na criação de uma cidade justa.Se as cidades estavam todas corrompidas, fazia-senecessária a criação de uma cidade na qual a baseadministrativa fosse a justiça. As cidades existentesviviam sob o princípio da injustiça.

Desse modo, a questão principal abordada porPlatão, em A República, é: o que é a justiça? Essaquestão, inclusive, é anterior à criação da cidade, oumelhor, esta é idealizada, porque é preciso descobrira verdadeira justiça, o que seria impossível nas cida-des existentes envoltas de injustiça. O discípulo deSócrates afirma, então, que ela origina-se a partirdas necessidades individuais: “[...] uma cidade tem asua origem, [...] no facto de cada um de nós não serauto-suficiente, mas sim necessitado de muita coi-sa”1. Ora, nessa assertiva de que a cidade é constitu-ída por indivíduos que desejam somar suas aptidõespara satisfazerem suas necessidades reside o princí-pio em que cada um só deve fazer aquilo de acordo

com sua natureza. A natureza fez cada um dos indi-víduos diferente, com aptidões específicas para de-sempenhar suas tarefas.

Essa desigualdade natural possibilita a Platãoorganizar sua cidade ideal em três classes de iguais –a dos governantes, a dos guardiões e a dos trabalha-dores – nas quais cada uma teria funções específicascriando, assim, uma harmonia na cidade. Tais clas-ses foram organizadas levando-se em conta a tríplicedivisão da alma. Essa analogia entre as partes daalma e as classes no Estado é vital para a ordemsocial, na medida em que o indivíduo deve exercer ajustiça de dois modos: como membro da classe, cum-prindo sua respectiva tarefa; e, como indivíduo, eledeve buscar a harmonia dentro de si, isto é, seuautocontrole. Como na alma humana, o equilíbrio nacidade ocorrerá, ou não, a depender de quem estejagovernando.

Contudo, não se pode perder de vista que Platãoestá em busca da sociedade justa. E, por uma ques-tão metodológica, o filósofo afirma que a verdadeiradiké pode ser encontrada em dois níveis: na cidade eno indivíduo. Porém, é mais prudente iniciar a bus-ca da justiça na cidade, ou seja, é mais fácil encontrá-la no todo, que é o Estado, e, posteriormente, naspartes, que são os indivíduos. Na verdade, a grandepreocupação de Platão é com o indivíduo, pois é eleque o filósofo pretende formar para conduzir a cida-de justa.

Se a parte desejante assume o poder, leva a cidadea buscar apenas os desejos e os prazeres; quando é aparte colérica, por exemplo, a cidade volta-se para oexercício da guerra. Somente a parte racional condu-zirá a cidade para a justiça. Assim, a justiça é o cum-primento dos deveres por parte de cada um dos cida-dãos em sua respectiva classe: “[...] o princípio de queo que nasceu para ser sapateiro faria bem em exerceresse mister, com exclusão de qualquer outro, e o quenasceu para ser carpinteiro em ter essa profissão eassim por diante”2.

1 PLATÃO. A República. 369 b.2 Id. Ibid., 443 c.

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Mediante esse princípio de unicidade, o filósofo,por possuir a verdadeira sabedoria, é o único capazde conduzir o Estado à justiça, exercendo sua únicafunção, que é a magistratura, assim como cada umna sua classe exercerá sua única função. Só median-te esse respeito às atribuições de cada um, tem-se ajustiça social, que pode ser definida:

[...] como o princípio de uma sociedadecomposta por diferentes categorias de ci-dadãos [os trabalhadores, os militares, osgovernantes] que se organizaram movidospelo impulso da dependência mútua, for-mando assim um conjunto em que atu-am, concentrados cada um em uma ativi-dade diferente3.

Noutros termos, exercer atividades diferentes cons-titui a divisão social do trabalho como parte da orga-nização da sociedade, e fundamenta a diferença entregovernantes e governados: “[...] que a uns competepor natureza dedicar-se à filosofia e governar a cida-de, e aos outros não cabe tal estudo, mas sim obede-cer a quem governa”4.

Um aspecto importante a ressaltar é que a con-sistência desse projeto organizacional em Platão éresultado de uma educação adequada. Quando o filó-sofo estabelece que a busca da verdadeira justiça deveiniciar-se pelo conhecimento das virtudes (sabedoria,coragem, temperança e justiça) na cidade e, posteri-ormente, no indivíduo, essa estratégia passa a tercomo objetivo uma verdadeira harmonia entre cida-de e indivíduos. Só se obtém uma sociedade justa,quando esta é formada por cidadãos justos. Conclui-se, assim, que a grande preocupação de Platão é como cidadão, ou melhor, com sua alma, pois o homem éo resultado de sua alma em conseqüência da educa-ção recebida.

A alma tem uma função, que não pode serdesempenhada por toda e qualquer outracoisa que exista, que é a seguinte:superintender, governar, deliberar e todosos demais actos da mesma espécie. [...]Logo, é forçoso que quem tem uma almamá governe e dirija mal, e, quem tem umaboa, faça tudo isso bem5.

A cidade justa e perfeita exige um cidadão justo eperfeito, por isso a preocupação de Platão com a verda-deira paidéia. Sem essa formação completa, é impossí-vel exercer com perfeição qualquer função, principal-mente, administrar uma sociedade. Desse modo:

Será então possível censurar, sob qualqueraspecto, uma ocupação tal que nunca nin-guém será capaz de a exercer convenien-temente, se não for de seu natural dotadode memória e de facilidade de aprender,de superioridade e amabilidade, amigo eaderente da verdade, da justiça, da cora-gem e da temperança?6.

