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Cadernos da Escola do Legislativo nº 14 - Janeiro/Dezembro 2007

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O tema desta edição é a Legística, ciência que estuda a concepção e a redação das leis. O assunto é recorrente nas discussões técnicas e acadêmicas da Europa desde a década de 1970, mas somente há pouco tempo chegou ao Brasil. Esta publicação é lançada em sintonia com o Congresso Internacional de Legística, que a ALMG promoveu entre 10 e 12/9/07.

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FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 3-6, jan./dez. 2007

EDITORIAL

om a publicação desta edição dosCadernos da Escola do Legislativo, aAssembléia Legislativa de Minas Geraisdá mais um passo em direção a umtema que, corrente nas discussõesacadêmicas e técnicas na Europa apartir dos anos 1970, só agora começaa chegar ao Brasil: a legística. Defini-da, em uma primeira aproximação,como a ciência que estuda a concep-ção e a redação dos atos normativos,

essa nova área do conhecimento não está, todavia, presaexclusivamente ao Direito. É, com efeito, na abordagemmultidisciplinar que a legística ganha força como espaço deconstituição de um saber que pretende olhar a lei do ponto devista tanto da sua qualidade formal quanto do seu papel comoelemento de transformação social.

Lançada em sintonia com o Congresso Internacionalde Legística, promovido por este Parlamento no período de 10

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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a 12 de setembro de 2007, a presente edição pretende oferecerao público um espectro amplo de abordagens tópicas dalegística, percorrendo o tema em múltiplas linhas de análiseteórica e instrumental. Esse esforço será complementado pelapublicação dos anais do evento.

O artigo que abre a edição, de Fabiana de MenezesSoares, traça os lineamentos gerais do tema, explorandoaspectos teóricos da legística, como a sua definição conceitual,os seus instrumentos de análise e os problemas que secolocam para essa nova ciência. Alexandre Flückiger e Jean-Daniel Delley reconstituem os passos de construção dalegística, discutindo as bases epistemológicas do tema. AnaFraga e Ana Vargas oferecem um circunstanciado panoramados mecanismos de controle da qualidade da lei nos países daUnião Européia, com ênfase especial na situação em Portugal.Cristiano Ferri mostra como mecanismos internos da Câmarados Deputados podem interferir negativamente na qualidadedas normas legais produzidas pelo Parlamento federal. FláviaSantos, Gabriela Mourão e Guilherme Ribeiro discutem opapel das consultorias legislativas institucionais na elaboraçãodas normas legais. Heinz Schaeffer apresenta os avanços e aslacunas da ciência da legislação na Áustria. Juliana Valle sedebruça sobre o espinhoso tema das medidas provisóriascomo limitação ao poder legiferante do Poder Legislativofederal. Luzius Mader aborda o tema de uma perspectivadidática, iniciando seu artigo com uma pergunta fundamental– em que constitui exatamente a legislação? O texto de RobertoRomano, que finaliza a edição, traz o contraponto da discussãoao perguntar como se pode impor a obediência à lei em umasociedade marcada pela exclusão e pela desigualdade.

A Escola do Legislativo espera, com esta edição temática,oferecer subsídios tanto para a abordagem teórica da legística– campo no qual têm se destacado espaços acadêmicos comoa Faculdade de Direito da Universidade Federal de MinasGerais – como para a construção e implementação dos seusinstrumentos técnicos de intervenção na produção legislativa,a exemplo de iniciativas já desenvolvidas no âmbito da própriaAssembléia Legislativa de Minas Gerais.

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EDITORIAL

Acreditamos que os esforços pela melhoria da qualida-de da lei estão intimamente conectados à razão maior daexistência do Parlamento, que é a de expressar, no textonormativo, os interesses e as aspirações da sociedade civil.Normas legais bem elaboradas são não somente uma metatécnica de acadêmicos e de consultorias legislativas, mas,antes de tudo, parte do processo de construção da democraciabrasileira.

Alaôr Messias Marques Jr.

Gerente-Geral da Escola do Legislativo

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LEGÍSTICA E DESENVOLVIMENTO:

A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

DE UMA MELHOR LEGISLAÇÃO

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 7-34, jan./dez. 2007

LEGÍSTICA E DESENVOLVIMENTO: AQUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA

OTIMIZAÇÃO DE UMAMELHOR LEGISLAÇÃO

FABIANA DE MENEZES SOARES•

I Breve introdução à Legística

nicialmente, a Legística pode ser definida como saberjurídico que evoluiu com base em algumas dasquestões recorrentes na história do Direito, valedizer, a necessidade de uma legislação mais eficaz (nosentido de estar disponível e atuante para a produçãode efeitos), o desafio de compatibilizar o Direitocodificado com os reclames da sociedade, oquestionamento da lei como o instrumento exclusivopara a consecução de mudanças sociais e anecessidade de democratizar o acesso aos textoslegais em todos os níveis. A doutrina consolidada(KARPEN, SCHÄFFER, 1996) aponta, basicamen-

te, cinco linhas de investigação:

• teoria ou doutrina da legislação: possibilidades elimites da reconstrução científica e da aplicação do conheci-mento no âmbito da legislação;

• analítica da legislação: conceitos e idéias fundamen-tais da norma, lei e legislação;

I

• Professora adjuntada Faculdade de Direi-to da UFMG, mestre emDireito Administrativo,doutora em Filosofia doDireito, Canadá–Caribean. Latin Améri-ca Award 2004(International Councilfor Canadian Studies–Foreign Affairs andInternational TradeCanada) Législation ettechnologie del’information dans lecadre de l’experiencec a n a d i e n n e :r e s s e m b l a n c e s ,différences et innova-tion par rapport au casbrésilien, leMERCOSUL et laZLEA. Winning Paper-7th Congress of theEuropean Associationof Legislation Learningto divide the law’scontents: the lobby asa strategy for a clearerBrazilian legislation byProf. Fabiana deMenezes Soares andLetícia Camilo dos San-tos (Grupo de Pesqui-sa em Teoria da Legis-lação – Observatóriopara a Qualidade da Lei– Faculdade de Direitoda UFMG).

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• tática da legislação:estudo dos órgãos, procedimentose métodos a fim de influenciar e dirigir a produção legislativa;

• metódica da legislação: problematização das dimen-sões político-jurídicas e teorético-decisórias da legislação,procurando responder às questões de adequação/razoabilidade,ao incremento do grau de faticidade/realizabilidade e efetividadedas leis (a questão dos direitos fundamentais);

• técnica legislativa: regras gerais sobre a elaboraçãodas leis, suas categorias, sua sistemática e sua linguagem.

Nesse contexto, a Legística atua em duas dimensões(material e formal), que convivem em constante interação,desde a “justificação” do impulso para legislar até o re-ordenamento do sistema jurídico em razão da nova legislação.

Já que a grande guinada metodológica foi operada pormeio da avaliação de impacto, cumpre evidenciar a preocupa-ção com a elevação do nível de faticidade ou realizabilidade dalegislação (compreendida como a atividade de normação reali-zada pelo Legislativo e pela Administração Pública). Essestermos aparecem, notadamente, nas doutrinas alemã, italiana einglesa. Referem-se à preocupação com as medidas que garan-tam a execução e implementação de um dado ato normativo.

A Legística material reforça a faticidade (ou rea-lizabilidade)e a efetividade da legislação; seu escopo é atuar no processo deconstrução e escolha da decisão sobre o conteúdo da novalegislação, em como o processo de regulação pode ser projetadopor meio da avaliação do seu possível impacto sobre o sistemajurídico ou com a utilização de técnicas como check list, modelizaçãocausal, reconstrução da cadeia de fontes, que permitem tantorealizar diagnósticos e prognósticos como verificar o nível deconcretude dos objetivos que justificaram o impulso para legislare os resultados obtidos a partir da sua entrada em vigor.

Sinteticamente, a avaliação legislativa investiga o seguinte:

• exposição da situação-problema;

• leis existentes;

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A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

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• soluções possíveis;

• as vantagens e os inconvenientes de cada uma dassoluções possíveis;

• implicações financeiras;

• relações intergovernamentais;

• consulta entre os ministérios/órgãos envolvidos;

• consulta e informação a interessados, grupos epopulação atendida.

A Legística formal atua sobre a otimização do círculode comunicação legislativa e fornece princípios destinados àmelhoria da compreensão e do acesso aos textos legislativos.

Ambas as dimensões se interessam pela ampliação docírculo de interlocutores que dialogam na dinâmica do círculonormativo, isto é, o legislador/emissor quando interpretademandas, interesses que motivam o impulso legislativo; oadministrador quando implementa a legislação; o juiz quandoaplica a lei para dirimir conflitos; os destinatários/atingidoscujas condutas são afetadas por seus comandos.

O círculo normativo se abre com a justificativa doimpulso para legislar. Evidenciado na avaliação de impacto dafutura legislação, atua no reordenamento do sistema jurídicoem nome da manutenção da coerência (criação de barreiras àsantinomias) e da consistência (densificação de comandoscontidos em fontes legais por meio de atividade regulamentarpara garantir a eficácia técnica), otimizando estratégias parao incremento do conhecimento real do Direito.

Cada interlocutor utiliza as suas percepções de mundo,ou "pré-noções", e representações sociais da realidade quecompõem tanto o potencial repertório de normas (leque maiorde possibilidades de conteúdos normativos expressos, sobre-tudo em processos participativos de produção do direito)quanto norteia a capacidade de interpretar as demandas,necessidades e interesses por detrás do impulso legislativo.

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A ampliação do círculo normativo significa tambémconsiderar as manifestações da cultura jurídica em cada faseda desejável interação entre os seus interlocutores (diálogoentre as fontes do Direito). Vale dizer, considerar na concep-ção do ato normativo a jurisprudência, a aplicação efetuadapela Administração Pública, que, por sua vez, expressa umadada interpretação, o sentido sistemático extraído doordenamento jurídico no plano de incidência da futura legis-lação, do impacto e da situação atual objeto o impulsolegislativo na realidade social.

É sob o ponto de vista da percepção do ordenamentocomo sistema , do diálogo entre as várias fontes do Direito, daconsideração da realidade no processo de interpretação etomada de decisão, seja para solucionar o conflito ou evitá-lo,que a discricionariedade do legislador deve ser pensada demodo a ensejar críticas e propostas direcionadas a umaatividade legislativa responsável, em termos jurídicos.

A proposta da Legística coloca em foco uma alteraçãona relação comunicativa entre o destinatário/atingido e olegislador no sentido de os aproximar. Nesse particular, osujeito, seja emissor ou destinatário, possui uma vontade quea legislação ambiciona conformar. Todavia, em vez de seconfigurar tão-somente no súdito submisso ao poder estatal,que, por força da coerção, altera o sinal da conduta por medoda sanção, a proposta persuasiva da Legística coloca emevidência não só a possibilidade de constrangimento davontade, mas também a possibilidade de uma escolha queocorra por meio do convencimento e não pela força. Daí queesse processo interno de escolha de adesão ou não da propostade conduta contida no ato normativo, pelo processo intelectivo(no qual o sujeito deverá ser convencido de que a legislação éboa e, por isso, precisa ser respeitada), realiza a liberdade.

A Legística material reforça, pois, a produção doDireito Consensual, concertada, que possa antecipar os efei-tos sobre os destinatários/interessados e, desse modo, matizao conceito do que venha a ser uma boa legislação.

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A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

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O exercício daquela liberdade necessita de uma relaçãocom o Estado, além do mero dever de conhecer a legislaçãoe de não se eximir do seu império. Para tal, é necessárioconsiderar que a acepção da realização da dignidade da pessoahumana, princípio estruturante da nossa Constituição, incluao aumento do nível de escolaridade, o acesso gratuito ainformações legislativas (e também àquelas advindas doexercício da liberdade de imprensa), a inclusão de novasmídias (e outras não tão novas como a televisão, concessãopública que pode ser usada para outros fins que não só os dedifusão de publicidade partidária), para divulgação de direitose deveres (de uma material melhoria na qualidade da publici-dade oficial), à inclusão digital, aos serviços que poderão estardisponíveis aos cidadãos com o advento da TV Digital.

A Legística se debruça sobre um contexto, no qualdiscussões grassam e expressam fenômenos típicos de nossotempo, em que a legislação (aqui compreendida como conjuntode atos normativos) está em expansão e, muitas vezes,concorre para a falta de coerência do sistema normativo, o queculmina por afetar a completude do ordenamento jurídico,gerando insegurança jurídica, falta de confiança nas institui-ções porque a legislação não atinge os seus objetivos.

Em termos pragmáticos, o crescimento no volume deantinomias não solucionadas pelos clássicos critérios hierárqui-co, cronológico, de especialidade, exige, por sua vez, a reflexãoe concepção de estratégias em prol da reordenação do sistema,tais como simplificação, harmonização e consolidação.

Os efeitos dessa situação são intensificados pela pro-liferação legislativa oriunda não só da atividade contínua delegislação encetada pelos legislativos do País, mas tambémpela constatação de que a Administração Pública incorporouuma franca atividade de legislação.

Nesse processo de densificação normativa (compreen-dida como o conjunto de medidas necessárias à plena atuação/incidência de uma dada legislação), nem sempre a implementaçãoda legislação fica justificada; muito pelo contrário, as contradi-

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ções, ambigüidades, se acentuam, deixando o sistema normativoinstável e, por conseqüência, diminuem o nível de segurançajurídica, à medida que criam incerteza para o emissor/receptordas normas jurídicas quanto ao Direito vigente e ao seu teor, emface do esperado diálogo com outras fontes do Direito.

Inicialmente, o desafio a ser enfrentado pela Legísticainclui, de um lado, a adoção de metodologias e técnicas paraa racionalização da produção do Direito em uma etapa, emgeral considerada metajurídica pelo normativismo, visto quecogita do conteúdo e das condições de eficácia de umalegislação que está sendo planejada; de outro, a contenção daproliferação legislativa, a adoção de práticas de reordenamentocujo fim é possibilitar um conhecimento do Direito vigentemais aproximado do real, seguido de garantias de que a novalegislação terá um maior grau de efetividade.

Vale ressaltar que a preocupação com a clareza dalinguagem, com as estratégias contra a obscuridade e ambi-güidade, não pode se converter em arbitrariedade na predefiniçãode vocábulos inadequados, que na prática concorram para adiminuição da quantidade de possíveis termos à disposição daelaboração do conteúdo de uma dada legislação. O carátersimbólico da legislação, como foi já ressaltado por Chevallier,permanece como limite a uma pretensão totalizante de racio-nalização da produção do Direito.

II. Legística: um conhecimento sistematizadoainda pouco conhecido no Brasil

Legisprudência, Legislação e Ciência da Legislação sãotambém outros vocábulos que designam o ramo do conhe-cimento jurídico sobre o qual são dirigidas as reflexões objetodeste artigo. A escolha pelo termo Legística se dá peloposicionamento sistemático que o termo recebe tanto dospaíses da família romano-franco-germânica (civil law) quantodo Direito Consuetudinário (common law) com o termo Legistics.

Antes da retomada de uma reconstrução histórico-analítica, faz-se necessário levar em consideração as rela-ções entre Legística e Dogmática ou Ciência do Direito.

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A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

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Conforme Larenz, a Ciência do Direito tem como foco o seuaspecto normativo e, assim, ocupa-se do “sentido” dasnormas (validade normativa e do conteúdo de sentido dasnormas de Direito Positivo).

Entretanto, várias reflexões e suas repercussões prag-máticas ligadas à efetividade, à otimização do conhecimento realdo Direito e à avaliação de impacto do Direito não pertencem àDogmática, apesar de serem objeto de tensão segundo aFilosofia do Direito, a própria Teoria do Direito (que lida comconceitos como vigência, validade, eficácia, efetividade, vigor,etc.), a Sociologia do Direito, a Ciência Política, etc.

Desse modo, à guisa de um esclarecimento sobre asrelações entre a Dogmática e a Legística, faz-se necessáriouma demonstração sintética dos afastamentos e intersecçõesentre essas perspectivas do Direito:

Direito/Dogmática Legística

Racionalidade Racionalidade baseadana lógica

Racionalidadegerencial(objetivos-meios)

Critério Conformidade Eficácia

Controle Jurisdicional deconformidade

Avaliação por órgão político-administrativo

Funcionamento Linear Sistemática

Tônica/Sentido AplicaçãoCriação e aplicação das

normas

Mecanismo Lógico Dedução Indução-dedução

Realidade Social Isolamento Interação

Tipo de normas Deônticas Pragmáticas

(MORAND, 1999)

O quadro acima sintetiza bem o âmbito de atuação daLegística. Resta evidenciar a preocupação com os resultadossegundo uma perspectiva que visa adequar os objetivos(identificados na análise de impacto ou na avaliaçãolegislativa), os meios e os fins. Tal adequação evoca aintimidade do raciocínio “legístico” e a ponderação operadavia razoabilidade e discricionariedade quanto à escolha de umconteúdo para a legislação a ser concebida.

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Essa ponderação pretende conciliar a representaçãolingüística da escolha do sentido inicial de um ato normativoe os meios/instrumentos para identificar o cenário de inserçãodo ato normativo no sistema jurídico. O contexto no qual essejuízo de adequação se processa é aquele em que o planejamentolegislativo surge no quadro de uma política pela qualidade dalegislação que informe as ações de um programa de governo.

Nesse sentido, a questão da eficácia da legislaçãoaparece lado a lado das medidas de execução e implementação.Adotar estratégias para persuadir os destinatários/interessa-dos por meio de ações para construção de um consensopossível (audiências públicas, negociação legislativa, práticasde lobby regulamentadas, plebiscitos, inclusive os administra-tivos) são meios para otimizar o nível de eficácia social. Issosignifica que, durante todo o processo de elaboração eredação, o compreender e o aceitar uma dada legislação nãodeve ser considerada uma questão exclusivamente estilística.

Quanto à eficácia técnica, a elaboração do Direito exigeuma atenção no nível de densificação da legislação superior(leia-se lei em sentido formal ou material, vale dizer, a criaçãode normas jurídicas). O excesso de regulamentação ou a suainexistência concorrem para o baixo nível de eficácia técnicaporque comprometem a execução do comando normativo e/ou a implementação de uma nova situação jurídica.

Vale a pena ressaltar que a justificação do impulso paralegislar, até então colocada em um plano de consideraçõesmetajurídicas, guarda uma estreita conexão com a validade doDireito se observarmos que um mínimo de eficácia social énecessária como contraponto à relativização da liberdade dosujeito operada via Estado. A atividade de legislação custa e deveatingir os seus fins que, por sua vez, justificam limitações detoda ordem à conduta humana. Essa percepção de cunhoutilitarista orienta a concepção da lei na common law comopodemos identificar na teoria da legislação proposta por Bentham.

É, nesse sentido, que os métodos e técnicas paraavaliação de impacto se valem de instrumental de outras

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A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

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ciências como Administração, Economia, Estatística, Soci-ologia, Legimática e, é claro, Teoria Geral do Direito, emuma perspectiva, diríamos, “aplicada”. Essas particularida-des estão evidenciadas nas check lists, na modelizaçãocausal, na reconstrução da cadeia de fontes do Direito, nossistemas de apoio à decisão.

Esse modo de lidar com a problematização da fase pré-legislativa por meio de mecanismos de racionalização (seja noplano lingüístico ou sob o ponto de vista material) tem comofim orientar o planejamento de ações que visem a uma efetivae eficiente execução/implementação de um dado ato normativo.

Observamos, então, nessas distinções entre a Dogmáticae a Legística, que essa interação entre o mundo do Direito eo mundo da vida exige a existência de um diálogo entre asfontes do Direito. Ao lado da reconstrução da situação-fática-problema, objeto da indagação “legislar ou não legislar”(questão de fundo da avaliação legislativa, ou como parte dadoutrina européia de matriz alemã, como “metódica dalegislação”), emerge a necessidade de reconstrução da cadeiade fontes em vários níveis e categorias (âmbito de incidência,tipos de atos normativos).

Esse conjunto de medidas e a soma de toda a análisecolocam o intérprete (porque a produção do Direito e aescolha de uma dada representação de mundo é tambémuma atividade hermenêutica) em face de uma visão de umsistema, portanto, com uma percepção dinâmica do fenô-meno da legislação, tanto sob o ponto de vista doordenamento quanto da realidade para a qual aquelalegislação se destina.

A escolha do conteúdo da lei é um momento demáxima discricionariedade dentre as funções estatais;mas isso não é justificativa para desconsiderar a comuni-cação de sentido oriunda da interação entre as fontes doDireito (leia-se inclusive a interpretação das aplicações ousentidos concretos perpetrados pela atividade judicial eadministração pública). Daí a importância do delineamen-

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to da análise do seu impacto em um sistema, de modo apropiciar a concepção responsável da legislação. Afinal,por exemplo, um ato normativo inconstitucional causaprejuízos não só àqueles que se encontram em situaçõesjurídicas subjetivas dele decorrente, mas também à Admi-nistração Pública, ao próprio Legislativo e, talvez o piordano, aquele simbólico e insidioso que mina a confiança nasinstituições democráticas e confirma as perversões deautoridade no sentido de que “todos são iguais, mas unsmais iguais que os outros”.

Mas não é só a dimensão entre o contexto formal,material, o caro objeto de interação do qual a Legística seocupa. A idéia de um legislador onisciente foi uma faláciaincutida na mente da maior parte dos juristas e de boa partedos cidadãos. Talvez a mitificação da lei e da intangibilidadedo seu texto tão propalada durante boa parte do séculosXIX e XX respondam em parte por essa distorção.

Tal percepção não mais se sustenta por algunsmotivos. As normas não se dirigem exclusivamente àvontade porque o ser humano livre é aquele que pensa eescolhe, portanto, outros mecanismos de adesão aoscomandos devem ser considerados que não só aquelesque se valem da coerção, da conformação obrigatória davontade. Conceber uma legislação sem considerar meca-nismos de persuasão equivale a qualificar o sujeito comosem intelecto, é o mesmo que lhe negar a liberdade parase autonomizar: há verdadeiramente uma escolha sob odomínio da coerção?

O legislador também é cidadão e exerce uma funçãoem nome de alguém. A nossa Constituição consagra prin-cípios de democracia direta e dignidade da pessoa humana,densificados de várias formas no sistema jurídico. Portan-to, o legislador não é o único capaz de interpretar anseiose/ou deva transformar o seu ofício em um fazer incessantede atos normativos sem possibilidade de execução ouimplementação, inclusive gerando expectativas efêmerasquando legisla de forma inconstitucional que obviamente

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repercutem na esfera das relações pessoais, na ética decada dia, por vezes reproduzindo padrões de desconsideraçãodo Direito. Deve ser ressaltado que sua função fiscalizadoraacaba por ser obliterada pela necessidade em exibir uma linhade produção de proposições legislativas.

A discricionariedade do legislador quanto à escolha doconteúdo da lei é limitada, seja pela cultura jurídica quecongrega todas as manifestações do fenômeno jurídico, sejapelos princípios estruturantes da Constituição. Tais princípiosincluem tanto os garantidores do sistema representativoquanto aqueles de democracia direta e semidireta e da dignidadeda pessoa humana. E se a pessoa humana é fim do estadobrasileiro, necessita de condições de se desenvolver de formaplena, em um estado cujo fim é ser materialmente democráticoe que deve minimamente compreender e conhecer seusdireitos e deveres vigentes, o que, neste caso, pode se revelaruma verdadeira odisséia.

A aproximação entre legislador e cidadão pode propi-ciar processos de produção do Direito em que haja maispersuasão e menos coerção e, nos processos participativos,a negociação do conteúdo pode gerar uma co-responsabilidadepela sua efetivação, porque os participantes colaboraram comsuas representações de mundo, o que é otimizado por umagama de informações evidenciadas na reconstrução da situação-fática-problema, resultante do processo de avaliação legislativa.

Outra conseqüência da racionalização da produção doDireito decorre da preocupação de ordem pragmática quan-to aos resultados futuros da legislação expressos emnormas sobre elaboração de outras normas e daquelasdestinadas a garantir a efetividade de um dado dever-ser.

Em termos práticos, isso significa otimizar a açãoestatal no quadro da adoção de uma dada política pública,por exemplo. Como a perspectiva de concretização é atônica da atividade administrativa, esse modo de atuaçãoresponde como uma das causas para a relativa facilidadecom a qual a administração pública adere às práticas

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legísticas, ao contrário da inserção de uma cultura legísticano Legislativo, que exige capacitação do pessoal técnico,sensibilização de quem exerce poder de decisão e, sobretu-do, modificações no regimento que introduzam a Legísticano fazer legislativo.

Pensar sobre a situação-fática-problema em conjun-to com as variáveis jurídicas significa evocar uma dimen-são de fontes do Direito que inclui todas as suas manifes-tações e não exclusivamente as formais e impõe a conside-ração da realidade de incidência da futura legislação (bemdelineada pela modelização causal, como veremos mais àfrente). Tal consideração completará o programa de inter-pretação, evidenciará o sentido e o conjunto de normas queregem e que serão impactadas pela nova legislação1.

Resta claro que a Legística também atua paramanter e aumentar o nível de coerência do ordenamento,que, por sua vez, concorre para uma elevação no grau desegurança jurídica.

Nessa perspectiva interacional intrínseca (no siste-ma jurídico) e extrínseca (impacto legislativo sobre arealidade), a divisão entre os métodos dedutivo e indutivosão relativizadas. Primeiramente, porque não existe noprocedimento de produção do Direito uma divisão radicalentre Legística formal e material. Em segundo lugar, odever-ser não é considerado apartado do ser (realidade) enem o pode ser, visto que a legislação carrega em simodelos e propostas cujo fim é a sua concretização.

A Legística propugna, inclusive metodologicamente,um comprometimento radical com a eficácia do atonormativo e também se ocupa com o contexto de inserçãoda nova legislação.

Na produção do Direito, a todo momento, a preocu-pação com o impacto da nova legislação é recorrente, nãoobstante os limites da sua racionalização já mencionadospor Chevallier, limites estes que se alargam se admitirmos

1 À guisa de ilustra-ção, já que por ve-zes a literatura pos-sui o condão de bemdefinir percepções etambém porque ofator cultural possuiuma dimensão sim-bólica ardentemen-te almejada nos pro-cessos de produçãodo Direito, achamosoportuno registrar odizer de FernandoPessoa, mais à fren-te assinalado: “Todoeste universo é umlivro em que cada umde nós é uma frase.Nenhum de nós fazmais que um peque-no sentido, ou umaparte do sentido,somente no conjun-to do que se diz sepercebe o que real-mente cada um querdizer”.

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A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

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que o sentido do ato normativo só é completado pelarealidade social no âmbito de sua incidência.

III Tensões na produção do Direito: algumas

reflexões sobre a repercussão nos modos de se

fazer o Direito

A atividade de legislação traz em si duas tensões quedefinem o caráter teórico-aplicado do próprio Direito: aexperiência e a racionalidade. Apesar do esfacelamento doImpério Romano como centro de poder, a estrutura adminis-trativa sobreviveu e preservou a herança de um Direitocompilado, formalizado, que se incorporou ao “fazer jurídi-co” das estruturas de poder do rei e da Igreja.

Contudo, este “Direito oficial” conviveu com a expe-riência jurídica de costumes que variaram de lugar paralugar, com um importante papel na definição da identidade deum dado grupo social. O advento do racionalismo e logodepois os antecedentes do Iluminismo trariam a discussão dacriação do Direito, a escolha dos costumes que seriam“formalizados”, para o cerne das profundas mudançassociais e políticas do século XVIII.

No momento da passagem do Direito até então locale sem maiores pretensões de abstração para um Direitoracional, definiu o grau das discussões sobre o modelo decodificação que expressou as ideologias prevalentes, comobem salientou Tarello. Vale dizer: expressou de algum modoteses do voluntarismo, psicologismo (vontade do legisla-dor), imperativismo, descritivismo, sistematicismo,conceitualismo.

Independentemente dos embates filosóficos sobre otema, aquele momento de passagem registrou o início daproeminência da figura do legislador, do papel simbólico dalegislação codificada como a obra de uma nação.

O racionalismo do século XVIII culminou tambémpor definir uma outra tensão, “o Direito velho” X o Direito

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novo, que evidenciou os problemas advindos de umacriação voluntarista do Direito ao desconsiderar oelemento histórico.

Por outro lado, a independência do texto da lei,diante da vontade (funcional, vale a pena lembrar) dolegislador, justificou o início do mito da lei desconectadado seu contexto e das outras fontes do Direito. Foinesse terreno fértil que a interpretação literal da lei e abusca pela vontade do legislador se configuraram, maistarde, no mote da Escola da Exegese, após a edição doCódigo de Napoleão.

Assim, a importância da lei no quadro da conso-lidação de um Estado de Direito materialmente demo-crático pode ser verificada na elevação da funçãolegislativa como a mais proeminente entre as trêsfunções ou “poderes” no contexto iluminista e pós-Revolução Francesa.

No antigo regime, a jurisdição ocupava o postode destaque, não obstante a negativa de imparcialidadeem um sistema em que o rei escolhia os magistrados ees tava ac ima de qua lquer con t ro le po l í t i conormativamente regulado.

Com o advento de um parâmetro racional para soluçãode conflitos expresso na lei (e em sua supremacia) que, porsua vez, justificava/legitimava o exercício das funções deadministração da coisa pública e da jurisdição acha-se consa-grado o caráter fundamental, simbólico e transformador dalei.

Em torno do Código de Napoleão, foi expressaa identidade da cultura e do pensamento do povofrancês, ainda que fossem os costumes de Paris osnorteadores dos modelos jurídicos do referido diplo-ma. Um código destinado a todos os franceses quetrazia conceitos jurídicos articulados sob a forma deum sistema de normas.

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A força simbólica de uma lei destinada a todos osnacionais demonstrou o papel agregador (e por vezesinstrumental da lei) da legislação que definiu, de modoclaro, direitos, faculdades, obrigações e deveres, per-mitindo o planejamento de ações, à medida que asexpectativas acerca das conseqüências pela ação/omis-são se achavam definidas previamente e se dirigiam atodos, sem distinção.

A preocupação com o respeito pela vontade populartambém se expressou pelo culto exacerbado ao texto legal,visto como algo destacado da realidade social cujo sentido eraintocável pela atividade hermenêutica. Como já foi menciona-do, isso responde, na história do pensamento jurídico, pelagrande influência exercida pela Escola da Exegese, quepropugnava uma interpretação literal aliada à busca pelavontade do legislador. É interessante verificar que o grandeartífice por detrás do “legislador” do Código Civil francês foiexatamente o executivo, a vontade manifesta de Napoleão.

Os ecos daquele modo de conceber o Direitodialogaram não só com outras culturas jurídicas euro-péias que acabaram provocando um movimento deracionalização da produção, que, naquele momento, seexpressou pela onda da codificação civil e penal.

Todas essas dicotomias encontraram um campode ampla interação na atividade legislativa (Legislativoe Administração Pública) projetada legisticamente. De-vem ser mencionadas ainda algumas relevantes contri-buições da doutrina em matéria de Legística.

A primeira delas foi esboçada por Filangieri nofim do século XVIII, quando sustentou a criação dafigura do “censor da lei,” encarregado de remediar amultiplicidade de leis e de adaptá-las às mudanças, e daintrodução da avaliação legislativa como momento-chave do desenvolvimento da formação e da entrada emvigor das leis. Talvez os ecos desse ideário tenham encon-trado ressonância na atuação das Comissões de Direito, ou

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“Law Comission”, presentes nos países da common law eque atuam na triangulação comunicativa entre Ministério daJustiça/Governo, Parlamento e sociedade civil.

A outra provém de Bentham, com as suas obrasclássicas: Normografia ou arte de fazer Direito e Prin-cípios de Moral e Legislação, já no século XIX , cujatônica foi a racionalização do conteúdo da legislação,com a utilização da estatística como um dos meios paraa realização do princípio da utilidade (precursor daavaliação prospectiva, análise custo-benefício e legisla-ções experimentais).

Em que pese o valor dos antecedentes históricosno pensamento jurídico sobre a matéria, é de Peter Nolla grande obra de referência que abriu as vertentes deinvestigação sobre as quais se debruça a doutrina hodierna.Datada de 1973, a Gesetzgebungslehre sistematizou co-nhecimentos e metodologias que podem ser postas aserviço da projetação no momento da formação dalegislação (compreendida como ato geral emanado doParlamento e da administração).

IV Planejamento legislativo no quadro da

racionalização da gestão pública

Se no fim do século XIX e no início do século XX acodificação acabou por expressar formalmente as fontes doDireito aceitas na civil law, ou família franco-germânica, poroutro lado, a pressão por um Direito formalizado provenientedos países da common law (que, curiosamente, foram legatá-rios do sentido romano de produção do Direito por meio deuma indução via judiciário) acabou por levar às instânciaslegiferantes uma preocupação com a linguagem, de modo agarantir uma idoneidade, diria radical, com a representaçãoinicial do conteúdo da lei, expressão do surgimento do Direito,tal como ocorre na síntese operada via precedente judicial.

Essas concepções de mundo, formas de raciocinare conceber o Direito, interagiram no pós-guerra com um

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contexto que colocou em xeque o culto à lei como funda-mento último da democracia. Simbolicamente, isso podeser ilustrado pela legalidade das condutas do aparato estataldo Reich durante a Segunda Guerra Mundial, que conduziramos judeus e outras minorias ao holocausto.

É nesse contexto que a questão da elaboração doDireito ganhou fôlego além da preocupação meramenteestilística, visto que as representações de mundo dependemde signos lingüísticos para se expressar, diante do papel dalei como veículo de valores, no sentido de os materializar.

Enquanto isso, a então mítica supremacia do legis-lador como figura-chave no exercício do poder começa acompartilhar esse papel com a figura do juiz, fortalecidopelo crescente relevo atribuído às decisões das cortesconstitucionais.

A aplicação do Direito expressa na jurisprudência ouna atividade administrativa determinou um movimento nocírculo normativo que teve como uma das conseqüênciaso aumento do diálogo entre fontes do Direito que não sóaquelas de origem legal, como foi anteriormente dito.

Esse particular evoca um outro tipo de percepçãoacerca do grau de liberdade do legislador na escolha de umconteúdo inicial para uma legislação: a questão dadiscricionariedade da atividade legislativa que guarda umaíntima conexão com a avaliação de impacto, ponto fulcralda Legística material.

Além disso, a discussão teórica e o marco históricoda cidadania necessitam reforçar a capacidade de escolhaentre as condutas legalmente previstas por meio de umaoperação intelectual que pressupõe a compreensão, oconhecimento e o acesso ao conteúdo da lei.

A necessidade de reconstrução de uma Europadevastada colocou em evidência um modelo de administra-ção pública fundado na planificação, imprescindível àconsecução de resultados que fossem duradouros e efici-

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entes em face das políticas públicas que o legitimam. Empaíses de common law, como EUA e Canadá, a necessidadede propiciar um desenvolvimento econômico que facilitas-se a livre concorrência e a satisfação do ideário de umestado de bem-estar social motivaram a adoção do modeloacima referido.

Desse modo, a definição de ações, metas e estratégiasdeterminou a direção da mudança no paradigma da cultura degovernança, em direção ao sentido do planejamento adminis-trativo, econômico e financeiro e não a satisfação de neces-sidades pontuais.

Como é sabido, o planejamento engloba dimensõescomo o diagnóstico/prognóstico de uma situação, além daavaliação das políticas integrantes de um programa degoverno com o fim de corrigir rumos e mensurar o grau decumprimento das ações implementadas para a consecuçãodos objetivos escolhidos. A característica interacional daLegística é evidenciada, entre outros aspectos, pela apro-priação de metodologias de outras áreas como a Adminis-tração e a Economia.

No contexto de um mundo onde as coordenadas deespaço e tempo tensionam o instrumental estatal de apoio àdecisão, a informática foi incorporada no rol de ferramentaspara a melhoria dos processos de documentação e decisãorelativas à legislação (Legimática). Isso significa não apenasa adoção de bancos de dados de atos normativos, mas,sobretudo, aplicações que permitam o acesso ao Direitovigente e a criação de softwares para a redação legislativa. Vê-se no desenvolvimento de sistemas capazes de identificarrevogações implícitas, clara demonstração do potencial dainteligência artificial na área da Legística.

O corolário da necessidade de melhoria no círculonormativo foi o desenvolvimento do processo de racionaliza-ção da produção do Direito. Assim sendo, os juízos acerca daoportunidade, razoabilidade e conveniência do impulso paralegislar foram levados em consideração, ao lado da reconstru-

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ção do cenário jurídico, social, econômico, administrativo(etc.) de incidência da nova legislação.

A Legística fomentou a concepção de instrumentospróprios à devida justificação tanto para a tomada da decisãode legislar quanto para a avaliação de impacto: o uso da checklist, modelização causal e da reconstrução da cadeia de fontes.

Todos esses instrumentos se inserem na pers-pectiva da projetação legislativa. Esta se vale de ferra-mentas de acesso analítico mais direto, como questio-nários que sejam mais discursivos, como o modelodisposto no Decreto 4.176, de 2002 (que, exatamentepor isso, dificulta a sua internalização por parte dosresponsáveis por sua execução e, ao lado da indefiniçãoacerca do rol de atos normativos que deveriam sernecessariamente “avaliados”, responde pelos proble-mas no plano da sua eficácia), ou de rápida checagem,como os modelos canadenses.

A modelização causal resume, em um esquemade uma página, o processo de definição dos objetivos edas possíveis questões a serem enfrentadas pela novalegislação, tendo em vista as variáveis que minimizamou intensificam a situação fática que provoca o impulsopara legislar.

Quanto à reconstrução da cadeia de fontes, trata-se deum instrumento destinado a identificar o Direito vigente arespeito de uma dada matéria ou campo sobre o qual incidiráa nova legislação. É uma representação gráfica composta dequadros ou outro símbolo que evidencia as normas, suahierarquia e as conexões entre elas.

Vale ressaltar que uma boa reconstrução deve ter emmente o sistema normativo como um todo, de modo acontemplar normas que, inclusive, estejam em ordenamentosaparentemente com pouca ou nenhuma relação com o objetoda cadeia em questão e que insiram atos normativos de origemlegal e de origem regulamentar.

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No caso brasileiro, a utilização da reconstruçãoda cadeia de fontes assume singular importância aoconsiderarmos a grande atividade legislativa do Execu-tivo (notadamente o federal), que densifica atosnormativos legais ou decorre do exercício de suacompetência legislativa.

Como percebemos, o fator da legislação planejadaé peça importante na condução de programas, políticase ações governamentais que ambicionem um salto dequalidade na satisfação de demandas sociais e no incre-mento do desenvolvimento econômico.

V Apontamentos sobre algumas tendências equestões candentes

No início dos anos 1970, a preocupação com aefetividade das leis ganhou espaço não só nas discussõesteóricas sobre a legislação, mas também integrou a agendapolítica de países desenvolvidos e com democracias con-solidadas. Várias questões motivaram a perspectiva damelhoria da lei como motor para a consecução de políticaspúblicas; dentre elas, a necessidade de um planejamentolegislativo, a constatação de que o governo cada vez mais“legislava” e que a legislação era o braço da implementaçãode programas. Em termos pragmáticos, isso significouuma atenção à fase “pré-legislativa”: a opção por uma ação“legislativa” deveria considerar os ônus para cidadãos,empresas e administração pública.

Naquele momento, tanto nos países da civil lawcomo nos países da common law, os desafios eram (e são)a quantidade de atos normativos existentes e as dificulda-des na sua interpretação-aplicação.

Devem ser mencionados também o distanciamentoentre a lei e o cidadão, provocado por problemas ligadosà compreensão e ao acesso ao texto; e até mesmo aincerteza acerca do Direito vigente, sobretudo em

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subsis temas normativos complexos (cujos a tosnormativos têm fontes, incidências e origens diversas),tais como o tributário, o financeiro, o consumerista, oprevidenciário, o ambiental, entre outros.

Tais problemas não são exclusivos de países desen-volvidos. O Brasil padece dos mesmos desafios, intensifi-cados pela sua dimensão continental, pelas desigualdades,pelas esferas distintas de produção de normas (local,regional, nacional), e pela atividade legislativa parlamentare do Executivo.

Deve ainda ser mencionado o processo de consoli-dação (anteriormente previsto pela LC 95/98), interrompi-do, cujo fim era a diminuição da quantidade de normas emcirculação. Não houve a previsão de um modelo nem adefinição de matrizes e de um procedimento específico,ou,infelizmente, não foram objeto de uma reflexão que mobi-lizasse os juristas no Brasil ou que originasse uma políticapara a melhoria da qualidade da legislação.

Há mais de duas décadas, progressivamente, umasérie de estudos e medidas introduziu práticas com oescopo de melhorar a qualidade da legislação no mundo. Nadécada de 1980, a Alemanha já desenvolvia instrumentospara avaliar o impacto de novos atos normativos paraotimizar a sua efetividade e identificar seus possíveisobstáculos, custos e efeitos (especificamente um modelode check list, lista azul ou list blu).

A preocupação com a compreensibilidade da le-gislação foi objeto de vários estudos publicados naBélgica, na Holanda e na Áustria. Na mesma época, emPortugal, um curso sobre a “feitura de leis” foi criado edestinado aos servidores públicos que atuavam na elabo-ração de atos normativos2 .

A partir da segunda metade dos anos 1970, guias deRedação Legislativa mais sofisticados e atentos à circula-ção de modelos jurídicos começaram a ser elaborados nosEUA, no Reino Unido e no Canadá. No caso canadense, por

2 O Curso deLegística Compara-da por nós organi-zado por meio doNiepe da Faculdadede Direito da UFMG,que contou com apresença de MartaTavares de Almeida,história viva daLegística em Portu-gal e diretora da Re-vista "Cadernos deCiência da Legisla-ção".

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força do seu bilingüismo e bijuridismo, a idoneidade daredação dirigida a culturas diversas se antecipou ao desafio aser enfrentado alguns anos depois pela União Européia, aodesenvolver técnicas para manter o mesmo teor do comandonormativo em várias línguas diferentes, sobretudo quando omodelo jurídico em questão não fazia parte da cultura jurídicade um dado país.

Na década de 1990, modelos de avaliação legislativa ede controle de qualidade de atos normativos floresceram noExecutivo suíço. No Brasil, era publicado o "Manual deRedação da Presidência da República", coordenado pelo hojeministro do STF Gilmar Mendes, que evidenciou umcompromisso com a simplificação dos atos normativos peloExecutivo federal. Quase dez anos depois, em 1999, veio alume o primeiro decreto que densificou a LC/98 e normassobre Legística formal.

A busca pela eficiência da legislação e de sua concep-ção também como instrumental para o desenvolvimentoeconômico-social encontraram um relevante marco com asprimeiras recomendações da OCDE, que acabaram por influ-enciar vários países.

É interessante notar como a circulação de modelosjurídicos, antes oriunda do exercício de poder de um Estado,ou da sua experiência social (mediada ou não pelo aparatoestatal), cede lugar a proposições ou recomendações(guidelines) elaboradas por organismos multilaterais ougrupos de trabalho no seio de organismos governamentais,como os conhecidos Improving the quality of Laws andRegulations: Economic, Legal and Managerial Techniques(OCDE), Relatório Mandelkern, Programa Better Regulation(EU), entre outros. É interessante ressaltar que um dosmotores para a edição das primeiras recomendações daOCDE foi nada mais nada menos do que a necessidade deadaptação da legislação dos países do Leste Europeu quepretendiam ingressar na União Européia e que possuíamordenamentos com baixo potencial de legitimidade e formaçãopouco democrática.

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Normas foram editadas para conter a proliferaçãolegislativa por parte da então Comunidade Européia. A Itáliaintroduziu no regimento da Câmara dos Deputados um examepara a qualidade dos projetos de lei (e dos atos normativos doExecutivo:decreti-leggi). Por sua vez, o Reino Unido desen-volveu técnicas refinadas de análise de impacto da legislação(IA-Impact Assessment).

Após dez anos de atraso, foi obedecido o comandoconstitucional e publicada a LC 95/98 (elaboração, redação,alteração e consolidação de atos normativos), com detalhestristemente prosaicos: seu próprio texto contradiz seus fins,e artigos que fixaram prazo para a consolidação foramrevogados. O elaborado Decreto 4.176, de 2002, previu uminstrumento para a avaliação do impacto dos atos normativosque padece de problemas de eficácia, apesar de o Executivoser pródigo na sua atividade legislativa, o que aumenta o cipoalnormativo no qual estamos todos imersos. Essa situaçãoenseja uma reflexão sobre o modelo de avaliação legislativamais adequado às necessidades do País.

A baixa qualidade da legislação repercute no PIB, comomostram os estudos europeus. Mas há outras conseqüênciasigualmente danosas e graves: o ativismo judicial intenso, a faltade confiança na eficácia das leis (o que responde em parte pelafuga de investimentos do Brasil), a descrença nas instituições,o sentimento de injustiça.

Como já foi mencionado, alguns dos problemas maisevidentes da produção do Direito residem no impacto dalegislação nova sobre o sistema – leia-se a dinâmica do diálogoentre a legislação e as demais fontes do Direito.

Apesar da existência de cláusula de revogação na LC95/98, a reconstrução da cadeia de fontes a sofrer alteraçõespela nova legislação, na prática, não leva em consideração alegislação inferior, ou seja, o resultado da atividade dedensificação normativa operada pela Administração Pública.

A atividade legislativa da Administração Pública é umfato, é a expressão da necessidade de criação de condições

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para a execução e implementação da lei. Todavia, em funçãoda ausência de um procedimento de legislação regulado, o quese vê é um emaranhado de normas implementadas, quedisciplinam domínios diversos e colocam em xeque acompletude do sistema.

A evidência do tamanho do impacto da legislação novasobre o ordenamento produzido pela Administração Públicanão é uma prática consolidada; aliás, não é sequer uma prática,posto que é difícil encontrar um ato que enumere quais outrosforam revogados. No máximo aparecem leis que disciplinamo mesmo domínio. A autoridade administrativa responsávelpela aplicação/execução da cláusula de revogação, quandoelabora um ato normativo, desconhece a extensão do dispo-sitivo legal, bem como instrumentos para incluir a legislaçãoinferior e mensurar o impacto do novo ato.

As conseqüências de tal situação são bem conhecidas.Ao lado do incremento da inconsistência do ordenamento –leia-se a densificação não coordenada (e em alguns casosinexistente, o que provoca problemas no plano da eficáciatécnica) – a presença de contradições entre os atos normativose as possíveis revogações implícitas respondem peladesconfortável dúvida acerca do Direito vigente.

Evidentemente esses problemas poderiam serminimizados se a cultura do planejamento legislativo fosseinternalizada pela Administração Pública. O mesmo pode seafirmar em relação à melhoria na qualidade da legislação nafunção legislativa. Entre outros fatores, o problema está nofato de que os regimentos parlamentares sequer introduzirammodificações importantes, em decorrência da LC/98, quepropiciassem algum avanço expressivo na qualidade dostextos e na otimização da publicidade ou da coerência dosistema, sem mencionar o desconhecimento de práticas deavaliação legislativa.

Como foi mencionado, no caso da Itália, o regimentoda Câmara dos Deputados criou uma comissão permanente(Artigo 16 bis, 4) cujo fim é a emissão de pareceres sobre a

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qualidade dos textos legislativos no que se refere à suahomogeneidade, simplicidade, clareza e propriedade, além dasua eficácia para a simplificação e o reordenamento dalegislação vigente.

Outros exemplos de modificação que atingiram oParlamento e evidenciam um necessário diálogo entreLegislativo e Executivo (talvez mais favorecido noparlamentarismo) que podemos mencionar são a elaboraçãode um relatório de impacto (IA-Impact Assessment) no ReinoUnido, o desenvolvimento de metodologias de avaliaçãolegislativa na Suíça e os modelos de construção normativa emmais de uma língua (com o desenvolvimento de técnicas paragarantia de igualdade de teor e de uma construção compartilhadaem face da inexistência de alguma representação jurídicaequivalente em culturas jurídicas diversas), por exemplo, noCanadá (que possui em seus quadros de servidores públicosos jurilingüistas), na Suíça e na UE.

Como mencionamos, o Decreto 4.176, de 2002,densificou as regras e princípios da LC 95/98 ao introduzir,entre outras questões de Legística formal, um instrumentode avaliação de impacto, uma check list bastante analítica(em comparação com outras, como a list blu alemã e omodelo canadense, por exemplo), cujo fim é realizar umdiagnóstico da situação-problema e um prognóstico emrelação às variáveis de impacto.

Todavia, a eficácia dessa parte do dispositivo é umaoutra história. Além do despreparo do responsável pela suaexecução, devido ao desconhecimento tanto do termo Legísticaquanto das suas metodologias, a check list pode estar fadadaa concretizar o oposto do almejado pela Legística, ou seja, sermais uma conduta não internalizada pela Administração Públi-ca. A check list é um instrumento detalhado, que exige umainteração entre profissionais diversos e a definição clara dassituações em que deve ser realizada – com uma rotina e sistemade recolhimento de informações e prazos bem definidos –, paraque a avaliação tenha de fato condições de ser efetivada.

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No entanto, existe ainda uma questão mais grave doque a ineficácia desse dispositivo, posto que atinge o reconhe-cimento legal da idoneidade dos atos normativos produzidosa partir da entrada em vigor do decreto.

Para que um ato oriundo do Estado seja reconhecidocomo tal e não tenha a sua imperatividade contestada, a Teoriado Direito construiu um aparato certificador por meio daobediência ao item de formação de atos normativos. Seria umaespécie de substituto racionalizado do “selo real”, cuja funçãoé identificar a origem do comando: a validade.

O anexo I do decreto, que, por sua vez, contém acheck list, incluiu mais uma etapa no procedimento deredação e elaboração dos atos normativos do Executivofederal. Duas conseqüências decorrem desse fato: a primei-ra, situada no plano dos sujeitos aos quais os comandos dodecreto são destinados e que não fazem dele uma prática noprocesso de elaboração e redação; a segunda, no plano dasnulidades, visto que a avaliação de impacto integra o proce-dimento de formação e de tomada de decisão sobre oconteúdo dos atos normativos de competência da Adminis-tração Pública federal, que deve, por sua vez, consagrar oprincípio da publicidade dos seus atos, inclusive nos proce-dimentos de elaboração normativa.

Vê-se que essa problemática deve ser analisadatambém à luz da realidade, que demonstra um déficit nocumprimento do princípio da publicidade no que tange aosprocessos de elaboração de atos normativos pelo Executi-vo, ao contrário do procedimento legislativo, que pode sersocialmente controlado, permitindo iniciativas deinterlocução entre Legislativo e sociedade.

No Canadá, por exemplo, os processos são públicos.Há um momento em que os possíveis atingidos (aliás oconceito de “interessado” não é estranho ao DireitoAdministrativo no Brasil, que dele tratou na Lei de ProcedimentoAdministrativo) pela futura legislação podem a ela ter acesso

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A QUALIDADE DA LEI NO QUADRO DA OTIMIZAÇÃO

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e expressar suas posições, sendo protegidos somente osdados sensíveis (privacy).

Como verificamos, são muitas as possibilidades eos desafios que a atuação da Legística oferece à constru-ção de uma cultura de planejamento legislativo, mas,acima de tudo, ela pode colaborar no processo de restau-ração da confiança na efetividade dos atos normativos ena socialização do conhecimento do Direito e na consoli-dação democrática. Na dimensão simbólica dos proces-sos de produção do Direito, a confiança no aparato estatal,especificamente a aproximação entre legislador e cida-dão, fomenta a crença de que o Direito possa ser consi-derado, e não ignorado. Na dimensão da atuação doEstado visando a um crescimento econômico-social noquadro de políticas públicas para o desenvolvimento,pensar na qualidade da lei é garantir um resultado dura-douro em longo prazo. O povo brasileiro agradece.

