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Cadernos da Escola do Legislativo nº 8 - Julho/Dezembro 1998

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Publicação semestral que se propõe ser um espaço de reflexão sobre a realidade sociopolítica e cultural, promovendo um diálogo qualificado entre a atividade parlamentar e a produção acadêmica.

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Page 1: Cadernos da Escola do Legislativo nº 8 - Julho/Dezembro 1998
Page 2: Cadernos da Escola do Legislativo nº 8 - Julho/Dezembro 1998

EditorialDep. Anderson Adauto (Presidente da Assembléia)

A edição número oito dos "Cadernos da Escola do Legislativo" vem a público quando estamosencerrando o primeiro período da presente sessão legislativa, dentro do calendário da 14ª Legislatura.Coincide com momento de significação para a vida nacional, ao se intensificarem as demandaspopulares para reformulação do pacto federativo e da política econômica.

As reformas institucionais, ora em andamento no Congresso Nacional, constituem processoirreversível, cuja conclusão é aguardada com interesse por todo o povo brasileiro. Até agora, acentralização de poderes na esfera da União levou-nos a diretrizes distanciadas do projeto social. Oresultado é que se alargou o fosso existente entre a minoria dos privilegiados e a maioria dosexcluídos. A injusta distribuição da riqueza nacional, a dilapidação do patrimônio público, asubserviência de Estados e municípios à vontade autocrática da matriz presidencialista, eis aí algunsaspectos contra os quais os brasileiros - Minas Gerais à frente - estão-se rebelando. Nesse panorama,é positivo verificar que esta Assembléia marca presença, ao apoiar e incentivar as transformaçõesexigidas por nossa sociedade.

Sem falsa modéstia, podemos afirmar que os "Cadernos da Escola do Legislativo" já se tornaramreferencial para os que acompanham a evolução do processo político e o avanço na realidadesocioeconômica. A razão está na atualidade de suas matérias e na autoridade dos que as assinam,como podemos ver pela presente edição.

O Professor José Henrique Santos (ex-Reitor, professor do Departamento de Filosofia, da UFMG) empalestra na Escola do Legislativo, falou sobre "Ética e Política", não no sentido jornalístico dos termos,mas buscando suas origens no mundo grego, assunto mais pertinente à filosofia política, quandoprocura uma leitura diferente das tragédias, compreendendo que não se trata apenas da tragédia danecessidade, nem da tragédia do destino, mas da tragédia da liberdade.

O artigo do professor G. Scott Aikens, sobre a democracia eletrônica está na ordem do dia, nos EUA,e em breve deverá pautar as discussões por aqui. Resgatando historicamente a trajetória dademocracia naquele país, o autor sublinha o papel e o peso da mídia na formação da opinião pública.

Uma entrevista inédita com o magistrado italiano Cataldo Motta, nos revela os bastidores da lutacontra a Máfia, os limites da lei para a atuação dos juízes e do Ministério Público na Itália, bem como,a colaboração que houve entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário na busca de erradicar acorrupção e a concussão.

Grant Jordan, em artigo publicado originalmente no Parliamentary Affairs, da Universidade de Oxford,na Inglaterra, nos lança um desafio: "é possível uma política sem partidos políticos? Será esta umatendência mundial, neste final de século?".

Completando-o, a seção "Documenta" nos traz o Regimento Interno de 1835, documento históricoque representa o primeiro conjunto de regras pelas quais os deputados mineiros de então conduziamseus trabalhos. Como vemos, são todos assuntos de interesse e que merecem leitura atenta.

Na qualidade de Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, temos a satisfaçãode apresentar o oitavo número dos "Cadernos". Ao fazê-lo, constatamos que sua validade se ratifica,na medida em que sua orientação segue atual e em consonância com a dinâmica dos tempos quecorrem.

© Cad. Esc. Legisl. Belo Horizonte, 5(8): 41-101, jul./dez. 1998

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Ética e Política, Uma Tragédia do Mundo Ético

José Henrique Santos

Antes de iniciar propriamente o assunto, gostaria de fazer uma pequena distinção que medesobrigaria de tratar de uma questão que interessa muito aos jornalistas, mas que quero excluirexpressamente da minha palestra. Quando anuncio o tema ética e política, sempre pensam que quero criticar, verberar os costumes domundo político, como se estivesse aqui para julgar e fazer críticas à atuação deste ou daquelepolítico. Não pretendo fazer nada disso. Parece-me que a tradução, em 1972, do livro de Carl Schmittdesencadeou o uso de um adjetivo, tomado como substantivo, para se referir à política. Em vez deexplicitar o conceito de política, seu livro falava do que é o político. Como Norberto Bobbio observaem seu último livro autobiográfico sobre a velhice, talvez essa distinção possa ser útil, embora sejabem complicada e esteja longe de ser clara e unânime para todos os estudiosos das teorias doEstado, da política e do direito. Digamos que o político se refira ao desempenho e à atividade do mundo político e que a política serefira à teoria do Estado, à teoria da justiça e à organização do Estado como um todo, um lugar porexcelência do mundo político. Se essa distinção me for concedida, diria que não pretendo tratar dateoria do político, do comportamento político, das eleições, das amizades e inimizades que se fazem,das disputas, todas permitidas pelas regras eleitorais vigentes. Não quero me pronunciar sobre amoralidade ou a ética desse desempenho político. Não creio que seja de muita valia fazer a distinçãojá célebre na filosofia entre ética e direito, porque ambos têm a mesma origem e fundação. Apenasficaria aqui a criticar tal ou qual comportamento como antiético, imoral, e a mencionar outrosadmissíveis do ponto de vista moral ou ético. Creio que esse tipo de exame não nos levaria muito longe, mesmo porque precisaria ter um padrãode medida realmente universal, que me permitisse julgar os atos dos atores políticos. Ora, estamoslonge de possuir tal padrão. Muito pragmaticamente, pretendo apenas dizer que os atos políticos e ocomportamento político são aqueles que a lei permite. Se a lei não proíbe, é lícito. Se ocomportamento se enquadra nas regras do jogo que são admitidas, tudo bem, não tenho nada nomomento a comentar sobre isso. Queria deixar de lado esse mundo do político ou da política, se preferirem, no sentido do desempenhodos partidos, da representação, das lutas políticas etc., como uma questão mais pertinente aosnossos colegas da ciência política. No meu caso, trata-se da filosofia política, ou seja, vou permitir-medesenvolver algumas idéias especulativas, que estão longe de ser idéias científicas, com aquele rigorque se exige dos nossos colegas cientistas. Feita essa preliminar, que me permitirá, portanto, isolar esse assunto da filosofia política, ao qualpretendo dar um tratamento especulativo, a primeira observação é a seguinte. Existe uma célebreconversação entre Napoleão e Goethe a respeito da tragédia e da política. Napoleão observava aogrande poeta alemão que a política desempenha no mundo moderno o mesmo papel que a tragédiadesempenhava no mundo clássico, antigo, no mundo grego particularmente. Ora, Napoleão sabia doque falava. De fato, quero ver se tomo ao pé da letra essa observação de que a tragédia sai do palcoda representação e entra para o palco muito mais amplo da representação política do Estadomoderno. Mas é preciso qualificar melhor essa observação. Normalmente, quando falamos em tragédia, principalmente a grega, compreendemos que se trata datragédia do destino e da necessidade. Procuro uma leitura diferente, uma leitura libertária datragédia. Não se trata tanto da tragédia da necessidade nem da tragédia do destino, mas da tragédiada liberdade. O teatro grego, a meu ver, é o teatro da liberdade. Vou tentar, então, conciliar essaconcepção do teatro da liberdade com a tragédia no mundo ético ou no mundo político. Na Poética, Aristóteles faz uma distinção interessante entre três tipos de homem. Podemos imitar ourepresentar, como hoje diríamos, os homens tais como são. Temos aí um realismo. Descrevemos oque os homens fazem realmente. Mas podemos imitar os homens melhores do que são ou comoaquilo que devem ser. E podemos também representar ou imitar os homens piores do que devem ser,ou seja, fazer uma caricatura. A tragédia se ocuparia da representação dos homens, considerando-os melhores do que realmentesão. E a comédia representaria os homens piores do que são, com seus vícios e deficiências, quemerecem censura. É um fato notável que a tragédia diga respeito aos homens eminentes, aospríncipes, aos reis, aos heróis, porque encarnam um ideal de comportamento que vai se tornarpadrão na educação grega. Na comédia, quando Aristófanes representa os homens pelo ridículo,exerce uma censura ou crítica social, sem dúvida uma crítica ética. Quanto aos trágicos gregos,apresentam os homens melhores do que realmente são, e as grandes personagens livres conseguemimpor a sua liberdade diante de um destino extremamente cruel. Vou dar dois ou três exemplos, semme demorar muito, para esclarecer bem o que tenho em mente. Vou começar por Ésquilo. Primeiramente, a Oréstía, em que temos três peças encadeadas. A primeiraé Agamêmnon, a qual apresenta o grande chefe da esquadra e do exército grego, que faz o cerco deTróia durante dez anos e volta para casa, onde é recebido com as devidas honras pela sua mulher,Clitemnestra. Ela estende o tapete vermelho em sua honra e, quando ele vai tomar banho, ela oenvolve numa toalha e o mata a facadas. Ela já estava associada com Egisto e, com isso, vinga-se deum antigo crime perpetrado por Agamêmnon. Na verdade, quando este assumiu o comando doexército grego para a expedição de Tróia, não havia vento capaz de impelir os barcos a vela.Consultado o Oráculo, este diz que era necessário sacrificar a filha mais jovem de Agamêmnon,Ifigênia. Isso se faz mediante um engodo. Ele chama Ifigênia ao Porto de Áulis para dizer-lhe que elairia se casar com o grande herói Aquiles, mas que não estava destinada ao casamento, e sim aosacrifício. Quando Clitemnestra percebe o horror disso, jura vingança contra seu próprio marido. Dezanos depois, ao voltar da expedição vitorioso, Agamêmnon é assassinado. A segunda peça é as Coéforas, ou seja, aquelas portadoras do sacrifício, do alimento sagrado para osdefuntos. Descreve como Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra, depois de banido, volta a suacidade natal, encontra-se diante do túmulo do pai com sua irmã Electra, e ambos tramam a morte damãe em vingança do pai. As Erínias, as fúrias, os gênios vingativos dos crimes de sangue, exigemque o parricídio seja vingado. Então, Orestes penetra no palácio disfarçado, dá-se a revelar à mãe e amata. É uma cena belíssima, de muita intensidade trágica. A mãe vai fazer toda aquela súplica,dizendo do seio que o amamentou etc. Realmente, ele mata a mãe. Mais uma vez as Erínias, as divindades malfazejas, entram em cena, exigindo a vingança do sangue.E agora exigem que Orestes seja punido pelo crime de matricídio. O que observamos até aqui é o seguinte. A história já vem de muito antes. Em Homero, podemos termais informações sobre os antecedentes. Essa sucessão de crimes de sangue vinha desde o tempodos avós e bisavós das personagens. Pélops e Atreu são dois irmãos que se desavêm por causa deproblemas de poder. Um convida o outro para jantar e serve como iguaria o filho deste, cozido. Háuma certa tentação, por parte dos gregos, ao canibalismo, que é um pouco escondido, reprimido.Mas, de qualquer forma, Egisto, que é descendente de um deles, jura vingança nos descendentes dooutro. Por isso é que tenta seduzir justamente a mulher de Agamêmnon, Clitemnestra, e induzi-la amatar o marido. Desculpa: vingar o marido por ter entregue a filha, Ifigênia, para o sacrifício. O que observamos é que a justiça, aqui, é a da vingança. É uma justiça primitiva: olho por olho,dente por dente, é a lei de Talião. É a justiça, mas é uma justiça que fica prisioneira do singular. Emais, ela muda de lado. Ela estava, por exemplo, do lado de Clitemnestra, que tinha sido ofendidacom o assassinato da filha pelo próprio esposo. Quando Clitemnestra mata o esposo, a justiça mudade lado, está agora contra ela, que era a vítima e se torna a culpada. Quando Orestes mata a mãe,ele, que era a vítima por ter sido seu pai assassinado, agora vinga o pai e torna-se culpado. Portanto,isso não tem fim, é um mal infinito, é infindável o crime de vingança, o crime de sangue.

Podemos dizer duas coisas. Em primeiro lugar, a justiça não tem um equilíbrio, muda continuamentede lado, está sempre, provisoriamente, do lado do ofendido, que se torna imediatamente o ofensor,tão logo exerça a justiça. No mesmo momento em que exerce a justiça de vingança, passa a serculpado. Em segundo lugar, essa justiça é prisioneira do singular. A ação é sempre singular, éimposta pelo costume, pela própria crença religiosa, pela crença nas divindades infernais e vingativas,que são as Erínias. A justiça designa um indivíduo, no caso o filho, por exemplo, a quem incumbe devingar o pai. Então, é como se esse costume tivesse o dom de transformar as pessoas boasimediatamente em más, no seu oposto. As pessoas más nunca se tornam, aqui, boas, porque, com aconsumação do assassinato, não há mais reparação possível. A terceira peça da trilogia, Eumênides, é bem interessante. Agora as Erínias, deusas infernais, pedema punição de Orestes pelo assassinato da mãe. Dizem que isso é insuportável, inadmissível, quealguém terá que vingá-la. Mas Apolo, que é uma divindade invocada por Orestes, pretende intercederpor ele no tribunal dos deuses, e Atená, cujo nome romano é Minerva, toma interesse na causa eresolve persuadir essas Erínias, ou divindades do mal, a aceitarem julgamento pela corte de justiçado Areópago. Em vez de designarmos um indivíduo singular que vai vingar alguém e tornar-se umcriminoso, que vai carregar em si a culpa, vamos realizar um julgamento com razões e contra-razões,com motivos avaliados racionalmente por um tribunal, e vamos respeitar a decisão desse tribunal. Éexatamente isso que ocorre. As Erínias aceitam o julgamento, tornam-se plácidas e Eumênides, ouseja, de divindades más passam a ser divindades boas. Elas permitem, agora, instaurar um sistemaem que a lei é universal e que, portanto, não diz mais respeito ao domínio do singular. O singular ficasubsumido numa lei universal, eleva-se, portanto, a um nível universal. Quando isso ocorre, otribunal vai julgar Orestes e aquela sucessão de crimes. Na votação final, há um empate, e Atená, ouMinerva, dá o voto a favor de Orestes, que é tornado livre. Apenas terá que fazer a expiação, umritual religioso, mas torna-se livre. Aqui cessa a seqüência dos crimes de sangue e surge, pelaprimeira vez no teatro grego, a representação da justiça como algo impessoal e universal. Oindivíduo, que é subsumido, é elevado ao nível da universalidade. Agora, não temos mais a vingançae o crime de sangue. Em vez da vingança, temos a pena, que não é uma vingança. Podemos dizer,utilizando uma expressão de Hegel na Filosofia do Direito, que o criminoso deseja a própria punição,porque saiu desse universal da lei, através da transgressão. Ele transgrediu uma lei universal e querser reintegrado na universalidade do homem. Trata-se, para os gregos, de pensar os homensuniversais, os homens tais como devem ser e não como são realmente. Os dois primeiros casos - os homens como devem ser e os homens como são realmente - podem serobjeto da tragédia. Quando são como são realmente, são bastante maus e servem tanto para atragédia quanto para a comédia. No caso da comédia, temos uma espécie de dissolução de tudo quese poderia tomar como racional. Por exemplo, a religião politeísta grega termina dissolvendo-se nacomédia. Os deuses são postos como objeto de riso. Podemos dizer que os deuses morrem, mas nãomorrem de tanto rir, morrem pelo ridículo. Só depois disso é que o cristianismo começa a tomar acena no Mundo Antigo, depois de a comédia cumprir a tarefa de dissolver a crença de deusesbastante inverossímeis e bem pouco divinos. Voltando ao caso da tragédia, o elemento que apuramos até aqui, na minha narrativa, em primeirolugar, é o universal. A lei é universal, é a mesma para todos. Quando a lei pune, não exerce umavingança, promulga uma pena, que é a reposição do criminoso na ordem universal por ela criada.Então, aqui, temos essa idéia de instituição da justiça e retiramos a lei desse vaivém, dessa mudançade lado contínua, do que chamamos de "o mal infinito", uma vingança que não tem fim. Temos quepor fim a isso, elevando e mergulhando tudo no universal, ou seja, no homem universal, no homemtal como deve ser e não como é realmente. Ele é viciado, mau, pratica atos de insolência em relaçãoaos deuses, atos criminosos em relação aos outros homens, mas agora estamos pensando não nohomem real, mas num homem mais ideal do que real, que é aquele que deve ter tal ou qualcomportamento. A segunda tragédia a que me referi é Antígona, de Sófocles, na qual temos uma situaçãointeressante: o direito do Estado de manter-se e, portanto, exercer a sua razão de Estado. As razõesdo Estado contra a substância ética é um fato imemorial, cujas origens se perdem no tempo. Ahistória começa com dois irmãos, cidadãos de Tebas. Um deles, Polinice, retira-se de Tebas, alia-secom o inimigo e volta para usurpar o poder do irmão, Etéocles, rei de Tebas. Então, é Etéocles que sepõe à frente do exército, que vai repelir o invasor, comandado pelo seu próprio irmão, e o destinoquer que os dois se encontrem na mesma porta e que um mate o outro, na ferocidade do combate.Então, o novo rei proíbe que Polinice, o traidor, seja enterrado. Seu cadáver vai ficar insepulto, pastopara os animais selvagens e as aves de rapina, que se alimentam de cadáveres, e isso, como umaregra que o Estado impõe a todo traidor, é uma razão de Estado. Acontece que uma irmã dos dois,Antígona, segue a lei do seu coração, a lei do lar, a lei dos ancestrais, que ordena que nenhum corposeja deixado insepulto, que seja sepultado piedosamente. Ela, então, desafia a ordem do tiranoCreonte e sepulta o irmão, sabendo que seria presa e emparedada viva. É exatamente isso queocorre. A tragédia é essa necessidade cega que se abate sobre as personagens, com uma violência muitoforte. O grau de sofrimento que essa necessidade cega, que o destino impõe é muito alto para nós,homens. No entanto, um elemento para o qual gostaria de chamar a atenção não é a necessidade,mas a liberdade. É o elemento presente na consciência de Antígona, essa substância moral que lhevem dos antepassados. Ela diz: "Sei o que o destino fará comigo, o que me espera, mas desafio odestino e afirmo a minha liberdade". Aqui representamos o homem como ele deve ser, isto é, livre.Esse é o tom que desejaria enfatizar. Como terceiro exemplo, volto a Ésquilo, na sua tragédia Os Persas. Ésquilo foi combatente emSalamina, que impôs ao exército e à marinha persa uma derrota terrível. Ele, então, representa, napeça, a corte do rei Xerxes. A mãe de Xerxes, a rainha Apofa, tem pressentimentos estranhos. O reiDario está morto, ela convoca o seu espectro, mas ele não sabe de nada. Então, chega ummensageiro e diz: "O exército, a fina flor de todos os habitantes da Pérsia, dos nobres, está perdido,eles estão mortos". Ésquilo narra a história com maestria incrível, não existe nada supérfluo oupitoresco, somente o essencial. O teatro grego não representa propriamente, pois é uma narrativa. Oautor narra, com muita grandeza, o momento em que o rei Xerxes, assentado no trono, numamontanha perto de Salamina, contemplava a grande luta da esquadra persa com a esquadra grega. Oestreito de Salamina era muito raso, os gregos tinham barcos pequenos, mas com grande capacidadede manobra. Assim, causaram tal confusão que os barcos persas não conseguiram manobrar. Eles,então, puseram fogo nos barcos persas. Os guerreiros que se atiraram ao mar foram mortos abordoadas com os cabos dos remos. O rei Xerxes rasga as roupas em sinal de desespero e luta,voltando, derrotado, para a Pérsia. Então, ele narra somente isso. A pergunta que fica é por que um exército tão poderoso, tão glorioso, como o exército persa, perdepara um exército muito inferior, que foi reunido às pressas para fazer frente a ele? A explicação é ade que os gregos defendiam a pátria, os túmulos dos antepassados, as esposas e os filhos, ou seja,cada soldado grego defendia a sua própria liberdade, ao passo que os soldados persas não defendiamnenhuma liberdade, pois defendiam unicamente o seu senhor, o grande rei Xerxes. Heródoto, que era também contemporâneo, nos oferece uma teoria sobre essa luta entre a Europa ea Ásia. A Europa vence por causa do princípio da liberdade. Entre os persas, somente o rei era livre.Como todos eram escravos, ninguém lutava por si mesmo, mas por uma entidade que estava longe, orei. Os gregos, como eram livres, lutavam por seu pedaço de terra, por si mesmos e por sua família. Mais tarde, comentando esses fatos na sua História Universal, Hegel disse que entre os orientaissomente um é livre, todos os outros são escravos. No mundo grego e no mundo romano, alguns sãolivres, alguns são escravos. No mundo germânico, que se iniciou com o império de Carlos Magno -não necessariamente o mundo alemão, mas o mundo de onde surgiu a Europa moderna -, todos sãolivres enquanto homens, isto é, por essência. Como os persas desconheciam que não eram livres, nãoo eram. Como os gregos sabiam que eram livres, tornaram-se livres. Então, quero agregar esse outro elemento, o saber, à idéia de liberdade, ou seja, saber-se livre. Ora,o estado da liberdade é aquele que se sabe a si mesmo. Como? Sabe-se livre. Isso permite deixar umpouco a questão do teatro da liberdade, pois os exemplos citados são suficientes para refletirmos umpouco sobre alguns conceitos ligados a essa questão. Em primeiro lugar, a distinção entre livre-arbítrio e liberdade. O livre-arbítrio é uma condição necessária para a liberdade, mas não é suficiente.É preciso que a liberdade se dê leis. Quais leis? Leis universais, que dizem respeito a todos. Existemleis da liberdade. Montesquieu, no Espírito das Leis, diz: "A liberdade, mesmo no Estado moderno,não é a de cada um fazer o que bem entende, cada um fazer o que quer. A liberdade é cada um fazero que deve". O Estado é o lugar em que se encontram o éthos (o costume) e o cratos (a força, opoder). Qual é o costume? Nesse Estado imaginado e desenvolvido pelos gregos, o costume é aliberdade. Qual é a força? É a força de coagir, é a força que a liberdade deve ter, através do direito eda justiça, de se impor, porque ela é a expressão da própria razão. Não precisamos mencionar, ainda,os Estados democrático, republicano ou autoritário. Basta, por enquanto, falarmos sobre o Estado darazão, o Estado racional, que é o Estado ético. Por quê? É o lugar onde está a nossa soberania, ondeela está representada, assimilada, organizada, desenvolvida e capaz de se fazer prevalecer, senecessário, contra qualquer arbítrio e arbitrariedade. Uso os termos "arbítrio" e "arbitrariedade" numsentido muito próximo ao do chamado livre-arbítrio. Gostaria de citar outro exemplo, usando ainda atragédia Os Persas, de Ésquilo. O rei Xerxes fez dois tipos de ataque ao mundo grego, à Ática. Oexército foi por terra, e a marinha, por mar. Como não podia navegar em alto-mar, a esquadra foicosteando. Assim, foi um ataque paralelo: o exército em terra e a esquadra perto da terra, pois nuncaenfrentavam o alto-mar. Quando o exército chegou ao Helesponto, foi necessário construir uma ponteprovisória de madeira, a fim de que os soldados pudessem atravessar com seus cavalos. No entanto,uma tempestade destruiu a ponte e boa parte do exército morreu afogada. O rei Xerxes ficou furiosoe mandou açoitar o mar, como castigo, pois o mar ousou desobedecer ao seu desejo, à sua ordem.Isso é arbitrariedade. O déspota tem o arbítrio, mas não tem a liberdade. Poderíamos fazer essadistinção. Ao se pensar na liberdade como um poder de mandar, é preciso acrescentar a legitimidadede poder mandar, para que haja legitimidade em obedecer. Liberdade inclui mandar e obedecer. Ora,o déspota é arbitrário, não se fundamenta em nenhuma lei da liberdade, em nenhuma lei universal,mas na sua vontade caprichosa, que muda a cada momento, de acordo com a simpatia ou antipatiada pessoa em questão.

Heródoto, grande ideólogo da liberdade grega, conta que, quando Xerxes decidiu convocar todos paraa guerra, um nobre, seu comensal, pediu-lhe que seu filho mais novo ficasse para cuidar dele em suavelhice. O rei, então, convidou-o para almoçar. No dia do almoço, o nobre, muito satisfeito, observouque somente ele comia, pois o rei não se alimentava. Então, terminado o banquete, o rei destampouo caldeirão e dele retirou a cabeça do filho mais novo do nobre, dizendo-lhe: "Você sabe, agora, qualfoi o animal que acabou de comer. A comida foi boa?" O nobre, seguindo a etiqueta da corte,respondeu apenas: "O que agrada ao meu rei agrada também a mim." Heródoto conta esse fatomostrando exatamente o que é o arbítrio, o que é o mando de um só, que tem o arbítrio, mas nãotem a liberdade. Aqui é o domínio do singular, do capricho. Ele não gostou que o outro tivesse pedidoque o filho fosse poupado da guerra. Voltamos, agora, à idéia de universalidade. Portanto, faço a distinção entre arbítrio e liberdade.Arbítrio é uma condição necessária, mas não é suficiente para a liberdade. É preciso organizar oarbítrio. Como disse Montesquieu, é preciso querer o que devo querer, não o que me passa pelacabeça, pois isso é capricho. Essa universalidade, que venho descrevendo com tais exemplos, échamada de universalidade nomotética. É uma universalidade da lei. No mundo grego, nem todoseram cidadãos. Em primeiro lugar, somente os homens, pois as mulheres constituíam uma civilizaçãonoturna. Os negócios do Estado ocorriam na praça pública, nas assembléias diurnas. As mulherespresidiam o lar, cuidavam das divindades domésticas, noturnas. Geralmente, havia essacontraposição entre o aspecto noturno e o diurno. Os escravos também eram excluídos. Portanto, onúmero de cidadãos era restrito. Não obstante, os pensadores, filósofos, políticos e trágicos gregosforam capazes de colocar um ideal de justiça, de lei e de Estado. Um Estado como o lugar próprio doéthos, do comportamento. Qual comportamento? Não o comportamento real dos homens, mas aqueletal como deve ser. Alio a essa explicação a opinião de Montesquieu, isto é, a liberdade é ocomportamento do homem tal como deve se comportar, não como ele quer se comportar. Isto é umdesejo, mas devo contrariá-lo e, freqüentemente, fazer coisas que não desejo. Isto é liberdade.Satisfazer o desejo não é liberdade. Pelo contrário, freqüentemente, liberdade é contrapor-se aodesejo. Essa universalidade é nomotética, porque põe imediatamente uma lei, a lei do grupo, datradição. É uma substância ética que existe antes do nascimento das pessoas. No mundo grego, aspessoas eram educadas de acordo com tal lei, tanto que um pai pergunta a um filósofo pitagórico oque deve fazer para educar bem o seu filho. O filósofo responde que basta fazê-lo cidadão de umEstado que tenha boas leis. O Estado é o lugar próprio da liberdade, mas a liberdade é aquela que sebaseia na lei, na justiça, no universal, no dever, e não na vontade desregulada, desligada do dever e,menos ainda, no desejo ocasional e aleatório. Então, essa universalidade é nomotética. A isso damoso nome de totalidade grega, porque o indivíduo, por ser cidadão, é universal, encontra no Estado asua própria essência exposta diante dele, desenvolvida e organizada. Agora, não existem mais crimesde sangue, existe o tribunal, a lei. O Estado moderno coloca essa universalidade nomotética em crise.Ele começa com o individualismo, a subjetividade, coisa que os gregos não conheciam. Não há, emgrego, palavra para significar o que expressamos com "consciência subjetiva", com "sujeito". Em segundo lugar, os indivíduos vivem, agora, em grandes espaços. A cidade grega, com dez milhabitantes, era uma megalópole, onde todos se conheciam e não havia representação política. Erauma representação direta - cada qual representa a si mesmo. Nesse caso, não elejo meusrepresentantes; não há representantes do povo. Depois, no mundo romano, é que começam osagitadores demagogos, com seus comícios, e sua clientela, a falar em nome dos outros. Mas, emprincípio, na cidade grega - cidade pequena -, só o cidadão representa a si mesmo; o cidadão épolítico. Em princípio, todos podiam, ao menos por uma dia, chegar à Suprema Magistratura, porsorteio, por exemplo. Não há incoerência em termos aqui o sorteio e não o voto, pois, por definição,todos são iguais, universais, todos são expressão visível da lei e do dever. Então, há aqui uma uniãoimediata com esse ideal do Estado. Pergunto mais uma vez: qual é esse ideal? Heródoto járespondeu, há muito tempo: é o ideal da liberdade. Mas, insisto, da liberdade organizada, daliberdade viva nas instituições, prevalecendo sobre qualquer recalcitrante, qualquer criminoso quedesafie a lei do grupo, a lei das tribos, dos demos, das cidades. No Estado moderno, começam a existir as grandes extensões. Às vezes, temos indivíduos quepertencem ao mesmo Estado, mas que falam línguas diferentes e têm culturas diferentes. Auniversalidade desse Estado não é mais nomotética, não se põe a si mesma. Não é mais claro, àprimeira vista, que o Estado é o lugar da liberdade. Essa liberdade não é mais dada; terá de serconstruída por meio de um pacto. É uma universalidade hipotética: passamos pela hipótese do pacto.Em Hobbes, por exemplo, fazemos um pacto para nos assegurarmos contra a violência. Como nãosomos anjos, mas espíritos que possuem corpos (e o corpo está aí no exterior, no espaço e no tempo,ao alcance da violência alheia), é preciso garantir o direito do corpo e o da propriedade - que é umprolongamento desse corpo, dessa existência - contra a cobiça, o assalto, a violência alheia. Então,fazemos um pacto e transmitimos a um terceiro - o Príncipe - o monopólio da violência; com isso, elevai exercer o poder em nosso nome, recebendo de nós essa transferência. Esse pacto nos garanteuma convivência razoavelmente pacífica. Vejam bem: o pacto aparece em Hobbes como aquilo quedeve por fim à violência, ao estado de natureza. Em segundo lugar, essa universalidade é hipotética: só se alcança se o Estado se organizar de talmodo que haja uma garantia por parte desse terceiro vindo de fora - o Príncipe - de que os cidadãosque lhe delegaram, pelo pacto, o poder do uso e do monopólio da força serão tratados igualmente. Em Maquiavel, quase cem anos antes, já tínhamos essa separação, também terrível, entre a ética e apolítica. No mundo grego, no mundo clássico, a ética e a política fazem um. O ethos é ocomportamento, o costume. Pois bem, esse ethos se organiza politicamente na forma da liberdade,da universalidade livre. Essa é a universalidade nomotética, do nomos, da lei. Aqui, não precisamosperguntar quem manda. Podemos afirmar com segurança: a lei. Com a universalidade hipotética,começamos a precisar perguntar quem manda. É o Príncipe. E esse Príncipe recebe o poder de quem?Qual é sua legitimidade? Essa legitimidade vem de um pacto presumido - nunca acontecido, maspresumido - que vai garantir o meu direito à existência, à propriedade etc. Em Locke, por exemplo,temos essa idéia de um pacto que deva garantir a propriedade. Então, a universalidade se constitui sea propriedade de todos estiver garantida. Vejam bem: a universalidade hipotética é semprecondicional: se esse sistema funcionar e o Príncipe garantir as liberdades e, mais do que isso, garantiras propriedades, então, estabelecemos uma universalidade. Quase cem anos antes do Leviatã, que éde 1615 - O Príncipe é de 1513 -, Maquiavel já havia dissociado a ética da política, havia mostradoque podemos encerrar a ética na subjetividade de cada um, que é um homem ético, que sabe o quedeve e o que não deve fazer. O que vamos exigir do Príncipe é que tenha a virtude da força - virtude,aqui, no sentido de força -, que seja obedecido. Então, em O Príncipe, ele vai mostrar como seadquire e como se mantém o poder do Estado na mão de um príncipe, descrevendo o mecanismodesse poder sem quaisquer considerações a respeito da sua finalidade. Quer dizer, o poder é aquiloque vai permitir, de acordo com o pacto, tal ou qual coisa: por exemplo, vai possibilitar a convivência,permitir que resistamos ao inimigo, por meio do exército, que tenhamos a propriedade etc. Então, aqui há uma dissociação entre ética e política. Quando a universalidade nomotética desaparecee é posta em seu lugar uma universalidade hipotética, já não há nenhuma utopia de liberdade pelaqual morrer, pela qual cumprir o dever. Leônidas, por exemplo, vai defender o desfiladeiro das Termópilas contra o exército persa, que eramuito superior. Assim ele o faz, mas todos morrem. Então, os gregos escrevem, em uma placa, maisou menos o seguinte: estrangeiro, ide dizer às outras pessoas que aqui morreram Leônidas e outrostantos companheiros, na defesa de sua terra, de sua pátria. Aqui há, portanto, a idéia de dever, damorte pelo dever. E essa morte recebe um prêmio: é lembrada na consciência dos concidadãos epassa a pertencer à memória dos mitos que serão narrados daí em diante. Então, tem um sentido, oqual faz parte da vida humana. Com a universalidade hipotética, já não há nenhuma utopia, nenhum padrão pelo qual algum de nósdeva morrer. Já não há mais o heroísmo necessário, porque a universalidade hipotética visa a um fim.Ela é instrumental: os homens são instrumentos práticos para a realização de determinados fins, enão há razão em morrer por esses fins, que não são os fins da dignidade e da liberdade humanas. Então, surge aqui um problema que é da teoria política moderna, não das teorias políticas gregas:como podemos unir indivíduos isolados, cada qual vivendo em sua subjetividade, em seu egoísmo,com seu "eu" particular, e deles fazer um povo, um Estado? Pelo pacto. Como todos têm medo,vamos delegar o poder e o monopólio da violência a um terceiro, ao Príncipe. Há um escrito de Freud, se não me engano de 1923, chamado Psicologia de Massas e Análise do Eu,que é um livro de Metapsicologia, onde ele aborda um problema muito interessante, que ilustra bemesse contexto. Ele se pergunta como podemos transformar uma multidão amorfa em uma coisaorganizada, e, para explicar, toma os exemplos do exército e da igreja. Qual é a finalidade doexército? É ser eficiente e matar o inimigo. Então, vamos fazer com que os soldados possam dizer"nós", nosso batalhão. Aqui o "eu" é um "nós" mediante o pacto que todos fazem entre si de que vãoatacar e matar o inimigo e se defender em conjunto. Então, essa universalidade do "nós" não énomotética; é uma hipótese, para que o exército funcione bem. Ainda no caso do exército, temos omarechal, ou o general, que funciona como um grande pai. O exército tem uma hierarquia, pela qualflui o seu poder. Cada um recebe, digamos assim, a imagem de si mesmo posta nessa hierarquia: apessoa se reconhece como soldado, como sargento ou como capitão; se reconhece em tal tarefa,própria do soldado, ou em tal outra, própria do infante ou do cavalariano. De qualquer forma, asfunções dos "eus" que constituem esse conjunto artificial - o "nós" de um batalhão - são postastambém artificialmente. A mesma coisa ocorre na igreja, diz Freud, tomando o exemplo da Igreja Católica, na qual os fiéis sereúnem na fé em Cristo. Temos, então, os católicos e os pagãos, os fiéis e os infiéis, nós e os outros.E nos tornamos fortes na medida em que combatemos os outros, os irreligiosos, os ateus, os de outrolugar, que não compartilham das mesmas verdades. Não vou nem evocar Voltaire, que brincava comisso, dizendo que os homens são tão estúpidos que se matam porque uns acham que devem adorar adivindade voltados para Meca, e outros acham que devem adorar a mesma divindade voltados paraRoma. Mas não é bem assim. O que ocorre aqui é que o poder de dizer "nós" se dá mediante umtermo médio, que é a crença comum; é a eficácia da Igreja, que só se define como um grupo para osque são de dentro quando se afirma como grupo contra os que são de fora. Quem não está comigoestá contra mim e, portanto, é inimigo. Matemo-lo. E, para matar o inimigo, vale tudo: podemosqueimá-lo na fogueira ou fazer todas as atrocidades imagináveis. Lembraria aqui o processo deGiordano Bruno, que é muito interessante. Esse frade dominicano era mesmo muito atrevido e, porvolta de 1600, passou a defender a pluralidade dos mundos, o que criava um sério problema: seráque, nesses outros mundos, terá havido a necessidade da redenção, da Paixão, da morte na cruz etc?

Eram questões muitas chatas e difíceis de ser respondidas. Então, a Santa Inquisição conseguiucolocar as mãos nele, que foi chamado a abjurar. Recusou-se, e a Santa Inquisição promulgou umbelo decreto: vai ser morto sem derramamento de sangue e com o menor sofrimento possível. Foicolocado na fogueira, sem derramamento de sangue, e o sofrimento de ser queimado vivo,obviamente, é muito menor do que o provocado pelas chamas do inferno. Mas temos aquiexatamente a idéia de intolerância ligada a este grupo artificial - no sentido de que não é um grupoque se reúna naturalmente. Depois que a Igreja se organiza como instituição, ele passa a ser definidopor meio de dogmas, de uma hierarquia, e mediante o fato de se colocar a favor de si mesmo, e, aomesmo tempo, estar a favor dos de dentro e contra os de fora. Claro que isso talvez valha para um período da Igreja, mas não necessariamente para todos osperíodos.