A educação dos cidadãos que devem ser justos terácomo base a educação tradicional, isto é, centrada namúsica para a alma e na ginástica para o corpo. De-via se iniciar na infância, pois é nessa fase que seimprime o caráter desejado para uma pessoa, quan-do esta se tornar adulta. Além da ginástica e da mú-sica, o currículo que constituía a verdadeira paidéiaplatônica incluía algumas ciências, como afirma ofilósofo:

[...] desde crianças [...] devem aplicar-se àciência do cálculo, da geometria e a todosos estudos que hão-de preceder o dadialéctica, fazendo que não sigam contra-

3 BARKER, E. Teoria Política grega. p. 170.4 PLATÃO. op. cit., 474 c.5 Id. Ibid., 353 d-e.6 Id. Ibid., 487 a.

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feitos este plano de aprendizado.[...] quemé livre não deve aprender ciência algumacomo uma escravatura. E que os esforçosfísicos, praticados à força, não causam malalgum ao corpo, ao passo que na alma nãopermanece nada que tenha entrado pelaviolência. [...] Por conseguinte, [...] nãoeduques as crianças no estudo pela vio-lência, mas a brincar, a fim de ficares maishabilitado a descobrir as tendências na-turais de cada um7.

Percebe-se, então, que toda descrição da educaçãosuperior dos guardiões, que se inicia na infância, éuma forma antecipada do que Platão vai apresentarno livro VII, em A República, na alegoria da caverna.O filósofo supõe que alguns homens habitavam numacaverna apenas com uma entrada para a luz, e elesviviam acorrentados desde a infância, de maneira quenão podiam mover-se, eram obrigados a permanecerno mesmo lugar. Só podiam observar algumas som-bras de transeuntes refletidas pela luz de uma fo-gueira que queimava a distância.

Se, por um acaso, um dos prisioneiros conseguis-se soltar-se e ascendesse à entrada da caverna, certa-mente estranharia a luz e sentiria dor nos olhos. Maiorimpacto sentiria ao contemplar o Sol. Pois bem, se oprisioneiro, que conseguiu sair da caverna, resolves-se voltar à mesma para tentar convencer os outrosde que o que vêem no seu recinto são apenas som-bras, provavelmente, causaria risos; e, se conseguis-sem soltar-se, não o matariam?

Ressalte-se, porém, que a finalidade do filósofo daAcademia mediante a imagem da caverna é pôr emevidência a formação do homem. Platão está tentan-do resgatar a pólis grega, e isso só é possível atravésde uma educação adequada. Para ele, “[...] a educa-

ção não é o que alguns apregoam o que ela é. Dizemeles que arranjam a introduzir ciência numa almaem que ela não existe, como se introduzissem a vistaem olhos cegos”8. Assim,

A educação seria, por conseguinte, a artedesse desejo, a maneira mais fácil e maiseficaz de fazer dar a volta a esse órgão[olhos], não a de o fazer obter a visão, poisjá a tem, mas, uma vez que ele não estána posição correcta e não olha para ondedeve, dar-lhes os meios para isso9.

Ora, o prisioneiro da caverna é, pois, o homem noestado de ignorância, é o que não olha na direção cor-reta.

Como, então, inferir, a partir da imagem do mitoda caverna, uma educação reformadora em Platão?Nas palavras de Teixeira “a experiência do prisionei-ro na caverna mostra o que significa um processoeducativo capaz de levar o homem à sua verdadeiracondição. A educação é justamente essa atitude deforçar o homem a galgar píncaros sempre mais al-tos” 10. Por isso, o prisioneiro, ao sair da caverna, oumelhor, ao deixar o estado de ignorância, “[...] senti-ria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar osobjectos cujas sombras via outrora”11.

Desse modo, o Filósofo da Academia, ao projetar acidade, teria um objetivo específico, o qual seria fun-dar uma sociedade justa. Assim, resgatar o prisio-neiro da caverna seria formá-lo para viver nessa so-ciedade. Deve-se observar que “para Platão [...] a edu-cação é um processo que dá consciência social aosmembros da comunidade, ensinando-os a respondera todas as demandas da vida coletiva”12. Porém, pararealizar tal finalidade, o processo educativo, além deser sucessivo, é muito longo, isto é,

7 Cf. Id. Ibid., 536 d - 537 a.8 Id. Ibid., 518c.9 Id. Ibid., 518d.10 TEIXEIRA, E. F. B. A educação do homem segundo Platão, p. 65.11 PLATÃO. op. cit., 515d.12 BARKER, E. op. cit., p. 179.

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[...] não termina com o início da idadeadulta; um estágio finda e outro se suce-de, para todos que são capazes de percorrê-lo. Até os trinta e cinco anos prossegue ainstrução do cidadão apto a exercer fun-ções públicas; e muito mais tarde- depoisde quinze anos consagrados ao trabalhodo governo- o cidadão se volta uma vezmais, no declínio de sua vida, para o estu-do da filosofia, para poder contemplar, nariqueza da experiência, o tempo e a vida13.

É pertinente ressaltar que esta formação in-clui não só a instrução, mas também a educação nosentido moral, nos termos que, perceber a cidade or-ganizada num sentido macro, significa também cons-truir, em sentido micro, o Estado dentro de cada um.Então, para Platão, reformar uma cidade supõe “[...]uma atitude pedagógica radical e racional que seráfeita por meio da filosofia”14.

Desse modo, só um cidadão educado, nos moldesdessa educação criteriosa, terá condições de se tornarjusto e conduzir a cidade à justiça. Em se tratandodaqueles que iriam governar, Platão ainda estabele-ce algumas regras de comportamento para o exercí-cio de suas funções, quais sejam a de guardião dacidade e a de administrador dela. É que para as duasclasses (guardião e governante), o discípulo deSócrates determina uma vida em comum ou um re-gime comunista entre os seus membros, à medidaque separa o poder político do econômico. Na verda-de, a vida em comum não dizia respeito a bens mate-riais ou qualquer outro mecanismo que estivesse li-gado à economia. Para Platão, é a união desses doispoderes (econômico e político) que levam os dirigen-tes das cidades à corrupção, pois assumem o podersem levar em conta a virtude política, mas o desejode tirar proveitos desse poder, principalmente, o eco-nômico. O direito aos bens materiais e, consequente-mente, Platão delega à classe dos trabalhadores o

dever de prover os guardiões e os governantes nassuas necessidades materiais.