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 35-58, jan./dez. 2007

A ELABORAÇÃO RACIONAL DODIREITO PRIVADO: DA

CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA1

ALEXANDRE FLÜCKIGER EJEAN-DANIEL DELLEY2

I. O cuidado com a qualidade do Direito

scritos em uma linguagem simples, precisa,com pontuação cuidadosa, divididas em alí-neas curtas e pouco numerosas, seus artigossão fáceis de ler e compreender, mesmo porpessoas não versadas na ciência do Direito.Clareza, precisão, concisão, medida, são es-sas as qualidades que o distinguem e fazemdele um modelo que jamais foi ultrapassado.[...] Infelizmente essas belas qualidades donosso Código estão em vias de desaparecer,e isso por culpa do legislador moderno. Nosúltimos 20 anos, o Parlamento votou um

grande número de leis tratando do Direito Civil e, maisespecialmente, do Direito de Família, as quais ele incorporouaos próprios textos do Código, e essas leis, votadas sem umpreparo suficiente, são tão imperfeitas que retiram a belezadesse monumento legislativo e, como acréscimos desajeita-dos feitos sem preocupação com o estilo de um edifício,destroem sua beleza e harmonia3.

3 CAPITANT, Henri.Comment on fait leslois aujourd’hui ,Revue politique etparlementaire , v.91, 1917, p. 305.

2 Professores daUniversidade deGenebra

1 Tradução: PauloRoberto Magalhães.Revisão da tradu-ção: Maria Lina Soa-res Souza.

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Eis o que escrevia, em 1917, Henri Capitant a propósitodo Código Civil francês de 1804, cujo sucesso extraordinárioele atribuía, “em boa parte, ao cuidado que seus autorestiveram com sua redação”4 .

Tais argumentos não poderiam ser sustentadoshoje em dia?

Por um lado, a obra-prima do Direito Privado suíço,o Código Civil, foi desde muito cedo elogiado por suasqualidades de redação. Assim, Raymond Saleilles escreviaem 1904, que, “para descobrir fórmulas semelhantes aalgumas do Código Civil francês, é preciso chegar aoanteprojeto do Código Civil suíço, essa obra admirável doprofessor, Senhor Huber”5 . Por outro lado, são muitonumerosos hoje em dia os autores que apontam um declínioda lei contemporânea: uma “patologia da lei”6 , uma “criseda lei”7 , uma “lei doente”8 .

Entretanto, não é muito fácil sintetizar a crítica, porqueela incide sobre pontos de natureza tão diferentes quanto aininteligibilidade e obscuridade das normas9 , a proliferação ouinflação legislativa10 , ou ainda, a ineficiência ou ineficácia daação legislativa, para citar apenas os mais destacados11 .

A Legística desenvolveu-se nesse contexto, com oideal de melhor legislar.

A. A Legística

1. A Legística material e formal

Pode-se definir a Legística como uma metodologia daconcepção da ação pública e de sua tradução normativa, queprocura determinar as melhores modalidades de elaboração,de redação, de edição e de aplicação da norma12 . Visandoracionalizar a produção normativa, a Legística se apóia nasciências sociais para apreender a realidade e nas ciências dacomunicação e da linguagem para formular as normas13 .

4 CAPITANT 1917(nota 1), p. 305.5 SALEILLES,Raymond, "Le CodeCivil et la méthodehistorique", Le CodeCivil 1804-1904 : li-vre du centenaire,Paris, 1904, t. 1er, p.95 ss, 103. O CódigoCivil suíço também re-cebeu, desde queveio a público, algu-mas críticas voltadasespecialmente para aconcisão excessivaque deixaria uma li-berdade muito gran-de para a doutrina e ajurisprudência. Oselogios não foram,pois, unâni-m e s ( G É N Y ,François, "Latechnique législativedans la codificationcivile moderne", LeCode Civil 1804-1904,livre du centenaire,Paris, 1904, p. 989 ss,1034 ss. [citado emGMÜR, Rudolf, DasS c h w e i z e r i s c h eZivi lgesetzbuch :verglichen mit demd e u t s c h e nb ü r g e r l i c h e nGesetzbuch, Zurich,1965, p. 42]).6 MATHIEU, Bertrand,La loi, 2e éd., Paris,2004, p. 71 ss.7 VIANDIER, Alain"La crise de latechnique légis-lative", Droits¸ nº 4,1986, que ressaltatambém a decadên-cia da lei (p. 75) (cita-

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

O desenvolvimento contemporâneo da Legística acom-panha o do Estado intervencionista, o Estado das grandespolíticas públicas, que ambiciona, se não revolucionar asociedade, pelo menos influenciar o seu curso, quer seja emmatéria econômica (estimular o crescimento, domesticar ainflação), social (combater as desigualdades, evitar a exclu-são) ou em matéria de formação (promover uma partedeterminada de uma faixa de idade a um grau explícito deformação) principalmente.

Compreende-se facilmente que tais ambições implicamuma abordagem racional da ação pública: um conhecimentopreciso do terreno onde se dará a intervenção, da sua lógicade funcionamento; um diagnóstico explícito da situação quecoloque em evidência não somente o fim pretendido, mastambém os objetivos que o concretizam; a elaboração de umaestratégia eficaz, sua avaliação tanto prospectiva quantoretrospectiva e, sendo o caso, as correções que se impõem.

Distingue-se a Legística material, voltada para oconteúdo da matéria a ser regulamentada e a maneira deconceber a ação, da Legística formal, voltada para a formu-lação normativa da intervenção14 .

2. As referências históricas

Sem remontar à Antigüidade – Platão traz já à baila anecessidade de revisar regularmente as leis para adaptá-las aoseu tempo15 –, podemos lembrar que os autores do séculoXVIII se interessavam – tanto ou mais – na formação da leiquanto na sua aplicação16 . Assim, a preocupação maior deJeremy Bentham foi desenvolver uma teoria coerente dalegislação17 . Para conseguir isso, Jeremy Bentham enfatiza orecurso à codificação, concebida como corpo completo dalegislação elaborada segundo certos princípios18 . Ele interes-sa-se de perto pela elaboração das leis e confecciona a primeiraobra de Legística formal, com o título “Nomography of the artof inditing Laws”19 . Busca criar uma escola internacional delegislação, reagrupando os juristas do mundo todo a fim deredigir os textos de lei com base no modelo do código integral

do em DUPRAT, Jean-Pierre, "Genèse etdéveloppement de lalégistique". In:DRAGO, Roland(dir.), La confectionde la loi, Paris, 2005,p. 11).8 LASSERRE-KIESOW, Valérie,Comment faire leslois? L’éternelretour d’un défi. In:DRAGO, Roland(dir.), La confectionde la loi, Paris, 2005,p. 209.9 Sobre ainteligibilidade, verabaixo ch.0.10 Chateaubriand jáescrevia, em 1816,déjà que um víciocapital de nossa le-gislação são os inu-meráveis artigos denossos projetos delei: eles levam a dis-cussões interminá-veis e emendas semfim (CHATEAU-BRIAND [DE],François-René, De lamonarchie selon lacharte, Imprimerienationale, 1993, t. 2,p. 458, citado emMATHIEU, 2004 [cit.nota 4], p. 76). Parauma perspectiva his-tórica mais geral so-bre o tema da infla-ção legislativa, verMERTENS, Bernd,G e s e t z g e -bungskunst imZeitalter derK o d i f i k a t i o n e n ,Tübingen, 2004, p. 17

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(pannomium)20 . Mesmo que sua construção tenha sido maisempírica, os estudos de Legística material atuais, centradosno imperativo da eficácia, ligam-se a essa lógica benthamiana.

É preciso mencionar ainda a contribuição de GaetanoFilangieri21 . Esse conde napolitano, autor de uma monumen-tal “Science de la législaton”22 , teorizou sobre a avaliaçãolegislativa, caminho crucial para a racionalização do processolegislativo. Ele imagina um quarto poder, o “censor das leis”,que deve, ao mesmo tempo, cuidar dos efeitos nefastos damultiplicidade das leis e de sua adaptação às novascircunstâncias.

Consagrado à guarda das leis, instruído sobre o estadoda nação, atento distinguir e identificar todas ascausas da desordem, é ele quem percebe primeiro oserros da legislação; e, uma vez conhecida a naturezado mal, saberia ele empregar os meios mais adequadospara destruí-lo.23

Dois movimentos vão, todavia, contribuir para enfra-quecer essas tentativas de elaboração de uma verdadeiraciência da legislação. Em primeiro lugar, a concepção liberaldo Estado, que se impõe no século XIX, restringe a esferade atividade pública exclusivamente às tarefas de polícia.Além disso, o amor imoderado das leis manifestado pelasluzes deságua, após a revolução, na sua sacralização. Paragarantir a objetividade do Direito, assegurar-lhe o estatuto deciência, o positivismo jurídico postula dissociar o Direitodos valores e se concentra nos métodos tendentes a umaaplicação correta das leis, em detrimento dos que deveriampresidir a sua elaboração24.

No entanto, pode-se reencontrar até nossos dias essecuidado de levar em conta a realidade social – esse “material”para retormarmos a expressão de Eugen Huber25 –, presentecomo um fio condutor na teoria, quando não na práticalegislativa26 . Assim, no século XIX, a teoria alemã da legislaçãodestaca a relação estreita que deve existir entre o ato de legislare o estado da situação à qual vai se aplicar a lei. A necessidade

et 406 ss. Para umadiscussão mais re-cente do assunto, verMORAND, Charles-Albert, "Lacroissance norma-tive: comment faireface à une masse dedroit considérable?",Schweizer ischesZentralblatt fürS t a a t s - u n dGemeindeverwaltung1986, nº 8. Para umabibliografia atual, verDRAGO, Roland(dir.), La confectionde la loi, Paris, 2005,p. 238.11 Para uma lista maisdetalhada, ver, porexemplo, MATHIEU,2004 (nota 4), p. 75ss: proliferação dasleis, leis instáveis,efêmeras e muitotécnicas, leis ilegí-veis, leis "fracamen-te parlamentares"(ou seja, que atribu-em um papel muitoimportante ao go-verno no procedi-mento legislativo),presença na lei dedisposições regula-mentares ou norma-tivas, concorrênciade outras normassupra ou infra-es-tatais, semi-públi-cas ou privadas,leis inaplicáveis.12 CHEVALLIER,Jacques, L’évaluationlégislative: un enjeupolitique. In: DELCAMP,Alain et al., Contrôleparle-mentaire et

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

de submeter o Direito em vigor a revisões regulares paraadaptá-lo às mudanças sociais, já expressa por Platão, éreconhecida e justifica a avaliação legislativa27 .

No começo do século XX, Ernst Zitelmann lembra asdiferentes etapas de um procedimento metódico que deve serseguido pelo legislador28 .

Zunächst nun die inhaltliche Seite: in welcher Weisefindet der Gesetzgeber den Inhalt der Gesetze Da siehtman sofort; alle Gesetzgebung gebraucht Befehle undVerbote, um damit auf das Verhalten der Menschennach bestimmten Richtung hin einzuwirken, diegesetzgeberische Arbeit ist also Zwecklätigkeit; sie setztsich bestimmte Zwecke und wahlt die Mittel zu ihrerErriechung, in nichts anderem kann sie bestehen, wiedenn auch die inhaltliche Kritik des Gesetzes notwendignach diesen beiden Seiten hin erfolgen muss.

Primeiramente, o lado do conteúdo: a maneira pelaqual o legislador encontra o conteúdo da lei. Isso se vêdesde logo, porque toda legislação necessita de ordense proibições por meio das quais o comportamento doshomens é orientado para uma determinada direção. Otrabalho legiferante tem também objetividade,estabelece objetivos determinados e escolhe os meiospara alcançá-los. Ele não se constitui em nada mais doque isso, e a crítica do conteúdo da lei deve,necessariamente, ser feita sobre ambos os lados.

Um caminho que lembra Jean-François Perrin em 1977:inicialmente, conhecer as opiniões e as práticas, o que permite pôrem evidência o possível; depois, a partir do possível, construir oideal, fruto de uma colaboração pluri e transdisciplinar29 .

B. A elaboração da lei: uma arte ou uma ciência?

Não é raro ouvir-se dizer que a elaboração da leidependeria mais da arte que da ciência30. Não haveria lugar,nesse caso, apenas para as qualidades atribuídas ordinaria-mente aos artistas: instinto, gosto, gênio, emoção? O desen-

évaluation, Paris, 1995,p. 15; MORAND,C h a r l e s - A l b e r t ,Eléments de légistiqueformelle et matérielle.In: MORAND, Charles-Albert (dir.), Légistiqueformelle et matérielle –Formal and MaterialLegistic, Pressesuniversitaires d’Aix-Marseille, Aix-en-Provence, 1999, p.18 ss.Ver tambémWINTGENS, Luc, Thejustification of legis-lation: an introduction tolegisprudence, a newtheory of legislation,thèse, Bruxelles, 2005,que prefere usar a no-ção de "legisprudência".13 MORAND, 1999(nota 10), p. 28 ss.14 MORAND 1999(note 10), p. 17 s.15 MERTENS 2004(nota 8), p. 275.16 A obra deMERTENS, 2004(nota 8) é consagra-da exatamente aosautores do século XIIIao século XX. Vertambém DUPRAT,2005 (nota 5).17 OST, François,Codification ettemporalité dans lapensée de J.Bentham . In :GÉRARD, Philippe/OST, François/KERCHOVE (VANDE), Michel (éd.),Actualité de lapensée de JeremyBentham, Bruxelles

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volvimento metódico e racional da legislação, como o propõea Legística, é concebível, realista?

François Gény escrevia, em 1904, a propósito doDireito Privado francês, que:

Trata-se, antes de tudo, de saber se é mesmo necessário,até mesmo útil, que o legislador tome consciência deum método, e se resolva a seguir fielmente as suasdiretrizes, ou se não seria melhor que ele cedesse, purae simplesmente, às vagas sugestões do instinto ou àsorientações indeterminadas da tradição para inspirar-lhe os procedimentos mais adequados ao seu objetivo.E o exemplo do Código Napoleônico pode suscitardúvidas sobre isso, pois seus redatores, uma vezinfluenciados pelas preocupações de uma técnicaverdadeiramente séria, souberam achar neles mesmose na apropriação de seu passado todos os elementosindispensáveis à viabilidade e ao sucesso de sua obra.Em todo o caso, não creio que exista aí fundamentopara uma objeção significativa contra a superioridadede uma técnica refletida31.

É verdade que François Gény tinha em foco a parte daLegística que nós qualificamos de formal:

Esta (a técnica legislativa) apresenta um 'lado substancialou interno', de um valor bem mais fundamental, porquediz respeito, independentemente do modo como estáconstituído e funciona seu órgão criador, ao próprioconteúdo da obra legislativa. Deixando de lado o fundopropriamente dito dessa obra, que a ciência (sociologia),dirigida por um postulado moral, permite só apreciar,trata-se de saber como, na forma, ela deverá serconcebida e realizada para abranger tão plenamente edominar tão eficazmente quanto possível as relaçõesjurídicas, merecedoras de regulamentação legal, emsuma, para constituir uma lei ou um código, que, doponto de vista da consecução do Direito Positivo,responda às exigências da vida prática32 .

1987, p. 163;DUPRAT, 2005 (nota5), p. 16 ss.18 BENTHAM, Jeremy,An Introduction to thePrinciples of Moralsand Legislation, 1a.ed. em 1789 (e revisãopelo autor em 1823).19 BENTHAM,Jeremy, "Nomogra-phie or the art ofinditing laws", inBOWRING, John(éd.), The Works ofJeremy Bentham,vol. 3, Londres,1838-1843. VerMORAND, 1999(nota 10), p. 24.20 OST 1987 (nota15), p. 177 s.21 MORAND, 1999(nota 10), p. 24.22 FILANGIERI,Gaetano, La scienzadella legislazione,Milão (1ª ediçãomilanesa), 1784.23 FILANGIERI,Gaetano, Œuvres, v.1, Paris, 1822, p. 89.24 NOLL, Peter,Gesetzgebungslehre,Reinbek beiHamburg, 1973, p. 18ss.; LUHMANN,Niklas, Öffentlich-r e c h t l i c h eE n t s c h ä d i g u n gr e c h t s p o l i t i s c hbetrachtet, Berlin1965, p. 11;MORAND, 1999(nota 10), p. 25 s.25 HUBER, Eugen, Rechtund Rechtsver-wirklichung. Problemeder Gesetzgebung

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

Mostraremos que essa conclusão deve ser estendidaigualmente à Legística material.

II. A codificação como procedimento legístico?

A. O código como instrumento da

racionalização legislativa

No Direito Privado, a codificação é, tradicionalmen-te, considerada como instrumento privilegiado da raciona-lização legislativa33:

Desde os primórdios da época moderna, afirma-seuma vontade de simplificação e de clareza do Direito,como se a edificação e o desenvolvimento de umEstado em vias de secularização comportasse comocondição para a sua realização uma organizaçãonormativa racional. Para isso, o procedimento dacodificação apareceu rapidamente como uma condiçãonecessária a satisfazer.

Os objetivos visados pela codificação – a saber,regulamentar tão completamente quanto possível umamatéria, a fim de evitar a criação de lacunas assegurando asegurança e a acessibilidade do Direito, preocupando-secom a estabilidade e a permanência34 – obrigam evidente-mente os seus autores a redigir uma legislação mais refletidae acabada, e, em princípio, de melhor qualidade. Para JeanCarbonnier, o método legislativo do Código Civil é o darecusa em legislar por “paixão”:

O Código Civil, justamente, tinha encerrado, na França,o tempo das paixões legislativas. Poderemos talvezpensar que era um simples efeito mecânico: porqueestava inebriado com os textos, o país não tinha maissede; todas as leis pareciam feitas e bem-feitas, e, pormuito tempo, era possível dar folga à legislação. Masisso seria parar na superfície do acontecimento de1804: antes de ser uma produção saturada de regras,a codificação tinha sido a escolha de um método

und derRechtsphilosophie,Bâle, 1925, p. 281.26 MERTENS, 2004(nota 8), p. 42 ss.27 MERTENS, 2004(nota 8), p. 274 ss.28 ZITELMANN, Ernst,Die Kunst derG e s e t z g e b u n g ,Dresde, 1904, p. 7.29 PERRIN, Jean-François, Utilité et li-mites de la sociologiejuridique au servicede la législation dedroit privé. Mélangesen l’honneur de HenriDeschenaux, Fribourg1977, p. 76 s.30 NOLL, 1973 (nota22), p. 14 ; MERTENS(nota 8), p. 3 s.31 GÉNY, François, Latechnique législativedans la codificationcivile moderne, LeCode Civil 1804-1904,livre du centenaire,Paris, 1904, p. 987 ss(1019).32 GÉNY, 1904 (nota29), p. 987 ss (995 emrelação com 1019).33 DUPRAT, 2005(nota 5), p. 13.34 DUNAND, Jean-Philippe,Entre tradition et innovation :analyse historique duconcept de code. In:WINIGER, Bénédict /DUNAND, Jean-Philippe(éd.), Le Code civil françaisdans le droit européen:actes du colloque sur lebicentenaire du Code civilfrançais, Bruxelles 2005, p.10 ss.

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legislativo, e essa escolha implicava a exclusão doslegisladores que legislavam por paixão35.

O codificador, entretanto, tem que se prevenir contradois riscos: o de se abstrair das realidades sociais e políticas,privilegiando a perspectiva intelectual de sua obra, e aquele,bem conhecido, desde a crítica de Friedrich Carl von Savignyà codificação do Direito alemão36, de imobilizar e esclerosar oDireito. Enquanto o primeiro obstáculo só pode ser superadopelos métodos da Legística material (análise da realidadesocial com o aporte das ciências humanas), o segundo foisuperado, em um primeiro momento, pelos procedimentos daLegística formal, que, por mais engenhosos que fossem (emparticular redação de normas abertas para dar lugar à evoluçãoda jurisprudência e adoção de leis especiais para as matériasnovas), mostraram seus limites no contexto de um movimen-to que alguns qualificaram de decodificação37.

B. A decodificação progressiva do Direito

Privado: uma necessidade acrescida de Legística

1. A codificação: uma lógica de conservação

A codificação, em seu espírito, obedece essencialmen-te a uma lógica da conservação38 . Em seu discurso preliminardo Códigio Civil francês, Portalis notava também

que é preciso ser comedido quanto às novidades emmatéria de legislação, porque se é possível, em umainstituição nova, avaliar as vantagens que a teoria nosoferece, não é possível conhecer todos os inconvenientesque só a prática pode mostrar39.

Huber, a propósito do Código Civil suíço, afirmavatambém que “em uma codificação vale mais conservar queinovar”40 , muito embora seu projeto tenha inspirado numero-sas inovações cuja contribuição ele preferiu minimizar41.

Uma vez codificada, a matéria tende a se petrificar/imobilizar. Uma tal constatação não é nova: “Assim, muito

35 CARBONNIER, Jean,Essais sur les lois?,Paris, 1979, p. 219.

37 Ref. cit. In: KRAMER,Ernest, NationalePrivatrechts-kodifika-tionen, internationalePrivatrechts-vereinhei-tlichung und Priva-trecht-svergleichungzu Beginn des neuenJahrhundert, Revue dedroit suisse, 2005 I p.423 s., que prefere falarde recodificação e deuma renovação dacodificação (p. 424 s.).38 DUNAND, 2005(nota 32), p. 32 ss.39 Ref. cit. In:DUNAND, 2005 (nota32), p. 36, nota 104.40 HUBER, Eugène, Codecivil suisse: exposé desmotifs, Berne 1901, p.5. DUNAND, Jean-Philippe, Le code civil deEugen Huber: une loiconçue dans l’esprit dela démocratie?. In:TSCHANNEN, Pierre(éd.), La démocratie

36 SAVIGNY (VON),Friedrich Carl, VomBeruf unserer Zeitfür Gesetzgebungund Rechtswissen-schaft, Heidelberg1814, p. 71 s. et 81 s.

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

depressa, cava-se um fosso entre o conteúdo do código(Napoleônico) e a situação real do país”42.

Já em 1837, um professor da Faculdade de Direito deParis podia escrever que

a nova sociedade começa a experimentar algumdesconforto e a não se sentir mais completamente àvontade nos limites impostos por nossos códigos... OCódigo (Civil), a princípio imagem fiel da sociedademodernizada, perde todos os dias um pouco dessa fielsemelhança43.

Um século mais tarde, em 1948, Julliot de la Morandièrenotava que

o Código (Civil francês) está sempre presente; em seufrontispício está para sempre escrito “Código Civil”.Na realidade, ele é como esses velhos palácios que, nobairro de Saint-Germain, têm, sempre, a aparência desede de um ministério... Mas sua fachada foi mutilada,deformada por mil reparos, seu interior foi reviradosem ordem e sem planejamento44.

A idéia diretora, segundo a qual só uma matériaestabilizada, cujos contornos foram definidos, testados eexperimentados pelo tempo, é suscetível de ser codificada,é, em grande medida, uma pressuposição. Esse é, porexemplo, o conselho da Law Commission inglesa de 1965,cujo plano de trabalho continha a recomendação de efetuaruma pesquisa concernente à codificação do direito doscontratos. Essa comissão estimava que só era possívelcodificar um direito dos contratos estabilizado45. Ou, ainda,constatou-se, retrospectivamente, que o direito inglês doscontratos não estava ainda fixado naquela época. Umpresidente posterior da Law Commission afirmou que acodificação não permitiria mais ao Direito que evoluísse46 .Eltjo Schrage resume essa idéia de uma forma categórica:“A codificação fixa a situação real, fixa-a à maneira docimento”47.

comme idée directricede l’ordre juridiquesuisse, Genève, Zurich,Bâle 2005, p. 57.41 DUNAND, 2005(nota 32), p. 40.42 BART, Jean, "Le codeNapoléon", In: WINIGER,Bénédict / DUNAND, Jean-Philippe (éd.), Le Code Civilfrançais dans le droiteuropéen: actes du collo-que sur le bicentenaire duCode Civil français,Bruxelles 2005, p. 75.43 Ref. cit. in BART, 2005(nota 40), p. 75, nota 18.Ver também Discoursd’ouverture auxconférences de l’Ordredes avocats par leBâtonnier Chaix d’Est-Ange, du 26 novembre1842. In: Discours etplaidoyers de M. Chaixd’Est-Ange, t. 1, 1877, p.234-235 [cit. In:DUPRAT, 2005 (nota 5)].44 Ref. cit. In: DUNAND2005 (nota 32), p. 41.45 SCHRAGE, Eltjo J.H.,Résistances àl’élaboration et à ladiffusion du Code. In:WINIGER, Bénédict /DUNAND, Jean-Philippe(éd.), Le Code civilfrançais dans le droiteuropéen: actes ducolloque sur lebicentenaire du Codecivil français, Bruxelles,2005, p. 87.46 KERR, Michael, ref.cit. In: SCHRAGE,2005 (nota 43), p. 88.47 SCHRAGE, 2005(nota 43), p. 88.

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2. As técnicas de adaptação do Código à

modernidade

Alguns grandes codificadores, não obstante, tomaramsuas precauções.

Por um lado, o fato de se relegar a regulamentação dasmatérias novas ao campo de aplicação das leis especiais é umatécnica que deveria garantir que a codificação sistematizariaapenas as soluções perenes, comprovadas pelo tempo e quenão estivessem sujeitas a mudanças incessantes. Somente sãocodificadas desde o começo as regras estabilizadas, isto é,aquelas cujo potencial de transformação futura é o mais fraco.Essa é a filosofia explícita do Código Civil suíço, em especial,que excluiu, por essas razões, do seu campo de intervenção,a propriedade literária e artística, as marcas de fábrica, aspatentes de invenção e o contrato de seguro:

Quando uma instituição, e por razões às vezes muitoartificiais, se aclimatar numa parte do nosso territórioe, submetida a prova, for considerada boa, seráconveniente arranjar-lhe um lugar no futuro CódigoCivil, a menos que existam motivos imperiosos pararejeitá-la.. [...] Um código civil deve, em princípio,abranger todo o Direito Privado. Mas é necessárioadmitir exceções a essa regra; o próprio projetoconhece algumas de bastante importância. Elas sereferem, em primeiro lugar, às leis especiais atualmenteem vigor no domínio do Direito Civil federal; [...] asque se relacionam à propriedade literária e artística,às marcas de fábrica, às patentes de invenção, aocontrato de seguro foram deixadas fora do projetopelas mesmas razões que as que excluíram obrigaçõesdo Código federal; trata-se aqui de matériasrelativamente novas, em que as soluções de valorpermanente não foram encontradas ainda e em quemudanças incessantes se produzem, tanto que é maisprático operar sob o regime da legislação especial quesob o de uma codificação integral; e mais, essasmatérias não podem ser elucidadas com os mesmos

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

métodos das partes do Direito Privado, que se benefi-ciam de experiências seculares e que receberam suasformas de certo modo definitivas48.

Por outro lado, a redação de normas de contextoaberto, que deixa uma certa margem de manobra na evoluçãoda jurisprudência, devia permitir que a prática se adaptasse aoabrir-se para a inovação. Uma concepção assim, no entanto,não é isenta de falhas considerando o ideal de segurança doDireito, pois a redação de disposições juridicamenteindeterminadas aumenta a autonomia do juiz, que logo asse-gura a adaptação do código à realidade. Esse poder normativoda jurisprudência, que “permanece como um mistério difícilde aceitar até para os civilistas contemporâneos”49 é umelemento que concorre com a decodificação50 à medida que,paradoxalmente, segundo Philippe Rémy dizia a propósito doCódigo francês, “a jurisprudência é [...] bastante forte paradesfazer o sistema do Código, mas não bastante para fixar ainterpretação de seus textos essenciais”51 . Baseando-se numacomparação do Direito suíço e do Direito dos Estados Unidos,Thomas Probst, no mesmo sentido, demonstroucompetentemente que a segurança jurídica não era funda-mentalmente devida à existência de uma codificação, masantes à estabilidade da jurisprudência que um sistema decommon law pode melhor assegurar em razão da forçaobrigatória dos precedentes (doutrina do stare decisis)52.

3. O ideal de exaustividade do Código

Ademais, a proliferação das leis de um século para cáocorreu em razão do ideal de exaustividade dos códigos.Mesmo que o conceito benthamiano, largamente utópico, depannomion, um código completo, assim considerado porreagrupar todas as regras do Direito, jamais tenha sido concre-tizado e, como mostra o exemplo, entre outros tantos, doCódigo Civil suíço53 , a particularidade dos códigos civis con-sistiu sempre “no fato de que eles não se limitam a repertóriosde leis, mas que eles codificam um sistema de regras à medidaque são uma ordem jurídica completa e abrangente”54. OCódigo Civil torna-se um código como os outros, uma lei entre

48 Conseil fédéralsuisse, Message àl ’ A s s e m b l é efédérale concernantle projet de CodeCivil suisse, Feuillefédérale, v. IV, no.24, 1904, p. 10 s.49 RÉMY, Philippe "LeProcessus de “dé-codification”". In:WINIGER, Bénédict /DUNAND, Jean-Philippe (éd.), Le CodeCivil français dans ledroit européen: actesdu colloque sur lebicentenaire du CodeCivil français,Bruxelles 2005, p. 207.50 RÉMY, 2005 (nota47), p. 207.51 RÉMY, 2005 (nota47), p. 209.52 PROBST, ThomasCivil law et Commonlaw: Code contrecase?. In: WINIGER,Bénédict / DUNAND,Jean-Philippe (éd.),Le Code Civilfrançais dans ledroit européen:actes du colloquesur le bicentenairedu Code Civilfrançais, Bruxelles2005, p. 227.53 DUNAND, 2005(nota 32), p. 14.54 SCHMIDLIN, Bruno,Le mouvement descodifications enEurope: la formationdu système du CodeCivil français. In:WINIGER, Bénédict /DUNAND, Jean-

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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as leis, subordinada até ao Direito Constitucional, convencional,uma lei dessacralizada55 . Como em essência o resume Jean-Philippe Dunand, “os códigos civis dos Estados europeus nãopreenchem mais uma função central e proeminente nas suasordens jurídicas respectivas”56.

A evolução do Direito, da responsabilidade civil, ilustraem particular a incapacidade do Código Civil de conservar suacoerência para com um direito que eclode ao sabor dasnecessidades novas que vêm à luz na sociedade:

À margem do Código Civil, a evolução legislativa, noentanto, seguiu um curso que parece ser inteiramentedesconectado da codificação principal; esse fenômeno,aliás, prolongou-se até a nossa época, e ele é sintomáticoda concepção, ou, antes, da ausência de concepçãoque reinou por muito tempo no domínio daresponsabilidade civil. Essa observação é ilustradaprincipalmente pelas primeiras normas instituidorasde uma responsabilidade objetiva, que foramintroduzidas, uma por uma – e praticamente semrelação entre elas – no quadro de diferentesregulamentações especiais 57.

Constatando “a lenta e constante erosão do Direito, daresponsabilidade civil”, os autores questionam tanto a juris-prudência, forçada a estender progressivamente os limitesimanentes do Direito Positivo, quanto o legislador, que remendaponto por ponto “uma estrutura jurídica sucessivamenteultrapassada”58.

C. O procedimento legístico: uma solução para

a decodificação do direito privado?

Não se pretende aqui lamentar essa constatação dadecodificação progressiva do Direito Privado. Se é teórica eintelectualmente concebível visualizar uma recodificação in-tegral da totalidade do Direito Privado suíço para sistematizara fragmentação da matéria, ninguém da doutrina se atreve apropô-la seriamente. Somente as codificações parciais pare-cem realistas. Mas elas são realmente a solução? Não se

Philippe (éd.), Le CodeCivil français dans ledroit européen: actesdu colloque sur lebicentenaire duCode Civil français,Bruxelles 2005, p. 46.55 RÉMY 2005 (nota47), p. 212 ss.56 DUNAND, 2005(nota 32), p. 42.57 WIDMER, Pierre /WESSNER, Pierre,Révision et unificationdu droit de laresponsabilité civile :Rapport explicatif,sans date ni lieu, p. 20(texto disponível no sitedo Office fédéral de lajustice).

58 WIDMER /WESSNER, semdata nem local (nota55), p. 28.

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

arriscam a se tornarem mais rapidamente obsoletas que suasancestrais? No Direito Privado Comparado, observa-se, emcontrapartida, um movimento de recodificação e renovaçãoda codificação59 . A inclusão de tais projetos em um procedi-mento legístico impõe-se em todas as hipóteses com o maiorvigor. Não apenas em uma perspectiva formal, mas sobretudomaterial, a fim de recolocar a questão em um quadro metódicoque leve em conta os fatos e se adapte à realidade em lugar dosjulgamentos circunstanciais das cortes de Justiça. É precisoadmitir que, hoje em dia, “a legislação moderna é uma criaçãocontínua”, segundo a expressão de Jean Carbonnier60.

Vamos tomar, a título de ilustração dessa evolução naSuíça, o direito da sociedade anônima: conquanto esse domí-nio do Direito não tenha sofrido revisão de importância entre1936 e 1991, uma nova reforma dispondo sobre o governo daempresa, as estruturas do capital, as regras contábeis e ofuncionamento da assembléia geral se impôs apenas dez anosdepois da grande revisão de 199161. Da mesma forma, logoque entrou em vigor em 2000, o novo direito do divórcio já sefazia objeto de exigências de modificação. Uma iniciativaparlamentar62 propôs, um ano mais tarde, que a duração daseparação dos cônjuges previamente a um pedido de divórciofosse reduzida de quatro para dois anos. Essa modificaçãoentrou em vigor no dia 1º de junho de 200463. Simultaneamen-te, uma postulação64 reclama do governo um relatório sobrea experiência amealhada pelos praticantes com o novo direitodo divórcio. Seu autor chama a atenção para os problemasligados aos montepios, ao retardo no prazo para reflexãoimposto pelo divórcio consensual e à autoridade paternaconjunta65. Em um outro domínio, o do direito de sucessões,observa-se que as regras de transmissão do patrimônio, pornão estarem mais adaptadas à situação demográfica, talveznão sirvam mais aos objetivos do legislador. Em razão doaumento considerável da expectativa de vida, os filhos,herdeiros legais privilegiados, em geral já alcançaram a idadeda aposentadoria quando se beneficiam do patrimônio de seuspais. A conjugação das regras do Direito com a realidadedemográfica enfraquece a função distributiva dessas regras;

59 KRAMER, 2005(nota 35) p. 424 ss.

60 CARBONNIER,1979, (nota 33), p.242, nota 8.

61 Office fédéral de lajustice, Rapportexplicatif concernantl’avant-projet derévision du code desobligations: droit de lasociété anonyme etdroit comptable, Berne,2 décembre 2005.62 Init iativep a r l e m e n t a i r eNabholz (01.408) de20 mars 2001.63 RO 2004 2161 s.64 Postulat Jutzet(00.3681) de 20mars 2001.65 Jutzet 2001 (nota62).

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ela desfavorece as gerações mais jovens, que têm que sedefrontar com necessidades financeiras mais prementes queseus antepassados66 . Tendo em vista tal contexto, a análisedos fatos e a avaliação contínua do corpus legislativo e deJurisprudência deveriam se tornar as diretrizes do novoDireito Civil a fim de se assegurar que, adaptado à realidade,o Direito possa efetivamente ser aplicado:

Se a arte legislativa de outrora confiava no postuladootimista de que, sendo feita para ser aplicada, era cempor cento lei, a arte legislativa de hoje aprendeu atratar como naturais os fenômenos de inaplicação,total ou parcial, e a integrá-los nos seus cálculos67.

Para ilustrar essa postura otimista do legislador, pode-se lembrar a revisão do Código Civil relativa à pensão dealimentos (artigo 328 CC), que não permitiu (ainda) harmonizara grande diversidade das práticas na matéria68.

Não é preciso, entretanto, esperar de um procedimentodesse tipo novos milagres. A dissolução do Código Civil é,com muita certeza, a marca de mudanças fundamentais, nasociedade e nas relações desta com o Estado, de aspiraçõesque o Código único não pode mais satisfazer em um ambientemais complexo, mais individualizado, mais diversificado e emmutação sempre mais rápida. Abruno Schmidlin resumeapropriadamente a problemática:

A dissolução do Código Civil único à qual assistimosnão é somente uma consequência fatal da degradaçãoda arte legislativa pelas administrações prepotentes,habituadas a produzir leis sem sistema nem coerência.Ela tem uma razão mais profunda. O sistemaunidimensional da igualdade e da liberdade doscidadãos não responde mais às expectativas dasociedade moderna69.

III. A Legística e o Direito Privado

A. O Código Civil suíço como modelo da

Legística formal

Os princípios de redação do Código Civil suíço desen-volvidos por Eugène Huber estão na origem da Legística

66 DÉPRAZ, Alex,"Une fortune sousle matelas",Domaine Public n°1645, 13 de maio de2005, p. 4.

67 CARBONNIER,1979 (note 33), p.241. Ver tambémCARBONNIER, Jean,S o c i o l o g i ejuridique, Paris,1994, p. 278, preco-nizando uma "socio-logia pós-legislativa"que instaure, depoisde uma nova lei, umaaparelhagem de es-tatísticas e um ca-lendário de pesqui-sas plurianual com oobjetivo de observaras ineficácias e asdisfunções, paracorrigi-las.68 MASMEJANSylvie, Dettealimentaire: notionsgénérales etréception dans lescantons de Genève,Vaud et Valais,Zurich, 2002, p. 101.69 SCHMIDLIN, 2005(nota 52), p. 63.

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

formal moderna. Eugène Huber achava que o Código Civildevia ser uma “legislação popular”, redigida não para a atençãodos juízes, mas de todos os cidadãos. As leis devem serinteligíveis (leges intellegi ab onmibus debent70 ):

As leis modernas não são redigidas com o únicoobjetivo de indicar aos juízes como terão que proceder,em cada caso. A lei dirige-se a todos aqueles que estãosubmetidos ao seu império. Os comandos do legisladordevem, desde o início, à medida que isto seja compatívelcom a matéria tratada, ser inteligíveis para cada umou, ao menos, para as pessoas que são obrigadas porforça de sua profissão, a se familiarizarem com oDireito. As regras estabelecidas devem ter um sentidomesmo para o profano, o que não impedirá que oespecialista descubra sempre um sentido mais extensoou mais profundo que o profano. É isto o que seentende pelas palavras legislação popular71.

Com o fim de tornar o Código Civil suíço inteligível,Eugène Huber preconizava diferentes princípios de legibilidadeque colocou sistematicamente em prática.

Seus primeiros preceitos visavam produzir um textoconciso: cada artigo devia conter três alíneas no máximo; asalíneas deviam ser redigidas em uma única frase; as frasesdeviam ser breves e as subdivisões raras:

Afora as enumerações [...], nós conseguimos quasesempre não ter mais de três alíneas por artigo. As alíneassão em geral compostas de uma única frase; elas serãosempre bastante breves, para que uma pessoa, mesmopouco habituada a consultar as leis, possa tomarconsciência de seu conteúdo à primeira vista. Assubdivisões são raras, e nenhuma parte do artigo foidividida em parágrafos. Obtém-se, desse modo, umaorientação fácil e simplificam-se as citações72.

Dito mais concisamente, trata-se de “dizer tudo,com brevidade”:

70 Corpus iuriscivilis, 1.14.9.

71 HUBER, Eugène,Code civil suisse:exposé des motifs,Berne 1901, p. 10 s.DUNAND, 2005b(nota 38), p. 63 ss.

72 HUBER, 1901 (nota69), p. 12.

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Se dermos uma olhada no projeto, esta caracterís-tica vai aparecer como uma de suas particularidadesexteriores mais originais: ele diz tudo, de movobreve. E essa brevidade não é um artifício; nãocompensamos, como em outras obras similares, onúmero pequeno de artigos pela sua extensão; oprojeto é curto, absoluta e relativamente. É fácilimaginar como o estudo e o manejo da lei se tornammais fáceis73.

O redator não devia ter receio de retomar os mesmostermos para designar as mesmas noções, e evitar assim autilização dos sinônimos, mesmo se isso resultasse em umacerta monotonia:

À medida que parecia compatível com as exigências dalíngua, nós usamos sempre os mesmos termos paradesignar as noções que se repetem [...]. A aplicaçãodas leis existentes demonstrou fartamente a perplexidadea que uma simples divergência de texto, devida àinadvertência do legislador, pode levar o juiz74.

A exigência de legibilidade não deveria ser impostasomente ao texto visto em seu conjunto, mas deveria seaplicar a cada artigo tomado isoladamente. O que serianecessário evitar, tanto quanto possível, seriam as remis-sões. Em caso de necessidade, a remissão deveria se efetuarpor meio de uma frase que refletisse o conteúdo, e não poruma indicação do número do artigo:

Em um segundo momento, procuramos tornar inteligível,ou ao menos legível, cada artigo tomado isoladamente.Daí, a necessidade de fazer, tanto quanto possível,abstração das remissões. Quando estas nos pareceraminevitáveis, nós as fizemos não pela indicação de umnúmero de artigo, mas por uma frase clara, dando oconteúdo da remissão. [...] Sabemos por experiênciaque essas remissões com indicação de números de artigoentre parênteses provocam freqüentemente dificuldadesna prática, porque elas podem facilmente apresentarlacunas ou erros embaraçosos para os juízes. Ver, por

73 HUBER, 1901 (nota69), p. 17.

74 HUBER, 1901 (nota69), p. 14.

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A ELABORAÇÃO RACIONAL DO DIREITO PRIVADO:

DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

exemplo, Julgamentos do Tribunal Federal, vol. XXII,página 34275.

Eugène Huber achava que uma estrutura claramenteconcebida melhoraria a inteligibilidade do texto:

A ordem adotada na seqüência de artigos referentes adeterminada matéria em geral é esta: em primeiro lugar,virão as regras gerais; depois, as prescrições referentesà constituição e à extinção de uma relação de direito; e,enfim, aquelas que regulam os efeitos. Esse método (...)dá ao projeto uma disposição clara e fácil76.

"O legislador não se limitou a organizar determinadasmatérias essenciais; ele ordenou tudo a partir de um planofácil, que pode ser compreendido com uma olhada rápida"77.

A inteligibilidade do texto de lei, sua simplicidade, pode,enfim, ser obtida, recorrendo-se a expressões claras: “Nadacontribui mais para a simplificação das leis que a arte decondensar os preceitos jurídicos em princípios claros etransparentes”78.

Esses princípios foram retomados nas diretivas detécnica legislativa atualmente em vigor no Direito suíço e seimpõem aos redatores de textos normativos federais79 ; mes-mo se, na realidade, o tecnicismo de certas matérias tenharesultado no fato de que, hoje em dia, no Direito federalhelvético, os textos de lei são na prática redigidos de maneiraa serem acessíveis ao seu público-alvo em princípio, e nãonecessariamente ao grande público em geral80.

B. A obrigação jurídica de seguir um

procedimento legístico em Direito Privado

A Legística, no seu sentido material, não é um métodoaplicável exclusivamente ou prioritariamente ao Direito Público,assim como ao Direito Penal. Se esse procedimento se impôsmais facilmente no quadro da elaboração e da consecução dasgrandes leis do Direito Público, é porque estas últimascolocam explicitamente em jogo os meios necessários para se

75 HUBER, 1901 (nota69), p. 13.

76 HUBER, 1901 (nota69), p. 13.

77 HUBER 1901 (nota69), p. 17.

78 HUBER 1901 (nota69), p. 8.79 Concisão: Guidede législation 2002,p. 349; remissões:Guide de législation2002, p. 353; princí-pios gerais deestruturação: Guidede législation, 2002,p. 345 ss.80 BERTAGNOLLO,Fabienne / LAURENT,Caroline, "Unkrautvergeht nicht: lacorédaction dansl’administration fédéralesuisse". In: GÉMAR,Jean-Claude /KASIRER, Nicholas(dir.), Jurilinguistique –Jurilinguistics: entre

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atingir as metas e objetivos visados81. A norma, uma vez quese inscreve em uma lógica de ação, reveste-se de um caráterinstrumental. Ora, o instrumento tem vocação para servir ofim visado. Ele deve ser pertinente com relação a esse fim; eleé suscetível de ser modificado se os resultados esperados nãose manifestam. Reconhece-se nisso as fases essenciais doprocedimento metódico acima apresentadas82.

Na Suíça, nem a Constituição federal nem a legislação,a partir do momento em que fazem referência às exigências deum procedimento metódico no processo legislativo, nãodistinguem entre Direito Público e Direito Privado. No Direitofederal, o fundamento da Legistica – material – está naobrigação que a Assembléia federal tem de cuidar para que aeficácia das medidas tomadas pela confederação seja avaliada(artigo 170 Cst), consagrando um novo princípioconstitucional: o da eficácia83. Essa disposição inclui, no seucampo de aplicação, tanto a atividade do conselho federal, daadministração, dos tribunais federais, ou, ainda, as medidastomadas pelos cantões no cumprimento do Direito federal84,quanto o conjunto de tarefas e de atividades da Assembléiafederal85 , inclusive a atividade legislativa do Parlamento86 .Disso resulta que o Direito Privado não está isento dessaobrigação. A lei sobre a Assembléia federal87 explicita esta últimanos artigos 27 (avaliação da eficácia), 44, alínea 1, letra “f”(levar em conta os resultados da avaliações de eficácia pelascomissões parlamentares) e 141 (conteúdo da mensagem queacompanha um projeto de ato legislativo) notadamente. Estaúltima disposição obriga o conselho federal a fazer constar, namensagem que acompanha todo projeto de ato, principalmente“os pontos de vista e variantes discutidas no estágio preliminardo procedimento legislativo e sua apreciação pelo conselhofederal” (artigo 141, alínea 2, letra “c”), “as modalidades deexecução do projeto, a avaliação à qual esta execução dará lugare as possibilidades de execução que foram examinadas noestágio preliminar do procedimento legislativo” (artigo 141,alínea 2, letra “d”), “as conseqüências econômicas, sociais,ambientais do projeto” (artigo 141, alínea 2, letra “g”). Esteartigo faz referência ao essencial do procedimento metódico

langue et droit –Between Law andLanguage, Bruxelles etMontréal, 2005, p. 119ss, 123 s. Não podería-mos, entretanto, con-cordar com essas duasautoras na medida emque consideram que"ninguém leva adiante oargumento de que ostextos legislativos de-veriam ser redigidos demaneira a ser acessí-veis ao público", o quefaz – na opinião delas –com que a acessibilida-de das leis seja cadavez mais utópica(BERTAGNOLLO /LAURENT, 2005, p.123).81 MOOR, Pierre,Droit administratif,v. I, Berne, 1994, p.37 ss.82 Ver acima ch. 0.83 Sobre a naturezadesse princípio, verFLÜCKIGER, Alexan-dre, "Le droitadministratif enm u t a t i o n :l’émergence d’unprincipe d’efficacité",Revue de droitadministratif et fis-cal, 2001, p. 93-119.84 AUBERT, Jean-François / MAHON,Pascal, Petitcommentaire de laConstitution fédéralede la Confédérationsuisse du 18 avril1999, Zurich, Bâle,Genève 2003,p.1291.

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proposto pela Legística: elaboração das estratégias possíveis,factibilidade, avaliação tanto prospectiva quanto retrospectiva.

Por outro lado, em mais de 60 leis e ordenamentosfederais, encontramos a obrigatoriedade de avaliar os efeitosde todo ato normativo ou de parte dele 88 . Essa obrigatoriedade,no mais das vezes, precedeu à do artigo 170 Cst. Vamos notar,portanto, que nenhuma legislação de Direito Privado dispõeformalmente, no momento, de uma cláusula de avaliaçãosemelhante89.

Essa constatação não significa, no entanto, que essedomínio do Direito tenha permanecido totalmente impermeá-vel a esse procedimento. Determinados ramos do DireitoPrivado, em particular os que têm suscitado o interesse dapesquisa sociológica, não ignoram as exigências metodológicasda Legística.

C. A prática Legística em Direito Privado

Historicamente, o Código Civil suíço não foi elabo-rado com base em análises de terreno metódicas. O redatordo Código baseou-se por vezes em pesquisas conduzidascom a especialistas nos domínios técnicos ou médico eefetuadas no final do século XIX em relação a determinadasmatérias precisas90.

Essa falta de análise legística pode ainda ser observadanos nossos dias. Um exame dos trabalhos preparatórios dasprincipais revisões legislativas de Direito Privado empreendi-das nas duas últimas décadas mostra que, em geral, os legistasnão podem se apoiar em análises muito aprofundadas darealidade que são levados a regulamentar. Certos domínios,por exemplo, o Direito de Família, constituem entretantoexceção. A revisão do direito de divórcio, empreendida nosanos 1990, mobilizou, assim, as competênciaspluridisciplinares, beneficiando numerosos estudossociológicos91. A comissão de especialistas, conquanto reunissesomente juristas, logo conferiu uma grande importância aodiálogo interdisciplinar92. Ela organizou audiências com os

85 EHRENZELLER,Bernhard /MASTRONARDI ,Phil ippe /SCHWEIZER, RainerJ. / VALLENDER,Klaus A. (éd.), Dies c h w e i z e r i s c h eBundesverfassung.Kommentar, Zürich2002, p. 1680.86 Office fédéral de lajustice, Efficacité desmesures prises parla Confédération:propositions de miseen œuvre de l’art. 170de la Constitutionfédérale dans lecontexte desactivités du Conseilfédéral et del ’ a d m i n i s t r a t i o nfédérale, Rapport duGroupe de contactinterdépartemental"Evaluations del’efficacité" à laConférence dess e c r é t a i r e sgénéraux de laC o n f é d é r a t i o nsuisse, Berne, 14 juin2004, p. 11.87 RS 171.10.88 Pode-se encontrar alista desses atos como título " Clausesd’évaluation » no sitedo Office fédéral de laj u s t i c e(www.ofj.admin.ch,seção: thèmes, rubri-que : documentation,s o u s - r u b r i q u e :documentation ; situa-ção em 1º de janeiro

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especialistas da medicina, da psicologia, da sociologia, dotrabalho social e do aconselhamento conjugal. Graças aostrabalhos encomendados pelo Office Federal de Justice e aosestudos de Sociologia do Direito realizados no âmbito doCentro de Estudos, de técnica e avaliação legislativas (Cetel)da Universidade de Genebra, a uma pesquisa com jovensfilhos de pais divorciados, a uma análise de Direito Comparadoe à avaliação das experiências estrangeiras, a comissão deespecialistas dispôs de dados substanciais sobre a natureza doproblema93 . O mesmo se deu com a recente adaptação dodireito de divórcio, que pôde levar em conta os resultados deuma vasta consulta a práticos, juízes, advogados econciliadores94. Esse mesmo cuidado em conhecerempiricamente o terreno se verifica também no dossiê sobrea violência contra a infância. O grupo de especialistas,composto em sua maioria de práticos, procedeu a três grandespesquisas empíricas e fez audiências tanto com os especialistascientistas quanto com os militantes engajados na luta contraas violências conjugais95 . O mesmo aconteceu com os trabalhosde revisão do direito de tutela, última étapa da grande revisãodo Direito de Família, que foram conduzidos por comissõesde especialistas interdisciplinares, apoiados por uma pesquisafinanciada pelo Fundo Nacional de Pesquisa Científica esubmetidos a uma consulta muito ampla dos práticos96.