A idéia aqui, típica dos sistemas políticos modernos, é a seguinte: como é que os "eus" dispersos, osindivíduos dispersos formam ou podem formar um Estado? Que Estado é resultante dessa formação,que não é mais aquela que vem da tradição mais antiga, da religião tradicional dos antepassados,mas que é posta por um pacto político? Entre 1801 e 1803, Hegel escreveu um livro sobre aconstituição da Alemanha, no qual diz, claramente, o seguinte: para o Estado moderno, basta teruma administração centralizada que inclua a justiça, o exército. E pronto. Temos aí a possibilidade dese formar um Estado visivelmente artificial. Ora, ninguém se encontra a si mesmo, na sua soberania,nesse Estado artificial. É preciso que um longo processo de educação política faça com que mereconheça como igual, como pertencente a este "nós" que pronunciamos no nosso Estado. E é um"nós" muito diferente - assim como havia diferença quando os gregos diziam nós, homens, ou nós,mulheres. Aqui, também para nós, vai haver a diferença de classe, de testamentos, de regimentos,de situações as mais diversas, subdivisões infinitas. Pois bem, apesar disso, ainda assim, o Estado moderno possuía a sua soberania. Essa soberaniaclássica do Estado vai dizer, mais uma vez, embora de maneira artificial, que o comportamento, ocostume e a força estão juntos. O poder do Estado é o poder, a força de organizar indivíduosdispersos, formando um "nós", uma unidade. Essa unidade é diversificada, existem muitos sistemasde hierarquias dentro dela, mas os indivíduos podem fluir dentro dessa totalidade com o Estado,porque, por suposto, podem crer que o Estado represente a sua soberania. É a idéia de Rousseau arespeito da soberania e da vontade geral. A vontade geral não é a vontade de cada um, como se eusaísse consultando: o que você quer? e você? Simplesmente, a vontade geral é a vontade decoexistência, de racionalidade, de liberdade, de tratamento, ao menos em princípio, igual e assim pordiante. A questão que gostaria de formular muito mais como um problema do que como algo que queiradesenvolver longamente é a seguinte: chegamos a um ponto em que tínhamos, até por volta de1800, a economia política. Ou seja, a economia fazia parte do universo político, dizia respeito àriqueza da sociedade civil, de acordo com a visão que Hegel nos apresenta na Filosofia do Direito, e oEstado ficava com o poder. O poder do Estado é o lugar ético, o ponto de nascimento, de confluênciado costume com a justiça e com o direito da força. A força submetida à lei, à justiça. No nosso século, a economia se torna political economy e de economy se torna economics - ciênciaeconômica. E essa ciência econômica não está mais subsumida, não é mais um adjetivo ligado aEstado. Não é mais uma economia do Estado. Ela é desligada. Assim como desligamos a ética daaquisição e manutenção do poder, como Maquiavel, agora damos um passo adiante e desligamos aeconomia do poder do Estado. E a economia passa a vigorar como uma espécie de natureza que temsuas próprias leis e que se impõe à vontade de cada um de nós. A economia não temsentimentalismos, não é boa, nem má, não deseja o bem nem o mal a ninguém. A economia é,simplesmente, uma ordem de circulação de riquezas, de produção de bens de consumo. Não diz nadaa respeito dos indivíduos. Então, poderíamos dizer que nesse Estado moderno perdemos de vista o que ainda restava da nossasoberania. Não é por acaso que, até 1821, data da publicação da Filosofia do Direito, de Hegel,tínhamos um conceito forte de soberania, explicitado no final de seu livro. Como os Estados sãosoberanos, as disputas entre eles são resolvidas pela guerra. As disputas entre os cidadãos dentro deum Estado são resolvidas pela Justiça, porque o Estado é soberano e tem poder para resolver essasdisputas. Entre os Estados, porém, não havia esse poder e, portanto, a guerra parecia uma espéciede tribunal da história. Pois bem, no desenvolvimento da economia moderna, mais recentemente, da economia daglobalização do Estado liberal, o que acontece? A economia torna-se mundial. Aquele tribunal dahistória representado pela guerra, a capacidade de julgar os Estados que deviam sobreviver, dedeterminar os que deviam mandar e os que não deviam, tudo isso agora é dissolvido. Clausewitz, ogrande teórico da guerra, havia dito que esta é a continuação da política por outros meios. Umcomentário de um cientista político americano, Anatol Rapoport, diz que talvez ele fosse mais justo sedissesse que a política é a continuação da guerra por outros meios. E nós, então, talvez inspiradosnisso, podemos dizer que a economia é a continuação da guerra por outros meios, ou seja, aquilo queresolvíamos com a beligerância, por exemplo, a polarização entre os Estados Unidos e a UniãoSoviética, cessou, pulverizou-se em centenas de guerras localizadas e parciais, terrivelmente cruéis,que não conhecem nenhuma regra. É a fúria da destruição desencadeada. Mas o que importarealmente nesses Estados adiantados, que conseguiram se organizar para uma vida moderna, com osbens e as comodidades da vida moderna, é que eles já não precisam recorrer à guerra, mas à bolsade valores, que agora é um juiz que não deixa nenhuma dúvida. O veredito é realmente definitivo:"Faça isso e eu não venho comprar suas coisas, aumente os juros para 50% e eu levo o meu dinheiropara outro lugar". Então, nesse caso em que a economia política se tornou ciência econômica - "economics"-, e a políticase tornou o político, voltamos àquele Estado em que o sujeito, os indivíduos, os múltiplos "eus" nãose reconhecem nesse "nós", que é esse Estado que não tem uma face, a face da soberania. Talveztenhamos uma soberania fraca, quase que puramente protocolar. Os presidentes de Estado nãodecidem mais, não mandam mais. Apenas representam o Estado para receber e visitar outros Estadose fazer reuniões de cúpula que também nada resolvem. Resolvem exatamente as pessoas sérias daeconomia, que trabalham com a seriedade da economia. Os outros são relações públicas. Então, esseEstado perdeu a substância ética. Por quê? Porque não é mais o Estado da liberdade. Não mereconheço mais na soberania do Estado. Não há mais soberania do Estado. Atentemos, pelo menos,para isso. O Estado brasileiro há muito tempo não fazia valer e até agora não faz valer, por exemplo,a sua soberania nas favelas e nos morros das grandes cidades. Lá vigora uma lei própria dostraficantes, dos que se armam e têm as metralhadoras nas mãos. Então, estabelecem o toque derecolher, estabelecem que deve haver honestidade com o usuário de drogas - porque senão eledesaparece -, que não se deve hostilizar nem assaltar ninguém. Então, estabelecem leis próprias nolugar da soberania do Estado, que deixou de existir. Nas bolsas de valores, a soberania deixou de existir. Existe o interesse, o lucro. Aquele absoluto naterra, que é o Estado, segundo Hegel, que era o absoluto ético, onde nos reconhecíamos livres,perdeu essa soberania. Com isso não nos encontramos mais; nos encontramos como mercadorias,trocando, vendendo e comprando. Só isso. Então, somos parte de uma razão instrumental. Somosinstrumentos de troca, de compra e venda, de consumo. Queria chamar a atenção para esseproblema e para a necessidade de propor uma revisão do conceito de soberania. Por exemplo, noDicionário de Política, dirigido por Norberto Bobbio, o verbete soberania é bem melancólico.Realmente, é difícil manter a idéia de soberania diante das multinacionais, das quedas de barreiras,de fronteiras etc. A minha pergunta, então, é a seguinte: realmente, caminhamos para um Estado mínimo, um Estadoque não seja empreendedor, que deixe o empreendimento comercial, industrial etc. para a sociedadecivil? Mas esse Estado mínimo tem necessariamente que ser um Estado fraco, incapaz de definir oque quer, o que exige, o que admite, ou não, da parte dos outros? Da parte do capital volátil, porexemplo? Será que o Estado mínimo é aquele que entrega a sua soberania e a põe a venda e deixaque seja objeto do arbítrio alheio? E aqui já não é mais a liberdade alheia. É o arbítrio. É o querercomprar e o querer vender. É o querer aplicar ganhando 50% de juros, porque o risco é muito alto.Somos jogadores, temos os nossos caprichos. Do contrário, retiramos o dinheiro. Sim, aceno nesse final de preleção para a perda da nossa dimensão utópica. Não temos nenhumautopia mais para oferecer. Não há nenhuma razão de morrer pela pátria. Não há nenhuma razão deheroísmo. O Estado clássico, dizia Hegel, tem o direito de exigir de seus filhos a morte. Por exemplo,na guerra, para a defesa de seu território. Mas o Estado comercial aberto, o contrário do Estadocomercial fechado, sobre o qual escreveu Fichte. O Estado comercial aberto, o Estado mínimo, que éfraco, perdeu justamente essa capacidade de representar a nossa soberania. Já não temos nada aoferecer à população, algo pelo qual ela deva se sacrificar. Aí é que entram essas igrejas alternativas,que perceberam que podemos vender paraísos artificiais. Baudelaire já havia mostrado isso por meiodo que ele chamava de "comer ópio". Em sua época, usava-se esse entorpecente para criar sonhos eparaísos artificiais. Também passamos por essa fase, mas ela já se encerrou. Criamos paraísosartificiais e individuais para os quais fugimos. A nossa arte, em grande parte, é uma arte da fuga, nãono sentido clássico da palavra, mas no de entretenimento. É a música do elevador, a novela detelevisão, que nos tiram da realidade na qual somos meio e nos colocam numa realidade artificialonde podemos sonhar um pouco e exercitar o nosso desejo. Nessas religiões alternativas, medianteum dízimo modesto de dez ou vinte reais, conforme o que cada um ganha, podemos comprar oparaíso aqui. Estamos certos de que, comprando o paraíso, vamos ser beneficiados pela graça divina.De fato, muitos são, porque deixam de lado certos vícios e passam a trabalhar, se é que encontramtrabalho. De qualquer forma, são paraísos artificiais de natureza religiosa, mística, são as crençasorientais, o tarô, enfim, tudo que estabelece uma espécie de maravilhoso, dura um certo tempo esatisfaz essa perda da utopia. Enfim, perdemos nossa soberania, perdemos também a utopia, o idealpelo qual podíamos viver, e ainda não conseguimos colocar nada no lugar. Proporia uma reflexão detodos nós a respeito dessa questão, que me parece muito importante. Apenas indicaria que o Estadomínimo poderia ser maximamente eficiente, poderoso e forte. Depende apenas das nossas opçõespolíticas. Era o que tinha a dizer. Muito obrigado.

© Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 9-39, jul./dez. 1998.

Page 4: Cadernos da Escola do Legislativo nº 8 - Julho/Dezembro 1998

Ética e Política, Uma Tragédia do Mundo Ético José Henrique Santos

DEBATES

O Sr. Coordenador (Leonardo Noronha) — Antes de passar aos debates, gostaria de agradecer ao Professor JoséHenrique Santos por haver compartilhado conosco sua imensa erudição e simplicidade. Temos tido o privilégiode ouvir aqui pessoas com grande conhecimento, mas sabedoria não é todo dia que temos. Sabedoria é oconhecimento entranhado e é a capacidade de trazer para a interpretação dos fatos de hoje as leituras do passado;é fazer o convite da leitura da tragédia pelo viés da liberdade; é destilar a capacidade de nos indignarmos, de nosvermos perplexos, mas sabendo trabalhar por um mundo diferente, em que volte a ser possível a utopia.

Gostaria, também, de perguntar o que acham da possibilidade de um trabalho político capaz de criar a consciênciade um Estado forte, ainda que mínimo. Um Estado pequeno. O mau gosto usa muito esta expressão horrível:"cortar gorduras". Enfim, não vou dizer um Estado magro, mas forte.

Pergunta — Professor, pincei alguns trechos da sua preleção e cheguei à conclusão incômoda de que, no começo,o senhor nos passa a idéia de que as pessoas que não têm acesso ao julgamento, à justiça universal, ficamsubmissas a essa justiça singular, arbitrária. Mas, depois, quando fala da dissociação entre ética e política noEstado moderno, o senhor cita os pactos presumidos. Pelo que entendi, as pessoas são presas muito fáceis dajustiça singular, quando o uso da força pode ser tão parcial e inconstante quanto a própria justiça singular. Então,temos um Estado moderno baseado em pactos presumidos, que estaria necessária e intrinsecamente aberto a umajustiça singular e excludente no que diz respeito a uma maioria marginalizada, principalmente no Brasil. E, nessecaso, vale a pena investir na figura do Estado moderno, ainda que mínimo, ou podemos partir para a formação deuma sociedade civil, com base em outras palestras que tivemos sobre desobediência civil? Qual caminho o senhoracha mais razoável?

O Sr. José Henrique Santos — Podemos considerar o Estado clássico, talvez, como um Estado que é dado. Éconstituído de uma forma imemorial, identifica-se geralmente com uma nação e com o grupo que evoluiulentamente da vida rural para a vida urbana. Em um Estado moderno, temos que reconstruir o Estado. Ele não édado, daí as tentativas da teoria do pacto de encontrar um fundamento para essa reconstrução do Estado. Todavia,no Estado clássico, pelo menos, sua legitimidade baseia-se no fato de ser, em primeiro lugar, o Estado da razão, e,em segundo, o Estado da liberdade. Isso está claro no mundo grego, onde alguns eram escravos e alguns eramlivres. Não obstante, foram capazes de criar uma simbologia, uma filosofia, toda uma série de conceitos teóricos arespeito do modo de se organizar um Estado. Somos herdeiros disso, não nos esqueçamos. Apesar de haver, porexemplo, justiça, continua a haver injustiça. Apesar de termos o ideal da justiça, continuamos a praticarcrueldades inomináveis contra outros homens, contra etnias inteiras, e assim por diante. Há uma distância entremundo teórico — mundo conceitual — e mundo real. E essa distância é atravessada fundamentalmente mediantea formação, a educação, que não é a educação formal, aprendida na escola. É aquela que vem dos exemplos, etambém, por que não, da religião, que é um fortíssimo educador social. E também vem das práticas dasorganizações que um grupo resolve considerar importantes. Todos os grupos sociais julgam importantes certaspráticas. Não importam quais sejam, pois são necessárias à sobrevivência do grupo e àquilo que os clássicoschamavam de a boa vida, quer dizer, a vida boa de ser vivida. O trajeto dessas idéias até a realidade é muito lento.Temos, por exemplo, toda uma série de idéias a respeito dos direitos humanos. E, por isso, os direitos humanossão mais respeitados? Continuam sendo desrespeitados em toda parte, mas, pelo menos, aqueles que osdesrespeitam têm que se esconder. Quando descobertos e denunciados, são punidos. Então, o caminho é muitolongo. Geralmente, na nossa impaciência, apelamos para a idéia de revolução e nos esquecemos freqüentementede que é inútil fazer uma revolução sem ter feito antes uma reforma. No caso da Revolução Francesa, osjacobinos queriam obrigar todos a serem livres, sem os meios, o aparato do Estado, para isso. E a liberdadeabsoluta termina no terror. No oposto do que se desejava. Então, não podemos querer os fins sem os meios. Eesses meios passam por difícil formação. Agora, isso é uma educação que vem do exemplo, da opinião pública,dos meios de comunicação. Há uma série de fatores que levam as pessoas a tomarem consciência de que umarevolução tem que se acompanhar de uma reforma da mentalidade, dos preconceitos. Então, a RevoluçãoFrancesa não podia terminar a não ser no terror, porque não havia meios de o Estado fazer funcionar aquelasliberdades tão generosamente apregoadas. Quando obrigo alguém a ser livre, já estou praticando o oposto do quepretendo. A Rússia moderna, por exemplo, que tenta recolher impostos, não tem nem mesmo os instrumentos, asrepartições e os guichês recolhedores de impostos. Então, precisamos ter os meios para conseguir chegar a isso.Mas os meios são muito lentos. Penso que o Estado moderno tem que ser construído pela educação política dopovo. Agora, aqui concorrem todos os fatores para que possamos tomar consciência de um grupo: asorganizações da sociedade civil, as organizações religiosas, profissionais, etc. Durkheim, por exemplo, naDivisão do Trabalho Social, tem grandes esperanças nas associações profissionais para se criar uma ética comuma um povo, porque há uma ética em cada profissão. Há um éthos, um comportamento obrigatório para cadaprofissão, sem o qual não se obtém sucesso. Então, o próprio progresso das profissões, das técnicas, deveriadeixar claro que esse progresso exige um éthos, um comportamento ou uma ética da sociedade industrial, dasociedade comercial e assim por diante. E a religião também não está longe disso. A religião, no fundo, não ésenão a expressão desse desejo de a sociedade encontrar o seu ponto comum e dizer: nós. Um eu que é um nós.Mas em que circunstância posso dizer que nós decidimos, que nós vamos fazer isso? Em que ponto falo em nomede todos os outros eus? Um líder político? Por que nós todos, cidadãos, devemos obedecer? Isso tem que serconstruído, já que não é mais dado pela tradição. A explosão da bomba atômica, no Japão, por exemplo, destrói areligião do Mikado do dia para a noite. Ninguém acredita mais que o Imperador é Deus. A tecnologia tende acriar um mundo em que as crenças se tornam individuais, nos paraísos artificiais de cada um. Então, não maisvemos o nosso semblante no outro. Essa é a questão crucial da sociedade moderna, sendo o ponto de partida detoda teoria moderna. Trata-se da capacidade de ver a mim mesmo nos outros. Quais são os outros? Todos osoutros. Não importa a cor, o credo, as preferências sexuais e outras características. Então, do ponto de vista ético,trata-se da ética da tolerância. Consideraremos que o valor mais alto é a nossa convivência em um grupo e, paraisso, teremos de ser tolerantes, começando com a instituição do casamento, em que há uma aprendizagem mútuaentre esposo e esposa, cada qual cedendo algo para poder encontrar um ponto comum. Esse ponto comum é anossa dificuldade. Isso tem de ser construído, porque não é dado. Então, a resposta seria vaga através daeducação. Mas esta envolve muitos elementos, não se trata apenas da educação formal.

Pergunta: Há uns três ou quatro anos, houve uma palestra aqui, na Casa, na qual o Professor Roberto Romanoabordou justamente a questão da ética. Na época, criticou uma palavra de ordem, em voga naquele momento,envolvendo a questão da ética em política. Ele lembrava que, em sua própria origem, éthos, a palavra "ética" nãorepresentava algo necessariamente bom, podendo ser bom ou ruim.

O Sr. José Henrique Santos — A palavra "ética", em sua origem, éthos, possui dupla significação. De um lado,quer dizer "hábito", "costume". De outro, significa o local onde as pessoas se encontram. Por exemplo, há umaética ou um éthos muito antigo entre os animais, o curral. O covil das feras é o éthos, ou seja, é o lugar delas.Qual é o éthos do homem? Aí está a questão. E a resposta é a liberdade.

Pergunta — Lembrando ainda essa palestra do Prof. Romano, em que ele dizia que o Brasil tem uma das pioreséticas do mundo, e que aqui se encontra o que não se encontra em nenhum lugar, por exemplo, a ética dapistolagem, a ética da capangagem, a ética das prisões, gostaria de saber qual a sua análise da questão expostapelo Prof. Romano. A segunda relaciona-se ao tema da palestra de hoje, ética e política, e penso que estamos noepicentro de um processo político, que é um processo eleitoral. Estava lendo, hoje, nos jornais, uma entrevistacom um "marqueteiro" que fez a campanha de Rossi, em São Paulo. Ele se indignava com o apoio de Rossi aMaluf, uma vez que ajudara a fazer a frase: "Chega dos `mesmos', chega do `rouba, mas faz'". O senhor falou daquestão da educação ética de um povo. Até que ponto, na sua análise, a política, como vem sendo praticada noBrasil, está degradando os costumes, ou seja, a ética brasileira?

O Sr. José Henrique Santos — Talvez possamos começar com a distinção entre ética e direito. A distinção quefaria é a seguinte: a ética é uma lei auto-imposta. Alguém impõe um comportamento a si mesmo. O direito é a leiimposta de modo coercitivo. Se o fulano a transgredir, nós a imporemos através da força. Não vejo muito sentido,na análise do jogo político, fazer essa distinção entre ética e direito. No jogo político, temos certas regras, quetemos de aperfeiçoar. Não adianta fazer juízos políticos sobre o fato de ele fazer tal aliança hoje, já que a rejeitaraantes, ou a rejeitará depois. O jogo permite isso. Essa é uma questão moral, que diz respeito ao indivíduoisoladamente. Quando uso a palavra "ética", aponto muito mais para uma ética social, como toda a moral, nofundo, acaba sendo ética, ou seja, toda a moral individual não pode ficar isolada, pois acaba no sistema derelações das pessoas, acaba sendo uma ética social. Então, dizer que a lei permite não quer dizer que, no jogopolítico, seja ético. Não adianta ficarmos condenando, dizendo que fulano violou a ética. Qual ética? A minha,subjetiva? Existem tais e tais regras. Se ele as seguiu, não há como ficar acusando-o de antiético. Parece-me queo problema seria a luta pelo aprimoramento não apenas dos costumes políticos, mas das regras do jogo político.Os costumes sempre buscarão o quê?

O nosso tempo é pós-maquiavélico, e isso é uma aquisição definitiva. Os nossos costumes políticos vão ter como

meta, primeiramente, conquistar o poder, e, em segundo lugar, mantê-lo. Vale tudo? Não como Maquiavel queria,

até o assassinato, mas vale tudo o que a regra do jogo

permitir. Podemos ter um sistema eleitoral muito melhor. Parece-me que não se trata de uma opinião filosófica.

O voto distrital permite, por exemplo, o controle dos políticos por parte dos eleitores. A política é muito sériapara

ser entregue aos políticos. É preciso que tomemos isso em mãos. O voto distrital facilitaria muito esse controle. Opolítico prestaria contas aos seus eleitores, que não são abstratos, não são convocados apenas na época da eleição.

Os eleitores teriam algum controle sobre os seus representantes. Deveríamos lutar para melhorar o controlepolítico nessa parte.

A fidelidade partidária seria outro aspecto importante a se considerar. Outra regra é não permitir a existência demil partidos pequenos, porque meia dúzia de pessoas se juntam e fundam um partido. Deve-se exigir um númeromínimo, talvez. Enfim, há uma série de procedimentos a serem tomados, que permitiriam o aprimoramentodesses costumes. Não sou especialista neste tema, que deveria ser tratado pelos meus colegas da Ciência Política.A questão das subvenções é obscura entre nós, pois se trata de um problema que não conseguimos resolver. Ascampanhas são muito onerosas. Penso que temos maus costumes não só em política. Apenas discordaria docolega Romano no seguinte aspecto: os nossos maus costumes dizem respeito a outros assuntos, e não apenas aojogo político. De fato, éthos é o costume, mas, quando penso no éthos como hábito, que é a definição deAristóteles, penso nos bons hábitos. Esse é um fator que apenas é obtido com a educação. Platão, por exemplo,disse que um Estado com educação boa não precisa de leis, porque todos sabem qual é o seu dever e o cumprem.Há essa idéia de que temos de tolerar certos comportamentos, dentro das regras do jogo, mas podemos melhorá-las, não permitindo "golpes baixos". Como no boxe, temos golpes apenas acima da cintura, não podemos darcabeçada e cotoveladas. Enfim, há uma série de restrições, e os jogos esportivos dão um bom exemplo. Só hájogo, como no esporte, se todas as regras estiverem em vigor. Se fosse dada uma bola de futebol para cadajogador, o jogo seria liquidado. Talvez fosse justo cada um brincar com a sua bola, mas o interesse está na tensãoem torno das regras que definem o jogo. Parece-me que não estamos muito longe de chegar à possibilidade dealterar o nosso sistema eleitoral. De uns cinco anos para cá, progrediu muito essa idéia de mudança do sistemarepresentativo. Seria uma idéia a ser discutida, não apenas pelos políticos. Pode-se fazer uma paráfrase com aquestão da guerra. Ela é muito séria para ser entregue aos generais. A política é muito séria para ser entregue aospolíticos. Ela deveria ser entregue a todos nós. Não que exerceremos mandatos, mas teremos meios de fiscalizaros nossos políticos e cobrar comportamentos dentro de regras mais claramente definidas, que não sejamcasuísticas e não favoreçam uma reeleição, para que quem esteja no poder não use a máquina do Estado paraaparecer como o grande sociólogo do País.

Pergunta: Penso que seja possível analisar o Estado como um círculo social. Em um dado momento da história dahumanidade, uma série de circunstâncias concorreram para que ele acontecesse. A esse respeito, gostaria deperguntar-lhe se o senhor acha possível pensar o Estado de forma contingencial, ou seja, se é possívelcomeçarmos a pensar em parâmetros diferentes, como conceber coletividade, ética, sociedade sem,necessariamente, pensar em Estado. É possível conceber paradigmas diferentes, no plano internacional e mundial,para essa análise e para termos o mesmo que tínhamos? É possível uma nova realidade para isso?

O Sr. José Henrique Santos — Não sei. Essa é uma pergunta muito difícil. Não temos a capacidade de dizer o queserá, ou o que pode e deve ser. Podemos dizer o que foi e o que é, não mais do que isso. Parece-me que se trata deum Estado universal. Nos Estados Unidos, há uma grande organização para o Governo Universal, que está muitovinculada a certa crença oriental na bondade dos homens, mas eles não são naturalmente bons, tornam-se bons sese submeterem à lei. Nessas circunstâncias da economia mundial, precisaremos do Estado por muito tempo. Eprecisaremos de um Estado que não seja empresário, que não possua hotéis e siderúrgicas, mas um Estado forte ecapaz de regrar o fluxo de recursos, sabendo o que é conveniente e o que não é. Sou um pouco céptico comrespeito a essa anarquia, ou seja, a essa idéia de que possamos viver sem um Estado. A utopia presente noMarxismo, ou seja, a abolição do Estado, obviamente não teve e não teria, a meu ver, nenhuma viabilidade.

Pergunta: Gostaria de maiores esclarecimentos sobre o próprio conceito de liberdade, o qual se reveste de umacomplexidade muito grande porque envolve uma série de ideologias. Gostaria que o senhor esclarecesse o queseria liberdade interna, hoje, no Estado, já que se trata de algo bastante complexo no mundo globalizado.

O Sr. José Henrique Santos — Vejo a questão da seguinte maneira: só somos livres submetendo-nos às leiscomuns, à lei básica, que é a Constituição, e a todas as leis dela derivadas. Por mais defeituosa que seja a lei, pormais que seja violada, sempre é melhor alguma lei do que nenhuma. Até mesmo um Estado autoritário acabasendo menos mau do que um Estado sem autoridade alguma, um Estado anárquico. Quando Hegel analisa, naHistória Universal, os Estados despóticos no Mundo Antigo, o Estado Persa, por exemplo, diz que estes pelomenos criaram a idéia de disciplina e de serviço. Isso é um dado melhor do que se não houvesse organizaçãoalguma e cada qual vivesse completamente de forma anômica, numa falta total de lei. Mesmo que a lei seja ruim,ainda é melhor do que nenhuma. É claro que desejamos uma boa lei, aquela que garanta a nossa liberdade, mas,repito, esta não é o arbítrio, não é a liberdade apenas do meu desejo. A liberdade é eu fazer o que devo fazer deacordo com as leis do meu País. Mas, quando é preciso mudar essas leis — não vamos criticar as leis, vamostentar mudá-las —, surge até mesmo um conflito ético. Isso, às vezes, em certo momento da história, é inevitável.A esse respeito, citaria dois exemplos notáveis. O primeiro é o conflito ético que opõe Sócrates às leis de Atenas.Ele preferiu morrer a fugir; portanto, optou por obedecer às leis da cidade embora delas discordasse. Um segundoexemplo é o cristianismo, o evangelho que veio para abolir a antiga lei. Trata-se de um conflito histórico-mundial, em que a antiga lei é derrogada diante da nova lei. A culminância deste fato deu-se na cruz, no Calvário,sendo um exemplo do conflito ético levado às últimas conseqüências. Nós, do Mundo Ocidental, surgimos emparte do mundo grego e em parte desse mundo do cristianismo nascente. As duas grandes vertentes da nossahistória são a filosofia grega e a religião cristã. Não vou falar sobre o Mundo Oriental, assunto muito complexo.Pessoalmente, tenho uma visão trágica da história. Não é possível solucionar tudo pela razão. Há um momentoem que a exigência de liberdade me coloca em conflito, em colisão com as leis estabelecidas. Nesse conflito,perco ou ganho. Os grandes santos, os grandes heróis travaram esse combate e, na sua própria derrota, venceram.Sócrates, na sua morte, é vencedor. Cristo é vencedor no Calvário. Veja bem que essa idéia do conflito éticoconstitui aquilo que chamo "a tragédia no mundo histórico". Não há uma racionalidade que flua pouco a pouco domenos para o mais, do menos perfeito para o mais perfeito. Para conquistar o mais perfeito, é necessário umcombate, uma luta muito difícil. É o que chamo de "a tragédia no mundo ético", a necessidade de lutar para que aliberdade venha a existir, porque ela não existe, só existirá se nós, homens, a inventarmos, a acrescentarmos ànatureza, fazendo com que exista no nosso comportamento, com as nossas exigências, com as leis que nosdamos, ou seja, a liberdade só existe se a produzirmos, e isso é extremamente doloroso. A história humana seria oprogresso da consciência dessa liberdade, mas é uma história trágica. Os momentos de felicidade são muitopoucos. A história é muito triste. Nós é que temos uma visão do passado já depurada de certos elementos deconflito. Vemos freqüentemente o resultado, mas não o conflito que levou ao resultado. Isso é muito trágico.

© Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 9-39, jul./dez. 1998.

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PRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTE

HISTÓRICOHISTÓRICOHISTÓRICOHISTÓRICOHISTÓRICO

CONSTANT NA LIBERDADE ANTIGA E NA MODERNACONSTANT NA LIBERDADE ANTIGA E NA MODERNACONSTANT NA LIBERDADE ANTIGA E NA MODERNACONSTANT NA LIBERDADE ANTIGA E NA MODERNACONSTANT NA LIBERDADE ANTIGA E NA MODERNA

m 1819, o francês Benjamin Constant fezum discurso no Athenée Royal em Paris.O discurso sobre “A Liberdade dos Anti-gos Comparada à dos Modernos” forneceum quadro amplo para começar a refletirsobre a democracia americana e a comu-nicação mediada pelo computador, ou oque se tem chamado, de modo geral, dedemocracia eletrônica. O discurso tratade como os conceitos de liberdade setransformaram desde o tempo da polis

ateniense até 1819, após um período de sublevação revolucio-nária nos Estados Unidos e na França. No mundo antigo, oshomens definiam a liberdade em termos de sua participaçãopositiva nos assuntos governamentais. No mundo moderno,os homens definem a liberdade em termos da autonomia deque dispõem para garantir seus interesses em suas vidasprivadas. Constant escreve que, “no tipo de liberdade de que

O Dr. G. Scott Aikensé Ph.D. pela Univer-sidade Cambridge(U.K.), 1997, com atese “AmericanDemocracy andComputer-MediatedCommunication: ACase Study inMinnesota”; a quemagradecemos a pre-sente publicação.Cf.www.aikens.org/phd

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 41-101, jul/dez. 1998

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dispomos, quanto mais o exercício dos direitos políticos nosdeixar tempo para tratar de nossos interesses particulares,tanto mais a liberdade será preciosa para nós” (Constant,1988: 325).

A liberdade moderna entendida como ausência deinterferência, garantida de modo mais completo por meio doexercício dos direitos políticos, envolve determinados riscos.O governo, na moderna nação-estado, é cada vez maiscomplexo. Em decorrência, está se tomando mais difícil parao cidadão manter-se a par dos assuntos de governo, o que énecessário para o adequado exercício dos direitos políticos.Além do mais, a ênfase sobre os assuntos privados na vastanação-estado toma inevitável que os indivíduos fiquem absor-vidos por suas preocupações particulares, minando aindamais o conhecimento que têm dos assuntos de governo. Orisco que corre a moderna liberdade na complexa nação-estado é, pois, o de que os indivíduos isoladamente cessem oexercício de seus direitos políticos e a participação no poderpolítico. Em assim o fazendo, os indivíduos solaparão aliberdade. Afinal, tanto a liberdade antiga quanto a modernasão funções ligadas e extensivas ao exercício dos direitospolíticos e à participação no poder político – o que em algunscasos é chamado de soberania popular.

A solução para este problema é o desenvolvimento deinstituições que equilibrem a liberdade moderna, representadapela ausência de interferência, com algo parecido com aliberdade antiga, que é a participação ativa. Constant escreveque “as instituições devem buscar a educação moral doscidadãos. Ao respeitar seus direitos individuais, assegurar suaindependência, abster-se de perturbar o seu trabalho, devem,não obstante, devotar-se aos negócios públicos, convocá-los acontribuir com seus votos para o exercício do poder, conceder-lhes o direito de controle e supervisão pela manifestação de suasopiniões; e, ao educá-los, através da prática, para estas elevadasfunções, dar-lhes tanto o desejo quando o direito de sedesincumbirem das mesmas” (Constant, 1988: 328).

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Constant foi um dos primeiros a focalizar sua atençãonas instituições que serviriam a um amplo espectro de neces-sidades para melhor garantir a liberdade. O problema identifi-cado por ele não foi resolvido com sucesso até o presente. Defato, até o momento tem havido contínuos apelos para acriação de uma série de instituições que criem um equilíbrioentre a antiga e a moderna liberdade, ou aquilo que Isaiah Berlindenominava, de modo similar, liberdade positiva e liberdadenegativa (Berlin, 1992).

Efetivamente, muitas estruturas têm surgido para apoiar,dentre outros “bens”, os conceitos de liberdade delineados porConstant. Nos Estados Unidos, foco do presente estudo, aconstelação de estruturas e de conceitos apoiados por redesde outras estruturas, tais como eleições democráticas, julga-mento com júri, atuação do Executivo e do Legislativo, açãodo Judiciário baseada na interpretação da Constituição, liber-dade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade dereunião, são aspectos do que passou a ser consideradoprocesso democrático. Em lugar de enfocar os “bens” teóri-cos como liberdade e igualdade, supostamente patrocinadospelo que agora chamamos de processo democrático, ou deenfocar a gama de instituições que o integram, focalizarei odesenvolvimento das instituições em um domínio limitado doprocesso. Especificamente, no dizer de Constant, abordareias instituições que devem “conceder (ao conjunto dos cida-dãos) direito de controle e de supervisão pela manifestação desuas opiniões”. Na terminologia moderna, meu interesse estána função dos sistemas de formação de opinião pública dentrodo processo democrático. Embora a liberdade de expressão,a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião garantamproteção contra a interferência nos sistemas de formação deopinião pública, meu argumento é o de que não existemsistemas de formação de opinião pública que possibilitempositiva participação das pessoas no exercício do poderpolítico. Como Constant explicou, a ênfase na liberdademoderna, com proteção contra interferência, contraposta àliberdade antiga, com participação positiva, é prejudicial a todaliberdade e, portanto, ao projeto de autogoverno democrático.

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Urge, e é o que sustento na Primeira Parte, a democra-tização real dos sistemas de formação de opinião pública. Abase desta proposta e alguma orientação sobre como concre-tizar a democratização dos sistemas de formação de opiniãopública repousam na obra do filósofo americano John Dewey,em resposta ao trabalho de Walter Lippmann. Este exame daobra de Dewey contribui para o debate intelectual em anda-mento, assim como o estudo empírico da Segunda Parte.Busca-se contribuir com uma percepção ou insight, natradição intelectual americana – sobre como a comunicaçãomediada por computadores poderia e, eu afirmo, deveria,incrementar o processo democrático. Posteriormente, a orien-tação passa a ser prover informação sobre a teoria democrá-tica de John Dewey, argumentando de modo implícito que osacontecimentos recentes vêm tomando cada vez mais plausí-vel a interpretação de Dewey sobre o processo democrático.Em primeiro lugar, examinarei o pensamento de Lippmann eDewey em relação aos anos 20, época em que ambosescreveram. Depois examinarei os recentes esforços parareviver tanto a perspectiva de Lippmann, quanto a de Dewey.Finalmente, apresentarei um relato atualizado do pensamentode Dewey em relação à era presente, caracterizada pelosurgimento da tecnologia de comunicações mediada pelocomputador. Entretanto, antes de adentrarmos no estudo deLippmann e Dewey, focalizarei temas de relevância ligadosaos primeiros anos da história americana.

Será útil observar, antes de prosseguir, que as discus-sões sobre a nova tecnologia e a democracia freqüentementeestão associadas a idéias relacionadas com a democraciadireta, na qual se espera que o sistema representativo sejasubstituído pelo governo direto do povo. Não é este o caso.Pelo contrário, o texto a seguir busca, em todos os aspectos,analisar a viabilidade das estruturas no uso da nova tecnologia,a qual, no campo das tradições políticas existentes, contribui-rá para o aprofundamento da democracia e para a obtenção denovos dados sobre a natureza da cidadania.