Mediante essas considerações, pode-se demarcara teoria social em Platão, a partir da condenação deSócrates à morte pelo regime democrático vigente nacidade de Atenas, que, segundo aquele, encontrava-se doente. Esse regime, que possuía como um dosprincípios fundamentais a liberdade, não permitiu aSócrates essa mesma liberdade ao tentar ser justo.Assim, Platão afirma que:

Enquanto não forem, ou os filósofos reisnas cidades, ou os que agora se chamamreis e soberanos filósofos genuínos e capa-zes, e se dê esta coalescência do poder po-lítico com a filosofia [...], não haverá tré-guas dos males [...] para as cidades, nemsequer [...] para o gênero humano [...]15.

O remédio [phármakon] que curaria os males dacidade encontrava-se na tese do filósofo-rei que admi-nistraria a comunidade mediante a virtude. Sobreesse ponto, há de se ressaltar que é a classe dosgovernantes ou filósofo-rei a única dotada de sabedo-ria na cidade, por conseguinte, a responsável pelainstauração da justiça social.

Por já haver estabelecido a sabedoria como umadas quatro virtudes existentes na cidade, o filósofo aincorpora ao poder e a torna inseparável de si, oumelhor, da sua função. A administração da cidadepelo filósofo marca uma fundamental diferença entrePlatão e aqueles que pensaram antes dele ou mesmoos seus contemporâneos; no caso, os sofistas, sobre aorganização social. Platão não pretendia apenas trans-formar o Estado em melhor, mas criar um Estadoideal sob a inspiração filosófica. O Estado elaboradopelos adversários do filósofo baseava-se apenas naexperiência que, segundo o discípulo de Sócrates, sóconseguiu, na melhor das hipóteses, dar uma opiniãoacerca dos males sociais. Porém, o Estado ideal seria

13 Id. Ibid., p.184 .14 TEIXEIRA, E. F. B. op. cit., p. 11415 PLATÃO. Op. cit., 473 d.

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baseado no verdadeiro conhecimento, na Filosofia, quepossibilitaria conhecer as causas da doença social.

A esse respeito Platão estabelece um sistema edu-cacional para dar suporte ao indivíduo em se tornarvirtuoso e preparado para o exercício de suas fun-ções, nesse caso específico, a administração da cida-de. É conveniente esclarecer que os governantes “[...]devem receber a educação correcta, [...] se querematingir o cume da perfeição no que toca a seremcordatos para com eles mesmos e para com os queestão sob a sua guarda”16.

Transformando o filósofo num perfeito governante,Platão tem como princípio não as tentativas práticaspara reformar o Estado, como aconteceu aos seusantecessores; ao contrário, elas deveriam ser prece-didas por uma reflexão, que perdurassem de formasempre atenta na experiência política. A chave parao início desse trabalho reflexivo é a compreensão doEstado.

Compreender o Estado ia além das tentativas deresolver os problemas corriqueiros da vida política esocial. Consistia em sistematizar uma teoria políti-ca, uma base conceitual que servisse, ao mesmo tem-po, de remédio para os males sociais e modelo a serseguido pelos governantes das cidades. A verdadeirapolítica que Platão tentava sistematizar era conside-rada episteme e distinguia-se da política rotineira,da mera opinião que não procurava conhecer as cau-sas.

O Filósofo da Academia principia o estudo das cau-sas que levam as cidades à corrupção por uma análi-se rigorosa das constituições existentes nos Estados eseus respectivos líderes políticos, pois cada constitui-ção é semelhante ao estado da alma de quem admi-nistra. Desse modo, existiam:

[...] quatro espécies17 [de constituições],sobre as quais valia a pena examinar e,considerar os seus defeitos, bem como dosindivíduos semelhantes a elas, a fim de

que, depois de os ter observado a todos echegado a acordo sobre qual era o homemmelhor, e qual o pior, [...] descortinar se omelhor é o mais feliz, e o pior o mais des-graçado, ou se é de outro modo 18.

Platão já havia definido a constituição ideal parasua cidade:

[...] será una, embora possa designar-sede dois modos: efectivamente se surgirentre os governantes um homem só quese distinga, chamar-se-á monarquia; seforem mais, aristocracia. [...] porquanto,quer haja vários, quer um só, não abala-rão as leis importantes da cidade, desdeque tenham a educação e instrução [ade-quadas] 19.

Contudo, sua escolha não o impedia de fazer umaanálise rigorosa sobre as demais constituições emordem decrescente, de acordo com sua degeneração.Essa análise é importante, porque não se trata ape-nas de substituir uma constituição por outra, masapresentar, de forma metodológica, uma teoria racio-nal de organização do Estado; e a base dessa teoriaracional está na analogia entre o Estado e a alma doindivíduo. O cidadão que se dispusesse a governar osoutros deveria saber governar a si próprio. Assim, ajustiça, tanto no Estado, quanto no indivíduo, só se-ria alcançada quando a parte racional que existia emambos estivesse no comando.

Esse é um dos pontos fundamentais da teoria so-cial em Platão e que a distancia de outras tentativasde organização da cidade, a qual buscava fundamen-tos, seja na força física, seja no acúmulo de riquezas.Na verdade, o que iria identificar uma sociedade jus-ta e bem organizada seria a capacidade que o seugovernante teria em tornar melhores as almas dosseus cidadãos. E esse ponto faz a diferença entre Platão

16 Id. Ibid., 416 c.17 Cf: Id. Ibid. , 445c18 Id. Ibid., 544 a.19 Id. Ibid., 445 d-e.

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e seus antecessores, a exemplo de Péricles. Segundoaquele, o erro deste, apesar de sua grande capacidadena oratória, foi não conseguir melhorar nada em seusconcidadãos, ou seja, melhorar as suas almas. Aliás,“[...] ele os deixou mais selvagens do que eram quan-do os recebeu, e isso contra ele próprio, que é o que elemenos desejava. [...] Se ficaram mais selvagens, tor-naram-se também injustos e piores do que eram. Logo,[...] Péricles não foi bom político”20.