Esses exemplos permanecem, no entanto, comoexceção. Na maior parte das revisões legislativas atinentes aoDireito Privado, os trabalhos preparatórios são confiados aum número muito restrito de pessoas, essencialmente deformação jurídica (professores, advogados, juízes, etc.).Esses especialistas referem-se sobretudo à sua própriaexperiência pessoal, e os destinatários finais não são,praticamente, jamais consultados. E, quando o círculo daspessoas engajadas no processo se amplia, é para permitir arepresentação dos interesses organizados, e não para associaros representantes de disciplinas científicas pertinentes àmatéria97. A título de exemplo, pode-se mencionar a revisão dodireito de responsabilidade civil, reservado a especialistasjuristas98. Em contrapartida, quando se trata de rever a

de 2005, consultadoem 2 de janeiro de2006).89 Conforme a listaprecedente.90 MERTENS, 2004 (nota8), p. 49. Ver tambémDUNAND, 2005b (nota38), p. 60 s.91 Ver em especialPERRIN, Jean-François / TRICOT,Laurence, "Pratiquejudiciaire du divorce…Une recherche àfinalité législative",Genève, 1986,Travaux CETELn°28 ; BASTARD,Benoît / CARDIA-VONÈCHE, Laura /PERRIN Jean-François, Pratiquesjudiciaires dudivorce. Approchesociologique etperspectives deréforme, Lausanne1987 ; KELLERHALS,Jean et al., Mariagesau quotidien:inégalités sociales,tensions culturelleset organisationfamiliale, Lausanne1982; KELLERHALS,Jean / TROUTOT,P i e r r e - Y v e s ,Quelques lignes derelation entre divorceet modèlesm a t r i m o n i a u x ,Genève, 1981.92 RICHLI, Paul,In terd isz ip l inäreDaumenregeln füreine faire

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legislação dos cartéis ou a da concorrência desleal, foi aosrepresentantes dos interesses organizados que se recorreu99.Paul Richli, com base em um exame da fase preparatória doprocesso legislativo no decurso dos últimos 20 anos abrangendouma gama ampla (Direito de Família, direito das sociedades,direito da concorrência, Direito Constitucional, direito deOrganização da Administração, direito da Saúde e DireitoPenal)100, conclui que a elaboração normativa na Suíçapermanece como atividade bastante afastada damultidisciplinaridade ao escrever que “as diferentes disciplinascientíficas são solicitadas de maneira pontual e sem concepçãoexplícita”101.

O Direito ocupa aí uma posição dominante. Significadizer que o legislador e o legista, antes dele, não dispõem detodas as sinformações úteis para o conhecimento do domíniono qual querem intervir.

As observações críticas de Paul Richli não se dirigemsomente à elaboração de projetos de interesse do DireitoPrivado. A ausência, ou a presença muito rara, de especialistasna matéria capazes de trazer uma informação objetiva ilustraas lacunas metodológicas de que sofre igualmente a concep-ção das legislações de Direito Público, tanto para o que éanálise da realidade, escolha da estratégia de ação, quanto paraa avaliação prospectiva de projetos.

IV – Conclusão

A exigência de racionalidade na elaboração das leisnasceu na época contemporânea ao espírito das luzes. Éverdade que hoje nós não podemos mais aceitar o axiomasegundo o qual as boas leis fazem as sociedades boas. Massabemos que, se a ação pública quer conjugar eficácia elegitimidade, deve conhecer as características da realidade à qualse aplica e escolher os meios adequados aos objetivos visados.

Essa exigência não vale exclusivamente ouprioritariamente para um ou outro dos grandes setores dodireito. A Constituição Federal, quando prescreve a avaliação

Rechtsetzung : einBeitrag zurRechtsetzungslehreim liberalen sozialund ökologischo r i e n t i e r t e nRechtsstaat, Bâle,Genève, Munich2000, p.30-31.93 RICHLI 2000 (nota90), p.30-31.94 Office fédéral dela justice, Rapportconsécutif ausondage portant surl’application dudroit du divorceauprès des juges,des avocats et desmédiateurs, maio de2005.95 Office fédéral dela justice 2005 (nota92), p. 32-33.96 Commissiond’experts pour larévision totale dudroit de la tutelle,Protection del’adulte : Rapportrelatif à la révisiondu code civil(Protection del’adulte, droit despersonnes et droitde la filiation), juin2003.97 RICHLI 2000 (note90), p. 37, menciona,por exemplo, a comis-são de especialistaspara a revisão da leifederal sobre a con-corrência desleal, queera composta de 13membros, 10 dos quais

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da eficácia das medidas tomadas pelo Estado, não faz adistinção. Muito menos o Direito Privado pode furtar-se a essaexigência, à medida que ele não é mais destinado a regulamen-tar as relações sociais no seio de uma sociedade estável. Provadisso é a multiplicação das leis especiais, que vêm perturbara sistemática fechada das grandes codificações, bem como odesenvolvimento da jurisprudência. Segundo essa ótica, acodificação não é a solução.

Sem dúvida, um procedimento metódico parece, àprimeira vista, mais indicado e mais prático para a elaboraçãodas legislações de Direito Público. É necessário procurar asrazões desse relativo avanço metodológico no fato de que osobjetos normativanente abrangidos pelo Direito Público – masigualmente pelo Direito Penal – têm uma existênciaindependentemente do Direito: o meio ambiente, o território,a doença, a velhice, a criminalidade não são basicamente fatosjurídicos. E não é por acaso, porque a elaboração do Direitode Família leva amplamente em conta os conhecimentossociológicos nesse domínio. Essa sociologia “ponte”, como aqualifica Peter Noll102, que explora os mesmos objetos quecertos ramos do Direito, faz enorme falta ou está muito poucodesenvolvida nos ramos do Direito cujo objeto tem existênciaapenas jurídica, como o contrato ou a pessoa moral.

Assim como a Sociologia da Família para o Direito deFamília, ou a Criminologia para o Direito Penal, os diferentesramos do Direito Privado, se querem preencher seu papel de“ciência normativa terapêutica” (normative therapeutischeWissenschaft), devem colaborar com seus homólogos dedica-dos ao diagnóstico103 . Essa colaboração implica o reconheci-mento prévio do fato de que nem a competência jurídica nemo ponto de vista dos representantes de interesses bastam paraestabelecer as fundações empíricas de um edifício normativo.

Certamente não se deve mesmo esperar milagres deum procedimento legislativo racionalizado. Legislar perma-necerá sempre uma hipótese colocada quanto à relação entremeios utilizados e objetivos visados. Essa incerteza resulta

eram representantesde organizaçõessocioeconômicas; ouainda a comissão en-carregada da revisãototal do direito doscartéis, com 18 mem-bros, dos quais 7 re-presentavam interes-ses.98 WIDMER /WESSNER, semdata (nota 1).99 RICHLI, 2000 (nota90), p.37s.100 RICHLI, 2000 (nota90 ).101 Tradução pesso-al, RICHLI, 2000(nota 90), p. 78.102 NOLL 1973 (nota22), p. 68.103 NOLL 1973 (nota22), p. 68.

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DA CODIFICAÇÃO À LEGÍSTICA

de nossa capacidade limitada de conhecer a realidade social,a complexidade das relações entre os atores sociais. Alémdisso, as exigências metódicas da Legística não devem fazeresquecer que a legislação continua sendo um jogo político,isso é, marcado pelos interesses, pelas paixões, pelas ideo-logias e pelas emoções. Apesar desses limites, o procedi-mento metódico se revela indispensável, como uma referên-cia que se sabe que jamais poderá ser respeitada mas quechama incansavelmente à razão.

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DA QUALIDADE DA LEGISLAÇÃO OU DE COMO O

LEGISLADOR PODE SER UM FORA-DA-LEI

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 59-102, jan./dez. 2007

DA QUALIDADE DA LEGISLAÇÃO OUDE COMO O LEGISLADOR PODE SER

UM FORA-DA-LEI 1

ANA FRAGA E ANA VARGAS 1

icenciada em Direito (1985) e com oCurso de Alta Direção em Administra-ção Pública (2004), Ana Fraga ingres-sou na Assembleia da República em1991, tendo trabalhado na Divisão deInformação Legislativa e Parlamentar e,posteriormente no apoio às comissões.

Em 1999, foi designada adjunta dogabinete do Ministro da Reforma doEstado e da Administração Pública.Representou Portugal no Grupo de

Alto Nível para a Qualidade da Legislação (grupoMandelkern) e integrou a Comissão para a SimplificaçãoLegislativa.

Regressou à Assembleia da República em 2002,tendo desempenhado as funções de chefe de Divisão dasEdições e, desde 2006, de directora de Serviços de ApoioTécnico e Secretariado.

•Juristas do quadroda Assembleia daRepública

1 Este texto é umaversão atualizada doartigo publicado nonúmero 27 da revis-ta portuguesa Ca-dernos de Ciência daLegislação. Agrade-cemos à Dra. MartaTavares de Almeida,editora daquele pe-riódico, a oportuni-dade de republicar aestimulante análisedas autoras sobre a

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Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito deLisboa (1989) e mestre em Estudos Europeus pela Universi-dade Católica de Lisboa (2000), com frequência ao programade doutoramento no Instituto Universitário Europeu, emFlorença, Ana Vargas ingressou na Assembleia da Repúblicaem 1991. Como jurista, onde prestou apoio, entre outrasfunções, à Comissão de Assuntos Europeus (1992-2004).Desempenha funções de assessora no Centro de FormaçãoParlamentar desde 2004.

Publicações: Os parlamentos nacionais e a legitimida-de da União Europeia, Cosmos, 2001; “The Parliament ofPortugal: Loyal scrutiny and Informal Influence”, in AndreasMaurer/Wolfgang Wessels (eds.), National Parliaments ontheir ways to Europe: Losers or Latecomers?”, NomosVerlagsgesellschaft, Baden-Baden, 2001; “A Segunda Câma-ra: uma segunda fuga em frente”, in António Costa Pinto(coord), A União Europeia Revisitada, ICS, 2003; “After theConvention: The role of National Parliaments in the EU”,Journal of Legislative Studies, special issue on “TheEuropeanization of Parliamentary Democracy”, Volume 11,Numbers 3-4, October/December 2005.

qualidade da legis-lação na União Eu-ropéia. O texto épublicado na suaforma original, emportuguês de Portu-gal. Fraga, Ana;Vargas, Ana. Daqualidade da legis-lação ou de comopode o legislador serum fora-da-lei. Le-gislação. Cadernosde Ciência da Le-gislação. n. 27, p.31-71, jan.-mar.2000.

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1 Introdução

a) Distinções prévias

Quando abordamos a problemática da qualidade dalegislação, importa, desde logo, esclarecer qual o conceito queusamos quando falamos de legislação, em particular quandoa análise a que procedemos incide igualmente sobre o trabalhodesenvolvido noutros países. Encontramos muitas vezes, e deforma indiferente, referências a legislação, regulamentação eregulação, Estado legislador, regulamentador e regulador2.

Essa distinção pode ser efectuada sob duas aborda-gens. A primeira, no plano estritamente jurídico, de poderlegislativo por oposição a poder regulamentar. Essa distinçãosó pode ser alcançada por meio de uma análise comparada dosordenamentos jurídicos dos diferentes estados3. Desse modo,por “poder regulamentar” deve entender-se o poder normativodo governo (por oposição ao poder normativo do Parlamentoe à adopção de actos individuais pelo governo). Este podernormativo do governo poderá ser, de acordo com os diferen-tes ordenamentos jurídicos, um poder legislativo paralelo aopoder regulamentar, um poder exclusivamente regulamentare ainda um poder originário ou delegado.

A segunda abordagem é apoiada essencialmente nostrabalhos da OCDE, que se referem a regulamentação(regulation) enquanto poder do Estado, ou de agências inde-pendentes, para regular as relações dos agentes económicos, nosentido de promover a competição e reduzir os custosdecorrentes4. Alguns países têm secundado essa perspectiva.A reforma da regulamentação é, assim, vista como um instru-mento de intervenção e modernização económica e, muitasvezes, incide sobre parcelas dessa realidade, analisando-se, porexemplo, o impacto da reforma da regulamentação no sectordas telecomunicações ou no mercado de capitais5 .

Independentemente dessa distinção, o propósito destetrabalho é analisar como se pode melhorar a actividade

2 Gomes Canotilho,“Os impulsos mo-dernos para uma te-oria da legislação”,Legislação, n.º 1Abril-Junho, INA,1991, fala num ter-mo distinto, naregulática, “O pontode partida daregulática é, sensi-velmente, o da teo-ria sociológica críti-ca e o das teoriasestruturais do direi-to: as mudanças es-truturais da socie-dade da informaçãotornam clara a ne-cessidade de o di-reito não ser consi-derado, como atéaqui, como regula-dor das relaçõessociais, mas simcomo instrumentode trabalho para aautoregulação dasrelações sociais. Di-ferentemente dalegística, a reguláti-ca jurídica não tomaapenas em conside-ração as regula-

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normativa, proveniente tanto do Parlamento como do gover-no, ou ainda de outras entidades com competências normativas,aumentando a sua qualidade e acessibilidade.

A qualidade da técnica legislativa compreende nãoapenas a qualidade redaccional (Legística6 ), mas igualmentea avaliação da decisão de legislar (o conteúdo da futuranorma), a integração da legislação no contexto normativo,económico e social, a participação dos cidadãos no processolegislativo e a avaliação da sua aplicação. A acessibilidadelegislativa compreende a compilação, a consolidação legislativae a codificação7 , bem como todos os outros instrumentos quefacilitem ao cidadão o conhecimento das normas que regulamos vários aspectos da sua actividade e das suas relações,designadamente por intermédio dos meios informáticos e decomunicação social.

b) Esforços conjuntos dos Estados membros

A legislação está ligada a valores e princípios moraisque caracterizam uma determinada sociedade8. Como osvalores e princípios morais variam consoante o espaço e otempo, as normas são também dinâmicas. Os critérios dequalidade estão estritamente ligados às tradições legislativasde cada Estado ou sistema jurídico. Contudo, isso nãosignifica que os critérios de qualidade legislativa não sepossam aplicar independentemente de um cultura legalespecífica. A integração numa organização supranacional,como a União Europeia (UE), com poderes normativoscrescentes em domínios cada vez mais alargados, exigeformas de cooperação mais estáveis. O fenómeno de aproxi-mação legislativa no seio da UE conduz à necessidade de seencontrarem soluções que, embora respeitem a tradiçãojurídica e constitucional de cada Estado, assegurem um nívelde qualidade legislativa semelhante entre os países.

Até alguns anos atrás, a redacção era vista como oprincipal critério da qualidade legislativa. Nos últimos anos,essa questão ganhou nova dimensão e estendeu-se, basica-mente, a cinco parâmetros:

ções legais, masnormações de qual-quer género, como,por exemplo, con-tratos, actos admi-nistrativos, senten-ças, regulamentos,c o n v e n ç õ e scolectivas de traba-lho, acordoscolectivos (...)”.3 Para uma definiçãodo poder regula-mentar na Europa,veja-se Zil ler,Jacques, “Lecontrôle du pouvoirréglementaire enEurope”, RevueF r a n ç a i s ed’Administration Pu-blique, 1999. No pre-sente trabalho, nãose entra em detalhena distinção entrepoder legislativo epoder regulamentar.4 No Report onRegulatory Reformda OCDE, 1997, p.6,esclarece-se que“… regulation refersto the instruments bywhich governmentsplace requirementson enterprises,citizens, andgovernment itself,including laws,orders and otherrules issued by alllevels ofgovernment and bybodies to whichgovernments haved e l e g a t e dregulatory powers”(Tradução das au-toras – (“…) a

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• fase de instrução pré-legislativa – necessidade delegislar – aberta aos contributos científicos, académicos edestinatários;

• contexto normativo (nacional, europeu/UE e interna-cional) em que se enquadra uma nova iniciativa;

• avaliação prévia do impacto da iniciativa legislativa navida dos cidadãos e no desempenho das empresas;

• criação de mecanismos de acompanhamento daaplicação e dos efeitos da norma;

• criação de instrumentos que tornem a norma realmen-te acessível aos cidadãos.

Alguns países europeus adoptaram critérios de boalegislação que são utilizados para avaliar a qualidade dalegislação nacional. A discussão também ocupa a OCDE9 –como já foi referido –, as instituições europeias10 e os diversosparlamentos dos Estados membros.

Esse tem sido também um tema abordado pela Confe-rência de Presidentes dos Parlamentos da União Europeia,designadamente na Conferência de Roma de setembro de2000, que aprovou um memorando com uma série derecomendações. Nele se solicita aos governos que forneçamaos parlamentos informação clara e concisa sobre a avaliaçãopré-legislativa. Entendem os parlamentos que essa avaliaçãodeve ser aberta a especialistas e aos sujeitos afectados pelasiniciativas, devendo ter em consideração um exame detalhadodo ordenamento comunitário e nacional e uma análise do seuimpacto nos cidadãos e nas empresas. Solicita-se ainda aosgovernos que criem mecanismos de avaliação dos efeitos dalegislação adoptada e instrumentos para tornar a legislaçãomais acessível ao cidadão comum. Apela-se depois a umamaior cooperação interparlamentar (nomeadamente com re-curso ao correio electrónico e aos sítios da internet), a umamaior cooperação entre os parlamentos e as organizações não-governamentais, a comunidade científica (Instituto Universi-tário Europeu) e as organizações internacionais (OCDE).

regulação é relativaàs leis, despachose outras regrasaprovadas por qual-quer órgão estadu-al ou por órgão emque o Estado tenhadelegado poder re-gulamentar que im-ponha requisitos àsempresas, cida-dãos e à própria ad-ministração.”). Dis-ponível em: http://w w w . o e c d . o r g /da taoecd/17 /25 /2 3 9 1 7 6 8 . p d f > .Acesso em 27 mar.2007.5 Ainda no âmbito daOCDE, esclarece-se o alcance da re-forma regulatória(ou da regulamen-tação): “regulatoryreform refers tochanges that impro-ve the quality ofregulations, that is,enhances theperformance, cost-effectiveness, or le-gal quality ofregulations andrelated governmentformalities “(Tradu-ção das autoras –“a reforma regula-tória refere-se a al-terações que melho-rem a qualidade dosregulamentos, isto éque aumentem a efi-cácia, diminuem arelação custo-bene-ficio, melhorem atécnica legislativa ediminuam as forma-lidades administra-

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Também na esfera dos governos dos Estados mem-bros há uma preocupação com a qualidade legislativa. Nareunião extraordinária do Conselho Europeu realizada em 23e 24 de março de 2000, em Lisboa, nas conclusões daPresidência, o Conselho solicitou à comissão, ao conselho eaos Estados membros que, em conformidade com as respec-tivas competências, estabeleçam, até 2001,

uma estratégia de acção coordenada mais aprofundadaa fim de simplificar o ambiente regulamentar, incluindoo desempenho da administração pública, tanto a nívelnacional como comunitário. Essa estratégia deveráincluir a identificação de espaços em que sejamnecessárias novas acções por parte dos Estados-membros destinadas a racionalizar a transposição dalegislação comunitária para o direito nacional.

Na sequência dessas conclusões, foi criado um grupode trabalho encarregado de participar activamente na elabora-ção da estratégia coordenada, Grupo de Alto Nível para aMelhoria da Qualidade da Legislação (também conhecido porGrupo Mandelkern, nome do seu presidente). O grupo, queera composto por representantes dos 15 Estados membros eda Comissão Europeia, iniciou seus trabalhos em dezembro de2000 e aprovou o Relatório Final em novembro de 2001.

O relatório apresenta uma abordagem geral e global noâmbito da melhoria da qualidade da legislação, apoiada por seteprincípios essenciais: necessidade, proporcionalidade,subsidiariedade, transparência, responsabilidade, inteligibilidadee simplicidade. O grupo identificou os seis principais aspectosque conduzem ao sucesso de um programa de melhoria daqualidade dos actos normativos:

• opções de aplicação de políticas;

• avaliação de impacto da legislação;

• consulta;

• Simplificação;

• acesso à legislação; e

• estruturas eficazes.

tivas), in “GuidingPrinciples ForRegulatory Qualityand Performance”,2005, http://w w w . o e c d . o r g /d a t a o e c d / 2 4 / 6 /34976533.pdf (con-sultado 27 Março2007).6 Pagano, R.Legislative draftingdirectives: towardsa common model ofl e g i s l a t i v etechniques? In:KARPEN; WENZ (Ed.).National legislation inthe Europeanframework. Baden-Baden: EAL, NomosVerlagsgesellschaft,1998. p. 203-226.7 Veja-se OliveiraAscensão, O Direi-to, Introdução e Te-oria Geral,Gulbenkian, 3ª edi-ção, 1983, p. 281-90 para a distinçãoentre (1)codificação – “ocódigo é uma lei masdistingue-se por tra-zer o núcleo, etendencialmente atéa generalidade, dasregras relativas adeterminada maté-ria. Representa poissempre a forma deconcentração doregime jurídico decertos sectores davida social, regulan-do unitariamente umramo de direito”; (2)consolidação quecombina num mes-

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O relatório e o Plano de Acção, embora não vinculativospara as partes envolvidas, tiveram o mérito de sistematizar osinstrumentos utilizados nos diferentes Estados, permitir oconhecimento e a divulgação das melhores práticas e aumen-tar a visibilidade e a importância dessa questão nas agendasnacionais e comunitária.

Desde 2005, com a adopção da Estratégia Integradapara o Crescimento e Emprego (no âmbito da revisão daEstratégia de Lisboa), verificou-se um esforço para incluir,nos Programas Nacionais de Reforma, um ponto sobre“Legislar melhor”. Actualmente, alguns Estados membrosinserem nos seus relatórios medidas sobre essa matéria. Essasmedidas são relativas ao impacto dos custos administrativose à redução dos encargos para os particulares de cadainiciativa legislativa, tendo alguns Estados adoptado objectivosde redução de custos percentuais (20% a 25% até 2010).Contudo, apenas um reduzido número de Estados efectua aanálise de custos de uma forma sistemática, e os resultadosnão são avaliados por ninguém. Apesar disso, cerca de metadedos Estados membros desenvolveram um programa global desimplificação legislativa; muitos dos que não apresentaram umprograma global, criaram iniciativas como o governoelectrónico, balcão único, etc.

Na comunicação da Comissão Europeia sobre a “Aná-lise estratégica do programa Legislar Melhor” na UniãoEuropeia (COM(2006) 689, de 14 de novembro de 2006)foram identificadas como prioridades para os Estados mem-bros: o desenvolvimento e o reforço dos mecanismos deconsulta; uma avaliação mais sistemática da análise dosimpactos económicos, sociais e ambientais das iniciativaslegislativas; maior transparência no processo legislativo;desenvolvimento dos programas de simplificação legislativa;e melhoria da aplicação da legislação europeia. Em 2006, foiigualmente criado pela Comissão Europeia um grupo deperitos, para avaliar os esforços dos Estados membros rela-tivamente à análise de impacto e à simplificação.

mo diploma todas asnormas sucessiva-mente produzidassobre determinadamatéria e (3) compi-lação que junta nummesmo manual umconjunto de textosdistintos mas de al-guma forma relacio-nados em razão damatéria. Para a mes-ma distinção nos di-ferentes Estadosmembros, onde osmesmos conceitostraduzem realida-des diferentes veja-se Pagano, Rudolfo,“ Notas sobre as for-mas de simplifica-ção e de reorgani-zação da legislaçãoem alguns paíseseuropeus”, Legisla-ção, nº 18 Jan-Mar-ço, 1997, p. 22-63.8 Dorbeck-Jung,Barbel, RealisticLegisprudence, AMul t id isc ip l inaryApproach to theCreation andEvaluation ofLegislation, Asso-ciations 3 (2), Duncker& Humblot, (1999)Berlin, p. 211-35.9 Vejam-se “Re-commendation ofthe Council of theOECD on improvingthe quality ofG o v e r n m e n tregulation, includingthe OECD Refe-rence Checklist forR e g u l a t o r yDecis ion-Making

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Verifica-se, pois, uma actuação simultânea, senãocoordenada, entre instituições europeias e nacionais e entregovernos e parlamentos dos diversos Estados membros,numa perspectiva de “pressão entre pares” e de “reacção emcadeia”.

2 A situação em Portugal

Em Portugal, o problema da qualidade da legislação e apreocupação com a proliferação legislativa só concitaramalguma atenção, de forma mais relevante, na última década. Arevolução de abril de 1974, a aprovação da Constituição daRepública Portuguesa em 1976 e a necessidade de adequar odireito à realidade económica, social e política emergentesecundarizaram essa questão. A situação foi agravada pelaadesão de Portugal à CEE, uma década mais tarde, o queobrigou à rápida adaptação do ordenamento legislativo portu-guês para o conformar às regras do mercado interno.

Até o final da década de 1980, pouco mais havia sidofeito nesse âmbito que algumas reflexões dispersas11 e algu-mas tentativas de resolução que foram posteriormenteabandonadas12. É de se destacar, nesse período, o estudoelaborado em 16 de dezembro de 1988 pelos consultores doentão Cetal13 , Dr. Luís Bigotte Chorão e Dr. Rui Barreira,“Simplificação e Codificação Legislativa”, que serviu de baseà Deliberação do Conselho de Ministros nº 15/DB/89, de 8 defevereiro. Essa deliberação aprovou os princípios que devemregular a elaboração de projectos de actos normativos e,apesar de amplamente distribuída, nunca foi publicada, peloque permaneceu para muitos totalmente desconhecida.

A deliberação, embora não circunscrevendo a situaçãoa Portugal, fala pertinentemente em "poluição legislativa" ecaracteriza a situação da seguinte maneira:

A “poluição legislativa” produz diversos efeitosnefastos: avalancha de leis que se sobrepõem econtradizem; normas cuja interpretação se torna, porvezes, ininteligível; progressivo enfraquecimento da

and BackgroundNote” de 9 Março de1995, e o “Report onRegulatory Reform”,OCDE, 1997.10 Dado que a quali-dade da legislaçãocomunitária não é otema deste trabalhoapontam-se apenasalgumas referênci-as. O trabalho daComissão Europeiacomeçou em 1994com o “GrupoMolitor”, tendo sidoseguido pelos rela-tórios anuais, des-de 1995, “Legislarmelhor”. Estes rela-tórios são objecto deapreciação peloParlamento Europeue pelo Conselho eestabelecem que otrabalho deve serefectuado sobre asiniciativas a apre-sentar, as que es-tão em fase de deci-são e as que já fo-ram adoptadas. Asiniciativas a apre-sentar devem serobjecto de uma aná-lise de impacto (deescolha do instru-mento, dos encar-gos administrati-vos) e de ampla con-sulta dos cidadãose empresas. As ini-ciativas em fase dedecisão ou já apro-vada devem serreanalisadas noâmbito da simplifica-ção e do nível dasa l t e r n a t i v a s

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autoridade da lei; correspondente falta de segurançana sociedade. Mas é sobretudo ao nível económico, eao nível tecnológico, que a “poluição legislativa” temsido particularmente prejudicial: o excesso deregulamentação tem actuado como travão das políticasde desenvolvimento económico, da evolução datecnologia e do processo de inovação14.

Embora o diagnóstico actual não seja muito diferente,existe, por parte da comunidade académica e dos órgãos desoberania com competência legislativa, uma maior atenção aessa questão.

Para além do curso de Feitura das Leis organizado já hávários anos pelo Instituto Nacional de Administração, asuniversidades começaram a oferecer pós-graduação em legísticae ciência da legislação, o que é sintomático de uma novaposição relativamente a essa questão. O jurista já não éautomaticamente considerado detentor de conhecimentosnessa área, precisa, aliás, de uma aprendizagem específica; osaber nessa área pode ser desenvolvido por estudiosos deoutras especialidades.

Os principais produtores de actos normativos no nossopaís são a Assembleia da República e o governo. Nos regimentosdesses dois órgãos encontramos já regras muito precisas, quersobre a avaliação da decisão de legislar, quer sobre o impactolegislativo, quer ainda sobre a qualidade redaccional.

a) Assembleia da República

O processo legislativo parlamentar é, por natureza,muito distinto do processo legislativo do governo. Nesteúltimo, há, em regra, uma convergência de vontades e umacentralização do acto de produção normativa, embora a suaaprovação seja feita, primeiro, em reunião de secretários deEstado e, depois, em reunião do Conselho de Ministros. NoParlamento, com frequência, discutem-se várias iniciativassobre o mesmo tema apresentadas pelos diferentes gruposparlamentares e pelo governo. Muitas vezes, o agendamentopara debate de uma iniciativa pode aguardar a apresentação de

legislativas. Estetrabalho é igualmen-te efectuado em co-laboração com osEstados membrosque se comprome-teram a apresentarrelatórios sobre aevolução da quali-dade legislativa nosrespectivos países.Para acesso a to-dos os documentosproduzidos sobreesta matéria ver ( h t t p : / /e c . e u r o p a . e u /g o v e r n a n c e /better_regulation/index_en.htm), con-sultado em 19 deMarço de 2007.11 Em especial o tra-balho desenvolvidopelo INA no âmbitodo curso da “Feituradas Leis” e da suarevista “Legislação– Cadernos de Ci-ência de Legisla-ção”.12 Veja-se Rocha,Manuel Lopes, “Fun-ção do Ministério daJustiça”, A Feituradas Leis, vol II, INA,1986, p 197-217,para os anteceden-tes das preocupa-ções com a qualida-de legislativa, nome-adamente a criação,no âmbito do Minis-tério da Justiça, doGabinete Coorde-nador da ReformaLegislativa, porDespacho do Minis-tro Mário Raposo, de

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iniciativas pelos restantes grupos parlamentares ou pelo go-verno. O trabalho de apreciação e votação na especialidade éfeito em comissão especializada ou em plenário, concorrendopara a elaboração do texto o conjunto de deputados presentesna comissão respectiva ou no plenário.

O processo legislativo encontra-se profundamentearticulado com as maiorias políticas. A existência de um grupoparlamentar com maioria absoluta permite a aprovação dotexto apresentado por esse grupo, ou pelo governo, semnecessidade de procura de consensos. Quando não há umamaioria absoluta, o texto normativo resulta, muitas vezes, docontributo oriundo das diversas bancadas, pelo que a formu-lação final pode não ser a mais adequada, mas a resultante docompromisso possível15.

O regimento da Assembleia da República prevê, noartigo 137, os requisitos formais dos projectos e propostas delei. Esses devem ser apresentados por escrito, ser redigidossob a forma de artigos, eventualmente divididos em númerose alíneas, ter uma designação que traduza seu objecto principale ser precedidos de uma breve justificação ou exposição demotivos. A exposição de motivos implica, no que diz respeitoàs propostas de lei – apresentadas pelo governo ou pelasassembleias regionais –, na medida do possível, a apresentaçãode uma memória descritiva das situações sociais, económicas,financeiras e políticas a que se aplicam, uma informação sobreos benefícios e as consequências de sua aplicação e umaresenha da legislação vigente referente ao assunto.

A não aplicação dessas exigências aos projectos de leiapresentados pelos grupos parlamentares traduz o reconheci-mento de que o processo legislativo é crescentemente com-plexo e de que o Parlamento não está suficientemente dotadode meios técnicos que o permitam fazer face a essas exigências.De forma generalizada, assiste-se a uma crescente predomi-nância de iniciativas apresentadas pelos governos, ou pelosgrupos parlamentares que o sustentam, com o seu apoio.Entre as iniciativas aprovadas, as que foram apresentadas pelogoverno superam, quantitativamente, em muito, as que foramapresentadas por deputados16.

17 de Dezembro de1980 (DR, II S, nº274 de 26 de De-zembro de 1980),que foi substituídopelo Gabinete deApoio Técnico-Legislativo pelo DLnº 245/84, de 19 deJulho.13 CETAL – Centrode Estudos Técni-cos e ApoioLegislativo.14 KARPEN, U.Proliferation oflaws: diagnosis andtherapy? closingwords. In: KARPEN;WENZ (Ed.). Nationallegislation in theE u r o p e a nframework. Baden-Baden: EAL, NomosVerlagsgesellschaft,1998, p. 388-390,apresenta quatrorazões para a proli-feração legislativa:complexidade eevolução das con-dições de vida(tecnologia, ecolo-gia, relações mun-diais), a sobrep-osição do ordena-mento da UniãoEuropeia, o Estadode Direito previstonas constituiçõesnacionais, os cicloseleitorais e aactividade dos par-lamentares que que-rem ser reeleitos, oscidadãos que pro-curam ver resolvi-dos os seus direitosatravés do recurso

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O artigo 132 do regimento estipula que não são admi-tidas as iniciativas legislativas que não definam concretamenteo sentido das modificações a introduzir na ordem legislativa.Os relatórios elaborados sobre as iniciativas, antes da suaapreciação na generalidade, devem conter, nos termos doartigo 34 do mesmo instrumento, a análise sucinta dos factos,situações e realidades que lhe dizem respeito; o esboço históricodos problemas suscitados; o enquadramento legal e doutrináriodo tema em debate; as consequências previsíveis da aprovaçãoe dos eventuais encargos da respectiva aplicação; a referênciaaos contributos recebidos das associações, sindicatos ou outrasentidades que tenham interesse na matéria em apreciação; asconclusões e parecer; e, finalmente, a posição sumária dosgrupos parlamentares face à matéria em apreço.

A Constituição reflecte já esta exigência de participa-ção, destacando-se em particular a previsão da participaçãodas comissões de trabalhadores e das associações sindicais naelaboração da legislação de trabalho (artigo 56, nº 2, alínea "a")e das organizações representativas dos agricultores na defini-ção da política agrícola (artigo 98).

O regimento prevê igualmente a audição de comissõesde trabalhadores e associações sindicais quando se tratar delegislação do trabalho; a audição da Associação Nacional dosMunicípios Portugueses (ANMP) e da Associação Nacionalde Freguesias (Anafre) sempre que se trate de iniciativas quedigam respeito às autarquias locais; e a audição dos órgãos degoverno regional sempre que verse sobre matéria decompetência das regiões autónomas. Ciente de que a eficáciade uma norma depende cada vez mais da sua aceitação, oParlamento reforçou nos últimos anos o processo de audição.Para além das audições fixadas regimentalmente, as comissões,com sede de discussão na especialidade, procedem cada vezmais, e de forma sistemática, a audições públicas, chegandomesmo a duplicar as audições já efectuadas pelo governo17.

O processo legislativo parlamentar é público. A discus-são na generalidade é feita em plenário, publicada no Diário daAssembleia da República (DAR) e transmitida pela televisão.

aos tribunais (no-meadamente o Tri-bunal Constitucio-nal). Como terapiadefende a devolu-ção e asubs id ia r i edadeque, levada ao ex-tremo, pode chegarà não regulação eao liberalismo e a co-operação com osa g e n t e seconómicos e soci-ais (soft law) atra-vés de acordos eincentivos a deter-minados comporta-mentos. Entendeque se trata de umavia preferível a terlegislação que nãoé aplicada.15 “…Não tanto pordeficiências de téc-nica legislativa –valha a verdade,que muitos dos lap-sos e incongruênci-as dos textos legaisse devem menos àincompetência dostécnicos de que àsdificuldades deconcertação entreparceiros sociaisdesavindos ou aconsensos parla-mentares artificio-samente geradospor maiorias conjun-turais”, Vasconce-los, Pedro Bacelar,“Justiça em crise?Crises da justiça”Org. AntónioBarreto,. Publica-ções D. Quixote,2000, p.408.

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O relatório que precede a discussão na generalidade é igual-mente publicado. As audições podem ser públicas e, comfrequência, dada a publicidade dos trabalhos preparatórios,são recebidos contributos de cidadãos, académicos ou orga-nizações18.

A ampla participação e discussão pública não sãoisoladamente garantia da qualidade da legislação produzida.Falta sobretudo a articulação com a legislação em vigor e aavaliação do impacto das leis, quer ex ante, quer ex post. Paraalém da falta de cumprimento, por vezes, dos dispositivosregimentais já referidos, outros factores concorrem paraessas deficiências do trabalho legislativo, como a escassezdos serviços técnicos do Parlamento19, a influência doscalendários eleitorais nos trabalhos parlamentares e a pressãoda opinião pública.

Nenhuma das normas regimentais referidas é recente,pelo que podemos concluir que não são seguramente sufici-entes. Mais do que repensar as normas que regulam oprocesso legislativo na Assembleia da República, há quemudar substancialmente a prática. À semelhança do que sepassa noutros parlamentos, na VIIª Legislatura (1995 a 1999),o presidente da Assembleia da República, Almeida Santos,ponderou a hipótese da constituição de uma comissão espe-cializada que exercesse um controlo sobre a qualidade das leisaprovadas, não tendo nunca, no entanto, formalizado essaproposta

O Grupo Parlamentar do PS apresentou, no início daVIIIª Legislatura (1999 a 2002), a “Iniciativa Parlamento2000”, que abrange um conjunto articulado de projectoscentrados em torno de cinco eixos de inovação. Um dos eixosera justamente a instituição de procedimentos visando assegurara qualidade da redacção das leis e o controlo parlamentar dasua regulamentação e boa execução. Eram propostas a criaçãode um mecanismo de avaliação e garantia da qualidade daredacção das leis (a accionar na fase final da votação naespecialidade e antes da votação final em plenário) e a criaçãode uma Comissão de Acompanhamento da Regulamentação e

16 Leston-Bandeira,Cristina, “The role ofthe portuguesep a r l i a m e n t :Towards alegitimation ins-titution” relatórioapresentado naConferência ECPRW o r k s h o p s :Mannheim, Abril1999, apresenta osdados para as dife-rentes legislaturas.17 “The promotion ofpublic hearings hasalso been anexpanding feature ofthe Assembleia daRepública. This hasaccompanied thestrengthening of thecommittees role. In1988 the power to takeevidence wasrecognised in theRules of Procedureand, in 1993, it wasformally recognisedthat the auditionscould have placepublicly. Asc o m m i t t e e sproceedings becamemore open to the me-dia, calling for a publichearing has alsobecome more popu-lar”, LESTON-BAN-DEIRA, C. The role ofthe portugueseparliament: towardsa legitimationinstitution. Relatórioapresentado na Con-ferência ECPRW o r k s h o p s :Mannheim, Abril1999. Sobre o refor-

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Execução das Leis.

Propunha-se ainda o lançamento da iniciativa LeisSimples, por articulação entre a Assembleia da República e osdepartamentos governamentais competentes, tendente a eli-minar disposições inúteis e tornar facilmente perceptíveis asregras aplicáveis a empresas e a cidadãos; o lançamento deiniciativas de compilação, codificação; consolidação e divul-gação electrónica de textos legais; e a publicação de umrepertório anual da legislação em vigor20.

Em 2006 foi criado um grupo de trabalho com vistasà elaboração de um "Guia de Boas Práticas Legislativas" quedeveria incidir sobre as seguintes matérias: Notas deadmissibilidade das iniciativas legislativas; Legística; Audiçãoe discussão pública; e Acessibilidade da legislação.

No início de 2007, as propostas apresentadas pelo grupode trabalho foram distribuídas aos grupos parlamentares paraconsideração no âmbito da reforma da Assembleia da República.Do conjunto de propostas apresentadas, podem-se destacar oalargamento dos requisitos formais dos projectos de lei, aadmissão mais exigente das iniciativas legislativas; a exigênciado envio de estudos de avaliação prévia do impacto dasiniciativas produzidos pelo governo; a realização de estudos deimpacto prévio de iniciativas parlamentares; a alteração doprocesso de audição e discussão pública, que passaria a ser feitode modo exclusivamente electrónico; o acompanhamento maiscélere do processo de regulamentação das leis; e a definição decritérios mais estritos para a republicação das leis.

b) Governo

O processo legislativo governamental não tem tantasreferências constitucionais como o parlamentar:

A Constituição regula em pormenor o processo legislativoparlamentar mas é muito parca em matéria de processolegislativo governamental. Isto é fruto da herança doEstado liberal. No Estado liberal, o legislador era oParlamento e quanto ao Governo havia aquela visão de

ço da participação nafase da elaboraçãodo anteprojecto, e de-fendendo uma maiorantecipação das con-sultas entre os dife-rentes ministérios,nomeadamente o dasFinanças, o da Justi-ça e a PCM e dasconsultas a agentespolíticos, económicose sociais, logo a partirda fase inicial deredacção, veja-seVITORINO, A Preâm-bulo e Nota Justifica-tiva. In: VALERA, A etal. A feitura das leis.Lisboa: Instituto Naci-onal da Administra-ção, 1986. v. 2, p.119. Note-se aindaque a duplicação dasconsultas jáefectuadas numafase inicial pelo go-verno não consistenum exercício inútilporque o governoefectuou-as com umadeterminada ponde-ração de interessese, no âmbito da apre-ciação parlamentar, aponderação de inte-resses deverá ser di-ferente.18 O caso do proces-so de revisão cons-titucional de 1997 éparadigmá-tico nes-te aspecto. Foramenviados várioscontributos quer deorganizações políti-cas, quer deacadémicos, quer

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que o Governo não invadia a área do legislativo,quedava-se no executivo.21

Para além da escassez de previsão constitucional, osgovernos optavam por não publicar o seu respectivo regimento.Desde sempre houve a prática de audição do ministro dasFinanças em todos os actos que envolvam aumento dedespesas ou diminuição de receitas22; e do ministro responsá-vel pela Administração Pública em matérias que se prendamcom esta, tais como quadros, carreiras e pessoal. Os projec-tos circulam pelos gabinetes de todos os membros do Conselhode Ministros, bem como pelos gabinetes dos ministros daRepública para as Regiões Autónomas. Durante a circulação,podem aqueles gabinetes transmitir ao gabinete do secretáriode Estado da Presidência do Conselho de Ministros e aosgabinetes dos ministros proponentes quaisquer objecções oucomentários ao projecto circulado.

Também no processo legislativo governamental seprocuram novas formas de auscultação e participação, visan-do garantir, dessa forma, uma maior identificação econsequentemente maior adesão e cumprimento por parte dosdestinatários das normas. Muitos dos trabalhos legislativos doMinistério da Justiça têm sido precedidos do lançamento detemas para debate no seu sítio da internet e, com frequência,durante a elaboração de uma iniciativa legislativa, são organi-zados debates públicos visando à participação e à auscultaçãodos cidadãos, organizações ou empresas destinatários dasmedidas normativas.

O estatuto da oposição, aprovado em 199823, consa-grou o direito de participação legislativa aos partidos políticosrepresentados na Assembleia da República e que não fizessemparte do governo. Esses têm o direito de se pronunciar nodecurso dos trabalhos preparatórios de iniciativas legislativasdo governo relativas a eleições e associações e partidospolíticos.

No percurso trilhado à procura de soluções quegarantissem uma maior qualidade e acessibilidade legislativa,

de particulares, queforam publicados noDAR e distribuídosaos Deputados emconjunto com osvários projectos derevisão constitucio-nal. Foi a revisão de1997 que consa-grou igualmente apossibilidade da ini-ciativa legislativapopular.19 Até à revisão daLei Orgânica, em1993, existia na ARuma AssessoriaJurídica que tinhacompetências aonível da redacçãofinal das leis. Esteserviço foi extintoentão, tendo sidoprevista a criaçãode um Centro deEstudos Parlamen-tares, o que até aopresente não foi fei-to. A verificação daredacção final dasleis é efectuadaquer pelas Comis-sões quer pela Divi-são de Apoio ao Ple-nário, mas numaperspectiva essen-cialmente formal.20 Estas iniciativasconstantes da Inici-ativa Parlamento2000 não constamcontudo dosprojectos lei que fo-ram simultaneamen-te apresentados.21 Rebelo de Sousa,Marcelo, “A decisãode legislar”, Legis-

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cabe uma referência à já citada Lei nº 74/98, de 11 denovembro, designada "lei formulário", que introduziu oureforçou algumas regras de disciplina no processo legislativo24.

É de se destacar a restrição feita às rectificações, coma diminuição do prazo para a sua publicação, a exigência de queconste em um diploma que altere outro a referência à suahistória, a exigência de republicação integral dos textosalterados quando a natureza ou a extensão da alteração ojustificar e, ainda, a actualização do conjunto de actos publi-cados na 1ª série do Diário da República.

Em 2001, por meio da Resolução do Conselho deMinistros nº 29/2001, de 9 de março, sob proposta do ministroda Reforma do Estado e da Administração Pública, foi criadaa Comissão para a Simplificação Legislativa, a quem competia,em articulação com os restantes ministérios:

• identificar áreas da legislação existente que devem serobjecto de intervenção, elaborar estudos e emitir recomenda-ções com vistas à simplificação e à melhoria da qualidade dalegislação e regulamentação;

• analisar e propor medidas que visem à maior acessi-bilidade da legislação, designadamente por meio da consolida-ção, compilação ou codificação;

• analisar e apresentar situações em que se justifique adeslegalização ou desregulamentação, incentivando nessasáreas a auto-regulação ou outras formas de actuação;

• estudar os procedimentos legislativos e institucionaisvigentes, com vistas à propositura de novas regras de simplificaçãorelativamente à produção de novos actos normativos.

Essa comissão não concluiu os seus trabalhos devidoà dissolução da Assembleia da República e à consequenteconvocação de novas eleições.

O Regimento do Conselho de Ministros, aprovado pelaResolução nº 126-A/2004, de 3 de setembro, referia no seupreâmbulo, que

lação, INA,desgravação dae x p o s i ç ã oefectuada no Cursosobre a Feitura dasLeis,1990 (revistopelo autor, que lhemanteve a primitivafeição oral).22 O Regimento daAssembleia da Re-pública (artigo 133º)determina que nãopodem ser apresen-tadas propostas delei, projectos de leiou propostas de al-teração que envol-vam, no anoeconómico em cur-so, aumento dasdespesas ou dimi-nuição das receitasdo Estado previstasno Orçamento.23 Lei nº 24/98, de 26de Maio.24 Beleza, M. dos P.P., Legislação, n.º22 Abril-Junho,1998, diz que “Em-bora grande partedos seus preceitosse apliquem apenasaos actos publica-dos na Iª Série doDiário da República,a verdade é que, àsemelhança do quejá anteriormente su-cedia em algunspontos, a Lei nº 74/98 contém regrasque valem para ageneralidade dos di-plomas”.

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No âmbito do procedimento legislativo, inova-se, entreoutros aspectos, estabelecendo um conjunto de regrastécnicas de legística, visando garantir uma maior qua-lidade normativa e linguística dos textos aprovados, eprevendo a necessidade de identificação expressa dosregulamentos indispensáveis para a concretização eexecução de actos legislativos do Governo.

O XVII Governo Constitucional manteve essa prática,e, assim, o Regimento do Conselho de Ministros, aprovadopela Resolução nº 82/2005, de 15 de abril, e alterado pelaResolução nº 64/2006, inclui o Anexo II com as “Regras deLegística na elaboração de actos normativos pelo XVIIGoverno Constitucional”. É de se destacar, nessa alteração, aadopção de medidas de avaliação prévia e sucessiva doimpacto dos actos normativos do governo, nomeadamentepor meio da aprovação de um modelo anexo de teste deavaliação do impacto dos actos normativos do governo, oteste Simplex; da implementação de medidas relativas aocontrolo da qualidade dos actos normativos do governo noque respeita à sua qualidade técnica, por meio da revisão dasregras de legística; e, por fim, da instituição de um novoprocedimento de audição aberta.

O teste Simplex, elaborado pelos departamentos go-vernamentais responsáveis pela iniciativa, inclui uma caracte-rização dela, os encargos administrativos, a avaliação dessesencargos, a compatibilidade com a administração electrónica,a consolidação normativa e a avaliação e parecer. Esse teste éaplicado quer às medidas legislativas aprovadas pelo governo(sob a forma de decreto-lei), quer às propostas de lei que estesubmete à Assembleia da República. É de se referir, porém,que o teste, depois de preenchido, não é enviado à Assembleiada República.

3 A situação em vários países europeus

Nesta análise, pretendeu-se tomar em consideração astrês fases que se consideram essenciais no âmbito da qualidadelegislativa25: a fase de instrução pré-legislativa, na qual se inclui

25 Estes parâmetrosresultam dos relató-rios produzidos pelaOCDE, pela Comis-são Europeia e peladoutrina lida sobre amatéria.

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uma avaliação da necessidade de legislar, a escolha do instrumentoregulador (infralegislativo, nacional, comunitário ouinternacional), a análise prévia do impacto da iniciativa naadministração e na sociedade e a consulta de interesses, abertaaos contributos científicos, académicos, corporativos e gerais;a fase do processo de adopção, aplicação e consequentes efeitosda iniciativa, na qual se incluem os cuidados a ter com a clarezado texto (legística formal), a transparência do processo, acriação de mecanismos de acompanhamento por parte doscidadãos e a exequibilidade da norma; e a fase de aplicação dalegislação, em que se torna necessária a criação de instrumentosque tornem as normas realmente acessíveis aos cidadãos.

Como já foi dito, o trabalho de verificação do que estáa ser feito em cada Estado tem sido desenvolvido pelaComissão Europeia, pela OCDE, e por diversas associaçõesenvolvidas nessa matéria. Esse trabalho confronta-se comalguns problemas relacionados com a diversidade linguísticadentro da União Europeia (agora a 27 Estados), comordenamentos influenciados pelo direito romano-germânico epelo direito anglo-saxónico, com sistemas constitucionaisdistintos e com uma diferença entre o que está estipulado e queacontece na prática. Este último problema parece ser muitodifícil de ultrapassar, como se tenta demonstrar neste artigo.

Assim sendo, e apresentadas as dificuldades, vejamosa situação em alguns países europeus, privilegiando-se, namedida do possível, as informações elaboradas pelas institui-ções de cada Estado à doutrina, e o trabalho desenvolvidotanto pelos governos como pelos parlamentos.

Alemanha

A iniciativa legislativa pertence ao governo federal, aoBundesrat, e aos grupos parlamentares do Bundestag. Amaior parte das iniciativas são apresentadas pelo governo, emuitas iniciativas apresentadas pelos parlamentares são tam-bém preparadas pelo governo federal.

Nesses termos, diversas iniciativas foram desenvolvi-das pelo governo federal, e ao nível dos Lander ,no sentido de

26 MULLER-GRAFF,P.C. The quality ofEuropean andnational legislation:the Germanexperiences andInitiatives. In:KELLERMANN et al.(Ed.). Improving thequality of legislationin Europe. TheHague: Kluwer LawInternational, 1998.p. 111-28.

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melhorar a qualidade da legislação26. Em 11 de dezembro de1984, foi aprovada e, mais tarde integrada no RegulamentoInterno Comum aos Ministros Federais de 11 de março de199627, uma grelha que deve ser preenchida pelo Ministérioresponsável quando de qualquer nova iniciativa legislativa, queestá contida na Blaue Pruffragen (por ser originariamentepublicada a azul).

Depois de preenchida esta grelha, a iniciativa é subme-tida ao ministro e a Chancelaria é informada, iniciando-se umanova fase de consulta dentro do governo, na comunidadeacadémica e aos governos dos Lander. Após o processo estarconcluído, o Ministério da Justiça efectua uma avaliaçãoformal da legalidade no contexto normativo existente, e aSociedade para a Língua Alemã avalia a terminologia utilizadae a unidade redaccional. Cada iniciativa é precedida de umapágina introdutória que explica o seu objectivo, a solução, asalternativas, os custos para o orçamento (com e sem os custosde aplicação) e outros custos (para a economia, segurançasocial). O objectivo é cada vez mais avaliar a opção zero (istoé, a necessidade de legislar), bem como uma maior associaçãode peritos e organizações não-governamentais no processodecisório.

A iniciativa vai depois para o Bundestag, seguindo oprocesso legislativo parlamentar. A questão de se saber se agrelha da Blaue Pruffragen se aplica igualmente para a análisedas iniciativas em sede de comissões parlamentares tem sidomuito debatida. O governo federal tem ainda de apresentarrelatórios ao Parlamento sobre a aplicação da legislação,efectuando-se uma codificação anual, pelo Ministério Federalda Justiça, das leis e decretos (parte I) e leis de ratificação detratados internacionais (parte II). Essa codificação está tam-bém disponível na base de dados do Bundestag on line(Gesta).

Após essa primeira fase, a Chancelaria lançou um novoprograma de reformas, em 1999, intitulado“Estado Moderno– Administração Moderna”, que compreende o reforço damodernização administrativa e do governo electrónico e a

27 A grelha estátraduzida em portu-guês por HelenaGeraldes para ocurso do INA sobrea A Feitura das Leis.

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redução da burocracia. Em setembro de 2000, foi lançado oBundOnline 2005 com o objectivo de colocar on line todos osserviços administrativos ao nível federal. Esse objectivo foiatingido em agosto de 2005 e ultrapassado em dezembro de2005 com 440 serviços disponíveis on line.28

Verifica-se, de facto, que a Alemanha já está numasegunda fase da qualidade legislativa, na qual, depois dosprocedimentos terem sido criados e aplicados de uma formasistemática, avançou-se para a avaliação dos resultados nosdiferentes sectores.