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Burke e a Revolução AmericanaBurke e a Revolução AmericanaBurke e a Revolução AmericanaBurke e a Revolução AmericanaBurke e a Revolução Americana

O peso da opinião pública, poderiam alguns sustentar,foi uma das forças que levaram os colonos americanos a sedeclararem independentes da tutela britânica. Em conseqüên-cia, procurou-se institucionalizar a idéia da soberania do povo,como foi formulado, inicialmente, na Declaração da Indepen-dência de 1776 por Thomas Jefferson, e depois na constitui-ção federal americana de 1783. A expressão “opinião pública”foi registrada pela primeira vez no Dicionário Oxford, em1781. Isto seguiu-se à guerra entre os colonos e também àfamosa defesa dos revolucionários americanos, feita pelofilósofo inglês Edmund Burke, que, em On the Affairs ofAmerica (Sobre os Assuntos da América), deu sua explicaçãodos motivos de os revolucionários americanos procuraremlivrar-se da tutela britânica: “Permitam-me observar que nãoé apenas ao aspecto odioso da taxação dos impostos que sefará resistência, mas também ao fato de que nenhum outroitem do direito de legislar pode ser exercido sem levar emconta a opinião geral dos que serão governados. A opiniãogeral é o veículo e o órgão da efetiva competência paralegislar”. A opinião geral ou opinião pública é, deste modo,causa e efeito da efetiva competência para legislar, ou, dopoder para governar. Ela é, portanto, constitutiva da soberaniapopular. O fato de que as opiniões do cidadão comum têmsignificado público acarreta conseqüências efetivas em umEstado no qual a idéia de soberania popular tenha existência.Burke escreve que, “nos países livres, freqüentemente seencontra mais sabedoria e sagacidade genuínas do povo naslojas e fábricas do que nos gabinetes dos príncipes nos paísesonde ninguém se atreve a dar uma opinião a menos que sejaconsultado pelo governante” (Burke, 1949: 106).

Os Fundadores da Pátria AmericanaOs Fundadores da Pátria AmericanaOs Fundadores da Pátria AmericanaOs Fundadores da Pátria AmericanaOs Fundadores da Pátria Americana

Os fundadores da pátria americana tinham variadasposições sobre o papel da opinião pública e sobre a necessi-dade de um governo forte e estável numa nação-estadocomplexa. Thomas Jefferson, o homem por trás da assimchamada “visão jeffersoniana”, que inspirou os políticos

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contemporâneos a exaltarem o presumido potencial democrá-tico da revolução das comunicações, demonstrou uma féquase mística no poder da opinião pública. A deliberação (comunidade local era ponto decisivo na sua visão de umcongresso de comunidades agrícolas auto governadas, reu-nindo-se por todo um vasto território para formar uma nação-estado vibrante. A opinião pública e a deliberação democráticaestavam na base da soberania popular. Jefferson, por exem-plo, escreveu o seguinte trecho, citado com freqüência: “Nãosei de nenhum repositório seguro do poder efetivo da socie-dade a não ser as próprias pessoas, e se acharmos que elas nãosão suficientemente esclarecidas para exercerem controlecom firme discernimento, o remédio não é retirá-lo delas, masinstruir o seu juízo” (Jefferson, 1984: 493). Mesmo quandoJefferson fazia explanações sobre o poder do povo, salientavaa necessidade de “instruir o seu juízo”. Desta maneira, eledemonstrava sua consciência do problema que povo enquanto“massa” representava para a estabilidade de uma única nação-estado. Enquanto mantinha sua visão de u congresso decomunidades autogovernadas, ele também acreditava que eranecessário agir para melhorar o potencial delas na superaçãode dificuldades. Por esta razão, apoiou um extenso programade obras públicas projetado para unir nação. Nele estavaincluída a promoção da instrução pública e a construção deestradas e canais. Escreveu ele: “Novos canais de comunica-ção serão abertos entre os estados, as linhas de separaçãodesaparecerão; seus interesses serão identificados, e suaunião, cimentada por novos indestrutíveis laços” (529). Comocertamente pensa Alexander Hamilton, havia mais que simplesingenuidade adesão de Jefferson ao seu ponto de vista deautonomia local. Este é, em especial, o caso, levando-se emconta seu alerta simultâneo para que se enfocasse a constru-ção de uma nação-estado única através da criação de redesnacionais de trabalho. Muito embora permaneça como símbo-lo político poderoso, a visão jeffersoniana da autonomia localnão podia prevalecer em um império comercial em expansão(Trachtenberg, 1965).

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Diversas medidas implementadas por sugestão deJames Madison foram claramente projetadas para incentivara deliberação pública para formar uma opinião públicaabrangente. Simultaneamente, medidas foram implementadaspara garantir o estabelecimento de um governo forte e estávelpara supervisionar o desenvolvimento de uma complexanação-estado. Mais realista que Jefferson, Madison postulavauma “república estendida”1 em contraposição a uma democra-cia. Uma república estendida viabilizaria a soberania popularnuma única nação-estado, em contraposição à democracia,que permite a soberania popular somente em comunidadesmuito pequenas. Além disso, Madison seguia David Hume aoargumentar que um sistema representativo espalhado por umamplo território criaria uma estrutura de governo estável. Otamanho da nação-estado diminuiria a influência das facçõesem quaisquer partes isoladas (Adair, 1956-7; Hume, 1985).Madison também apresentou razões para a criação de umsistema de “filtragem” no qual as eleições livres em nível localpermitiriam ao público em geral desempenhar sua funçãodemocrática ao eleger a primeira camada de representantes.Um sistema de gradação cada vez mais refinada, tal como ode eleições abrangendo um território mais extenso e, depois,o estabelecimento de colégios eleitorais assegurariam que oslegisladores nacionais de maior importância fossem homensde alta envergadura. Estes homens, pensava Madison, colo-cariam o interesse público acima do seu ganho pessoal(Fishkin, 1996; Harrison, 1993; Sunstein, 1993). Finalmente,para os nossos objetivos, Madison enfim escreveu a PrimeiraEmenda do Bill of Rights (Carta de Direitos): “O Congressonão fará lei...restringindo a liberdade de expressão, ou deimprensa, ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamen-te...” (Madison et al, 1988). Madison pediu que se instituíssemas eleições diretas, o sistema representativo e a proibição dainterferência com determinadas liberdades julgadas essenciaispara a formação da opinião pública. O ponto crítico a serobservado, contudo, é o de ele ter se descuidado da constru-ção de estruturas institucionais para assegurar oportunidadede participação aos cidadãos em geral no sistema de formação

1 Nota do Tradutor:No original, TownHall diz respeito aum Conselho de Ci-dadãos ou a umaAssembléia, exis-tente desde a Inde-pendência do EUA.

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de opinião pública. Talvez, levado pela forte opinião dopúblico, Madison também manteve a fé na natureza democrá-tica do processo pelo qual os cidadãos formariam suasopiniões com base nas quais votariam em seus representantes.

O século XIXO século XIXO século XIXO século XIXO século XIX

No decorrer do século XIX, à medida que os sistemasde transporte e de comunicações interligavam o país maisestreitamente, a deliberação local viria a perder sua importânciana formação da opinião pública. Devido ao uso da eletricidade,a mídia nacional ganharia em importância. Nos primeiros anosdo século XIX, no entanto, a deliberação local era comum eimportante. Depois de suas viagens pelos Estados Unidos paraobservar a democracia americana, em 1831 e 1832, outrofrancês, Alexis de Tocqueville, sustentava que a oportunidadepara deliberação na comunidade local sobre o bem-estar destaera a garantia mais eficaz de estabilidade e bem-estar da novanação-estado. Escreveu ele: “Aqueles que temem os excessosda multidão e os que receiam o poder absoluto deveriamigualmente desejar o desenvolvimento gradual das liberdadesprovinciais” (Tocqueville, 1990:95). O Conselho de CidadãosI ou o plenário da Nova Inglaterra é a estrutura institucional quecoroou a importância da deliberação democrática nos primeirosanos do país. Como um corpo deliberativo quase formal emnível local, a sala de reuniões era a variação americana distintado que era o salão francês ou a casa de chá inglesa. Cada umadelas era o foro para um público afeito ao debate crítico,formando e expressando uma variedade de pontos de vistasobre decisões tomadas pelos governantes. Como escreveuTocqueville, “as salas de reunião são para a liberdade o que asescolas primárias são para a ciência; trazem-na para o alcancedas pessoas, ensinam aos homens como usá-la e desfrutá-la”(61). Infelizmente não existia, para os fóruns deliberativos,proteção constitucional contra os efeitos das tecnologias eestruturas institucionais em mudança, como a da imprensa(Habermas, 1989).

Um padrão de mudança que teve influência determinantesobre os sistemas de formação de opinião pública foi o da

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concentração crescente do controle no campo das redeselétricas e do telégrafo. A capacidade de enviar mensagens porfios a qualquer lugar pode ser proveitosa de acordo com aintenção de Jefferson de criar uma comunidade espalhadasobre uma vasta base para cimentar a união. Em 1853, DonaldMann, democrata e editor da revista American TelegraphMagazine, estabeleceu esta relação ao escrever que “quasetoda nossa população, numerosa e espalhada, está estreita-mente unida, não meramente por instituições políticas, mastambém por uma afinidade telegráfica e instantânea de inteli-gência e simpatia. o que nos transforma, decididamente, em‘um só povo’ por toda a parte” (Czitrom, 1982: 12). Aquelesque possuem uma visão democrática dos benefícios de umavontade comum unitária devem ter enxergado a nova tecnologiacom esperança. Foi também um imenso avanço para acrescente indústria de notícias. O crescimento de 235 jornaisem 1800 para 160 mil em 1899 deu-se largamente em razãodo sistema de distribuição posto em andamento pelo envio dereportagens da Associated Press por fio, através do monopó-lio do telégrafo, representado pela Western Union. Como ficouconfirmado numa investigação do Senado norte-americano,feita em 1874, sobre os negócios da aliança entre a WesternUnion e a Associated Press, a nova tecnologia teve um efeitoimenso sobre o frágil e desprotegido sistema de formação deopinião pública, cujo ápice era representado pela sala dereuniões políticas da cidade. No relatório da investigação doSenado, escreveu-se que “o poder do telégrafo, aumentandocontínua e rapidamente, só pode ser avaliado minimamente. Éo meio de se influenciar a opinião pública através da imprensa,de atuar sobre os mercados do país e de afetar seriamente osinteresses do povo” (26). A comparação das palavras deTocqueville e do presidente da Western Union, William Orton,bem ilustra a natureza da mudança a partir do começo até aúltima parte do século. Em 1832, Tocqueville observou que “opoder da imprensa escrita só é superado pelo poder do povo”(188). Quase 40 anos depois, poder-se-ia dizer que o poderrelativo da imprensa e do povo trocou de lugar com ocrescente poder do telégrafo. Em 1870, William Orton disse

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a uma comissão especial do Senado que investigava as praxesmonopolísticas da Western Union: “O mero fato da existênciade monopólio não prova nada. A única questão a ser conside-rada é se os que controlam os seus negócios os administramadequadamente e no interesse, em primeiro lugar, dos donosda empresa e, em segundo, do público” (Czitrom, 1982: 27).

O Enfoque de LipprnannO Enfoque de LipprnannO Enfoque de LipprnannO Enfoque de LipprnannO Enfoque de Lipprnann

Walter Lippmann, trabalhando em propaganda para osEstados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial, ficoupreocupado com o poder da nova mídia para manipular aopinião pública e ganhar influência nos assuntos de Estado.No seu livro extremamente influente de 1922, Public Opinion,Lippmann propõe-se a esclarecer o papel tradicionalmentevago dos sistemas de formação de opinião pública no proces-so político. Em assim o fazendo, Lippmann tenta reconceituara natureza do processo político no qual os sistemas deformação de opinião pública estão inseridos. Para Lippmann,o maior problema para a teoria democrática é como superara fé ingênua numa doutrina de soberania popular mantida pelosdemocratas tradicionais. A razão de isso ser um problema éque o público, na época de Lippmann, continua a aderir àsidéias democráticas, num mundo em que estas são irrea1izáveis.Como escreve Lippmann: “O ideal democrático, comoJefferson o concebeu...tomou-se um evangelho político eoriginou os estereótipos pelos quais os americanos de todas astendências partidárias têm enxergado a política” (Lippmann,1960: 270). Além disso, a visão jeffersoniana foi sempreinadequada para as necessidades de uma nação-estado comer-cial, vasta e tecnologicamente avançada. O democrata tradi-cional tomou como dogma de fé que o cidadão estariainformado adequadamente. É como se fosse uma afronta àsidéias democráticas solucionar a questão de como o cidadãopoderia tomar-se informado. De maneira admirável, Lippmanninvestigou a falácia na idéia corrente de que os homens estãonaturalmente bem informados o bastante para possuírem umjulgamento político firme em questões concernentes à nação-

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estado. A fim de desempenhar com sucesso sua funçãodemocrática, um cidadão deveria, de fato, ter uma compreen-são excepcional dos assuntos locais, nacionais e internacio-nais. Em outras palavras, deveria ser um cidadão“onicompetente”. Na realidade, as pessoas constróem para simesmas uma noção do mundo baseada em “ficções”, “sím-bolos”, “fragmentos” e “estereótipos”, ou seja, “retratos emsuas mentes”, expressão usada por Lippmann para dar títuloao capítulo de apresentação de seu livro. Conclui dizendo que“não sendo onipresentes nem oniscientes, não podemosenxergar muito do que há para pensar e discutir a respeito”(161). Sua conclusão de que os cidadãos são mal-informadossobre os assuntos do Estado conduz Lippmann a reconceituara base do processo político.

Lippmann trata da questão do consenso ao investigara brecha existente entre as idéias democráticas e a realidadepolítica. Escreve ele: “Como, na linguagem da teoria democrá-tica, pode um grande número de pessoas, que se sentem cadauma de um modo particular a respeito de um retrato mental,desenvolver qualquer tipo de vontade comum?” (193). Aomencionar o tópico “vontade comum”, Lippmann sugere queé necessário haver uma “Superalma”, que é a cristalização dosdesejos de toda a nação, no sentido de que haja um grupo decidadãos informados e participativos atuando em conjuntopara criar a legislação e o próprio governo. Em outraspalavras, é a cristalização de uma ficção. Lippmann usa estanoção de Superalma para caricaturar a crença, sustentadapelos democratas tradicionais, numa vontade geral. A título decomparação, ele aponta o fato de que os seres humanos devemconstruir o consenso dos governados. Escreve ele: “aSuperalma, entendida como o gênio que preside ao compor-tamento empresarial, é um mistério supérfluo se fixarmosnossa atenção sobre a máquina” (229). Ao invés de confiarnuma Superalma mística, o analista atento à realidade seconcentraria nas estruturas por meio das quais são moldadasas opiniões. Como estas são compostas de “ficções”, “sím-bolos”, “fragmentos” e “estereótipos”, é significativo enten-der a maneira pela qual ficções, símbolos, fragmentos e

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estereótipos envolvem os cidadãos, subsidiando de informa-ções os seus retratos mentais. Ao se concentrar sobre amaquinaria real por meio da qual se construirá uma vontadecomum não existente, Lippmann revela sua hipótese de que asidéias democráticas são uma impossibilidade. Uma minoriasempre dominará. Escreve ele: “A teoria idílica da democracianão é realizada em parte alguma... Existe um círculo interno,cercado por círculos concêntricos que se apagam gradual-mente em meio aos indiferentes ou desinteressados” (228).Liberto das idéias democráticas, Lippmann pode focalizaruma melhor compreensão da perfeição deste processo. Istoresultará em conhecimento sólido que terá uma influênciadeterminante sobre a civilização. Lippmann afirma que, “nãoimporta como se origina o poder, o interesse crucial está emcomo ele é exercido. O que determina a qualidade da civiliza-ção é o uso feito do poder” (312).

Baseado em sua teoria que sugere a inevitabilidade dadominação da minoria, Lippmann propõe que o processopolítico exige que se substitua a devoção a idéias democráticaspor uma devoção a um alto padrão de vida. Os homens nãoaspiram ao autogoverno só por causa dele, mas, ao contrário,por seus resultados, que podem ser definidos em termos dedignidade humana, como os democratas tradicionais estãocapacitados a fazer. Entretanto, com tal dignidade dada aocidadão médio e às “opiniões que os homens possam ter”,seria impossível o controle, e confusão seria o resultado. Poroutro lado, ao se definirem resultados como “um padrão devida no qual as capacidades do homem são exercitadasadequadamente”, todo o problema da organização políticamuda de figura. Com a ênfase em se obter “um mínimo desaúde, moradia, educação, liberdade, prazer, atendimento àsnecessidades materiais, etc.”, os “critérios podem se tomarexatos e objetivos, o que, inevitavelmente, faz parte dapreocupação de poucas pessoas, comparativamente” (314).

A força impulsionadora por trás desse tipo de mudançaé a profunda ligação de setores-chave com o ideal americanode sucesso. Uma doutrina simplista de progresso mecânicoque propugna o desejo “do maior, do mais rápido, do mais alto,

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do menor – se você é um fabricante de relógios de pulso oumicroscópios –; o amor, em resumo, pelo superlativo e peloímpar...” simboliza muito habilmente este ideal. Lippmannacredita plenamente nas virtudes do ideal de sucesso e deprogresso mecânico (109) e defende a construção de umsistema privado de formação de opinião pública, a fim deperpetuar esse ideal. Particularmente relevante é a existênciade um padrão de vida cada vez melhor – o sonho americano.Este sistema seria decisivo para assegurar a vitalidade contí-nua de uma determinada interpretação da realidade. O poderpolítico reside, assim, na construção da máquina. EscreveLippmann: “... o padrão tem sido o de um sucesso quase tãoperfeito na seqüência de ideais, práticas e resultados, que tododesafio a ele é rotulado como “contrário ao espírito america-no” (110).

Três elementos interrelacionados e vitais para o siste-ma de formação de opinião pública proposto por Lippmannsão, portanto, a subordinação da comunicação política àeconomia de mass media (dos meios de comunicação demassa), a criação de uma cultura da “objetividade” na profis-são jornalística e a construção de um sistema de “inteligênciaorganizada” nos círculos administrativos da elite. Em primeirolugar, talvez seja este o ponto central, o de que a mídia políticafuncione como uma esfera acoplada à mídia de massa, de ummodo geral. A idéia de uma organização de comunicação demassa é a de operar um negócio lucrativo. Isto cria umatensão, dentro da organização, entre a motivação genérica damaximização do lucro e o papel especial da mídia noticiosa deinformar o público sobre assuntos concernentes ao governodemocrático. Como Lippmann afirma: “Esperamos que ojornal nos forneça a verdade, sem se importar com o quão nãolucrativa possa ela ser” (321). O fato de a organização de mídiavender espaço de publicidade em seu produto para a esferaprivada força o editor do produto da mídia a ser perceptivoquanto aos interesses e às opiniões dos anunciantes atuais epotenciais bem como dos consumidores. Devem prestaratenção aos anunciantes porque eles, com freqüência, são

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consumidores e, além disso, financiam o produto da mídia.Devem prestar atenção aos consumidores para garantirem suacirculação e/ou audiência para atraírem anunciantes. Aosubmeter a construção da mídia política a estas pressões,Lippmann delineia uma espécie de sistema de “contabilidade”.O peso da opinião no seio de uma comunidade de cidadãosrespeitáveis e homens de negócios que compram o produto damídia refreia o potencial de tomada de decisão do editor denotícias, ao atuar como um intermediário entre o público e ogoverno. E, o que é mais importante, a comunidade dosrespeitáveis homens de negócio que financiam o produto damídia também refreia o posicionamento editorial.

Em segundo lugar, Lippmann formulou a importânciada “objetividade” no processo da fabricação de notícias. Noseu entender, um acontecimento toma-se notícia quando podeser “arranjado, descrito, medido, identificado”. Uma briga,por exemplo, se transforma em notícia quando há uma prisão,ou uma queixa levada ao tribunal. Um “assunto perigoso”,como uma greve, para darmos um exemplo de Lippmann,toma-se notícia somente quando existe registro confirmadode alguma ação em uma determinada instituição, ou quandoocorre um evento que perturba as atividades cotidianas docidadão. Assim, no caso da greve, a notícia é “o fatoindiscutível e o interesse imediato... a própria greve e odesconforto do leitor”. Uma das diversas razões apresentadaspara estabelecer padrões de objetividade é o desejo do editorde ter um modus operandi profissional, com as regras do jogo.A equipe disporá, então, de linhas gerais para ajudá-la a evitarofender, confundir ou alienar o leitor leal e/ou o anunciante,com matérias fora do convencional, expostas de maneirainsuficiente ou obscura. Mais uma vez é posto em funciona-mento outro sistema de contabilidade.

Finalmente, para Lippmann, a chave para a construçãode opinião pública sólida é a criação de uma “inteligênciaorganizada”, através de uma agência de inteligência localizadaestrategicamente e composta por cientistas, cientistas sociaise administradores profissionais. Quanto maior a capacidade

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dessas instituições para organizar informação, do mesmomodo que o fazem a polícia, os tribunais e o Poder Legislativo,mais provavelmente o serviço jornalístico objetivo ganharáprecisão em suas notícias e a opinião pública será adequada-mente informada para que o processo político funcionetranqüilamente. A imprensa, portanto, é meramente “umalanterna que se movimenta incansavelmente por todos oslados, trazendo um episódio e depois outro para fora daescuridão, para a luz” (364). Talvez o eixo central de susten-tação do poder esteja corporificado na elite política altamenteracional que investiu tempo e energia na compreensão dofuncionamento complexo da moderna nação-estado – osindivíduos nas várias instituições que organizam a informa-ção. Lippmann escreve que “somente ao insistir que osproblemas não lhe sejam levados antes que tenham passadopor um processo, pode o ocupado cidadão de um Estadomoderno ter esperanças de lidar com eles de uma formainteligível” (402).

O Enfoque de DeweyO Enfoque de DeweyO Enfoque de DeweyO Enfoque de DeweyO Enfoque de Dewey

Dewey a respeito de LipprnannDewey a respeito de LipprnannDewey a respeito de LipprnannDewey a respeito de LipprnannDewey a respeito de Lipprnann

Em 1927, Dewey publicou The Public and Its Problems(O Público e Seus Problemas), que pode ser lido como umarefutação da tese de Lippmann. No próprio livro, Deweyressalta sua dívida para com Lippmann, embora as conclu-sões de ambos divirjam nitidamente.

Dewey manifestou uma grande admiração pelo PublicOpinion (Opinião Púlbica) de Lippmann, ao escrever que nãoé mais possível enxergar a democracia da mesma maneiraapós ter assimilado o poder da obra de Lippmann. Expressan-do esta admiração, Dewey aceita a maior parte da análise deLippmann. Por exemplo, Dewey concorda que a era damáquina, simbolizada por vapor, cabo, telefone, rádio, ferro-vias, impressão barata e produção em massa, está tambémprofundamente marcada por aquilo que o presidente WoodrowWilson denominou “nova era das relações humanas”. Homense mulheres estão intimamente ligados por eventos distantes

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através da rapidez na comunicação da informação e notransporte de bens materiais. Uma conseqüência básica da erada máquina e da nova era das relações humanas é o significadode eventos além do alcance das pessoas que vivem empequenas comunidades espalhadas por toda a vasta nação-estado. A extrema dependência dessas pessoas no que serefere aos negócios da nação é responsável pela fragmentaçãoe deterioração do significado da comunidade local na vidadiária do indivíduo. Como afirma Dewey: “A era da máquina,ao desenvolver a Grande Sociedade, invadiu e desintegrouparcialmente as pequenas comunidades dos tempos passa-dos...” (Dewey, 1927: 127). Dewey concorda com Lippmann:um congresso de pequenas comunidades autônomas era abase sobre a qual se supunha que idéias democráticas comoa da soberania popular funcionassem, de acordo com osdemocratas tradicionais. Uma vez que a era da máquina e anova era das relações humanas transformaram esse ambientenum anacronismo, o tempo e os acontecimentos tomaram oideal democrático de soberania popular impraticável e inoperantena vasta e complexa nação-estado que se desenvolveu.

O principal ponto de divergência entre Lippmann eDewey está precisamente no significado das idéias democráti-cas. Lippmann rejeita todo acatamento às idéias democráticasapós sugerir que a dominação da minoria é inevitável. Ele entãoformula teorias sobre a maneira como o processo político podefuncionar apesar da incapacidade dos cidadãos de governarema si mesmos. Dewey argumenta que, ao fazer isto, Lippmanncompromete a democracia como um todo. A democraciaocupa um lugar central na filosofia de Dewey e, especialmente,em sua concepção de vida associativa. A tarefa de Dewey é,portanto, a de defender as idéias democráticas em contrastecom a poderosa rejeição de Lippmann. Desta maneira, Deweyinterpreta a teoria política antidemocrática de Lippmann e suaprópria teoria política democrática como dois conjuntos deidéias concorrendo pela supremacia numa era em que o impactoda tecnologia sobre a interação humana desatrelou o desenvol-vimento futuro do processo político das tradições previamente

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enraizadas. Ao falar dos anos 20, uma era de revolução etransformação, Dewey admite incerteza quanto a que conjuntode idéias terá influência determinante sobre o desenvolvimentodos processos políticos. Do lado positivo, afirma que a litera-tura da democracia, o conjunto de ideais que ele procurasustentar, “mantém seu encanto e prestígio sentimentais” e“ainda instigam o pensamento e inspiram lealdade”. Do ladonegativo, dados os padrões de desenvolvimento do telégrafo edo rádio, conclui: “... aqueles que têm instrumentos eficazes àsua disposição têm a vantagem”.

Dewey concorda com a afirmação pragmática deLippmann de que os democratas tradicionais concentraramerradamente suas atenções nas origens do poder derivado davontade comunitária e não nos processos pelos quais o consen-so público é moldado. Sendo ele mesmo um pragmático,Dewey acompanha Lippmann. Ao avaliarem como o processopolítico devia ser adaptado para funcionar com sucesso nummundo em mudança, ambos se concentram nos sistemas deformação de opinião pública, especificamente no funcionamen-to da imprensa e nas organizações responsáveis pela distribui-ção de informações especializadas. A teoria de Lippmannprende-se ao seu argumento de que nem a imprensa nemqualquer outra instituição compensa o “fracasso das pessoasque se autogovernam ao buscarem transcender sua experiênciainformal e seus preconceitos através da invenção, criação eorganização de uma maquinaria de conhecimento”(365). Aimprensa, noutras palavras, é incapaz de sustentar as idéiasdemocráticas da soberania popular. Deve, portanto, ser orga-nizada de modo que o processo político funcione a despeitodeste fato. É precisamente este o ponto sobre o qual Deweyfocaliza sua análise contrária. Em nível concreto, ele aponta ossistemas de formação de opinião pública como essenciais paraa organização do poder. Escreve: “O caminho mais suave paracontrolar a conduta política é pelo controle da opinião” (182).Dewey continua argumentando que o sistema de formação deopinião pública de Lippmann é uma traição ao processodemocrático. É, portanto, necessário que a comunidade aperfei-

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çoe uma “maquinaria do conhecimento” para dar substância àsidéias democráticas. Afirma ele: “Quando a era da máquina tiversido assim aperfeiçoada, sua maquinaria será um meio de vidae não um dominador despótico. A democracia virá por seupróprio mérito, pois a democracia é um nome para uma vida decomunicação livre e enriquecedora” (184).

No decorrer dos anos 20 tanto Dewey quanto Lippmannconcordaram em que o conjunto de fatos que caracterizarama era da máquina e a era das novas relações humanas favoreciaclaramente o arcabouço de idéias defendido por Lippmann,em contraposição ao arcabouço de idéias esposado porDewey. Em 1927, de fato, tudo o que Dewey podia fazer eraexplicar os problemas. Os novos e poderosos instrumentosdifundidos pelas elites políticas e econômicas desarraigaramo indivíduo de sua comunidade sem o seu conhecimento,provocando o “eclipse do público”. O resultado foi que aselites políticas e econômicas se acharam aptas a controlarfacilmente a maquinaria política. Dewey escreve: “Numapalavra, as novas forças de ação combinada, devido ao regimeeconômico moderno, controlam a política atual, do mesmomodo como os interesses dinásticos a controlavam há duzen-tos anos atrás” (108). A nova era das relações humanas, então,“não tem agências políticas dignas desse nome” porque osinteresses políticos e econômicos privados prevalecem demodo total, moldando o debate através do controle dossistemas de formação de opinião pública. Isto, no entanto, nãotoma insolúvel o problema do eclipse do público. A tarefa quese faz necessária, de acordo com Dewey, cabe ao público, quetem de tomar consciência de si mesmo e tomar-se organizadoatravés da criação de uma maquinaria de “inteligência socia-lizada”. Especificamente, Dewey está preocupado com o fatode que o público se reconheça para dar a si mesmo “peso naescolha dos seus representantes oficiais e na definição de suasresponsabilidades e de seus direitos” (77).

A base de Dewey para as idéias democráticasA base de Dewey para as idéias democráticasA base de Dewey para as idéias democráticasA base de Dewey para as idéias democráticasA base de Dewey para as idéias democráticas

Ao longo de sua análise, Dewey intenta realizar umtrabalho intelectual que seja prático. Ele se dedica à tarefa de

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definir o problema do público, pesquisando condições segun-do as quais o público poderia surgir e dando um relato, que eleadmite ser impreciso, sobre como o público em formaçãodeveria ser organizado para definir e manifestar seus interes-ses. Para Dewey, solucionar o problema da organizaçãoéimpossível sem que se resolva o problema da emergência dopúblico e é, portanto, uma questão de segunda ordem relati-vamente à questão da emergência. O conjunto desta emprei-tada é, conforme Dewey, “um problema intelectual à primeiravista”. Na época em que Dewey escreveu, a situação era pordemais desencorajadora para que ele fosse capaz de ofereceruma orientação honesta sobre questões práticas. Deweyenfatiza as condições e o significado potencial da novatecnologia. Contudo, fracassa em oferecer alguma linha deação ou em dar uma noção do que as novas tecnologiaspoderiam ser. Isto tem frustrado seus interpretadores até opresente. Ele é consistentemente acusado de ser obscuro eambíguo (Carey, 1989; Damico, 1978; Festenstein, 1994;Rorty, 1980; Ryan, 1995; Westbrook, 1991). Por outro lado,faço o comentário de que Dewey tinha uma profunda compre-ensão dos limites do que ele podia proporcionar à época emque estava escrevendo. Nem as condições nem as tecnologiaspara concretizar suas idéias estavam próximas do limiar dapossibilidade. Assim, é uma homenagem à obra de Deweydizer que ela é tão útil quanto uma mensagem posta dentro deuma garrafa e deixada à deriva para as futuras gerações.Tomou-se possível formular o argumento, que apresentoaqui, de que as condições e a tecnologia que ele acreditavaserem inevitáveis passaram, de fato, a existir. No restantedeste capítulo, focalizarei os fundamentos deixados porDewey quanto às idéias democráticas e à importância de umpúblico emergente como agente de mudança. Nos capítulosda primeira parte, a seguir, farei um esboço do contexto da eraatual, comparando-a com a época de Dewey. No que respeitaà assim chamada revolução das comunicações, comentarei ofato de que estamos testemunhando a emergência de umpúblico ao estilo de Dewey e que, portanto, seria de grandeutilidade apreciar as noções de Dewey sobre como organizaro público.

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Para entender, ainda que vagamente, a base de Deweypara as idéias democráticas é útil focalizar o seu relato sobrecomo um “Estado” chega a existir. Muito esquematicamente,a emergência do público ocorre quando as conseqüências deum comportamento conjunto chegam a afetar uma partebastante ampla da totalidade do povo. Isto resulta no surgimentode representantes escolhidos para gerir os negócios públicos.O público e o governo resultantes são, reunidos, o Estado.Como escreve Dewey: “Um público articulado e atuandoatravés de representação constitui o Estado; não existe Estadosem governo, mas também não existe nenhum sem o público”(67). A representação é composta por indivíduos com moti-vação própria. A maquinaria política resultante é, desta manei-ra, tão representativa do público inicial quanto for momenta-neamente conveniente para os membros da representação quecontrolem a maquinaria política. Deste modo, se os represen-tantes quiserem impor um domínio despótico ou oligárquico,eles o farão. Todavia, como o público está no ponto central dopoder que dá origem ao Estado, a modificação das circunstân-cias pode sempre trazer à tona outro público ou outro aspectodo público. Isto pode obrigar a mudanças no status dosrepresentantes e da maquinaria política do Estado. Em princí-pio, Dewey aponta para as mudanças tecnológicas que têmamplo impacto sobre o comportamento conjunto, ou para amaneira pela qual as pessoas interagem. Tais alteraçõespodem resultar na emergência de um novo público, capaz deinfluir na escolha dos representantes e de provocar a reorga-nização da maquinaria política do Estado. Por exemplo,Dewey escreve que “a transição do governo hereditário e dadinastia, ambos apoiados por lealdades impostas pela tradição,rumo a um governo popular foi, basicamente, conseqüênciainevitável das descobertas tecnológicas e das invenções queoperaram uma transformação nos costumes pelos quais oshomens têm se mantido juntos” (Dewey, 1927: 144).

Subjacente à visão de Dewey sobre o Estado, há umaproposição que afirma existir uma corrente histórica segundoa qual o público, à medida que se toma cada vez mais consciente

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de si mesmo, exige maior poder de decisão na escolha dos seusrepresentantes e no projeto da maquinaria política do Estado.Desta forma, segundo o relato de Dewey, a corrente históricaconduz obrigatoriamente à crescente perfeição das idéias de-mocráticas. Na literatura subseqüente, tanto o relato de Deweysobre a formação do Estado quanto a metafísica de Deweysobre a democracia têm, em geral, sido alvo de muita contro-vérsia. Por exemplo, a seguinte pergunta tem sido feita: “Nãose trata de uma generalização infundada o argumento de que alegitimidade de todos os “Estados”, incluindo a dos “Estados”não-democráticos, emana do povo? Além disso, o argumentode que existe uma corrente histórica mundial conducente a umamaior afirmação do poder de decisão do público na seleção deseus representantes e no projeto da maquinaria política ou a umademocratização cada vez maior e sem limite no tempo é tambémaltamente discutível. Afortunadamente, para os objetivos dapresente tese, o relato de Dewey da formação do Estado e suametafísica democrática, embora elucidativos, não são vitais. Aesta altura, noutras palavras, as perspectivas para a permanên-cia contínua das regras do jogo democrático não precisam ater-se à hipótese de que “a corrente da história” favorece aformação da maquinaria política democrática. Antes, depen-dem de saber se as pessoas que vivem numa unidade políticaque se proclame democrática estão preparadas para aceitar atroca de uma unidade política democrática, por mais débil quepossa parecer, por uma unidade política não democrática, nãoimporta quão astuto seja o disfarce. Tratarei deste aspecto numtrecho mais adiante.

De acordo com Dewey, a contínua importância dasidéias democráticas no início deste século pode ser medidapelo fato de que toda a teoria política americana, todo políticoe jornalista americanos, incluindo Lippmann, têm de aparentarestar fazendo um apelo ao povo. As idéias democráticas comoa da soberania popular ainda não têm significado para a massados cidadãos, muito embora o público tenha sido eclipsadopor indivíduos motivados por interesses egoísticos e quecontrolam a maquinaria através da qual se supõe que o público

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deva expressar sua opinião. Onde Lippmann rejeita qualquernecessidade de idéias democráticas no seu esforço paraaperfeiçoar o processo político, Dewey enfatiza a importânciada interação histórica entre as idéias democráticas e o desen-volvimento da verdadeira maquinaria política democrática.Explicando como a implementação das idéias democráticastomou-se tão afastada da maquinaria política democrática nosEstados Unidos, no começo do século XX, Dewey demonstracomo o reconhecido acatamento ao ideal democrático dasoberania popular é distinto da casualidade do modo pelo qualas idéias democráticas são incorporadas à maquinaria políticade toda e qualquer época. Novas tecnologias, como a impren-sa escrita, transformaram a maneira pela qual os indivíduosinteragiam e precederam ao surgimento das democraciasocidentais, incluindo a dos Estados Unidos. Finalmente, umnovo público emergiu, composto principalmente pelas classesde homens de negócios com crescente influência, exigindoserem ouvidos no que respeita aos seus assuntos. Este públicodesafiou a autoridade das elites aristocráticas que detinham ocontrole da maquinaria política. Entre outras coisas, estabe-leceu-se a doutrina da soberania popular no âmbito da nação-estado. De acordo com Dewey, o novo público, o agente damudança, reagiu às estruturas organizacionais das elitesentrincheiradas como a monarquia, a aristocracia e a igreja, aorejeitar como um todo as virtudes da associação. As elitesintelectuais ligadas a este público, por sua vez, passaramadiante a noção de que o homem isolado é o homem em seuestado natural e que, em nome da liberdade, ele deve serprotegido para que possa buscar a satisfação de seus interes-ses particulares. Arcabouços intelectuais, como a teoria dosdireitos naturais e a doutrina econômica do laissez-faire,marcaram a reação contra a associação e em favor doindivíduo. Como veremos num capítulo posterior, o predomí-nio dessas filosofias tem uma base social e psicológicaimportante na supremacia da imprensa escrita. Por ora,interessa-nos o conflito entre o indivíduo e a sociedade,conflito este que tem marcado continuamente o desenvolvi-

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mento dos atuais sistemas democráticos de governo e é emgrande medida um subproduto dos interesses específicos deum público há muito desaparecido. A fim de que a crescenteelite de homens de negócios pudesse progredir com seusinteresses, fazia sentido dar a máxima ênfase à existência deum dualismo entre a capacidade do indivíduo de dar andamen-to aos seus negócios e a postura restritiva das estruturashierárquicas estabelecidas. Na análise de Dewey, o dualismorefletia os interesses incidentais de um grupo específico e umaavaliação imprecisa da natureza da inter-relação entre oindivíduo e a variedade de associações das quais o indivíduoé uma parte. Não obstante, o dualismo continua a estarsubjacente nas estruturas institucionais, mais notadamentenos sistemas de formação de opinião pública. Assim, asestruturas que existem continuam a satisfazer as necessidadesde cunho egoístico de um público, antes emergente, que setransformou, ao longo do tempo, numa elite econômica epolítica com controle cada vez maior sobre a máquina política.