Platão, assim, imagina um novo modo de exercera política. Ele substitui o poder exercido por meio daforça física ou da persuasão, que prevalece nas cida-des do seu tempo, pelo poder conduzido pelas armasda razão. Também descarta as riquezas e honrariaspara os que estão no poder e estabelece o compromis-so entre os mesmos, responsáveis pela guarda e ad-ministração da cidade, que se abstenham do contatocom bens materiais que os levam à corrupção. Dessemodo, a teoria social em Platão é, de certo modo, re-volucionária, mesmo sem pregar a força; mas no sen-tido de romper com a tradição que, mediante osensinamentos dos sofistas, mais especificamente deTrasímaco21, defendia o poder do mais forte. Ao con-trário, para Platão, a força social está na moral quedeve estar presente nos cidadãos, contribuindo paraa ordem social e política.

Para a cultura grega, ética e política estavam sem-pre unidas, e Platão fortalece essa relação na medidaem que preconizava a semelhança entre a alma e oEstado. O cidadão não poderia viver sem estar ligadoà pólis, por isso, buscaria viver conforme a virtude equanto à cidade que era o todo; teria na justiça oprincípio regulador da ordem social. Eis por que ofilósofo não aceitou o regime democrático. Numa de-mocracia, o exercício da liberdade em excesso nãopermite a existência da justiça, organizando a vidade todos; pois, em tal regime, não é relevante umaeducação adequada para o governante exercer suafunção. Ao contrário, quem assume o poder na demo-

cracia, de acordo com Platão, é um homem que sepassa por amigo da massa, porém, na primeira opor-tunidade, ele trai a confiança de todos os que neleesperam e torna-se um tirano. E a injustiça é o prin-cípio absoluto reinante numa cidade administradapor um tirano.

Para curar um mal como a injustiça, só um antí-doto como a justiça exercida pelo rei-filósofo. Este nãoespera nenhum privilégio por parte dos seus gover-nados, mas tem consciência que cumprir bem suafunção é um dever para com todos os cidadãos. Dife-rentemente do tirano, o rei-filósofo está comprometi-do com o equilíbrio social, e mesmo dispensando aajuda das leis escritas, ele deve estar sempre vigilanteno cumprimento de alguns princípios essenciais que,se violados, comprometem a harmonia na cidade.

Entre esses princípios, encontram-se: a proibiçãoda entrada na cidade da riqueza e da pobreza, limitaro tamanho da cidade onde cada um desenvolve ape-nas o ofício que lhe foi destinado por natureza e pelafidelidade ao sistema educacional.

Assim, a riqueza deve ser proibida “[...] porque dáorigem ao luxo, à preguiça e ao gosto pelas novida-des; [e a pobreza dá origem], à baixeza e à maldade,além do gosto pela novidade”22. Quanto ao tamanhoda cidade e à função de cada um, o governante devevelar para que:

[...] a cidade não seja pequena nem gran-de só de aparência, mas suficiente e uni-da. [...] que cada um, cuidando do que lhediz respeito, não seja múltiplo, mas uno,e deste modo, certamente, a cidade intei-ra crescerá na unidade, e não na multipli-cidade23.

Em relação à educação, os governantes da cidadedevem estar vigilantes, a fim de que o programa es-tabelecido pelos mesmos seja cumprido e qualquer

20 Id. Górgias. 516 c-d.21 Cf: Id. A República. Livro I.22 Id. Ibid., 422 a.23 Id.Ibid., 423 c-d.

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alteração, que porventura venha ocorrer em tal pro-grama, seja em proveito da harmonia social24.

Desse modo, Platão transforma o rei-filósofo numinstrumento e guardião da ordem social, garantindoa felicidade para toda a coletividade. Reformar o Es-tado, mediante a filosofia, tornou-se, para o filósofo, oúnico caminho, proporcionando aos cidadãos uma vidaética. Na verdade, ele (o filósofo) é compelido a mol-dar além do seu próprio caráter, o caráter dos outrose a formular o modelo da vida pública e privada emconformidade com a sua visão de ideal; por isso, elenão deixaria, nesse caso, de produzir exemplos de tem-perança, justiça e todas as outras virtudes que po-dem existir no homem comum.

Platão percebeu que só modelando a alma dos ci-dadãos, conduzindo-os à virtude, é que se conseguiriapor fim à anarquia presenciada em Atenas. Nisbetafirma que Platão influenciou todos os filósofos poste-riores, não só no que diz respeito à política, mas tam-bém à vida do indivíduo como um todo.

Seja no domínio da filosofia como tal, dateologia, da história da matemática e dasciências físicas – pelo menos no passado,no início da Renascença – seja no que hojechamamos ciências sociais, a influência dePlatão foi notável e constante. Em grandeparte, isso se origina do fato de que, emtantas áreas do saber, nos acontece enca-rar o mundo e o homem através das len-tes que Platão foi o primeiro a fabricar25.