Áustria

No programa do governo (2007-2010) que tomouposse em 11 de janeiro de 2007, muitas das propostas quetinham sido apresentadas anteriormente foram retomadas.29

Um dos melhores exemplos é o da revogação das leisconstitucionais satélite, bem como a revogação de toda alegislação obsoleta e a republicação das leis. Essa medida temsido um objectivo de quase todos os governos, mas semresultados práticos.

No referido programa recentemente aprovado, foiconstituído um grupo de trabalho para a revisão da Constituição,em 2007, e para a criação de um programa para a reforma daadministração intitulado “Digital Áustria – Progressos eResultados”, que pretende pôr em prática algumas das medi-das do governo electrónico, do balcão único, do estudo doimpacto de custo-beneficio das iniciativas legislativas deacordo com o “Standard Cost Model”, etc.30

Bélgica

Duas características distinguem este Estado membro:o facto de ser um Estado federal, com parlamentos regionaise um Parlamento Bicameral (Câmara dos Representantes eSenado) e a existência do Conselho de Estado, órgão deconsulta do governo e do Parlamento31.

Em 1998, o governo criou um grupo de trabalho no seiodo Conselho de Estado que pretendeu seguir o exemplo

28 Sobre o programaBundOnline 2005ver (http://w w w . b u n d . d e /n n _ 2 1 1 3 0 0 /Fremdsprachen/S t r u k t u r / E N /BundOnline-2005/BundOnline-2005-knoten.html__nnn=true)consultado em 17 deMarço de 2007.

29 Ver o programa doGoverno Austríacoem (http://www.austria.gv.at/) consultado em 16de Março de 2007.

30 Aliás, neste âmbi-to, a Áustria éobjecto de criticasda ComissãoEuropeia no seuRelatório Anual deProgresso sobreCrescimento e Em-prego (COM 2006/30 final, de 25 deJaneiro).31 O Conselho deEstado (secção delegislação) emiteparecer sobre todasas iniciativas prove-nientes do governoe, facultativamente,das provenientesdo parlamento. VerCircular de 26 de Ja-

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alemão no estabelecimento de critérios sob a forma de umquestionário.32 O preenchimento deste questionário deviaacompanhar o texto da iniciativa ao longo da sua fasepreparatória (controlo pela inspecção das finanças, parecer doConselho de Estado, etc.).

No que dizia respeito ao Parlamento, um dos problemasconsistia do facto de que esse questionário era necessário paraos projectos de iniciativa governamental, mas não para aspropostas da iniciativa dos parlamentares. Em novembro de2001, o “Traité de Légistique formelle”33, composto porregras sobre avaliação do impacto administrativo e orçamental,consultas a sindicatos e a conselhos regionais e locais, regrasde legística formal, casos especiais, etc., destinadas a unifor-mizar a redacção das iniciativas (uma espécie de lei formulá-rio), passou a aplicar-se igualmente às duas Câmaras doParlamento Belga.

Dinamarca

Como é normal neste Estado, também o trabalho relativoà qualidade legislativa tem sido efectuado no âmbito de umaestreita colaboração entre o Parlamento e o governo. Osesforços concentraram-se em três domínios: na preparação dasiniciativas legislativas pelo governo, no planeamento do trabalhoparlamentar e na actividade das comissões parlamentares.

Tal como na maior parte dos estados, a maioria dasiniciativas são apresentadas pelo governo. Em 1999, o governoaprovou uma circular interna relativa à informação que deveriaacompanhar uma iniciativa legislativa apresentada ao Parlamento.Essa informação devia incluir uma avaliação das consequênciasfinanceiras e administrativas para o comércio, a indústria, oambiente e os cidadãos em geral, bem como uma análise da suaconformidade com o direito comunitário. Para além disso,foram redigidas “Orientações sobre a Qualidade Legislativa”bastante detalhadas para os funcionários governamentais, que,nos diferentes ministérios, são responsáveis pela redacçãoinicial dos textos. Essas directrizes dizem respeito à redacçãoformal e à estrutura das iniciativas, ao objectivo que se pretende

neiro de 1998 relati-va ao estudo do im-pacto dos projectosde lei e de decretosno Conselho de Es-tado. Veja-se ainda,sobre o papel doConselho de Estadobelga, Gilliaux, P.Les directiveseuropéennes et ledroit belge.Bruxelles: Bruylant,1997.32 Já o “arrêté royal”de 16 de Novembrode 1994 previa umquestionário que ti-nha de ser obrigato-riamente preenchi-do pelo autor de umainiciativa legislativa.33 http://w w w . r a a d v s t -conseta t .be/pdf /Lforf1.pdf (consul-tado em 17 de Mar-ço de 2007).

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atingir, bem como às esperadas consequências, ao tipo deinstrumento legislativo e às suas alternativas (outras formas deinfluenciar o comportamento dos cidadãos) e à verificação daconformidade constitucional, legal, comunitária e com asconvenções internacionais.

No que diz respeito ao trabalho parlamentar, o regimen-to do Parlamento foi alterado em 2005, procurando-se melho-rar o planeamento da apreciação das iniciativas legislativastanto em plenário como nas comissões. O objectivo eraproporcionar mais tempo para uma apreciação mais cuidado-sa dos textos e um maior envolvimento dos cidadãos nessaapreciação, respeitando-se o prazo mínimo de 30 dias entre aapresentação de uma iniciativa e a sua votação final. No quediz respeito à melhoria da qualidade formal da legislação,foram igualmente aprovadas regras sobre a matéria que estãointegradas no regimento (capítulos 2 e 6). A relação entre ascomissões parlamentares e os ministros tem também melho-rado, fornecendo o governo toda a documentação por elasrequerida. Todo o trabalho realizado em comissão está dispo-nível on line.

O Programa Nacional de Reforma, apresentado em2005, traz um capítulo sobre “Legislar Melhor” em que seestabelecem objectivos concretos. Um desses objectivos éreduzir os encargos burocráticos em 25% até 2010 (até julhode 2005 já foram reduzidos em 5,1%). A estratégia adoptadaapoia-se em um sistema de avaliação dos encargos de acordocom o “Standard Cost Model” e de simplificação da legislaçãoexistente; uma análise do impacto económico, social e ambientalde todas as iniciativas; o reforço do recurso ao governoelectrónico para a prestação de serviços; a melhoria datransparência e da comunicação com os cidadãos; e um maiorcontrolo sobre a legislação comunitária que impõe encargosque repercutem sobre os cidadãos nacionais.

Como se pode verificar, a Dinamarca, à semelhança daAlemanha, passou igualmente a uma segunda fase no domínioda qualidade legislativa.

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Espanha

Neste país, a reflexão sobre a qualidade legislativacomeçou nos anos 1980. O primeiro impulso foi a constituiçãode um grupo de estudos de técnica legislativa no seio doCentro de Estudos Constitucionais, que tinha sido criado em1977 como organismo autónomo sob a tutela do Ministério daPresidência. Esse grupo produziu algumas publicaçõescentradas na técnica legislativa34. Mas o passo mais significa-tivo foi a elaboração, pelo Centro de Estudos Constitucionais,das “Directivas sobre a forma e a estrutura dos anteprojectosde leis”, aprovadas pelo Conselho de Ministros em 18 deoutubro de 1991. Essa decisão foi depois publicada sob aforma de resolução no Boletim Oficial do Estado, em 18 denovembro de 1991.

A tónica dessas directivas centrava-se no princípio dasegurança jurídica (de acordo com o parágrafo 3 do artigo 9ºda Constituição de 1978). Este princípio abarca a clareza, aprecisão, o rigor, a coerência e a harmonia das leis, seja noplano interno à própria lei, seja no âmbito da sua relação como ordenamento jurídico vigente.

Para além disso, as directivas incluem indicaçõesprecisas para a redacção das iniciativas, desde o seu título,exposição de motivos, articulado e disposições finais. Aexposição de motivos é particularmente importante35, já queé sujeita a discussão parlamentar e publicada no BoletimOficial. Ela deve conter o objecto da iniciativa, os antecedentesnormativos e a competência orgânica – relação com oordenamento comunitário europeu e com o das regiões –,evitando fórmulas enfáticas ou autocelebrativas.

No que diz respeito à redacção do articulado, aplica-seo princípio da passagem do geral ao particular, do abstractoao concreto e do normal ao excepcional. Os requisitosaplicados são a finalidade da iniciativa, as definições, o âmbitode aplicação, o articulado, as infracções e sanções, a execuçãoe as disposições finais (temporais, revogatórias). No que dizrespeito ao articulado, as orientações são que de cada artigo

34 La forma de lasLeyes, Barcelona,1986; Curso de téc-nica legislativa,Madrid, 1989.

35 O próprio artigo88º da Constituiçãoestabelece que asiniciativas de leiaprovadas peloConselho de Minis-tros que serão envi-adas ao parlamentodevem ser acompa-nhadas das exposi-ções de motivos ede toda a informa-ção indespensávelpara que o parlamen-to se possa pronun-ciar sobre o méritoda iniciativa.

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deve constar um argumento, de cada parágrafo, uma propo-sição e de cada proposição, um conceito.

Foram igualmente estabelecidos parâmetros para ava-liar o nível qualitativo das normas em um contributo, maisuma vez, do Centro de Estudos Constitucionais36. Essesparâmetros situam-se, em primeiro lugar, no plano dalegalidade, adequação com o ordenamento jurídico em vigore com a Constituição, tendo em consideração a repartiçãohorizontal e vertical de competências e, em segundo lugar,no plano da exequibilidade.

As mencionadas directivas aplicam-se ao governo e àsua administração, já que têm por objecto os anteprojectos deleis que serão apreciados em Conselho de Ministros. Não sãoportanto aplicáveis ao trabalho parlamentar. Mas é ainda denotar que, à semelhança de todos os outros estados, a maioriadas iniciativas legislativas provêem do governo, que tem aindapoder regulamentar com reserva de regulamento.

No que diz respeito ao trabalho parlamentar, a Mesa doCongresso de Deputados e do Senado aprovaram conjunta-mente “Normas sobre o regime de assessoria às Comissões doCongresso de Deputados e do Senado”, pelas quais foramcriadas as “Unidades de assessoria parlamentar”, constituídaspor funcionários que prestam apoio técnico às comissões, quecompreendem a elaboração de uma nota informativa sobre cadaprojecto de lei, que abarca a incidência da nova iniciativa noordenamento constitucional e legislativo em vigor, com referênciaà jurisprudência, às leis regionais, ao direito comunitário e aodireito comparado; a análise técnico-legislativa da iniciativa,tendo em consideração a estrutura e a lógica das disposições,não apenas do ponto de vista formal, mas também substancial.

No Programa Nacional de Reforma, apresentado emoutubro de 2005, o capítulo IV.5 é dedicado a “Mais compe-tência, melhor regulamentação, eficiência das administraçõespúblicas e competitividade”37. No que respeita à qualidade dalegislação, o programa refere a melhoria da exposição demotivos que acompanham as iniciativas legislativas, tanto

36 Montoro Chiner, M.J. Adecuación alordenamiento yf a c t i b i l i d a d :presupuestos decalidad de las nor-mas. Madrid: Cen-tro de Estudios Polí-ticos y Constitu-cionales, 1989.

37 http://www.la-moncloa.es/PRO-G R A M A S / P N R /default.htm?idioma=es-ES, consultado em16 de Março de2007.

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quanto ao impacto global como quanto ao impacto económi-co. A iniciativa não se limita apenas ao aspecto orçamental,mas implica também um reforço do governo electrónico noâmbito do Plan Avanz@.

À semelhança da Áustria e da Bélgica, fica-se assimcom a ideia de não se ter passado do plano processual einstitucional para uma prática sistemática em termos dequalidade legislativa, já que, em um plano apresentado em2005, foram reapresentadas muitas ideias que se julgavamjá em plena execução.

Finlândia

Tal como na Dinamarca, existe uma estreita colabora-ção entre o governo finlandês e o respectivo Parlamento, emespecial a Grand Committee.

De acordo com a Constituição, a iniciativa legislativasurge, geralmente, sob proposta do governo, que segue as“Instruções para a produção das propostas do governo”(1992). Antes de serem consideradas pelo Parlamento, asiniciativas são apreciadas pelo Conselho de Estado e peloMinistério da Justiça, que desempenha um papel nuclear nasupervisão dos aspectos técnicos da produção legislativa.Apesar de cada ministério ser responsável por legislar sobrematérias da sua competência, existe um estreito relaciona-mento interministerial na preparação legislativa.

A produção legislativa compreende uma fase de pre-paração preliminar, consulta, decisão governamental,apreciação parlamentar, ratificação, promulgação eentrada em vigor e avaliação dos efeitos após aentrada em vigor.

Geralmente a preparação da iniciativa tem por base oprograma do governo que tem aplicação mais detalhada em um“project portfolio”. Pode ainda ter por base orientações apre-sentadas em debates parlamentares, orientações do procura-dor-geral ou mesmo ter por base opiniões suscitadas em debatepúblico (para além das iniciativas que executam o direito

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comunitário). O governo deverá regularmente elaborar umalista de todas as propostas legislativas em curso para sepromover uma maior transparência no processo. A referida listadeverá ser publicada e distribuída às partes interessadas e aoDepartamento de Redacção Legislativa do Ministério da Justiça.

Os critérios para a garantia da qualidade da legislaçãonacional que constam das acima citadas “Instruções para aprodução das propostas do governo” consistem de:

1 – assegurar a qualidade da redacção legislativa;

2 – definir e monitorizar os resultados desejados;

3 – ter em consideração a legislação comunitária,assegurando que a redacção legislativa nacional estejalogicamente coordenada com aquela;

4 – ter em consideração os acordos internacionais;

5 – ter em consideração os direitos fundamentaiscontemplados na Constituição;

6 – redigir a iniciativa de forma perceptível aos cida-dãos, para que esses possam conhecer os seus direitos edeveres pela leitura própria da lei;

7 – verificar que todas as propostas legislativas relati-vas à mesma matéria estão a ser consideradas de formacoordenada e sistemática;

8 – verificar que as alterações à lei constituem umexercício exequível, devendo desenvolver-se esforços nosentido de evitar uma sucessão de alterações parciais, deelaborar normas flexíveis e de reduzir o seu número. No queconcerne à iniciativa legislativa, a alternativa entre regulamen-tação pública e auto-regulamentação deve ser considerada.

Os critérios para a avaliação do impacto das propostaslegislativas constam igualmente das referidas “Instruções”:

1 – dever-se-á compreender suficientemente a presen-te situação social;

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2 – os efeitos directos e indirectos da legislação e assuas alternativas devem ser tidos em conta relativamente acada destinatário. Essa avaliação deve considerar o impactonas autoridades públicas, na sociedade civil, nos gruposempresariais e industriais, assim como no ambiente. Oscustos e todas as consequências financeiras da legislação emcausa deverão ser concretamente previstas;

3 – dever-se-á ter em conta o tempo e os recursosafectos ao estudo da presente situação social e da avaliação doimpacto e do acompanhamento da fase de instrução pré-legislativa. No caso de ser legislação nova, dever-se-á atentarà sua implementação e aplicação prática;

4 – o Ministério das Finanças deverá preparar princí-pios orientadores para a avaliação dos efeitos económicos e oMinistério do Ambiente deverá preparar princípios orientadorespara a avaliação do impacto ambiental na fase de instrução pré-legislativa;

5 – os ministérios devem assegurar umamonitorização da investigação nacional e internacional edos debates públicos.

Ainda na fase preparatória, pode-se constituir umgrupo de trabalho que agrupe não apenas funcionários, masigualmente académicos e peritos externos. Em iniciativas quetêm um grande impacto na economia, na sociedade ou noambiente, pode-se mesmo constituir uma comissão queagrupe parlamentares, representantes das organizações não-governamentais, etc., que receba um mandato escrito com osobjectivos e com o prazo para o trabalho a realizar, que nãopode exceder dois anos. As consultas e as audições sãosempre incentivadas, mesmo nos casos em que não éconstituído um grupo de trabalho ou uma comissão. Todos osrelatórios são publicados e acessíveis ao público, podendo darazo a um debate público.

Na apreciação parlamentar efectuada pelas comissõescompetentes em razão da matéria (que dispõem de toda ainformação acima referida), são igualmente realizadas consul-

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tas e audições. Todo o trabalho de apreciação parlamentar estátambém disponível no sítio da internet.

Na fase em que a legislação já se encontra em vigor,cada ministério deverá monitorizar o seu impacto e, senecessário, dever-se-ão preparar propostas para que sejamerradicados os efeitos indesejados. Para os diplomas maisimportantes, essa avaliação ex post pode ser organizada deuma forma mais sistemática, nomeadamente pela elaboraçãode um estudo que abarque um determinado número de anosapós a sua entrada em vigor.

Note-se que a Finlândia está tão avançada nesse domínio,que, para além de ter as “Instruções para a produção daspropostas do governo” (1992), ainda tem: “O Manual doLegislador” (1996, que irá ser em breve revisto), “O Manualpara o legislador que executa o direito comunitário” (2004), o“Guia para o legislador constituinte” (2000), “O Manual parao redactor de tratados” (2003), “Orientações para a avaliaçãodo impacto económico” (1998), “Orientações para a avaliaçãodo impacto ambiental” (1998), “Orientações para a avaliaçãodo impacto nas empresas” (1999), “Orientações para aavaliação do impacto no desenvolvimento regional” (2004),“Orientações para a avaliação do impacto na igualdade deoportunidades” (2003), “Previsão das infracções e sançõespenais na legislação” (2002).

Finalmente, o Parlamento também publicou um guiapara orientar os parlamentares na apresentação de iniciativaslegislativas.

França

Em 1995, a Secretaria-Geral do Governo registou7.657 leis em vigor (sem contar as leis de ratificação detratados, leis de codificação e de modificação de outra lei), eos textos regulamentares (o governo tem reserva deregulamento) rondavam 100 mil.

Na França, o Conselho de Estado38 funciona como umórgão consultivo do governo (artigo 39 da Constituição),

38 Sobre o Conselhode Estado veja-sew w w . c o n s e i l -e t a t . f r / c e - d a t a /a q u o i /c o n s g o u 1 . h t m ,(30.11.00) eSAURON, J.-L.L’application du droitde l ’Unioneuropéenne enFrance. Paris :Réflexe Europe, LaD o c u m e n t a t i o nFrançaise, 1995.

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dando o seu parecer sobre todas as iniciativas apresentadaspelo governo, abarcando os aspectos redaccionais, a coerên-cia interna, a inteligibilidade e a exequibilidade.

As iniciativas do governo são abrangidas pela Circularde 30 de janeiro de 199739, relativa à elaboração, assinatura epublicação dos textos no Jornal Oficial. Essa circular é muitodetalhada e estabelece as regras gerais sobre elaboraçãoformal dos textos, exposição de motivos, consultas a efectuar(aos diferentes ministérios, ao Conselho Económico e Social,ao Conselho de Estado, às colectividades regionais e a outrosorganismos), requisitos processuais governamentais eparlamentares40, controlo do Conselho Constitucional, entreoutros. A 26 de janeiro de 1998, foi adoptada a circular relativaao estudo do impacto dos projectos de lei e de decretos peloConselho de Estado. O estudo do impacto é não só jurídico,como administrativo, social, económico, e abrange a análisecusto-benefício. Esse estudo deve ser remetido ao Parlamento.

Em 2 de outubro de 2003, foi publicada uma circular(de 30 de setembro) relativa à qualidade da regulamentação.Nela se define um conjunto de orientações que visam comba-ter a inflação legislativa e melhorar a qualidade legislativa.Solicita-se aos ministérios que adoptem uma carta da qualida-de da regulamentação e designem funcionários encarregadosdessa questão, e fixa igualmente as linhas orientadoras de umareforma do processo de estudos de impacto.

Em abril de 2004, um grupo de trabalho presidido porBruno Lasettr, conselheiro de Estado, a pedido do secretário-geral do governo, entregou um relatório intitulado "Para umamelhor qualidade da regulamentação", que visa modernizar osestudos de impacto e avaliar os custos e benefícios de umaregulamentação. O relatório preconiza uma redução dosestudos de impacto, mas que estes sejam mais exaustivos. Emparticular, sugere que sejam estudadas as alternativas aorecurso à regulamentação. Propõe ainda, à semelhança do quese passa no Reino Unido, que as iniciativas em preparaçãosejam disponibilizadas ao público.

39 Publicada em Jor-nal Oficial de 1 deFevereiro de 1997,p. 1720-61.

40 De notar o factocurioso de uma cir-cular do 1º Ministrose debruçar sobreo procedimentolegislativo parla-mentar.

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A Assembleia Nacional publicou, em junho de 1995,um relatório intitulado “L’insoutenable application de la loi”.Nesse relatório apontavam-se quatro obstáculos para uma boaactividade legislativa: uma intervenção tardia, a proliferaçãolegislativa, a má qualidade legislativa e a fraca acessibilidade dalegislação. Definiam-se depois uma série de medidas parareduzir as iniciativas legislativas e proceder a uma codificaçãosistemática. Previa-se ainda que o Parlamento fosse informadodas iniciativas e dos relatórios sobre elas efectuados, pelomenos dois meses antes de serem apreciadas no Parlamento,por forma a preparar melhor a sua apreciação e a poderenvolver os cidadãos na sua decisão.

Ainda no âmbito parlamentar, foi criado, em 1983, o“Office” de avaliação das escolhas cientificas e tecnológicas41 ,e, em 1996, no seguimento do acima citado relatório de junhode 1995, as Leis 96/516 e 96/517, de 14 de junho, criaram,respectivamente, o “Office” para a avaliação legislativa, en-carregado de verificar a qualidade e eficácia da legislação; e o“Office” da avaliação das políticas públicas, encarregado deverificar os efeitos económicos, sociais e financeiros dalegislação. O primeiro inseria-se no âmbito da Comissão deLeis, sendo composto por 15 deputados e 15 senadores, e osegundo na Comissão de Finanças, sendo composto por 16deputados e 16 senadores. Uma série de factores42 contribu-íram para que esses “Offices” não funcionassem, entre eles asubordinação às comissões permanentes e o facto de agrupa-rem duas delegações das duas câmaras, com maiorias diferen-tes, tendo produzido escassos relatórios. Praticamente deixa-ram de existir quando, em 1999, foi criado, no âmbito daComissão de Finanças da Assembleia Nacional, a “Missiond’évaluation et de contrôle”43. O Senado pretendia criar umorganismo semelhante.

Uma das mais antigas e consolidadas experiências decodificação é a francesa. A codificação começou de formasistemática em 1948 e é assegurada sempre em referência aosartigos dos códigos. Um novo programa de codificaçãoconduziu, em 1989, à criação da Comissão Superior de

41 Veja-se Duprat,Jean-Pierre, “Lep a r l e m e n tévaluateur”, Revueinternationale dedroit comparé, 1998,p. 551.

42 Veja-se Duprat,Jean-Pierre, “Costsof Legislation forE c o n o m y -Bureaucracy andCitizens”, relatórioapresentado noFourth Congress ofthe EuropeanAssociation ofLegislation, Varsó-via, 15-16 Junho2000.43 HOCHEDEZ, D.C h r o n i q u ebudgétaire: Lamission d’évaluationet de contrôle. RevueFrançaise desFinances Publiques,n. 68, p. 261-276,déc. 1999. p. 261.

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Codificação44, sob a tutela do próprio primeiro-ministro, como objectivo de alcançar até 2001 uma codificação integral dasleis e regulamentos existentes. A actividade da comissãoresultou na adopção de cinco códigos entre 1991 e 1993,existindo um plano quinquenal (1996-2000) aprovado pelacomissão que prevê 22 novos códigos e a reedição de 18códigos já existentes. Trata-se de uma tarefa com grau dedificuldade inferior ao que seria de supor, por o exercício sera direito constante. O Parlamento é envolvido por meio daaprovação dos códigos. Note-se contudo que esse ímpetocodificador é objecto de várias criticas45.

Itália

Após os estudos efectuados nos anos 1980 por diver-sas comissões instituídas no âmbito governamental (Comis-são Giannini-Cassese, para a reestruturação de algumas áreaslegislativas, e Comissão Barettoni-Arleri , sobre a exequibilidadeda legislação)46 e que foram apresentados ao Parlamento,foram adoptadas a circular de 24 de fevereiro de 1986,denominada “Formulação Técnica dos Actos Normativos”, ea circular de 13 de maio de 1986, com os critérios orientadorespara a redacção das notas sobre actos normativos. No âmbitoda Lei nº 400, de 23 de agosto de 1988, outras medidas foramadoptadas, nomeadamente a criação de um centro de coorde-nação técnica da legislação junto do gabinete do primeiro-ministro (quando essas funções eram anteriormente executa-das no Ministério da Justiça).

Nos últimos anos, a reflexão sobre a simplificaçãolegislativa e administrativa teve um novo impulso com osaneamento económico-financeiro e com as amplas reformasinstitucionais em curso. Os dados quantitativos são significa-tivos: existem cerca de 13 mil actos com força de lei geral (naItália existe o problema dos decretos governamentais deurgência, que são posteriormente ratificados pelo Parlamento)a que se somam 8 mil leis regionais e 5 mil actos normativosregionais regulamentares.

A simplificação foi realizada por meio das “leis Bassanini”(Lei nº 127/1997, que prevê intervenções directas de sim-

44 Décret nº 89-647de 12 de Setembro1989. Esta Comis-são vem referida naCircular de 30 de ja-neiro de 1997.

45 Guy, Stéphane,“Une utopie: lacodification”, RevueFrancaise de DroitConstitutionnel, nº26, 1996.46 Veja-se sobretoda a actividadeprosseguida nosanos 80, VOZZI, E.The technicaldrafting oflegislative texts inthe Italianexperience. In:Karpen; Wenz (Ed.).National legislation inthe Europeanframework. Baden-Baden: EAL, NomosVerlagsgesellschaft,1995, p. 152-203.

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plificação administrativa e processual, e a Lei nº 59/1997, queprevê um mecanismo de simplificação legislativa periódica).Essa iniciativa é concretizada por uma lei anual de simplificaçãoque o governo tem de apresentar anualmente às duas câmaras.A primeira lei anual (Lei nº 50/1999) de simplificação foipromulgada em março de 1999. Esta lei prevê que a Presidênciado Conselho de Ministros melhore os métodos de elaboração,aplicação e acessibilidade legislativa, efectuando estudos so-bre o estado da legislação, os instrumentos de recolha deinformações, a coordenação das fontes normativas e astécnicas de avaliação dos efeitos da política legislativa, e queos transmita ao Parlamento. Prevê igualmente uma codificaçãopor sectores que será efectuada pelo governo com base emorientações parlamentares. Introduz-se ainda, a títuloexperimental, a análise do impacto da regulamentação (AIR).No âmbito da Presidência do Conselho de Ministros, foi criadauma “Unidade para a simplificação legislativa e processual”.

Foram as questões relacionadas com os procedimen-tos orçamentais que primeiro levantaram a necessidade deuma avaliação da legislação no quadro de uma cooperaçãointerinstitucional inevitável. Segundo esse procedimento, ogoverno submetia ao Parlamento um relatório técnico sobre oimpacto financeiro das suas opções orçamentais, como formade responsabilização, estimulação e controlo democrático.Com a nova Lei 208/1999, a Itália optou por uma abordagemde completa reestruturação do procedimento orçamental,colocando a tónica em um acompanhamento que permite umescrutínio parlamentar por parte das comissões parlamenta-res competentes47.

Em 2000 foi aprovada uma directiva e, um ano depois,o novo presidente do conselho aprovou a nova directiva:“Experimentação da avaliação de impacto dos actos normativossobre os cidadãos, empresas e administrações públicas”. Ocontrolo da experimentação foi entregue ao Comité deOrientação, formado pelos responsáveis dos vários serviçosenvolvidos no processo de simplificação legislativa.

47 Veja-se PALANZA,A Evaluation oflegislation in Italy:methods andprocedures in theCamera dei Deputati.Relatório apresenta-do no FourthCongress of theE u r o p e a nAssociation ofLegislation, 15-16 Ju-nho 2000, Varsóvia.

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A avaliação do impacto está assim confiada aos respon-sáveis legislativos dos diferentes ministérios e a preparaçãodos funcionários ficou a cargo de um organismo autónomo,Formez. Não há no plano governativo uma orientação clarasobre a necessidade da avaliação do impacto, os projectosrecebidos no Parlamento não são acompanhados desta análisee pouco se sabe exteriormente em relação aos trabalhos desteorganismo48.

Os presidentes das duas câmaras (Câmara dos Depu-tados e Senado) emitiram duas circulares idênticas, em janeirode 1997, em matéria de instrução legislativa, que visam definiros elementos considerados essenciais para a apreciação emsede de comissão das iniciativas legislativas, a começar pelaavaliação da necessidade de intervenção normativa. Os pedi-dos de informação por parte das comissões parlamentares aogoverno deverão permitir uma maior capacidade de análiseprévia dos futuros efeitos da iniciativa legislativa. Em confor-midade com as circulares, o regimento da Câmara dosDeputados foi alterado em 1998. Passou a exigir-seexpressamente que as comissões parlamentares avaliassem areal necessidade das iniciativas, a sua coerência com o sistemanormativo, a homogeneidade do texto (simplicidade, clarezae coerência interna) e a sua exequibilidade. Para o efeito, ascomissões podem pedir todos os elementos que entendamnecessários ao governo, o que não significa que os recebam.Existe ainda um órgão parlamentar de apoio técnico àscomissões, o Comité para a Legislação, que tem por funçõesa avaliação da qualidade dos textos legislativos.

Países Baixos

A qualidade legislativa é uma preocupação que data de1968 e que foi provocada essencialmente pelos problemas deexecução das normas comunitárias. Um grupo de trabalhocoordenado pelo TMC Asser Instituut, sob a presidência doprofessor Maas, começou a debruçar-se sobre a aplicação dodireito comunitário, e foi produzido um relatório, em 1974,que não só se pronunciava sobre essa específica questão, masigualmente sobre a qualidade da legislação em geral49.

48 Elisabetta Catelani,“Avaliação deimpacte do actosnormativos – a situ-ação em Itália” in Le-gislação nº 36.

49 KELLERMAN, A E.The quality ofcommunity legisla-tion drafting. In:CURTIN, D.;HEUKELS, T. (Ed.).I n s t i t u t i o n a ldynamics ofEuropean Integra-tion, essays inhonour of Henry G.S c h e r m e r s .Dordrecht: MartinusNijhoff Publishers,1994, v. 2, p. 251-62.

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Após inúmeros relatórios, os critérios holandeses paraa definição do que se entende por boa legislação foramformulados nas “Directivas sobre Legislação”, de 199250, quese baseiam em vários memorandos relativos à legislação desde199151 e que estipulam os seguintes requisitos para umalegislação de qualidade:

• Análise da legalidade que compreende: consistência ecoerência com o enquadramento normativo e o costume;avaliação de efeitos secundários relativamente a outras normas;primado legislativo do Parlamento; ponderação dos diferentesinteresses; restrição da retroactividade; promulgação da lei.

• Análise da aplicação que abrange: a exequibilidade; aavaliação dos encargos para os cidadãos, organizações públi-cas e privadas; a investigação dos meios mais adequados paraa aplicação da lei.

• Análise de eficácia que contêm: a avaliação dos efeitos;a formulação precisa dos objectivos; a avaliação da decisãoentre regulamentação pública versus auto-regulamentação;

• Subsidiariedade e proporcionalidade: investigação dosfactos e circunstâncias; avaliação da relação proporcionalentre efeitos e objectivos; descentralização do Poder Legislativo.

• Aspectos gerais da técnica legislativa e outros requi-sitos técnicos.

Esses critérios devem ser respeitados por todos osministérios, obrigatoriamente, e servem como orientaçõespara os parlamentares na redacção das iniciativas legislativas.O Conselho de Estado (semelhante ao Conselho de EstadoFrancês) tem funções de aconselhamento legislativo, assegu-rando a qualidade, o equilíbrio e a harmonia legislativa e aprotecção dos cidadãos52. Contudo os resultados mostramque os critérios só são seguidos parcialmente53.

Embora se deva reconhecer que os critérios de avaliaçãosão muito ambiciosos para um rigoroso e sistemático cumpri-mento, verifica-se que, com o Programa Nacional de Reformaapresentado em 2005, os progressos foram bastante positivos.

50 Ver Directiva 254(Directivas para alegislação alteradaspelo Primeiro Minis-tro, em Dezembro de1995). Estasdirectivas são rela-tivas ao nível doGoverno central.51 KREVELD, vanJ.H. The mainelements of a gene-ral policy onlegislative quality:Dutch experiences.In: KELLERMANN etal. (Ed.). Improvingthe quality oflegislation in Europe.The Hague: KluwerLaw International,1998, p. 85-100.

52 Veja-se relatóriodo Conselho de Es-tado de 1998, Haia.53 Dorbeck-Jung,Barbel, “RealisticLegisprudence, AMul t id isc ip l inaryApproach to theCreation and Evaluationof Legislation”,Associations 3 (2),Duncker & Humblot,Berlin, 1999, p. 211-35.

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Reino Unido

A análise da qualidade legislativa no Reino Unido tem deter em consideração a predominância do Executivo no seio doParlamento (modelo parlamentar de Westminster), que serevela tanto em termos de tempos de intervenção no plenáriocomo no agendamento das iniciativas legislativas. Para alémda iniciativa legislativa, ainda tem poder legislativo delegado(este último regulado pelo "Deregulation and Contracting OutAct", de 1994, e controlado pela “Delegated Powers ScrutinyCommittee”, da Câmara dos Lordes).

Em novembro de 1992, foi publicado o RelatórioRippon54, que apresenta as conclusões do trabalho de umacomissão de estudo da Hansard Society. O relatório evidenciatrês tipos de problemas: o primeiro relaciona-se com ainteligibilidade da legislação vigente; o segundo com o seucarácter incompleto no sentido de que as normas são expres-sas de uma forma insuficiente; e o terceiro, que se interligacom o primeiro, relativo a uma excessiva pormenorização,com a contemplação de todas as possibilidades que podemocorrer em uma determinada área, o que torna a legislaçãoobscura e pouco compreensível.

Em 1997 foi criado um grupo de trabalho: "The BetterRegulation Task Force". Na base da sua criação, houve aclara percepção de que a regulamentação tem impacto sobretodos os cidadãos e a visão que se tem do governo éprofundamente influenciada pela maneira como é vista a suaactividade regulatória. Esse grupo de trabalho procedeu àrevisão dos princípios da Boa Regulamentação, que tinhamsido publicados inicialmente em 1998. Estes princípios foramadoptados pelo governo, servindo para proceder à análise detoda a legislação produzida.

Os cinco princípios são os seguintes: transparência, alegislação deve ser simples de entender e escrita em umalinguagem clara; responsabilidade, as pessoas que desenvol-vem legislação nova devem responder perante os ministros eo Parlamento e ainda perante o público; especificidade, a

54 Anteriormente játinha sido publicadoo Relatório Rentonde 1975 sobre ar e d a c ç ã olegislativa. Veja-seItália, Camera deDeputati, ServizioStudi, Rapporto sullostato della legisla-zione, Parte III, Datisulla legislazione inGermania, Francia,Spagna, RegnoUnito, 30 giugno1999.

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legislação deve dirigir-se a um problema e reduzir ao mínimoos efeitos laterais; consistência, a nova legislação deve sercompatível com a legislação já existente e deve ser previsível;proporcionalidade, o efeito que as normas têm nas pessoasdeve ser identificado e deve ser encontrado o equilíbrio certoentre o risco e o custo.

Com base nesses princípios, foi elaborada uma checklist, sendo todas as iniciativas avaliadas tomando-a comoreferência. Não se limitam porém a avaliar a legislação combase nesses princípios, advogam ainda a auto-regulação porgrupos privados e instituições, e que o papel do governo podeser cumprido por outras formas de intervenção, nomeada-mente, informando, aconselhando e educando.

O "Better Regulation Task Force" foi substituído pela"Better Regulation Commission", em 2005, uma comissãoindependente que trabalha directamente para o gabinete doprimeiro-ministro. Em articulação com essa comissão, foicriado um outro grupo constituído por pessoas ligadas àdefesa do ambiente, às pequenas e médias empresas e a outrasorganizações não-governamentais. Esse grupo não éremunerado e aconselha o governo em particular, tendo emconsideração as necessidades das pequenas empresas e doscidadãos. Procede-se ainda a sondagens sobre os efeitos dalegislação, existindo um painel permanente de opinião.

No âmbito parlamentar, foi aprovado, em 23 de julhode 1997, o primeiro relatório da Comissão para a Modernizaçãoda Câmara dos Comuns, que apontou diversos defeitos àprodução legislativa. Os principais defeitos consistiam nalimitada ou inexistente consulta prévia relativa às iniciativasapresentadas pelo governo, não tendo os deputados umainformação suficiente sobre os problemas apresentados porcada iniciativa; no limitado aprofundamento técnico daapreciação em sede de comissões parlamentares (o debatepolítico sobrepõe-se às escolhas técnicas); no escasso recur-so ao trabalho das comissões parlamentares; introdução deemendas durante o debate parlamentar, por parte do governo,que indiciam uma instrução pré-legislativa apressada; no

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excessivo aceleramento dos trabalhos parlamentares em finalde sessão legislativa, o que prejudica um cuidado trabalho deapreciação (por vezes nem se dispõe de tempo para ter emconsideração as alterações propostas pela Câmara dos Lordes).Aponta-se ainda que as comissões especializadas deveriamproceder a um controlo sistemático da legislação em vigor.

Em consequência do trabalho dessa comissão, foicriada, em 1998, a Comissão para a Desregulamentação, quepassou a denominar-se Comissão para a Reforma Legislativaem 2002. Na Câmara dos Lordes, existe igualmente umaComissão para a Reforma Legislativa55.

Nota-se pois um esforço concertado entre o Parlamentoe o governo para a melhoria da qualidade legislativa. Se a esseesforço juntarmos uma continuidade do trabalho institucional,encontram-se as razões para colocar o Reino Unido a par dosestados que estão numa fase mais avançada neste domínio.

4 – Medidas que poderiam (e deveriam) ser

adoptadas em Portugal

A análise da situação em termos de qualidade legislativaem alguns estados europeus teve como objectivo compreen-der quais as diferentes soluções encontradas que se possamadaptar a Portugal.

Verificou-se que nas últimas décadas se registou emtodos os países uma maior consciência relativamente aoproblema da qualidade legislativa. Essa preocupação difereconsoante a repartição de competências legislativas horizon-tal e vertical e as tradições jurídicas dos diferentes países;pode-se, no entanto, constatar uma certa homogeneidadedas soluções teóricas encontradas, que é certamentefavorecida pelo intercâmbio de experiências entre os paísese pela forte influência da actividade desenvolvida pelasinstituições comunitárias.

A maior parte dos países dispõe de um adequadoenquadramento normativo, mas, frequentemente, a práticanão corresponde às regras existentes. Assim, o legislador,

55 O trabalho destasComissões podeser visto em (acedi-do em 17 de Marçode 2007),h t t p : / /www.parliament.uk/p a r l i a m e n -tary_committees/r e g u l a t o r y _ r e -form_committee.cfm.

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no próprio acto de fazer normas, ignora, ou não cumpre,dispositivos legais que antes aprovou, isto é, o legisladorcoloca-se fora da lei. É de salientar, contudo, a preocupaçãocom um maior rigor na avaliação ex ante da necessidade delegislar, e com uma maior participação da sociedade (orga-nizações representativas de interesses e comunidade cientí-fica) na tomada de decisão legislativa.

Em muitos países analisados existem grelhas quedevem ser preenchidas por cada ministério, para cada iniciativa,mas que nem sempre são preenchidas ou enviadas aoParlamento para o ajudar na sua avaliação política e técnica.A criação de órgãos de coordenação interministerial é tambémuma constante, verificando-se uma progressiva necessidadede articular as iniciativas com origem nos diferentes ministé-rios (o que não era completamente assegurado pelos Ministériosda Justiça e das Finanças, que, não sendo substituídos, ficamcom o papel da análise da legalidade – nos países onde nãoexiste o Conselho de Estado –, e das consequênciasfinanceiras).

Verifica-se, por último, uma grande preocupação coma acessibilidade dos textos legislativos, sendo notórios osesforços para aproximar a legislação dos cidadãos, que não éalheia à maior participação destes na tomada de decisão.Acima de tudo, essas preocupações têm por pressuposto umaconsciência mais aguda, por parte dos responsáveis políticose da comunidade científica, para o problema da credibilidadee legitimidade da função legislativa.

Em Portugal, o diagnóstico da situação está feito pelomenos desde 1989. Vivemos em uma situação de proliferaçãolegislativa, que não é exclusiva do nosso país, com efeitosperniciosos a nível económico e de sobrevivência do própriosistema jurídico democrático. Se por um lado exigimos aadaptação permanente das leis a um mundo em evoluçãocientífica e tecnológica vertiginosa, na era da globalização eem uma vivência supranacional, por outro lado reclamamosuma estabilidade que nos permita a assimilação e a aculturaçãodas normas jurídicas que regem o nosso mundo56.

56 “Em contrapartida,a publicação dasleis sucede-se emfrenética catadupa,numa pirotecnialegislativa em que asua eficácia variana razão inversa darespectiva prolifera-ção e em que se tor-na cada vez maisimpossível que mes-mo o mais eruditodos juristas possaconhecer todo o di-reito em cada mo-mento vigente”, Pe-reira, Garcia, in “Jus-tiça em crise? Cri-ses da Justiça” ,Organização e pre-fácio AntónioBarreto, Publica-ções D. Quixote,2000, p. 123.

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Não dispomos mesmo da capacidade de informarsobre o número de actos legislativos ou normativos que temosem vigor. A Constituição mantém, desde a sua aprovação, em2 de abril de 1976, uma norma final (artigo 290) que dispõe queo direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituiçãose mantém, desde que não seja contrário à Constituição ou aosprincípios nela consignados. Essa disposição, acrescida dorecurso sistemático a formas de revogação tácitas ou genéricas,impossibilita a quantificação do número de actos normativosem vigor. A disciplina introduzida pela lei formulário poderácontribuir para uma maior certeza quanto ao direito em vigor,embora com impacto a longo prazo.

Parte das soluções legais para ultrapassar, quer oproblema da qualidade, quer o problema da acessibilidade dasleis, estão já há muito encontradas e estão longe de ter oexclusivo nacional. A avaliação da decisão de legislar, olevantamento do contexto normativo, a avaliação prévia doimpacto das normas, a criação de mecanismos de acompa-nhamento e de instrumentos de acessibilidade perpassam nostextos referidos que regulam o processo legislativo no nossopaís. No entanto, se há grande preocupação com aspectosformais das normas, as outras questões são, com frequência,ignoradas pelo legislador. Em particular, a avaliação prévia eposterior dos diplomas só muito raramente é feita57. Final-mente, quanto à acessibilidade, um grande esforço tem sidofeito, nos últimos tempos, de divulgação de textos legais,jurisprudenciais e doutrinários actualizados. No entanto, essadivulgação tem sido feita, em regra, via internet. Ora, apercentagem de utilizadores da internet no nosso país ainda éreduzida, pelo que esse esforço tem de ser complementadopelo recurso a outros meios.

Não se justifica a importação de regras nesse domínio oua adopção de uma receita única. A utilização de fórmulas mistas,que passem pela divulgação dos textos em suporte informáticomas também em papel, a consolidação ou a compilação detextos legais ou, quando se justificar, a codificação de certasáreas do direito fazem parte do caminho a percorrer.

Como algumas das medidas mais urgentes a adoptar,propõem-se as seguintes:

57 Como refereMiranda, Jorge in“Justiça em crise?Crises da Justiça”,Organização e pre-fácio de AntónioBarreto, PublicaçõesD. Quixote, 2000, p.254 “(...) falta emPortugal a avaliaçãolegislativa. Não bas-ta fazer leis teorica-mente óptimas, im-porta apreciar omodo como são apli-cadas e quais os efei-tos da sua execuçãoou inexecução”. Nãopodemos neste do-mínio deixar de refe-rir a avaliação doCódigo de Procedi-mento Administrati-vo, realizado porJoão Caupers, MartaTavares de Almeidae Pierre Guibentif, noâmbito do Departa-mento de Investiga-ção e Desenvolvi-mento do INA. Numasíntese inicial é refe-rido que “A avalia-ção legislativa – mo-dalidade de investi-gação que visa pôrem evidência os efei-tos de um actolegislativo – tem vin-do, desde o início dadécada de 80, a ad-quirir importânciacrescente nos estu-dos sobre ofenómeno legislativo.Entre nós, porém,estes estudos sãop r a t i c a m e n t e

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DA QUALIDADE DA LEGISLAÇÃO OU DE COMO O

LEGISLADOR PODE SER UM FORA-DA-LEI

• criação de uma grelha para cada iniciativa legislativa,comum para as iniciativas legislativas em preparação naAssembleia da República e no governo, sendo o seu preenchi-mento da responsabilidade do autor;

• o preenchimento dessa grelha seria condição deadmissão da iniciativa para apreciação em qualquer dessesórgãos. A informação de não aplicável de qualquer dos itensconstantes da grelha teria de ser justificada. A grelha deveriaconter uma informação fundamentada justificando a adopçãode uma nova iniciativa legislativa e, caso esta não fosseinovadora, a razão porque se mantinha em vigor – caso não sepropusesse a sua revogação – a legislação anterior sobre amesma matéria.

• quando as iniciativas possam ter repercussões deordem económica, deve haver um estudo prévio de im-pacto de custos58.

• deveria ser criada uma comissão, ao nível do governo,e outra, ao nível da Assembleia da República, que articulassem otrabalho com responsabilidade no domínio da qualidade legislativa.

• a Imprensa Nacional deveria efectuar o levanta-mento da legislação em vigor anterior à entrada em vigorda Constituição, em uma primeira fase, e posterior, emuma segunda fase, em articulação com essas comissões,tendo em vista a elaboração de um repertório legislativo aactualizar anualmente.

• os diferentes ministérios deveriam proceder auma análise da legislação em vigor relativa à matéria da suacompetência59 e propor medidas que visassem à suaacessibilidade, quer por meio da sua consolidação, compila-ção ou codificação.

• deveria proceder-se à harmonização das bases dedados legislativas com os restantes estados por forma aque os cidadãos possam consultar de forma mais fácil osdiferentes sites (eg. Eulegis). Essas bases de dados devemestar disponíveis em sítios on line.

inexistentes, tendoassim o presente tra-balho um carácter pi-oneiro, com as limita-ções e dificuldadesque daí decorrem”.

58 Conforme refereAraújo, António,“Justiça em crise?Crises da justiça”,2000, p. 65 “Ao con-trário do que muitasvezes se pensa,praticamente todasas mudanças ope-radas ao nível dajustiça, possuemcustos económicosque, de um modogeral, não são devi-damente pondera-dos pelos autoresdos códigos e dasleis”.59 Vilaça, José Luís,“Regulamentação eAcompanhamentoda Execução peloGoverno”, A Feituradas Leis, vol II, INA,1986 p. 326, consi-dera que “seria sau-dável que o Gover-no recebesse dos

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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FATORES INTERNOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E A

COERÊNCIA DAS LEIS FEDERAIS

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 103-132, jan./dez. 2007

constituinte da Carta Magna de1988, no afã incontido pordemocracia, depois de cerca de20 anos de governo militar, acaboupor cometer seus excessos, comdesmesurada abrangência edetalhamento, a ponto de definirnominalmente o valor da taxa anualde juros, por exemplo. Anecessidade de reaprendizagemdo jogo democrático em novocontexto, após traumática

experiência autoritária, também se refletiu na mecânica doPoder Legislativo, em especial da Câmara dos Deputados. Naverdade, o arranjo intra-legislativo resultante, depois de quaseduas décadas de vigência, tem acarretado “efeitos colaterais”e distorções que nos obrigam a realizar grande reflexão sobreo rumo do processo legislativo.

FATORES INTERNOS DA CÂMARA

DOS DEPUTADOS E A COERÊNCIA

DAS LEIS FEDERAIS

CRISTIANO FERRI

• Bacharel em Direi-to, mestre em Políti-cas Públicas peloQueen Mary College,da Universidade deLondres, e analistalegislativo da Câma-ra dos Deputados.

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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Tais problemas comprometem a qualidade das leis; nãoapenas intrinsecamente – a própria coerência interna de umadeterminada lei e os meios utilizados por ela para se alcançarcerta finalidade –, mas também a relação das leis entre si, o quedenominamos sistema jurídico de leis. Daí decorrem a frag-mentação, contradição, oposição e lacuna das leis, que causamcerta confusão jurídica, favorecendo inclusive a criminalidadedo colarinho branco, que sempre se aproveitou dessa confu-são para encontrar aqui e ali brecha interpretativa que justifi-que minimamente a defesa de seus interesses.

Muitas são as causas legislativas – quer dizer, originá-rias no Poder Legislativo – que fomentam a existência dessemar bravio de leis, o nosso ordenamento jurídico com suaproblemática. Vamos nos ater aqui a alguns fatores queconsideramos relevantes nessa discussão, entre outros tam-bém merecedores de análise aprofundada em outra ocasião,como a baixa participação parlamentar na apreciação dasmedidas provisórias, por exemplo. Gostaríamos, no entanto,de destacar neste trabalho a sobrecarga de projetos legislativos,a confusão do sistema de comissões parlamentares, a grandeflexibilidade na aplicação das normas de processo legislativoe o emendamento de última hora.

Veremos como tais fatores contribuem para a difusãoda atenção parlamentar e do grande apego a circunstâncias emdetrimento da perspectiva de longo prazo, que deveria vingarna formulação das grandes políticas públicas nacionais, sendoa lei seu eixo. Procuraremos enfocar aqui o processo legislativoparticular da Câmara dos Deputados, onde trabalhamos há 14anos. No entanto, arriscamo-nos a afirmar que os fenômenosanalisados se aplicam, com maior ou menor intensidade,também ao Senado Federal.

A sobrecarga de proposições legislativas

O processo legislativo brasileiro permite aos deputadosa utilização de vários instrumentos de participação individual.Enquanto o sistema britânico, ao contrário, tem historicamen-te estimulado o trabalho coletivo de suporte político do

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FATORES INTERNOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E A

COERÊNCIA DAS LEIS FEDERAIS

Parlamento ao gabinete, o Congresso Nacional brasileiro émarcado por certa diversidade de ferramentas legislativas,que possibilitam ao legislador influenciar o processo legislativoem prol ou em oposição ao governo. Isso nos remete àseguinte tese: o Legislativo brasileiro é mais focado notrabalho parlamentar individual do que no coletivo. Nessecontexto, a proposição de um projeto de lei acaba pordestacar-se como principal ato parlamentar individual de umdeputado brasileiro, em detrimento de outras atividadesparlamentares, como a fiscalização e o controle do Executivo,os debates, etc. O objetivo deste tópico é provar que o grandenúmero de proposições legislativas individuais tem conturbadoo sistema de leis brasileiro.

Ao contrário do parlamento inglês, que dificulta aomáximo a apresentação de proposições individuais de parla-mentares, o Congresso Nacional brasileiro permite que depu-tados, individualmente, ou por intermédio das comissões,proponham projetos de lei. Diferentemente dos projetos de leide autoria de comissões, proposições individuais são muitocomuns na Câmara dos Deputados. Na verdade, elas repre-sentam a maioria dos projetos de lei em tramitação. Como sepode visualizar no quadro 1, deputados propuseram 94% dosprojetos de lei ordinária em 2003 e 2004, os dois primeirosanos da legislatura passada.