Dewey retrata o indivíduo como o resultado do efeitocontínuo do comportamento conjunto de um organismo biológi-co. O indivíduo assim concebido e as variedades de associaçõesdas quais o indivíduo é parte inter-relacionam-se sutil e pode-rosamente de inúmeras maneiras. Esta realidade torna semsentido o dualismo hipotético entre o indivíduo e a sociedade.Um conjunto de idéias construído com base neste hipotéticodualismo é uma fundamentação errônea para o processopolítico. Isto é especialmente verdadeiro quanto ao processopolítico democrático, no qual a natureza da inter-relação entreo indivíduo e as associações é da máxima importância. Ascontingências indistintas contidas no desenvolvimento anteriorda máquina política democrática devem, por esta razão, sersuperadas para que se possa imaginar o desenvolvimentocontínuo da democracia de um modo que as idéias democráti-cas sejam concretizadas com mais clareza. Dewey, com basenisto, lança um olhar crítico para a noção de que a solução paraa democracia é haver sempre mais democracia, se “maisdemocracia” nada significa a não ser uma extensão da máquina

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política democrática já existente. Mais precisamente, a noção deque a solução para a democracia é a de mais democracia devecoincidir com um reexame das idéias democráticas e com umainvestigação das condições para a emergência do público. Oresultado deste reexame pode ser um ajuste na conduta dosrepresentantes e no projeto da nova máquina política. Comescreve Dewey: “O velho ditado de que a cura para os males dademocracia é mais democracia... pode também indicar anecessidade de retomar à própria idéia em si mesma, deesclarecer e aprofundar nossa compreensão dela e de empregarnosso juízo quanto ao seu significado para criticar e refazer suasmanifestações políticas” (144).

Os períodos posterioresOs períodos posterioresOs períodos posterioresOs períodos posterioresOs períodos posteriores

Apresentarei agora um breve sumário das tendênciassignificativas dos períodos de 1930 a 1960 e de 1960 a 1980,os quais cobrem a época em que Dewey polemizou comLippmann e a época atual, período em que será útil reexaminaro pensamento de Dewey. Entre os anos 30 e os anos 60, oestudo apresentado por Lippmann exerceu muita influênciajunto aos pesquisadores nas ciências sociais e na ciênciaspolíticas, bem como junto aos profissionais de outros camposrelevantes como o da mídia e o das políticas públicas. Umaanálise empírica detalhada, obedecendo a procedimentos disci-plinares firmemente delineados, no entanto, substituiu a ênfasenum relato filosófico abrangente das relações entre os sistemasde formação de opinião pública e a teoria democrática.

Num determinado círculo acadêmico, um grupo decientistas políticos realistas e democratas desenvolveram maistarde uma interpretação contemporânea da assim chamadaprática democrática. Em sua maior parte, esse trabalho nãotratou dos sistemas de formação de opinião pública, que eramentão controlados basicamente pelas estruturas institucionaisda mídia de massa. O economista político austríaco JosephSchumpeter, por exemplo, continuou a demonstrar ainevitabilidade de o poder político ser açambarcado por elitespouco numerosas (Schumpeter, 1976). Outro realista e demo-

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crata, Robert Dah1, realizou um esforço visando à construçãode um sistema político viável, no qual a competição crua pelopoder entre os grupos que representavam interesses, aos quaisMadison chamava de facções, de posse da maioria dos recur-sos, substituía o esforço madisoniano para garantir que fosseeleito um legislador virtuoso. Esses grupos podiam, então,conseguir o máximo de apoio para a sua proposta de controledos elementos do processo de tomada de decisão, essencial aosseus interesses. Tal sistema tornou-se conhecido como políticade grupos de interesse ou democracia pluralista (Dahl, 1956).Dahl, que mais tarde se referiu a ele como polyarchy II(poliarquia lI), afirma que esse sistema procura “enxertar asabedoria prática dos guardiões da máquina política na sobera-nia popular exercida pelas massas”2. Até certo ponto, essesistema, por conseguinte, encontra algum grau de acomodaçãoentre a realidade da dominação da elite numa nação-estadotecnologicamente avançada e a da interpretação da soberaniapopular (Dahl, 1989).

Ao mesmo tempo, desenvolveu-se a disciplina agres-sivamente empírica da pesquisa sobre os meios de comunica-ção. O estudo dos efeitos da mídia de massa sobre oconsumidor americano foi, talvez, conseqüência do estabele-cimento de estruturas institucionais da mídia em geral, comsólidos fundamentos. A união dos interesses publicitários ecomerciais para a formação do conteúdo e a obtenção decontrole agressivo sobre a produção e as formas de distribui-ção da mídia para o interior dos lares caracterizou estasestruturas (Czitrom, 1982). Conforme indicado no lançamen-to da revista acadêmica Public Opinion Quarterly, de 1937,a obra de Walter Lippmann exercia influência. Um dospioneiros nos primeiros anos nessa área, o cientista socialvienense Paul Lazarsfeld, chefe do setor de Pesquisa sobre oRádio, em Princeton, e depois diretor do setor de PesquisaSocial Aplicada, na Universidade de Colúmbia, era taxativo aotratar da importância das novas e poderosas instituições naformação da opinião pública. Escreveu ele: “A radiodifusão naAmérica é feita para vender mercadoria e a maioria dos outrospossíveis efeitos do rádio ficam submersos numa estranha

2 N.T. Em inglês: “graftthe expertness ofguardians to the po-pular sovereignty ofthe demos”. A fraseé um jogo de pala-vras onde se des-taca a oposição en-tre o termoguardians. Le. “an-jos guardiôes doparaíso”, e o termodemos, que é abre-viatura inglesa para“democratas”.

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forma de mecanismo social que leva o efeito comercial à suaexpressão mais acentuada” (Lazarsfeld, 1940: 332). Na novadisciplina, os contextos histórico e institucional a partir dosquais as instituições de mídia de massa emergiram foramignorados em favor de estudos que investigassem efeitossócio-psicológicos determinados. Como resultado desta ên-fase limitada. foi desenvolvida uma compreensão sobre comoos indivíduos percebem não só a mídia, mas também as novase valiosas ferramentas com as quais as elites políticas e damídia podem manipular a opinião pública, ferramentas taiscomo métodos de apuração, pesquisas eleitorais, estratégiasde “marketing” eleitoral, etc. (Marsh, 1982). Talvez mais doque outros nessa área, Lazarsfeld estava ciente da dissociaçãoentre a investigação sócio-psicológica sobre a dinâmica degrupo da opinião pública numa sociedade de massa, por umlado, e, por outro, a importância do conceito de opiniãopública na literatura política teórica tradicional. Num estudode 1955, escrito em conjunto com Elihu Katz, os autoresimpeliram a comunidade de pesquisas acadêmicas a conside-rar mais o elemento humano nas suas equações formalistas.Eles escreveram: “A imagem tradicional do processo depersuasão em massa deve abrir espaço para as “pessoas”,considerando-as como fatores intervenientes entre os estímu-los da mídia e a opinião resultante, bem como entre decisõese ações” (Lazarsfeld e Katz, 1955: 32). O apelo para que seavaliasse mais seriamente o “fator humano” pode ter sido feitoem decorrência de uma certa crença na vantagem de umasíntese c1ássico-empírica. No entanto, Lazarsfeld nada maisfez que expressar a vantagem de uma síntese como essa.Talvez isto se tenha devido à influência difusa dos líderes daindústria da mídia no desenvolvimento do setor (Habermas,1989). Até a década de 60, havia muito pouca análise críticados sistemas de formação de opinião pública da atualidade,especialmente no contexto das tradições democráticas.

Na década de 60, uma crescente cultura de críticaverbal surgiu nos círculos acadêmicos. Esta cultura tomar-se-ia influente e ativa até o presente ao criar e depoisdesenvolver áreas como teoria da crítica. crítica literária,estudos culturais, estudos sobre a mídia, estudos feministas,

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pós-estruturalismo e pós-modernismo. Este novo espírito deindagação crítica apoiou-se muito nos críticos marginalizadosda sociedade de massa no passado, como os integrantes daEscola de Frankfurt e C. Wright Mills, bem como nascorrentes intelectuais européias da metade do século, oestruturalismo e o existencialismo. Nos Estados Unidos esteespírito alimentou a revolução social e as manifestaçõesestudantis que caracterizaram os anos 60. Está absolutamentefora do escopo desta tese dar algum sentido às váriascorrentes deste período. Um ponto importante, entretanto, éo de que a teoria democrática de John Dewey foi crucial parao desenvolvimento da teoria democrática do filósofo alemãoJürgen Habermas, principal “protegido” de Adorno eHorkheimer, e de outros integrantes da Escola de Frankfurt(Habermas, 1971). Por sua vez, Habermas tem exercidoinfluência sobre o academicismo americano numa amplavariedade de disciplinas, inclusive sobre cada um dos camposacima mencionados. Este é um caminho interessante por meiodo qual a teoria democrática de Dewey influenciou a vidaintelectual americana sem que esta conexão fosse explicita-mente percebida.

Desde o começo dos anos 70, tem aumentado a quan-tidade de comentários sobre Dewey e o objeto de suas preocu-pações. Por exemplo, o volume cada vez maior de literaturasobre democracia participativa reflete o desejo de alcançar umespírito de indagação crítica, nas instituições relacionadas coma sociedade, que se parece muito com o que pretendia Dewey.Um fator impulsionador deste movimento é a inquietação nosentido de que o cinismo generalizado na maioria do público,com relação à política, poderia levar a uma ruptura no processodemocrático. Embora a maior parte desta literatura não examinediretamente o relacionamento entre os sistemas de formação deopinião pública, as estruturas institucionais da mídia de massae a teoria democrática, é bastante clara a influência de Deweybem como a de Habermas sobre, por exemplo, Ttzioni, Boyte,Pateman, Miller, Cohen, Guttman, Fishkin, Sunstein, Sandel eoutros. Mais diretamente, alguns pensadores têm colaborado

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de modo decisivo para um ressurgimento de Dewey. RichardRorty, nos anos 70 e 80, Robert Westbrook (1992) e Alan Ryan(1995) propuseram as abordagens gerais de maior importânciapara as idéias de Dewey. Os relatórios de Westbrook e Ryan,em especial, perpetuaram a indagação constante sobre o quepoderiam realmente significar as estruturas institucionais deDewey. Um exemplo é o que escreve Ryan a respeito do“credo” de Dewey:

“Somente quando as pessoas puderem se comunicarem termos de liberdade e de igualdade, poderão elas atingir aprofunda compreensão individual a que temos almejado desdeo Iluminismo. Se a liberdade e a igualdade estão ausentes, oque poderá ser dito e, por conseguinte, o que poderá serpensado, ficarão limitados. É difícil dizer como isto se traduzem preocupação com a democracia no sentido institucionalrotineiro que inclui eleitores, urnas de votação e políticosrazoavelmente corruptos” (Ryan, 1995: 357).

Além disso, uma série de pensadores preocupados coma mídia têm se concentrado no intercâmbio de Dewey eLippmann. John Carey argumentou que a disciplina dos estudosculturais deveria postular alguma reivindicação para preenchero papel desempenhado pelo público de Dewey (Carey, 1989).Christopher Lasch fez referência à polêmica travada porDewey e Lippman ao expressar sua preocupação a respeito daausência de discurso do público numa sociedade cada vez maisimpulsionada pela mudança tecnológica (Lasch, 1995). Outroscomo Jay Rosen e James Fallows fizeram uso da dupla Dewey/Lippmann como fundamento intelectual de um movimento dereforma, a partir de dentro, da profissão de jornalista. Estemovimento é denominado ora de jornalismo cívico, ora dejornalismo público (Fallows,1996; Rosen, 1992).

A democracia e anova tecnologia dos meios deA democracia e anova tecnologia dos meios deA democracia e anova tecnologia dos meios deA democracia e anova tecnologia dos meios deA democracia e anova tecnologia dos meios decomunicaçãocomunicaçãocomunicaçãocomunicaçãocomunicação

A melhor maneira de se construir o contexto para oreexame das propostas de Dewey para um sistema democrá-

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tico de formação de opinião pública é investigar a evolução daliteratura que começou nos anos 80 e que combinou teoriademocrática com estudos sobre novas tecnologias de comu-nicação. Como pode ser demonstrado por uma investigaçãorazoavelmente acurada do pensamento da atualidade sobretecnologia e democracia, as tensões emergentes refletemconstantemente os temas trazidos à luz pela interação deLippmann e Dewey. Isto proporcionará uma visão sobre ostatus político e tecnológico da democracia eletrônica, umavez que ela se desenvolveu a partir de um tópico marginal nametade dos anos 80 para ser uma questão com repercussõesglobais importantes na metade dos anos 90. Em suma, ainvestigação servirá como uma sucinta revisão literária para apresente dissertação.

Russel Neuman atualiza LippmannRussel Neuman atualiza LippmannRussel Neuman atualiza LippmannRussel Neuman atualiza LippmannRussel Neuman atualiza Lippmann

Em 1986, Russel Neuman escreveu The Paradox ofMass Politics (O Paradoxo da Política de Massas), atualizan-do desta forma tanto Lippmann como os realistas democratasda metade do século como Schumpeter e Dahl. Trabalhandoem pesquisa sobre comunicação, Neuman sugere a necessi-dade de um reexame geral da função da mídia de massa noprocesso político. Considerando a cultura de crítica prevale-cente em diversas disciplinas que incluem, de modo cada vezmais amplo, a pesquisa sobre comunicações, pode-se enten-der que Neuman respondeu ao clima generalizado de apoio aidéias que ameaçam uma longa tradição do academicismo e daprática americanos.

De acordo com Neuman, existe uma expectativa dura-doura de que o cidadão de uma sociedade democrática sejaadequadamente informado. A realidade demonstrada por umapoderosa investigação científica e social é a de que a cidadanianão é, no seu todo, tão bem informada. Em seu livro, Neumanescreve que “o paradoxo da política de massa é a brecha entreas expectativas de um conjunto de cidadãos bem informados,de acordo com o que propugna a teoria democrática e arealidade desconfortante revelada pelas pesquisas sistemáticas

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de opinião” (Neuman, 1986: 3). Para Neuman, o paradoxo nãoé, contudo, problemático na prática, porque o sistema atuareconhecidamente bem, embora o público, a massa, em suamaior parte seja desinteressado e não sofisticado. Assim, oparadoxo da política de massas não apresenta um problema quedeva ser remediado, sendo, antes, uma característica de umsistema político que atua singularmente bem. Subjaz ao parado-xo da política de massas a idéia de que, se alguém podedemonstrar que o cidadão informado não existe, não hánecessidade de se considerar que as idéias democráticas sejammais essenciais do que a expectativa da existência de umuniverso de cidadãos informados. Ao aderir ao esquemacuidadosamente idealizado da democracia pluralista, Neumanpode levar adiante a discussão do processo político americanomoderno sem, realmente, recapitular as idéias democráticascomo a da soberania popular. Graças ao que restou da análisede Lippmann, combinado com os dados sólidos sobre a maiorparte do público, Neuman parece ter decidido que ele não temde confrontar de modo direto os requisitos da tradiçãojeffersoniana. Não obstante, essa tradição continua a ecoar noâmbito da cultura política desde a época em que viveram osfundadores da pátria americana, passando por Lippmann, nadécada de 1920, e Neuman, em 1986. Neuman admite que “éuma características persistente da cultura política americanapresumir que, quando surge uma crise, os cidadãos em geral semobilizarão e darão resposta”. Mesmo assim, Neuman conclui:“Esta é a cultura política da ingenuidade” (188). Tal caracterís-tica, logicamente, não é um aspecto da cultura política que eleache que deva levar a sério na sua análise da realidade política.

Neuman simplesmente reafirma o esforço de Lippmannde reconceituar como o processo político poderia funcionarbem, apesar da existência de uma massa de cidadãos mal-informados. Não é, portanto, necessário que ele, Neuman,explique a rejeição das idéias democráticas. Como resultadodisso, Neuman não manifesta interesse sobre as razões pelasquais Lippmann reconceituou a função do sistema de forma-ção de opinião pública no processo político americano. Aoinvés, o fato é que as estruturas institucionais da mídia de

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massa acabaram por dominar o cenário americano. Comoescreve Neuman: “Comum aos incentivadores e aos críticosda mídia de massa... existe um sentimento compartilhado deque a mídia é o educador político por excelência”. Além domais, uma vez que a mídia de massa funciona de uma maneirasurpreendentemente similar à descrita na análise de Lippmann,a tarefa de Neuman é a de simplesmente fazer avançar a noçãode que estas estruturas imensas não têm probabilidade demudar. Neuman afIrma que “teoricamente, a mídia poderiafazer mais para informar e educar o público. Mas, na verdade,ela não pode fazer mais do que está fazendo” (134). Emespecial, Neuman demonstra a importância do funcionamentoda mídia de massa, ao mesmo tempo em que dilui a crítica aoempregar o paradoxo da política de massa para sustentar quenão existe outra maneira de um sistema político ser estruturadonuma nação-estado complexa.

Sobre o posicionamento central da mídia de massa,Neuman cita Lippmann: “Nas nações industrializadas doséculo XX, a sociedade organizada em bases democráticasnão pode funcionar como tal sem a estrutura institucional damídia de massa independente” (133). Neuman admite serexata a observação de que há uma ampla variedade de opiniõesdentro do universo dos cidadãos. Contudo, à maneira com queseguindo “a visão ou insight sócio-psicológico sobre a sensi-bilidade humana ao meio social” se teriam colocado, osindivíduos tendem a desenvolver uma noção quanto à formapredominante e à direção da opinião pública. Sem declarar seos indivíduos são geneticamente construídos para adotarema forma predominante e a direção da opinião pública comopropriamente suas, ou se isto resulta de um processo desocialização, Neuman conclui: “Desta forma, o conteúdo damídia de massa é relativamente homogêneo, assim como opadrão de preocupações políticas da massa de eleitores”(152). Está claro, então, que a mídia de massa desempenhaum papel crucial no auxílio à construção de um blocohomogêneo de opinião pública numa nação-estado vasta.Assim, as elites políticas que melhor articulam os símbolos

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específicos que caracterizam o fluxo da opinião pública, aqualquer tempo, podem, efetivamente, dirigir o país.

Ao mesmo tempo, declara Neuman: “As diferentesmídias são vistas como forças potencialmente poderosas e osseus públicos, como relativamente indefesos. O poder damídia, no entanto, tem sido avaliado exageradamente” (156).Aqui existe uma aparente contradição dele ao concluir que opapel da mídia de massa é crucial para o processo políticoamericano. Esta última posição, contudo, toma-se compreen-sível ao se perceber que Neuman está usando o paradoxo dapolítica de massas como instrumento para defender a neces-sidade de um sistema institucional de mídia de massa paragarantir que o sistema, e o processo político mais amplo doqual ele é parte, continuem imutáveis. Numa sociedadedemocrática, na escala da nação-estado, as estruturasinstitucionalizadas da mídia de massa, em parte, constituemuma ponte necessária para levar em conta o paradoxo dapolítica de massas, e possibilitam, ainda, que o sistemapolítico funcione razoavelmente bem. A questão não é a mídiade massa ser poderosa, mas o seu público ser inadequadamen-te informado e carente de orientação. Concluindo, citamosNeuman: “O fator crítico parece ser o estilo cognitivo doeleitorado” (27). Em virtude do estilo cognitivo do eleitorado,as mídias são necessárias numa nação-estado complexa.

Benjamin Barber retoma a DeweyBenjamin Barber retoma a DeweyBenjamin Barber retoma a DeweyBenjamin Barber retoma a DeweyBenjamin Barber retoma a Dewey

Colocando-se do lado oposto à manipulação de caráterneo-lippmanniano que Neuman fazia, Benjamin Barber, comseu livro Strong Democracy (Democracia Forte), publicadoem 1984, foi um dos primeiros teóricos a aliar “participação”e “novas tecnologias de comunicações”. Ao fazê-lo, elereconhece explicitamente sua dívida para com Dewey eHabermas. Barber apresenta seu conceito de democracia fortecomo um substituto para a tradição democrática liberal, à qualele denomina democracia fraca. Opondo-se a Neuman, entreoutros, ele acusa os cientistas políticos de contribuírem paraum certo mal-estar político disseminado, que considera acidadania passiva como necessária à saúde do processo

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político. O resultado deste mal-estar poderia ser a emergênciade um sistema político anárquico ou autoritário. Barberpropugna por uma agenda ambiciosa de reformas que pode-riam institucionalizar práticas democráticas fortes, permitin-do que as pessoas se “governassem ao menos em algumasquestões públicas, pelo menos em certa parte do tempo”(Barber, 1984). Uma proposta é de um sistema de vídeo-textocívico, de amplitude nacional, através do qual os cidadãospudessem usar a nova tecnologia de comunicações para seengajarem em reuniões políticas de nível local, regional enacional. Desta forma, Barber procura reunir o conceito daassembléia da Nova Inglaterra ao do poder de uma novageração de tecnologia eletrônica como o cabo e os satélites euma noção relativamente primitiva da televisão interativa. Aidéia geral é que novas instituições podem vir a surgir parafazer da visão jeffersoniana uma realidade. Na análise deBarber, é essencial construir estas instituições participativasque, ou muito estimularão, ou, talvez, substituirão o sistemarepresentativo como um todo.

Barber reconhece a preocupação dos autores da Cons-tituição Federal de que a democracia direta numa nação-estado, deixando de lado o sistema representativo, repousanuma fé ingênua numa vontade comum unitária, a queLippmann chamava de “Superalma”. Em resposta a estapreocupação, Barber distingue a democracia unitária daspráticas democráticas fortes. Por outro lado, a democraciaunitária presta-se a uma manipulação demagógica e a umasolução autoritária, ao procurar mostrar uma vontade comummística. A democracia forte, por outro lado, baseia-se numa“conversação política” extensiva entre os cidadãos e numaética institucionalizada de razoabilidade. Além disso, Barbersugere a necessidade de uma ética institucionalizada de cautelarazoável, de modo que o conjunto dos cidadãos será prudenteem suas deliberações sobre o que funcionou ou não nopassado, e cauteloso ao avançar da democracia fraca para aforte. Embora extrapolando o escopo da presente tese, cabediscutir se Barber cria bastante distância entre a sua democra-

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cia forte e a democracia unitária para abrandar preocupaçõeslegítimas daqueles que apóiam instituições que reconhecem aobrigatoriedade de prestarem contas ao público. Pode-seargüir que ele não oferece um relatório convincente sobrecomo a democracia forte que propõe atuaria como umaespécie de escora contra o paroquialismo ou a capacidade deum demagogo de explorar o público. Mesmo assim, na suaênfase sobre a revitalização das idéias democráticas e na suasugestão sobre a possibilidade de “conversa política”institucionalizada, Barber prepara o caminho para a constru-ção de sistemas democráticos de formação de opinião pública,assim como prenuncia essa empreitada.

Em 1984, no entanto, o trabalho teórico ambicioso deBarber está muito longe de se concretizar. Pululam indaga-ções. Qual órgão ou agência de governo concentrará o poderpara construir suas diversas e ambiciosas estruturasinstitucionais, incluindo o sistema de vídeo-texto aberto aocidadão? Como a ética da razoabilidade e a do comedimentorealmente funcionarão nas novas estruturas institucionais?Mais precisamente, como a sociedade harmonizará o parado-xo da política de massas com o conceito de que muitoscidadãos não estão informados ou interessados em sê-lo,embora possam estar muito interessados em participar?Escreve Barber: “No momento em que as ‘massas’ começama deliberar, atuar, compartilhar e contribuir, cessam de sermassas e tomam-se cidadãos” (Barber, 1984: 155). A justa-posição da sociedade de massas e da cidadania é crucial, comoveremos nos capítulos posteriores. Mas como esta transfor-mação de “massas” em “cidadãos” terá lugar, considerandoespecificamente as estruturas institucionais existentes damídia de massa e o papel que elas desempenham na constru-ção da opinião pública? Barber não responde a estas questõese, portanto, nem confronta diretamente nem supera o parado-xo da política de massas – ou a realidade da economia políticada mídia de massa – como o apresentou Lippmann e oatualizou Neuman.

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Abramson, Arterton e Oren pesquisam este campoAbramson, Arterton e Oren pesquisam este campoAbramson, Arterton e Oren pesquisam este campoAbramson, Arterton e Oren pesquisam este campoAbramson, Arterton e Oren pesquisam este campo

Em sua obra conjunta, The Electronic Commonwealthand Teledemocracy: Can Technology Save Democracy? (NaComunidade Eletrônica e na Teledemocracia Pode aTecnologia Salvar a Democracia?), Abramson, Arterton eOren pesquisam um grande número de projetos empregandonova tecnologia de comunicações para fms democráticos.Considerando que esses experimentos, em sua maioria, usa-ram ou a tecnologia de vídeo interativa ou a (relativamentefalando) primitiva tecnologia de comunicações mediada porcomputador, que existia antes desta geração, não é de seadmirar que tenham sido vistos como experimentos margi-nais. O estudo global, entretanto, é como uma iluminura aoredor da paisagem eletrônica, contendo diversas observaçõesque continuam válidas no decorrer do tempo. Basicamente, osautores concluem que existe um conceito distinto de teoriademocrática fundamentando as estruturas institucionais decada experimento. Eles observam duas tendências gerais nasdiversas estruturas institucionais. Estas tendências trazempara a era digital o contrastante conjunto de idéias estabelecidopor Lippmann e Dewey.

Os autores referem-se à mais preponderante das duastendências como a que “acelera a democracia”. Ela é ademocracia por meio de plebiscito, de pesquisas ultra-sofis-ticadas de intenção de votos, de avaliação instantânea daopinião pública e de votação eletrônica. Projetos como oHawaii Televote (Televoto Havaí), Honolulu Electronic TownMeeting (Assembléia Eletrônica de Honolulu), e o QUBESystem (TV a cabo interativa) em Arlington, Ohio, estepatrocinado pela Time- Warner, todos refletem o esforço paraa obtenção de uma vontade comum, ou talvez para umaconstrução sofisticada da opinião pública. Esta tendência emdireção à democracia direta, na qual os indivíduos votam pelaaprovação ou rejeição em questões de seu interesse, usandoum teclado de controle remoto por TV, é extremamenteproblemática. De acordo com os autores, o processo estásujeito a uma imensa manipulação pela elite e propicia oportu-nidade para o surgimento de um demagogo.

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A aceleração da democracia é o resultado da influênciacontinuada da cultura da mídia de massa no processo demo-crático de tomada de decisões. Mesmo que o meio continuea mudar em razão das novas tecnologias de comunicações, osautores receiam que a cultura de mídia de massa continue adominar os sistemas de formação de opinião pública e impeçao possível ressurgimento da democracia. Eles relacionamquatro desenvolvimentos perturbadores. Em primeiro lugar,receiam que as normas contra a formação de cartéis possamse tornar flexíveis de modo que empresas isoladas venham apossuir múltiplas franquias de mídia numa única comunidade.Isto limitaria a diversidade de opinião e de oportunidade parao acesso à mídia, essencial para o processo democrático detomada de decisões. Em segundo lugar, eles manifestampreocupação quanto à concentração da propriedade e citam aindústria de cabos e fibras óticas, em que a TelecommunicationInc. e a Time-Warner são as maiores operadoras, como umcaso típico. Em terceiro lugar, a mídia de massas sustentadapela publicidade atua contra as normas democráticas neces-sárias, provocando distorções ao fornecer ao consumidorisolado informação e entretenimento “leves”. Este problemapiorou durante a década de 80, quando a pressão nos negóciosda mídia aumentou, como resultado da concorrência entre asnovas organizações de mídia. À época, os donos dos trêsconglomerados tradicionais de mídia dos EUA chegaram àconclusão de que deviam tratar o departamento de notícias,que antes era um serviço de utilidade pública que perdiadinheiro, como uma mercadoria tão vendável como qualqueroutro departamento. Finalmente, a necessidade de se obter umbom visual nos noticiários de TV e a capacidade dos represen-tantes eleitos de manipularem esta necessidade, provocandoeventos para atrair a atenção da mídia e assim ganharem maistempo de exposição nela, fizeram com que os representantesda mídia e do governo, “outrora supostos adversários”, setransformassem cada vez mais em verdadeiros “parceirossecretos”. Referindo-se aos experimentos de publicidade nanova mídia, mas generalizando para toda a gama de assuntos,os autores propõem a seguinte conclusão desanimadora:“Qualquer potencial que a nova mídia possa ter tido no sentido

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de apoio a uma maior cultura cívica está regredindo rapida-mente” (Abramson et al., 1988: 290).

A outra tendência apresentada pelos autores enfatiza “aqueda de velocidade da democracia” por meio do encorajamentode um processo existente na atualidade que conta comassembléias e diálogo democrático. Para eles, a BerksCommunity TV, a Alaska LTN, a North Carolina OPEN/net,bem como qualquer número de sistemas de conferência empequena escala via computador, representam uma concepçãode prática democrática na qual diversos indivíduos e gruposparticipam do diálogo político. Este diálogo ajuda os envolvi-dos a selecionarem “demandas emergentes” e “partes afeta-das” para ajuste acertado da política pública (Arterton, 1987:66). Os autores apóiam a introdução deste diálogo políticoextensivo dentro do quadro pluralista tradicional. Diferente-mente de Barber, eles não estão dispostos a avaliar seja odesaparecimento gradual ou o abandono do sistema represen-tativo. São conhecedores dos problemas do que denominamteoria democrática puramente comunitária, na qual os cida-dãos se engajam no “autogovemo”, em nível local. Sãosuspeitos desta prática democrática comunitária, e erronea-mente atribuem o nome de John Dewey como seu santopadroeiro. Acreditam que isso possa levar a uma comunidadeperigosamente fechada para os padrões das unidades políticasmais amplas, contrapondo-se dessa sorte aos efeitos positivosda república estendida, do tipo madisoniano. Em sua concep-ção de “pluralismo com uma face comunitária” endossamtanto a necessidade de um sistema nacional de mídia como ade um diálogo político extenso em nível local e regional.

Um exemplo instrutivo da noção pragmática de que opoder determina a capacidade de impor a interpretação defini-tiva dos eventos é o caso da Berks Community TV. Os autoresencaram este projeto como o maior sucesso entre os experi-mentos que investigaram. Em minha opinião, ele antecipa commaior exatidão um sistema democrático de formação de opiniãopública. A Berks Community TV em Reading, Pennsylvania.empenhou-se num projeto inicialmente financiado em parte

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pela National Science Foundation (Fundação Nacional deCiência) para estimular a participação de cidadãos da terceiraidade nas questões da comunidade. Os organizadores fizeramisto criando uma programação interativa e participativa na qualos cidadãos da terceira idade podiam estabelecer diálogo comos líderes comunitários. A programação teve tanto sucessoque se transformou num repositório de programas de governoda comunidade dirigidos para o público em geral. Num dosprogramas, Inside City Hall (Dentro da Prefeitura da Cida-de), os vereadores participaram de um diálogo com o públicoa respeito de uma série de questões. Karen Miller, que haviase mudado recentemente para Reading e era a primeira mulhera fazer parte da Câmara de Vereadores, beneficiou-se tanto daexposição na mídia que empreendeu uma bem sucedidacampanha para se tomar prefeita de Reading em 1979.

Dadas as potencialidades dos enfoques de Lippmann eDewey, é instrutivo observar a diferença na interpretação doprojeto tanto pelos autores como por Neuman. Os autoressugerem ser plausível que aBCTV e o Inside City Hall tiveramum impacto “revolucionário” na política de Reading, de talordem que a deliberação aberta sobre assuntos, no contextoda participação dos representantes eleitos, levou a umrenascimento democrático da política local (Abramson et al.,1988). Neuman, por outro lado, explicou o sucesso doexperimento de Reading como proveniente do fato de a BCTVter se tomado um instrumento conveniente para a ascensão deKaren Miller ao poder. O sucesso da BCTV, em outraspalavras, decorreu do quão útil ela se tomou para a elite política(Neuman, 1991).

Robert Dahl – do realismo democrático aoRobert Dahl – do realismo democrático aoRobert Dahl – do realismo democrático aoRobert Dahl – do realismo democrático aoRobert Dahl – do realismo democrático aoidealismo de Dewey.idealismo de Dewey.idealismo de Dewey.idealismo de Dewey.idealismo de Dewey.

Enquanto a luta para interpretar o significado de even-tos transitórios é crucial, talvez a maior parte do esforçodependa da luta para impor a interpretação aceita do contextogeopolítico mais amplo. Por um lado, em seu livro de 1991,The Future of the Mass Audience (O Futuro do Público deMassas), que resume os resultados de um estudo de cinco

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anos sobre o impacto das novas tecnologias na mídia demassa, realizado em cooperação com planejadores empresa-riais de alto nível daABC, CBS, NBC, Time- Wamer, do NewYork Times e do Washington Post, Neumann propõe umaanálise da mudança política, relacionada unicamente com ofenômeno rotineiro do realinhamento político partidário. Elesugere que a agitação política atual talvez resulte do maiordesses realinhamentos desde o começo das atividades políti-co-partidárias americanas. Ele não propõe um contexto demudança maior do que o que pode ser explicado pelo sistemapartidário, o qual é uma das instituições que se constituem empedra fundamental do moderno pluralismo que enfatiza a“política de grupos de interesse”. É concebível que os que sealçassem ao poder pudessem forçar a imposição de umainterpretação tão limitada de mudança histórica. O resultadomais provável seria a aceleração da democracia, que protege-ria os interesses das elites encasteladas e impediria a possibi-lidade de um renascimento democrático (Neuman 1991).

Por outro lado, a interpretação de Robert Dahl, oeminente teórico da política de grupos de interesses do séculoXX, é muito mais incisiva e perturbadora. Dahl argumenta que“a proliferação das atividades e decisões transnacionais reduza capacidade do cidadão de um país de exercer controle sobrequestões vitalmente importantes para ele por meio do seugoverno nacional” (Dahl, 1989: 319). De fato, toma-se cadavez mais evidente que as organizações econômicas e políticasestão, com a ajuda das redes globais de computadores,realizando negócios sem considerar as fronteiras da nação-estado. Além disso, Dahl sugere que a capacidade de argu-mentar em favor de qualquer fronteira na qual o juízo de umsegmento democrático específico deva ser mantido, seja umacidade, uma nação ou o mundo inteiro, vai além da teoriademocrática. Em outras palavras, não existe razão teóricapara que um segmento democrático de uma nação-estado setransforme em unidade política básica. Tais coisas são, antes,uma questão de contingência histórica. O resultado dessesdois fatores é a previsão de que a mudança na escala de tomada

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de decisão política deslancharia outras mudanças no processopolítico. Estas mudanças serão tão importantes quanto amudança no processo de tomada de decisões em nível dacidade-estado, indo para o nível da nação-estado. A preocu-pação básica de Dahl é assegurar que a democracia sobrevivaàs mudanças. Ele não tem certeza, no entanto, se a democraciasobreviverá.

Aqui existe um conflito crucial e imediato entre Neumane Dahl. Por um lado, Neuman, o herdeiro moderno deLippmann, afIrma que um eleitorado mal-informado e o poderdo sistema institucionalizado da mídia de massa continuarãoa apoiar um sistema democrático pluralista, no qual as elitesem competição alcancem o poder através da concorrêncianum mercado de idéias. Este será um novo sistema democrá-tico pluralista, com mais informação, com uma diversidade deopiniões ligeiramente maior e um pouco mais de participação(Neuman, 1991). Por outro lado, Dahl, um dos principaisarquitetos da teoria democrática pluralista no decorrer dametade do século, afrnna que há uma diferença importanteentre aquela época e agora. Dahl sustenta que ele participou dotrabalho indispensável de adaptação de um sistema democrá-tico de governo às necessidades de uma nação-estado vasta ecomplexa, ao “transplantar a sabedoria dos guardiães para asoberania popular dos segmentos democráticos”. Agora aspessoas estão empenhadas no trabalho de “transportar ossímbolos da democracia para a custódia “de facto” das elitespolíticas” (Dahl, 1989: 337).

Este conflito entre Neuman e Dahl depende de seentender ser ou não necessária alguma fé nas idéias democrá-ticas e alguma devoção a elas, para a sobrevivência doprocesso democrático. Como temos visto, Neuman separacuidadosamente toda referência às idéias democráticas, des-tacando-as do processo político pluralista que, supostamente,funciona seja a despeito ou em razão de a massa do eleitoradoser terrivelmente mal-informada. Dahl, por outro lado, argu-menta que mesmo os mais altos dignitários na democraciapluralista foram, no decorrer da metade do século XX,

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forçados a competir pelo voto popular, embora existissemdesigualdades gritantes em termos de oportunidades de par-ticipação. Isto significou que o poder era até certo pontoderivado de um conceito do “demos” (segmento democráti-co). A soberania popular era. portanto, um tanto crua em nívelda complexa nação-estado. Dahl argumenta que as estruturasinstitucionais do que ele chama de poliarquia II – que incluisufrágio universal, eleições regulares, imprensa livre, direitode formar partidos – eram e continuam a ser necessárias paraassegurar o processo de tomada de decisões numa unidadepolítica ampla que seja sensível, no grau mais amplo possível,às preocupações dos cidadãos. Entretanto, devido à comple-xidade crescente que resultará das mudanças que ele identifi-ca, Dahl não crê que as instituições tradicionais da poliarquiaII constituam-se em fundamento para o processo de tomadade decisão em qualquer conceito que seja adotado do “de-mos”. Ele sustenta, portanto, que as sociedades modernasprecisam fazer um esforço conjunto para formar novasestruturas institucionais que permitam a realização em certamedida, mesmo que imperfeita, das idéias democráticas.Deve haver, em outras palavras, um movimento para além dapoliarquia II, rumo a uma até agora não concretizada poliarquiaII. As novas estruturas precisam oferecer ao cidadão aoportunidade de praticar esses direitos democráticos comoliberdade de expressão, de imprensa e de reunião e o direito deformar partidos políticos. Além do mais, as novas estruturas,enraizadas na fé e nas idéias democráticas da soberaniapopular, e na devoção a elas, precisam possibilitar um proces-so democrático saudável nos níveis local, regional, nacional einternacional.