E nisso reside o mérito do filósofo: unir a educa-ção à política para o exercício da justiça. Prova dissoé que ele:

[...] antecipou a igualdade entre os sexos,dando uma considerável importância àeducação das mulheres. [...] Talvez a mai-or contribuição de Platão para nosso tem-po, que influenciou grandemente a histó-ria do Ocidente, seja justamente esta: cons-truir mais justiça, tentar em todas as par-tes impor a harmonia sobre o caos, querdizer, mudar o mal em bem, porque todo oconhecimento e toda a educação são, efeti-vamente, bondade. E, caso isso não sejapossível, resta ainda para o educador pla-tônico, representado na figura do filósofo,o refúgio na solidão do ser, onde, com todaa dignidade, segundo Sócrates, citado porPlatão no Fédon, o filósofo aprenderá a arteúltima, pois aprendeu, com a sophia, que aFilosofia, como possibilidade de educaçãodo homem, é a arte de aprender a morrer26

Desse modo, percebe-se que Platão, mediante aFilosofia, não só pensou uma reforma social, tam-bém preocupou-se, especialmente, em formar o ho-mem, ou melhor, formar a sua alma, de modo que,ao tornar-se virtuoso por causa da educação recebi-da, ele [o homem] possa contribuir para a construçãode uma sociedade justa.

24 Cf. Id. Ibid., 424 b.25 NISBERT. Os Filósofos Sociais, p. 115.26 TEIXEIRA, E. F. B. op. cit., p. 135; 137.

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BARKER, Ernest. Teoria Política grega: Platão e seusPredecessores. Trad. Sérgio Bath. 2. ed. Brasília:Editora Universidade de Brasília, 1978.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homemgrego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: MartinsFontes, 1995.

NISBET, Robert. Os Filósofos Sociais. Trad. YvetteVieira Pinto de Almeida. Brasília: Editora UnB, 1982.(Col. Pensamento Político, 59).

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______. Œuvres Complètes. Tomo VI Texte établi etraduit par Emile Chambry avec introduction

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TEIXEIRA, E. F. B. A educação do homem segundoPlatão. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1999.

Sobre a autora:Hortencia Maria Dantas Santos é mestre em Sociologia pela UFS; professora substituta no Departamen-to de Filosofia da UFS; professora da Faculdade Pio Décimo e membro do grupo Filosofia da Educação/NPGED-UFS e do NEPHEM/UFS.

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A disciplina em Locke e a formação do homem burguês

Vera Maria dos SantosMagaly Nunes de Góis

Resumo:Discutir o projeto de educação associada à concepção de disciplina e à formação do homem burguês, no pensa-mento de John Locke (1632-1704), é o propósito deste trabalho. Para atender a esse objetivo, foi realizada aleitura, interpretação e análise de sua principal obra, Pensamientos sobre la educación. O trabalho justifica-se pelo fato de John Locke e o conjunto de sua produção representarem a primeira grande construção teóricade instrumentalização da educação para os propósitos da sociedade liberal, exercendo, até a atualidade, influ-ência na organização do processo pedagógico do mundo ocidental. Estudar o pensamento de Locke foi impor-tante para perceber como esse filósofo influenciou profundamente a educação na época em que viveu, principal-mente, pelas inovações que desencadeou no campo educacional, como: abolição dos castigos, liberdade e auto-nomia do educando, atenção especial à criança, respeito à disciplina. Ressalta-se que o pensamento dessefilósofo influenciou, em certa medida, a educação dos tempos atuais.Palavras-chave: Educação; Disciplina; Liberdade; Tábula Rasa; Autonomia.

The discipline as well as the formation of the bourgeois man, based on John Locke

Abstract:Discussing the educational project, together with the concept of discipline as well as the formation of thebourgeois man, based on John Locke ((1632-1704) is the goal of this article. In order to reach this goal it wasmade a comprehensive reading and analysis of his main book, Pensamientos sobre la educación. This work isjustified by the fact that John Locke and all his intellectual production represent the first great theoreticalconstruction that provided tolls to Education to the purposes of the liberal society, influencing up to today theorganization of the pedagogical process of the western world. Studying what Lock thought about that topicwas important to notice how this Philosopher deeply influenced Education during the time he lived, speciallythrough the innovations that he trigged in the educational major like: abolishing the physical punishment,giving freedom and autonomy to the student, giving special attention to children, bringing respect to discipli-ne. It is important to give important attention to the thoughts of this Philosopher influenced, to a certainextent, the Education in our times.Keywords: Education; Discipline; Freedom; Tabula Rasa; Autonomy.

80 Vera Maria dos Santos; Magaly Nunes de Góis80

Revista do Mestrado em Educação, UFS, v. 3, p. 79-86, jan./jun. 2009

Introdução

Entender o pensamento de John Locke (1632 –1704), na perspectiva da disciplina, exige uma análi-se da sua obra relacionada à educação. Foi neste campoque o filósofo desenvolveu sua obra principal: umasérie de cartas, publicadas em 1693, intituladaPensamientos sobre la educación. Nesta obra, Lockeexpressou o seu projeto de educação associado a umaconcepção de disciplina, enquanto elemento essencialpara a formação do homem burguês.

É a partir dessa obra que o presente trabalho sepropõe a buscar uma melhor compreensão da disci-plina, enquanto princípio norteador de sua propostapedagógica. A disciplina vai determinar o êxito daformação integral do homem burguês, que consistena fortaleza do corpo, em ser capaz de resistir à fadi-ga, ser capaz de recusar a si mesmo a satisfação dospróprios desejos e seguir somente o que sua própriarazão lhe determina como melhor. Este homem é oúnico capaz de ajustar-se ao novo tempo liberal e,também, o único que tem capacidade para dirigir asociedade.

1 Os pressupostos do conceito de disciplinaem Locke

O pensamento de John Locke influenciou profun-damente a educação, a política e o surgimento dasciências modernas nos séculos XVII e XVIII. Foi Lockequem introduziu no mundo moderno a capacidade deo ser humano entender a natureza pelos sentidos, deforma que interviesse sobre a mesma. Quando Lockeenfatiza que o homem apreende a natureza atravésdos sentidos, rompe com o principio de que as ideiassão inatas, contrapondo-se ao pensamento de Descar-tes, que defende o citado princípio, quando afirmaque o homem é racional e já nasce com essa condição.Para Descartes, aprendizagem se dá naturalmente;já para Locke, ela se dá pela experiência sensível epela reflexão.