Quadro 1

Número de projetos de lei ordinária propostosem 2003 e 2004 na Câmara dos Deputados

Autores Número

Deputados 3.878

Comissões 70

Outros(1) 174

Total 4.122

Fonte: SILEG (Sistema de Informação Legislativa da Câmara dosDeputados).1º/8/05

(1) Senado, Poderes Executivo e Judiciário.

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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Ainda comparando com o sistema britânico, em con-traste com as proposições individuais de parlamentares ingle-ses, cuja aprovação tem sido bem rara (NORTON, 1981, p.100), muitos projetos de lei individuais brasileiros são conver-tidos em lei desde que atendam, de forma geral, aos interessesdo governo, ou que não estejam em oposição a eles, pois opresidente da República pode invariavelmente usar seu poderde veto. Normalmente, a grande maioria dos parlamentaresbrasileiros apresenta diversos projetos de lei e passa, então, aesperar pelo momento de inseri-los na agenda política, para,só assim, conseguir a aprovação no Congresso Nacional.Como propugnava John Kingdon (1995) em sua “janela deoportunidade”, as leis mais importantes, espinhas dorsais dasgrandes políticas públicas, somente são aprovadas quandocoincidem três fatores essenciais: problema público crônico,política pública determinada (melhor estratégia para atacar oproblema) e forças políticas interessadas. Nessa conjunção,abrir-se-ia uma janela de oportunidade na agenda do Estadopara que determinada política se transformasse em realidade.

O teor de um projeto de lei pode, não raro, serapresentado por diferentes autores, com perspectivas diver-sas. Quer dizer, um mesmo assunto, como biotecnologia, porexemplo, pode ser objeto de inúmeras proposições, apresen-tadas por diferentes parlamentares, com diversas abordagens,algumas mais abrangentes, outras menos. Diniz (2002, p.147) enfatiza o exemplo referente a três projetos de lei sobreas novas tecnologias reprodutivas apresentados em umperíodo de seis anos. Enquanto o projeto de lei A (1993)apresentava cunho mais superficial, pois não tocava emalguns pontos cruciais da questão, o projeto de lei B enfocavaos aspectos científicos (1995), sem se ater aos problemassociais referentes ao assunto. Finalmente, o projeto de lei C erao mais progressista (1995). Mas, em cada um deles, haviaalguma omissão fundamental para a questão. Nesse tipo decaso, eles tendem a se fundir em um único projeto de lei nodecorrer da tramitação legislativa.

A perspectiva individual de apresentação de proposi-ções pode, sim, incitar ao mesmo tempo a discussão mais

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FATORES INTERNOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E A

COERÊNCIA DAS LEIS FEDERAIS

abrangente de uma determinada questão, com a reunião deperspectivas na tramitação conjunta, ou mesmo, pelo contrário,seccionar a abordagem em conta-gotas, o que nos parece serprejudicial para a boa lei, já que pode certamente incorrer eminovações tópicas para questões que demandam abordagemestrutural.

De acordo com as regras internas da Câmara – Reso-lução nº 17/1989 (BRASIL, 1989) –, é permitido a qualquerdeputado apresentar projetos de lei ordinária a respeito dequalquer assunto. A Constituição Federal (artigo 61) impedeque parlamentares proponham projetos de lei relacionados àiniciativa privativa do presidente, como, por exemplo, adefinição das atribuições do Ministério da Educação. Somenteao presidente é permitido propor projetos de lei a respeitodesse tipo de assunto. No entanto, uma vez apresentados taisprojetos pelo Executivo, os parlamentares estão livres paraalterá-los com emendas.

Alguns veículos da imprensa publicam estatísticas dotrabalho parlamentar periodicamente, o que obviamente causacerto impacto na opinião dos eleitores. Contudo, tais reporta-gens costumam conter critérios duvidosos de avaliação, como,por exemplo, atribuir maior valor ao trabalho de parlamentaresque apresentem grande número de proposições.

O problema com tal critério é a relação estabelecidaentre a quantidade de projetos propostos e a performance dolegislador, supondo que sua principal função deva ser aapresentação de projetos de lei em série, similar à produção decarros em uma fábrica. Na verdade, a atividade parlamentarenvolve várias outras funções, tais como atos relacionados aoapoio de governo ou à oposição estratégica, à fiscalização dasatividades desempenhadas pelo Executivo, ao debate, à apre-sentação de emendas e à participação na elaboração dasgrandes políticas, em suma.

Entretanto, a valoração equivocada da mídia em relaçãoà quantidade de projetos individuais apresentados tem impe-lido número significativo de parlamentares a apresentarem

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propostas compulsivamente, muitas vezes sem qualidadetécnica mínima, incluindo aí a viabilidade financeira e/ouconstitucional, ou sem qualquer chance de serem aprovadaspoliticamente. Há fortes indícios nesse sentido: o predomínio,na pauta das comissões, de projetos de lei sem objetivo bemdefinido, mal elaborados, destinados a questões tópicas ou depouco impacto, o que atrapalha a discussão das políticasestruturais realmente importantes. Confessamos ser difícil acomprovação desse fato, pois demanda pesquisa monumen-tal, tendo em vista a dificuldade de definição dos critérios parase aferir o mérito e o alcance de cada proposição. No entanto,podemos perceber certas “pistas” por meio de uma análisemais abrangente do sistema legislativo e também pelo númerode proposições realmente transformadas em lei, ou seja, combase no resultado final do processo legislativo, como veremosadiante.

O caminho normal de um projeto de lei começa nacomissão permanente temática, por meio da apreciação deparecer técnico, que pode ser contrário ou favorável aoprojeto. Dependendo da complexidade da proposição, outrascomissões permanentes, além da Comissão de Justiça, devemapreciá-la antes de sua aprovação final no Plenário de cadauma das casas legislativas (PACHECO, 2002, p. 118). Porserem as instâncias nas quais tramita a grande maioria dosprojetos de lei individuais, as comissões são também as maisafetadas pela confusão no processo legislativo e pela difusãoda atenção parlamentar.

O volume de projetos de lei individuais apresentadospor deputados (acima de 90% do total de proposiçõesapresentadas no ano de 2005) não corresponde ao número deprojetos de lei individuais que efetivamente setransformaram em leis. Por exemplo, 57% das leispromulgadas durante o período 2001-2005 (julho) originaram-se de projetos de lei propostos pelo presidente da República,e não por parlamentares. (SILEG, 14/7/05).

Na prática parlamentar, deputados federais mais expe-rientes têm normalmente alguma noção da dificuldade ou

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FATORES INTERNOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E A

COERÊNCIA DAS LEIS FEDERAIS

inviabilidade de aprovação de suas proposições caso não hajaalteração significativa das condições políticas, sociais eeconômicas do País. Por ser de mensuração complicada,faltam estudos que avaliem a viabilidade “real” das proposi-ções em circulação no Congresso. Assim, muitos dessesprojetos de lei enquadram-se na chamada proposição “engo-do”. É aquela por meio da qual o parlamentar quer apenas daruma satisfação ao eleitor. Sabe que o projeto não tem chancesreais, mas pode sempre apresentar aquela desculpa: “a minhaparte eu fiz ao apresentar a proposição, mas sua aprovação nãodepende apenas de mim”.

Também é normal que o parlamentar queira lançar oupromover o debate sobre determinado assunto e o faça pormeio de uma proposição, independentemente da viabilidade desua aprovação. É a proposição “portfólio”. Não há dúvidas dalegitimidade dessa hipótese. Afinal, o Parlamento é o locus dodebate dos grandes temas nacionais. O que preocupa, noentanto, são os excessos.

Segundo Silva (2007, p. 35), dos 2.858 projetos de leiapresentados em 2003, o primeiro ano da 52ª Legislatura,geralmente o mais ativo em termos de apresentação deproposições, apenas 64 vieram efetivamente a se transformarem norma jurídica até o final da legislatura (dezembro de2006). Dessas 64 leis, 30 decorreram de projetos apresenta-dos por deputados, sendo que 14, ou seja, 47% dos projetosparlamentares, são proposições meramente simbólicas, comodatas comemorativas, novas denominações de obras e órgãospúblicos, Patrono ou Herói da Pátria, entre outras. Silvaconclui ainda que, do total de 2.858 projetos de lei apresentados,95% são de autoria dos deputados. Apenas 1,1% desse total,todavia, foi efetivamente transformado em lei até o fim dalegislatura. O que aconteceu com os 98,9% restantes?

Tal levantamento nos leva à seguinte conclusão: hánecessidade de limitação desse sistema excessivamente per-missivo. Alguns filtros parecem necessários, como um núme-ro mínimo de assinaturas a ser exigido para a apresentação dedeterminado projeto de lei, similarmente ao que ocorre com as

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEGISLATIVO

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propostas de emenda à Constituição, que requerem ao menosum terço de assinaturas da composição total da Câmara paraserem consideradas inicialmente válidas. A criação de cotamáxima de apreciação de proposições individuais pelo Con-gresso também seria uma idéia a ser estudada. Por exemplo,cada deputado poderia propor apenas cinco projetos de lei porano. Com tais medidas simples, os parlamentares certamenteseriam obrigados a selecionar e aprimorar as proposições quedesejariam apresentar. A formação de uma comissão inicial deguilhotina também é outro ponto interessante, já que a valida-ção inicial de todas as proposições, atualmente realizada pelopresidente da Câmara, por questões políticas, raramente élevada a sério. Em outras palavras, o presidente deixa deefetivar o controle de constitucionalidade e de regimentalidade– art. 137 do Regimento Interno da Câmara (BRASIL, 1989)– com rigor para não se indispor com os deputados.

A confusão das comissões parlamentares

Comissões permanentes

Cada uma das casas do Legislativo, Câmara e Senado,contém comissões permanentes e temporárias. As permanen-tes possuem amplas atribuições, como a apreciação de projetosde lei, a análise de emendas, a elaboração de relatóriostécnicos, a fiscalização de atos do Executivo, além do controleda implementação de políticas sobre os mais diversos temasde interesse do Estado.

Tal sistema difere do inglês, onde as comissões sãoseparadas por funções: as select committees objetivam fiscalizara atuação do gabinete, enquanto as standing committeesapreciam proposições específicas. É importante ressaltar, noentanto, que as comissões permanentes brasileiras exercempapel significativo na construção de políticas, pois é no seiodessas comissões que as grandes questões técnico-políticassão discutidas. De acordo com a norma vigente do processolegislativo brasileiro, os projetos de lei são primeiramentesubmetidos à apreciação de comissões permanentes e depoisvão à decisão final do Plenário (MORAES, 2004, p. 555). É

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claro que há algumas exceções a essa regra, como a dosprojetos urgentes, que podem ser apreciados diretamente peloPlenário, como veremos mais adiante.

Apesar de serem grupos tecnicamente orientados, ascomissões permanentes são obviamente compostas por polí-ticos muito sensíveis a variáveis políticas. Decisões políticassão freqüentemente ambíguas e, por isso, não raro, diminuema força de algumas evidências técnicas. Contudo, os debatesmais técnicos e com dados mais bem fundamentados acon-tecem nas comissões permanentes, e não no Plenário. Elas setransformam em arena importante para os parlamentares doCongresso Nacional que escolheram estudar maisprofundamente áreas específicas, buscando um certo nível deprofissionalismo no trabalho legislativo – uma minoria noParlamento brasileiro. Deve ser enfatizado, entretanto, que háuma relação entre o grau de profissionalismo nas comissõesparlamentares e as ambições eleitorais de deputados e senado-res. Nós percebemos isso quando comparamos os sistemaseleitorais do Brasil e dos Estados Unidos.

Apesar de o sistema eleitoral brasileiro ter sidoestruturado com base no modelo estadunidense, há diferençascruciais entre um e outro, em especial aquela relacionada àambição política dos deputados. De acordo com Morgenstern(2002, p. 416), 94% dos parlamentares americanos que secandidataram à reeleição (88% do total) em 1996 conseguiramse reeleger, o que contribuiu para a manutenção da históricabaixa taxa de renovação do Congresso americano: 17%naquele ano. Em contraste com isso, no Brasil, a taxa derenovação em 1995 foi de 57%, uma das mais altas docontinente. Naquele ano, de 70% dos parlamentares brasileirosque se candidataram à reeleição, 62% deles a conseguiram(MORGENSTERN, 2002, p. 416). Na nossa última eleição,de outubro de 2006, a renovação alcançou 46%, taxa aindaconsiderada relativamente alta.

Nessa linha, Samuels (2002, p. 494; 2002, p. 316)afirma haver basicamente duas teorias distintas em relação àcarreira política: a ambição estática e a ambição progressiva. O

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membro do Congresso que exibe o primeiro tipo de ambiçãopretende construir carreira no Legislativo ao procurar alcançarsucessivas reeleições. Por outro lado, o deputado de ambiçãoprogressiva tende a usar o Legislativo como trampolim para acarreira no Executivo municipal, estadual ou federal.

Além da própria dificuldade e do caráter oneroso dareeleição parlamentar no Brasil, deputados brasileiros têmpreferido tradicionalmente se envolver em questões regionais,a fim de se potencializar para futuros pleitos no Executivoestadual e municipal. Tal estratégia tem gerado mais benefí-cios do que a notoriedade vacilante resultante do trabalhocompetitivo realizado no Congresso Nacional. Não obstante,como membros do Executivo (prefeito, governador de estadoou secretário de estado), políticos brasileiros podem exercero poder mais diretamente (AMORIM NETO; SANTOS,2003, p. 450). Dessa forma, eles tendem a se voltar paraatividades que tragam enaltecimento individual, em oposiçãoà dedicação ao mister legislativo, que requer trabalho maiscoletivo, centrado na negociação política.

De acordo com Samuels (2003, p. 45-46), a carênciade incentivos para investimento na profissionalização parla-mentar também afeta a motivação dos deputados para traba-lhar em comissões. Segundo ele, isso se deve à fraca hierar-quia interna nas casas legislativas brasileiras, que, de fato,oferecem poucos cargos para o congressista.

Os membros do Congresso dos Estados Unidos ten-dem a se retirar da vida política como conseqüência de umaderrota no processo de reeleição, o que é raro. Na verdade, agrande maioria (mais de 80%) que historicamente retorna aoCapitólio para dar seqüência à longa carreira de mandatostende a se especializar e se profissionalizar em poucosassuntos (SCHWARTZ, 1969, p. 87). Assim, os membros doCongresso americano são mais suscetíveis de considerar osaspectos técnicos das deliberações em comissões, trazendofreqüentemente certo nível de conhecimento ao debate.

Epstein (1997, p. 293-294) reclama que as influentescomissões americanas podem exercer poder de contenção

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(gatekeeping power) em certas áreas ao obstar o trâmite dealgumas proposições para sua apreciação no Plenário. Essapostura parlamentar é resultado da reorganização legislativa,implementada em 1945 como tentativa de profissionalizar otrabalho legislativo americano. O número de comissões per-manentes na House of Representatives foi reduzido de 48 para19, reduzindo-se também o número de membros em cadacomissão. Keefe e Ogul (1981, p. 227-229) também afirmamque o trabalho intenso de parlamentares nas comissõesamericanas, na sua maioria reeleitos sistematicamente aolongo dos anos, as tornam mais coesas, estimulam compro-missos e geram consenso entre seus membros a respeito deassuntos básicos. Keefe e Ogul ainda frisam que propostasdas comissões mais coesas do Senado têm mais chance deobter sucesso no Plenário.

No Brasil, algo similar deveria ser adaptado ao contextonacional com o objetivo de minimizar os efeitos corrosivos dadifusão excessiva do trabalho legislativo, que é conseqüência dogrande aumento no número de comissões criadas nos últimosanos. Em julho de 2005, 72 comissões permanentes e temporáriasestavam operando na Câmara (SILEG, 20/7/05). Ofuncionamento concomitante de várias comissões temporáriase permanentes tem gerado grande confusão no sistemalegislativo, pois muitos parlamentares são membros de váriascomissões e não conseguem se dedicar a todas elas de formasistemática. Além disso, muitas das reuniões dessas comissõesacontecem ao mesmo tempo, havendo choque de agendas.Conseqüentemente, todo o Legislativo é afetado, já que ascomissões são o principal foro de debate legislativo.

Além da ambição progressiva dos parlamentares brasi-leiros e da difusão excessiva de comissões parlamentares, háum outro fator relevante que enfraquece o trabalho das comissões:a falta de estabilidade do membro de comissão (MUELLER;PEREIRA, 1999, p. 48). Na Câmara dos Deputados, cadadeputado deve ser membro titular de apenas uma comissãopermanente. Há atualmente 20 comissões permanentes naCâmara. No entanto, tal deputado pode ser alocado em outracomissão permanente pelo líder de seu partido na Casa.

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Isso tem acontecido com freqüência quando deputa-dos de apoio ao governo, por exemplo, anunciam previamenteseu voto contrário a determinado projeto de lei governista emuma dada comissão permanente. No contexto legislativobrasileiro, esse deputado pode tecnicamente votar contra talproposição, mesmo sendo ato de indisciplina partidária. Olíder de seu partido – legenda que pertence à base de apoio aogoverno, por exemplo – tentaria convencer o parlamentar avotar de acordo com a posição do governo. Não obtendosucesso, o líder pode transferir o deputado para outra comissão,apenas para evitar que efetive o anunciado voto negativo nadeliberação em questão. Essa situação é rotineira na searaparlamentar. Apenas para citar um exemplo, o então líder doPartido Progressista (PP) em 2005 ordenou a substituição dodeputado Ivan Ranzolin pelo deputado Mario Negromonte naComissão de Justiça, pois o primeiro havia anunciado seu votopara a criação de Comissão Parlamentar de Inquéritopotencialmente prejudicial ao governo. Como o PP pertenciaà base governista, o líder ordenou sua substituição por outrodeputado mais disciplinado (JORNAL DA CÂMARA, jun.2005). Tal atitude certamente afeta o profissionalismolegislativo, que deveria ser aplicado às comissões.

Enquanto essa prática legislativa tem enfraquecido otrabalho das comissões nos últimos anos, a Constituição de1988, ao contrário, procurou fortalecer as comissões, dotan-do-as de prerrogativa de aprovar, em limitadas situações e deacordo com alguns critérios, projetos de lei de forma conclu-siva, ou seja, dispensada a apreciação do Plenário (AMORIMNETO et al., 2003, p. 557). De forma geral, submeter-se-á aopoder conclusivo das comissões as proposições que tratam depolíticas mais simples ou que não afetam de forma contunden-te direitos individuais básicos. Proposição que trata de políticacriminal, por exemplo, já que restringe o direito de liberdade,precisa ser obrigatoriamente apreciada pelo Plenário das duascasas do Congresso Nacional (BRASIL, 1989).

O poder conclusivo das comissões tem funcionadocomo uma válvula de escape do trancamento sistemático dapauta do Plenário pela votação de medidas provisórias e de

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proposições urgentes de iniciativa do presidente da República.Em outras palavras, a agenda legislativa do Plenário da Câmarados Deputados é dominada por proposições do Executivo, queimpedem, por força constitucional, a deliberação de qualqueroutra proposição.

Vieira (2005), em estudo recente, compara as propo-sições aprovadas pelo Plenário da Câmara de um lado e, deoutro, as aprovadas pelas comissões permanentes comconclusividade nas três legislaturas que se seguiram à promul-gação da Constituição de 1988, quando o instituto ganhou aatual formatação. Ele demonstrou a diminuição de projetosaprovados pelo Plenário, muito em decorrência do trancamentode pauta de medidas provisórias e projetos com urgênciapresidencial, em detrimento do aumento dos projetos de leiaprovados pelas comissões (com poder conclusivo, emsubstituição ao Plenário), como uma válvula de escape dosistema legislativo.

Urgência é outro aspecto que mitiga o poder dascomissões permanentes. Isso ocorre principalmente devido àurgência concedida a certas proposições estratégicas pormeio de aprovação de requerimento da maioria absoluta daCâmara: a denominada “urgência urgentíssima”. Esse rito detramitação acelera a tramitação de projetos de lei, permitindo,na maioria dos casos, sua sumária apreciação diretamente peloPlenário, sem deliberação das comissões (AMORIM NETO etal., 2003, p. 558).

Um segundo tipo de urgência, denominada “urgênciaconstitucional”, pois está prevista expressamente na Consti-tuição (artigo 64) e é prerrogativa exclusiva do presidente daRepública, impõe ao projeto o prazo de 45 dias para apreciaçãoem ambas as casas legislativas. Caso isso não aconteça,nenhuma outra proposição poderá ser apreciada até que sedelibere sobre o projeto em urgência, isto é, o projeto se tornaprioridade número um na agenda do Legislativo. Tal urgência,no entanto, somente pode ser aplicada em projetos de lei doExecutivo. Assim, além das medidas provisórias, que tambémpossuem trâmite especial, com o mesmo poder de trancamento

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da pauta após 45 dias de tramitação legislativa, o presidentedispõe dessa prerrogativa (da urgência constitucional) paraimpulsionar projetos originários do Executivo no Legislativo.O instrumento da urgência constitucional, exceção por naturezano processo legislativo, tem-se tornado regra no sistemabrasileiro.

De acordo com Figueiredo e Limongi (1999, p. 62-63),53% dos projetos de lei de autoria do Executivo aprovadospela Câmara de 1989 a 1994 passaram sob o rito de tramitaçãourgente. E, das 514 leis promulgadas durante o período 1989-1994, 282 (55%) tramitaram com urgência no Legislativo(FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999, p. 58). Em trabalho maisrecente (2004, p. 51), esses autores indicaram também que,de 1989 a 2001, 50% das leis aprovadas teriam tramitado emregime de urgência.

A estampa de urgência em determinado projeto de leiremete-o necessariamente à apreciação do Plenário da Câma-ra. No processo legislativo brasileiro, os projetos de lei devemser necessariamente deliberados pela comissão permanentetemática até a apreciação final no Plenário. Assim, os aspectostécnicos são considerados anteriormente à decisão política doPlenário. As decisões da Comissão de Constituição e Justiça,por exemplo, têm sido tomadas no sentido de rejeitar projetosde lei inconstitucionais. Entretanto, a apreciação das comis-sões pode ser suprimida, na hipótese de urgência, e o talprojeto ser remetido diretamente ao Plenário, que irá realizar,em substituição à comissão, o juízo de constitucionalidade.Conseqüentemente, alguns projetos de lei inconstitucionaispodem ser aprovados em virtude da urgência, que geratramitação demasiadamente acelerada.

Tornou-se já tradição na Câmara dos Deputados quealguns projetos de lei mais relevantes sejam introduzidos pelopresidente da República com o selo de urgência. Além disso,muitas proposições também importantes, mas apresentadaspor parlamentares, adquirem urgência em virtude de requeri-mento aprovado no Plenário. Ou seja, muitas dessas proposi-ções, estratégicas para o País, são encaminhadas diretamente

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ao Plenário, privando as comissões temáticas de sua apreci-ação mais depurada. Isso certamente afeta a proficiência dotrabalho das comissões e dos deputados, de quem mínimaprofissionalização na atividade de legislar deveria ser exigida(AMORIM NETO et al., 2003, p. 558). No Plenário, como jádito, parlamentares têm poucas oportunidades de participar daapreciação da matéria.

Comissões especiais

Além das comissões parlamentares permanentes, exis-tem as temporárias: comissões parlamentares de inquérito,externas e especiais – artigo 33 do RI (BRASIL, 1989). Vamosnos ater apenas às últimas, já que as CPIs e as comissõesexternas não representam interesse direto para a questão daqualidade das leis brasileiras.

As comissões especiais são designadas para emitirparecer na análise das proposições dotadas de certas peculiari-dades: propostas de emenda à constituição (PEC), projetos decódigo, projetos de alteração no Regimento Interno da Câmara,autorização para processo de crime de responsabilidade dopresidente da República e projetos de lei complexos, queensejem análise de mérito de mais de três comissões perma-nentes.

A maioria dos casos de comissões especiais se concen-tra na análise de propostas de emenda à constituição (25) eprojetos de lei complexos (30) (SILEG, 26/7/05). Depois de20 anos de repressão da ordem social brasileira, a Constituiçãodemocrática de 1988 foi formulada com demasiado regramento.Pela cultura legalista brasileira, direitos foram expressamenteestabelecidos no texto da Constituição para garantir seucumprimento. Alguns deles têm se mostrado incompatíveiscom a evolução da sociedade brasileira, cada vez maisdinâmica a partir dos anos 1990. Por exemplo, o presidenteFernando Henrique Cardoso intensificou o processo deprivatização das principais estatais brasileiras em 1995. Naquelaépoca, o poder público monopolizava setores comotelecomunicações, petróleo, água, eletricidade e outros, não

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sendo permitida sua privatização pela Constituição(GIAMBIAGI et al., 2001, p. 11).

A partir de então, decorreram e têm decorrido processosde alteração constitucional por meio de propostas de emenda àConstituição. Em 26 de julho de 2005, após dois anos e meio delegislatura, havia 926 propostas (ativas) de emenda à Constitui-ção (PEC) na Câmara dos Deputados (SILEG, 26/7/05). E,para cada PEC que passou pelo controle de constitucionalidadepreliminar da Comissão de Justiça, criou-se uma comissãoespecial exclusiva.

As comissões especiais destinadas à apreciação deprojetos de lei complexos também representam parcela signi-ficativa do número total de órgãos colegiados em ação noCongresso. O Regimento Interno da Câmara determina acriação de comissão especial para analisar qualquer projetocujo teor requeira a apreciação de mérito de mais de trêscomissões permanentes (BRASIL, 1989, artigo 34). Essa é, defato, norma inteligente do ponto de vista pragmático, pois aanálise da comissão especial substitui quatro ou mais aprecia-ções sucessivas de comissões permanentes, o que economizatempo e dinheiro. Ao contrário das comissões permanentes,que precisam ser criadas por lei (resolução da Câmara), ainstalação de uma nova comissão especial depende apenas dedespacho do presidente da Câmara dos Deputados.

Dois fatores principais têm historicamente influen-ciado o comportamento incessante dos presidenteslegislativos de criar comissões especiais. Primeiro, oCongresso sempre tende a reagir aos problemas realçadospela mídia. Assim, qualquer tema importante, ou resultantede algum acontecimento social relevante, tende adesencadear reações imediatas no Legislativo. A instantâneacriação de comissões especiais para a apreciação de projetodestinado a resolver problema social de visibilidadenormalmente funciona como forma de agradar a opiniãopública. Isso significa que o Congresso está “fazendoalguma coisa”. Apesar de algumas das comissões especiaisexecutarem sua função institucional de elaboração de parecer

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a projeto de lei, a maioria das comissões especiais acabaesquecida, não alcançando êxito nessa tarefa. Esse fato éreflexo das ações de curto prazo típicas da nossa culturapolítica reativa. Por esse motivo, o Congresso cria talmecanismo de resposta imediata para satisfazer a opiniãopública. Nesse sentido, Mainwaring (1997, p. 106) enfatizaque os políticos brasileiros estimulam “a formulaçãoexcessiva de políticas orientadas para objetivos políticosimediatos”.

Como conseqüência desse mecanismo, o Legislativoacaba não enfrentando assuntos estruturais, que impliquemem planejamento de políticas de longo prazo, resultantes deuma ação parlamentar pró-ativa e não reativa, com benefíciosmais consistentes para o País. No entanto, esse tipo deestratégia não é tão atrativo para a mídia, ou, pelo menos, nãotem impacto imediato na opinião pública. Além disso, políticosoportunistas levam vantagem ao enfatizar problemas quepossam interessar mais imediatamente aos seus eleitores e,assim, creditá-los para a reeleição (AMORIM NETO; SANTOS,2003, p. 450). Por essa razão, políticos preferem a participaçãoefetiva em uma comissão especial “quente” por alguns mesesa comparecer a reuniões de comissões permanentes quebuscam a construção de políticas estruturais por meio de leisde larga abrangência.

Outro aspecto que estimula a criação de comissõesespeciais é o interesse dos líderes de partido. Eles devemindicar os membros que integram cada comissão especial(MUELLER; PEREIRA, 1999, p. 61). A composição e asfunções de importância (presidência, vice-presidência erelatoria) nas comissões especiais são instrumentos de nego-ciação política com o que se pode acomodar a ânsia parlamen-tar por cargos.

O resultado final desse sistema permissivo de criaçãode comissões é a dispersão e a ineficácia. Em final de julho de2005, havia 55 comissões especiais funcionandoconcomitantemente na Câmara dos Deputados (SILEG, 20/7/05). Se nós adicionarmos a esse número outras comissões

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temporárias em operação, isto é, 4 CPIs e 12 comissõesexternas, mais as 20 comissões permanentes, o total será de91 comissões parlamentares em operação na Casa naqueleano.

Além disso, embora os deputados não possam partici-par, como titulares, de mais de uma comissão permanente,essa limitação não é válida para as comissões temporárias. Poresse motivo, a maioria dos deputados tem participado, comomembros, de várias comissões temporárias ao mesmo tempo,o que afeta a qualidade dos trabalhos dessas comissões, poisseria impossível a participação efetiva e sistemática dessesparlamentares.

Dessa forma, as várias comissões em funcionamentona Câmara e a difusão da participação parlamentar geram umasituação de incontrolável dispersão de atenção. É quando oabuso de liberdade gera ineficiência.

A limitação do número de comissões temporárias emfuncionamento deve minimizar o problema relacionado àdifusão do trabalho legislativo na Câmara. A possibilidade dacriação de comissões especiais para deliberar sobre assuntoscomplexos é, de fato, um instrumento útil, ainda que oexcesso tenha causado desorganização no processo legislativo.Há de se considerar a restrição de comissões especiaisoperando simultaneamente, com a definição de cota máxima(por exemplo, dez comissões especiais). Nesse meio tempo,qualquer outro projeto de lei complexo que ensejasse a criaçãode comissão especial deveria ser apreciado pelas comissõespermanentes atinentes ao tema de seu teor. O excesso decomissões especiais desloca assuntos importantes dascomissões permanentes, reduzindo, dessa forma, a importân-cia política destas.

A flexibilidade das regras do processo

legislativo

Inicialmente, a peculiaridade do processo legislativobritânico sugere um interessante pontapé para a discussão

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desse assunto. Enquanto as regras sobre o processo legislativoinglês têm sido consolidadas por séculos de tradição e prática,o Brasil tem experimentado alguns períodos de rompimentosabruptos da ordem política que geram mudanças radicais naprática legislativa brasileira. Foi o que aconteceu com apromulgação da Constituição de 1988. Depois deste marcoconstitucional, os últimos 18 anos foram caracterizados porrazoável estabilidade política no País, contribuindo para certaconsolidação do processo legislativo.

O processo legislativo infraconstitucional pode serfacilmente modificado por votação de maioria simples daCâmara. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados(Resolução nº 17, de 1989) foi alterado mais de 30 vezes desdea sua edição em 1989 (SILEG, 15/7/05). É na aplicação doregimento com suas alterações que os problemas de consoli-dação tornam-se evidentes. Qualquer legislação recente pre-cisa de ajustes e complementação na sua aplicação à realidade.Entretanto, embora seja necessário esse trabalho suplemen-tar, isso tem provocado distorção das normas originais.

O governo e a oposição normalmente divergem sobrea interpretação do Regimento Interno (RI). Como é relativa-mente recente (apenas 18 anos), dúvidas e ambigüidades têmemergido da aplicação do texto nas situações legislativas maiscomplexas. Assim, horas de debate processual precedemnormalmente qualquer apreciação de um projeto de lei maisimportante.

No sistema brasileiro, o Regimento Interno da Câmarados Deputados compreende um conjunto de regras sobre oprocesso legislativo organizadas sistematicamente (AMARAL;GERÔNIMO, 2001, p. 11). O presidente da Câmara dosDeputados e os presidentes das comissões parlamentaresimpõem a aplicação das normas nas sessões de Plenário ecomissões, respectivamente. Qualquer deputado pode terdúvidas a respeito dos processos ou discordar de sua aplica-ção. Acontecendo isso, o deputado pode apresentar Questãode Ordem – uma indagação com base em dúvida quanto ao

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procedimento legislativo – ao presidente da Câmara ou aospresidentes das comissões, que devem responder à questão eexplicar sua decisão.

As decisões do presidente relacionadas às questõesde ordem preenchem espaços deixados pelas normas regi-mentais em situações novas ou resolvem possíveis contra-dições entre tais normas. A questão de ordem normalmenteocorre porque, como qualquer lei, o Regimento Internonão é completo, e há fatos inusitados que ele não podeprever mas demandam ordenação. Assim, o presidentepossui certa discricionariedade na sua interpretação e, porisso, pode definir “normas” complementares do processolegislativo.

Contudo, no caso de questões de ordem, o presidenteda Câmara ou do Senado tende a interpretar o RegimentoInterno de maneira favorável ao governo, uma vez que aeleição para a presidência das duas casas legislativas énormalmente influenciada pelo governo, por serem funçõesextremamente estratégicas para o Executivo. O presidenteda Câmara, por exemplo, usa de grande prudência aoestabelecer a agenda legislativa (SAMUELS, 2003, p. 43). AOrdem do Dia – a parte das sessões ordinárias em que osprojetos de lei são analisados e votados – é definida pelopresidente (da Câmara) depois de consultar os líderes departido (FARIA; VALLE, 2003, p. 13, 19). O presidentetende a incluir as proposições na Ordem do Dia de acordocom a vontade do governo por geralmente pertencer à basede apoio deste.

Há um caso importante, ocorrido em 1997, que mostraa grande flexibilidade na interpretação do Regimento Internopara assegurar os interesses do governo, que, naquela época,buscava obter uma maioria sólida. Depois de ter sido apreciadaa proposta de emenda à Constituição que tratava da reformaadministrativa, esse texto foi submetido ao exame da comissãotemporária competente, com a finalidade de simplesmenteserem corrigidos os problemas de sua redação. Em outraspalavras, o texto passou para o estágio final de tramitação

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legislativa, e mudanças apenas superficiais, relacionadas aoaspecto lingüístico e de técnica legislativa, poderiam serfeitas, não sendo permitidas modificações de mérito. Noentanto, o deputado Moreira Franco, apoiador do governo,propôs emenda de redação que, na verdade, modificou omérito do texto. Em resposta a isso, questão de ordem dadeputada Maria Laura e do deputado Miguel Rosseto contes-tou a aceitação da emenda. Não obstante, o então presidenteda Casa, deputado Michel Temer, considerou a emendaválida, que, ao final, foi aprovada, favorecendo o governo(BRASIL, 1997).

Similarmente a esse caso, muitos outros têm ocorridodesde a implantação do Regimento Interno em 1989. Umapesquisa que contemplasse elementos quantitativos e qualita-tivos seria muito importante para aferir exatamente em quegrau tais decisões impactam na qualidade das leis.

Algumas tentativas de evitar interpretações circunstan-ciais, que distorcem o significado real das regras regimentais,foram feitas sem que tenham tido resultado positivo. Porexemplo, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania temcompetência para analisar as decisões do presidente daCâmara sobre a interpretação do Regimento Interno, cabendoao Plenário o poder de reavaliá-las. No entanto, as decisões dacomissão também são afetadas por ingerência política dasmaiorias ocasionais, dificultando, assim, decisões mais técni-cas sobre o assunto.

De fato, o modelo destoa do sistema menos discricio-nário de outros países. Epstein et al. (1997, p. 991) afirmamque os Legislativos com membros estáveis (com alto índicede reeleição), como nos EUA e no Japão, tendem a desenvol-ver normas internas não discricionárias. No contexto brasilei-ro, as regras de processo legislativo são muito recentes, eapenas o tempo e a experiência consolidarão a força dessasnormas. Como o Brasil tem tido muitas constituições emquase 200 anos de história constitucional, as mudanças daordem constitucional também geram reflexos nas “regras do

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jogo” legislativo, isto é, dos processos legislativos internos. Aexperiência a ser alcançada nos próximos anos é o fatorprincipal do processo de amadurecimento das instituiçõeslegislativas na aplicação das regras legislativas. No entanto,isso não isenta o prejuízo de decisões monocráticas dospresidentes das casas legislativas que possam comprometerou desvirtuar o devido processo legislativo, cujos princípiosforam erigidos em nível constitucional.

O emendamento legislativo

Conforme vimos ressaltando, o processo deemendamento na Câmara dos Deputados brasileiro é aberto atodos os parlamentares, isso é, eles têm várias oportunidadespara emendar as proposições legislativas (FERREIRA FI-LHO, 2002, p. 209-210). Qualquer deputado pode propor umnúmero ilimitado de emendas individuais sem necessidade deapoiamento mínimo de subscrições de outros parlamentares.Há basicamente dois momentos para emendamento na Câma-ra dos Deputados. Isso depende se o projeto de lei seráapreciado pelas comissões e depois pelo Plenário, nessaordem, ou se ele será apreciado apenas nas comissões(MUELLER; PEREIRA, 1999, p. 46).

Contudo, a tramitação ordinária de um projeto de leipode ser abruptamente alterada para urgente, no caso deaprovação de requerimento de urgência. A principal caracte-rística de um projeto de lei urgente é a supressão de algumasfases legislativas, entre elas a da apreciação pelas comissões,sendo discutido e votado diretamente pelo Plenário. Nessecaso, o processo de emendamento será desenvolvido somentepelo Plenário durante os debates, exatamente antes do estágiode votação (PACHECO, 2002, p. 84). Normalmente, a fase deemendamento de um projeto de lei ordinário conclusivoocorreria nas comissões, locus onde as emendas tendem a sermais bem apreciadas, com mais depuração, do que na apreciaçãourgente de Plenário. Essa é uma outra distorção causada pelaurgência: o apressamento na deliberação de emendas.

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O segundo problema quanto às emendas refere-se aosprojetos de lei submetidos ao poder conclusivo das comissões.Isso acontece normalmente com as proposições mais simples,ou aquelas que não trarão grande impacto social, econômicoe político. Nessa hipótese, é franqueada a apresentação deemendas em cada comissão, desde que seu teor se refiraapenas à competência daquela comissão temática específica(PAULO; ALEXANDRINO, 2003, p. 57). Qualquer deputado,até mesmo os não membros daquela comissão, pode proporemendas que serão apreciadas nas comissões – artigo 119 doRI (BRASIL, 1989). Ao contrário do emendamento de urgênciano Plenário, o emendamento feito nas comissões funcionarazoavelmente bem, na medida em que as comissões operam,na maioria dos casos, com o espaço de tempo apropriado e aorganização suficiente.

Mas é no primeiro caso, durante a apreciação urgentede Plenário, que os problemas decorrentes do sistemaatabalhoado de emendamento mais afetam a estrutura daspolíticas públicas apreciadas em forma de proposição legislativa.Nos últimos anos, a maioria dos projetos de lei e medidasprovisórias inseridas na Ordem do Dia de Plenário têm sidopredominantemente de tramitação urgente. As medidas provi-sórias são, por natureza, urgentes, embora seu rito sejaregimentalmente denominado especial, o que significa, naprática, que possuem tramitação extremamente acelerada.Além das MPs, de 409 projetos de lei deliberados pelo Plenáriono período de 2001 a 2005, cerca de 87% tinham o cunho deurgente (SILEG, 29/7/05).

Os projetos e as MPs mais complexos tendem areceber grande quantidade de emendas. A apreciação deprojetos de lei urgentes em Plenário pode ser concluída empoucas horas, impedindo, desse modo, análise mais profundade suas emendas. Isso acontece com freqüência, pois oRegimento Interno permite que, em casos de urgência, asemendas possam ser propostas e apreciadas quase queimediatamente.

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Além disso, emendas são instrumentos estratégicos nodesenvolvimento do processo de negociação política. A opo-sição, por exemplo, pode aceitar votar favoravelmente emuma proposta do governo desde que suas emendas sejamincluídas no texto final. Como o processo é muito rápido, e asemendas podem ser propostas horas, em algumas vezes,minutos antes da deliberação, erros formais e materiais podemocorrer no texto, trazendo problemas futuros de coerência eredação que afetam a implementação das políticas ali embuti-das. A análise do conteúdo das emendas e, conseqüentemen-te, seu impacto no texto é normalmente tarefa complexa,demanda tempo de análise, sendo prejudicada pela pressãopolítica do momento.

Conclusão

A carga volumosa de proposições meramente simbó-licas, ou sem vocação de aprovação, apresentadas por parla-mentares individualmente tem atrapalhado o trabalho legislativo,aumentado o custo e diminuído a importância do papel doParlamento.

Além disso, outra importante disfunção legislativaconcerne à ação das comissões. Alguns aspectos têm enfra-quecido as comissões permanentes, que representam o cora-ção do processo legislativo. Um dos principais problemaspassa pelo excesso de comissões especiais (temporárias) emfuncionamento concomitante, que decorre da cultura doreativismo, em detrimento do planejamento de longo prazo eda necessidade de líderes partidários em acomodar demandaspolíticas com cargos e funções. Esse fator, aliado à elitizaçãodas grandes decisões legislativas pelo Plenário, por meio deprojetos de leis urgentes e medidas provisórias, relega àscomissões permanentes participação menor no trabalholegislativo. Com isso, a Câmara perde apuro técnico naapreciação de proposições e favorece os deputados, de formageral, ao valorizar ações individuais e tópicas em detrimentode um trabalho coletivo mais sistematizado e profissional.

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COERÊNCIA DAS LEIS FEDERAIS

Como vimos, outros dois últimos pontos são tambémrelevantes para o entendimento da problemática do sistemalegislativo. O primeiro é a excessiva discricionariedade dospresidentes das casas na aplicação do Regimento Interno.Essa atitude tem afetado a funcionalidade do processo legislativopara beneficiar maiorias circunstanciais. Também oemendamento de última hora no Plenário em proposiçõescomplexas e relevantes prejudica a racionalidade e coerênciado texto final das leis.

De fato, as instituições brasileiras contribuem para amaximização do interesse próprio dos parlamentares e aformação de células individuais, tais como a incessantecriação de comissões de curto prazo, por exemplo. Isso ostorna o que Starr (1988, p.16) denomina de free-riders ourent-seekers. Tal atitude causa difusão, incoerência eineficiência do trabalho coletivo legislativo, o que temafetado relevante função do Estado: a formulação de políticaspúblicas.

Consequentemente, mudanças no sistema processualsão indispensáveis para a diminuição dos instrumentos indivi-duais disponíveis aos membros do Congresso Nacional e aregulação do número de comissões parlamentares especiaisem funcionamento. Estaríamos, dessa forma, atacando al-guns dos principais fatores que fazem do Legislativo umPoder conturbado e pouco eficaz.

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FATORES INTERNOS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E A

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PODER LEGISLATIVO E SUAS CONSULTORIAS

INSTITUCIONAIS

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 133-152, jan./dez. 2007

Reflexões sobre oassessoramento par-lamentar e a experi-ência da AssembléiaLegislativa do Estadode Minas Gerais

á vários modelos de assessoriaparlamentar que podem coexistir eatuar de forma complementar noParlamento. Dentre eles, destacam-se as assessorias de bancada, departido político e de gabineteparlamentar, geralmente compos-tas de servidores de livre nomeação,e as assessorias institucionais, quepodem ser compostas de servido-res de livre nomeação ou de servi-dores de carreira. Este trabalho

dedica-se ao exame da assessoria composta exclusivamentede servidores de carreira, aqui denominada ConsultoriaLegislativa Institucional.

Algumas casas legislativas adotam, com exclusivida-de, o assessoramento de gabinete, que é de natureza pessoal,exercido por servidor da confiança do parlamentar. Nessecaso, o assessor é nomeado para ocupar um cargo em

PODER LEGISLATIVO E SUAS

CONSULTORIAS INSTITUCIONAIS

FLÁVIA PESSOA SANTOS1

GABRIELA HORTA BARBOSA MOURÃO2

GUILHERME WAGNER RIBEIRO3

1 Consultora da As-sembléia Legislativade Minas Gerais, es-pecialista em PoderLegislativo pelo IEC-PUC Minas, gerente-geral da ConsultoriaTemática da ALMG.2 Redatora da Assem-bléia Legislativa de Mi-nas Gerais, especia-lista em PoderLegislativo pelo IEC-PUC Minas, ex-geren-te de Redação daConsultoria Temáticada ALMG.3 Consultor da Assem-bléia Legislativa de Mi-nas Gerais, professorde Direito Constitucio-nal da PUC Minas edoutorando em Ciên-cias Sociais da PUCMinas.

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comissão, de recrutamento amplo, conforme possibilita aConstituição Federal ao estabelecer critérios de acesso aoserviço público. Esse assessoramento é de natureza técnico-política, sendo desejável, portanto, que o assessor se identi-fique com os compromissos políticos, partidários e ideológi-cos assumidos pelo parlamentar.

A consultoria legislativa institucional, objeto de nossaanálise, é composta de servidores ocupantes de cargo efetivo,selecionados por concurso público, conforme a regra geralestabelecida pela Constituição Federal para o acesso aosquadros funcionais da Administração Pública. Esse tipo deassessoramento, ao contrário do exemplo anteriormente men-cionado, é de natureza eminentemente técnica, o que significadizer que o servidor que o presta deve sempre buscar aisenção, de forma a não permitir que o seu trabalho sejainfluenciado por suas convicções político-ideológicas.

A consultoria institucional é adotada por poucas casaslegislativas do País, sendo as mais conhecidas a da Câmarados Deputados, a do Senado Federal – ambas do CongressoNacional – e a da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.Outras assembléias legislativas fizeram, recentemente, a op-ção por esse tipo de consultoria, como as dos Estados deGoiás e do Rio Grande do Sul.

Há tantos argumentos contrários quanto favoráveis àadoção desse modelo de consultoria institucional. Entre osargumentos contrários, há os que sustentam a inadequação deum assessoramento eminentemente técnico em uma casapolítica, pois tal assessoramento seria insuficiente para oatendimento integral das necessidades do parlamentar. Há,por outro lado, os que defendem a conveniência do modelo deconsultoria institucional para os parlamentos em que as taxasde renovação do corpo parlamentar são muito elevadas, comoocorre no Brasil. Nesse caso, a consultoria, por ter um caráterde permanência, exerceria o papel de “memória” da Casa,garantindo que não houvesse interrupção abrupta dos traba-lhos legislativos a cada início de legislatura. Matérias impor-tantes podem tramitar durante muito tempo nos parlamentos

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PODER LEGISLATIVO E SUAS CONSULTORIAS

INSTITUCIONAIS

e a existência de um órgão técnico permanente assegura oacúmulo de informações e o aprofundamento dos debates,evitando que a discussão retorne a seu ponto inicial a cadamudança de relator e a cada início de legislatura.

Todos esses argumentos encontram respaldo na reali-dade fática dos parlamentos brasileiros. Todavia, como já foidito, podem conviver e atuar de forma complementar nascasas legislativas vários modelos de assessoramento. NosEUA, por exemplo, há assessorias de bancada e de comissão,esta última selecionada pelo presidente do órgão colegiado.Tais assessorias têm o suporte do Congressional ResearchService, órgão de assessoramento composto de servidores doquadro permanente do Poder Legislativo. A coexistência deassessorias também ocorre nas casas legislativas do Congres-so Nacional e na Assembléia Legislativa do Estado de MinasGerais, o que pode ser bastante vantajoso para o trabalhoparlamentar, conforme tentaremos demonstrar oportuna-mente, ao relatarmos a experiência da consultoria institucionaldesta última.

Parlamento e sociedade do conhecimento

No contexto mundial, a profunda transformação socialdecorrente do processo de globalização da economia, intensi-ficado nas últimas três décadas, tem, entre suas característi-cas, a valorização do conhecimento como bem de mercado.Assim, a capacidade de produção e de assimilação de informa-ções e de conhecimento é fundamental para que empresas,regiões ou países se insiram na economia globalizada.

O quadro não é diferente para as instituições públicas e,no campo de nossas preocupações, para o Poder Legislativo,porque, conforme já afirmamos, o seu desempenho dependecada vez mais de informação e conhecimento. Com efeito, nocampo da produção normativa, não é difícil perceber que aprodução legislativa requer cada vez mais a contribuição deespecialistas. Basta pensar no desafio de se regulamentar temascomo software, biotecnologia, biomedicina e energia nuclear,cuja terminologia foge à compreensão do cidadão comum. Não

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mais se admite, contudo, que a complexidade de determinadoassunto autorize a sua retirada do espaço público e o seuconfinamento em determinadas instâncias burocráticas.

Há, todavia, uma nítida distinção entre os tipos deconhecimento produzido nos três Poderes. O Poder Executi-vo apresenta condições diferenciadas de produção de infor-mação e de conhecimento relativos ao funcionamento doEstado. Pela dimensão de seu aparato técnico, que envolvegrande número de profissionais, por sua atuação direta noprocesso de formulação e implementação das políticas públi-cas, o qual exige conhecimento técnico especializado, e pelocontrole da geração de informações de caráter financeiro, énítida a sua superioridade sobre os demais Poderes. Pode-seafirmar, nesse sentido, que há uma assimetria informacionalentre o Poder Executivo e os demais Poderes.

A divulgação da informação e do conhecimento produ-zidos no âmbito do Poder Executivo sofre, no entanto, osefeitos do princípio hierárquico que organiza esse Poder. Écomum que essas informações e conhecimentos fiquemconfinados no ambiente onde foram gerados e sejam utiliza-dos apenas de acordo com o interesse governamental.

No Poder Judiciário, o conhecimento produzido épredominantemente jurídico. Há eventualmente a necessidadeda intervenção de perícias técnicas para subsidiar os argu-mentos das partes do processo, mas é o conhecimentojurídico que pauta toda a condução do trabalho. A prevalênciadesse conhecimento pode ser facilmente identificada pelautilização de uma linguagem jurídica especializada, de domínioexclusivo dos profissionais da área, o que explica em parte adificuldade de diálogo entre esse Poder e a sociedade.

No Poder Legislativo, a convivência de correntesheterogêneas de pensamento e de forças antagônicas depressão permite um significativo aporte de informações, o quetorna peculiar o conhecimento ali produzido.

Políticos, técnicos, acadêmicos e representantes dossetores interessados nas matérias em discussão no Parlamen-

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INSTITUCIONAIS

to trocam informações e conhecimentos em distintos momen-tos e instâncias de uma casa legislativa. Esses grupos, aliás,não são homogêneos, o que significa dizer que pode havertroca de informações também no interior de cada um deles.Técnicos do Poder Executivo com freqüência trocam infor-mação e conhecimento com os do Poder Legislativo no examedas proposições. O pluralismo persiste até mesmo no interiorde cada um desses grupos, pois, comumente, há divergênciasentre os próprios técnicos sobre um determinado assunto.

Nesse sentido, o Parlamento é palco privilegiado parao que chamamos de pluralismo cognitivo e Boaventura deSousa Santos chama de "ecologia de saberes", que

consiste na promoção de diálogos entre o saber cientí-fico ou humano, [...] e saberes leigos, populares,tradicionais, urbanos, camponeses [...] que circulam nasociedade.

[...]

A ecologia de saberes são conjuntos de práticas quepromovem uma nova convivência activa de saberes nopressuposto de que todos eles, incluindo o saber científico,se podem enriquecer nesse diálogo. (2004, p. 76).

Essa convivência de conhecimentos no Parlamentonão é necessariamente harmoniosa e pautada pelo respeitomútuo e pela disposição para a colaboração recíproca. Elaocorre no calor do jogo político, em meio a conflitos deinteresses, e é marcada pela assimetria informacional, quedesiguala os atores nesse processo. Essa dinâmica é nítida narelação entre Poder Executivo e Poder Legislativo: o PoderExecutivo, ao submeter determinada proposição ao PoderLegislativo, não apresenta necessariamente todas as informa-ções que a justificam; cabe ao Poder Legislativo trazê-las àtona a fim de conduzir os debates e formular questõespertinentes sobre a matéria, e, para tanto, deve dispor de umabase consistente de conhecimentos e de informações.

A assimetria existe também dentro do próprio PoderLegislativo, entre maioria e minoria, entre líderes e liderados,

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entre relator e seus pares, etc. Contudo, é nesse processoconflituoso que surgem condições e possibilidades para que opólo desfavorecido na referida assimetria se aproprie deconhecimentos e de informações importantes para sua ação(Herscovici, 2004, p.12), permitindo a eventual redução dessaassimetria, com a conseqüente ampliação do espaço democrá-tico e da legitimidade da representação.