Dahl confronta-se diretamente com o que ele chama de“teorias de dominação da minoria”, que propõem que uma elitepequena sempre possuirá uma quantidade radicalmente desi-gual de poder e que o grosso da população estará sempresujeita ao controle dessa pequena elite. Ele conclui que não hádefinitivamente maneira de provar ou não provar os principaisquestionamentos que os teóricos da dominação da minoriatêm em comum. Não obstante, é necessário rejeitar essas

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teorias como base para a condução da formação políticaporque elas envolvem ou uma devoção a uma “revoluçãoapocalíptica” como no caso de Marx e Gramsci, ou umanegatividade paralisante e uma sensação de “desesperança”,como no caso de Mosca e Pareto. O fato é que um membrode uma elite não pode nunca saber melhor do que umdeterminado cidadão o que é necessário para que este cidadãose desenvolva. Construir um sistema político que permita auma elite determinar o que é melhor para o conjunto doscidadãos sem se esforçar em construir um sistema de controlede responsabilidade é, simplesmente, desaconselhável. Signi-ficativamente, Dahl volta sua atenção para além das situaçõescaracterizadas por uma exibição direta de poder pelas elitessobre a massa popular. Em lugar disso, ele focaliza osexemplos sutis nos quais as elites manipulam a “vontadepopular” para garantir resultados eleitorais predeterminados,através do controle disfarçado sobre a “cadeia de comando”entre as elites e a massa do eleitorado. É extremamente difícilprovar a existência de dominação da minoria através desseprocesso complexo, que é tão similar na sua descrição dosistema de formação de opinião pública em dois passos ou emmúltiplos passos, descrito por Neuman. Por um lado, oprocesso democrático, não importando quão fraca seja adefinição de democracia, pode ser considerado como existen-te se as instituições da poliarquia II estiverem funcionandoadequadamente. Por outro lado, que tal se as elites políticas eos profissionais de mídia mais intimamente associados aosistema de formação de opinião pública operarem com baseem interesses que transcendam as fronteiras políticas danação-estado? Que tal se estas elites obtiverem poder signifi-cativo sobre os representantes eleitos e também a capacidadede construir uma opinião pública? Não existe, por conseguin-te, da parte destas elites e dos representantes eleitos que asservem, nenhuma responsabilidade em relação a qualquerconceito dos “demos”. O sistema político é, portanto, “quaseuma custódia de fato”. Não é uma custódia apropriada, umavez que as elites, dentro da atividade própria de guardiães,assumem a responsabilidade que lhes é atribuída por um

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sistema construído para ser dirigido por guardiães. Uma quasecustódia é pior do que uma custódia verdadeira porque osistema continua a ser, pelo menos no nome, democrático. Osquase guardiães não estão, portanto, obrigados a assumirresponsabilidade por decisões tomadas com base no poderusurpado dos “demos”.

Dahl sugere que a nova tecnologia de comunicaçõespodia ser útil para deslocar o processo político da poliarquia IIpara a poliarquia III. De modo pragmático, Dabl conclui quedevíamos “abandonar a perfeição filosófica dos princípiossubstantivos do bem comum e procurar em lugar disso aperfeição prática dos processos para alcançá-lo”. Especifica-mente, ele mira a opinião pública, sugerindo que o uso criativoda nova tecnologia de comunicações poderia resultar emnovas instituições construídas para assegurar o desenvolvi-mento e a existência continuada de um maior “público atento”.Este público poderia criar um controle sobre essas elites“influenciando as decisões governamentais, não só diretamen-te mas também indiretamente, através da sua influência sobreas opiniões das massas e da elite”. Em qualquer caso, uma novatecnologia pode ser usada de várias maneiras danosas àdemocracia, “sem um esforço consciente” para usar novatecnologia de comunicações “em nome da democracia” (339).

Ao final de seu livro Democracy and Its Critics (Demo-cracia e Seus Críticos), Dahl sugere um modo de usar a novatecnologia para criar uma nova estrutura institucional, o“minipopulus”, no qual uma amostra de mil cidadãos étreinada para se transformar no “público atento” que eledeseja. Embora haja muito mérito no trabalho de Dahl aorestaurar a devoção ao ideal democrático do autogovemo, elenão supera o paradoxo da política de massa ou o poder obtidoatravés da economia política do sistema institucionalizado damídia de massa, talvez porque lhe falte competência nacompreensão da mídia. Não obstante, teóricos como JamesFishkin têm tentado concretizar a visão de Dabl sob a formade pesquisa de opinião pública com intenção de voto (Fishkin,1991).

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A revolução das comunicaçõesA revolução das comunicaçõesA revolução das comunicaçõesA revolução das comunicaçõesA revolução das comunicações

Em 1997, setenta anos depois da obra de Dewey, ThePublic and Its Problems (O Público e Seus Problemas), todosos comentadores, virtualmente, confirmaram que a novatecnologia de comunicação altera a atividade em conjunto. Acomunicação mediada por computador permite participaçãoativa do indivíduo no mundo da informação, em lugar doconsumo passivo da informação produzida em massa. Acomunicação mediada por computador – CMC – está criandoum ambiente novo, digital, no qual dados contidos em texto,áudio e vídeo podem ser manipulados à vontade e enviados ourecebidos por poucas ou muitas pessoas, como for desejável,a qualquer distância geográfica. A nova tecnologia, constata-se, tem propriedades características que tendem a aumentara possibilidade de escolha do usuário e o controle sobre ainformação, horizontalmente, de pessoa para pessoa, contras-tando com o fluxo de informação verticalizado, de cima parabaixo (Abramson et al., 1988; Sola Pool, 1983; Bonchek,1996). A nova tecnologia favorece a comunicação ativa entreos agrupamentos sociais de tamanho médio, preenchendoaquilo que Tetsuro Tomita, em 1980, provou ser uma “brechasocial” entre a interação imediata da comunicação, como é aconversação frente a frente e o telefone, e as diversas mídiasde massa, como o livro, o cinema, a revista, a televisão e orádio (Tomita, 1980).

É amplamente difundida a crença de que a criaçãoconstante e a atividade contínua dos agrupamentos sociais detamanho médio, fora do campo de ação, seja de fronteirasgeográficas, seja de instituições da mídia tradicional, estejamcausando impacto sobre as instituições econômicas, políticase sociais. Com a aplicação da nova tecnologia de comunica-ções à política, um aumento dramático na participação prova-velmente terá um impacto no processo político que irádesencorajar a participação ativa dos cidadãos. A instabilidadeno processo político provavelmente resultará de um conflitoentre a massa dos cidadãos que exigem, com base na tradição,sua participação no processo político e um processo político

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projetado para funcionar bem, a despeito de uma massa decidadãos desinformados e passivos em sua maior parte. Acapacidade ampliada de participação tem, de fato, despertadoo interesse pelas idéias de Jefferson. Na sua campanha paraPresidente dos Estados Unidos em 1992, Ross Perot popula-rizou o conceito de “electronic town hall”, ou “assembléiaeletrônica3” . Em 1993, o V ice-Presidente dos EstadosUnidos, AI Gore, escreveu: “Gostaríamos de ver uma Infra-estrutura de Informação Nacional que permita aos indivíduosserem tanto produtores quanto consumidores de informação,que permita ‘comunicação de muitos para muitos’... estamosinteressados em atuar em cooperação com a indústria e omundo acadêmico para promovermos uma visão comparti-lhada de uma infra-estrutura versátil para fins genéricos comuma arquitetura jeifersoniana” (Gore, 1993). Em 1995, onovo serviço computadorizado de informação do Congressofoi apelidado de Thomas, em homenagem a Thomas Jefferson,por imposição do novo Presidente da Câmara, Newt Gingrich.Estes são sentimentos e atos com potencial para gerarconseqüências, dado o fato de que a maioria dos atores dentrodo sistema político pulverizaram toda tentativa efetiva de seaderir às idéias de Jefferson, há muitas gerações. Claro estáque a estabilidade política será renegociada, em grande parte,à medida que a nova tecnologia da mídia for incorporada àsnovas instituições socioeconômicas e políticas que atendamàs necessidades da massa e, destarte, possibilitem a atuaçãocontinuada dos sistemas de poder.

Um sistema democrático de formação de opiniãopública não é, contudo, prioridade das forças na política, namídia de massa e nas ciências sociais, as quais tenderiam,antes, a favorecer uma filosofia política ao estilo de Lippmann,na qual as idéias democráticas não constituem uma variável aser avaliada com relação ao funcionamento do sistema políti-co. As elites entrincheiradas, como Russel Neuman persuasi-vamente argumenta no seu The Future of the Mass Audience(O Futuro do Público de Massas), dependem da psicologiapassiva do público de massa e dos interesses econômicos das

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estruturas institucionais da mídia de massa para garantir afunção da mídia dentro da máquina do processo político.Particularmente crucial, no estudo de Neuman, será o fato deque o público de massa é extremamente resistente ao impactoda nova tecnologia sobre o comportamento conjunto. Comoescreve Neuman: “Quando se trata de obter informação ecultura dentro do mercado, a população como um todo se vêbastante satisfeita. A frustração difusa e a necessidade nãoatendida de novas idéias e nova mídia são, em sua maior parte,as fantasias prediletas de uma pequena elite artística e depensadores sonhadores” (Neuman, 1991: 146). Em particu-lar, de acordo com Neuman, a psicologia passiva do públicode massa resulta numa reação negativa principalmente àcaracterística da nova tecnologia denominada de interatividade.

Com o ambiente político favorável à indústria, o qualpassou a existir em Washington depois das eleições de janeirode 1994 e da edição da Lei de Reforma das Telecomunicações,a qual o Vice-Presidente AI Gore considerou “abominávelpara o interesse público”, as elites entrincheiradas ficarambem posicionadas para ampliar suas metas. Por exemplo, a Leide 1996 afrouxou as normas sobre a propriedade cruzada eencorajou os conglomerados. Uma vez implantada esta lei, aDisney fundiu-se com a Capital Cities/ABC, a CBS com aWestinghouse e a Time-Warner com a Turner Broadcasting,somando-se a um pequeno agrupamento de interesses econô-micos transnacionais potencialmente capazes de colocar,virtualmente, qualquer forma de conteúdo, por meio dequalquer mídia, em qualquer residência no mundo. Emboraalguns requisitos para a prestação de serviços públicos perma-neçam na lei, ainda não existe até o momento lugar para usoscívicos da nova tecnologia, que venham a ter efeito em facedo poder global dos novos conglomerados. Os indivíduosassociados aos novos conglomerados, contudo, estão ativa-mente organizando projetos que farão avançar a democraciaeletrônica, de uma maneira ou de outra. Um exemplo possívelé o DemocracyNetwork, (RedeDemocrática), criado peloInstituto de Estudos de Governo e financiado pela segundamaior rede de TV a cabo dos Estados Unidos, a

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Telecommunications Inc., TCI, de propriedade de John Malone,que também possui 20% da Turner Broadcasting, que acaboude se fundir com a Time- Warner, a maior rede de TV a cabodos Estados Unidos. Embora eles estejam experimentandoagora a interatividade oferecida pela Internet, a definição deinteratividade que fundamentou no início o Canal da Demo-cracia era a de uma TV de duas vias, ou interativa (Grossman,1995; Schwartz, 1994). É provável que os julgamentospúblicos transmitidos pela Time-Warner em Orlando, Flórida,tenham sido fortemente influenciados pela TV-de-controleremoto-com-uma-porção-de-botõezinhos, que John Malonee o Presidente da Câmara, Newt Gingrich, apresentaram aopúblico de televisão como a vanguarda da interatividade,durante um programa, em fevereiro, na estação conservadoraNational Empowerment Television Channel.

Sustento, para estabelecer um contraste, que um novopúblico já emergiu como resultado de comunicações media-das por computador e que este público está começando a sereconhecer como tal. Argumento que, cada vez mais, oslíderes de opinião e outras elites políticas e não políticas seajustarão ao usuário efetivo da tecnologia interativa de comu-nicações mediadas por computador. Estes dois grupos irãocruzar-se diretamente com o que Robert Reich chama de novaclasse de “analistas simbólicos”. Isto resultará numa outraclasse, ainda, a que chamarei simplesmente de “elite dainformação”. Afirmo que a psicologia destes assim chamadoslíderes de opinião, do usuário da tecnologia interativa decomunicações mediadas por computador, do analista simbó-lico e da elite da informação será crucial no que respeita aofuturo das regras democráticas, à máquina política e àsestruturas aristocráticas da mídia de massa dentro da máquinapolítica sabidamente democrática. Este novo público emer-gente terá um forte interesse próprio na revitalização das idéiasdemocráticas, procurará cobrar responsabilidades de seusrepresentantes eleitos e será motivado para garantir a constru-ção da nova máquina política para assegurar o processodemocrático na tomada de decisões no século vindouro.Especificamente, este novo público será o agente que assegu-

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rará a democratização dos sistemas de formação de opiniãopública. Dewey indaga: “O público é um mito? Ou ele só chegaa existir em épocas de transição social marcante, quandoquestões alternativas cruciais se sobressaem?” (Dewey, 1927:123). Se a revolução das comunicações coincidir com orenascimento democrático será em razão do fato de que atecnologia preenche a necessidade de uma comunidade maisampla e a necessidade de maior autonomia, e o mercado éforçado a adaptar-se à esta necessidade.

Renascimento das idéias de DeweyRenascimento das idéias de DeweyRenascimento das idéias de DeweyRenascimento das idéias de DeweyRenascimento das idéias de Dewey

Com o desenvolvimento da nova mídia, a identificaçãode um público emergente e a identificação de uma motivaçãodo público no trabalho de garantir o futuro das regrasdemocráticas, preservando-as das possibilidadesantidemocráticas, resta investigar como Dewey sustentavaque o público precisava de ser organizado para dar substânciaàs idéias democráticas na própria máquina política. Deweynotou, com pesar, o absurdo de seu esforço em esclarecer ospossíveis modos de organização, numa época em que ascondições para a emergência de um público estavam tãodistantes da realidade. Mesmo assim, ele oferece idéias quesão notadamente úteis no contexto da nova tecnologia. Defato, a análise aparentemente utópica de Dewey é um guiamais preciso para os potenciais do momento do que as obrasde escritores como Barber, Arterton e Dahl, que tratam darelação da nova tecnologia das comunicações e da teoriademocrática com a Internet. Uma razão de a análise de Deweyser um guia melhor de ação é a liberdade que ele permite deimaginar uma tecnologia de comunicações poderosa o bastan-te para ser organizada com o fim de tornar visíveis certasverdades que ele se dá ao trabalho de esclarecer em suafilosofia. Outra razão correlata é que ele procura explicarcomo incorporar a devoção ao ideal democrático de autogoverno na máquina política existente e, assim, oferece umaresposta direta à análise de Lippmann sobre a necessidade dea mídia de comunicações garantir que o processo políticofuncione, a despeito de uma massa de cidadãos desinformados.

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Em outras palavras, Dewey imagina uma tecnologia decomunicações que favoreceria o arcabouço de idéias em queele acredita, em contraposição ao conjunto de idéias nas quaisLippmann acredita. Escritores modernos da era pré-Internet,por outro lado, inclinam-se a enxergar as estruturas queLippmann definiu para a mídia de massa como, até certoponto, inevitáveis porque são poderosas e têm operado hábastante tempo. Portanto, eles não são capazes de conceberuma nova tecnologia com poder suficiente para desafiar afunção da mídia de massa no processo político. No geral, elesrecaem na necessidade de intervenção do governo paramelhorar a situação. Como as tendências antidemocráticas nogoverno são a maior parte do problema, este caminho trans-forma-se numa opção impraticável. Assim, hoje, num períodode transformação causada em parte pela nova tecnologia,Dewey oferece uma orientação original sobre como organizarum público emergente e fornece uma solução para a economiapolítica da mídia de comunicações e, especialmente, para oparadoxo da política de massa, ambos assinalados por Neuman.

O método experimental e a democraciaO método experimental e a democraciaO método experimental e a democraciaO método experimental e a democraciaO método experimental e a democracia

Dewey propõe a aplicação do método experimental àpesquisa social como base para um sistema de formação deopinião pública. Em linhas gerais, ele crê que as ciênciasnaturais adotaram um método poderoso, através do qual écoletada evidência a partir da experiência concreta, a qual ésubmetida a um período de testes rigorosos, é interpretada eestá ad infinitum sujeita à discussão e a novos testes dentroda comunidade de cientistas empenhados no trabalho depesquisa. Para Dewey, o desenvolvimento deste métodoexperimental é o modelo perfeito para uma prática democrá-tica aperfeiçoada, porque está baseado no mundo concreto edepende de uma discussão aberta e indagadora dentro de umacomunidade de estudiosos interessados. Especificamente, elereflete uma compreensão mais sofisticada da natureza dointer-relacionamento entre o cientista isolado, a comunidadeacadêmica e um determinado campo de conhecimento. Em-bora Dewey elogie o desenvolvimento do método experimen-

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tal nas ciências naturais, ele argumenta que os homenscontinuam a temê-lo quando aplicado às questões humanas.Além do mais, é problemático que os homens, através dodomínio do método experimental e do desenvolvimento dasciências naturais, tenham “colocado em suas mãos ‘ferra-mentas físicas’ de incalculável poder”. A despeito do fato dehaver chegado a obter este incalculável poder, o homem nãoconseguiu sofisticação na condução dos assuntos humanosque lhe possibilitasse empregar o poder para usos construti-vos. Assim, escreve Dewey: “A instrumentalização transfor-ma-se numa mola mestra e atua como se possuísse umavontade própria – não porque ela tenha uma vontade, masporque o homem não a tem” (Dewey, 1927: 175). Conclui-seque o método experimental deva ser aplicado às questõeshumanas. Como a máquina de formação da opinião pública secoloca no eixo da inovação tecnológica e das questõeshumanas, o método experimental deve ser aí aplicado.

Dois sistemas de formação de opinião públicaDois sistemas de formação de opinião públicaDois sistemas de formação de opinião públicaDois sistemas de formação de opinião públicaDois sistemas de formação de opinião pública

Dewey pinta um quadro contendo dois sistemas alterna-tivos de formação de opinião pública, um dos quais ele reputaser coerente com a expressão “opinião pública”, e o outro, não.O primeiro sistema é vital para o estabelecimento de umadevoção às idéias democráticas na máquina política real. AfirmaDewey: “A comunicação dos resultados de uma investigaçãosocial é a mesma coisa que a formação de opinião pública. Istodestaca uma das primeiras idéias moldadas no crescimento dademocracia política assim como será uma das últimas a serempostas em prática” (177). Para Dewey, a verdadeira opiniãopública é a comunicação ampla e ilimitada dos resultados dainvestigação social. O processo político democrático dependedo nível e da qualidade do juízo emitido pelo conjunto doscidadãos. As idéias democráticas não poderão ser concretiza-das mais efetivamente até que surja um sistema de formação deopinião pública que auxilie na construção de um nível elevadode juízo político pela massa dos cidadãos. Ponto chave nosistema de formação de opinião pública imaginado por Deweyé que o processo de investigação social seja tanto sistemático

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quando perfeito em sua operação, “empregado em observar,relatar e organizar o verdadeiro material objeto de estudo”. Eledeve ser construído metodicamente, de maneira a ser capaz deresultar num alto nível de inteligência socializada. Para serverdadeiramente democrático, no entanto, esta inteligênciasocializada deve ser construída, na prática, por meio decomunicação integral, aberta e livre.

O segundo sistema delineado por Dewey é a interpre-tação que faz da análise de Lippmann do que a opinião públicadeveria ser. Dewey afirma que “a opinião casuísticamenteformada por aqueles que têm algo a ganhar com a mentira sópode ser opinião pública no nome”. Tal sistema de formaçãode opinião pública é altamente problemático porque não é nemum processo sistemático, nem aberto e livre. O resultado,portanto, nem é um alto nível de juízo político na comunidade,nem um juízo político que reflita o funcionamento do idealdemocrático de autogoverno. É, antes, um juízo políticodisparatado, sob o controle de interesses econômicos priva-dos. Como escreve Dewey: “O que quer que obstrua erestrinja a publicidade, limita e distorce a opinião pública eimpede e distorce a reflexão sobre questões sociais” (167).

A crença de Dewey de que a democracia será “consu-mada quando a investigação social livre estiverindissoluvelmente baseada na arte da comunicação integral emotivadora” está baseada na crença de que, do ponto de vistaideal, democracia e vida comunitária são sinônimos. Como eleescreve: “A consciência nítida de uma vida comunitária, emtodas as suas implicações, constitui a idéia da democracia”(149). Desconsiderando a realidade da máquina política de-mocrática ao escrever, Dewey prevê um tempo em que afusão entre a investigação social e a tecnologia das comunica-ções abarcará o entendimento tanto das idéias democráticasquando do significado da vida comunitária. Na nova máquinade formação de opinião pública, um novo tipo de conhecimen-to e percepção será gerado para a comunidade, tanto peloparticipante individual quanto pelos participantes em conjun-to. Este conhecimento sobre a natureza do inter-relaciona-

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mento entre o indivíduo e a comunidade ajudará o indivíduoa “aprender a ser humano” e, no processo, a superar a divisãoentre indivíduo/sociedade, que está na base da máquinapolítica que se desenvolveu no decorrer do tempo e seperpetuou nas propostas de Walter Lippmann. Sobre esteconhecimento, Dewey declara que “aprender a ser humano édesenvolver, através do ato de dar e tomar que a comunicaçãopermite, um sentido genuíno de ser um membro individual-mente distinto de uma determinada comunidade, que compre-ende e aprecia suas crenças, aspirações e métodos e quecontribui para a conversão posterior do poder orgânico emrecursos humanos e valores” (154). Em outra parte escreveDewey que “um indivíduo não pode se opor à associação queele integra, nem a associação pode ser contrária aos seusmembros” (191). Considerando sua análise do que é necessá-rio para que uma máquina de formação de opinião públicasustente idéias democráticas, Dewey ataca o sistema deformação de opinião pública, de propriedade privada, queprivilegie a transferência da informação diretamente da orga-nização de mídia para cada membro isolado do público. Oprocesso democrático de tomada de decisões deve ser base-ado no conhecimento dos fenômenos sociais, e tal conheci-mento não pode existir quando a informação está “confinadaà consciência individual”. Dewey questiona a noção de que“os homens podem ser livres em seu pensamento, mesmo quenão o sejam na expressão e difusão do mesmo” tenha seoriginado da crença de que podia existir uma mente “completaem si mesma, separada da ação e dos objetos”. Esta hipóteseerrônea data de uma época em que os primeiros democratasapresentaram suas concepções automotivadas do indivíduolivre como um indivíduo isolado, separado do comportamentoassociativo. Como procuramos mostrar, para concretizar-mos mais completamente as idéias democráticas, deve haverum público emergente que supere este dualismo falso. Oconhecimento dos fenômenos sociais deve, portanto, serrepartido de modo que a informação possa ser posteriormenteobtida e que o conhecimento resultante da discussão dessainformação possa ser posteriormente testado por meio doprocesso vigente dentro da comunidade.

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Comparando as realidades econômicas da midiaComparando as realidades econômicas da midiaComparando as realidades econômicas da midiaComparando as realidades econômicas da midiaComparando as realidades econômicas da midiade massade massade massade massade massa

Ao buscar um sistema democrática de formação deopinião pública, Dewey entende que as realidades econômicasdevem ser comparadas. Segunda ele, “é futilidade ignorar enegar os fatos econômicas. Eles não cessam de atuar pelo fatode nas recusarmos a notá-los, ou pelo fato de procurarmosobscurecê-los com um sentimentalismo fantasioso” (156).Para ter êxito, todo sistema alternativa de formação de opiniãopública deve comparar as motivações econômicas da sistemade formação de opinião pública proposta par Lippmann e, nasatuais, o peso econômico das estruturas institucionalizadas damídia de massa. Hoje, as questões que envolvem a futura dapropriedade privada são particularmente relevantes. Comoperguntam os autores de A Magna Carta for the KnowledgeAge (Uma Constituição para a Era do Conhecimento): “Quemdefinirá a natureza dos direitos de propriedade no espaçocibernético, e como? Como podemos atingir um equilíbrio entresistemas abertos interoperativos e a proteção da propriedade?”(Dysan et al., 1994). A complexa literatura dos direitos depropriedade na “era da informação” está além do escopo destatese. Entretanto, a análise conceitual que Dewey faz dos doissistemas de formação de opinião pública oferece orientaçãosobre como um público emergente poderia libertar o sistema deformação de opinião pública, para fins de tomada democráticade decisão, do sistema de mídia de massa de propriedadeprivada no qual está embasado. Tal ação do público é necessáriaà derrubada do falso dualismo há muito enraizado e à aberturado caminho para o ressurgimento democrático

A comunidade localA comunidade localA comunidade localA comunidade localA comunidade local

Em primeiro lugar, Dewey enfatiza que a nova tecnologiadeve ser empregada na comunidade local se as idéias demo-cráticas estiverem muito perto de ser concretizadas. Para ele,“somente quando partimos da comunidade como um fato e oapreendemos em pensamento, de modo a esclarecer e aprimo-rar seus elementos constitutivos, podemos chegar a uma idéia

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de democracia que não é utópica” (149). A necessidade derelacionar o sistema de formação de opinião pública maisestreitamente à comunidade local é um dos mais importantesrequisitos caso a democracia sobreviva no século XXI.Justifica sua importância o fato de a nova tecnologia capacitaros indivíduos a se comunicarem com os outros a despeito dasfronteiras geográficas. Esta “libertação da geografia”, com aconcepção das “comunidades virtuais” (Rheingold, 1994),tem, para alguns, se tornado uma das qualidades que definema “era da informação” a que estamos assistindo. Em resumo,assumo a posição de que o conceito de “comunidades virtuais”,embora possua muitas virtudes, torna-se uma ameaça aoprocesso democrático quando se faz a sugestão de que asidéias democráticas são aplicáveis basicamente às “comuni-dades virtuais” em lugar de comunidades geograficamentesituadas. De modo significativo, alguns grupos interessadostêm considerado a ascensão da comunidade virtual e oposterior eclipse da comunidade local como ponto pacífico.Os autores de “Uma Constituição para a Era do Conhecimen-to”, por exemplo, escrevem: “Está claro que...o ciberespaçodesempenhará um papel importante na tessitura das diversascomunidades do amanhã, facilitando a criação de “vizinhoseletrônicos” unidos, não pela geografia, mas por interessescompartilhados” (Dyson et al., 1994). Tais trabalhos retóricosvisam a estender o sistema corrente de formação de opiniãopública a uma nova era, continuando a separar o indivíduo docontexto em que ele está inserido. Isso permite que as pessoasacreditem mais facilmente na noção de que o indivíduo isoladoestá em liberdade. A chave para um sistema à moda de Deweyé que ele está enraizado numa comunidade local atuante.Dewey escreve: “Numa palavra, a expansão e o reforço dojuízo e da compreensão pessoal, através da riqueza intelectualcumulativa e transmitida pela comunidade, a qual pode tornarsem valor a acusação que se faz à democracia com base naignorância, preconceito e leviandade das massas, só podemser completados no quadro de relações interpessoais dacomunidade local” (Dewey, 1927: 218).

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Preenchendo a falha da mídiaPreenchendo a falha da mídiaPreenchendo a falha da mídiaPreenchendo a falha da mídiaPreenchendo a falha da mídia

Em segundo lugar, Dewey procura compreender umanecessidade a que só recentemente se tomou possível atender.De modo especial, a ênfase de Dewey na importância dacomunidade local, dos sistemas de comunicações e da tomadademocrática de decisões, possibilita-lhe abordar o espaçocomunicador ao qual Tetsura Tomita se refere como a “falhada mídia”, existente entre as formas de comunicação imediatae a mídia de massa (Tomita, 1980). Os escritos de Deweysobre a importância da interação face a face (Carey, 1989;Lasch, 1995), por um lado, e sua sugestão de que o processoda inteligência socializada deve ser canalizado rapidamentepara a mídia impressa, por outro lado, são indicações de quea imaginação dele estava funcionando na mesma área que aocupada pelo brilhante potencial da comunicação mediada porcomputador. Particularmente importante é a característica dainteratividade que permite que grupos de indivíduos, virtual-mente de qualquer número, comuniquem-se livremente unscom os outros. A interatividade pode permitir a construção deum contexto no qual os cidadãos podem auferir os benefíciosda conversação frente a frente e os benefícios da publicaçãoem massa da palavra escrita. O que é necessário e possível éa fusão das culturas oral e impressa (Hamad, 1996).

Interatividade e novo públicoInteratividade e novo públicoInteratividade e novo públicoInteratividade e novo públicoInteratividade e novo público

Em terceiro lugar, Dewey sugere que, uma vez que atecnologia esteja disponível, o público se revelará. Ao fazê-lo,o público se tomará altamente politizado, mudando potencial-mente o processo político. Mais especificamente, Deweyparece buscar uma forma de comunicação específica inter-mediária, que permitirá à comunidade a criação de uma ponteentre o indivíduo isolado e os sistemas nacionais de comuni-cação. Assim, a tecnologia apoiará a restauração da vidacomunitária, enquanto conserva seus laços com o diálogonacional que protege a comunidade e a nação contra os perigosdo paroquialismo. Assim ele escreve: “Em algum lugar, entreas associações que são estreitas, próximas e de caráter

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intimista e aquelas que estão tão distantes de forma que comelas mantenhamos apenas contato infreqüente e casual, en-contra-se a província do Estado” (Dewey, 1927: 43). Noutraspalavras, quando uma nova tecnologia permite a emergênciade um público maior que o de uma comunidade agrícola, masmenor que o de uma nação, e quando a tecnologia é bastanteflexível para permitir deliberação local bem como regional,nacional e mesmo internacional, isso terá conseqüênciasimportantes para a unidade política.

Eleições e representantes eleitosEleições e representantes eleitosEleições e representantes eleitosEleições e representantes eleitosEleições e representantes eleitos

Em quarto lugar, conforme o texto de Dewey, aformação de um Estado na sociedade democrática depende daeleição de representantes pelo povo. Portanto, o estabeleci-mento de um novo sistema de formação de opinião públicaprovavelmente terá origem nas mudanças neste aspecto doprocesso político. Embora Dewey não afirme explicitamenteque um novo sistema de formação de opinião pública seráobrigatoriamente implementado durante o período eleitoral, asugestão pode ser deduzida a partir da sua ênfase sobre aimportância deste ponto no qual o público e o possívelrepresentante eleito se encontram. Ele escreve com sarcasmosobre este ponto de contato dentro do processo político comoo que existia no seu tempo: “Existem cidadãos que têm abendita oportunidade de votarem por meio de uma cédula emhomens que lhes são, na maioria, desconhecidos, a quallhesé preparada por uma máquina clandestina composta por umapanelinha de políticos cuja atuação se constitui numa espéciede predestinação política” (120). Isto está em nítido contrastecom a idéia de Dewey de o sistema estar espalhado nacomunidade local para a criação de inteligência socializada, aeducação da opinião pública a respeito dos possíveis represen-tantes a serem eleitos e o auxílio no processo eleitoral.Naturalmente, uma vez implementada, a nova máquina deformação de opinião pública serviria como controle, umsistema de supervisão sobre os representantes eleitos. Istoajudaria na criação de uma avaliação de alto nível do desem-penho para que o público pudesse utilizar durante o próximoperíodo eleitoral. Dewey afirma: “Somente através de cons-

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tante vigilância e crítica sobre seus homens públicos por partedos cidadãos pode um Estado manter sua integridade eutilidade” (69).

Do controle da agenda da midia de massa aoDo controle da agenda da midia de massa aoDo controle da agenda da midia de massa aoDo controle da agenda da midia de massa aoDo controle da agenda da midia de massa aosurgimento da elite de informaçõessurgimento da elite de informaçõessurgimento da elite de informaçõessurgimento da elite de informaçõessurgimento da elite de informações

Uma vez que exista um sistema de comunicaçõesflexível, intermediário, que permita a emergência da voz de umnovo público, aplicado ao processo político durante o períodoeleitoral, dentro de uma comunidade local, este não deve serreprimido por um sistema privado de formação de opiniãopública. O público que tenha emergido e sido assim organiza-do deve ser o agenciador para assegurar que o novo sistemade formação de opinião pública seja projetado para servir aonovo público no projeto de auto governo democrático. Paraatingir esta meta, ele deve se desembaraçar dos interesses damídia privada. Caso contrário, a falsa dualidade será facilmen-te perpetuada na mente das pessoas. De acordo com a análisedatada de Dewey, a função da imprensa deve ser separada dasua dependência de interesses financeiros. Uma vez separada,a natureza das notícias mudará dramaticamente para melhor.Dewey escreve: “Exatamente do mesmo modo que umaindústria dirigida por engenheiros em bases tecnológicasfactuais seria muito diferente do que na verdade é, assim amontagem e o relato de notícias seriam uma coisa muitodiferentes se os interesses legítimos dos repórteres tivessempermissão para atuar livremente” (182). Talvez seja impra-ticável a idéia de que os repórteres, que precisam ganhar opão para prover às suas famílias, possam se libertar ou ficarlibertos dos interesses particulares que governam as empre-sas de comunicação. Os interesses da mídia privada não vãodesaparecer na “Era da Informação” e eles empregarãorepórteres. É necessária, porém, a separação do novosistema de formação de opinião pública, que opera duranteo ciclo eleitoral, como foi salientado acima, do domínio dosinteresses pecuniários. Não existe forma pela qual umsistema como esse pudesse ser considerado democrático, amenos que seja aberto a toda a comunidade de participantes

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em potencial. Além do mais, um sistema aberto de comuni-cações é viável. A tecnologia atual é bastante flexível parapermitir a construção de um sistema aberto. E mais, existe defato uma agência para garantir que seja construído um sistemaaberto de comunicações.

Enquanto Russel Neuman sugere que o resultado darevolução das comunicações será um aperfeiçoado “processode múltiplos passos” na formação da opinião pública, em quea informação continua a fluir da mídia de massa para a camadada elite e .desta para o público em geral, sugiro um sistemademocratizado de formação de opinião pública onde o novopúblico, a elite da informação, participa de um sistema abertode investigação social no contexto do ciclo eleitoral. Adeliberação democrática resultante fará parte, obrigatoria-mente, do “furo” da comunidade jornalística. Desta maneiraoutras mídias o comunicarão ao público em geral, que optoupor não participar. Assim, a informação no centro do proces-so será objeto do debate comunitário, em lugar da informaçãocoletada por repórteres que trabalham para organizações depropriedade privada. O conhecimento resultante, por conse-guinte, será aquele que é distribuído ao público genéricopassivo por repórteres que trabalham para organizações depropriedade privada. Noutras palavras, em lugar de os interes-ses da mídia dirigirem o sistema de formação de opiniãopública, a concepção de Dewey de deliberação democráticadirigirá o sistema de formação de opinião pública. As organi-zações de mídia de massa desempenharão um papel importan-te, mas secundário.

O papel de uma elite intelectual formada segundoO papel de uma elite intelectual formada segundoO papel de uma elite intelectual formada segundoO papel de uma elite intelectual formada segundoO papel de uma elite intelectual formada segundoprincípios democráticosprincípios democráticosprincípios democráticosprincípios democráticosprincípios democráticos

Essencial para o sistema de formação de opiniãopública de Dewey é que ele aceita aquilo que Neumandenomina de “paradoxo da política de massa”. O grosso doscidadãos não está bastante bem informado para concretizar asidéias democráticas. Por detrás desta aceitação, existe umabatalha envolvendo as teorias de dominação da minoria que

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pressupõem que uma pequena elite sempre possuirá umaquantidade desmesurada de poder. A batalha é sobre comotrabalhar com essa verdade ao mesmo tempo em que seconstrói um sistema de formação de opinião pública queaproxime o processo político da realização de idéias democrá-ticas. A resposta à batalha está na reconstrução do funciona-mento daquelas elites que atuam no eixo do processo políticoe dos sistemas de formação de opinião pública. A emergênciade um novo público, controlando uma nova tecnologia decomunicações, provocará esta reconstrução. Em vez de umsistema de formação de opinião pública mantido por particu-lares, no centro do processo político, que opere no interessedas elites políticas e econômicas que não são forçadas a levarem consideração outros bens além daqueles que fomentemseus interesses, deve existir um sistema de formação deopinião pública livre e aberto, no centro do processo, que atueem favor dos que estão aptos a se sobressair como formado-res de opinião pública por seu conhecimento especializado,estilo literário, sabedoria, coragem, empatia ou o que seja.Declara Dewey: “Afirma-se que o controle do poder opressi-vo desta oligarquia (a dos grandes negócios) depende daaristocracia intelectual e não do apelo a uma massa ignorantefútil, cujos interesses são superficiais e triviais e cujosjulgamentos só escapam de incrível leviandade quando sãoavaliados com acentuado preconceito” (204). Não há dúvidade que um sistema como esse favoreça uma elite, mas é umaelite alçada ao poder por sua capacidade de contribuir profi-cuamente para a comunidade através de um procedimentopara a criação de inteligência socializada. Dewey não propõea formação utópica de uma sociedade sem classe ou aaceitação cínica da dominação da elite. Em vez disso, sugerea construção de um sistema de comunicação que possibilite auma elite democraticamente gerada instaurar controle sobreos representantes eleitos e os interesses privados. Certamen-te, tal sistema é mais adaptado a uma “Era da Informação” naqual o indivíduo que possua conhecimento e capacidade parautilizá-lo está supostamente em vantagem sobre as velhas

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elites políticas e econômicas de uma ordem industrial capazesde se alçarem a uma posição de poder por causa de sua aliançacom o sistema de propriedade privada. É esta “elite dainformação” flexível que deve, para o seu próprio bem, avaliaro significado das idéias democráticas e, ao fazê-lo, transfor-mar a máquina política de forma a concretizar o maisperfeitamente possível o seu significado.