Essa forma de pensar abriu espaço para as pri-meiras e grandes reações à mentalidade metafísica,tradicional, cristã e dogmática, provocando uma pro-funda e radical contestação do pressuposto da exis-

tência de uma ordem imutável e universal na Ingla-terra absolutista. Nessa realidade, o empirismo sur-ge para defender a ideia da experiência como fontefundamental do conhecimento. A partir de então ohomem deve abandonar as verdades prontas e aca-badas e assumir o poder relativo da verdade em per-manente construção. Considerando esse aspecto, oconhecimento passa a não ter caráter absoluto, ten-do em vista que é impossível se chegar à verdadedefinitiva.

Locke, em sua teoria do conhecimento, afirmouque a mente do homem ao nascer é uma tábularasa, um papel em branco “sobre o qual se podeimprimir o que se quer” (LOCKE, 1986, p. 18). É apartir do nascimento, que a mente da criança esta-rá pronta para ser preenchida com os conteúdos daexperiência. Dessa forma, a criança vai adquirin-do as virtudes de fora para dentro, pela formaçãode hábitos. “O primeiro passo do conhecimento é,para Locke, a percepção de nossas ideias que nãodevem ser confundidas com a experiência sensível”(LOCKE, 1986, p. 10).

A base do conhecimento é constituída das ideiasda percepção sensorial, configurada em ideias sim-ples; estas, por sua vez, são as primeiras e mais im-portantes na vida de uma criança. Entretanto, o ho-mem necessita, para viver inteligentemente, de ideiasmais elaboradas e complexas. Somente quando taisideias se desenvolvem é que se tem a capacidade deformar as operações do próprio espírito, isto porque,inicialmente, o espírito é um receptor passivo de inú-meras ideias.

A razão ou o entendimento constitui a matéria-prima da formação das ideias complexas. Esta razãotem o poder de combinar, coordenar e organizar asimpressões recebidas pelos sentidos (ideias simples),construindo um sistema utilizável de verdades ge-rais, ou seja, uma forma mais significativa do conhe-cimento.

Nesse processo de transformação de ideias sim-ples em complexas e/ou abstratas, o ser humano deveter por intento a procura da verdade, buscando esta-belecer uma autonomia do pensamento a partir doespírito de exame. Para Locke, o homem não deveaceitar princípio algum antes de examinar sua capa-

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cidade, para saber se o princípio está ao seu alcanceou acima de sua compreensão.

Locke, ao defender esta teoria, contrapõe-se aosracionalistas (entre eles Descartes), que defendiam aexistência de ideias inatas. Essas ideias estão pre-sentes na mente humana e, por isso, não têm origemna experiência dos homens em sua relação com omundo sensível. Elas estão presentes na intuição in-telectual, a qual está baseada em uma razão extre-mamente sólida.

Na defesa da inexistência de ideias inatas na men-te humana, Locke utiliza diversos argumentos:

· que os homens, pelo simples uso de suas facul-dades naturais, adquirem conhecimento e que,a capacidade é que é inata, não o conhecimento;

· que a experiência é a fonte de todo o conheci-mento;

· que nenhuma regra moral pode ser propostasem que uma pessoa deva justamente indagara razão (LOCKE apud GHIGGI; OLIVEIRA,1995, p. 19);

· que não existe nada passível de receber assen-timento universal. Até mesmo a justiça e a ver-dade são impostas para que haja equidade en-tre os homens, relativismo;

· que a virtude é aprovada por ser proveitosa enão por ser inata, aliada ao fato de as ações doshomens demonstrarem que a regra da virtudenão consiste em seu próprio interior (GHIGGI;OLIVEIRA, 1995, p. 19). Quem estabelece a vir-tude é a ação do homem com seus pares.

Assim, refutou a ideia de inatismo, argumentandoque os homens têm princípios diferentes para dirigirsuas ações. Ao defender o princípio das ideias inatas,ele compara a mente a uma tábula rasa, um papel embranco,em que qualquer ideia pode ser inscrita e que oconhecimento é construído pela experiência.

Para Locke, a mente humana não pode formularideias do nada, nem o espírito traz em si memóriase conceitos existentes a priori. Se a mente é um pa-pel em branco, sem qualquer ideia ou informação,como ela será suprida? De onde apreende todos oselementos para a formulação da razão e do conheci-mento?

Aplicando seu pensamento à educação, Locke en-tende que a mente da criança precisa ser preenchi-da o mais cedo possível, pois as primeiras impres-sões são importantes para a formação do ser adulto,ou gentleman (cavalheiro). “O cavalheiro não é umparasita brilhante ou gracioso da corte, mas um ca-valheiro, que protege a vida e a liberdade inglesa ese ocupa de conduzir os assuntos da nação” (LOCKE,1986, p. 15). É considerando esse aspecto que a dis-ciplina tem um papel fundamental na formação in-tegral desse homem, no sentido de prepará-lo parafazer prevalecer as exigências da razão. Esse homemé quem vai assumir o comando dos novos tempospolíticos e culturais da sociedade burguesa liberal.Para Locke, a educação é imprescindível para a for-mação desse homem e tem a finalidade de exercitaras capacidades naturais do ser humano e, ainda,deve ser colocada a serviço do prazer duradouro e dafelicidade.

Nessa perspectiva, a educação tem por objetivo avirtude – conhecimento do que é certo e do que é erra-do; a sabedoria – capacidade de conduzir os negóciosde forma hábil; boas maneiras, que consiste em teroportunidade, autocontrole e senso de dignidade, le-vando o homem a não ser demasiadamente orgulho-so ou humilde, produzindo conhecimento externo atra-vés da instrução.