A assimetria informacional ocorre também entre oPoder Legislativo e a sociedade, sendo que, com freqüência,determinados setores da sociedade detêm mais conhecimentoe informação sobre o assunto em pauta no Parlamento do queo próprio Poder Legislativo. Referindo-se à participação desetores da sociedade no processo de produção legislativa, oprofessor José Eduardo Faria faz o seguinte alerta:

[...] tem ficado particularmente evidente [...] [que] osPoderes Executivo e Legislativo cada vez maisprocuram dividir ou partilhar essa responsabilidade,por meio de sistemas de consultas públicas, painéis dediscussão, entendimento com setores sociaisinteressados, colaboração com comunidadesprofissionais estruturadas, assessoria de centros depesquisa, diálogo com instituições universitárias deelite e pedidos de relatórios técnicos e pareceres acientistas, peritos e especialistas das mais diferentesáreas do conhecimento. No entanto, até que pontoesses mesmos especialistas, peritos e autoridadescientíficas não podem aproveitar-se da assimetria deinformações em suas áreas de atuações para manipular,ocultar, justificar e/ou desqualificar, com argumentospretensamente técnicos, decisões não técnicas, juízosde valor e preferências políticas? (2002, p. 86).

Essas questões remetem precisamente ao papel daconsultoria legislativa, qual seja o de oferecer aos parlamen-tares suporte técnico especializado, de forma a reduzir aassimetria informacional e deixar o Parlamento em condiçãode atuar em um contexto em que o conhecimento e ainformação adquiriram uma centralidade na dinâmica de seurelacionamento com os demais Poderes e com a sociedade.

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PODER LEGISLATIVO E SUAS CONSULTORIAS

INSTITUCIONAIS

Do ponto de vista da interação entre o agente político ea burocracia, o relacionamento da consultoria legislativa com oparlamentar reproduz os mecanismos descritos pela teoria doagente e do principal, segundo a qual o povo é o principal e ospolíticos seus agentes, mas os políticos são os principais emrelação à burocracia, que seria seu agente (KIEWIET;McCUBBINS, 1991). Nessa teoria, o principal compartilha oseu poder com o agente na expectativa de que essecompartilhamento potencialize o seu poder. Assim, os políticoscompartilham seu poder com o técnico na expectativa de queeste, com o saber especializado de que dispõe, amplie-lhe opoder, implementando suas decisões. Sob esse prisma, deve-se reconhecer que uma orientação técnica bem fundamentadapode alterar a qualidade do jogo político e, na maioria das vezes,fazer a mediação do debate, propiciando a convergência deposicionamentos para uma tomada de decisão mais equilibrada.

É nesse mesmo contexto porém que se pode verificar ofenômeno da tecnocracia, quando os técnicos utilizam de seusconhecimentos não para ampliar o poder dos políticos, maspara usurpá-lo, passando a tomar decisões políticas sob oargumento de se tratar de questões técnicas, sem que tenhamlegitimidade para isso. Essa é a preocupação de NorbertoBobbio ao se referir às sociedades industriais, não importandose regidas por economias capitalistas ou socialistas, em que“são aumentados de maneira sempre mais acelerada os proble-mas que requerem soluções técnicas não confiáveis senão aoscompetentes, donde deriva a tentação de governar através dospuros técnicos ou tecnocracia.” (1979, p. 41).

A relação entre o político e o técnico há que estar bemdelimitada quanto aos respectivos campos de atuação – odomínio sobre determinados conhecimentos e técnicas jamaispode servir de pretexto para que o consultor exorbite de seucampo de atuação.

As consultorias legislativas institucionais

A consultoria legislativa institucional de caráter perma-nente atua com o objetivo de difundir conhecimentos técnicos

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a todos os membros do Parlamento, independentemente de suafiliação partidária. O conhecimento acumulado pela consultoriainstitucional é regido por normas que buscam assegurar suaneutralidade e disponibilidade geral, ao passo que o conhecimentoacumulado por uma assessoria de gabinete ou de bancada épolítico-ideológico e fica restrito a seu meio.

A consultoria legislativa institucional pode contribuirde forma decisiva para que haja uma efetiva interação dosconhecimentos e informações que circulam nas casaslegislativas e conseqüente redução da assimetria informacional,definida anteriormente.

Não se quer com isso afirmar que a consultoria possaigualar as condições de acesso à informação entre todos osmembros da casa legislativa, porque o quadro de assimetriainformacional existente entre eles decorre sobretudo da con-figuração política definida nas eleições e das regras que regemo processo legislativo, em especial, as regimentais. Comoexemplo de uma dessas regras, comumente encontrada nosregimentos internos, podemos citar a que determina que sejaindicado um relator, escolhido entre parlamentares integran-tes de uma comissão técnica, para examinar e emitir parecersobre determinada proposição em tramitação. Nesse contex-to, é inevitável que o relator tenha acesso a um volume maiorde informações em relação aos demais deputados, pois nãoapenas recebe assessoramento direto da consultoriainstitucional, em virtude de disposições regimentais, comotambém é munido de informações pelos setores interessadosna matéria. Todavia, o fato de assessorar diretamente o relatornão impede que a consultoria preste também esclarecimentos,em linhas gerais, sobre os aspectos técnicos da proposição,aos deputados que os solicitarem, contribuindo assim paraque haja uma maior circulação da informação.

A redução da assimetria informacional ocorre tambémem situações em que a consultoria atua como mediadoratécnica de debates em reuniões que tenham a participação deparlamentares das mais diferentes correntes políticas, de seusassessores, de representantes dos setores interessados, como

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INSTITUCIONAIS

entidades de classe, e do próprio governo, identificando,explicitando e esclarecendo os pontos de divergência e deconsenso, o que permite a circulação de informações que, deoutra forma, ficariam restritas a um grupo menor.

Deve-se ressaltar que esse papel que o consultordesempenha na dinâmica do processo legislativo propicia opermanente confronto de situações concretas, trazidas à tonano decorrer dos debates, com os estudos sistemáticos sobrea matéria, muitas vezes circunscritos aos bancos da acade-mia, transformando e qualificando o conhecimento técnico deque dispõe esse profissional.

Para que se compreenda a dinâmica do assessoramentotécnico, é necessário identificar algumas regras e princípiosque devem pautar o comportamento dos consultores noParlamento, com maior ou menor intensidade, dependendodas circunstâncias e das peculiaridades do trabalho a serdesenvolvido.

Primeiramente, como já foi mencionado, é indispensá-vel que a consultoria mantenha sigilo e discrição no atendi-mento aos parlamentares, para que haja confiança do corpopolítico nos trabalhos desse órgão técnico.

Além do sigilo, a imparcialidade é outro princípionorteador da conduta dos consultores. Não se pretende imporao consultor uma passividade absoluta no processo de apre-ensão da realidade e na sua transformação em conhecimento.Esse processo está inevitavelmente marcado pelas singulari-dades do próprio sujeito que conhece, sendo impossível,portanto, construir um conhecimento que seja despido dessasinfluências. Ao apontar a imparcialidade como uma meta a seralcançada, o que se busca é o que Pedro Demo chama de"esforço de objetivação", ou seja, o esforço, sempre incompleto,de tratar a realidade como ela é. Não é mais a objetividade dospositivistas, mas

um compromisso metodológico de dar conta da realidadeda maneira mais próxima possível.É, pois, a tentativa

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de, na relação entre sujeito que conhece e objeto que éconhecido, não deixar a balança pender para nenhumdos lados e ter sempre em mente que o conhecer se dá narelação que se estabelece entre ambos. (2000, p. 28).

A almejada imparcialidade pode ser objetivada quando,por exemplo, o consultor leva ao conhecimento do parlamen-tar todas as correntes ou posicionamentos teóricos relativosa determinada matéria, ainda que a consultoria tenha preferên-cia por um deles, permitindo que o parlamentar adote, comsegurança, a opção que lhe pareça mais adequada.

A função da consultoria exige também do consultor odesenvolvimento da habilidade de comunicação (SERAFINO,1997), porque, diferentemente de outros especialistas, comoos juízes e os acadêmicos, o consultor dialoga com o não-especialista, seja o parlamentar, seja outro ator social que atueno Parlamento. Boaventura de Souza Santos conceitua talhabilidade como "trabalho de tradução" e o define como

procedimento que permite criar inteligibilidade recí-proca entre as experiências do mundo, tanto asdisponíveis como as possíveis [...] O trabalho detradução incide tanto sobre os saberes como sobre aspráticas [e os seus agentes]. [...] Consiste no trabalhode interpretação entre duas ou mais culturas comvistas a identificar preocupações isomórficas entreelas e as diferentes respostas que fornecem para elas.(2006, p. 124).

É preciso, pois, que o consultor se expresse, em suasmanifestações orais ou escritas, de tal forma que as pessoasnão versadas na matéria possam compreendê-lo. A capacida-de de comunicação pressupõe também habilidade para iden-tificar e organizar interesses plurais, de forma a incorporá-lossegundo as composições efetuadas no decorrer do processode discussão de questões afetas à atividade parlamentar. E,ainda, para que possa atuar adequadamente na organizaçãodesses interesses e apresentar alternativas politicamente viáveis,é preciso que o consultor tenha compreensão do panoramapolítico do Parlamento e da composição das forças atuantesem determinada conjuntura.

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Outro pressuposto para a eficácia do assessoramentoprestado pelo consultor é o conhecimento da técnica legislativa,que compreende o domínio das regras do processo legislativoe dos padrões lingüísticos próprios dos textos normativos eparlamentares.

Por fim, no contexto de uma sociedade em permanenteprocesso de transformação, o consultor deve estar atento ereceptivo a mudanças paradigmáticas que impliquem a adoçãode novas condutas e metodologias, abandonando, quandonecessário, práticas e exegeses acolhidas no passado.

A consultoria legislativa institucional da

Assembléia Legislativa de Minas Gerais

A Gerência-Geral de Consultoria Temática, órgãotécnico de caráter permanente composto de cargos efetivosda carreira do Quadro de Pessoal da Secretaria da AssembléiaLegislativa de Minas Gerais, tem por competência prestarassessoramento e consultoria temática às comissões e aosdeputados no processo legislativo e nos procedimentos polí-tico-parlamentares; desenvolver programas de pesquisa erealizar estudos técnico-científicos necessários à elaboraçãolegislativa e às manifestações político-parlamentares; elaborarinstruções legislativas e minutas de parecer e proposições eoutros documentos parlamentares, nos termos da Resoluçãonº 5.086, de 31 de agosto de 1990.

A formação desse órgão teve início no começo dadécada de 1980, com a criação do Conselho de Informação ePesquisa, que tinha por atribuição “avaliar e aprovar os progra-mas e projetos das áreas de informação, pesquisa e documen-tação de interesse da Assembléia Legislativa”4. Esse conselhoficou responsável pela edição de uma publicação mensal,denominada "Indicador", dedicada a estudos de caráter técnicoe científico que subsidiavam os trabalhos legislativos.

Em 1985, foi instituída a Consultoria Legislativa eParlamentar, com a atribuição de elaborar proposições eresponder a questões de natureza técnica5. Nessa época, foi

4 Art. 1º da Resolu-ção nº 2.625, de 29de janeiro de 1981.

5 Resolução n°3.800, de 30 de no-vembro de 1985.

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criada também a Coordenação de Pareceres, vinculada aoDepartamento de Comissões, ocupada por servidores de livrenomeação que auxiliavam os deputados na elaboração dospareceres. Em 1990, as atribuições do Conselho, da Coorde-nação de Pareceres e da Consultoria foram reunidas noDepartamento de Consultoria e Pesquisa6, reproduzindo mo-vimento similar ocorrido na Câmara dos Deputados no inícioda década de 1970, conforme consta do site desta casalegislativa:

O assessoramento legislativo institucional da Câmarados Deputados teve início em 1971, com a criação daAssessoria Parlamentar, então subordinada ao Centrode Documentação e Informação, e da AssessoriaTécnica Especializada, vinculada ao Departamentode Comissões. Apesar de contarem com atribuiçõesdistintas, essas assessorias, em suas atuações, revelaramuma superposição de papéis, em razão do que foramunificadas em 1973, dando origem ao que se chamoude Assessoria Legislativa, posteriormente denominadaConsultoria Legislativa.

Pouco depois dessa unificação na ALMG, foi editada aDeliberação nº 473, de 17/10/1990, que estabelece normaspara a prestação, pelo Departamento de Consultoria e Pesqui-sa, de assessoramento e consultoria ao deputado no processolegislativo e nos procedimentos político-parlamentares.

Duas medidas colaboraram para conformar o trabalhoda Consultoria tal como se apresenta hoje. No início da décadade 1990, foi determinado ao consultor, que já tinha a atribuiçãode elaborar minutas de parecer sobre as proposições distribuídasàs comissões, que passasse também a acompanhar as reuniõesda comissão em que os pareceres seriam discutidos. Atéentão, a Consultoria limitava-se a encaminhar ao gabineteparlamentar, por escrito, os trabalhos técnicos que lhe eramsolicitados, não havendo uma relação de maior proximidadeentre o corpo técnico e o político. O acompanhamento dosdebates nas reuniões de comissão e nas audiências públicasinseriu o consultor na dinâmica dos trabalhos parlamentares,

6 Resolução nº5.086, regulamenta-da pela Deliberaçãonº 458, ambas de 31de agosto de 1990

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exigindo dele habilidade para prestar assessoramento técnicoem um contexto político.

A outra medida adotada foi o encaminhamento dosautos de todas as proposições legislativas à Consultoria paraapreciação técnica após a indicação dos relatores pelo presi-dente da comissão, o que contribuiu decisivamente para queaquele órgão assumisse um papel coadjuvante no exame dasproposições que tramitam na Casa.

Sempre se resguardou, porém, a prerrogativa do relatorde elaborar o parecer em seu gabinete. Entretanto, há algumtempo vem se sedimentando movimento em sentido inversona Assembléia Legislativa de Minas Gerais, com a ampliaçãoda confiança dos parlamentares nos técnicos da Casa. Isso seevidencia pela maior freqüência com que esses profissionaistêm sido convocados a participar de reuniões com setoresinteressados em matérias em discussão na Casa ou comtécnicos do governo e, por vezes, representantes de outrasforças políticas.

A Consultoria da ALMG funciona hoje com 60 consul-tores e 10 redatores, além dos servidores da equipe de apoio.O órgão está dividido nas seguintes áreas temáticas: DireitoConstitucional; Direitos Humanos; Meio Ambiente; Educaçãoe Cultura; Economia e Finanças; Acompanhamento Orçamen-tário; Redação; e Análise de Processos. A Gerência de Análisede Processos examina as proposições que autorizam a doaçãode bens imóveis e as de declaração de utilidade pública. AConsultoria concluiu, em 2006, 3.129 trabalhos escritos,entre minutas de parecer e de proposição (projetos de lei,propostas de emenda à Constituição, emendas e requerimen-tos), informações e notas técnicas. Não estão aqui computa-dos os requerimentos formulados durante as reuniões e asinformações prestadas oralmente a parlamentares e seusassessores, o que ocorre com freqüência.

Os redatores atuam conjuntamente com os consulto-res em todas as áreas na revisão dos textos produzidos naConsultoria. Na Gerência de Redação, há um núcleo de

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redatores responsáveis pela elaboração das minutas dos pare-ceres da Comissão de Redação e pela revisão dos textosnormativos que eventualmente integrem os trabalhos daConsultoria. A equipe dessa área acompanha a tramitação detodas as proposições, estando atenta, com os consultores,para a existência de vícios que possam comprometer o sentidodo texto legal. A especialização em matéria relacionada com atécnica de elaboração de leis, sua sistematização e consolida-ção, adquirida graças a estudos desenvolvidos pelo corpotécnico da Consultoria, levaram o Poder Legislativo a assumiro primado dessa técnica, o que é hoje reconhecido pelosdemais Poderes no processo de configuração dos textosnormativos que tramitam na Assembléia.

Além da especialização na técnica de elaboração de leis,há hoje em dia uma preocupação da Consultoria de melhor secapacitar para subsidiar o Poder Legislativo mineiro nodesempenho de sua função fiscalizadora, consoante a tendên-cia atual de os parlamentos retomarem suas prerrogativasplenas nessa esfera de atuação. Sob tal perspectiva, tem-seexigido dos consultores um treinamento mais específico parao atendimento dessa demanda. A Consultoria passou a desen-volver metodologia de pesquisa que busca privilegiar umaanálise mais qualitativa e menos formal da atuação estatal,priorizando a análise da eficácia, da eficiência, da efetividadee da economicidade das políticas públicas. Na impossibilidadetécnica de criar seus próprios indicadores, o que seriadispendioso e exigiria conhecimentos científicos bastanteespecializados, tornou-se necessário implementar parceriascom instituições de pesquisa que têm possibilitado ao PoderLegislativo, bem como ao seu corpo técnico, o acesso ainstrumentos e indicadores cuja eficácia já foi devidamentetestada e comprovada e sua utilização. Embora o acesso adados que permitem acompanhar em tempo real a execuçãoorçamentária e o cronograma da implantação dos programasgovernamentais não constituam uma novidade para aConsultoria, o que se tem em foco atualmente é criar umareferência técnica para avaliação contínua das políticas públi-cas. Para tanto, a Consultoria vem trabalhando na elaboração

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INSTITUCIONAIS

de estudos temáticos que permitirão uma maior compreensãoda realidade social do Estado, de forma a ampliar as perspec-tivas de atuação do Parlamento. Para a elaboração dessesestudos, estimula-se o trabalho em equipe, com a participaçãode consultores de distintas especialidades, o que permite umaapreciação multidisciplinar do tema em exame.

Com o apoio institucional da Casa, a Consultoria vemtambém realizando estudos7 e entrando em contato comprofissionais especializados em Legística8 , área do conheci-mento que tem por objeto os processos de concepção eelaboração das leis, tendo em vista a qualidade da produçãonormativa em termos de eficácia, economicidade, acessibili-dade, segurança jurídica e efetividade.

Os preceitos da Legística são hoje adotados por insti-tuições governamentais e organismos internacionais no âmbitoda União Européia, Estados Unidos e Canadá como normas ourecomendações a serem observadas nas atividades deelaboração legislativa. Essa nova abordagem do processo decriação de leis vem se consolidando internacionalmente nosúltimos anos em decorrência de estudos que demonstram osinúmeros entraves ao desenvolvimento econômico e socialdos Estados causados por problemas de proliferação legislativa,desproporcionalidade entre custos e benefícios gerados pelanorma, dificuldade de interpretação e de conhecimento dotexto legal, incerteza jurídica e inadequação das leis aosobjetivos propostos e ao ordenamento vigente.

No que se refere à dinâmica dos trabalhos da ConsultoriaLegislativa aqui analisada, é importante ressaltar que aAssembléia de Minas, ao institucionalizar as assessorias debancada, que atuam complementarmente no assessoramentoaos deputados, possibilitou que os blocos parlamentares damaioria e da minoria se fizessem representar em um espaçocomum, para onde convergem todos os demais atores capazesde influenciar o processo legislativo. Criou-se, assim, umambiente favorável ao amplo debate sobre proposições demaior impacto político do qual participam não apenas amaioria e a minoria, mas também o relator, o consultor,representantes do governo e da sociedade, especialistas e

7 No contexto de pro-dução e difusão deconhecimentos deinteresse do PoderLegislativo, é opor-tuno mencionar o tra-balho desenvolvidopela Escola doLegislativo da As-sembléia de Minas,que atua também naformação de servi-dores da estruturada Casa e de outrosórgãos da Adminis-tração. A Escola de-sempenha ainda umtrabalho direcionadoao público externo –estudantes e outrossetores da socieda-de civil organizada –,visando capacitá-lospara a participaçãopolítica, o que, decerta forma, contri-bui para a reduçãoda assimetriainformacional entre oPoder Legislativo e asociedade e, conse-qüentemente, para ademocratização doprocesso de produ-ção legislativa .8 Segundo PaulDelnoy, a Legísticapode ser concebidacomo a metodologiade criação do Direitoescrito, “não se limi-tando a questões de

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outros interessados na matéria, os quais têm ali a possibilidadede se manifestar. A Consultoria tem atuado nesse espaço coma devida anuência do relator, ao qual interessa identificar umasolução que atenda, tanto quanto possível, ao pleito dos atoresenvolvidos na discussão de determinada proposição, na formade uma proposta comum. Na configuração dessa proposta, oconsultor tem a oportunidade de sugerir os ajustes técnicosnecessários a sua viabilização. Essa proposta segue suatramitação no Parlamento legitimada pelo amplo processo dediscussão que a respaldou e terá, com isso, maiores chancesde ser aprovada em Plenário e sancionada pelo Poder Executivo.Como conseqüência desse processo de discussão queacabamos de descrever, é de se notar um deslocamentogradual no relacionamento entre o técnico e o político,passando-se da relação consultor-relator para a relaçãoconsultor-grupo de parlamentares, o que tem como resultadoum trabalho que traduz as aspirações de um corpo coletivo,em vez de expressar apenas a vontade isolada do relator.

Algumas ferramentas disponíveis na Assembléia deMinas tornam mais eficiente o trabalho da Consultoria. Umadelas é o sistema eletrônico de circulação de textos, no qualuma minuta de parecer elaborada na Consultoria e aprovadapelo relator é disponibilizada eletronicamente para a comissãocompetente e, tão logo seja aprovada, é liberada para o setorde publicação, que toma as providências necessárias para asua inserção no Diário Oficial do Estado. As eventuaismodificações no parecer do relator efetuadas pela comissãopodem ser imediatamente processadas no sistema e encami-nhadas para a etapa seguinte de sua tramitação. Todas essaspeças do processo encontram-se disponíveis na internet, paraconhecimento público.

Além disso, a Assembléia Legislativa mantém banco dedados que contém os instrumentos normativos de competên-cia do Estado, abrangendo as normas constitucionais, legaise infralegais, as quais são submetidas a um processo sistemá-tico de atualização. Disponibiliza, ainda, na internet, informa-ções e pareceres sobre as proposições que tramitam ou játramitaram na Casa.

pura forma (Legís-tica formal), mas seocupando tambémda determinação doconteúdo da norma(Legística material),em respeito absolu-to às prerrogativasinalienáveis do le-gislador”.

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Por fim, é importante registrar que, na AssembléiaLegislativa de Minas Gerais, a mudança da direção política daCasa, em especial, da Mesa Diretora, não desencadeia neces-sariamente a mudança das chefias das áreas administrativas.Ademais, os cargos de confiança para o exercício da funçãode chefia e assessoramento da estrutura permanente da Casasão de acesso restrito a servidores efetivos. O Legislativomineiro evita, dessa forma, a quebra na continuidade daorganização e dos serviços administrativos que dão suporte àação político-parlamentar 9. A expectativa de que a chefia nãoseja substituída a cada dois anos – duração do mandato daMesa Diretora – permite a qualquer setor da Casa trabalharcom a perspectiva de planejamento para um prazo maior,possibilitando a sedimentação de conhecimentos e o melhoraproveitamento da estrutura administrativa da Casa por partedos parlamentares.

As atividades do Poder Legislativo envolvem um inten-so processo de circulação e produção de conhecimentos einformações. Nesse contexto, a existência de um quadrotécnico permanente, ainda que não seja uma garantia de queo Poder Legislativo desempenhará satisfatoriamente suasfunções, é uma condição para tal. Uma consultoria institucionalcomposta de servidores de carreira não substitui assessoriasde gabinetes, de lideranças e de bancadas, mas mantém comestas uma relação de complementaridade. A qualificaçãoprofissional dos consultores, aliada à experiência adquirida noexercício permanente de assessoramento parlamentar, garan-te um trabalho de qualidade e contribui de forma significativapara que o Poder Legislativo detenha os conhecimentosnecessários para consolidar uma posição de equilíbrio no rela-cionamento com os demais Poderes e com a sociedade.

O trabalho das consultorias institucionais vai além domero repasse de informações técnicas para o Parlamento, poisa acumulação de conhecimentos acaba por constituir umpatrimônio cognitivo específico do Poder Legislativo, indis-pensável à recuperação de seu papel histórico no EstadoDemocrático de Direito.

9 Recentemente, porexemplo, a Consul-toria da ALMG foigerenciada por ummesmo profissionaldurante dez anos, oque facilitou a con-solidação de ummodelo para o setore de uma linha detrabalho para a equi-pe, permitindo a in-corporação e a sis-tematização de co-nhecimentos envol-vidos no assesso-ramento técnicoprestado aos depu-tados.

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ATUALIDADES E PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA DA

LEGISLAÇÃO NA ÁUSTRIA

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 153-164, jan./dez. 2007

2Jurista, professortitular da Universi-dade de Salzburg,Áustria, e fundadorda AssociaçãoAustríaca de Legis-lação.

Introdução

m primeiro lugar, saudamos Georg Müller,diretor do Centro para a Elaboração de Leis,em razão dos muitos anos de existência docentro e pela iniciativa de realização da confe-rência cujo escopo é a exposição dos resulta-dos parciais de todo o trabalho desenvolvido.

Desse modo, faremos um relatoinicial orientado pelas questões expostasno convite: nosso posicionamento em setratando de ensino, pesquisa e treinamento

na área de Legística; quais as lacunas a serem preenchidas;quais os avanços queremos; e quais focos de investigaçãodevem ser priorizados. A outra parte do relato, inicialmentereferir-se-á a uma descrição atual de alguns problemassignificativos na área da Legística na Áustria. Finalmente,serão tratados outros assuntos.

ATUALIDADES E PERSPECTIVAS DACIÊNCIA DA LEGISLAÇÃO

NA ÁUSTRIA1

HEINZ SCHAEFFER2

1Discurso proferidoem encontro doCentro para Elabo-ração de Leis, rea-lizado em Zurique,Suíça, em 27 demarço de 2006.Texto traduzido porMarkus Brodnik eadaptado por Fa-biana de MenezesSoares.

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Situação atual da legislação na Áustria

Em 1981, é criada na Áustria a Associação Austríacade Ciência da Legislação3, em decorrência das iniciativas deSchaeffer e Öhlinger, cujo objetivo foi além da questãomeramente científica da metódica da legislação, mas sobretudocom o escopo de atingir os atores proeminentes do processode construção normativa (legistas e parlamentares).

Todavia, devemos admitir que, apesar de conseguir-mos despertar o interesse dos legistas, os políticos ainda seinteressam pouco pelo assunto. Não obstante esses fatos, aOGGL conseguiu, ao longo desses 25 anos, suscitar umacerta consciência da problemática acerca das exigências paraa qualidade da legislação por meio de conferências e simpósioscientíficos. A maioria dessas comunicações foi publicada peloSchriften zur Gesetzbung – Escritos de Legislação.

A OGGL atua ativamente na rede européia de asso-ciações, pois não só influiu em outros países europeus,onde foram criadas associações nacionais de legislação,como também contribuiu para a fundação da EuropeanAssociation of Legislation (EAL) – Associação Européiade Legislação.

O foco mais recente de atuação da OGGL é a avaliaçãode impacto da legislação, além do trabalho contínuo daLegística e sua perspectiva constitucional e européia, ambasmuito importantes na Áustria.

Nesse particular, a Suíça se encontra muito avançadaem avaliação de impacto. Na Áustria, estamos tentandodocumentar as diferentes técnicas, métodos e experiências,de modo a disponibilizar as informações aos legistas. Talestratégia é especialmente importante diante dos esforçoseuropeus para melhorar a qualidade da legislação – BetterRegulation/ OECD 1992 e Comissão Européia de 2002 –, nãosomente para a legislação européia, mas também para aslegislações nacionais, pois trata-se da desoneração de cidadãose empresas como conseqüência de um processo mais

3 ÖsterreichischeGesellschaft fürGesetzgebungslehr,ou OGGL, no original.

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ATUALIDADES E PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA DA

LEGISLAÇÃO NA ÁUSTRIA

racionalizado de produção legislativa e, para isso, será necessáriaa atuação de uma rede européia de instituições nacionaisgovernamentais e não-governamentais.

Após analisarmos a situação da legislação na Áustria e,indiretamente, se a OGGL trouxe resultados positivos,concluímos o seguinte:

a) Fizemos enormes avanços tecnológicos nos proces-sos de preparação de leis.

b) A tensão entre a possibilidade de melhoria dalegislação e os dividendos políticos de uma decisão legislativarápida concorreram para o enfraquecimento da cultura Legísticana Áustria, até então historicamente reconhecida.

A legislação piora a cada dia em virtude de umalinguagem pouco clara, com uso excessivo de termos: eis aconseqüência parcial da implementação pouco pensada dalegislação européia, da perda de sistematização e de uma faltade respeito aos critérios mínimos de normatização para aredação de textos.

Passemos à elaboração dos dois aspectos já mencionados:

Desde 1º de janeiro de 2004, a publicação do diáriooficial eletrônico – BGBl (como conseqüência da lei sobre areforma da publicidade4 ) – substituiu o diário em papel epassou a ser considerada a versão autêntica, conforme osistema de informações das leis federais – Rechtsin-formationssystem – RIS.

Independentemente disso, todo o processo de prepara-ção da lei é feito pela técnica de projetação (work flow), deacordo com o sistema do Parlamento e também do sistemaeletrônico de informação dos ministérios.

No nível federal, na Áustria, há um sistema deElegislation. Uma nossa ex-assistente, Susanne Bachmann,hoje com um importante cargo no Parlamento, fez um relatosobre esse sistema5 , concluindo que, na esfera federal, existehoje um processo unificado de projetação das leis que inclui

4 A Kundmachungs-reform G 2004 (öBGBl2003/100) modificou aConstituição Federal ea lei federal sobre oBundesgesetzblatt(Diário Oficial Federal).

5 Susanne Bach-mann, LegislaçãoEletrônica na Áus-tria? ZG 2006/1, 61ff. A publicação des-creve o percursopara uma legislaçãoeletrônica do pontode vista da Diretoriado Parlamento.

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desde a decisão legislativa, a tramitação parlamentar, até apublicação da lei.

Nos estados, a situação é diferenciada. Geralmente apublicação é impressa, e somente Salzburg seguiu incontinenteo exemplo federal e anunciou, poucos dias antes de 1º de abrilde 2005, que nessa mesma data a publicação das leis seriaefetuada exclusivamente de modo eletrônico. A mudança foiimplementada na metade do ano.

Apesar das vantagens de um acesso em tempo real aos atosnormativos recentemente modificados, por meio da internet, adocumentação integral é atualizada conforme o sistema RIS; istoé, a versão oficial somente está disponível após seis semanas.

c) Infelizmente, ocorre na atividade de legislação umnúmero maior de comportamentos pouco recomendáveis euma decadência significativa da cultura legística.

Diversas leis estão sendo alteradas várias vezes. Exem-plos disso são as alterações na Constituição Federal, seis vezesdurante seis meses, e no código de trânsito. As mudanças sãotantas que a atualização é dificultada.

Apesar da possibilidade do uso de ferramentastecnológicas, nem os legistas nem os parlamentares semostram capazes ou disponíveis para a consolidação detextos normativos, nem mesmo de projetos ainda em fasede negociação.

Um só ato normativo (pacote de lei) provoca diversase extensas modificações em vários atos normativos. Os títulosdados pelos pacotes não diferenciam os anteriores dos atuais,só sendo identificados pelo ano, pois os títulos são vazios deconteúdo. Exemplo pode ser encontrado nas normas doorçamento anual, cujos títulos são por demais genéricos.

Assim, o Pacote de Crescimento e Criação de Em-prego de 2005 possui um nome simular ao Pacote deCrescimento de 2003, mas esses dois pacotes possuemmedidas completamente diferentes.

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Não há mais pudor em se unir a linguagem populista dospolíticos com a prática, já problemática, dos pacotes de lei.

Qual é o valor informativo para o usuário de umdiário oficial (seja ele publicado em papel ou por mídiasdigitais), se um pacote de lei tem o nome de “Pacote denormas de estrangeiros 2005” e altera ou cria 14 novasnormas que atingem outras matérias?

A técnica de criar pacotes de lei está sendo objeto decríticas pelas normas da boa Legística já há algum tempo.Apesar disso, o método foi aplicado crescentemente du-rante os últimos 10 a 15 anos. Até mesmo a Corte Constitu-cional da Áustria se manifestou a respeito dessa prática emvárias oportunidades.

Nos seus ementários de jurisprudência de 2000, 2003e 2004, a Corte Constitucional apontou, por diversas vezes, asconseqüências negativas dessa técnica legislativa.

No TB 2000 (ementário de jurisprudência de 2000), aCorte Constitucional expressou as seguintes considerações arespeito dos pacotes de leis e seus respectivos problemas:

A prática da criação dos chamados pacotes de lei,especialmente nos orçamentos, que alteram uma miríadede outras normas, não é nova. Mas, cabe constatar queessa prática está aumentando quantitativamente. Assim,foram alteradas 87 normas pelo Budegtbegleitgesetz2001, BGBl 142/2000, segundo o seu próprio índice6 .Além disso, ocorre freqüentemente que a mesma normaseja alterada em intervalos muito curtos, houve casos devárias alterações da mesma norma serem publicadas nomesmo diário oficial7 . Essas circunstâncias levam auma falta de transparência do sistema normativo quepode até chegar a afetar o princípio do estado de direito.

No ementário de jurisprudência 2003 encontram-semais observações sobre a Legística defeituosa. Em termosgerais, a Corte Constitucional assinala que já faz algum tempoa análise das normas relevantes para a solução de um caso é

6 Todavia, a CorteConstitucional daÁustria declarou aconformidade de umregulamento similarcomo compatívelcom a Constituição.7 Publicação do Diá-rio Oficial.

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cada vez mais demorada, além de ser sempre mais difícilentender a intenção do Legislativo nas normas por ele criadas.A razão disso são os defeitos na qualidade da lei, como, porexemplo, a falta de precisão da linguagem, frases muito longasque tentam reunir vários assuntos em uma única frase, umasistemática pouco coerente, cadeias de remissões a outrasnormas pouco transparentes e ainda regulamentos contradi-tórios. Completam o estado de desordem as inúmeras atuali-zações freqüentemente dispostas em pacotes únicos de lei eainda a entrada em vigor em datas diferentes.

No mesmo sentido, a Corte expressa, no seuementário de jurisprudência de 2004, a dificuldade em seocupar com várias normas cujos fins eram difíceis de serevidenciados diante dos graves erros de gramática edesconsideração de princípios da língua alemã. A Corteentão recomenda, com urgência, um maior empenho naelaboração legística das normas criadas.

Tal conjunto de atualizações, como os acima já men-cionados, pode ser adequado para a prática da burocracia emtermos de elaboração e decisão legislativa mais rápida,porém não são, de forma alguma, apropriados para osdestinatários da lei (o cidadão).

Uma outra fonte de problemas são as leis acessóriasao orçamento federal, as quais alteram muitas outrasnormas e são negociadas apressadamente8. Tais fatosmerecem críticas por diversas razões.

Essa forma acelerada de negociação e elaboração denormas acarreta falhas no desenvolvimento do processo9 .Boa parte desses pacotes de lei ou foram discutidos pelosórgãos competentes ou não foram discutidos de formaalguma, visto que não ocorre mais que uma discussãoadequada antes da formalizacão no Legislativo.

Não constituem uma devida preparação de leis (comoé o caso do orçamento), tanto a inclusão de uma diversidadede matérias, que têm pouco ou nada a ver com o orçamentofederal, como a legislação para execução do orçamento

8 Eles não são inclu-ídos no orçamentofederal porque for-malmente existe aregra constitucionalde não se agrupa-rem normas diferen-tes numa só norma.9 Algumas vezes, oNationalrat (Parla-mento federal) nãoconsegue elaboraruma lei conforme oseu próprio regimen-to (por ex.: repetiçãode partes da 2a leituradepois da 3a leitura),o que erroneamentetambém não foi ob-servado pelo presi-dente da República(por ex.: BG BGBl I1999/36 e I 2000/92).Em outros casos, emuma conduta contraa Constituição, faltampartes do texto a serpublicado no DiárioOficial (por ex.: BGBGBl I 1999/36 e I2000/92); ou então alegislação não é ca-paz de definir regrasclaras para a entra-da em vigor de umanorma (por ex.: re-centemente, § 40Abs 1 FSG). Diantedessa pressa na ela-boração de normas,não causa espantoque a Corte Constitu-cional deva anularpartes de leis recen-temente publicadaspor serem inconsti-tucionais em termosformais ou de con-teúdo.

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ATUALIDADES E PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA DA

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federal, quanto sua discussão, exclusiva, na ComissãoParlamentar do Orçamento Federal, prática vetada conformeo disposto no regimento do Parlamento, com muita propriedade.

O debate geral em 2ª leitura na Assembléia, em sessãoplenária, não é um equivalente apropriado para um preparoaprofundado e profissional das matérias específicas nascomissões parlamentares competentes.

Infelizmente, a Corte Constitucional não encetou medi-das reais baseadas nas próprias observações. A Lei do Orçamentode 2003 – Budgetbegleitgesetz 200310 – foi apreciada emdecorrência de um pedido da oposição. A Corte gerou decepçãoao decidir que os pacotes de lei vigoram em detrimento dafunção de suas normas, mas não declarou a práticainconstitucional (Vf GH 13.3.2004, G 211/03 e G 212/0311 ),porque é possível encontrar as alterações nas demais normaspor meio de um índice com o título da lei.

Aqui não se trata somente de um problema técnico ouestilístico. Persiste a dúvida se a Corte Constitucional, comsua decisão, na verdade fundamentou-a suficientemente e se,com uma análise formal, contribuiu para os valores básicos dademocracia representativa (que incluem a sua suficiente eracional discussão no âmbito parlamentar).

Um ato legislativo, ao abranger tantas alterações nasmais diversas áreas sem considerar a discussão e a avaliaçãonecessárias nas comissões específicas do Parlamento12 bemcomo a discussão política mais geral, na sessão plena, na 2ª ena 3ª leituras do projeto, praticamente evita um debateaprofundado e sabota o sentido dos procedimentos político-parlamentares. Além disso, é um defeito grave do parlamentarismohoje e da consciência constitucional dos partidos políticos. Hánecessidade de regimentos parlamentares que contribuam parauma produção legística mais séria e válida.

Como estamos no ensino, na pesquisa e orientaçãotécnica em matéria legística? Qual o desenvolvimentodevemos alcançar?

10 Pacote de normasacompanhando oOrçamento Federal2003.

11 Regimento da Cor-te Constitucional.

12 Porque a discus-são preliminar naComissão do Orça-mento somente per-mite uma análise dosaspectos financei-ros, sendo, portan-to, desconsideradauma avaliação doprojeto sob a pers-pectiva das demaismatérias atingidas.

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1. Infelizmente, a Legística até hoje não é uma matériaobrigatória no ensino do Direito. Além disso, lutamos parauma reorientação do estudo do Direito conforme o modelo deBolonha, com a criação do grau de bacharel para juristas porrazões completamente distintas, sem que haja solução à vista.

A legislação universitária austríaca de hoje permite quecada universidade possa desenvolver o seu próprio currículo,não existindo um órgão coordenador para o país inteiro.Algumas faculdades estabelecem currículos de três anos parajuristas, enquanto a Ordem dos Advogados e a Faculdade deDireito da Universidade de Viena optaram por um currículo dequatro anos. Mas falta ainda uma decisão definitiva.

2. Infelizmente, também deve ser relatado que algunsministérios federais fecharam os seus departamentosespecializados em Legística e que o ensino profissionalpiorou em razão do fechamento da Verwaltungsakademie deBundes (Escola Federal de Administração, dirigida ao ensinoprofissional dos funcionários públicos).

Pelo menos desde 2004, ocorrem os KaerntnerLegistikgespraeche (Diálogos de Legística no Estado daCarinthia), organizados pela Kaerntner Verwaltungsakademie(Escola Administrativa do Estado da Carinthia). Os cursosacontecem uma vez por ano, na forma de seminários, e são,de certo modo, uma substituição dos cursos técnicos doensino profissional.

Já foi dito sobre o aperfeiçoamento administrativo etécnico pelos métodos de e-legislação e pela criação depacotes de lei. Porém, falta foco quanto à

– clareza e simplicidade da linguagem da legislação;

– precisão e objetividade das expressões verbais(textos mais concisos em vez de textos muito gran-des) e elaboração e transparência na integração siste-mática de novas leis.

A Deregulierungsgesetz 2001 – norma criada com oobjetivo de desregulamentar a atuação do Estado – é uma lei

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simples, que tem como objetivo a avaliação da necessidade denovos decretos e também a análise do impacto de novasnormas. Todavia, não vem sendo observada e, por isso, nãotrouxe muitos resultados até hoje13.

Assim, cabem à pesquisa e ao ensino continuarchamando a atenção sobre as reconhecidas virtudes de umalegislação bem-feita. Permanece também a tarefa de avaliaros objetivos (necessidades) do Direito Constitucionalnacional e do Direito da União Européia nos processoslegislativos.

3. A OGGL se esforça desde 1981 para fortalecere divulgar os conceitos de uma legislação relativamenteboa com a realização de conferências e congressos.

As discussões suscitadas tratam da desregula-mentação e simplificação da legislação e trouxeram pelomenos, alguns efeitos positivos, levando a uma reduçãode normas em algumas áreas. Porém, permanece adificuldade em despertar o interesse dos políticos emmatéria de “gestão de qualidade” na legislação.

Desde o nosso congresso de 2003, há um novofoco (também tratado no nosso workshop de 10/3/2006)de avaliação do impacto de normas nas suas diversasmanifestações. As tentativas de divulgação dessametodologia perante a classe política e a administraçãovisam deixar o processo mais eficiente e voltado para osefeitos da legislação.

Tendências européias14

Uma linha de desenvolvimento que nos parecebastante promissora é o projeto, originalmente concebidopelo OCDE, Better Regulation, agora adotado pelacomissão européia em sua política legislativa.

Sob esse título, a comissão européia reuniu váriasiniciativas com o objetivo de reduzir a quantidade de normaseuropéias e restringir o crescimento delas. Duas dessasiniciativas são: o Programa para a simplificação das normas

13 Bussjaeger, Legis-lação simbólicacomo realidade e pro-blema do Direito: DasD e r e g u l i e -rungsgesetz 2001,Ös te r re i ch i scheJuristenzeitung 2004,701 (Jornal austriacodos juristas 2004, no

401); e no mesmo sen-tido, anteriormente, pelomesmo autor: Ko-mmentierung zu Art 41B-VG (comentário aoartigo 41 da Constitui-ção Federal da Áus-tria) em Rill/Schäffer,B u n d e s v e r f a s -s u n g s r e c h t .Kommentar (2001ff)(Legislação Constitu-cional Federal, Comen-tário 2001); e aindaPrimosch, Fragen zumDeregulierungsauftrag(Questões sobre a obri-gação de regular),Journal fürRechtspolitik 2002,85ff (Jornal da PolíticaJurídica, 2002, pp. 85)e Irresberger,Evaluierung undGesetzesfolgena-bschätzung in derösterre ich ischenBundesgesetzge-bung – Erfahrungenund Leistungen, (Ava-liação do impacto da leina Legislação FederalAustríaca – experiên-cias e objetivos alcan-çados) em Schäffer

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comunitárias (acquis communautaire) e a chamada IniciativaScreening. Com a iniciativa da simplificação, a comissãoapresentou um plano de três anos para a simplificação siste-mática das normas comunitárias existentes. A IniciativaScreening tem como objetivo alterações ou o cancelamento deprojetos em tramitação, o que significa que projetos que jápercorrem o iter legislativo no Parlamento europeu e noConselho devem ser avaliados ainda nessa fase quanto à suanecessidade (se há de fato uma justificativa para sua existência).

A fim de melhor avaliar o impacto de normas futuras,a comissão atualizou suas orientações sobre a questão doimpacto das leis. Com o objetivo de reduzir os custos para asempresas e os cidadãos, está sendo desenvolvida em umametodologia comunitária de mensuração dos custosadministrativos15 causados por normas européias (modelo decustos padronizado).

Grosso modo, nesse contexto, gostaria de destacarque o escopo é a criação de um sistema de análise de impacto(Regulatory Impact Assessment – RIA), integrando não so-mente as normas européias, mas também as normas dospaíses membros. Os ordenamentos jurídicos nacionais sãointerligados e dependem, em alto grau, da implementação dosregulamentos da União. Assim, é claro que nem todos osprojetos de lei poderão ser analisados (avaliados) tão profun-damente e, desse modo, precisaremos de uma metodologiapadronizada.

Nesse ponto, evidencia-se um foco na evolução dese-jada – além da manutenção das virtudes originais de uma boae bem planejada legislação –, bem como uma chance para oaprimoramento da Legística. Enfim, deveria haver uma redede instituições na União Européia que tratasse dos assuntos dequalidade legislativa e da análise de impacto da legislação.

Desenvolvimentos institucionais

Estamos planejando na Áustria a criação de um CentroAustríaco de Feitura de Leis (com nome similar ao já existente

(editor), Evaluierungder Gesetze/G e s e t z e s f o l -genabschätzung inÖsterreich und imb e n a c h b a r t e nAusland (2005) 75ff,insb 83ff. (Avaliaçãodo impacto na Áustria enos países vizinhos,2005, pp. 86 e especi-almente pp. 83)14 Veja Schäffer,Vom Beruf derPolit ik zurGesetzgebung inunserer Zeit (Daprofissão política àlegislação atual), emSchäffer (editor),Evaluierung…, 9,insb 12ff. (Avalia-ção …. p. 9 e espe-cialmente pp12)15 Trata-se de umametodologia maissimplificada paraavaliar o custo deuma norma. Essasavaliações implicamuma colaboraçãocom os órgãos ed e p a r t a m e n t o scentrais da Adminis-tração Pública quecoordenam a cria-ção de normas. AHolanda já dispõe dealgumas experiênciascom esse procedi-mento.

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ATUALIDADES E PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA DA

LEGISLAÇÃO NA ÁUSTRIA

na Suíça) na Universidade de Salzburg, porém, com o objetivode atender aos governos federal e estaduais. Será um centrode excelência em elaboração de leis que trabalhará compesquisa e documentação; oferecerá aos órgãos públicos ummínimo de conhecimento, com ensino profissionalizante paralegistas federais e estaduais; designará profissionais da área deanálise de impacto de leis; elaborará pareceres legísticos arespeito da compatibilidade com as normas européias e a suaconstitucionalidade.

Na área de ensino profissionalizante, poderíamos aindaintegrar os nossos cursos ao programa de pós-graduação daFaculdade de Direito e também aos demais programas univer-sitários de ensino profissional. Como na Suíça, não pensamosem um programa de pós-graduação, mas em uma parte de umprograma de mestrado ou pós-doutorado. Com isso, preten-demos oferecer uma orientação adicional aos juristas e cientistassociais.

A criação da instituição mencionada ainda cabe aofuturo, mas, após dois anos de negociações, as chances derealização aumentaram.

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MEDIDAS PROVISÓRIAS E USURPAÇÃO DA

FUNÇÃO LEGISLATIVA

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 165-192, jan./dez. 2007

MEDIDAS PROVISÓRIAS E USURPAÇÃODA FUNÇÃO LEGISLATIVA

JULIANA VALLE•

uso impróprio do artigo 48 da Cons-tituição de Weimar, que autorizou ogoverno a promulgar decretos de ne-cessidade, foi o meio pelo qual sedestruiu o caráter democrático daRepública alemã e se preparou oadvento do regime nacional-socialis-ta. Cabe mencionar que a Constitui-ção austríaca semifascista de 1934foi promulgada por um decreto dogoverno. Hans Kelsen.

À época do Império, apósa outorga da Constituição de 1824,

no dia 6 de maio de 1826, foi realizada a primeira sessão solenede abertura dos trabalhos da Assembléia Geral Legislativa(Câmara dos Deputados e Câmara dos Senadores). Tem-se,a partir daí, para manter a tradição histórica dos períodos detrabalho do Poder Legislativo, a identificação das legislaturaspela forma ordinal (1ª, 2ª, ..., 20ª Legislatura e assimsucessivamente). Em razão dessa contagem de tempo, eexcetuados os períodos em que o Parlamento nacional foidissolvido, no dia 1º de fevereiro deste ano, o Congresso

• Professora doPrograma de Pós-Graduação do Cen-tro de Formação eTreinamento da Câ-mara dos Deputa-dos – Cefor. Espe-cialista em GestãoLegislativa pelaUnB. Integrante doGrupo de Pesquisade Estudos sobre oProcesso Legis-lativo do Cefor.Advogada e asses-sora legislativa e ju-rídica da Câmarados Deputados(Brasília). E-mail:[email protected].

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Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal) iniciou a53ª Legislatura, marcando, pelo menos formalmente, umnovo ciclo da história brasileira de representação popular.

Mas a nova legislatura começa com um velho problema: aintromissão do Poder Executivo no exercício da funçãoprecípua do Poder Legislativo.

Logo no primeiro dia de sessões deliberativas da 53ªLegislatura, deputados e senadores se depararam com osobrestamento das pautas da Ordem do Dia das respectivascasas por medidas adotadas pelo chefe do Poder Executivo.O fato decorre do mandamento constitucional, inscrito noartigo 62, §6º da Constituição vigente, cujo teor impedequalquer outra deliberação legislativa pelos parlamentaresenquanto não se ultimar a votação de medida provisória (MP)que tenha sido editada há mais de 45 dias.

A pauta da Câmara dos Deputados estava sobrestadapor duas medidas provisórias editadas em 2006. A primeira,MP nº 328, de 3 de novembro de 2006, sobre prestação deauxílio financeiro pela União aos Estados e Municípios, comobjetivo de fomentar as importações. A segunda, MP nº 330,de 10 de novembro de 2006, sobre a abertura de créditoextraordinário ao Orçamento de Investimentos para 2006, emfavor de empresas do Grupo Eletrobrás, no valor total deR$106.726.769,00 (cento e seis milhões, setecentos e vinte eseis mil e setecentos e sessenta e nove reais).

No Senado Federal, três medidas provisórias tambémimpediam outras deliberações legislativas parlamentares. AMP nº 326, de 1º de novembro de 2006, sobre o plantio deorganismos geneticamente modificados (transgênicos) emáreas de conservação da natureza; a MP nº 327, publicada namesma data que a anterior, sobre a abertura de créditoextraordinário no valor de R$1.000.000.000,00 (um bilhão dereais) em favor de operações oficiais de crédito; e a MP nº 329,de 3 de novembro de 2006, que autoriza o Ministério da Defesaa efetuar contratação, por prazo determinado, de pessoalimprescindível ao controle do tráfego aéreo.

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FUNÇÃO LEGISLATIVA

Interessante observar que, naquele dia de deliberaçõesda Câmara e do Senado, mesmo que em plenários diferentese apreciando matérias distintas, a discussão acabou porresultar pronunciamentos equivalentes entre deputados esenadores. Tanto os parlamentares de partidos da base aliadaao governo como aqueles de oposição (esses com maisveemência) argumentaram que, sem implicações quanto aomérito das matérias tratadas na ocasião, as medidas provisóriasnão poderiam continuar determinando a pauta do CongressoNacional. Em suma, reafirmaram discursos de legislaturasanteriores que proclamavam que o Poder Legislativo deverever, o quanto antes, as disposições constitucionais quetratam da edição e tramitação das medidas provisórias.

Não somente naquele primeiro dia de sessão deliberativaem cada casa, mas também durante todo o mês de fevereirodesta legislatura, a tônica dos discursos foi mantida. O cerneda questão, que envolve este peculiar instituto do ordenamentojurídico pátrio, é impedir o uso abusivo das medidas provisóriaspelo Poder Executivo, garantindo, via de conseqüência, que oPoder Legislativo exerça em sua plenitude as funçõeslegiferantes e fiscalizatórias que lhe são atribuídas em umEstado Democrático de Direito. Para tanto, deputados esenadores novamente defendem a aprovação de proposta deemenda à Constituição (PEC) que altere o artigo 62 do textoconstitucional.