Um sistema de formação de opinião públicaUm sistema de formação de opinião públicaUm sistema de formação de opinião públicaUm sistema de formação de opinião públicaUm sistema de formação de opinião públicaaberto a todosaberto a todosaberto a todosaberto a todosaberto a todos

Finalmente, na formulação de um sistema de formaçãode opinião pública, Dewey aceita a necessidade salientada porLippmann e Neuman, entre outros, de um sistema governa-mental rico em conhecimento especializado, ou em inteligên-cia organizada. Contudo, ele rejeita a idéia de que tal sistemadeva estar ligado a um sistema de formação de opinião públicade propriedade privada. Em vez disso, um sistema rico emconhecimento prático, ou inteligência organizada, se tornarámais rico através do engajamento ativo de especialistas nosistema de formação de opinião pública em nível local.Conhecimento separado de sua distribuição no meio de umpúblico aberto não é conhecimento socializado. Dewey escre-ve: “Nenhum governo de especialistas, no qual as massas nãotenham a chance de informar os especialistas sobre suasnecessidades, pode ser algo mais que uma oligarquia dirigi dano interesse de uns poucos” (207). Além do mais, não énecessário que todos os participantes possuam conhecimentoespecializado, mas é preciso que todos os cidadãos possuama oportunidade de julgar as posições postuladas por aquelesque possuem o conhecimento especializado. Dewey afirma:“Não é necessário que a maioria possua o conhecimento e aperícia para prosseguir com as investigações necessárias: oque se requer é que se tenha a capacidade de julgar a carga deconhecimento ofertada por outros com base em interessescomuns” (209). Assim, não é uma questão de elevar asfaculdades cognitivas de cada cidadão, individualmente, numacomunidade política, ou de forçar cada cidadão a ser umparticipante ativo. É, antes, uma questão de elevar “o nível em

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que a inteligência de todos opera”. Como conclui Dewey: “Aaltura deste nível é muito mais importante para o julgamentodas questões públicas do que qualquer diferença nos quocien-tes de inteligência” (211). A função da cidadania nas delibera-ções públicas comuns na comunidade política emerge, destaforma, como o receptáculo de geração de inteligência socia-lizada, crucial no projeto de auto governo democrático.

Notas: Todas as notas citadas neste artigo estão disponíveisno site: www.aikens.org/phd

Tradução de Paulo Roberto MagalhãesRevista por Maria Beatriz Chagas Lucca

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Diálogo com Cataldo MottaAPRESENTAÇÃO

Leonardo Noronha (consultor da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais)

A entrevista com o Dr. Cataldo Motta é de particular interesse, tendo em vista a autoridade técnica emoral do promotor de justiça de Lecce, que atua no front do combate contra as atividades mafiosas,no sul da Itália.

Protagonista da Operação Mãos Limpas, ao lado de outros magistrados de renome, como Antônio DiPietro, Motta demonstra serenidade e firmeza, além de um senso de humor inusitado, em se tratandode alguém que vive cercado por guarda-costas, sob ameaça de morte.

Seu testemunho servirá de estímulo àqueles que julgam possível o combate à corrupção e ao crimeorganizado no Brasil, apontando mecanismos institucionais e procedimentos policiais, judiciários eadministrativos de eficácia comprovada na experiência italiana.

Quebra de sigilo bancário; cooperação entre as instituições incumbidas da prevenção e repressão àcriminalidade; postura determinada e corajosa das autoridades em face do crime; funcionamentopleno e regular dos órgãos de controle externo da administração pública; cruzamento de informaçõesfazendárias, bancárias e cartoriais, de modo a verificar-se a evolução patrimonial de possíveisinfratores da lei.

Estão são algumas das sugestões do Dr.Cataldo Motta, ancorado em sua larga e bem sucedidavivência profissional.

Entrevista com o Magistrado Cataldo Motta

Professor, no Brasil, hoje, se discute muito sobre a necessidade de romper o sigilo bancáriopara melhor combater o criminalidade organizada. Há aqueles que dizem que a privacidadeserá comprometida e há outros que dizem que isso é fundamental para combater o crimeorganizado. O que o senhor pensa?

Acredito que efetivamente seja fundamental o controle bancário. Nós, há muito tempo, temos apossibilidade de acessar as contas bancárias, necessitando apenas de ordem do Ministério Público.Não há necessidade de autorização de juiz, como, por exemplo, para interceptação telefônica. Paraviolar o segredo bancário, para acessar as contas, é suficiente a intervenção do Ministério Público.

Seguramente este é um caminho a se percorrer com urgência, porque existe atualmente ummovimento, uma migração da empresa mafiosa que vai se transformando numa empresa financeira.Segundo estimativa recente, apenas 50% da renda do tráfico mundial de cocaína, de heroína e demaconha são reempregados na compra de outras substâncias para dar continuidade ao tráficocriminoso. Metade, aliás, mais da metade, algo entre 50 e 60%, vem sendo empregada no sistemafinanceiro, em atividade de lavagem. Isso significa que, em perspectiva, a empresa mafiosa seráfinanceira, contaminando as atividades econômicas. Existirá uma forte presença de capital criminosona economia legal.

O senhor sabe se existe a possibilidade de se quebrar o sigilo bancário por parte daautoridade fiscal?

Nós temos um sistema de policiamento judiciário segundo o qual cada um dos corpos policiais, dosquatro existentes na Itália, tem a possibilidade de desenvolver funções de polícia judiciária. Nãotemos, portanto, como aqui, um corpo que faz apenas o trabalho de polícia judiciária. Temos quatrocorpos: polícia de estado, carabinieri, guarda alfandegária e polícia penitenciária, que desenvolvem oupodem desenvolver funções de polícia judiciária. Entre essas funções, existe naturalmente também adas averiguações financeiras, a das verificações bancárias.

Portanto, a guarda alfandegária, que é a estrutura que institucionalmente intervém neste setor, podeir aos bancos, sempre com a autorização judicial do Ministério Público.

E não é difícil de conseguir a autorização?

Não é difícil no momento em que se apresentam elementos que fazem necessária uma investigaçãonesse campo. E a autorização pode ser dada à guarda alfandegária e a qualquer outra força de políciaque tenha uma investigação em andamento. Nós temos, também, e este é um aspecto importante,paralelamente, ao processo penal, um outro sistema, que é o da prevenção. Trata-se, portanto, degolpear o perigo social de um indivíduo, antes que ele cometa um delito. Enquanto o sistema deprocesso penal intervém depois que se cometeu o delito para pronunciar a sentença, o processo deprevenção trata de impedir que uma pessoa perigosa possa praticar delitos. E neste setor nós temosoutras medidas, como o confisco dos capitais e dos patrimônios de proveniência ilícita, que serevelam muito úteis no momento em que se suspeita que uma determinada empresa tenha ligaçõescom uma organização mafiosa ou de qualquer outro ramo criminal e que o capital dessa empresa, opatrimônio dessa empresa, tenha proveniência ilícita. É possível seqüestrar todo o patrimônio de umaempresa, e o seqüestro ocorre na fase das investigações. Pode-se chegar ao confisco, que é umamedida definitiva, pela qual o Estado se apropria do patrimônio, se a empresa não demonstra aproveniência lícita. Em comparação com o processo penal, há uma inversão do ônus da prova. Aqui éa pessoa que deve provar que a proveniência é legítima, porque, se não o prova, o Estado confiscatodo o patrimônio. É um instrumento que se revelou utilíssimo, e é bastante recente, também.Identificar o autor de um crime (e este é um fato muito importante, como, por exemplo, identificar oautor de um homicídio.) freqüentemente é muito mais simples do que verificar a origem do capital oupatrimônio de uma empresa. A demora é extremamente grande e as dificuldades são enormes, éverdade que podemos acessar os bancos, mas tem de se ver o que vamos conseguir deles. O sistemabancário é sempre muito "impermeável". Precisamos saber exatamente o que queremos achar, temosque entrar na tecnologia dos bancos, atualmente toda computadorizada, informatizada, e entender asua linguagem. E agora, em 1997, houve uma modificação exatamente no sistema preventivo, queobriga os bancos a revelarem todas as operações suspeitas. Temos um dever que recai sobre osbancos. Até agora usado muito limitadamente: um pouco, porque há o receio de expor osfuncionários à reação do cliente que fez a operação bancária; um pouco, porque o banco sabe bemque, se recusar um cliente (geralmente é muito bem-vindo para o banco), ele vai a outra agência.Portanto, no regime de concorrência, é difícil que o banco diga não. Com esta nova legislação,resolveu-se a primeira parte do problema no sentido de que se assegurou o sigilo sobre o funcionárioque fez a comunicação. Assim, em nenhum caso, nem ao menos no processo, nem com o pedido daautoridade judicial, exceto em caso de absolutíssima necessidade, pode-se revelar o nome de quemfez a comunicação, o que protege o funcionário de retaliações criminais. Temos que observar queessa modificação é muito recente, do ano passado. Vejamos se os bancos mudam de atitude.

Nós sabemos que a máfia é capaz de destruir a autoridade pública e que pode conduzir auma ilegitimidade dos poderes, até à criação de um estado paralelo. Quando foi que amagistratura italiana decidiu que devia enfrentar a Máfia, que devia começar uma lutacontra ela?

A norma que introduz a figura jurídica da associação mafiosa no código penal italiano é recentíssima,é de 1982. Naquele momento se verificaram as condições culturais para que se pudesse aplicar essanorma. Em verdade, o instrumento jurídico sozinho não é suficiente. Precisamos de uma modificaçãoda postura cultural. E isso aconteceu quando percebemos que não era mais tolerável, tanto o aspectomilitar da Máfia, e suas conseqüências (os homicídios, os massacres gravíssimos em que forammortos policiais, carabinieri, juizes, políticos); como a "amizade" entre política e Máfia, que se tornoufreqüente, com o risco de se criar realmente uma estrutura que se sobrepunha ao Estado legal e dese transformar a estrutura ilícita em estrutura legal. O sentido do risco era o de se criar uma rede deinclusão algo difusa, enfim, de se legitimar o ilícito. E houve esta intervenção, seja contra a Máfia,seja contra o aparato militar das organizações mafiosas, seja contra a corrupção que havia chegado aníveis altíssimos na administração pública e no meio político. Isto implicou em um confronto entrepolíticos e administradores públicos, culpados de corrupção, e em uma transformação, umasubstituição, da classe política no poder. E este, certamente, é um momento muito importante davida italiana, ao qual nós atribuímos importância, também porque queremos verificar quais são osresultados. Porque a impressão, que em parte vem de algumas propostas de modificação legislativa,é que se queria impedir que se continuasse nesse caminho, e, portanto seja atuando como Judiciário,seja atendendo a opinião pública, estamos muito atentos para entender quais são os projetos dessanova classe política, que está hoje no poder na Itália.

A troca de governo, porém, foi positiva, pelo menos quando vista do estrangeiro.

Isso não posso dizer, porque faço parte do Judiciário, não da política em si. São exatamente doissistemas diferentes. Para alguns foi positivo, para outros, não.

Do ponto de vista do Judiciário, houve influência positiva ou negativa?

A influência nos trabalhos do Judiciário pode acontecer apenas se se modificam as normas que esteusou até agora, e a nossa Constituição prevê que os juízes e, portanto, o Poder Judiciário, estãosujeitos apenas à lei, logo, devem aplicar a lei. A lei é aquela criada pelo parlamento, que temautoridade para modificar a lei. A lei é o instrumento que o juiz aplica e se o instrumento vemmodificado, poderia não ser útil no sentido em que foi até agora.

Sobre o papel da Comunidade Européia: o que ela faz contra a Máfia ou para ajudar acombatê-la?

A Comunidade Européia seguramente possibilita maior difusão do fenômeno criminal, e a queda dasbarreiras, das fronteiras, cria um sistema de circulação livre, que facilita a difusão decomportamentos criminais e financeiros (dos quais falávamos antes). Mas existe, por outro lado, umagrande vantagem, que é a aplicação do Acordo de Schengen, de 1985, adotado pela maior parte dospaíses da Comunidade Européia. É um acordo que permite desenvolver atividades de investigação,atividade de polícia judiciária, sobre todo o território dos países que o assinaram, sem a necessidadede procedimentos preliminares. Por exemplo: se um agente de polícia judiciária seguiu um traficantede entorpecentes, de heroína, até a fronteira da Itália e da França, há algum tempo ele teria queparar, e informar o Ministério sobre o assunto, e, diplomaticamente conseguir autorização para entrare continuar seu trabalho, o que atrasaria a operação. Hoje não há necessidade de fazer mais nada, anão ser avisar a autoridade de polícia judicial mais próxima, pedindo suporte e seguindo com eles.Logo, é uma atividade que não sofre interrupções, o que é muito útil porque através disso todas asatividades de polícia judicial têm uma amplitude diferente e, portanto, uma utilidade diferente. Nós jáexperimentamos com a França e a Bélgica, mesmo antes da criação de um direito comunitário, e esteé um aspecto muito mais complexo, e antes ainda do surgimento da possibilidade de verificação dasrelações entre Estados soberanos.

Esse argumento da relação da relação entre o direito comunitário e o direito dos Estados membrossoberanos é para nós uma coisa nova, mas não para vocês que têm

um Estado federado, com uma legislação federal que define crimes federais e legislações estaduais. AItália é um Estado unitário e agora nasce uma confederação ou melhor, união, e é preciso ver qual é a relaçãoque deverá haver entre a legislação de cada um dos Estados membros. O assim chamado Direito Comunitário Europeu. Mas esse problema, muito amplo, vai ser equacionadonos termos do Acordo de Schengen que, para essa finalidade, é extremamente útil.Sobre a reação do cidadão, como age a população em relação à Máfia e à atuação doJudiciário?

Este é um grande problema, porque a rejeição dos cidadãos à máfia e em relação aos políticoscorruptos é considerável, porque, para esses últimos, a intervenção do magistrado contra a corrupçãoé diferente. Houve um consenso muito difundido que fez com que a velha classe política se retirasse,porque a opinião pública esteve toda contra eles, contra os corruptos e a favor de uma intervençãopolicial na administração pública. Com relação, por outro lado, aos comportamentos mafiosos,precisa-se distingui-los, há necessidade de ir às causas da sua formação. Fenômenos maisimportantes para o surgimento de máfias ocorreram entre os sicilianos, os calabreses e os daCampagna, e nasceram com a "permissão" do povo, porque eram uma alternativa ao Estado que jáestava quase completamente ausente, naquelas regiões. O Estado estava ali presente apenas paracobrar taxas, para receber dinheiro, e não para prestar serviços, nem para garantir trabalho, e issofez com que o povo se sentisse próximo a quem trabalhava, a quem "garantia" um sistema de vida,mesmo que num nível criminal. Este fenômeno aconteceu no início do século passado e, portanto,nestas regiões onde as condições estavam em parte modificadas há uma resistência (ou ao menoshouve resistência, até há alguns anos atrás) da parte do povo que esteve do lado da Máfia e não dequem a combatia. Agora essa situação se modificou, em parte porque se modificaram as condiçõeseconômicas e sociais dessas regiões. Um pouco porque a postura cultural se modificou; e há tambémo aspecto criminal ou o aspecto militar que naturalmente traz danos, e há depois o aspecto financeiro,que contamina a economia legal. Com relação às outras organizações mafiosas, como a da Puglia, oargumento é outro, porque na Puglia a organização criminal do tipo mafioso nasce por motivaçõesdiferentes, não é gerada pela região, não nasce por causas internas, mas sim como forma de reaçãoàs tentativas de ocupação do território por outras organizações criminosas. E isso faz com que nãoexista o envolvimento do povo, não há o aspecto socio-econômico das outras organizações mafiosas.Isso fez com que, no momento em que houve uma forte resposta da parte do Estado, da partepolicial, da parte da administração judicial, uma intervenção forte, quase decisiva, porque essasformações foram fragmentadas, as pessoas reconquistaram a confiança no Estado e portantopassaram para o lado dele, mas isto porque se trata de uma realidade diversa da siciliana, napolitanaou calabresa. Trata-se de investigação sobre fenômenos mafiosos e fenômenos similares, isto é, nãoapenas sobre a formação da Máfia mas também sobre a formação de outras organizações do tipomafioso.

Que tipo de cooperação pode existir entre o Legislativo e o Judiciário neste tipo de ação?

Faço parte do grupo de pessoas que acreditam muito na colaboração entre instituições variadas etambém entre poderes diversos, entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, ressalvadas ascompetências de cada um. Eu mesmo, que sou magistrado, faço parte, como consultor, de umacomissão parlamentar anti-máfia, uma comissão cujos membros são nomeados pelo parlamento eque se ocupa de investigações sobre fenômenos mafiosos. Chama-se Comissão Parlamentar deInvestigação sobre os Fenômenos Mafiosos e Similares, é permanente e é renovada a cada ano e acada nova legislatura. Nesta comissão, o magistrado repassa a sua experiência prática, concreta, quepode ser muito útil para modificar o instrumento normativo, a norma, a lei, tarefa que cabe aosparlamentares, pois eles podem ser os autores de leis que modifiquem algum aspecto da legislaçãoincorporando o resultado das experiências dos próprios consultores. Minha intervenção é sempre,naturalmente, como consultor, porque o poder legislativo é livre para decidir segundo as indicaçõesque os políticos consideram mais úteis naquele momento, e esta utilidade pode estar relacionada coma coisa pública, mas também pode conter uma visão muito pessoal, de caráter pessoal. Podeacontecer que um parlamentar que esteja sendo processado, estando envolvido em um processo, seinteresse, naturalmente, em modificar os instrumentos que podem condená-lo, digo isto de umaforma esquemática. Acreditando nessa relação entre as instituições, estou convencido da sujeição doPoder Judiciário ao Poder Legislativo, porque o instrumento através do qual o poder judiciáriointervém lhe é dado pelo poder legislativo.

Queremos saber o sobre o papel da imprensa, se ela ajuda ou atrapalha?

Estou muito velho para não acreditar na imprensa independente e por isso percebo os interesses queestão por trás da publicação de uma notícia. Na relação com a autoridade judicial deve-se saber disto,por isso eu tenho que dizer que, como em muitas outras atividades, a relação se torna de confiançapessoal. Portanto, eu sei que com alguns jornalistas eu tenho tranqüilidade em dizer coisas que nãoserão corrompidas e com outros não. Freqüentemente, mesmo àqueles a quem dou confiança têminteresses que passam sobre a cabeça deles. Portanto, eu nunca dei notícias que possam dificultar asinvestigações. O nosso código penal prevê uma série de atividades secretas das quais não se podedar notícia. As notícias vêm a público, por exemplo, se se trata de um processo penal, quando temosde prender alguém importante ou pessoa pública. Aí, nós usamos o critério de chamar a todos. É umarelação muito difícil e bastante conflitante, porque por trás dos jornais existem interessesfreqüentemente não declarados mas que, no decorrer dos fatos pode-se perceber.

Uma outra pergunta é sobre a participação dos parlamentares em atividades criminosas.Existe algum fundamento, alguma idéia sobre isso?

Sobre as ligações entre parlamentares e a Máfia existe exatamente uma ligação de "sociedade", detroca de favores. Existe um imenso processo em andamento na Itália, hoje, o de Andreoti, acusadode pertencer a organizações de tipo mafioso. Mas este processo está em andamento, ainda não estádefinido, está por ora suspenso. Temos um sistema de garantia que faz com que o parlamentar nãopossa ser preso, ter seu telefone grampeado... existem vários atos de investigação que não podemser aplicados aos parlamentares senão com autorização de uma junta parlamentar, o que é melhorque a maneira antiga, com a qual não havia meios de exercer tais ações. Atualmente, há esteproblema dos atos simples. Recentemente pediu-se autorização de prisão parlamentar por umaligação, de acordo com o que li nos jornais, com a Máfia siciliana, e a autorização não foi dada.Atualmente, mesmo nesse caso se fará o processo, mas não se pode fazer a prisão preventiva. Nãohá uma estatística desses comportamentos, mas eles existem. Não diria que é comum, diria que hámomentos de encontro entre alguns políticos mafiosos. Talvez mais na Sicília e na Calábria, mas nãoé comum. É um fenômeno difuso que os juízes enfrentam sistematicamente.

O senhor está de acordo com uma autoridade policial americana que disse que há um nívelideal de corrupção que depende do quanto é gasto para combatê-la?

Estou velho demais para dizer que existem comportamentos criminais que possam ser eliminados nototal. Seria utopia pensar em viver numa sociedade que não tenha nenhum tipo de conduta ilícita.Trata-se de conter o fenômeno criminal, o fenômeno da corrupção dentro de limites aceitáveis. Écerto que a corrupção tem um custo elevadíssimo. Também as investigações sobre ela têm um custo,seguramente de volume inferior ao dano que a corrupção traz. Na América, faz um ano que a"mancha de óleo" se propaga, porque a corrupção é destinada a formar uma rede de corrupção.

E o senhor considera que na Itália, hoje, esse limites se observam?

Tenho a impressão de que há uma retomada de comportamentos, envolvendo corrupção e concussão.Uma retomada devida em parte à queda de atenção da opinião pública a esses fenômenos. E somosum estranho país. A Itália é um estranho país. Digo que temos um legislador esquizofrênico, porquese comporta em desacordo com a memória e com a opinião pública. Memória que, quanto mais osanos passam, menos fica. Por isso esses comportamentos de altos e baixos, essas ondas, estãodestinados a ser sempre mais enraizados. Para dar um exemplo recente, em 1988, nós introduzimoso novo Código Penal, substituindo o velho, que previa grandes dificuldades de intervenção nocombate às organizações mafiosas. Disseram-nos que os Ministérios Públicos perderam os poderes deinvestigação que antes tinham, perderam o poder de detenção, porque antes o Ministério podiaprender preventivamente, agora tem que pedir autorização ao juiz, tanto que em 1992 aconteceramdois gravíssimos atentados a Falcone e a Porzelino, que, naturalmente, tiveram uma enormerepercussão. No caso Falcone, um trator explodiu na estrada, e, no caso Porzelino, houve ummassacre. E isso imediatamente criou uma reação na opinião pública e conseqüentemente noparlamento, que adotou uma linha de correção de alguns instrumentos sobre os quais havíamosdestacado que consentiam em atividades que antes não consentiam. Por exemplo, recuperar, na fasepública do debate, declarações feitas na fase de investigação por pessoas que depois fossemameaçadas e intimidadas e tenham mudado seu depoimento e toda uma série de modificações quenós tínhamos como juizes, solicitado, dizendo para que se observasse que, com tais instrumentos (daforma com que nos eram apresentados) não se pode combater a Máfia. E inadiávelmente fizeramessas correções. Os anos em que houve avanço foram em 1992 e 1993, porque foram aqueles que seseguiram imediatamente as mudanças, os anos que deram mais resultados no combate contra aMáfia e a corrupção. Isso durou no máximo uns 5 ou 6 anos, e hoje todos se esqueceram do queaconteceu.

Que tipo de garantias vocês têm?

Nós temos um grande diferença em relação ao sistema de vocês e temos uma ordem judicial. Osjuízes compõem essa ordem. Não são duas estruturas diferentes, separadas, mas têm funçõesdiversas. Temos apenas um concurso, que se chama "Concurso em Magistratura". Aqueles aprovadosno concurso tornam-se magistrados e compõem a magistratura. Após a sua aprovação, podemescolher serem juizes ou participarem do Ministério Público. Têm a obrigação de permanecer na sedee exercer as funções escolhidas por três anos, depois do que podem pedir para mudar de sede ou defunção. Se não há escolha, ninguém pode transferi-los nem da sede nem das funções. A Constituiçãoprevê que o magistrado é irremovível a não ser por vontade própria, e que também suas funções nãopodem sofrer mudanças, a menos que ele autorize. Depois dos últimos eventos da luta contra acorrupção, houve propostas de mudanças, e quer-se chegar à situação brasileira, um MinistérioPúblico autônomo, mas separado dos juízes. Essa modificação não tem sentido se não há o passosucessivo, do controle político do Ministério, e eu entendo que quem quer controlá-lo para poder fazê-lo, deve primeiro separá-lo dos juizes. Chegar a essa forma de controle pressupõe que se separaramos dois, mas para nós que saímos dessa situação em que há apenas um órgão policial umamodificação dessas não faz sentido se não no programa sucessivo.

Vocês podem tomar como exemplo o Brasil, que não é bom nesse aspecto.

Não é bom, mas o Ministério Público de vocês tem uma péssima relação com a polícia judiciária.

Esse aspecto é pior ainda...

Conosco acontece o contrário. O sucesso que se consegue em Lecci e na Puglia deve-se exatamente aessa forma de simbiose entre a polícia e a magistratura do Ministério Público. Essa relação poderia atéser diferente, menos estável, menos forte. Eu, desde que entrei na magistratura em 1971, há 27anos, sempre participei do Ministério Público. Tudo que aprendi veio da polícia judicial, intervindojunto com a polícia. O Ministério tem uma visão das coisas, mas, se não a transfere para a polícia,cada um age por si mesmo.

Dr. Cataldo, uma pergunta sobre o aspecto de segurança das testemunhas e dosmagistrados. Como ela funciona?

Nós, no que concerne às testemunhas e aos culpados, temos uma estrutura de proteção que dependedo Ministério do Interior, que se chama Serviço Central de Proteção e se ocupa da tutela e segurançadessa pessoa com uma série de procedimentos adequados ao nível de risco. Existe a possibilidade detransferência da pessoa e do núcleo da família para localidade desconhecida, e nos casos maissimples há vigilância da casa. Os magistrados têm um sistema de proteção semelhante, segundo onível de risco.

Gostaria de ouvir agora o que o homem, no lugar do magistrado, poderia falar sobre omedo, sobre a coragem...

Não é caso de medo e de coragem, mas de aceitação do risco, pois este trabalho eu faço porquegosto, porque espero que seja útil. No entanto, essa idéia de utilidade do próprio trabalho talvez sejapresunção: pensar que o trabalho tenha influência social. A única ambição é a que me leva a ir emfrente, passando a preocupação com a minha segurança para as mãos de outro.

Tradução de Bernardo Silveira Moreira Pinto

Revista por Leonardo Henrique de Noronha e

Paulo Roberto Magalhães

©Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 103-117, jul./dez. 1998.

Page 68: Cadernos da Escola do Legislativo nº 8 - Julho/Dezembro 1998

Ética e Política, Uma Tragédia do Mundo Ético

José Henrique Santos

Antes de iniciar propriamente o assunto, gostaria de fazer uma pequena distinção que medesobrigaria de tratar de uma questão que interessa muito aos jornalistas, mas que quero excluirexpressamente da minha palestra. Quando anuncio o tema ética e política, sempre pensam que quero criticar, verberar os costumes domundo político, como se estivesse aqui para julgar e fazer críticas à atuação deste ou daquelepolítico. Não pretendo fazer nada disso. Parece-me que a tradução, em 1972, do livro de Carl Schmittdesencadeou o uso de um adjetivo, tomado como substantivo, para se referir à política. Em vez deexplicitar o conceito de política, seu livro falava do que é o político. Como Norberto Bobbio observaem seu último livro autobiográfico sobre a velhice, talvez essa distinção possa ser útil, embora sejabem complicada e esteja longe de ser clara e unânime para todos os estudiosos das teorias doEstado, da política e do direito. Digamos que o político se refira ao desempenho e à atividade do mundo político e que a política serefira à teoria do Estado, à teoria da justiça e à organização do Estado como um todo, um lugar porexcelência do mundo político. Se essa distinção me for concedida, diria que não pretendo tratar dateoria do político, do comportamento político, das eleições, das amizades e inimizades que se fazem,das disputas, todas permitidas pelas regras eleitorais vigentes. Não quero me pronunciar sobre amoralidade ou a ética desse desempenho político. Não creio que seja de muita valia fazer a distinçãojá célebre na filosofia entre ética e direito, porque ambos têm a mesma origem e fundação. Apenasficaria aqui a criticar tal ou qual comportamento como antiético, imoral, e a mencionar outrosadmissíveis do ponto de vista moral ou ético. Creio que esse tipo de exame não nos levaria muito longe, mesmo porque precisaria ter um padrãode medida realmente universal, que me permitisse julgar os atos dos atores políticos. Ora, estamoslonge de possuir tal padrão. Muito pragmaticamente, pretendo apenas dizer que os atos políticos e ocomportamento político são aqueles que a lei permite. Se a lei não proíbe, é lícito. Se ocomportamento se enquadra nas regras do jogo que são admitidas, tudo bem, não tenho nada nomomento a comentar sobre isso. Queria deixar de lado esse mundo do político ou da política, se preferirem, no sentido do desempenhodos partidos, da representação, das lutas políticas etc., como uma questão mais pertinente aosnossos colegas da ciência política. No meu caso, trata-se da filosofia política, ou seja, vou permitir-medesenvolver algumas idéias especulativas, que estão longe de ser idéias científicas, com aquele rigorque se exige dos nossos colegas cientistas. Feita essa preliminar, que me permitirá, portanto, isolar esse assunto da filosofia política, ao qualpretendo dar um tratamento especulativo, a primeira observação é a seguinte. Existe uma célebreconversação entre Napoleão e Goethe a respeito da tragédia e da política. Napoleão observava aogrande poeta alemão que a política desempenha no mundo moderno o mesmo papel que a tragédiadesempenhava no mundo clássico, antigo, no mundo grego particularmente. Ora, Napoleão sabia doque falava. De fato, quero ver se tomo ao pé da letra essa observação de que a tragédia sai do palcoda representação e entra para o palco muito mais amplo da representação política do Estadomoderno. Mas é preciso qualificar melhor essa observação. Normalmente, quando falamos em tragédia, principalmente a grega, compreendemos que se trata datragédia do destino e da necessidade. Procuro uma leitura diferente, uma leitura libertária datragédia. Não se trata tanto da tragédia da necessidade nem da tragédia do destino, mas da tragédiada liberdade. O teatro grego, a meu ver, é o teatro da liberdade. Vou tentar, então, conciliar essaconcepção do teatro da liberdade com a tragédia no mundo ético ou no mundo político. Na Poética, Aristóteles faz uma distinção interessante entre três tipos de homem. Podemos imitar ourepresentar, como hoje diríamos, os homens tais como são. Temos aí um realismo. Descrevemos oque os homens fazem realmente. Mas podemos imitar os homens melhores do que são ou comoaquilo que devem ser. E podemos também representar ou imitar os homens piores do que devem ser,ou seja, fazer uma caricatura. A tragédia se ocuparia da representação dos homens, considerando-os melhores do que realmentesão. E a comédia representaria os homens piores do que são, com seus vícios e deficiências, quemerecem censura. É um fato notável que a tragédia diga respeito aos homens eminentes, aospríncipes, aos reis, aos heróis, porque encarnam um ideal de comportamento que vai se tornarpadrão na educação grega. Na comédia, quando Aristófanes representa os homens pelo ridículo,exerce uma censura ou crítica social, sem dúvida uma crítica ética. Quanto aos trágicos gregos,apresentam os homens melhores do que realmente são, e as grandes personagens livres conseguemimpor a sua liberdade diante de um destino extremamente cruel. Vou dar dois ou três exemplos, semme demorar muito, para esclarecer bem o que tenho em mente. Vou começar por Ésquilo. Primeiramente, a Oréstía, em que temos três peças encadeadas. A primeiraé Agamêmnon, a qual apresenta o grande chefe da esquadra e do exército grego, que faz o cerco deTróia durante dez anos e volta para casa, onde é recebido com as devidas honras pela sua mulher,Clitemnestra. Ela estende o tapete vermelho em sua honra e, quando ele vai tomar banho, ela oenvolve numa toalha e o mata a facadas. Ela já estava associada com Egisto e, com isso, vinga-se deum antigo crime perpetrado por Agamêmnon. Na verdade, quando este assumiu o comando doexército grego para a expedição de Tróia, não havia vento capaz de impelir os barcos a vela.Consultado o Oráculo, este diz que era necessário sacrificar a filha mais jovem de Agamêmnon,Ifigênia. Isso se faz mediante um engodo. Ele chama Ifigênia ao Porto de Áulis para dizer-lhe que elairia se casar com o grande herói Aquiles, mas que não estava destinada ao casamento, e sim aosacrifício. Quando Clitemnestra percebe o horror disso, jura vingança contra seu próprio marido. Dezanos depois, ao voltar da expedição vitorioso, Agamêmnon é assassinado. A segunda peça é as Coéforas, ou seja, aquelas portadoras do sacrifício, do alimento sagrado para osdefuntos. Descreve como Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra, depois de banido, volta a suacidade natal, encontra-se diante do túmulo do pai com sua irmã Electra, e ambos tramam a morte damãe em vingança do pai. As Erínias, as fúrias, os gênios vingativos dos crimes de sangue, exigemque o parricídio seja vingado. Então, Orestes penetra no palácio disfarçado, dá-se a revelar à mãe e amata. É uma cena belíssima, de muita intensidade trágica. A mãe vai fazer toda aquela súplica,dizendo do seio que o amamentou etc. Realmente, ele mata a mãe. Mais uma vez as Erínias, as divindades malfazejas, entram em cena, exigindo a vingança do sangue.E agora exigem que Orestes seja punido pelo crime de matricídio. O que observamos até aqui é o seguinte. A história já vem de muito antes. Em Homero, podemos termais informações sobre os antecedentes. Essa sucessão de crimes de sangue vinha desde o tempodos avós e bisavós das personagens. Pélops e Atreu são dois irmãos que se desavêm por causa deproblemas de poder. Um convida o outro para jantar e serve como iguaria o filho deste, cozido. Háuma certa tentação, por parte dos gregos, ao canibalismo, que é um pouco escondido, reprimido.Mas, de qualquer forma, Egisto, que é descendente de um deles, jura vingança nos descendentes dooutro. Por isso é que tenta seduzir justamente a mulher de Agamêmnon, Clitemnestra, e induzi-la amatar o marido. Desculpa: vingar o marido por ter entregue a filha, Ifigênia, para o sacrifício. O que observamos é que a justiça, aqui, é a da vingança. É uma justiça primitiva: olho por olho,dente por dente, é a lei de Talião. É a justiça, mas é uma justiça que fica prisioneira do singular. Emais, ela muda de lado. Ela estava, por exemplo, do lado de Clitemnestra, que tinha sido ofendidacom o assassinato da filha pelo próprio esposo. Quando Clitemnestra mata o esposo, a justiça mudade lado, está agora contra ela, que era a vítima e se torna a culpada. Quando Orestes mata a mãe,ele, que era a vítima por ter sido seu pai assassinado, agora vinga o pai e torna-se culpado. Portanto,isso não tem fim, é um mal infinito, é infindável o crime de vingança, o crime de sangue.