O propósito da educação é dominar a na-tureza. O menino não é mau, nem anti-social por si mesmo, porém tende a se com-portar de acordo com a lei da natureza. Amesma lei de cuja insegurança os homenslogram escapar mediante o contato soci-al. A educação propõe a fazer-lhes renun-ciar a esse estado desde pequenos, e seumétodo consiste na disciplina e na severi-dade (LOCKE, 1986, p. 17).

Dentro desse propósito, a formação integral doindivíduo tem por objetivo a passagem do seu estadode natureza para o estado civilizado. No estado denatureza, os homens sentem um dever racional enatural de respeitar, nos outros, os direitos que lhesconvém: à vida, à liberdade e à propriedade, porém,

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sentem falta de mecanismos que regulem, tanto adefesa, quanto a punição aos que desrespeitam essesdireitos básicos. No estado civilizado, o homem en-contra esses mecanismos definidos e delimitados nocontrato social, devem, entretanto, renunciar o direi-to de defesa e de fazer justiça por conta própria. Paratanto, Locke defende uma proposta pedagógica emque a educação tem o fim de preparar o homem paraa virtude e a formação moral, tendo por princípios, ainexistência de ideias inatas e a integração entre cor-po e mente.

1.2 A disciplina em Locke

O conceito de disciplina pressupõe uma nova pro-posta de educação para o homem burguês – que é ohomem da modernidade, que habita o burgo, tendocomo missão proporcionar ao gentleman um prazerduradouro, que consiste em ter saúde, gozar de repu-tação, ter conhecimento, praticar o bem, ter esperan-ça e felicidade eterna.

Nesse sentido, a proposta pedagógica de Lockeapresenta inovações para a época, na medida em quevai dar uma atenção especial à criança, quando pro-põe a abolição dos castigos, pois a criança não é mápor natureza, mas tende a comportar-se conforme alei natural. A educação pretende fazê-la renunciar aesse estado e, o método a ser adotado para esse fim éa severidade e a disciplina. Isso não significa aplica-ção de castigos, visto que tal medida só deve ser ado-tada em casos extremos ou na formação de costumes,quando estes não são aprendidos.

Outro aspecto importante de sua proposta peda-gógica refere-se à preocupação, que os pais devem ter,desde cedo, de observar os filhos, quando estes estive-rem distraídos com seus jogos. Assim, deve-se perce-ber se o menino demonstra um caráter tímido ou cruel,bruto ou doce, aberto ou reservado. Observar a natu-reza particular da criança, de forma a compreendera sua tendência e a sua inclinação predominante.Considera ainda que a dimensão mais importante daeducação não é a instrução ou o saber acumulado,mas a formação de costumes éticos.

Assim sendo, a disciplina é um principio básicoda proposta pedagógica de Locke para formar o ho-

mem burguês. É a disciplina que vai conduzir a pas-sagem do indivíduo do estado da natureza para o civi-lizado. Disciplina/Condução diretiva – proporciona aformação integral e é esta que demarca a diferençaentre os homens. Considerando que o homem, ao nas-cer, é uma tábula rasa, Locke defende que o processoeducativo deve começar cedo, uma vez que as primei-ras impressões formam a vida futura. Assim, o espí-rito humano vai adquirindo as virtudes de fora paradentro, pela formação de hábitos. A mente, neste sen-tido, é desenvolvida pelo treino e pela disciplina desuas faculdades.

A preparação para a virtude e a formação moral éa principal meta da educação. Para Locke, o processoeducativo é essencialmente uma disciplina moral.Disciplina concebida como um conjunto de leis, nor-mas e regras a que o individuo deve submeter-se.Disciplina é submissão e obediência, é formação dehábitos. Só assim a criança pode, livremente, assu-mir comportamentos desejados pela classe a que per-tence.

A educação, para Locke, deve garantir à criançada burguesia um espírito disciplinado e um corpo emboa forma. Para isso, é necessário normatizar e regrar,desde cedo, os costumes. A mente deve ser obedienteà disciplina e aberta à razão, pois assim é que a disci-plina pode ser entendida como disciplina moral e nãoapenas como processo instrutivo e punitivo. A ins-trução intelectual é um estágio a ser atingido após aformação dos homens gentis, homens que sabem con-duzir-se na sociedade liberal.

Para a formação moral, há necessidade de direçãoe controle – direção dos pais e/ou tutores e auto-con-trole da criança, dominando suas inclinações e a sa-tisfação de seus próprios desejos.

[...] A grande tarefa de um tutor é moldara conduta e formar o espírito, estabelecerem seu discípulo os bons hábitos, os prin-cípios da virtude e da sabedoria, dando-lhe pouco a pouco uma ideia do mundo,desenvolver nele a tendência a amar e aimitar tudo que é bom e digno de louvor,tornando-se vigoroso, ativo e hábil(LOCKE, 1986, p. 131-133).

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A condução diretiva do processo educacional pen-sado por Locke deve ser feita, no primeiro momento,pelos pais, que devem impor a disciplina de forma aeliminar os vícios e caprichos. No segundo momento,essa condução diretiva deve ser atribuída ao tutor,pois o grande trabalho do preceptor pode modelar aconduta, formar o espírito e ensinar os bons hábitos.Por isso, os pais não devem economizar dinheiro paracontrata um preceptor, pois assim como existem osbons, existem também os de caráter ordinário.

A educação, como tal, é disciplina que pressupõe afortaleza do corpo, demonstrada pela capacidade desuportar sofrimentos e, para o espírito, a educação éevidenciada pela qualidade que um homem tem denegar a si mesmo a satisfação de seus desejos, dedominar suas inclinações e de seguir aquilo que arazão determina.