No entanto, a pergunta que precisa ser feita, com basena observação do funcionamento dos Poderes constituídos eda eficácia do próprio instituto é: a limitação da atividadelegiferante do Executivo depende de uma mudança no textoconstitucional?

O instituto e suas alterações constitucionais

Envolto pelo ideal democrático, o constituinte origináriodecidiu banir o decreto-lei do texto constitucional para adotaro que considerou inovador instrumento de intervençãolegislativa imediata do Poder Executivo: a medida provisória.Os propósitos do legislador consistiram em, assim como emoutros ordenamentos jurídicos estrangeiros (Bélgica, França,

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Inglaterra e Itália), permitir ao presidente da República uminstrumento capaz de contornar situações excepcionais, mascom deliberação final a cargo do Congresso Nacional. Assim,ao contrário do decreto-lei, acreditava-se que as medidasprovisórias assegurariam a participação executiva no processolegislativo, além do poder de veto e de iniciativa das leis, masde forma moderada e sob o controle do Congresso Nacional.

Nunca é demais lembrar que as medidas provisóriasforam concebidas para um sistema parlamentarista. Durantea discussão e votação da emenda que garantiu a introdução notexto constitucional dessas medidas, foram expressos osdiscursos afirmando que a nova espécie normativa eramecanismo eficiente de um regime democrático para umExecutivo parlamentarista. Nesse sentido, a saber, encontramosnos anais da constituinte os discursos proferidos por NelsonJobim e pelo relator Bernardo Cabral (Diário da Assembléia,19 de março de 1988, p. 8655 e 8656, respectivamente) emfavor da adoção dessas medidas por acreditarem que o Estadose firmaria como república parlamentarista.

Dentre os votos contrários à adoção das medidas,também encontram-se nos anais da Constituinte, naquele diade votação, interessantes manifestações. Adylson Motta eMichel Temer discursaram afirmando que a medida provisória,ainda que prevalecesse o sistema parlamentarista, poderiaimplicar instrumento antidemocrático que, tal qual o decreto-lei, incapacitaria o Legislativo brasileiro de exercer sua funçãoprecípua. Não obstante essas manifestações contrárias, ocolegiado aprovou, por 275 votos favoráveis, 78 contrários e7 abstenções, a introdução das medidas provisórias no textoconstitucional. Com a promulgação da Carta, em 5 de outubrode 1988, o ordenamento jurídico pátrio passou a ser integradopor esse instituto peculiar que, nos termos do artigo 62 e seuparágrafo único do texto originário, deveria tornar-seinstrumento de caráter provisório, utilizado pelo presidente daRepública em casos de relevância e urgência.

No entanto, em que pese sua concepção para umsistema parlamentarista, as medidas provisórias tiveram de

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FUNÇÃO LEGISLATIVA

se adaptar a um sistema presidencialista. O Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias (ADCT) deixou paramanifestação popular a decisão sobre a forma e o sistema degoverno quando o artigo 2º determinou a realização deplebiscito para definir sobre um governo republicano oumonarquista e ainda pelo parlamentarismo ou presidencialis-mo. Em março de 1993, o povo decidiu, por expressivamaioria, pela República Presidencialista, e os PoderesLegislativo, Executivo e Judiciário passaram a conviver como instituto e suas conseqüências.

Entre a promulgação da Constituição e o início do novomandato presidencial (5 de outubro de 1988 até 14 de marçode 1990), ou seja, em 16 meses de governo, o presidente JoséSarney considerou necessário (urgente e relevante) editar 125medidas provisórias, sendo 22 reeditadas. Das 163 leisordinárias promulgadas nesse período, 109 foram decorrentesda conversão dessas medidas do Executivo. Da mesmamaneira, nos anos seguintes, o índice de uso do institutomanteve-se em patamares altos. Para falar apenas em ediçõesoriginárias no período de 15 de março de 1990 a 21 defevereiro de 2001, os presidentes Fernando Collor, ItamarFranco e Fernando Henrique Cardoso produziram 459 medidasprovisórias; dessas, 343 foram convertidas em lei.

Assim, de 5 de outubro de 1988 até 21 de fevereiro de2001, entre edições e reedições, foram publicadas 5.702 (cincomil setecentas e duas) medidas provisórias. Desde planoseconômicos, passando por instituição ou majoração de tributos,matéria penal e processual, privatizações, disponibilização deautomóvel para o vice-presidente da República, os mais diversosassuntos foram tratados pelo instrumento de caráter provisório.Tantas foram as ações judiciais e as críticas, de economistas,cientistas políticos, juristas, jornalistas, além dos discursosreiterados dos próprios parlamentares sobre os abusos doExecutivo, que o Congresso Nacional resolveu reagir, masalterando o texto da Constituição Federal.

Em agosto de 1995, foram promulgadas as EmendasConstitucionais nºs 6 e 7, proibindo a adoção de medida

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provisória na regulamentação de artigo constitucional cujaredação tenha sido alterada por emenda promulgada a partir de1995. Frustrada essa primeira tentativa de contenção daatividade legiferante do Poder Executivo, em setembro de2001, as Mesas da Câmara dos Deputados e do SenadoFederal promulgaram a Emenda Constitucional nº 32.

A Emenda 32 alterou significativamente as normasvigentes desde 1988 para edição e apreciação das medidasprovisórias. A primeira inovação do texto consistiu no estabe-lecimento de limites materiais expressos para edição dasmedidas provisórias. Além de manter a exigência dos pressu-postos de relevância e urgência para edição do ato pelopresidente da República, há proibição de edição de medidasprovisórias sobre matérias como nacionalidade, cidadania,direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, penal,processual penal e civil. Além disso, a emenda constitucionalproibiu não só a edição de medida provisória para as matériasreservadas à lei complementar, como também vetou suaedição no caso de projeto de lei aprovado pelo Congresso ependente de sanção ou veto do presidente da República. Taisdispositivos, acreditava-se, preservariam o devido processolegislativo constitucional, além de resguardar a supremacia darepresentação popular própria – Poder Legislativo – na elabo-ração das leis.

Ademais, a Emenda 32 disciplinou o uso de medidasprovisórias para instituição ou majoração de impostos.Conforme o § 2º do artigo 62, é possível a edição dasmedidas sobre essa espécie de tributo, mas somente pro-duzirão seus efeitos no exercício financeiro seguinte seconvertidas em lei até o último dia do ano de sua edição (aomissão do Congresso Nacional na deliberação da medidanão importa produção de efeitos). Todavia, impostos sobreimportação de produtos estrangeiros; exportação de pro-dutos nacionais ou nacionalizados; produtos industrializa-dos; operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas atítulos ou valores mobiliários também poderão ser objetodo instrumento provisório, e, nesses casos, há produçãoimediata de efeitos.

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MEDIDAS PROVISÓRIAS E USURPAÇÃO DA

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A nova regra constitucional ainda proibiu a reedição dasmedidas provisórias na mesma sessão legislativa. Quanto àvigência e eficácia das medidas, dentre os 12 parágrafos introdu-zidos no texto constitucional, 7 são dedicados ao tema. O prazode vigência foi ampliado, em relação ao texto originário, de 30 para60 dias, prorrogados uma única vez por mais 60 dias. Todavia,a eficácia não fica limitada ao período máximo de 120 dias, umavez que esses prazos não são computados nos períodos derecesso do Congresso Nacional. Note que, apesar da suspensãoda contagem dos prazos para apreciação na Câmara dos Depu-tados e no Senado Federal, a medida provisória continua aproduzir validamente seus efeitos nesse período, constituindo ouregulamentando relações jurídicas.

O novo texto também instituiu a urgência para votaçãodas medidas provisórias como forma de imposição de delibe-ração ao Congresso Nacional para evitar o preterimento navotação da matéria. Câmara dos Deputados e Senado Federaltêm 45 dias para deliberar sobre a matéria; caso não sejaesgotada a apreciação nesse prazo, os demais trabalhosdeliberativos do Plenário da casa onde ela se encontre ficamsuspensos enquanto não apreciada a medida. Vale destacarque esse prazo está direcionado aos trabalhos do CongressoNacional e não se confunde com o prazo de vigência damedida provisória.

Outra alteração crucial da emenda encontra-se nos §§5º e 9º do artigo 62. Os trabalhos da comissão mista e o juízode admissibilidade sobre os pressupostos constitucionais sãoa causa eficiente para garantir o uso legítimo das medidasprovisórias. O texto expresso da Constituição Federal deter-mina a constituição de uma comissão mista, com deputadose senadores, para que profiram parecer antes de ocorrer adeliberação em sessão separada. A comissão mista e o juízode admissibilidade deixam de ser assunto regimental paraadquirirem status constitucional. Por fim, o novo texto deter-minou o encaminhamento do projeto de lei de conversão àsanção ou veto presidencial e fixou prazo de 60 dias parapublicação de decreto legislativo que venha regulamentar asrelações jurídicas.

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Todas as alterações novamente tiveram por escoporestringir a edição das medidas provisórias e assegurar umprocedimento célere de apreciação pelo Congresso Nacional.Todavia, passado o entusiasmo inicial, até dezembro daquelemesmo ano de promulgação da emenda, foram editadas 18medidas provisórias. Além disso, apenas três meses após amudança do texto, os parlamentares enfrentavam pela primei-ra vez o problema do sobrestamento da pauta de deliberações,devido à Medida Provisória nº 7, de 2001. O sobrestamento dapauta (ora ocasionado pelas medidas provisórias, ora pelosprojetos de lei de iniciativa do presidente da República comsolicitação de urgência) viria a tornar-se uma constante,mesmo no primeiro momento de vigência da Emenda 32. Nosoito meses iniciais, 35 medidas provisórias haviam sidoeditadas e 28 provocaram o sobrestamento das deliberações.

Os procedimentos adotados pelo Congresso Nacio-

nal após a Emenda Constitucional nº 32/2001

O regime imposto pela Emenda Constitucional nº 32/2001 estabeleceu novos procedimentos internos para a apre-ciação das medidas provisórias pela Câmara dos Deputados epelo Senado Federal. Enquanto a interpretação conferida aotexto constitucional de 1988 ensejou procedimentos de deli-beração do Congresso Nacional, ou seja, realização de sessãoconjunta, o novo texto exigiu expressamente a votação dasmedidas provisórias em sessões separadas. Excetuadas, por-tanto, as medidas provisórias vigentes e editadas antes dapromulgação da Emenda Constitucional nº 32/2001,normatizadas pela Resolução nº 1, de 1989-CN, as medidasprovisórias adotadas a partir do novo texto exigiam novaregulamentação. Todavia, a alteração da legislação interna doCongresso Nacional não foi concomitante com a mudança dotexto constitucional: somente oito meses após a vigência daEmenda 32, a resolução foi aprovada e promulgada (Resolu-ção nº 1, 2002-CN).

Esse fato merece destaque porque denuncia no mínimoa falta de planejamento e de avaliação na elaboração legislativa.

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Se o uso das medidas provisórias em larga escala peloExecutivo foi detectado como um entrave à plena atuação doLegislativo, se a solução encontrada demandou a intervençãolegislativa – nova redação para o texto constitucional –, asconseqüências, seus instrumentos e procedimentos necessá-rios à eficácia da legislação pretendida deveriam ter sidocuidadosamente analisados. Esse é o objeto da Legística, umavez que “pensar a lei antes de redigi-la” é fundamental, ou seja,para alcançar os objetivos perseguidos, faz-se mister bemdefinir o problema (compreender o funcionamento, determi-nar os atores envolvidos e sua forma de conduta, analisandoas interações existentes entre eles), a fim de adotar as medidasnecessárias (Delley, 2004)1 .

Longe disso, o Congresso Nacional ainda estudava aspossibilidades de alteração no regimento comum para adaptaçãoà emenda constitucional, já promulgada, quando foi publicadaa primeira medida provisória a ser apreciada em sessão separada.O Parlamento ainda deliberava sobre essa primeira medidaquando, também em setembro, o Executivo encaminha asegunda e terceira medidas provisórias. Em razão da ausênciada lei interna no Poder Legislativo, cada uma das casas, poranalogia, adotou procedimentos transitórios, baseados nosrespectivos regimentos, momento que deu início à prática,adiante criticada, de designação de um relator em Plenário paraproferir parecer sobre as medidas provisórias em substituiçãoà comissão mista. Em outubro de 2001, por exemplo, forameditadas as Medidas Provisórias nos 4, 5, 6 e 7, e a práticalegislativa de substituição da comissão se afirmou, ou seja, asmedidas foram aprovadas e convertidas em lei sem o parecerda referida comissão – ressalte-se, sem observância do previstono novel § 9º do artigo 62 da Constituição Federal. Desde então,o parecer sobre a constitucionalidade e o mérito passou a serfeito por qualquer deputado presente em Plenário no dia davotação da medida provisória, por designação do presidente dacasa onde esteja sendo apreciada.

O procedimento de substituição da comissão pelorelator designado foi justificado pelo legislador ordinário

1 Cad. Esc. Legisl.,Belo Horizonte,v.7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004.

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como necessário ao desenvolvimento da atividade parlamen-tar. Conforme se depreende da análise da resolução posteri-ormente aprovada e da prática ainda hoje mantida peloParlamento, o disposto no § 9º do artigo 62 da ConstituiçãoFederal foi interpretado como “mera formalidade”, nãopodendo constituir obstáculo para a apreciação da medidaprovisória editada, especialmente quando o ato do Executivoadquire o poder de impedir as demais deliberações doLegislativo. Mesmo denunciando, desde então, ainconstitucionalidade de tal procedimento (Valle, 2002), poracreditar que os requisitos formais também são garantias doEstado Democrático de Direito, a prática de substituição dacomissão não foi abolida, não só no momento inicial devigência da emenda constitucional como também no mo-mento de sua regulamentação pelas duas casas legislativas.A apresentação do parecer por relator designado, sem odebate aprofundado no colegiado misto, foi permitida.

Em 8 de maio de 2002, o projeto de resolução paradefinir a tramitação das medidas provisórias na Câmara dosDeputados e no Senado Federal foi aprovado. À época, aproposição recebeu 77 emendas, das quais 44 foram rejeita-das, 16 foram parcialmente acatadas pelo relator e peloPlenário e 17 foram integralmente aprovadas, resultando naresolução ainda vigente. Ao acompanhar diretamente todo oprocesso de criação da referida norma, observa-se que amaior preocupação dos parlamentares consistiu na fixação deprazos, na expectativa de que tal regramento fosse capaz deimpossibilitar a ocorrência do sobrestamento da pauta dascasas legislativas. Mas essa diretriz implicou prejuízo a umaspecto fundamental: o exame dos pressupostos de relevânciae urgência para edição da medida provisória e daconstitucionalidade da matéria por meio da discussãoaprofundada no âmbito da comissão mista. A inexistência dodebate no âmbito do colegiado técnico impede o conhecimen-to célere pela sociedade (que já está subordinada aos efeitosda norma) sobre a medida proposta pelo Executivo e sobre aanálise de seus representantes no Parlamento; ou seja, tam-bém prejudica a avaliação e o controle social sobre o mérito da

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pretensa lei. Razão pela qual é oportuno apresentar algunspontos da norma interna adotada pelo Congresso Nacional quegera tantas repercussões extramuros.

As regras internas e sua prática

Nos termos da Resolução nº 1, de 2002-CN, editada amedida provisória, a Mesa do Congresso Nacional tem 48horas para publicação e designação da comissão mista,integrada por 13 senadores e 13 deputados e igual número desuplentes. Após ser designada, a comissão tem prazo de 24horas para sua instalação e eleição do presidente, vice-presidente e relatores. Para apresentação final do parecer pelacomissão, foi fixado prazo improrrogável de 14 dias. Umparecer único, mas abordando os aspectos constitucionais, omérito e, quando for o caso, a adequação financeira eorçamentária, deve ser discutido e votado pelos deputados esenadores no âmbito desse colegiado misto. Assim, nostermos formais da resolução, com o parecer aprovado pelacomissão, a matéria é encaminhada primeiramente à Câmarados Deputados, a seguir ao Senado Federal. A norma internadispôs ainda que, quanto às medidas provisórias sobre aber-tura de crédito extraordinário à lei orçamentária anual, acompetência para emitir o parecer ficará a cargo da ComissãoMista Permanente de Orçamento.

A resolução estipula também que somente perante acomissão mista, no prazo de seis dias contados da edição damedida provisória, os parlamentares poderão oferecer emendasa seu texto. A emenda apresentada pode ser rejeitada pelopresidente da comissão, hipótese que permite ao autorapresentar recurso contra a decisão para a própria comissão,a quem compete a decisão final sobre a sugestão apresentada.Assim, formalmente, deputados e senadores não podemapresentar emendas no Plenário das respectivas casas e,durante a discussão da matéria, apenas é permitido o uso dedestaques pelos parlamentares, bem como a apresentação,pelo relator, de projeto de lei de conversão. Depreende-se daanálise da norma, que se buscou privilegiar as discussões

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perante a comissão, momento mais apropriado para avaliar aspropostas de alteração à medida provisória. Mas, como essecolegiado ficou relegado, a indicação para aprovação ourejeição das emendas dos parlamentares fica à mercê dorelatório apresentado em Plenário na Câmara dos Deputados,geralmente conhecido no momento em que o presidenteanuncia a matéria na Ordem do Dia da sessão. Para refletirsobre as condições objetivas na análise das sugestõesapresentadas à uma medida provisória, a MP 279, de 2006,que dispôs sobre abertura de crédito extraordinário no valorde R$890 milhões, recebeu 624 emendas. O parecer proferidoem Plenário à matéria indicou para aprovação somente aemenda de número 1. A medida provisória foi discutida naCâmara em apenas uma sessão, ou seja, em menos de 3 horas;encerrada aquela sessão, alguns dias após, a referida medidafoi aprovada na Câmara e encaminhada ao Senado Federal, jácom o prazo constitucional de 45 dias vencido.

Elaborado ou não (como de praxe) o parecer pelaprópria comissão mista, a resolução determina que a apreciaçãoem Plenário antes da análise do mérito por cada uma das casasem sessões separadas deve iniciar-se pela deliberação sobre ospressupostos de relevância, urgência e constitucionalidadematerial da medida provisória. Assim, a tramitação inicia-sesempre na Câmara dos Deputados, que poderá rejeitar amatéria, que será arquivada, ou aprová-la, encaminhando amedida provisória e o processado (emendas e projeto de lei deconversão) ao Senado Federal. Rejeitada pelos senadores, amatéria vai ao arquivo, mas, aprovada pelos senadores emconformidade com a decisão da Câmara, o texto seráencaminhado ao Executivo. Na hipótese de o Senado Federalaprovar a matéria com alterações no texto proposto pelaCâmara, a medida provisória retorna a esta casa. Desse modo,observadas algumas peculiaridades inerentes ao instituto, aresolução adota procedimento semelhante à apreciação deprojetos de lei de iniciativa do Executivo, situação em que oSenado Federal figura como casa revisora (sistema bicameral).

Quanto ao sobrestamento da pauta, a resolução repeteo texto constitucional para esclarecer que, não apreciada no

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prazo de 45 dias, a medida provisória tem o poder de trancara pauta de deliberação da casa onde se encontre. O prazo desobrestamento da pauta é contado de forma conjunta para aCâmara dos Deputados e para o Senado Federal. O“trancamento da pauta”, como ficou conhecido, entretanto,ocorre somente na casa onde a medida provisória estivertramitando. Por exemplo, uma medida provisória editada em30 de agosto tem prazo de sobrestamento em 14 de outubro,e a votação da medida provisória sempre será iniciada pelaCâmara dos Deputados; caso não esteja apreciada até o 45ºdia, a pauta do Plenário da Câmara ficará sobrestada, ou seja,não poderá haver nenhuma outra deliberação legislativa, masa situação não impede as votações no Senado. Aprovada pelosdeputados, essa medida provisória com prazo de deliberaçãovencido será encaminhada ao Senado Federal, o qual terá suapauta de Plenário, de pronto, sobrestada, enquanto a Câmarados Deputados estará livre da penalidade (salvo se houver outramedida provisória com prazo constitucional vencido). Por fim,é possível ainda que o Senado Federal retorne aquela matéria àCâmara, quando, novamente, sobrestará a pauta da casa.

Impende destacar que o Senado Federal tem recebidoas medidas provisórias, na maioria das vezes, já com o prazoconstitucional vencido. De modo geral, a Câmara dosDeputados somente inicia ou conclui a deliberação após o 45ºdia. Assim ocorreu, a saber, nos meses de janeiro e fevereirode 2006, quando foram editadas oito medidas provisórias enenhuma foi encaminhada à apreciação dos senadores antesdo prazo de sobrestamento. Nos dois primeiros meses desteano de 2007,13 medidas provisórias foram editadas e apenas3 (MP nºs 343, 344 e 345) encaminhadas ao Senado Federalantes do referido prazo. Em 19 de março, as medidasprovisórias que compõem o Plano de Aceleração doCrescimento (PAC) do governo atual, as quais receberammais de 700 emendas, completaram seu prazo desobrestamento ainda em tramitação na Câmara dos Deputados,ou seja, novamente o Senado Federal recebe a matéria comprazo superior a 45 dias, sobrestando a pauta de deliberaçãodesta casa.

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A resolução ainda dispõe quanto à edição de decretolegislativo para regulamentar as relações jurídicas advindas damedida provisória. A norma interna dispõe que competeinicialmente à comissão mista elaborar o projeto. Mas, casonão se manifeste no prazo de 15 dias, contados da votação ouperda de eficácia da medida provisória, qualquer parlamentarpoderá apresentar a proposição. Na última legislatura, segundoo sistema de informação e pesquisa de matéria legislativa doSenado Federal, apenas um decreto legislativo, em 2004, foiaprovado para regulamentar as relações jurídicas decorrentesda MP nº 196.

Fica patente que o texto da resolução violaexpressamente o procedimento exigido pela ConstituiçãoFederal. Enquanto a Lei Maior determina que a comissão mistade deputados e senadores deve examinar as medidasprovisórias, emitindo parecer antes de serem apreciadas, emsessão separada, pelo Plenário da Câmara dos Deputados e doSenado Federal, os artigos da resolução permitem a substituiçãodo colegiado na análise da matéria por um único parlamentarem Plenário. Sob o aspecto prático, tal permissão resultou nainstitucionalização do não-funcionamento da comissão mista.Tanto assim que nenhuma medida provisória, desde apromulgação da Emenda Constitucional nº 32, de 2001,conseguiu que o debate aprofundado da matéria fosse realizadoem conjunto pelos deputados e senadores designados paracompor cada comissão antes da apreciação em Plenário. Anão-deliberação da comissão mista, conforme acimamencionado, prejudica o exame contundente da matéria, tantosobre os pressupostos constitucionais como em relação aomérito, acarretando danos sociais, problemas ao processolegislativo e distorções ao sistema jurídico.

Assim ocorreu com a edição da Medida Provisória nº28, de 4 de fevereiro de 2002. Rejeitada por inconstitucionalidadematerial, somente em 17 de abril daquele ano, por unanimidadena Câmara dos Deputados, a medida, que tratava de matériaprocessual penal, criou um regime disciplinar diferenciadopara cumprimento de penas em um sistema mais severo. A

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norma provisória que permitiu a imediata inserção de presosperigosos em um isolamento por até 365 dias, editada mesmocom a proibição expressa do artigo 62, § 1º, I, "b", daConstituição Federal, violou direito fundamental do EstadoDemocrático de Direito segundo o qual a liberdade de qualquerpessoa e o devido processo não podem ser tratados porinstrumento precário (“não há crime sem lei anterior que odefina, nem pena sem prévia cominação legal”). Os fatosocorridos sob sua égide não deixarão de existir (efeitos extunc) em virtude da rejeição formal da Câmara dos Deputados,mas nem mesmo um decreto legislativo foi editado. Assim, naausência de tal decreto legislativo, nos termos do §11 do artigo62 do texto constitucional, as relações constituídas e os atospraticados permanecem regidos pela medida provisóriainconstitucional. Situações como essa poderiam ser evitadas,ou pelo menos minoradas, com a discussão imediata do ato eprodução do parecer pelos integrantes da comissão mista; ouseja, por falta de reunião deste colegiado, o Poder Legislativoperdeu a oportunidade de conhecer com brevidade o conteúdoda matéria para o Parlamento, debater questão de direitofundamental.

A comissão mista: comissão "fantasma"

Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 32,de 2001, desde a Resolução nº 1, de 2002-CN, nenhumparecer à medida provisória foi aprovado no âmbito dacomissão mista.

Conforme abordado em Medidas Provisórias,procedimento legislativo e seus efeitos jurídicos (VALLE,2004), a ausência de discussão e integração das duas casasna fase anterior ao encaminhamento para deliberação,respectivamente, ao Plenário da Câmara dos Deputados e doSenado Federal compromete a análise do mérito e o eficientefuncionamento do processo legislativo. O descaso com acomissão mista pode parecer, inicialmente, do ponto de vistaestritamente político-partidário, interessante a determinado

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grupo pelo fato de o relator designado em Plenário reunirgrande poder de influência sobre a deliberação e os rumos dotexto original, do projeto de lei de conversão e das emendasporventura apresentadas. Mas, do ponto de vista jurídico-social, a ausência de deliberação pelo colegiado misto implicaconseqüências ao Direito, devido à possibilidade de criaçãode normas contraditórias ou inconstitucionais. Quanto aoaspecto social, as conseqüências parecem ainda maisperversas em razão dos efeitos imediatos da medida, porvezes irreversíveis, da possibilidade de violação a direitosfundamentais e da insegurança causada também pela ausênciade regulamentação das complexas relações surgidas com aedição do texto.

Devido à ausência de deliberação no âmbito do colegiadomisto, além da situação peculiar que muitas vezes leva oPlenário a conhecer o texto do projeto poucos minutos antesda votação da matéria, torna-se mais difícil a discussão plurale a legitimidade da decisão, primeiramente entre asrepresentações políticas dentro da mesma casa, depois entrea Câmara dos Deputados e o Senado Federal, em francaoportunidade ao uso arbitrário do poder político. Para citarapenas um exemplo de como o processo legislativo não podeser feito com açodamento, destaca-se a Medida Provisória nº66, de 2002, que tratava sobre a não-cumulatividade nacobrança da contribuição para os Programas de IntegraçãoSocial (PIS) e de Formação do Patrimônio do ServidorPúblico (Pasep).

Editada em 30 de agosto daquele ano, o parecer, que foiproferido no Plenário da Câmara dos Deputados em 5 dedezembro de 2002, concluiu pela apresentação de projeto delei de conversão. Tendo em vista as inúmeras objeções aotexto apresentado pelo relator, o parecer foi reformulado aindana Câmara, cinco dias depois, e, após apreciação pelo SenadoFederal, em 30 de dezembro, o Projeto de Lei de Conversãonº 31, de 2002, foi parcialmente sancionado (vetado em 42dispositivos – Mensagem nº 1.243, de 2002, da Presidência daRepública) e transformado na Lei nº 10.637, de 2002. Essa

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problemática na forma de condução da apreciação legislativadas medidas provisórias fica caracterizada quando se observamas alterações sofridas pela lei resultante da Medida Provisória66. A Lei nº 10.637, de 2002, foi alterada pela MedidaProvisória nº 107, de 2003, Medida Provisória nº 135, de2003, Medida Provisória nº 164, de 2004, Medida Provisórianº 183, de 2004, Medida Provisória nº 202, de 2004, MedidaProvisória nº 255, de 2005, Medida Provisória nº 275, de2005, e Medida Provisória nº 351, de 2007.

Atuação executiva e legislativa sobre as

medidas provisórias

Observado todo o período de vigência, fica notórioque, mesmo com a promulgação da Emenda nº 32, de 2001,o Congresso Nacional não retomou a primazia no processo deelaboração das leis. De setembro de 2001 a dezembro de 2002,foram editadas 102 medidas provisórias. No primeiro manda-to do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de janeiro de 2003a dezembro de 2006, foram 240. Nesse mesmo período,durante a 52ª Legislatura, 63% das sessões deliberativas daCâmara dos Deputados foram trancadas por medidas provi-sórias, conforme se observa nos gráficos abaixo, produzidospor Francisco Cardozo, com base no sistema de informaçãolegislativa da Câmara dos Deputados.

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Patente fica, portanto, que as alterações produzidas notexto constitucional até agora não são suficientes para limitar ouso de medidas provisórias pelo presidente da República e evitaros prejuízos causados ao processo legislativo e às relaçõessociais. Prejuízos decorrentes da própria natureza desseinstrumento, que produz efeitos imediatos, aliados à falta decomprometimento com a avaliação cautelosa dos pressupostos

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constitucionais de relevância e urgência. Afinal, para que amedida provisória se diferencie do antidemocrático decreto-lei,conforme pretendido pelo constituinte originário, deve ter porcaracterística a provisoriedade e, assim sendo, em apreciaçãoposterior à edição da medida, o Congresso Nacional deve ter opoder de desconstituir sua eficácia desde a publicação. Mascomo o Legislativo pode desconstituir a eficácia de medidaprovisória que, por exemplo, implique em execução imediata,como no caso de abertura de créditos extraordinários?

Instrumento de ajuste do Direito Orçamentário, nostermos do artigo 167, §3º, da Constituição Federal, o créditoextraordinário tem por requisitos a imprevisibilidade e urgênciadas despesas, como as decorrentes de guerra, comoção internaou calamidade pública. Assim, quando uma medida provisóriaque abre crédito extraordinário é editada, os recursos podem serrepassados e executados imediatamente. Logo, o órgão jácomeça a fazer os empenhos a partir da vigência da norma equando o Congresso Nacional aprecia a medida, seu objeto jáse consumou. O Poder Legislativo fica, portanto, apenas coma função de homologar as decisões executivas sobre a destinaçãoorçamentária, em evidente desarmonia com o papel constitucionaldo Parlamento de participação nas finanças públicas.

Nesse sentido, durante a realização da sessão ordináriada Câmara dos Deputados em 14 de fevereiro próximopassado, ocorreu aprovação da Medida Provisória nº 332, dedezembro de 2006, que permitiu a abertura de créditoextraordinário no valor global de R$9.746.438.66,00 (novebilhões, setecentos e quarenta e seis milhões, quatrocentos etrinta e oito mil e sessenta e seis reais). Consoante consta doparecer oral proferido em Plenário, até aquele dia, ou seja,antes da aprovação definitiva das duas casas do CongressoNacional, já haviam sidos gastos pelo Poder Executivo 97%do total solicitado. Ademais, nos termos do parecer, aprovadopor 310 deputados – dos 439 presentes à votação –, a medidaprovisória foi considerada constitucional em relação aospressupostos exigidos pela Constituição Federal sob ajustificativa de a matéria ser considerada de suma importância

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para a população (o crédito destinava-se aos Ministérios daPrevidência e do Trabalho).

Todavia, além da dificuldade de desconstituir a eficáciada medida provisória de créditos extraordinários, chama aatenção o discurso argumentativo utilizado durante a apreciaçãoda constitucionalidade da matéria. O parecer à MP nº 332, de2006, expressamente confessa os equívocos dos procedi-mentos adotados e a necessidade de mudanças, verbis:

Quanto à imprevisibilidade requerida, os argumentosapresentados por meio da exposição de motivos nãoatendem, a rigor, à exigibilidade constitucional, hajavista que o aumento das despesas contempladas namedida provisória já estava previsto desde julho eoutubro de 2006, data do encaminhamento das Men-sagens Presidenciais nºs 650 e 877, relativas aosPLN’s 10 e 30, respectivamente. Por meio das Mensa-gens nºs 153-CN e 154-CN, o Poder Executivo solici-tou a retirada dos referidos PLNs da pauta, tendo emvista a edição da medida provisória em comento.

Todavia, tem sido prática corrente a adoção daaprovação de créditos extraordinários contendo des-pesas previsíveis. Diante desse contexto, e tendo emvista a natureza obrigatória das despesas contempla-das pela MP 332, de indiscutível importância para apopulação, e considerando ainda a urgência daaplicação dos recursos no final do exercício passado,somos pelo atendimento dos pressupostos constitucio-nais de admissibilidade. Para os casos futuros, po-rém, entendemos que devam ser promovidas gestõesdesta Casa junto ao Poder Executivo no intuito deresgatar o espírito da Lei Maior no tocante à aberturade créditos extraordinários. [grifos no original]

Nesse ponto, eis que surge outra questão: é“entendimento aturado e velho” do Supremo Tribunal Federalque não lhe cabe controlar ou estimar os critériosconstitucionais que autorizam a edição de medidas provisórias

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pelo Poder Executivo (ADI nº 3.709, Rel. Min. CEZARPELUSO, DJ de 15/5/06). Mas não é este, pelo menos, opapel do Congresso Nacional quando da análise dospressupostos de relevância e urgência (e imprevisibilidade,no caso de créditos extraordinários) de uma medidaprovisória? A análise não deveria ser feita rigorosamente poralgum dos Poderes constituídos? Pode a situação práticajustificar a mitigação do princípio constitucional do devidoprocesso legislativo?

Nesse ponto, vale lembrar Menelick de Carvalho Netosobre os papéis reservados ao Legislativo e ao Judiciário noEstado Democrático de Direito:

Assim, acreditamos que o Judiciário ocupe um papelcentral na árdua tarefa de promover não somente asegurança jurídica, mas a crença no próprio Direito,na justiça. Outra característica essencial do Direitomoderno é o seu caráter textual. O fato de que só temosacesso às suas normas mediante textos discursivamenteconstruídos e reconstruídos. Portanto, os supostos daatividade de interpretação de todos os operadoresjurídicos, do legislador ao destinatário da norma, sãoda maior relevância para a implementação de umordenamento, o que nos remete para a tematização dasgramáticas subjacentes às práticas sociais instaura-das. Uma delas é a que revela a crença de que todos osproblemas e virtudes de nossa vida jurídica depende-riam da qualidade literal de nossos textos legislativos.Esquece-se que os textos são o objeto da atividade deinterpretação e não o seu sujeito. Que o anseadoaprimoramento de nossas instituições pode requereralgo muito mais complexo do que a simples reforma detextos constitucionais e legislativos. (CARVALHONETTO, 1998).

Poder-se-ia supor, ainda tomando como exemplo aedição de crédito extraordinário por medida provisória, quesua edição se faz necessária em razão das dificuldades do

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Executivo de aprovação pelo Congresso Nacional de projetosde lei solicitando a abertura de crédito suplementar ou especial.Mas essa não é a realidade. No exercício financeiro de 2003,foram enviados 51 desses projetos de lei e todos foramaprovados. Em 2004, dos 108 projetos encaminhados, 98foram aprovados e 10 retirados pelo próprio Executivo. Asituação se repetiu em 2005, quando foram enviados 70projetos de lei de crédito especial ou suplementar e, à exceçãode 7 (2 arquivados e 5 retirados pelo próprio autor), os demaisforam todos aprovados. Os fatos se repetiram em 2006 e,mesmo com a aprovação dos projetos, o Executivo não deixoude editar medidas provisórias. Ao contrário, neste ano de2007, quando nenhum projeto de lei solicitando a abertura decrédito suplementar ou especial ainda havia sido enviado,quatro medidas provisórias já foram editadas (CAPILLÉ,2007).

Assim, na atuação dos Poderes Executivo e Legislativoapós a promulgação da Emenda Constitucional nº 32, desetembro de 2001 a fevereiro de 2007, não se observa rigorpara adoção e apreciação das medidas provisórias. O PoderExecutivo considerou urgente e relevante as mais diversassituações, editando 355 medidas provisórias. O CongressoNacional, por sua vez, desde a fixação das normas paraapreciação dessas medidas (Resolução nº 1, de 2002), jamaisconseguiu aprovar sequer um parecer no âmbito da comissãomista. Apenas na apreciação das Medidas Provisórias nºs 182,de 2004 (dispôs sobre o aumento do salário mínimo), 207, de2004, (concedeu ao presidente do Banco Central do Brasil ostatus de ministro de Estado), e 232, de 2005 (alteração dalegislação tributária), foi possível a instalação e realização dereunião (por uma ou duas vezes) da respectiva comissãomista. Portanto, conforme afirmado anteriormente, porentender como sendo essencial o debate aprofundado noâmbito das comissões do Parlamento, os padrões de condutaque têm sido adotados pelos Poderes constituídos, além deviolar a Constituição Federal (artigo 62, §§ 5º e 9º),comprometem o próprio processo democrático.

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FUNÇÃO LEGISLATIVA

A Proposta de Emenda à Constituição nº 511/2006

Em meio à enxurrada de medidas provisórias e ausênciadas reuniões das comissões mistas destinadas à sua apreciação,chegou à Câmara dos Deputados, em 9 de fevereiro de 2006,nova proposta de emenda à Constituição (PEC), já aprovadapelo Senado Federal, para alteração do texto. De iniciativa dosenador Antônio Carlos Magalhães (PFL/BA) e aguardandoparecer na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daCâmara dos Deputados, a proposição estabelece de formasurpreendente que, editada uma medida provisória, somenteterá força de lei depois de aprovada a sua admissibilidade peloCongresso Nacional, sendo o início da apreciação alternadoentre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Novamenteo texto descreve com detalhes prazo para deliberação sobreadmissibilidade da comissão mista, prazo de recurso contradecisão da comissão, prazo para decisão do Plenário, prazopara tramitação na Câmara, prazo para tramitação no Senado,prazo para entrar em regime de urgência e sobrestar a pauta,prazo para perda de eficácia, prazo para edição do decretolegislativo. Prazos, prazos e mais prazos que se pretendemincluir não mais em resolução do Congresso, mas no própriotexto da Constituição Federal.

A proposta ainda sugere para a redação constitucionalque cada medida provisória trate de um único objeto e nãocontenha matéria estranha a ele não vinculada por afinidade,pertinência ou conexão. Neste ponto, é oportuno destacar queesse tipo de limite já está positivado no artigo 7º da LeiComplementar 98, de 1998, e mesmo assim não impediu osabusos do Poder Executivo. Sobre os limites materiais, aproposição pretende incluir a vedação para edição de medidasprovisórias sobre tributos de forma geral, permitindo apenassua edição para os casos de extinção ou redução. Ademais, aPEC propõe que somente as medidas provisórias editadasapós a mudança pretendida sejam regidas pelo novo texto,permitindo que medida provisória anterior seja regida pelaEmenda 32 ou pelo texto originário, conforme a data de suaedição. Dispõe ainda que, durante os recessos do Congresso

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Nacional, a admissibilidade da medida ficará a cargo dacomissão representativa referida no § 4º do artigo 58 daConstituição vigente.

Em que pesem os esforços na construção da PEC, aproposta é bastante discutível. Primeiro, porque revelanovamente a crença de que a simples alteração de textoconstitucional será suficiente para mudar a conduta doExecutivo e do Legislativo. Segundo, por mais racional quepossa ser considerada por seus defensores, a proposta deinclusão de um novo regramento no mundo jurídico não podedesprezar os fatos e as prováveis conseqüências. Não podeser esquecido que, em 1988, o texto originário da LeiFundamental determinou, de forma sintética, que a medidaprovisória deveria ser editada apenas nos casos de relevânciae urgência e apreciada em 30 dias pelo Congresso Nacional.Mesmo assim, o Executivo abusou na adoção das medidas, oParlamento não analisou os pressupostos constitucionais comrigor, nem obedeceu ao prazo de apreciação. Aliás, ainda hojeestão em tramitação mais de 50 medidas “provisórias”,algumas delas com seis anos de edição, como a MP nº 2.156-5, de 24 de agosto de 2001.

Em 2001, independentemente da significativa mudançado texto constitucional, as medidas provisórias continuarama interferir de forma ainda mais contundente no funcionamentodo Parlamento e a provocar insegurança jurídica. Houvedetalhamento das vedações materiais para edição, determinaçãode parecer prévio proferido por uma comissão mista, dilataçãode prazos de vigência e penalidade de sobrestamento da pauta,além de determinação de apreciação da matéria em sessõesseparadas pelas casas do Congresso Nacional. Novamente oExecutivo abusou das prerrogativas, os parlamentares nãoanalisaram com rigor os pressupostos constitucionais deurgência, relevância e previsibilidade, não observaram osprazos, ignoraram a determinação de discussão pela comissãomista, não editaram os decretos legislativos necessários.Agora, de forma ainda mais pormenorizada, pretende-seinscrever na Constituição Federal os prazos e procedimentos

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que devam nortear a conduta dos parlamentares na deliberaçãoda matéria, assim como se procede com um regulamento.Mas prazos e procedimentos para apreciação das medidasprovisórias já não estão escritos em leis como a Resolução nº1, de 2002, e a Resolução nº 1, de 1989? Não é paradoxaladmitir a permanência da medida provisória, mas retirar-lhe aeficácia imediata? Será que tudo se resume a uma questão detexto constitucional ou texto infraconstitucional? Texto paraprazos, texto para sobrestamentos, texto para vigênciasolucionam o problema?

Não, o problema não é textual. Decerto, em razão dascomplexas sociedades atuais, por vezes a Constituição necessitade mudanças – especialmente constituições detalhistas. Masneste caso, conforme se observa pela história do instituto, aresposta aos problemas advindos das medidas provisóriasestá mais bem fundamentada no respeito aos princípiosconstitucionais e democráticos, como o devido processolegislativo e a soberania popular, que implicam não umamudança de texto, mas de condutas. Mudança que deveocorrer no Legislativo, atuando de forma comprometida eefetiva na análise das matérias; no Executivo, respeitandoconcretamente as determinações constitucionais para suaparticipação no processo legislativo; e no Judiciário, nainterpretação da Constituição como norma obrigatória a serrespeitada também nas questões internas do Parlamento.Afinal, os requisitos formais do processo legislativo, o exercíciodo mandato representativo e o princípio da separação dePoderes só podem ser compreendidos, sob o paradigma doEstado Democrático de Direito, como questões voltadas àprópria cidadania, e não à funcionalidade da atividadeparlamentar ou a interesses de governos.

Sobre os riscos de nova alteração casuística do textoconstitucional, vale relembrar Friedrich Muller: “Afinal decontas, não se estatuem impunemente textos de normas etextos constitucionais, que foram concebidos com pré-compreensão insincera. Os textos podem revidar(zurücksclagen)”.

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FUNÇÃO LEGISLATIVA

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FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 193-206, jan./dez. 2007

• Jurista, professorda Faculdade de Di-reito de Berna, pro-fessor do Instituto deAltos Estudos emAdministração Públi-ca da Suíça e vice-diretor da FundaçãoFederal do Ministé-rio da Justiça daSuíça.

LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

LUZIUS MADER•

legislação é uma das tarefas maisimportantes dos organismosestatais. A Constituição Federalsuíça lembra isso de formaexplícita em no mínimo doistrechos, no artigo 164, no queconcerne às competências doParlamento, e no artigo 182, noque se refere às competênciasdo governo1 Mas o que é precisoexatamente se entender por

legislação? Quais são suas formas e funções? Como osorganismos estatais cumprem suas tarefas legislativas? Alegislação responde às expectativas e exigências, em particu-lar às exigências de qualidade dos seus destinatários? Serápossível e necessário aprimorar a qualidade da legislação? E,se a resposta for positiva, como poderíamos aprimorá-la? Sãoessas algumas das questões que interessam à legisprudência2

e eu gostaria de abordá-las rapidamente neste trabalho. Trata-

1 Na medida em queos desdobramentosque se seguem têma ver com o DireitoPositivo ou com odogmatismo jurídico,referem-se ao Direi-to suíço, mais preci-samente ao Direitofederal suíço.2 Segundo o meu en-tendimento, o termolégisprudence foi utili-

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se, portanto, de refletir sobre alguns aspectos específicos dotema objeto de uma disciplina científica que está surgindo eque deve sua emergência principalmente ao incentivo dadopor Peter Noll3 .

1 – A legislação – uma forma importante deexpressão da vontade do Estado

As decisões do Estado podem se revestir de formasdiversas: na forma da legislação, da decisão, do contrato, dotratado internacional, da diretiva interna da administração oudo ato material, etc. Dentre essas formas, a legislação é talveza mais importante, porque é ela que, sobretudo, é utilizada paraexpressar as decisões políticas.

Tomada na sua acepção estática, a legislação abrangeo conjunto dos atos unilaterais criadores das regras de direito.Por “regras de direito”, entendemos as normas que têm umcaráter geral e abstrato, ou seja, aquelas que concernem a umnúmero indeterminado de pessoas e situações e que geramobrigações, conferem direitos ou atribuem competências4 .Em outros termos, trata-se de normas que regulamentam osdireitos e as obrigações dos indivíduos, ou que instituem asautoridades, definindo suas tarefas e competências e preci-sando os seus procedimentos.

O nível normativo das regras de direito pode variar: nívelda Constituição, da lei ou do decreto. Em função da posição dasregras na hierarquia normativa, distingue-se entre legislaçãoformal e legislação material. A primeira inclui as regras de direitoque figuram em uma determinada lei, quer dizer, em um atosujeito a referendo; a segunda inclui os decretos editados peloParlamento, pelo governo ou pela Administração Pública.

Do ponto de vista quantitativo, a legislação material tempreponderância indiscutível sobre a legislação formal, mas, doponto de vista qualitativo, esta última é bem mais importanteporque, segundo o artigo 164, alínea "1", da Constituição Federal,todas as regras de direito importantes e fundamentais devem emprincípio ser editadas sob a forma de lei. Esse princípio é, no

zado pela primeira veznesse contexto porLuc Wintgens: ver L.Wintgens, Créationd’une banque dedonnées em légispru-dence légisprudence.In: “Legislação atual”(LeGes), 1992/3, p. 91.• NT: Em português,usaremos “legispru-dência” como tradu-ção literal do neolo-gismo empregadopelo autor.3 Ver sua obra depioneiro: P. Noll,Gesetzgebunslehre,1973 (há possibili-dade de uma tradu-ção francesa destaobra vir a serpublicada breve-mente). Para umarápida descrição dagênese dessa dis-ciplina, ver L. Mader,“ L ’ é v a l u a t i o nlégislative”, 1985, p.11 e seguintes.4 Ver a definição doartigo 22, alínea "4",da “Lei do Parlamen-to” (RS 171.10).

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entanto, suavizado pelo fato de que o legislador (parlamento epovo) pode delegar a competência para editar normas de direitoao Parlamento, ao governo, ou à administração, e até mesmo aorganismos ou pessoas externas à administração.

Às vezes, o termo “legislação” é utilizado numa acepçãomais ampla e inclui atos que não contêm regras de direito. É ocaso, por um lado, dos decretos federais instituídos peloParlamento e, por outro, dos decretos administrativos oudiretivas, editados pelo governo ou pela administração5 . Segun-do o artigo 163, alínea "2", da Constituição Federal, os atosinstituídos pelo Parlamento e que não contêm normas de direitotomam a forma de decreto federal; são qualificados comodecreto federal simples se não estão sujeitos a referendo. Noque concerne aos decretos administrativos e diretivas internas,esses podem certamente ter um caráter geral e abstrato, masnão são diretamente aplicáveis; na verdade, trata-se de injunçõesdirigidas à administração e que não produzem efeitos diretossobre os indivíduos. Por essa razão, eles não são consideradoscomo regras de direito; em conseqüência disso, não estãoincluídos na noção de legislação6 . Se, do ponto de vista jurídicoou dogmático, essa solução é perfeitamente lógica e sensata, doponto de vista da legisprudência, existem boas razões para seutilizar a noção de legislação em um sentido mais amplo e incluirnela também os decretos federais e os decretos administrativosou as diretivas internas7 . Pelo menos em parte, sua elaboraçãoe aplicação comportam os mesmos problemas que os dasregras de direito.

2 – A legislação – processo de decisão do Estado

Na sua acepção estática, a legislação é produto de umprocesso de decisão originária do Estado, mas a noção delegislação é igualmente utilizada em uma acepção dinâmica edesigna, nesse sentido, a atividade legislativa ou o processolegislativo, mais precisamente o processo de decisão queconduz à adoção de atos legislativos. Esse processo se desen-volve essencialmente no interior dos organismos estatais, queassumem também responsabilidade por ele. No entanto, os

5 Deste modo, asdiretivas da confe-deração sobre téc-nica legislativa ins-tituídas pela Chan-cellerie de la Confé-dération Suisse, emcolaboração com oOffice Fédéral deJustice, e o guia dalegislação editadopor este último co-brem também os as-pectos “legísticos”em correlação comessas ações ouatos. Ademais, a leisobre as relaçõesentre os conselhos,de 23 de março de1962, anulada esubstituída pela leisobre o Parlamentoem 2003, incluía, nos“atos legislativos”,não apenas as leisfederais e os decre-tos federais de âm-bito geral, mas tam-bém os decretosfederais simples,que não contêm re-gras de direito.6 Segundo o artigo 22,alínea "4", da lei so-bre o parlamento,apenas consideram-

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atores exteriores a esses órgãos, pessoas ou órgãos represen-tando a sociedade civil, podem estar associados a esse proces-so, por exemplo, na qualidade de especialistas ou no contextoda consulta aos segmentos sociais interessados.

O processo de decisão em matéria legislativa rege-sepor normas relativamente precisas, de grau institucional,legal e infralegal (decretos-lei e diretivas internas). Pode semencionar, por exemplo, as normas que tratam do referendo,do funcionamento do bicameralismo, do procedimento deconsulta externa, do preparo das decisões de governo (proce-dimento correlato no nível dos departamentos) e dos mecanis-mos de coordenação no âmbito dos órgãos federais (procedi-mento de consulta aos órgãos).

As regras distinguem as diferentes fases ou etapas doprocesso legislativo: fase preliminar ou pré-parlamentar, faseparlamentar, fase de referendo, etc. e determinam assim, emgrande parte, o desenrolar do processo legislativo. As normasfixam as diretrizes para a gestão de projetos legislativos econtribuem para moldar o conteúdo – e, em particular, aqualidade material e formal do resultado, ou seja, da legislação.

3 – A legislação – instrumento da ação do Estado

A legislação preenche diversas funções essenciais nasociedade. Podemos distinguir quatro funções diversas: afunção de ordem, a função de direção ou comando, a funçãode legitimação e a função decisória8 . As duas primeirasfunções estão mais relacionadas com o conteúdo – e portantocom a acepção estática da legislação, ao passo que as duasúltimas estão mais estreitamente ligadas à acepção dinâmica,à legislação como processo de decisão.

Vamos tratar em princípio da função de ordem: tantoos atores privados (particulares e empresas) quanto as autori-dades do Estado têm necessidade de diretrizes relativamenteestáveis e precisas que lhes permitam conhecer e antecipar,com um grau razoável de certeza, os comportamentos dosoutros atores sociais ou ligados ao Estado. As regras de direitopodem preencher essa função, já que garantem a previsibilidade

se instituidoras de re-gras de direito as dis-posições gerais eabstratas que têmuma aplicação direta.7 Em alemão, empre-ga-se a palavraErlasse para desig-nar o conjunto dosatos cobertos pelanoção ampla de le-gislação: ver emespecial as diretivassobre a técnicalegislativa, mencio-nadas acima. O equi-valente francêsdessa palavra(“atos” ou “ações”)é mais ambíguo; emespecial, ele não sedistingue muito danoção de ato admi-nistrativo ou deci-são (Verfügung).

8 Ver, em particular,G. Muller, Elementeeiner Rechtsetzun-gslehre, 2006, p. 11e seguintes; ver tam-bém L. Mader em co-laboração com B.Rütsche “Regu-lierung, Deregulie-rung, Selbstregu-lierung: Anmerkun-gen aus legistischerSicht”, “Zeitschrift fürSchweizer ischesRecht”, 2004/II, p. 32e seguintes.

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e estabilidade necessárias para as relações sociais. Essafunção de ordem é a função predominante do Direito Privado,que rege as relações entre as pessoas, bem como entre aspessoas e as coisas, e que freqüentemente, apenas reflete aevolução da sociedade. No entanto, o mesmo sucede comdeterminadas normas de direito pertencentes a outras esferaslegislativas, notadamente ao Direito Penal, ao direito orgânicodas instituições do Estado e ao Direito Processual.