Podemos dizer duas coisas. Em primeiro lugar, a justiça não tem um equilíbrio, muda continuamentede lado, está sempre, provisoriamente, do lado do ofendido, que se torna imediatamente o ofensor,tão logo exerça a justiça. No mesmo momento em que exerce a justiça de vingança, passa a serculpado. Em segundo lugar, essa justiça é prisioneira do singular. A ação é sempre singular, éimposta pelo costume, pela própria crença religiosa, pela crença nas divindades infernais e vingativas,que são as Erínias. A justiça designa um indivíduo, no caso o filho, por exemplo, a quem incumbe devingar o pai. Então, é como se esse costume tivesse o dom de transformar as pessoas boasimediatamente em más, no seu oposto. As pessoas más nunca se tornam, aqui, boas, porque, com aconsumação do assassinato, não há mais reparação possível. A terceira peça da trilogia, Eumênides, é bem interessante. Agora as Erínias, deusas infernais, pedema punição de Orestes pelo assassinato da mãe. Dizem que isso é insuportável, inadmissível, quealguém terá que vingá-la. Mas Apolo, que é uma divindade invocada por Orestes, pretende intercederpor ele no tribunal dos deuses, e Atená, cujo nome romano é Minerva, toma interesse na causa eresolve persuadir essas Erínias, ou divindades do mal, a aceitarem julgamento pela corte de justiçado Areópago. Em vez de designarmos um indivíduo singular que vai vingar alguém e tornar-se umcriminoso, que vai carregar em si a culpa, vamos realizar um julgamento com razões e contra-razões,com motivos avaliados racionalmente por um tribunal, e vamos respeitar a decisão desse tribunal. Éexatamente isso que ocorre. As Erínias aceitam o julgamento, tornam-se plácidas e Eumênides, ouseja, de divindades más passam a ser divindades boas. Elas permitem, agora, instaurar um sistemaem que a lei é universal e que, portanto, não diz mais respeito ao domínio do singular. O singular ficasubsumido numa lei universal, eleva-se, portanto, a um nível universal. Quando isso ocorre, otribunal vai julgar Orestes e aquela sucessão de crimes. Na votação final, há um empate, e Atená, ouMinerva, dá o voto a favor de Orestes, que é tornado livre. Apenas terá que fazer a expiação, umritual religioso, mas torna-se livre. Aqui cessa a seqüência dos crimes de sangue e surge, pelaprimeira vez no teatro grego, a representação da justiça como algo impessoal e universal. Oindivíduo, que é subsumido, é elevado ao nível da universalidade. Agora, não temos mais a vingançae o crime de sangue. Em vez da vingança, temos a pena, que não é uma vingança. Podemos dizer,utilizando uma expressão de Hegel na Filosofia do Direito, que o criminoso deseja a própria punição,porque saiu desse universal da lei, através da transgressão. Ele transgrediu uma lei universal e querser reintegrado na universalidade do homem. Trata-se, para os gregos, de pensar os homensuniversais, os homens tais como devem ser e não como são realmente. Os dois primeiros casos - os homens como devem ser e os homens como são realmente - podem serobjeto da tragédia. Quando são como são realmente, são bastante maus e servem tanto para atragédia quanto para a comédia. No caso da comédia, temos uma espécie de dissolução de tudo quese poderia tomar como racional. Por exemplo, a religião politeísta grega termina dissolvendo-se nacomédia. Os deuses são postos como objeto de riso. Podemos dizer que os deuses morrem, mas nãomorrem de tanto rir, morrem pelo ridículo. Só depois disso é que o cristianismo começa a tomar acena no Mundo Antigo, depois de a comédia cumprir a tarefa de dissolver a crença de deusesbastante inverossímeis e bem pouco divinos. Voltando ao caso da tragédia, o elemento que apuramos até aqui, na minha narrativa, em primeirolugar, é o universal. A lei é universal, é a mesma para todos. Quando a lei pune, não exerce umavingança, promulga uma pena, que é a reposição do criminoso na ordem universal por ela criada.Então, aqui, temos essa idéia de instituição da justiça e retiramos a lei desse vaivém, dessa mudançade lado contínua, do que chamamos de "o mal infinito", uma vingança que não tem fim. Temos quepor fim a isso, elevando e mergulhando tudo no universal, ou seja, no homem universal, no homemtal como deve ser e não como é realmente. Ele é viciado, mau, pratica atos de insolência em relaçãoaos deuses, atos criminosos em relação aos outros homens, mas agora estamos pensando não nohomem real, mas num homem mais ideal do que real, que é aquele que deve ter tal ou qualcomportamento. A segunda tragédia a que me referi é Antígona, de Sófocles, na qual temos uma situaçãointeressante: o direito do Estado de manter-se e, portanto, exercer a sua razão de Estado. As razõesdo Estado contra a substância ética é um fato imemorial, cujas origens se perdem no tempo. Ahistória começa com dois irmãos, cidadãos de Tebas. Um deles, Polinice, retira-se de Tebas, alia-secom o inimigo e volta para usurpar o poder do irmão, Etéocles, rei de Tebas. Então, é Etéocles que sepõe à frente do exército, que vai repelir o invasor, comandado pelo seu próprio irmão, e o destinoquer que os dois se encontrem na mesma porta e que um mate o outro, na ferocidade do combate.Então, o novo rei proíbe que Polinice, o traidor, seja enterrado. Seu cadáver vai ficar insepulto, pastopara os animais selvagens e as aves de rapina, que se alimentam de cadáveres, e isso, como umaregra que o Estado impõe a todo traidor, é uma razão de Estado. Acontece que uma irmã dos dois,Antígona, segue a lei do seu coração, a lei do lar, a lei dos ancestrais, que ordena que nenhum corposeja deixado insepulto, que seja sepultado piedosamente. Ela, então, desafia a ordem do tiranoCreonte e sepulta o irmão, sabendo que seria presa e emparedada viva. É exatamente isso queocorre. A tragédia é essa necessidade cega que se abate sobre as personagens, com uma violência muitoforte. O grau de sofrimento que essa necessidade cega, que o destino impõe é muito alto para nós,homens. No entanto, um elemento para o qual gostaria de chamar a atenção não é a necessidade,mas a liberdade. É o elemento presente na consciência de Antígona, essa substância moral que lhevem dos antepassados. Ela diz: "Sei o que o destino fará comigo, o que me espera, mas desafio odestino e afirmo a minha liberdade". Aqui representamos o homem como ele deve ser, isto é, livre.Esse é o tom que desejaria enfatizar. Como terceiro exemplo, volto a Ésquilo, na sua tragédia Os Persas. Ésquilo foi combatente emSalamina, que impôs ao exército e à marinha persa uma derrota terrível. Ele, então, representa, napeça, a corte do rei Xerxes. A mãe de Xerxes, a rainha Apofa, tem pressentimentos estranhos. O reiDario está morto, ela convoca o seu espectro, mas ele não sabe de nada. Então, chega ummensageiro e diz: "O exército, a fina flor de todos os habitantes da Pérsia, dos nobres, está perdido,eles estão mortos". Ésquilo narra a história com maestria incrível, não existe nada supérfluo oupitoresco, somente o essencial. O teatro grego não representa propriamente, pois é uma narrativa. Oautor narra, com muita grandeza, o momento em que o rei Xerxes, assentado no trono, numamontanha perto de Salamina, contemplava a grande luta da esquadra persa com a esquadra grega. Oestreito de Salamina era muito raso, os gregos tinham barcos pequenos, mas com grande capacidadede manobra. Assim, causaram tal confusão que os barcos persas não conseguiram manobrar. Eles,então, puseram fogo nos barcos persas. Os guerreiros que se atiraram ao mar foram mortos abordoadas com os cabos dos remos. O rei Xerxes rasga as roupas em sinal de desespero e luta,voltando, derrotado, para a Pérsia. Então, ele narra somente isso. A pergunta que fica é por que um exército tão poderoso, tão glorioso, como o exército persa, perdepara um exército muito inferior, que foi reunido às pressas para fazer frente a ele? A explicação é ade que os gregos defendiam a pátria, os túmulos dos antepassados, as esposas e os filhos, ou seja,cada soldado grego defendia a sua própria liberdade, ao passo que os soldados persas não defendiamnenhuma liberdade, pois defendiam unicamente o seu senhor, o grande rei Xerxes. Heródoto, que era também contemporâneo, nos oferece uma teoria sobre essa luta entre a Europa ea Ásia. A Europa vence por causa do princípio da liberdade. Entre os persas, somente o rei era livre.Como todos eram escravos, ninguém lutava por si mesmo, mas por uma entidade que estava longe, orei. Os gregos, como eram livres, lutavam por seu pedaço de terra, por si mesmos e por sua família. Mais tarde, comentando esses fatos na sua História Universal, Hegel disse que entre os orientaissomente um é livre, todos os outros são escravos. No mundo grego e no mundo romano, alguns sãolivres, alguns são escravos. No mundo germânico, que se iniciou com o império de Carlos Magno -não necessariamente o mundo alemão, mas o mundo de onde surgiu a Europa moderna -, todos sãolivres enquanto homens, isto é, por essência. Como os persas desconheciam que não eram livres, nãoo eram. Como os gregos sabiam que eram livres, tornaram-se livres. Então, quero agregar esse outro elemento, o saber, à idéia de liberdade, ou seja, saber-se livre. Ora,o estado da liberdade é aquele que se sabe a si mesmo. Como? Sabe-se livre. Isso permite deixar umpouco a questão do teatro da liberdade, pois os exemplos citados são suficientes para refletirmos umpouco sobre alguns conceitos ligados a essa questão. Em primeiro lugar, a distinção entre livre-arbítrio e liberdade. O livre-arbítrio é uma condição necessária para a liberdade, mas não é suficiente.É preciso que a liberdade se dê leis. Quais leis? Leis universais, que dizem respeito a todos. Existemleis da liberdade. Montesquieu, no Espírito das Leis, diz: "A liberdade, mesmo no Estado moderno,não é a de cada um fazer o que bem entende, cada um fazer o que quer. A liberdade é cada um fazero que deve". O Estado é o lugar em que se encontram o éthos (o costume) e o cratos (a força, opoder). Qual é o costume? Nesse Estado imaginado e desenvolvido pelos gregos, o costume é aliberdade. Qual é a força? É a força de coagir, é a força que a liberdade deve ter, através do direito eda justiça, de se impor, porque ela é a expressão da própria razão. Não precisamos mencionar, ainda,os Estados democrático, republicano ou autoritário. Basta, por enquanto, falarmos sobre o Estado darazão, o Estado racional, que é o Estado ético. Por quê? É o lugar onde está a nossa soberania, ondeela está representada, assimilada, organizada, desenvolvida e capaz de se fazer prevalecer, senecessário, contra qualquer arbítrio e arbitrariedade. Uso os termos "arbítrio" e "arbitrariedade" numsentido muito próximo ao do chamado livre-arbítrio. Gostaria de citar outro exemplo, usando ainda atragédia Os Persas, de Ésquilo. O rei Xerxes fez dois tipos de ataque ao mundo grego, à Ática. Oexército foi por terra, e a marinha, por mar. Como não podia navegar em alto-mar, a esquadra foicosteando. Assim, foi um ataque paralelo: o exército em terra e a esquadra perto da terra, pois nuncaenfrentavam o alto-mar. Quando o exército chegou ao Helesponto, foi necessário construir uma ponteprovisória de madeira, a fim de que os soldados pudessem atravessar com seus cavalos. No entanto,uma tempestade destruiu a ponte e boa parte do exército morreu afogada. O rei Xerxes ficou furiosoe mandou açoitar o mar, como castigo, pois o mar ousou desobedecer ao seu desejo, à sua ordem.Isso é arbitrariedade. O déspota tem o arbítrio, mas não tem a liberdade. Poderíamos fazer essadistinção. Ao se pensar na liberdade como um poder de mandar, é preciso acrescentar a legitimidadede poder mandar, para que haja legitimidade em obedecer. Liberdade inclui mandar e obedecer. Ora,o déspota é arbitrário, não se fundamenta em nenhuma lei da liberdade, em nenhuma lei universal,mas na sua vontade caprichosa, que muda a cada momento, de acordo com a simpatia ou antipatiada pessoa em questão.

Heródoto, grande ideólogo da liberdade grega, conta que, quando Xerxes decidiu convocar todos paraa guerra, um nobre, seu comensal, pediu-lhe que seu filho mais novo ficasse para cuidar dele em suavelhice. O rei, então, convidou-o para almoçar. No dia do almoço, o nobre, muito satisfeito, observouque somente ele comia, pois o rei não se alimentava. Então, terminado o banquete, o rei destampouo caldeirão e dele retirou a cabeça do filho mais novo do nobre, dizendo-lhe: "Você sabe, agora, qualfoi o animal que acabou de comer. A comida foi boa?" O nobre, seguindo a etiqueta da corte,respondeu apenas: "O que agrada ao meu rei agrada também a mim." Heródoto conta esse fatomostrando exatamente o que é o arbítrio, o que é o mando de um só, que tem o arbítrio, mas nãotem a liberdade. Aqui é o domínio do singular, do capricho. Ele não gostou que o outro tivesse pedidoque o filho fosse poupado da guerra. Voltamos, agora, à idéia de universalidade. Portanto, faço a distinção entre arbítrio e liberdade.Arbítrio é uma condição necessária, mas não é suficiente para a liberdade. É preciso organizar oarbítrio. Como disse Montesquieu, é preciso querer o que devo querer, não o que me passa pelacabeça, pois isso é capricho. Essa universalidade, que venho descrevendo com tais exemplos, échamada de universalidade nomotética. É uma universalidade da lei. No mundo grego, nem todoseram cidadãos. Em primeiro lugar, somente os homens, pois as mulheres constituíam uma civilizaçãonoturna. Os negócios do Estado ocorriam na praça pública, nas assembléias diurnas. As mulherespresidiam o lar, cuidavam das divindades domésticas, noturnas. Geralmente, havia essacontraposição entre o aspecto noturno e o diurno. Os escravos também eram excluídos. Portanto, onúmero de cidadãos era restrito. Não obstante, os pensadores, filósofos, políticos e trágicos gregosforam capazes de colocar um ideal de justiça, de lei e de Estado. Um Estado como o lugar próprio doéthos, do comportamento. Qual comportamento? Não o comportamento real dos homens, mas aqueletal como deve ser. Alio a essa explicação a opinião de Montesquieu, isto é, a liberdade é ocomportamento do homem tal como deve se comportar, não como ele quer se comportar. Isto é umdesejo, mas devo contrariá-lo e, freqüentemente, fazer coisas que não desejo. Isto é liberdade.Satisfazer o desejo não é liberdade. Pelo contrário, freqüentemente, liberdade é contrapor-se aodesejo. Essa universalidade é nomotética, porque põe imediatamente uma lei, a lei do grupo, datradição. É uma substância ética que existe antes do nascimento das pessoas. No mundo grego, aspessoas eram educadas de acordo com tal lei, tanto que um pai pergunta a um filósofo pitagórico oque deve fazer para educar bem o seu filho. O filósofo responde que basta fazê-lo cidadão de umEstado que tenha boas leis. O Estado é o lugar próprio da liberdade, mas a liberdade é aquela que sebaseia na lei, na justiça, no universal, no dever, e não na vontade desregulada, desligada do dever e,menos ainda, no desejo ocasional e aleatório. Então, essa universalidade é nomotética. A isso damoso nome de totalidade grega, porque o indivíduo, por ser cidadão, é universal, encontra no Estado asua própria essência exposta diante dele, desenvolvida e organizada. Agora, não existem mais crimesde sangue, existe o tribunal, a lei. O Estado moderno coloca essa universalidade nomotética em crise.Ele começa com o individualismo, a subjetividade, coisa que os gregos não conheciam. Não há, emgrego, palavra para significar o que expressamos com "consciência subjetiva", com "sujeito". Em segundo lugar, os indivíduos vivem, agora, em grandes espaços. A cidade grega, com dez milhabitantes, era uma megalópole, onde todos se conheciam e não havia representação política. Erauma representação direta - cada qual representa a si mesmo. Nesse caso, não elejo meusrepresentantes; não há representantes do povo. Depois, no mundo romano, é que começam osagitadores demagogos, com seus comícios, e sua clientela, a falar em nome dos outros. Mas, emprincípio, na cidade grega - cidade pequena -, só o cidadão representa a si mesmo; o cidadão épolítico. Em princípio, todos podiam, ao menos por uma dia, chegar à Suprema Magistratura, porsorteio, por exemplo. Não há incoerência em termos aqui o sorteio e não o voto, pois, por definição,todos são iguais, universais, todos são expressão visível da lei e do dever. Então, há aqui uma uniãoimediata com esse ideal do Estado. Pergunto mais uma vez: qual é esse ideal? Heródoto járespondeu, há muito tempo: é o ideal da liberdade. Mas, insisto, da liberdade organizada, daliberdade viva nas instituições, prevalecendo sobre qualquer recalcitrante, qualquer criminoso quedesafie a lei do grupo, a lei das tribos, dos demos, das cidades. No Estado moderno, começam a existir as grandes extensões. Às vezes, temos indivíduos quepertencem ao mesmo Estado, mas que falam línguas diferentes e têm culturas diferentes. Auniversalidade desse Estado não é mais nomotética, não se põe a si mesma. Não é mais claro, àprimeira vista, que o Estado é o lugar da liberdade. Essa liberdade não é mais dada; terá de serconstruída por meio de um pacto. É uma universalidade hipotética: passamos pela hipótese do pacto.Em Hobbes, por exemplo, fazemos um pacto para nos assegurarmos contra a violência. Como nãosomos anjos, mas espíritos que possuem corpos (e o corpo está aí no exterior, no espaço e no tempo,ao alcance da violência alheia), é preciso garantir o direito do corpo e o da propriedade - que é umprolongamento desse corpo, dessa existência - contra a cobiça, o assalto, a violência alheia. Então,fazemos um pacto e transmitimos a um terceiro - o Príncipe - o monopólio da violência; com isso, elevai exercer o poder em nosso nome, recebendo de nós essa transferência. Esse pacto nos garanteuma convivência razoavelmente pacífica. Vejam bem: o pacto aparece em Hobbes como aquilo quedeve por fim à violência, ao estado de natureza. Em segundo lugar, essa universalidade é hipotética: só se alcança se o Estado se organizar de talmodo que haja uma garantia por parte desse terceiro vindo de fora - o Príncipe - de que os cidadãosque lhe delegaram, pelo pacto, o poder do uso e do monopólio da força serão tratados igualmente. Em Maquiavel, quase cem anos antes, já tínhamos essa separação, também terrível, entre a ética e apolítica. No mundo grego, no mundo clássico, a ética e a política fazem um. O ethos é ocomportamento, o costume. Pois bem, esse ethos se organiza politicamente na forma da liberdade,da universalidade livre. Essa é a universalidade nomotética, do nomos, da lei. Aqui, não precisamosperguntar quem manda. Podemos afirmar com segurança: a lei. Com a universalidade hipotética,começamos a precisar perguntar quem manda. É o Príncipe. E esse Príncipe recebe o poder de quem?Qual é sua legitimidade? Essa legitimidade vem de um pacto presumido - nunca acontecido, maspresumido - que vai garantir o meu direito à existência, à propriedade etc. Em Locke, por exemplo,temos essa idéia de um pacto que deva garantir a propriedade. Então, a universalidade se constitui sea propriedade de todos estiver garantida. Vejam bem: a universalidade hipotética é semprecondicional: se esse sistema funcionar e o Príncipe garantir as liberdades e, mais do que isso, garantiras propriedades, então, estabelecemos uma universalidade. Quase cem anos antes do Leviatã, que éde 1615 - O Príncipe é de 1513 -, Maquiavel já havia dissociado a ética da política, havia mostradoque podemos encerrar a ética na subjetividade de cada um, que é um homem ético, que sabe o quedeve e o que não deve fazer. O que vamos exigir do Príncipe é que tenha a virtude da força - virtude,aqui, no sentido de força -, que seja obedecido. Então, em O Príncipe, ele vai mostrar como seadquire e como se mantém o poder do Estado na mão de um príncipe, descrevendo o mecanismodesse poder sem quaisquer considerações a respeito da sua finalidade. Quer dizer, o poder é aquiloque vai permitir, de acordo com o pacto, tal ou qual coisa: por exemplo, vai possibilitar a convivência,permitir que resistamos ao inimigo, por meio do exército, que tenhamos a propriedade etc. Então, aqui há uma dissociação entre ética e política. Quando a universalidade nomotética desaparecee é posta em seu lugar uma universalidade hipotética, já não há nenhuma utopia de liberdade pelaqual morrer, pela qual cumprir o dever. Leônidas, por exemplo, vai defender o desfiladeiro das Termópilas contra o exército persa, que eramuito superior. Assim ele o faz, mas todos morrem. Então, os gregos escrevem, em uma placa, maisou menos o seguinte: estrangeiro, ide dizer às outras pessoas que aqui morreram Leônidas e outrostantos companheiros, na defesa de sua terra, de sua pátria. Aqui há, portanto, a idéia de dever, damorte pelo dever. E essa morte recebe um prêmio: é lembrada na consciência dos concidadãos epassa a pertencer à memória dos mitos que serão narrados daí em diante. Então, tem um sentido, oqual faz parte da vida humana. Com a universalidade hipotética, já não há nenhuma utopia, nenhum padrão pelo qual algum de nósdeva morrer. Já não há mais o heroísmo necessário, porque a universalidade hipotética visa a um fim.Ela é instrumental: os homens são instrumentos práticos para a realização de determinados fins, enão há razão em morrer por esses fins, que não são os fins da dignidade e da liberdade humanas. Então, surge aqui um problema que é da teoria política moderna, não das teorias políticas gregas:como podemos unir indivíduos isolados, cada qual vivendo em sua subjetividade, em seu egoísmo,com seu "eu" particular, e deles fazer um povo, um Estado? Pelo pacto. Como todos têm medo,vamos delegar o poder e o monopólio da violência a um terceiro, ao Príncipe. Há um escrito de Freud, se não me engano de 1923, chamado Psicologia de Massas e Análise do Eu,que é um livro de Metapsicologia, onde ele aborda um problema muito interessante, que ilustra bemesse contexto. Ele se pergunta como podemos transformar uma multidão amorfa em uma coisaorganizada, e, para explicar, toma os exemplos do exército e da igreja. Qual é a finalidade doexército? É ser eficiente e matar o inimigo. Então, vamos fazer com que os soldados possam dizer"nós", nosso batalhão. Aqui o "eu" é um "nós" mediante o pacto que todos fazem entre si de que vãoatacar e matar o inimigo e se defender em conjunto. Então, essa universalidade do "nós" não énomotética; é uma hipótese, para que o exército funcione bem. Ainda no caso do exército, temos omarechal, ou o general, que funciona como um grande pai. O exército tem uma hierarquia, pela qualflui o seu poder. Cada um recebe, digamos assim, a imagem de si mesmo posta nessa hierarquia: apessoa se reconhece como soldado, como sargento ou como capitão; se reconhece em tal tarefa,própria do soldado, ou em tal outra, própria do infante ou do cavalariano. De qualquer forma, asfunções dos "eus" que constituem esse conjunto artificial - o "nós" de um batalhão - são postastambém artificialmente. A mesma coisa ocorre na igreja, diz Freud, tomando o exemplo da Igreja Católica, na qual os fiéis sereúnem na fé em Cristo. Temos, então, os católicos e os pagãos, os fiéis e os infiéis, nós e os outros.E nos tornamos fortes na medida em que combatemos os outros, os irreligiosos, os ateus, os de outrolugar, que não compartilham das mesmas verdades. Não vou nem evocar Voltaire, que brincava comisso, dizendo que os homens são tão estúpidos que se matam porque uns acham que devem adorar adivindade voltados para Meca, e outros acham que devem adorar a mesma divindade voltados paraRoma. Mas não é bem assim. O que ocorre aqui é que o poder de dizer "nós" se dá mediante umtermo médio, que é a crença comum; é a eficácia da Igreja, que só se define como um grupo para osque são de dentro quando se afirma como grupo contra os que são de fora. Quem não está comigoestá contra mim e, portanto, é inimigo. Matemo-lo. E, para matar o inimigo, vale tudo: podemosqueimá-lo na fogueira ou fazer todas as atrocidades imagináveis. Lembraria aqui o processo deGiordano Bruno, que é muito interessante. Esse frade dominicano era mesmo muito atrevido e, porvolta de 1600, passou a defender a pluralidade dos mundos, o que criava um sério problema: seráque, nesses outros mundos, terá havido a necessidade da redenção, da Paixão, da morte na cruz etc?

Eram questões muitas chatas e difíceis de ser respondidas. Então, a Santa Inquisição conseguiucolocar as mãos nele, que foi chamado a abjurar. Recusou-se, e a Santa Inquisição promulgou umbelo decreto: vai ser morto sem derramamento de sangue e com o menor sofrimento possível. Foicolocado na fogueira, sem derramamento de sangue, e o sofrimento de ser queimado vivo,obviamente, é muito menor do que o provocado pelas chamas do inferno. Mas temos aquiexatamente a idéia de intolerância ligada a este grupo artificial - no sentido de que não é um grupoque se reúna naturalmente. Depois que a Igreja se organiza como instituição, ele passa a ser definidopor meio de dogmas, de uma hierarquia, e mediante o fato de se colocar a favor de si mesmo, e, aomesmo tempo, estar a favor dos de dentro e contra os de fora. Claro que isso talvez valha para um período da Igreja, mas não necessariamente para todos osperíodos.

A idéia aqui, típica dos sistemas políticos modernos, é a seguinte: como é que os "eus" dispersos, osindivíduos dispersos formam ou podem formar um Estado? Que Estado é resultante dessa formação,que não é mais aquela que vem da tradição mais antiga, da religião tradicional dos antepassados,mas que é posta por um pacto político? Entre 1801 e 1803, Hegel escreveu um livro sobre aconstituição da Alemanha, no qual diz, claramente, o seguinte: para o Estado moderno, basta teruma administração centralizada que inclua a justiça, o exército. E pronto. Temos aí a possibilidade dese formar um Estado visivelmente artificial. Ora, ninguém se encontra a si mesmo, na sua soberania,nesse Estado artificial. É preciso que um longo processo de educação política faça com que mereconheça como igual, como pertencente a este "nós" que pronunciamos no nosso Estado. E é um"nós" muito diferente - assim como havia diferença quando os gregos diziam nós, homens, ou nós,mulheres. Aqui, também para nós, vai haver a diferença de classe, de testamentos, de regimentos,de situações as mais diversas, subdivisões infinitas. Pois bem, apesar disso, ainda assim, o Estado moderno possuía a sua soberania. Essa soberaniaclássica do Estado vai dizer, mais uma vez, embora de maneira artificial, que o comportamento, ocostume e a força estão juntos. O poder do Estado é o poder, a força de organizar indivíduosdispersos, formando um "nós", uma unidade. Essa unidade é diversificada, existem muitos sistemasde hierarquias dentro dela, mas os indivíduos podem fluir dentro dessa totalidade com o Estado,porque, por suposto, podem crer que o Estado represente a sua soberania. É a idéia de Rousseau arespeito da soberania e da vontade geral. A vontade geral não é a vontade de cada um, como se eusaísse consultando: o que você quer? e você? Simplesmente, a vontade geral é a vontade decoexistência, de racionalidade, de liberdade, de tratamento, ao menos em princípio, igual e assim pordiante. A questão que gostaria de formular muito mais como um problema do que como algo que queiradesenvolver longamente é a seguinte: chegamos a um ponto em que tínhamos, até por volta de1800, a economia política. Ou seja, a economia fazia parte do universo político, dizia respeito àriqueza da sociedade civil, de acordo com a visão que Hegel nos apresenta na Filosofia do Direito, e oEstado ficava com o poder. O poder do Estado é o lugar ético, o ponto de nascimento, de confluênciado costume com a justiça e com o direito da força. A força submetida à lei, à justiça. No nosso século, a economia se torna political economy e de economy se torna economics - ciênciaeconômica. E essa ciência econômica não está mais subsumida, não é mais um adjetivo ligado aEstado. Não é mais uma economia do Estado. Ela é desligada. Assim como desligamos a ética daaquisição e manutenção do poder, como Maquiavel, agora damos um passo adiante e desligamos aeconomia do poder do Estado. E a economia passa a vigorar como uma espécie de natureza que temsuas próprias leis e que se impõe à vontade de cada um de nós. A economia não temsentimentalismos, não é boa, nem má, não deseja o bem nem o mal a ninguém. A economia é,simplesmente, uma ordem de circulação de riquezas, de produção de bens de consumo. Não diz nadaa respeito dos indivíduos. Então, poderíamos dizer que nesse Estado moderno perdemos de vista o que ainda restava da nossasoberania. Não é por acaso que, até 1821, data da publicação da Filosofia do Direito, de Hegel,tínhamos um conceito forte de soberania, explicitado no final de seu livro. Como os Estados sãosoberanos, as disputas entre eles são resolvidas pela guerra. As disputas entre os cidadãos dentro deum Estado são resolvidas pela Justiça, porque o Estado é soberano e tem poder para resolver essasdisputas. Entre os Estados, porém, não havia esse poder e, portanto, a guerra parecia uma espéciede tribunal da história. Pois bem, no desenvolvimento da economia moderna, mais recentemente, da economia daglobalização do Estado liberal, o que acontece? A economia torna-se mundial. Aquele tribunal dahistória representado pela guerra, a capacidade de julgar os Estados que deviam sobreviver, dedeterminar os que deviam mandar e os que não deviam, tudo isso agora é dissolvido. Clausewitz, ogrande teórico da guerra, havia dito que esta é a continuação da política por outros meios. Umcomentário de um cientista político americano, Anatol Rapoport, diz que talvez ele fosse mais justo sedissesse que a política é a continuação da guerra por outros meios. E nós, então, talvez inspiradosnisso, podemos dizer que a economia é a continuação da guerra por outros meios, ou seja, aquilo queresolvíamos com a beligerância, por exemplo, a polarização entre os Estados Unidos e a UniãoSoviética, cessou, pulverizou-se em centenas de guerras localizadas e parciais, terrivelmente cruéis,que não conhecem nenhuma regra. É a fúria da destruição desencadeada. Mas o que importarealmente nesses Estados adiantados, que conseguiram se organizar para uma vida moderna, com osbens e as comodidades da vida moderna, é que eles já não precisam recorrer à guerra, mas à bolsade valores, que agora é um juiz que não deixa nenhuma dúvida. O veredito é realmente definitivo:"Faça isso e eu não venho comprar suas coisas, aumente os juros para 50% e eu levo o meu dinheiropara outro lugar". Então, nesse caso em que a economia política se tornou ciência econômica - "economics"-, e a políticase tornou o político, voltamos àquele Estado em que o sujeito, os indivíduos, os múltiplos "eus" nãose reconhecem nesse "nós", que é esse Estado que não tem uma face, a face da soberania. Talveztenhamos uma soberania fraca, quase que puramente protocolar. Os presidentes de Estado nãodecidem mais, não mandam mais. Apenas representam o Estado para receber e visitar outros Estadose fazer reuniões de cúpula que também nada resolvem. Resolvem exatamente as pessoas sérias daeconomia, que trabalham com a seriedade da economia. Os outros são relações públicas. Então, esseEstado perdeu a substância ética. Por quê? Porque não é mais o Estado da liberdade. Não mereconheço mais na soberania do Estado. Não há mais soberania do Estado. Atentemos, pelo menos,para isso. O Estado brasileiro há muito tempo não fazia valer e até agora não faz valer, por exemplo,a sua soberania nas favelas e nos morros das grandes cidades. Lá vigora uma lei própria dostraficantes, dos que se armam e têm as metralhadoras nas mãos. Então, estabelecem o toque derecolher, estabelecem que deve haver honestidade com o usuário de drogas - porque senão eledesaparece -, que não se deve hostilizar nem assaltar ninguém. Então, estabelecem leis próprias nolugar da soberania do Estado, que deixou de existir. Nas bolsas de valores, a soberania deixou de existir. Existe o interesse, o lucro. Aquele absoluto naterra, que é o Estado, segundo Hegel, que era o absoluto ético, onde nos reconhecíamos livres,perdeu essa soberania. Com isso não nos encontramos mais; nos encontramos como mercadorias,trocando, vendendo e comprando. Só isso. Então, somos parte de uma razão instrumental. Somosinstrumentos de troca, de compra e venda, de consumo. Queria chamar a atenção para esseproblema e para a necessidade de propor uma revisão do conceito de soberania. Por exemplo, noDicionário de Política, dirigido por Norberto Bobbio, o verbete soberania é bem melancólico.Realmente, é difícil manter a idéia de soberania diante das multinacionais, das quedas de barreiras,de fronteiras etc. A minha pergunta, então, é a seguinte: realmente, caminhamos para um Estado mínimo, um Estadoque não seja empreendedor, que deixe o empreendimento comercial, industrial etc. para a sociedadecivil? Mas esse Estado mínimo tem necessariamente que ser um Estado fraco, incapaz de definir oque quer, o que exige, o que admite, ou não, da parte dos outros? Da parte do capital volátil, porexemplo? Será que o Estado mínimo é aquele que entrega a sua soberania e a põe a venda e deixaque seja objeto do arbítrio alheio? E aqui já não é mais a liberdade alheia. É o arbítrio. É o querercomprar e o querer vender. É o querer aplicar ganhando 50% de juros, porque o risco é muito alto.Somos jogadores, temos os nossos caprichos. Do contrário, retiramos o dinheiro. Sim, aceno nesse final de preleção para a perda da nossa dimensão utópica. Não temos nenhumautopia mais para oferecer. Não há nenhuma razão de morrer pela pátria. Não há nenhuma razão deheroísmo. O Estado clássico, dizia Hegel, tem o direito de exigir de seus filhos a morte. Por exemplo,na guerra, para a defesa de seu território. Mas o Estado comercial aberto, o contrário do Estadocomercial fechado, sobre o qual escreveu Fichte. O Estado comercial aberto, o Estado mínimo, que éfraco, perdeu justamente essa capacidade de representar a nossa soberania. Já não temos nada aoferecer à população, algo pelo qual ela deva se sacrificar. Aí é que entram essas igrejas alternativas,que perceberam que podemos vender paraísos artificiais. Baudelaire já havia mostrado isso por meiodo que ele chamava de "comer ópio". Em sua época, usava-se esse entorpecente para criar sonhos eparaísos artificiais. Também passamos por essa fase, mas ela já se encerrou. Criamos paraísosartificiais e individuais para os quais fugimos. A nossa arte, em grande parte, é uma arte da fuga, nãono sentido clássico da palavra, mas no de entretenimento. É a música do elevador, a novela detelevisão, que nos tiram da realidade na qual somos meio e nos colocam numa realidade artificialonde podemos sonhar um pouco e exercitar o nosso desejo. Nessas religiões alternativas, medianteum dízimo modesto de dez ou vinte reais, conforme o que cada um ganha, podemos comprar oparaíso aqui. Estamos certos de que, comprando o paraíso, vamos ser beneficiados pela graça divina.De fato, muitos são, porque deixam de lado certos vícios e passam a trabalhar, se é que encontramtrabalho. De qualquer forma, são paraísos artificiais de natureza religiosa, mística, são as crençasorientais, o tarô, enfim, tudo que estabelece uma espécie de maravilhoso, dura um certo tempo esatisfaz essa perda da utopia. Enfim, perdemos nossa soberania, perdemos também a utopia, o idealpelo qual podíamos viver, e ainda não conseguimos colocar nada no lugar. Proporia uma reflexão detodos nós a respeito dessa questão, que me parece muito importante. Apenas indicaria que o Estadomínimo poderia ser maximamente eficiente, poderoso e forte. Depende apenas das nossas opçõespolíticas. Era o que tinha a dizer. Muito obrigado.

© Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 9-39, jul./dez. 1998.

Page 69: Cadernos da Escola do Legislativo nº 8 - Julho/Dezembro 1998

DocumentaRegimento Interno da Assembléia Legislativa Provincial

INTRODUÇÃO

Luiz Fernandes de Assis

O Regimento Interno da Assembléia Legislativa Provincial de 1835, consubstanciado na Resolução nº 15,contém 282 artigos e foi assinado por Antônio Paulino Limpo de Abreu, então Vice-Presidente da Provínciade Minas Gerais¹. Tratava-se das primeiras regras de convivência que receberiam os parlamentaresmineiros em sua Legislatura de estréia. Durante todo o século XIX, este Regimento foi objeto de váriasemendas, que o adaptaram às circunstâncias históricas. Selecionamos aqui os artigos mais significativos,que nos permitem conhecer melhor o arcabouço jurídico que fundou a instituição do Poder Legislativo emMinas Gerais.

Sabemos que um contexto histórico nunca é apreendido em seu todo, e o máximo que os historiadorespodem fazer é buscar dar sentido a alguns gestos e palavras deixados em documentos públicos. Quandoconseguimos compilar, classificar e divulgar alguns vestígios esquecidos em arquivos, como faremos agoracom o Regimento Interno da Assembléia Legislativa Provincial mineira, não estamos imaginando queaqueles atores políticos sabiam de antemão que suas idéias pudessem resistir ao tempo. Os deputadosprovinciais não tinham noção de serem eles próprios agentes históricos, com pretensões à imortalidade.Debatiam ferozmente pelos interesses de seus pares, daquele momento, e sabiam razoavelmente o ofícioparlamentar. Como bem escreveu Henry Rousso1, "o documento escrito (carta, circular, auto, etc.)proveniente de um fundo de arquivo foi por sua vez produzido, por instituições ou indivíduos singulares,tendo em vista não uma utilização ulterior, e sim, na maioria das vezes, um objetivo imediato, espontâneoou não, sem a consciência da historicidade, do caráter de `fonte' que poderia vir a assumir mais tarde".

A fundação de uma Assembléia, onde a elite agrária pudesse debater os rumos dos negócios da Província,era uma idéia nova, em 1834, mesmo para os Liberais. Para organizar os debates e dar eficácia ao processolegislativo urgia, inicialmente, a definição de um Regimento Interno. Os fazendeiros, comerciantes,burocratas e padres que foram escolhidos por seus pares como seus representantes no Parlamento mineirotinham em suas propriedades, herdadas e preservadas desde a colônia, o mando absoluto e o direito degovernar como uns déspotas2 . Ali, naquele espaço, mandavam eles. O braço do Estado que chegavaatravés da burocracia parava nas vilas e cidades, sem cruzar as fronteiras de suas fazendas. Por issomesmo, ao aceitarem participar da vida pública no recinto do Parlamento, sabiam que teriam de abrir mãodo espaço de mandatário para conviver com o dissenso político. E o dissenso era estabelecido inicialmentepelos próprios limites da liberdade que queriam: a liberdade dos modernos de não participar dos negóciospúblicos3. Depois, o dissenso em torno dos limites do Poder Central nos assuntos da Província. Uns,querendo a descentralização, que aproximava os desejos inconfessos dos limites de sua propriedade.Outros, querendo a força do governo central, que civilizaria e definiria os novos rumos daquela monarquiaacéfala. Aos conservadores cumpria instituir um governo forte, centralizado na Corte, que definisse regrasclaras e comuns a todas as instâncias de poder e em todo o território nacional. E, aqui, o momento históricoera particularmente importante para a constituição, naquele momento, de um espaço de reunião da elitearistocrática. Esta elite, formada por fazendeiros, comerciantes, financistas, religiosos, juizes e burocratas,sabia que a abdicação de D. Pedro I, em 1831, tinha deixado um vácuo e uma criança de cinco anos, e queos "bárbaros" e "selvagens", identificados com os homens livres pobres, tentavam obter sua parcela depoder. Excluídos os escravos, as mulheres, os analfabetos e os sem-renda, restava uma minoria que, pelaprimeira vez, reunia-se para definir as regras de uma convivência civilizada. O palco político era agora oParlamento. As regras no trato com o outro era o Regimento.