1.3 Formação do homem burguês e a peda-gogia da liberdade

A proposta pedagógica de Locke, para formaçãodo homem burguês, tem como máxima a integraçãocorpo e mente – mens sana in corpore sano – e asqualidades desejadas para um bom cavalheiro-virtu-de: prudência, boas maneiras e instrução. O homemdeve disciplinar o corpo e a mente. Assim, como foicitado anteriormente, a disciplina é um ponto impor-tante para o desenvolvimento do projeto de formaçãointegral de jovens pertencentes à burguesia inglesa.Essa formação está dividida em dois momentos:

1. Formação geral, que envolve as dimen-sões física e moral e têm por objetivo ga-rantir um espírito disciplinado e um cor-po em boa forma. Para tanto, Locke ela-bora um método baseado em uma disci-plina rigorosa para a formação de hábitose boas maneiras.

. Respeito à saúde, visto que a “[...] saúdeé essencial para o homem em seus negóci-os para a sua felicidade e para a constitui-ção vigorosa e endurecida exigida pelo tra-balho (GHIGGI; OLIVEIRA, 1995, p. 56).

Os cuidados com a saúde envolvem oexercício da natação, a exposição da crian-ça ao ar livre, a formação de bons hábitos,o uso de roupas apropriadas, a alimenta-ção regrada, a satisfação do sono, odisciplinamento das necessidades fisiológi-cas e, evitar o uso demasiado de remédiose confiar na natureza. Desse modo, os cui-dados com o corpo e a saúde se reduzem,

a estas poucas regras, facilmenteobserváveis. Plenitude de ar livre, de exer-cício e de sono, alimentação simples, semvinho e sem bebidas fortes e pouco ou ne-nhuma medicina, vestidos que não sejamnem demasiadamente largos nem estrei-tos; conservar frios, especialmente, a ca-beça e os pés, e lavá-los com frequênciaem água fria e expô-los a umidade(LOCKE, 1986, p. 63).

· O espírito – Locke afirma que a retidão do es-pírito depende das condições físicas do ser hu-mano, pois para torná-lo forte é preciso que oindivíduo esteja sempre disposto a não permi-tir nada que não esteja conforme a dignidade ea excelência de uma criatura racional. A forta-leza do espírito está na possibilidade de “[...]um homem ser capaz de negar os seus própri-os desejos, de contrariar suas próprias inclina-ções e seguir somente, o que a razão lhe ditacomo o melhor, ainda que o apetite o inclinepara outro sentido” (LOCKE, 1986, p. 66).

· Para que se tenha um corpo saudável e umespírito reto é essencial a disciplina –expressano uso de castigos somente em casos extremos;recompensas e o estabelecimento de regras, emmedida certa e adequados à idade da criança.

· A aquisição de uma boa conduta é obtida atra-vés do exemplo, por isso, a escolha do tutor edas companhias, o respeito entre pai e filho, aobservação da temperamento/vontade da cri-ança são essenciais no processo de formaçãogeral do indivíduo. “Somos uma espécie decamaleão, que constantemente tomamos a cor

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das coisas que nos rodeiam; e não é de admirarque isto assim mesmo aconteça com a criança,que compreende melhor as coisas que vê, queas coisas que ouvem” (LOCKE, 1986, p. 95).

2. Instrução que envolve a dimensão intelectual daeducação, muito embora Locke afirme ser a instruçãode menor importância, se consideradas as qualidadesdesejadas para um bom cavalheiro; entretanto, é o co-nhecimento que o distingue dos demais. A instruçãorecomendada para um cavalheiro envolve: a leitura, aescrita, o desenho, a estenografia, as línguas estran-geiras, o latim, a dissertação, os versos, a memória, ageografia, a aritmética e a astronomia, a geometria, acronologia, a história, a moral, a lei civil, a lei, a retó-rica e a lógica, a filosofia natural, o grego.

Além desses estudos, o cavalheiro deve adquiriroutras qualidades, necessárias à sua formação e ins-trução. Essas qualidades são obtidas pela dança,música, esgrima e equitação, pintura e a aprendiza-gem de um ofício. A viagem é a sétima parte da edu-

cação. Locke diz que o cavalheiro deve realizar umaviagem com o propósito de conhecer outra realidade.

Concluindo, é importante destacar que John Lockedesenvolveu os pressupostos da educação burguesa,sobre as bases do liberalismo, visando formar o ho-mem burguês a partir de um projeto de formaçãointegral do homem. Nesse projeto, a disciplina indi-vidual é de grande importância, porque dela dependeo sucesso do indivíduo, que deve ser disciplinado físi-ca e espiritualmente. Com esses atributos, esse ho-mem é o único que tem capacidade para dirigir asociedade. Locke postula tempos livres, convivendocom rígida disciplina para que os indivíduos possamcontribuir e construir novos tempos.

Estudar o pensamento de Locke foi importantepara se perceber como esse filósofo influenciou pro-fundamente a educação na época em que viveu, prin-cipalmente, pelas inovações propostas no campo edu-cacional: abolição dos castigos, liberdade e autono-mia do educando, atenção especial à criança. Valeressaltar que o pensamento desse filósofo influenciou,em certa medida, a educação dos tempos atuais.

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GHIGGI, Gumercindo e OLIVEIRA, Avelino da Rosa.O conceito de disciplina em John Locke: o liberalis-mo e os pressupostos da educação burguesa. PortoAlegre: EDIPUCRS. 1995.

LOCKE, John. Pensamientos sobre la educación.Traducción Rafaela Lasolita. Madri – España: ACAL,1986.

Referências

______. Textos seletos. Tradução de Anoar Aiex. SãoPaulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).

MENEZES, Luiz Anselmo. Educação do corpo e li-berdade: algumas reflexões sobre a concepçãoiluminista da educação física. Dissertação (Mestradoem Educação)- Universidade Federal de Sergipe. SãoCristóvão, 2002.

Sobre as autoras:Vera Maria dos Santos é Doutoranda em Educação do Núcleo de Pós-graduação em Educação da Universi-dade Federal de Sergipe; Técnica em Assuntos Educacionais da UFS.E-mail: [email protected]

Magaly Nunes de Góis é Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe; professora da Univer-sidade Tiradentes.

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