Não pretendemos examinar artigo por artigo do Regimento nesta breve introdução, pois o documentomerece uma exegese acurada. Apontamos apenas alguns pontos.

Desde a primeira norma, a que diz: "No dia da Instalação da Assembléia os Deputados concorrerão antes aIgreja, que tiver sido designada pelo Presidente da Província, (do que se fará a competente participação aAssembléia) e a hora marcada na sessão precedente para assistirem a Missa do Espírito Santo, e prestaremjuramento nas mãos do Bispo Diocesano, ou nas da Autoridade Eclesiástica mais graduada do lugar, aquem na falta do Bispo Diocesano(...) compete celebrar"4, (sic) chama-nos a atenção que estávamos, aindaque sem um monarca, num regime monárquico, sob o governo de regentes, onde a Igreja católica era parteconstitutiva do Estado. O padroado, ou seja, o direito de administrar os assuntos religiosos dado aosmonarcas portugueses, vinha desde 1456 (com o Infante D. Henrique) passando por todos os ascendentesdo Infante D. Pedro II. A independência do Brasil não rompera essa tradição e toda a folha de pagamentodos funcionários encarregados dos ofícios religiosos, a saber, os padres, clérigos, párocos e bispos, eracusteada pelos cofres reais.

O rei, ao administrar o sagrado, reafirmava sua intenção de ocupar o corpus mysticum5, instituir o governocentralizado, forte, onde seus súditos soubessem que em todo rito deveriam reverenciar a Cristo e ao rei.Ser fiel a um e outro. Jurar aos evangelhos pela mão do bispo era um ato de obediência para o ingresso nomundo da política. Assim, a posse do presidente da Província (art. 36 ao art. 43) ganha sentido, quando afórmula do juramento diz o seguinte: "Juro bem servir o Emprego de Presidente ou Vice-Presidente destaProvíncia de Minas Gerais, desempenhando religiosamente todas as obrigações a meu cargo; Assim Deusme ajude". Seria banalizar o assunto se quiséssemos estabelecer pontos de comparação com o Executivo eo Corpo Parlamentar de hoje, mas sabemos que, informalmente, ainda prevalece, oficiosamente, arealização de missa após a posse civil e a abertura dos trabalhos, "sob a proteção de Deus".

Logo a seguir, o Regimento apontava a composição da Mesa "de um Presidente, e dois Secretários, os quaisservirão por toda a Sessão Ordinária, ou Extraordinária, e nas prorrogações, havendo-as, até a Instalaçãoda Sessão Ordinária do ano futuro, e nova eleição dos Membros que devem compô-la". Ao presidente eravedado o exercício em qualquer comissão, exceto na de Polícia, da qual sempre seria membro nato (porquê? A Comissão de Polícia era a mais importante?).

Apenas como uma curiosidade, pelo Regimento ficamos sabendo que os trabalhos da Assembléia LegislativaProvincial começavam às onze horas da manhã e duravam até às três da tarde. Achando-se presentes 19deputados dos 36 eleitos, o presidente abria a sessão com as palavras: "Abre-se a Sessão". Não havendonúmero suficiente de deputados para abrir-se a sessão depois de feita a chamada, o presidente, ossecretários e deputados se conservavam nos seus lugares; e se até ao meio-dia não concorressem maisdeputados para preencher o número mínimo de 19, o presidente declarava: Hoje não há Sessão. Ganhaimportância a presença parlamentar quando lemos no art. art.234: "Nenhum Deputado presente poderáescusar-se de votar, salvo quando não tiver assistido a discussão".

É interessante observar o princípio restrito dado à publicidade dos atos da Assembléia. Ao contrário do queinstituía um parlamento republicano, as atas das sessões "poderão ser publicadas pela Imprensa, havendoquem as peça para este fim" (art. 97). A mesma restrição transparecia quanto aos projetos de lei, quando,feita a leitura do projeto pelo secretário, o presidente consultava a Assembléia se ele era, ou não, objeto dedeliberação; "e os Deputados resolverão sem preceder discussão, se deve ou não ser impresso, ou copiado,para entrar na ordem dos trabalhos".

O Título 13 do Regimento Interno tratava dos pareceres de comissões (art.132 a art.138), e nele rezava

que, "quando os Pareceres forem tão extensos, que pela leitura não fique a Assembléia inteirada damatéria, poder-se-á a requerimento de algum Deputado aprovado por dois terços dos votos mandarimprimi-lo para entrar em discusão".

Claro que sabemos das condições precárias, técnica e financeiramente, para a impressão dos documentos,mas o sentido de atenção para a publicidade dos atos ainda não transparecia.

O cuidado com o acervo da Assembléia Legislativa Provincial deve ser maior pelas diferenças dosdocumentos republicanos. Como vimos, no período monárquico não havia a obrigação expressa em lei de sepublicar todos os atos do governo, nem mesmo a figura de um diário oficial, facultando à cada Legislatura aescolha da imprensa que veicularia apenas alguns poucos debates e atos oficiais. Tudo sem muito critériorígido de veiculação, antes,

de acordo com a vontade política dos dirigentes do Parlamento.

REGIMENTO INTERNO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DE MINAS GERAIS, 1835

Resolução nº 15 - pg. 39 - 282 artigos

Antônio Paulino Limpo de Abreu, Vice-Presidente da Província de Minas Gerais: Faço saber a todos os seushabitantes que a Assembléia Legislativa Provincial decretou a Resolução seguinte.

REGIMENTO INTERNO da Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais.

A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DE MINAS GERAIS RESOLVE:

Título 1 - Das Sessões Preparatórias

Art. 20 - No dia da Instalação da Assembléia os Deputados concorrerão antes a Igreja, que tiver sidodesignada pelo Presidente da Província, (do que se fará a competente participação a Assembléia) e a horamarcada na sessão precedente para assistirem à Missa do Espírito Santo, e prestarem juramento nas mãosdo Bispo Diocesano, ou nas da Autoridade Eclesiástica mais graduada do lugar, a quem na falta do BispoDiocesano compete celebrar.

Título 2 - Da Instalação e Encerramento da Assembléia

Art. 24 - No dia da Instalação da Assembléia, reunidos os Deputados logo depois da Missa do EspíritoSanto, na Sala das Sessões, o Presidente depois de feita a chamada, e havendo número legal, nomearáuma deputação de seis Membros para receber o Presidente da Província na Sala imediata a das Sessões, eacompanhá-lo até o mesmo lugar na sua saída.

Título 3 - Da Admissão dos Deputados

Art.32 - Logo que sobre a Mesa for depositado o Diploma de algum Deputado, o Presidente interrompendo adiscussão de qualquer matéria, de que se estiver tratando, anunciará que se acha sobre a Mesa o Diplomado Sr. F....; e convidará a Comissão de Poderes para que se retire, e o examine com brevidade.

Título 4 - Do Juramento e Posse ao Presidente da Província

Art. 40 - A fórmula do Juramento será a seguinte - Juro bem servir o Emprego de Presidente ou Vice-Presidente desta Província de Minas Gerais, desempenhando religiosamente todas as obrigações a meucargo; assim Deus me ajude.

Titulo 5 - Da Mesa

Art.44 - A Mesa será composta de um Presidente e dois Secretários, os quais servirão por toda a SessãoOrdinária, ou Extraordinária, e nas prorrogações, havendo-as, ate a Instalação da Sessão Ordinária do anofuturo, e nova eleição dos Membros que devem compô-la.

Título 6 - Do Presidente e Vice-Presidente

Art. 49 - O Presidente não poderá ter exercício em Comissão alguma, exceto na de Polícia, da qual seráMembro nato.

Título 7 - Dos Secretários e Suplentes

Art. 66 - Ao Secretário compete:

§ 2 - Fazer a leitura de toda a Correspondência Oficial, memórias, petições, etc., dirigidas à Assembléia,assim como das Leis e Resoluções, que houverem de ser sancionadas, ou publicadas.

§ 4 - Receber todos os ofícios das Autoridades constituídas na Província, ou fora dela, e dos Deputados; asrepresentações, petições, e memórias, que forem dirigidas à Assembléia, dando conta em resumo de seuconteúdo, para terem destino na forma do Regimento.

§ 5 - Fazer recolher e guardar em boa ordem os projetos, indicações, pareceres de Comissões e emendas,que se oferecerem na Sessão.

§ 7 - Propor à Assembléia pessoas idôneas para os lugares de Oficiais da Secretaria, dirigi-los, e regulartodos os trabalhos da Secretaria.

Título 8 - Das Comissões

Art.59 - Haverá na Casa as seguintes Comissões Permanentes:

1) de Poderes e de Infrações de Constituição e das Leis;

2) da Fazenda Provincial;

3) da Fazenda Municipal;

4) de Propostas e Representações das Câmaras;

5) de Estatística, Catequese e Civilização dos Indíge nas;

6) de Instrução Pública;

7) de Estradas, Pontes, Canais e Navegação Interior dos Rios;

8) dos Negócios Eclesiásticos;

9) de Força Pública;

10) de Polícia; e

11) de Redação.

Art.63 - As Comissões não poderão ser compostas de menos de três Deputados, nem de mais de cinco: umdeles será o Presidente e Relator, nomeado pela mesma comissão.

Art. 70 - Qualquer Deputado poderá assistir as conferências da Comissão mas não terá voto nelas.

Título 9 - Das Eleições

Art.77 - Quando faltar qualquer membro de alguma Comissão, o Presidente nomeará outro para substituí-lo: assim como poderá também nomear qualquer Comissão em caso urgente, e não havendo quem seoponha, por que então deverá recorrer-se a Assembléia para decidi-lo por meio de votação sem precederdiscussão.

Título 10 - Da Nomeação do Vice-Presidente da Província

Art. 80 - Na atual Sessão, e no começo das seguintes de dois em dois anos o Presidente dará para ordemdo dia a nomeação de seis cidadãos, que no impedimento do Presidente da Província hão de servir de Vice-Presidente dela, na forma da Lei de 3 de outubro de 1834.

Art.84 - Concluída a votação, a Mesa dirigirá em forma de proposta ao Imperador por intermédio doPresidente da Província a nomeação feita pela Assembléia Provincial, para que o mesmo Presidente façasobre ela as observações determinadas na Lei de 3 de outubro de 1834; e remeterá copia dela à Câmaraem forma ordinária.

Título 11 - Das Sessões

Art 86 - As Sessões começarão às onze horas da manhã, e durarão até as três da tarde. Serão sucessivasem todos os dias, que não forem Domingos, ou Dias Santos e de Festas Nacionais.

Art. 92 - Achando-se presentes dezenove Deputados, o Presidente abrirá a Sessão com as palavras - Abre-se a Sessão.

Art.93 - Não havendo número suficiente de Deputados para abrir-se a Sessão depois de feita a chamada, oPresidente, Secretários e Deputados se conservarão nos

seus lugares: e se até ao meio dia não concorrerem

mais Deputados que preencham o numero, o Presidente declarará - Hoje não há Sessão.

Art. 97 - As atas das Sessões conterão somente o resultado das deliberações da Assembléia, e nunca asopiniões dos seus Membros; e poderão ser publicadas pela Imprensa, havendo quem as peça para este fim.

Título 12 - Dos Projetos de Lei e Resoluções, das Indicações e Requerimentos dos Deputados

Art.123 - Feita a leitura do Projeto pelo Secretário, o Presidente consultara a Assembléia se o mesmo é ounão objeto de deliberação; e os Deputados resolverão sem preceder discussão, se deve ou não serimpresso, ou copiado, para entrar na ordem dos trabalhos. Se não for julgado objeto de deliberação, ficaradesde logo rejeitado.

Art.125 - Os Projetos, depois que forem julgados objetos de deliberação, serão registrados em livro próprio,assim como os Pareceres de Comissões e as Indicações.

Título 13 - Dos Pareceres de Comissões

Art.136 - Quando os Pareceres forem tão extensos, que pela leitura não fique a Assembléia inteirada damatéria, poder-se-á a requerimento de algum Deputado aprovado por dois terços dos votos mandarimprimi-lo para entrar em discussão.

Título 14 - Das Propostas das Câmaras Municipais

Art.139 - As Propostas das Câmaras Municipais, que houverem de ser dirigidas à Assembléia, emconformidade da Lei de 12 de agosto de 1834, para se tomarem em consideração, deverão ser concebidasem forma de resolução, com artigos separados, e nunca englobadas com matérias diversas umas dasoutras.

Título 15 - Da Ordem dos Trabalhos

Art. 153 - Nenhum Deputado poderá acusar os motivos, ou intenções dos que propuserem ou sustentaremqualquer medida. O que o fizer será chamado a ordem pelo Presidente.

Art. 155 - É proibido a todo Deputado perturbar o que estiver falando; ou levantar-se, interrompê-lo; oupassar entre ele e o Presidente; ou atravessar as grades do Salão.

Art.156 - Quando depois de um reiterado chamamento à ordem, o Deputado se não sujeitar, o Presidente ochamará pelo seu nome, dizendo - à ordem, Sr. Deputado F... Se persistir ainda em sua obstinada conduta,o Presidente, consultando primeiro a Assembléia, ordenará ao Deputado que se retire, o que ele faráimediatamente. O Presidente exporá depois à Assembléia a ofensa cometida pelo Deputado, para que elaresolva se o mesmo estava na ordem, e deve, ou não ser outra vez admitido na Sala.

Art. 160 - Se no calor da disputa o Deputado se exceder, o Presidente o advertirá 1ª e 2ª vez com a palavra- ordem - e continuando ele, o Presidente lhe dirá - O Sr. Deputado F... não está em estado de deliberar; eo Deputado se retirará da Sala, se a Assembléia, a quem o Presidente deve consultar, assim o resolver.

Art. 162 - Não se reputará violação do Regimento o dar apoiados ou não apoiados ao Deputado que estiverfalando.

Art. 163 - Nenhum Deputado poderá estar presente, quando se discutir um Projeto, ou negócio, que lhedisser respeito; e não poderá tratar deste objeto, sem que ele se retire, exceto nas questões de ordem.Será todavia permitido ao Deputado, logo que se concluir a leitura do negócio, dar à Assembléia asexplicações que entender convenientes, e retirar-se até que se conclua a discussão e votação.

Título 16 - Do Modo de Deliberar

Art. 165 - Nenhum Projeto entrará em discussão, sem que tenha passado dois dias da sua distribuição,todas as vezes que for impresso ou copiado.

Art. 166 - Nenhum Projeto poderá ser discutido sem que tenha sido dado para ordem do dia seguinte.

Art. 167 - A discussão de qualquer projeto, ou de cada um dos seus artigos, ou de qualquer matériacomeçará sempre por oposição. Poderá todavia o seu autor, querendo, falar em primeiro lugar para explicara doutrina do Projeto, e sustentá-lo.

Art.168 - Nenhum Projeto será aprovado, sem ter sido discutido três vezes.

Art. 169 - Entre cada uma das discussões haverá o intervalo de dois dias, exceto quando a Assembléiajulgar urgente o negócio; caso em que a discussão poderá fazer-se mediando somente 24 horas de umapara outra discussão.

Art. 170 - Versará a 1ª discussão de um projeto unicamente sobre as vantagens ou inconvenientes dele emgeral; e não se lhe poderão fazer emendas algumas.

Art.171 - Acabada a 1ª discussão, o Presidente porá a votos - Se o projeto passar à 2ª discussão - se sevencer afirmativamente, o Projeto será enviado a uma comissão, conforme a sua matéria, ou segundo ovoto da Assembléia, para examiná-lo, e oferecer-lhes as emendas, que julgar convenientes. Se se vencernegativamente, ficará o projeto rejeitado.

Art.172 - O projeto será entregue ao I nomeado com todos os papéis e documentos, que lhe foremrelativos; e o Deputado que os receber assinará em um Livro para isso destinado na Secretaria daAssembléia à entrega dos papéis, pelos quais responderá, em quanto não fizer entrega deles ao ISecretário, e que se notará imediatamente no Livro.

Art. 173 - O exame dos Projetos feito pelas Comissões, assim como quaisquer outros trabalhos, que lhesforem encarregados, serão tratados fora das horas de Sessão: todavia a Assembléia poderá ordenar que osMembros da Comissão se retirem da Sala para trabalhar em qualquer negócio, ou que dêem conta dele emcerto e determinado dia.

Art. 174 - Se o projeto tiver sido organizado pela mesma Comissão, ela o examinará de novo, e proporá sedeve passar com emendas, ou sem elas expondo por escrito à Assembléia os motivos, ou razões de suasemendas, no caso de as ter oferecido.

Art.175 - Nenhum Projeto poderá ser rejeitado pelas Comissões, depois de se vencer que passe à 2ªdiscussão. Quando as Comissões julgarem que o Projeto não pode ser aproveitado, mesmo com emendas,exporão à Assembléia todos os inconvenientes que entenderem resultar da medida proposta; e só nadiscussão em Assembléia, poderão fazer-lhe oposição, e propor a sua rejeição.

Art. 176 - As comissões não poderão aspar, nem emendar, nem pôr entrelinhas nos Projetos, que se lheremeterem para examinar. Todas as alterações, que julgarem necessárias fazer-lhes, serão escritas empapel separado, com a designação da página, ou linha, a que as palavras deverão juntar-se, ou de que sedeverão cortar.

Art.177 - O Relator da comissão, logo que esta tiver concluído o seu trabalho, dará parte à Assembléia deque a Comissão tomou em consideração tal ou qual matéria; tal ou qual projeto; e que o encarregou defazer o seu relatório. O Presidente marcará dia e hora em que deve apresentá-lo, e se a requerimento dealgum Deputado for vencida a leitura imediata por votação da Assembléia, o Relator fará a sua exposição, aqual terá sempre lugar e hora designada para a leitura dos Pareceres de Comissões.

Art.178 - Concluída a leitura, os papéis serão depositados sobre a Mesa para entrarem na ordem dostrabalhos.

Art.179 - Os Projetos podem ser remetidos a uma ou mais comissões, ou divididos, encarregando-se umaparte a uma, e outra parte a outra Comissão.

Art.180 - Poderá a Assembléia incumbir a qualquer Comissão especial um negócio, que lhe for apresentado,ainda quando haja alguma Permanente para objetos de tal natureza, se assim o julgar necessário arequerimento de qualquer Deputado.

Art.181 - Na 2ª discussão o I Secretário lerá todo o projeto, o relatório da Comissão, que o examinar, e asemendas oferecidas, havendo-as. O Presidente tornará a ler artigo por artigo, pondo a cada umsucessivamente em discussão, e depois à votação com as emendas oferecidas pela Comissão, e as que denovo forem mandadas à Mesa durante o debate, como modificadas da Comissão, ou dos artigos do Projeto.

Art.182 - Para que possa ser admitida à discussão qualquer emenda oferecida, é necessário que sejaapoiada por cinco Deputados, depois de lida por seu autor, e seguidamente pelo 1º Secretário.

Art.183 - Durante a discussão poderá qualquer Deputado mandar à Mesa artigos aditivos ao Projeto, osquais, sendo apoiados por cinco votos, entrarão em discussão um depois do outro, logo que se concluir a doProjeto e das Emendas oferecidas.

Art.184 - Finda a 2ª discussão, o Presidente porá a voto se o projeto deve passar à 3ª discussão; edecidindo-se pela negativa, ficará o Projeto rejeitado.

Art. 185 - Vencendo-se pela afirmativa, o Projeto será enviado à Comissão de Redação para redigi-lo denovo e conforme ao vencido; e se pelas emendas aprovadas o mesmo Projeto tiver sido alterado, tornará aser impresso, a juízo da Assembléia, para entrar em 3ª discussão.

Art. 186 - Nos casos de maior importância, ou quando a Assembléia julgar conveniente poderá um Projetoser segunda vez remetido a qualquer Comissão para examiná-lo de novo, depois de redigido, e propor-lheas emendas, que entender ainda necessárias.

Art.187 - Se a Comissão, a quem o Projeto for enviado, oferecer-lhe emendas, serão estas impressas ajuízo da Assembléia, para entrarem em última discussão com o projeto.

Art. 188 - Nesta discussão o Projeto debater-se-á em globo, e poder-se-ão fazer-lhe quaisquer emendas.Nesse caso, e no de ter sido 2ª vez enviado à Comissão, e esta proposto emendas, haverá primeirodiscussão delas na Sessão em que tiver sido dado para ordem do dia; e ficará o Projeto com as emendasreservado para a Sessão seguinte, em a qual serão novamente discutidas as Emendas, e concluída adiscussão se porá a votos - 1ª) as emendas cada uma per si; 2ª) se o Projeto é adotado com as emendasaprovadas (havendo-as); e o êxito desta votação será o do Projeto.

Art.189 - As emendas oferecidas na 3ª discussão deverão ser apoiadas pela 3ª parte da Assembléia paraentrarem em discussão.

Art.190 - Adotado definitivamente, o Projeto será remetido com as emendas aprovadas à Comissão deRedação, para reduzi-lo à devida forma.

Art.191 - Esta redação será submetida à aprovação da Assembléia; e quando sobre indicação da Comissão,ou de algum Deputado, se notar que o vencido envolve incoerência, contradição, ou absurdo manifesto,poderá voltar o Projeto a uma 4ª discussão, em a qual será emendado somente o absurdo, contradição, ouincoerência, sem se poder mais tocar nas outras partes do Projeto.

Art. 192 - Para ter lugar a discussão do Artigo antecedente, deverá a moção ser apoiada pela 3ª parte daAssembléia, e aprovada por dois terços de votos dos membros presentes.

Art.193 - Vencida a necessidade da emenda do Projeto, conforme os artigos antecedentes, entrará o Projetoem discussão na 1ª parte da ordem do dia seguinte para ser definitivamente aprovado.

Art.194 - Logo que um Projeto de Lei, ou Resolução tiver sido aprovado, e competentemente redigido, oSecretario o fará passar a limpo, para ser lido na Mesa, e assinado pelo Presidente e Secretários, na formado Regimento.

Art. 195 - Em geral todas as matérias terão uma só discussão; excetuam-se os Projetos de Lei, ou deResolução, que terão três.

Art. 196 - Nenhum Deputado poderá falar mais de duas vezes a respeito de qualquer Projeto em geral, decada Artigo em particular, e mesmo sobre qualquer matéria, que entre em discussão, exceto se aAssembléia expressamente o permitir.

Art.197 - O autor de qualquer Projeto, e os Relatores de Comissão, poderão falar mais uma vez.

Art.198 - Nos Requerimentos, questões de ordem, urgência, adiamento e preferência não poderá oDeputado falar mais de uma vez, nem ainda para explicar-se: o autor do Requerimento, porém, poderáfalar segunda vez somente.

Art.199 - O Deputado, que quiser explicar alguma expressão, que se não tenha tomado seu verdadeirosentido, ou produzir um fato desconhecido à Assembléia, que venha ao caso da questão, poderá fazê-lo.

Art.200 - Neste caso, porém, não será permitido ao Deputado exceder os limites restritos da explicação, ouprodução do fato para que tiver pedido a palavra.

Art.201 - Durante o debate de qualquer matéria, não pode um Deputado falar 2ª vez, sem que tenhamobtido a palavra todos os que precedentemente a houverem pedido a 1ª vez, e nunca se admitirá apreferência para responder.

Art.202 - Nas discussões não poderão os Deputados corroborar seus argumentos com o voto do PoderExecutivo, nem referir-se a documentos, que não estejam presentes.

Art. 203 - Ainda que não haja quem fale sobre as matérias expostas à discussão, e por isso ela se nãoverifique, sempre se procederá a votos na conformidade do Regimento.

Art. 204 - Todas as vezes que houverem dois ou mais Projeto sobre o mesmo objeto, serão remetidos pararefundi-los, mas se algum Deputado, depois da leitura do Projeto refundido, insistir na preferência de umsobre os outros, e se rejeitar o parecer da comissão, será a matéria posta a votos para saber-se qual delesdeverá ser preferido, entrar em discussão, sem com tudo se entender que os outros ficam rejeitados.

Art.207 - Entrando em discussão qualquer matéria, nenhuma outra será admitida, sem findar a discussãoda 1ª, excetua-se:

§ 1º para oferecer emendas.

§ 2º para propor adiamento ou preferência.

§ 3º para reclamar a ordem.

Art. 208 - Quando se propuser adiamento em qualquer estado da questão, será esta suspensa até que sedecida se deve ou não ficar adiada.

Art.209 - Não se admitirão no debate discursos escritos: mas poderão os Deputados tomar as notas quequiserem para responder.

Art.211 - Todo Deputado poderá oferecer a moção de preferência em qualquer estado da discussão; e se oresultado da votação for afirmativo, ficará suspensa a discussão da matéria de que se estiver tratando, e seentrará na da matéria preferida.

Art.212 - A moção de preferência não admite emendas, nem adiamento; a de adiamento indefinido sóadmite a emenda de adiamento limitado.

Art.213 - Todas as questões de ordem, adiamento e preferência não poderão ser deferidas de uma paraoutra Sessão; mas serão infalivelmente terminadas naquela em que forem propostas.

Art.214 - Se dada a hora de levantar-se a Sessão; houverem ainda Deputados com a palavra sobre asquestões do Artigo precedente, o Presidente consultará a Assembléia se quer prorrogar a Sessão. Não sevencendo a prorrogação, entender-se-á que a discussão foi encerrada; e o Presidente porá a votos amatéria discutida.

Art.215 - Nenhum negócio será julgado urgente, senão quando for tal, que da demora na sua decisão possaseguir-se grave prejuízo ao Público.

Art.216 - Para se dar urgência em qualquer matéria é necessário que um Deputado a requeira, ou oPresidente a proponha e que pelo menos seja apoiada por cinco Deputados; e a Assembléia a aprove pormeio de votação.

Art.217 - O Deputado que quiser propor urgência usará da fórmula - Tenho negócio urgente.

Art.218 - Quando em qualquer discussão um Deputado requerer que se leiam tais ou quais peças; que sepeçam estes ou aqueles esclarecimentos, a sua moção suspenderá a questão principal, e deverá serprimeiramente decidida.

Art.219 - Encerrada a discussão de qualquer matéria, nenhum Deputado poderá retirar as emendas quetiverem sido oferecidas, sendo-lhe permitido fazê-lo somente durante a discussão.

Art.220 - Antes de findar a discussão de qualquer Requerimento ou Indicação, e a 1ª de qualquer Projeto, oDeputado que o tiver oferecido poderá retirá-lo, precedendo votação da Assembléia: mas se outro Deputadoquiser tomar como sua qualquer das ditas peças, seguir-se-ão a respeito dela os tramites ordinários.

Art.221 - Toda proposição em qualquer estado que se achar a sua discussão poderá ser enviada a umacomissão, se a Assembléia assim o resolver sobre o requerimento de algum Deputado. Excetuam-sesomente os Projetos que estiverem em 3ª discussão.

Art.222 - Todas as vezes que a Assembléia rejeitar inteiramente o Projeto de uma comissão encarregada deapresentá-lo sobre qualquer matéria, deverá logo proceder à nomeação de nova Comissão para redigiroutro Projeto.

Art.223 - Todos os Projetos de Lei, ou de Resolução, Pareceres e Indicações que não tiverem sidodiscutidos, e terminados em uma Legislatura, não poderão mais ser apresentados na seguinte, salvotomando-os de novo a Assembléia em consideração, como se nunca tivessem sido apresentados, seja qualfor o estado da sua discussão.

Art.224 - Os negócios que tiverem sido submetidos à Assembléia na Sessão do ano precedente, e nãotiverem sido então decididos, serão enviados às comissões respectivas, que os deverão examinar de novo, ese concordarem com o Parecer dado nessa Sessão, deverão propor que ele seja adotado, e nesse casoentrarão ambos em discussão, como formando uma só peça.

TíTítulo 17 - Da Votação

Art.225. Não se porá a votos matéria alguma, sem que estejam presentes os Deputados necessários para acelebração da Sessão.

Art.226. Por três maneiras se poderão dar votos: 1º pelo método simbólico nos casos ordinários; 2º pelonominal nos projetos de maior importância, 3º, por escrutínio secreto nas Eleições.

Art.227. O método simbólico se pratica dizendo o Presidente - Os senhores que são de parecer... queiramlevantar-se.

Art.228 - Se o resultado dos votos for tão manifesto que à 1ª vista se reconheça a pluralidade, o Presidentepublicará, mas se esta não for logo manifesta, ou parecer a algum Deputado que o resultado publicado peloPresidente não é exato, poderá o mesmo ou qualquer outro Deputado pedir que se contem os votos.

Art.229 - Em qualquer destes casos dirá o Presidente - Queiram levantar-se os outros Srs. que votaram

contra - ; e o 2º Secretario contará os votos para serem combinados com os primeiros.

Art.230 - Para se praticar a votação nominal, será preciso que algum Deputado a requeira, e que aAssembléia o decida por meio de votação, sem preceder discussão.

Art.231 - Determinada a votação nominal, o Presidente porá a votos a matéria. Os Deputados que votarema favor se conservarão em pé, em quanto o 2º Secretário fizer a relação deles; depois levantar-se-ão os quevotarem contra, para se fazer a relação deles, como dos primeiros. Ambas as relações serão lidasimediatamente para se retificar qualquer engano.

Art.232 - O 3º método de votar, que é por escrutínio secreto, se fará por cédulas escritas, e lançadas emurnas, que correrão os contínuos por todos os Deputados. Apresentadas na Mesa as cédulas, depois decontadas pelo 1º Secretário, e lidas por ele à vista do Presidente cada uma de per si, fará o 2º Secretário oscompetentes assentos, e no fim a apuração para se publicar o resultado da votação.

Art.234 - Nenhum Deputado presente poderá escusar-se de votar, salvo quando não tiver assistido àdiscussão.

Art.239 - O ato de votar nunca será interrompido; durante ele nenhum Deputado poderá sair do lugar, e sealgum o fizer, o Presidente o chamará à ordem.

Art. 240 - Nenhum Deputado poderá protestar por escrito ou de palavra contra a decisão da Assembléia,sendo livre o inserir nas Atas a sua declaração de voto, apresentando-a ao 2º Secretário na mesma ou naseguinte Sessão com a exposição dos motivos, ou sem ela.

Título 18 - Da Comunicação da Assembléia com o Presidente da Província, e com a Assembléia, e GovernoGeral.

Art.248 - Quando o Presidente negar a sua Sanção a qualquer Projeto de Lei, ou Resolução; e este voltar àAssembléia, será logo enviado com as observações do Presidente a uma Comissão Especial de 5 membrospara examiná-las, e dar o seu Parecer.

Título 19 - Da Polícia e Economia da Casa

Art. 253 - Na parede do topo da Sala das Sessões estará colocado em lugar elevado o retrato do Imperadordo Brasil, debaixo de Dossel. Conservar-se-á ordinariamente cerrado com cortinas, e só estará patente nosdias solenes de abertura, e encerramento da Assembléia.

Art.258 - Todos os cidadãos, e mesmo estrangeiros, poderão assistir às Sessões, com tanto que vãodesarmados, e decentemente vestidos, e guardem o maior silêncio, sem dar o mais leve sinal de aplauso oude reprovação do que se passar na Assembléia, para o que haverão na Sala Galerias, onde estejamseparados dos Deputados, e não possam comunicar-se com eles.

Art.259 - Os espectadores, que perturbarem a Sessão, serão logo mandados a sair, quando a perturbaçãofor só do silêncio da Casa; mas se esta perturbação for misturada de gritos, violências, ou ameaças contra aAssembléia, ou contra cada um de seus Membros para influir na maneira de se portar no exercício de suasfunções, ou pelo que tiver dito, ou praticado no mesmo exercício, serão imediatamente presos por ordem dequalquer Membro da Comissão de Policia, a qual, procedendo às averiguações que julgar convenientes, osremeterá a Autoridade competente para serem processados, e punidos na forma do Artigo 105 do CódigoPenal.

Art. 262 - Não será permitido em ocasião alguma introduzir-se no recinto da Assembléia qualquer pessoa,nem ainda para apresentar uma memória, petição ou felicitação, ou para ouvir sua leitura.

Art.267 - A Comissão de Polícia distribuirá pelos Empregados da Casa os trabalhos, de que cada um houverde ficar encarregado nos intervalos das Sessões, ordenando-lhes o modo por que hão de executá-los.

Art.269 - Todas as despesas da Assembléia serão feitas pela Tesouraria Provincial por folhas mensaisprocessadas na Secretaria, e assinadas pelo 1º Secretário.

Titulo 20 - Dos Empregados da Assembléia

Art. 273 - Para o expediente dos negócios da Assembléia haverá um Oficial Maior da Secretaria, o qual serápermanente, e estará imediatamente subordinado ao 1 Secretário.

Art. 274 - Além do Oficial Maior haverá os amanuenses, que forem necessários, para o que o 1º Secretarioproporá à Assembléia no princípio de cada Sessão o seu número, podendo este ser aumentado, oudiminuído, conforme as circunstâncias e a afluência do trabalho o exigirem.

Art. 276 - Haverá um Porteiro, que será permanente, e terá a seu cargo a guarda de todos os móveispertencentes.

¹Este documento encontra-se na Coleção Leis Mineiras no Arquivo Público Mineiro.

1 Estudos Históricos, RJ, vol 9, nº 17, 1996, p.87

2 Ver Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo Saquarema Huctec/INL, 1978.

3 Ver Aikens, neste volume, pg 41.

4 Art.20.

5 "A noção de corpus mysticum significava, em primeiro lugar, a totalidade da sociedade cristã em seusaspectos or-ganológicos: um corpo constituído de cabeça e membros". Ver mais in: Ernst Kantorowicz, Osdois corpos do Rei, especialmente cap.5: A realeza centrada no governo: corpus musticum, p.125/70.

©Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 103-117, jul./dez. 1998.

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Miscelânea"A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos aresponsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e avinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças obastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampoucoarrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós,preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.

Hannah Arendt, A crise na educação.

"A liberdade absoluta existe, sim. Consiste substancialmente no poder que nos é dado ou, melhor dito, quepodemos acreditar que temos, de revolucionar o horizonte do que se nos apresenta como real, possível eimpossível. Implica acreditar que nós podemos pensar o impensado porque está suposto como impensável,sentir o insensível ou o jamais sentido, imaginar o inimaginável ou jamais imaginado; e assim, poderchegar a desejá-lo e, talvez, a fazê-lo, de maneira a dar a pensar, sentir, imaginar e querer aos outros, e,quem sabe, propiciar que muitos, juntos, o façam."

Gregório F. Baremblitt, A Liberdade de Pensar e Agir e a Práxis Política.

"Uma hostilidade contra o tempo livre é mais moderna, é o tele-trabalho, o trabalho eletrônico. Por que otele-trabalho? Vocês vêem essas milhares de pessoas que andam em carros velozes de dia e de noite; vão,quase todas, ao trabalho. Muitas delas fazem trabalhos intelectuais, portanto poderiam ficar tranqüilamentetrabalhando em casa. Ao invés de mudar as pessoas, transferindo-as de suas casas para os escritórios,poderiam transferir as informações para a casa delas e vice-versa. Bastaria ter um computador e o correioeletrônico, o e-mail, hoje tão difundido. Mas as empresas são contrárias ao trabalho eletrônico, porque têmmedo que dessa forma a obediência daqueles escape de suas mãos. Outra astúcia contra o tempo livre éque nós, sempre trabalhando mais durante nossa vida, temos a ilusão de que chegará uma época em quefinalmente teremos tempo para fazer essas coisas. Aí compramos discos que não escutaremos porquepensamos em escutá-los um dia, mais tarde, mas quando nossos ouvidos já não escutarão tão bem."

Domenico De Masi, sociólogo italiano, em palestra no Sesc/Pompéia, dia 27 de maio de 1999.

"Como nós sabemos, na idade de seis, sete anos, por aí, a criança está sempre a perguntar por quê. Énormal ela perguntar por quê? Por que tem de tomar a sopa? Por que é que tem de ir dali para ali?Pergunta sempre por que e vai perguntando, perguntando e perguntando. E há um dia, chega sempre umdia, fatalmente chega esse dia porque chega para todos, em que a criança nunca mais perguntará por quê.Isso não significa que ela já sabe tudo. Significa só que ela renunciou, resignou-se a não saber. Passa àidade adulta ou passa à adolescência, que é porta para a idade adulta. Eu creio que há uma pergunta quenós deveríamos ter constantemente na boca, em relação a tudo quanto se passa, na nossa vida própria, nanossa vida com os outros, na vida da sociedade em que vivemos, do país em que estamos, do mundo que éo mundo que não podemos viver noutro, por enquanto, que é isso: por quê? Por que é que as coisas sãocomo são? As coisas são como são porque tinham de ser assim? E então nós não podemos fazer nada paramodificá-las? Já estavam decididas desde que não se sabe quando? Que tinham de ser assim e, queportanto, uma vez que são assim, não há nada a fazer?"

José Saramago, em palestra no Sesc/Vila Mariana, SP, em 28 de abril de 1999.

©Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5(8): 103-117, jul./dez. 1998.