Em muitos casos, é uma outra função da legislação, asaber, sua função de direcionamento ou orientação doscomportamentos que predomina: a legislação é utilizada parainfluenciar, de maneira discreta, os comportamentos indivi-duais dos atores sociais e dos agentes do Estado, bem comopara conduzir os processos sociais numa determinada direção.É o caso, em particular, das normas de Direito Público, combase nas quais estão fundadas as políticas públicas nosdiferentes domínios da atividade do Estado (política social,política da saúde, política ambiental, política dos transportes,política agrícola, etc. ) e que têm a ambição de contribuir paraa mudança das realidades sociais nesses domínios. Tais regrastêm então um caráter essencialmente instrumental: a legisla-ção é um instrumento de ação do Estado, uma forma que deveadotar a maior parte das ações do Estado no âmbito daspolíticas públicas. Com efeito, em um Estado regido pelodireito, sua atividade deve ter um fundamento legal e estar emconformidade com o direito (princípio de legalidade), demaneira que quase todos os instrumentos de ação do Estadonecessitem de escolhas legislativas.

Em terceiro lugar, a legislação, e mais particularmentea legislação no sentido formal, tem uma função de legitimação.As decisões ou regras provenientes do Estado que tomam aforma de lei e que resultam, portanto, de um procedimentoque necessita da participação direta ou pelo menos indiretados cidadãos gozam de uma forte legitimidade. Essa legiti-midade garante que essas decisões ou normas serão bemaceitas pelas pessoas a que se destinam e que elas serãoseguidas ou aplicadas em conformidade com a vontade dasautoridades que as editaram.

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Enfim, a legislação tem também uma função que sepoderia qualificar como “decisória”: por um lado, comoprocedimento que estrutura o processo de decisão emanadado Estado, ela define quais órgãos podem, em qual momentoe com quais competências, participar desse processo; e, poroutro lado, como forma, ela serve para expressar o resultadodo processo. Essa função “decisória” é importante mesmonas situações em que não se trata de intervir de maneiranormativa, definindo as regras do jogo da vida em sociedade(função de ordem) ou intervindo para realizar uma políticapública (função de direcionamento ou orientação). Ela dizrespeito, portanto, também às situações em que o processo dedecisão emanada do Estado e o resultado que esse processoatinge têm um caráter simbólico.

Na verdade, essas poucas considerações nada maisfazem do que evocar certas funções que parecem fundamen-tais. Outros aspectos mereceriam igualmente ser postos emevidência. Penso, por exemplo, no fato de que a legislação –pelas normas gerais e abstratas que ela contém – contribuitambém para assegurar a igualdade de tratamento, aprevisibilidade da ação advinda do Estado e a racionalizaçãodas atividades administrativas.

4 – A legisprudência – abordagem

global da legislação

A legisprudência9 é uma disciplina relativamente novaque se desenvolve, há cerca de quatro décadas, nas fronteirasdo direito e de diversas outras disciplinas científicas, principal-mente as ciências sociais (ciências políticas e administrativas,sociologia, ciências econômicas, etc.) e a lingüística. Utilizandoteorias, conceitos e métodos ou técnicas provenientes de váriasdisciplinas, ela tem pretensão de ser necessariamenteinterdisciplinar e visa a uma abordagem global do seu objeto10 .A legisprudência não é de forma alguma um domínio reservadoaos juristas, ainda que se admita que os juristas – tanto ospublicistas quanto os privatistas e os penalistas – tenham dadoos impulsos necessários à sua gênese e continuem a contribuirde maneira decisiva para o seu desenvolvimento.

9 Este é um neologis-mo que prefiro àsexpressões legísti-ca ou “ciência dalegislação”. O termolégistique (Legis-tik) é utilizado comfreqüência em umsentido mais estrito;ver nesta páginaabaixo; a expres-são ciência da le-gislação (Gese-t z g e b u n g s w i s -senschaft) não é de

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Esta abordagem global da legislação compreende mui-tas e variadas áreas de interesse. Quais são elas? Limito-meaqui a mencionar as principais:

• a Legística material (ou metodologia legislativa):interessa-se pelo conteúdo da legislação, pela substância oumatéria normativa e procura desenvolver um procedimentometódico para a elaboração dos atos legislativos, a suaaplicação e avaliação;

• a Legística formal (técnica legislativa ou legística nosentido estrito): interessa-se pelos aspectos formais da legislação,em especial pela forma dos atos, por sua estrutura e sistemática;

• a redação e a comunicação legislativas: interessam-sepelos aspectos lingüísticos da legislação, principalmente pela suainteligibilidade e pela questão de saber como a legislação pode serlevada ao conhecimento dos seus destinatários (publicação, etc.);

• o processo legislativo: sob esse ângulo, a legisprudênciase interessa pelas regras institucionais, organizacionais e pro-cessuais que regem o processo legislativo e que determinam,em certa medida, seu resultado. Na prática, encontram-sesoluções bem diferentes com relação a isso. Por exemplo,existem países em que a legislação é redigida por um serviçoespecializado. É o caso, em particular, dos países anglo-saxões(drafting service). Além disso , o trabalho da Legística cabe aosserviços que são igualmente responsáveis pela fundamentação;

• a gestão de projetos legislativos: em razão da naturezapolítica do processo de decisão e das regras que o regem, agestão de projetos legislativos apresenta especificidades comrelação à gestão de outros projetos, mas, sob muitos aspectos,os conceitos gerais e as técnicas de gestão de projetos sãosuscetíveis de serem aplicados no processo de elaboração dasleis. A legisprudência também se dedica a aplicar essesconceitos e técnicas e a adaptá-los ao contexto específico.Assim fazendo, ela deve levar em conta o fato de que asconsiderações táticas podem desempenhar um papel impor-tante no processo legislativo e constituem assim um elementonão negligenciável da gestão de projetos;

modo algum adequa-da para englobartambém as orienta-ções essencialmen-te práticas ou prag-máticas desta abor-dagem global da le-gislação. O termo“égisprudence cor-responde bem à ex-pressão alemã“Gesetzgebungs-lehre” e a analogiasubja-cente, à pa-lavra jurisprudence( j u r i sp rudênc ia )está bem adequadaao objeto, métodose áreas de interes-se da disciplina.10 A propósito do ca-ráter interdisciplinarda légisprudence,ver, em especial, P.Richli, (Interdiszi-plinäre Daume-nregeln für eine faireR e c h t s e t z u n g ,2000).

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• a sociologia legislativa: a legisprudência não se interessaapenas pelos aspectos práticos da atividade legislativa, mas,especialmente, pelo preparo da legislação por especialistas emlegislação, isto é, pessoas especializadas encarregadas dos traba-lhos preparatórios11 e os representantes dos órgãos legislativos.Ela examina também os fatores, especialmente as forças políticasque influenciam o processo legislativo, bem como a aplicação eos efeitos da legislação. O estudo dos processos decisórios, daaplicação e dos efeitos empíricos da legislação constitui uma áreade interesse importante dessa disciplina, área de interesse que elapartilha, evidentemente, com outras disciplinas, em particularcom as ciências políticas e administrativas;

• a teoria da legislação: uma abordagem global dofenômeno legislativo não pode limitar-se aos aspectos práti-cos e aos estudos empíricos. Também a legisprudência devecomportar uma análise crítica da atividade legislativa e umareflexão teórica focada principalmente nas funções da legis-lação (e do Estado) na sociedade, sobre a sua importânciarelativa e sobre as transformações por elas sofridas.

Evidentemente, essas diferentes áreas de interesse nãopodem e não devem ser consideradas de maneira isolada. Elas secruzam e se completam. Desenvolvimentos e progressos subs-tanciais no domínio da legisprudência são possíveis apenas se asorientações práticas, empíricas e teóricas estiverem articuladasde forma otimizada e puderem se enriquecer mutuamente.

A seguir, ressaltarei alguns aspectos que me parecemimportantes, sobretudo do ponto de vista da prática legislativa.

5 – A Legística material – um esforço para um

procedimento metódico em matéria legislativa

A legislação é uma ferramenta utilizável e utilizada parainfluenciar os atores sociais (indivíduos, empresas) e os agen-tes do Estado, seja para fazê-los mudar de comportamento,seja, ao contrário, para evitar que eles mudem de comportamen-to. Nesse sentido, ela tem um caráter instrumental. Essaconcepção instrumental é subjacente ao procedimento metódi-

11 Na práticalegislativa suíça,muitas dessas pes-soas têm, sem dúvi-da, uma formaçãojurídica, mas não sepode deduzir que,pelo menos no queconcerne aos as-pectos práticos, apreparação da legis-lação seja um domí-nio privilegiado, ouseja, uma exclusivi-dade dos juristas. ALegística material,em particular, recor-re a conhecimentose capacidades ousaber consolidadoque a formação jurí-dica não fornece.

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co preconizado no âmbito da Legística material. Com efeito, oprocedimento metódico parte da idéia de que a atividadelegislativa não é uma arte pela arte ou a conclusão simples daação conjunta de uma série de obrigações, mas é uma açãofinalizada, voluntarista, destinada à resolução de um problema.

O procedimento metódico tem como objetivo essencialdefinir a substância ou a matéria normativa que constituirá oessencial da legislação e assegurar a aplicação, bem como aavaliação dos efeitos da legislação. Ela se apóia na segmentaçãodo processo legislativo em diversas seqüências analíticas12 .Essa segmentação distingue as seqüências seguintes:

• a definição do problema baseada na análise da situaçãoexistente e a definição dos objetivos;

• a procura de instrumentos suscetíveis de contribuirpara a solução do problema;

• a avaliação desses instrumentos, à luz especialmentedas exigências que devem ser preenchidas (por exemplo, aexeqüibilidade ou praticabilidade) e limitações a respeitar(jurídicas ou outras, tais como o tempo necessário para arealização e os custos que ela implica);

• a escolha da solução (nesse contexto: adoção da legislação);

• a aplicação;

• a avaliação dos efeitos;

• e, se necessário, a adaptação da legislação.

Uma análise aprofundada dos fatos (“ser”) e umaclarificação suficiente dos objetivos (o dever-ser) são primor-diais nesse contexto. Sem eles, não há verdadeira definição doproblema, porque este consiste precisamente na diferença queexiste entre esses dois elementos. Importa sob esse aspectomanter uma certa distância com relação aos problemasarticulados pelos atores políticos e estar consciente do fato deque todos os problemas não justificam uma ação de Estado,uma intervenção do legislador. Na medida em que cabe

12 Ver J.-D. Delley,Penser la loi-introduction à uned é m a r c h eméthodique. In: Ch.-A. Morand (edição),"Legística formal ematerial”, 1999, p. 81e seguintes.Nota do editor:Artigo traduzido epublicado nos Ca-dernos da Escola doLegislativo. Cad.Esc. Legisl., BeloHorizonte, v. 7, n.12, pp. 101-143,jan./jun. 2004.

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efetivamente ao Estado resolver o problema, é importantetambém usar a imaginação na pesquisa dos instrumentos deação e visualizar as alternativas possíveis. Enfim, para evitaruma limitação inadequada das alternativas, é importante analisarbem as exigências e distinguir claramente as que são absolutasdaquelas que não são. Essa análise não deverá intervir numestágio prematuro do processo decisório. Somente após tercumprido os passos preliminares do procedimento metódico, éque o conteúdo essencial do ato legislativo a ser elaborado estarásuficientemente claro para que se possa empreender a elabora-ção de um projeto de texto normativo. Ora, uma falha impor-tante da prática legislativa está precisamente no fato de que,ainda muito freqüentemente, os legistas põem-se a formulardisposições legais ou regimentais antes mesmo de ter idéiasprecisas sobre o conteúdo normativo. Evidentemente, a contri-buição da Legística material não pode se limitar a recomendaresse procedimento metódico em sete passos. Ela deve sedesenvolver e pôr à disposição dos legistas ferramentas auxili-ares, técnicas que lhes facilitem o cumprimento desses passos.

6 – A Legística formal – ou a difícil passagem

do fundo à forma

Uma das etapas mais difíceis na prática legislativa é apassagem do conteúdo normativo ou da matéria normativa àforma, isto é, ao ato legislativo. É uma fase particularmentecriativa do trabalho legístico na qual se pode igualmente seguirum procedimento em diversas etapas. Em todo caso, oprincípio elementar a ser respeitado nesse contexto, e que nãoseria demais lembrar na prática, é o de estar a par do conteúdoantes de conceber o ato legislativo e de estruturar esseconteúdo antes de redigir as disposições particulares. Ahipótese de partida é então a de que o conteúdo essencial doato legislativo a ser elaborado deve ser bem conhecido nesteestágio do trabalho legislativo.

Quais são as etapas? Quais são os elementos ou osaspectos sobre os quais é preciso refletir no momento daconcepção e estruturação de um ato legislativo? Poder-se distin-guir principalmente os elementos ou os passos seguintes13 :

13 Ver a esse respei-to G. Müller, Elementeeiner Rechtssetzun-gslehre, 2006 emparticular p. 58 e se-guintes; ver tambémT. Fleiner-Gerster,Wie soll manGesetze shcrei-ben?, 1985.

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LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

• a definição clara da matéria normativa: essa matériadecorre em particular da mesma definição da noção da normade direito; nesse estágio, é de bom alvitre resumir os elemen-tos-chave da matéria normativa sob a forma de textos(Kernsätze ou Leitsätze);

• a reflexão sobre o contexto legislativo, atentando paraque haja uma inserção ideal nesse contexto: deve-se levar emconta as dimensões horizontal (atos legislativos de mesmo nívelnormativo), vertical (atos legislativos de nível superior ouinferior) e temporal (evolução) do contexto legislativo preexistente;

• a reflexão no nível normativo apropriado: essa refle-xão, que deve se basear no artigo 164 da Constituição Federal,distinguirá principalmente os conteúdos normativos que de-vem figurar no nível de uma lei no sentido formal daquelas quepodem figurar em um decreto; o mecanismo da delegaçãolegislativa terá evidentemente uma importância particularnesse contexto;

• a reflexão sobre a forma apropriada do ato: levar emconsideração as normas pertinentes da Constituição Federal(artigo 163) e da lei sobre o Parlamento (artigos 22 e 29);

• a reflexão sobre a densidade normativa adequada:caráter detalhado ou aberto das normas, utilização de noçõesjurídicas indeterminadas e de definições legais, enumeraçõesexaustivas ou exemplificativas, etc.;

• a estruturação da matéria normativa: esboço de umplano geral ou de um conceito de ato em função de critérioslógicos (do geral ao particular; em princípio a norma, depoisas exceções), cronológicos ou materiais (destinatários,objetivos, instrumentos, etc.);

• a fixação da sistemática do ato: respeito igual àsnormas publicadas nas diretivas sobre a técnica legislativa.

É evidente que essas etapas a serem cumpridas tantona concepção como na estruturação de um ato legislativosuperpõem-se em parte e estão estreitamente ligadas demaneira que o procedimento será necessariamente reiterativo.

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A ordem na qual elas são mencionadas aqui não é de restoestritamente cronológica e imperativa; determinadas etapaspoderiam, sem dúvida, ser invertidas (por exemplo, a reflexãosobre o nível normativo, sobre a forma e sobre a densidadenormativa). O que importa, ao contrário, é que a reflexão dosque elaboram a legislação possa levar em consideração oconjunto dos elementos mencionados.

7 – A comunicação legislativa – uma comuni-

cação de natureza particular

Os textos legais devem ser claros, concisos e coeren-tes. Trata-se de postulados ou de exigências fáceis de estabe-lecer, mas sua utilidade prática é muito limitada se não sedefine com precisão aquilo que se entende por claro, concisoe coerente, e, sobretudo, se não se esclarece como os legistaspodem chegar a textos que respondam a essas exigências. Poressa razão, a legisprudência tem necessidade de um forteapoio da lingüística, e a redação dos textos legais deve levarem conta as especificidades da comunicação legislativa14 .

Com efeito, a comunicação legislativa não é uma comuni-cação ordinária. Ela apresenta especificidades que precisam serlevadas em conta na redação dos textos legais. Quais são essasespecificidades? Limito-me aqui a mencionar alguns aspectos:

• o caráter unilateral da comunicação: a legislação nãoé um diálogo entre o legislador e os destinatários das normas;não é possível portanto esclarecer, completar ou até corrigira mensagem que abrange e transporta todo texto legal se osdestinatários não a compreendem ou a interpretam em umsentido que não corresponde às intenções do legislador;

• o caráter hierarquizado da comunicação: o autor damensagem e os destinatários não estão em pé de igualdade; entreo legislador e os destinatários existe uma distância hierárquica;

• o caráter anônimo e despersonalizado da comunica-ção: tanto do lado do legislador quanto do lado dos destinatáriosnão é possível identificar as pessoas envolvidas na comunica-ção legislativa; o legislador é um órgão estatal abstrato, e osindivíduos que formam o círculo dos destinatários são, por

14 Ver Ch.-A.Morand, Vers uneméthodologie de lac o m m u n i c a t i o nlégislative, Leges(Legislação atual)1994/2, p. 11 e se-guinte.

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LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

definição, indeterminados; acrescente-se o fato de que a comu-nicação emana de um único ator, mas se endereça sempre a umamultidão de destinatários e deve, em conseqüência, levar emconta a diversidade do lado dos destinatários;

• o caráter normativo da comunicação: os textos legaisnão são de natureza descritiva, explicativa ou justificativa; elesnão contêm análises; a comunicação legislativa é uma comu-nicação prescritiva;

• o caráter especializado da linguagem utilizada: naSuíça, o legislador se esforça para utilizar uma linguagem tãopróxima quanto possível da linguagem ordinária; isto éparticularmente verdadeiro no caso das leis cuja promulgaçãonecessita de uma aprovação pelo menos tácita dos cidadãos;no entanto, na maioria dos casos, a utilização de uma lingua-gem especializada, jurídica ou técnica, é inevitável e podecomprometer a inteligibilidade dos textos legais;

• o caráter padronizado da linguagem utilizada: a lingua-gem utilizada nos textos legais não é somente especializada, elaé também em grande parte padronizada ou “normatizada”,pois é preciso atentar para se levarem em conta os usoslingüísticos e, em particular, as escolhas terminológicasadotadas no passado em outros atos legislativos – por exem-plo, evitando-se a utilização de sinônimos; às vezes, essanecessidade de harmonização facilita a compreensão dostextos, mas pode torná-la mais onerosa.

Em relação à redação de textos legais, os legistas devemobservar essas especificidades da comunicação legislativa.Não basta respeitar as regras gramaticais, em especial asintaxe e o estilo.

8 – A legisprudência – garantia de qualidade

da legislação?

A legisprudência não tem uma orientação exclusiva-mente prática, mas sua ambição primordial é, sem dúvidaalguma, a de contribuir para a qualidade da legislação15. Essaambição é realista?

15 Ver quanto a esseassunto por exem-plo G. F. Schuppert,Gute Gesetzge-bung – Bausteineeiner krit ischenGesetzgebungslehre,Zeitschrift fürG e s e t z g e b u n g ,2003 (caderno es-pecial).

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A legislação é uma atividade eminentemente política.Seu conteúdo reflete – e deve refletir – os compromissos, asambigüidades, as incoerências e até as contradições inerentesao processo de decisão política. A natureza política doprocesso legislativo não deve, no entanto, servir de desculpapara a má qualidade de determinados atos legislativos. Eladeve, ao contrário, ser considerada como um desafio.

Sem usurpar o papel do legislador, os elaboradores delegislação podem contribuir – e contribuem, sem dúvida –sensivelmente para a qualidade, tanto material quanto formalda legislação. De resto, sua responsabilidade não se limita aosaspectos jurídicos, legísticos no sentido estrito (técnicalegislativa), lingüísticos e comunicacionais; eles devem seinteressar pelo conteúdo, coerência e adequação materiais efornecer as bases de que o legislador tem necessidade parapoder decidir com conhecimento de causa. Cabe àlegisprudência disponibilizar as ferramentas práticas paraisso, bem como assegurar os mecanismos para a sua própriasistematização enquanto saber.

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REFLEXÕES SOBRE O ESTADO E OS JUÍZES

FÁBIO

FÁBIO

Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 207-238, jan./dez. 2007

• Filósofo e profes-sor titular do De-partamento de Fi-losofia do Institutode Filosofia e Ciên-cias Humanas daUniversidade Esta-dual de Campinas

REFLEXÕES SOBRE OESTADO E OS JUÍZES

ROBERTO ROMANO•

m uma sociedade onde impera a exclusão,como a brasileira, tribunais não ajudam acorrigir os processos econômicos e sociaisque jogam seres humanos, aos milhões, naperiferia da existência. Se o âmbito definidocomo Justiça opera assim, todos os indivídu-os perdem a segurança vital, motivo maior doEstado. A ruína da ordem pública começa,portanto, nos umbrais do Foro. Quando juízesdeixam de ser pessoas de carne e osso eassumem o seu mister de maneira

automatizada, desaparecem os anseios de liberdade, somemas esperanças de justiça, começa a selvagem corrida pelasobrevivência, sem maiores preocupações com os semelhan-tes. O pânico vivido no Brasil, com o aumento da criminalidadegeral, implicando quadrilhas comuns e as de colarinho branco,como a denunciada recentemente pelo procurador-geral daRepública, exige que se reflita sobre os mecanismos queasseguram obediência às leis. Nas páginas seguintes, serãoexpostas algumas teses filosóficas relevantes para o entendi-mento da compreensão jurídica, atualmente em profunda crise.

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É conhecido o diagnóstico de Max Weber, próximo dopensamento romântico, segundo o qual, nos tempos modernos,a política, a economia e a religião perdem o encanto. O sagradodesaparecido tem como sucessores mecanismos que arran-cam dos indivíduos liberdade, força volitiva, pensamentoautônomo. A burocracia,

“máquina sem vida, é espírito coagulado. E só porqueé isso, ela tem o poder de forçar os indivíduos a servi-la e determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital[…] Como espírito coagulado, aquela máquina vivarepresenta um organismo burocrático com sua especi-alização do trabalho profissional aprendido, suadelimitação das competências, seus regulamentos erelações de obediência hierarquicamente graduados.Unida à máquina morta, a viva trabalha para forçara jaula (Gehäuse) daquela servidão futura a que talvezos homens se vejam obrigados a submeter-se, impotentes,como os felás do antigo Egito1.

Se as pessoas comuns são dominadas pelas formasburocráticas, também os legisladores e governantes tombamnaquelas malhas. O segredo é renitente prerrogativa da raisond´État.2 Os justificadores da burocracia defendem especial-mente o “segredo do cargo”. Se a burocracia enfrenta umparlamento, luta com instinto seguro contra os ensaios alirealizados para abolir o segredo do cargo com meios própriose conhecimentos especiais.

Um parlamento mal-informado e, portanto, sem poder,é naturalmente mais bem acolhido pela burocracia[…] Inclusive o monarca absoluto, e de certo modo elejustamente, percebe a si mesmo quase sempre impotentediante do superior conhecimento burocráticoespecializado3.

Aquela rede controla governantes e legisladores. Emuitos juízes caem em suas teias.

Só a burocratização do Estado e do direito reconheceem geral a definitiva possibilidade de uma rigorosa

1 WEBER, M.Wirtschaft undg e s e l l s c h a f t :grundniss derv e r s t e h e n d e nsoziologie. FünfteRevidierte Auflage.Tübingen: J.C. B.Mohr, 1972. p. 835.Cf. a tradução ingle-sa: Economy andsociety, an outlineof interpretativesociology. Ed.Guenther Roth e C.Wittich. Berkeley:Un. of CaliforniaPress, 1978, p. 1402.2 Cf. ROMANO, R.Soberania, segredo,Estado democrático.Revista Política Ex-terna, v. 13, n. 1, p.15-28, jun. /ago.2004. Do autor, cf.Reflexões sobre im-postos e raisond´Etat. Revista Eco-nomia Mackenzie, v.2, n. 2, p. 76 et seq.Disponível em: <http:// w w w . m a c k e n -z i e . c o m . b r /editoramackenzie/revistas/economia/eco2n2.htm>.3 WEBER, M.Wirtschaft undgesellschaft, p. 573.Cf. WEBER, M. Eco-nomia y sociedad,esbozo de sociolo-gia comprensiva.Ed. J. Winckelmanne J. M. Echavarria.Mexico: FCE, 1969.t. 2, p. 745.

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REFLEXÕES SOBRE O ESTADO E OS JUÍZES

distinção conceitual entre uma ordem jurídica"objetiva" e direitos "subjetivos" dos indivíduos ga-rantidos por ele, bem como a separação entre o direito´público´, ligado às relações entre autoridades e´súditos´, e o direito ´privado´,que regula as relaçõesdos indivíduos dominados entre si. A burocratizaçãopressupõe a separação abstrata entre o ́ Estado´, comosustento abstrato dos direitos de mando e criador das"normas jurídicas" e de todas as "atribuições" pessoaisdos indivíduos4.

Nas formas burocráticas oficiais, existe a perpetuidadedo cargo. O que não significa a sua posse. Quando no campojudicial garantias são dadas aos juízes e demais funcionáriosda Justiça, contra a destituição ou remoção arbitrárias, taismedidas têm por finalidade oferecer

“segurança com vistas ao cumprimento rigorosamenteobjetivo e isento de toda consideração pessoal, dodever específico imposto pelo cargo correspondente. Aproporção da "independência" outorgada por aquelagarantia jurídica na burocracia não causa o incrementoda estima "convencional" – estamental – dofuncionário assim garantido […] O funcionário admi-nistrativo pode ser despedido com maior facilidade doque o juiz "independente”.

A independência dos juízes, na hierarquia burocrática,resulta na despersonalização de sua individualidade. Os sistemasburocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operamsegundo as particularidades subjetivas dos integrantes, daspartes à defesa, desta à promotoria, chegando ao juiz. “O juizmoderno”, adianta Weber, “é similar à máquina que distribuirefrigerantes, na qual os processos são inseridos com a taxae vomita o julgamento com razões mecânicamente derivadasdo Código”.

A independência em face dos antigos poderes garante,paradoxalmente, a mecanização do juiz. Esse não mais depen-de de um soberano, indivíduo ou coletivo; seja ele rei, papa,

4 Weber, M. Econo-mia y sociedade,op. cit. , t. 2, p. 749.

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aristocracia ou povo. A independência diante de pessoas decarne e osso é paga pela inserção na máquina de controle geral.Não espanta que o inimigo da burocracia moderna, CarlSchmitt, assim descreva as operações dos juízes no regimenazista: nele, “legislação, administração e justiça funcionavamgraças a novas simplificações e acelerações do processo, comobstáculos sempre menores, como aparelhos de comando”.A aplicação da lei pelos juízes, portanto, é tema que exigecautela. Quando se trata de diminuir o autoritarismo degovernantes e legisladores, a plena autonomia do juiz pode servista como incremento de liberdade em proveito do coletivo.Mas, se, ao deixar a dependência anterior, o juiz entra em umarede formal que o controla externa e internamente, suapretensa independência traz graves injustiças na distribuiçãodo direito.

Em países como os EUA e o Brasil de hoje, os juízesdizem a última palavra na exegese da lei e da Constituição.Desconhecemos apelo para algum tribunal acima do Supre-mo. O mesmo não ocorre na Inglaterra. Neste país, apesar deassegurada ampla independência dos juízes, suas decisõesdeterminam-se sob a supervisão do Poder Legislativo.5 Osdois sistemas possuem fundamentos comuns, apesar dasdiferenças, pois a sua base filosófica enuncia que as pessoastêm direitos anteriores ao Estado; o poder político é instituidopara proteger tais direitos. Como as garantias institucionaissão frágeis,6 não existe árbitro para resolver as disputas enenhum poder para limitar os atentados mútuos à liberdadeindividual; o necessário governo é posto pelos indivíduosparticulares, unidos para proteger seu corpo e alma.

O modelo inglês enfatiza o governo soberano unitário.A sua tese enuncia que, para proteção dos indivíduos, o poderdeve ser forte, pois grupos privados podem conspirar paraextrair a vida e a liberdade alheias. A divisão do Estadoincentiva uma parcela social a resistir ao esforços das outrasquando se trata de garantir os alvos da coletividade política.Assim, os juízes não podem ter a palavra final nos assuntos dalei. Quando não agem em harmonia com o todo estatal ousocial, apelo deve ser feito ao poder soberano, antes o rei, hoje

5 Cf. FORTIER, J. C.Lions under thethrone FrancisB a c o n ´ sunderstanding of amodern judicialpower . BostonCollege, Departmentof Political Science,2000. Disponível nosite DigitalD i s s e r t a t i o n s :< h t t p : / /www.lib.umi.com/dissertation>.6 Este desenvolvi-mento é feito combase no texto deFortier, J. C. , op. cit.

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REFLEXÕES SOBRE O ESTADO E OS JUÍZES

o Parlamento. O Judiciário é eminente, mas subordinado naordem estatal, ele “responde ao poder encarregado, em últimograu, de garantir os direitos”, sendo o Legislativo o maispróximo da vontade popular. A supremacia cabe ao Parlamen-to, não ao Judiciário.

No lado que defende a supremacia do Judiciário,busca-se impedir que a maioria tiranize a minoria. E surge aConstituição escrita unida à separação dos Poderes impedindoque partes do Estado assumam forças desproporcionais àsoutras. O sistema inglês, embora privilegie o Legislativo,garante independência dos juízes na decisão dos casos, pelomenos até o apelo final, e permite que eles apliquem leisantigas, mesmo as que não mais são vigentes. Aresponsabilidade derradeira pela proteção dos direitos pertenceao Parlamento, que faz as leis e subordina os juízes. Nosistema oposto, a autoridade é dividida e concede aos juízespapel especial na imposição de limites às instituiçõesgovernamentais.

Vejamos como tal sistema foi gerado nos camposfilosófico e político. Francis Bacon subordina os juízes aopoder soberano, embora lhes atribua importante papel. Osindivíduos possuem alvos privados, e o governo deve prote-ger tanto o seu corpo quanto os seus alvos. Sem o soberano,eles caem na violência. As barreiras para as ambiçõesparticulares são produzidas artificialmente pelo Estado.Segundo Bacon, o poder estatal deve ser forte, uno, soberano.Um estado dividido não pode ser responsável, em caso defracasso, pela conciliação dos fins privados. Os juízes exercemsua autoridade, mas não de modo a enfraquecer a unidade dopoder público. Eles devem ser como “leões sob o trono”(“Sobre a judicatura”). Se estão sob o trono, nem por issodeixam a essência leonina. Ao promover a certeza na aplicaçãoda lei, agir como intermediários entre o poder soberano e osindivíduos privados, esclarecer antigas leis, eles exercemgrande poder.

Os juízes, diz Bacon, devem recordar que seu ofício éjus dicere e não jus dare7. Interpretar a lei, não fazê-la. Eles

7 Bacon, F. Ofjudicature. In: DEVEY,J. (Ed.). The moral andhistorical works ofLord Bacon, includingessays, etc. London:George bell & Sons,1874. p. 146-150.

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devem ser mais ilustrados do que inteligentes, mais respeitá-veis do que plausíveis e mais desconfiados do que confiden-tes. O dever maior do juiz é suprimir a força e a fraude, poisa primeira é mais nociva quando aberta e a segunda, quandodisfarçada. Os magistrados devem evitar construções siste-máticas e inferências, pois não existe tortura pior do que atortura das leis. Sobretudo no campo penal, eles devem termuito cuidado. Paciência e gravidade nas audiências sãonecessárias. O juiz que fala em demasia é címbalo desajustado.São quatro as partes do juiz na audiência: dirigir tudo paraobter evidências; moderar a extensão, a repetição, a imperti-nência da fala; recapitular, selecionar e citar os pontosmateriais do que foi dito. E, por último, dar a sentença. Tudoo que estiver além disso é demasiado e procede da glória, docomichão de falar, da impaciência em ouvir, da memória curtaou desatenção.

Embora não tenham lugar sobre o trono, os juízesmantêm a soberania, segundo a raison d´État. Eles devem“recordar a conclusão das Doze Tábuas Romanas, o preceitode que Salus populi suprema lex e saber que leis, excetoquando voltadas para aquele fim, são capciosas, oráculospouco insipiradores". É bom para o Estado que os reis eestamentos consultem com freqüência os juízes. E tambémque os juízes conversem com o rei e estamentos com a mesmafreqüência. A primeira ocasião, quando se trata de lei queinterfira nos assuntos de Estado. E a segunda, quando háalgum reparo a ser feito no Estado em matéria de lei. Muitasvezes, as coisas conduzidas a juízo ligam-se ao meum e tuume as conseqüências podem interessar ao Estado.

Não deixemos as pessoas imaginarem que as leis e averdadeira política (policy) têm alguma antipatiaentre si. Porque elas são como os espíritos e tendões,uma delas move-se com a outra. Os juízes recordamque o trono de Salomão era sustentado por leões.Deixemos que eles sejam leões, mas sob o trono, tendocerteza de que nada discutam ou oponham à soberania.[…]. Porque eles devem recordar o apóstolo quandodisse de uma lei maior dos que as deles : "Nos scimus

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quia lex bona est, modo quis ea utatur legitime"(sabemos que a lei é boa, desde que usada comlegitimidade)8.

Os juízes garantem a obediência às leis. Mas suaindependência é limitada pelo soberano. E o que é a lei dosoberano? A resposta mais direta à questão encontra-se emHobbes, secretário de Bacon e tradutor para o latim dosEnsaios redigidos pelo chanceler. “Lex est mandatum ejuspersonae, sive hominis sive curiae, cujos praeceptum continetobedientiae rationem”.9 Desnecessário dizer a importância datese hobbesiana para a missão do juiz. Enquanto

a lei natural é imediata em nós, pois conhecemos omandamento divino em nossa razão, a lei civil émediada pelo conjunto de regras com as quais acomunidade, por escrito ou oralmente ou qualqueroutro sinal adequado (signum idoneum) de sua vontade,comanda o uso da vontade para distinguir o certo doerrado, o contrário à regra do que não é contrário10.

Só a Commonwealth pode editar leis civis. O soberanoé o único legislador não submetido às mesmas leis civis. Essatese é de Bacon, para quem a lei depende do soberano, posiçãocontraria à de Coke, para quem a Common Law é suprema. Omais longo tratamento da questão é feito por Bacon, em DeDignitate et augmentis scientiarum. No Livro VIII, ele escrevesobre a raison d´État com citações de Maquiavel e atiladaanálise da política exterior no comércio e demais segmentosestratégicos. No título I do terceiro capítulo do mesmo LivroVIII (“A certeza é a primeira dignidade das leis”), afirma-se:“a melhor lei é a que deixa pouco à disposição do juiz”. Aincerteza da lei vem sobremodo de sua forma ambigua. Se amelhor lei é a que deixa pouco ao juiz, “o melhor juiz é o quemenos deixa à sua própria vontade”. Importa deixar clara agênese da lei. Em toda sociedade civil, há uma autoridadelegislativa como “absoluto poder (summa potestas), que faz erevoga a lei”11.

Bacon ocupou cargos no Estado e na Justiça inglesa.Foi solicitor general (1607), attorney general (1613), lord

8 Francis Bacon. Ofjudicature, op. cit.,p. 146-150. A últimacitação é de SantoAgostinho nas Con-fissões. l ivro 12,cap. 18.

9 “Lei é o manda-mento da pessoa,homem ou assem-bléia, cujos precei-tos exigem a obedi-ência” (HOBBES, T.De cive, XIV, 1).

10 HOBBES, T.Leviatã. Ed. C. B.Macpherson. NewYork: Penguin,1977. p. 312.

11 Bacon apudPELTONEN, M. TheC a m b r i d g eCompanion toBaco. Cambridge:University Press,1996. p. 22.

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keeper (1617) e lord chancellor (1618). Seu alvo maior foiaproximar rei e Parlamento, “elementos e princípios desteEstado […] que não se anulam, mas se fortalecem e mantêmum ao outro”. O rei possui prerrogativas “mediatamente,devido às leis, mas imediatamente de Deus” e não pode sercensurado por nenhum juiz, pois está além de toda jurisdição.Mas, como o seu oficio é preservar o público, espera-se quenão desobedeça à lei. Embora “legibus solutus, seus atos egarantias são limitados pela lei”12. Bacon defendeu os comunsem 1593, o que lhe valeu perder a carreira sob Elizabeth II. Oseu trato com o rei James foi mais balanceado, embora osoberano insistisse no absolutismo que o colocava como vice-Deus. Em 1614, os comuns decidiram que nenhum attorneygeneral teria lugar na Casa das Leis, mas fizeram exceção paraBacon13.

Chegamos aos juízes com Hobbes. É essencial recor-dar que, para ele, a soberania exige o banimento na ordempública dos juízos com origem privada. Não existe medidacomum para o juízo sobre valores, pois ninguém concordasobre o bem e o mal, certo ou errado, justo ou injusto. O juízode cada um tende a se ampliar ao infinito, na mesma medidado desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerrauniversal não é apenas física, mas também psicológica,porque inveja e ódio campeiam e cada pessoa julga-se maisesperta do que o outra. Paixões diversas e igualdade no podermortífero levam à morte. É impossível arrancar a força físicados homens, mas é factível fazê-los abdicar da exteriorizaçãode seu mundo privado. Todos devem renunciar ao “direito” deimpor aos demais o juízo próprio. Visto que todos possuemum direito igual em termos naturais, cada um pode entrar nopacto. E todos submetem-se ao juízo de um árbitro. Só osoberano guarda o seu direito natural, o uso sem restrições daforça física e do juízo próprio14.

O soberano concentra o poder de julgar em todas asmatérias, nas leis, na administração, nos tribunais, na guerraou paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Esse é opressuposto para colocar limites sólidos contra os desejosinfinitos dos cidadãos. Como todos abrem mão do juízo

12 Cf. PELTONEN, M.Bacon´s polit icalphilosophy. In: TheC a m b r i d g eCompanion toBacon, op. cit. p. 283et seq.

13 Cf. HILL, C. Inte-lectual origins of theEnglish Revolution.London: PantherBooks, 1972. p. 98.

14 Esse ponto é trata-do de maneira opostapor Spinoza. Sendo aforça física um ele-mento do espaço e osjuízos a modificaçãodo pensamento e sen-do ambos, pensa-mento e força física,modos da substânciainfinita (Deus ou natu-reza), cada indivíduopossui em si mesmo aforça e o pensamentoque seguem ao infini-to. Não é possível ar-rancar deles a força eo juízo próprios. Algosó pode ser movidopor algo que apresen-ta as mesmas deter-minações modais. Umcorpo não pode sermovido ou forçado

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REFLEXÕES SOBRE O ESTADO E OS JUÍZES

privado, nada sobra para o direito de resistência. Entre o realcomo o vemos e como ele existe ocorrem diferenças porconstruírmos um mundo pela imaginação que, por sua vez,é movida pelos nossos nervos. O intelecto não possui perfeitoconhecimento do mundo externo ou interno dos demaishomens. O estratégico para os indivíduos “não é a verdade,mas a imagem que faz a paixão. E a tragédia afeta mesmo umassassino, quando bem desempenhada” (The Elements ofLaw). Paixão e imagem geram rebeliões. O uso correto dosnomes e palavras não consiste na verdade, mas serve paraevitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o nosso interiore o mundo externo acentua a ausência de medida comum debem e mal. Os indivíduos são incompetentes para emitir taisjuízos.

Os homens, veementemente amorosos de suas própriasnovas opiniões (as mais absurdas) e decididos comobstinação a mantê-las, deram às opiniões oreverenciado nome de consciência, como se julgassemilegal mudá-las ou falar contra elas.

Os homens também fundamentam seus atos em raci-ocínios, concebem “a conseqüência dos nomes de todas aspartes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidadee de uma parte para o nome da outra parte. […] E os juristassomam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na açãodos homens privados”. Todo homem pode errar no cálculo,o que não quer dizer que inexista o bom juízo.

Ao surgirem controvérsias sobre um cálculo, as partesprecisam, por mútuo acordo (by their own accord),recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cujasentença se submetem. […] Quando os que se julgammais sábios do que todos os demais gritam e exigemuma razão certa para juiz, só procuram garantir que ascoisas sejam asseguradas não pela razão dos outroshomens, mas pela sua. É tão intolerável agir assim nasociedade dos homens como no jogo; escolhido otrunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiõesa série de que se tem mais cartas na mão15.

pelo pensamento. Eum pensamento sópode ser modificadopor outro pensamen-to. Usar a força paraimpor a soberania éum erro ontológico eepistemológico, vio-lência que não garan-te o Estado, pois osindivíduos recebem opensamento da subs-tância infinita divina.Pode-se tentar con-trolar os pensamen-tos, mas ele não acei-ta os limites da forçafísica e os limites daimaginação religiosaou política. Esse é osentido da frasespinozana quando oeleitor palatino o con-vidou para dar aulassem “perturbar a reli-gião oficialmenteestabelecida”. Res-posta: “Desconheçoem quais limites minhaliberdade filosóficadeveria ser contidapara que eu não pa-recesse desejar aperturbação da reli-gião estabelecida.”(Carta a Fabritius, 30/3/1773). Cf.SPINOZA, B. Oeuvrescomplètes. Paris:Gallimard, 1954.Pléiade, p. 1284.15 Sainte-Beuve dizque, entre Hobbese Pascal, há maisproximidade do quese imagina. A ques-tão do jogo e do tru-que é analisada coma perspectiva do

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Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil emfavor do soberano. Os particulares não têm mais direito (poisassumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O soberano,cuja função é salvar o povo, não sofre esse limite. O jogo operacom a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na socieda-de civil, se todos jogarem sem regras, desaparece o jogo enenhum jogador parte da igualdade das chances, porque otruque não se revela e nem se indica quem o usa (casocontrário, o jogo se transforma em guerra). O jogador semregras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele fingeseguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que asdesrespeita, simula aceitá-las, dissimula truques. O jogadorcomum opera com a imaginação e a discrição: ele desejaganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginaros frutos do ganho, como riquezas, amores, etc.) e, ao mesmotempo, não pode revelar suas cartas. O soberano não segueregras (não é jogador) e usa a discrição, a imaginação, asimulação e a dissimulação. Ele opera em pleno direito natural.

A imaginação indiscreta não é a força. Quem usa ointelecto para o jogo exerce uma deliberada dissipação damente (mind). Na ordem familiar, são permitidos jogos comos sons e as palavras equívocas pelos significados com adesregrada seqüência da imaginação (Fancy). Mas tal jogo éproibido em um sermão, discurso diante de pessoasdesconhecidas ou às quais deve-se reverência. A discriçãotraz as regras do trato que determinam a loucura (brilhante,pouco importa) de uns e a lucidez de outros. É possível serdiscreto e prudente, mas perverso.

Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustosou desonestos, como os que os homens são levados pelomedo e pela necessidade, temos a perversa sapiência(Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft),um sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é odesprezo dos expedientes injustos ou desonestos,enquanto a Versutia – astúcia, sutileza – consiste emafastar um perigo ou incômodo presente mediante ummaior ainda, como roubar uma pessoa para pagar aoutra, esperteza de vistas curtas.

poder e da justiçapor Pascal, sendocontinuado no sé-culo XVIII por filóso-fos como Condorcet(SAINTE-BEUVE, C.A. Port-royal. Paris).

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REFLEXÕES SOBRE O ESTADO E OS JUÍZES

Como fazer todos os jogadores seguirem as regras,sem truques?

As leis da natureza, justiça, eqüidade, modéstia,benevolência, (fazer aos outros o que gostaríamos queeles nos fizessem) sem o terror de algum poder parafazê-los observá-las são contrárias às nossas paixõesnaturais, que nos empurram para a parcialidade, oorgulho, a vingança e que tais. E pactos sem a espadasão apenas palavras (Covenants, without Sword, arebut Words) e não possuem nenhuma força (strength)para assegurar um homem.

O terror dita as regras do jogo político e as impõe paratodos e para cada um. A lei não é conselho, mas ordem dadapelo soberano, regra para uso e distinção do bem e do mal edo que é contrário ou não à regra (rule). As leis são interpretadaspelo soberano, e apenas por ele, ou pelos que ele designa paraa tarefa de julgar. Elas não são julgadas pelos particulares.Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poderpúblico, os que agem tendo em vista sua “consciência”assumem o papel de estraçalhadores da Commonwealth. NoDe cive (capítulo 12), lemos que

muitos homens, mesmo sendo bem apegados à sociedadecivil, fazem, por carência de saber (knowledge), inclinara mente dos súditos à sedição quando ensinam aosjovens a doutrina conforme as suas opiniões nas escolase ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levaraquela disposição aos atos colocam todo o seu esforçonisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamenteafetados na facção e na conspiração; depois, elesmesmos buscam ter a maior força na facção. Eles oscolocam na facção enquanto fazem de si mesmos osrelatores e intérpretes dos conselhos e ações do homemindividual e nomeiam as pessoas e lugares para reuniãoe para deliberar sobre as coisas nas quais o governoatual deve ser reformado, segundo deve parecer melhoraos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os quegovernam a facção e a facção deve ser tolhida por umaoutra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões

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secretas em separado, apenas com poucas pessoas,reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem aseguir propor em uma assembléia geral, e por quem, esobre quais assuntos e em que ordem cada um deveráfalar, e como eles atrairão os mais poderosos e popularesdentre os homens para a facção de seu lado. E quandoeles a conseguem grande o bastante, a qual podemdirigir (rule) pela sua eloqüência, eles a mobilizam paraadministrar os negócios. E, assim, às vezes eles oprimema sociedade (Commomwealth) quando não existe outrafacção maior para se opor a eles; mas, na maioria dasvezes, eles conseguem fazer aquilo e começam umaguerra civil16.

“É preciso obedecer mais a Deus do que aos ho-mens”?17 A questão é impertinente porque as leis não gover-nam consciências, mas palavras e atos. A Bíblia ensina aobedecer ao soberano “em todas as coisas”. O dilema (obe-decer a Deus ou obedecer ao soberano) é desconhecido entreos judeus, gregos, romanos e outros gentios. Nesses povos,as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo aDeus. Quanto às ações, a paz só é conseguida quando elas sãoreguladas. Caso contrário, persiste a divisão no Estado devidoà “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista,arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos,não impede a obediência à ordem pública.

Paulo mostra que as questões trazidas pelos raciocínioshumanos (human ratiocination) são perigosas para avida cristã. No mundo civil, quem resiste a um reiporque duvida de seu título ou porque é dominadopelas paixões merece punição.

Sendo a consciência só “opinião”, ela não deve serabolida, mas restrita ao espaço público, que não pode ser asoma heteróclita de opiniões, mas resultado de uma só“opinião” racional.

Segundo Pierre Bayle,

o sumário do Leviatã diz que sem a paz não existesegurança no Estado; a paz não subsiste sem comando

16 HOBBES, T. Decive, 12. In: Gert, B.(Ed.). ThomasHobbes man andcitizen. Cambridge:Hackett, 1993, p.254-255.17 Cf. HOBBES, T.The elements of lawnatural and politic.Electronic TextCenter, University ofVirginia Library.

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e o comando, sem armas; as armas nada valem se nãoforem postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armasnão conduz à paz os impulsionados a combater por ummal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelasdissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna18.

O Estado possui a potência que chega ao nível espiritualquando se trata da República. No pacto, o indivíduo aliena odireito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termoslógicos: se todos abrem mão de seu direito natural para afastara morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direitode vida e morte. A segurança é inalienável.

A noção de poder, em Hobbes, não se desvincula dalinguagem. Yves Charles Zarka chega a afirmar que a suadoutrina não se liga “tanto à física, mas à semiologia”19. Fala,gestos, escrita sujeitam-se à ambigüidade e ao equívoco. Alógica fornece princípios do correto emprego das denomina-ções. A pacificação requer uma língua na qual os equívocossejam atenuados. A língua, antes embebida nas paixões, como estado de natureza, no Estado é a única forma passível deuso científico com a proposição, porque afirma e nega,possibilita o juízo sobre o falso e o verdadeiro.

Quando um homem raciocina a partir de princípiosindubitáveis por experiência, todos os engodos dossentidos e equívocos de palavras evitados, a conclusãofeita por ele concorda com a reta razão. Mas, naconclusão, ele pode, por bom raciocínio, derivar algoque contradiga qualquer verdade evidente, concluiucontra a razão e tal conclusão é absurda.

Dos absurdos nascem os fanatismos religiosos epolíticos. No trato comum, são usados nomes extraídos daignorância coletiva e, na fala, então importa, para que elessejam lembrados, a coerência de uma concepção para outra.Mas, se as palavras ajudam a memória, a comunicação e a vidaem comum, elas podem transformar o convívio em uminferno. Pelas palavras e pelos raciocínios ultrapassamos asferas. Elas desconhecem o verdadeiro e o falso e não possuem

18 Bayle, P. Hobbes.In: DICTIONNAIREhistorique et critique.4e éd. Local:Amsterdam et Leyde,1730. t. 2, C-I.

19 Cf. Zarka, Y. C.Langage et pouvoir.In: ____ . Hobbes etla pensée politiquemoderne . Paris:PUF, 1995. p. 63.

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juízo, não multiplicam uma não verdade por outra, comofazem os homens.

As paixões iniciam os movimentos voluntários e dafala. Querendo mostrar aos outros o saber, as opiniões, asconcepções e os desejos; e para isso inventada a linguagem,os homens transferem todo o discurso mental às palavras. Ea ratio torna-se oratio,

porque, na maioria dos homens, o costume tem um podertão grande que, se a mente sugere uma palavra inicial,o resto delas segue-se pelo hábito e a mente não asacompanha. É o que ocorre entre os mendigos quandorezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e, de talmodo, como aprenderam com suas babás, companhiasou seus professores, e não têm imagens ou concepçõesna mente para responder às palavras que enunciam20.

As palavras, quando se trata de uma lei, precisam serentendidas por todos os que a devem acolher. Como seguiruma ordem quando ela foi emitida em língua obscura, aces-sível apenas aos juristas? Não basta o juiz entender as partes:é preciso que ele jamais deixe de se fazer entender21. Para queo cidadão obedeça, é obrigatório que a lei seja promulgada emlíngua conhecida por ele. Urge que ele saiba as penalidades aque se submeterá e se defenda em língua acessível ao juiz e aosconcidadãos. Se os últimos o compreendem, mesmo o juizparcial terá trabalho para impor uma sentença errônea.

O juiz pode errar na interpretação da lei. Para isso, eledeve estudar a eqüidade.

Por exemplo, é contra a lei da natureza punir oinocente; e inocente é o absolvido judicialmente,reconhecido inocente pelo juiz. Coloque agora oseguinte caso: um homem é acusado de crime capitalem face do poder e da malícia de algum inimigo, dacorrupção freqüente e da parcialidade dos juízes, fogecom medo; é pego e conduzido a um julgamento e,como não tinha culpa, é absolvido, mas condenado aperder seus bens; essa é uma condenação manifesta do

20 HOBBES, T. Theelements of law, 1,5. Of Names,reasoning, anddiscourse of thetongue. ElectronicText Center, Univer-sity of VirginiaLibrary. Disponívelem: <http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html>.21 Citado por AQUIEN,M.; MOLINIÉ, G.Dictionnaire derhétorique et depoétique. Paris:Librairie GénéraleFrançaise, 1996. p. 93.

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inocente. Não há lugar do mundo em que isso poderiaser uma interpretação da lei da natureza ou transfor-mado em lei pelas sentenças dos juízes precedentes quefizeram o mesmo. Porque o primeiro que julgou, o fezinjustamente; nenhuma injustiça pode ser modelo dejuízo para os juízes subseqüentes. Uma lei escrita podeproibir os homens inocentes de voar e eles podem serpunidos por voar; mas que voar por medo de injúriaseja tomado por presunção de culpa depois que alguémjá foi absolvido judicialmente do crime é contrário ànatureza da presunção, que não tem lugar depois queo juízo foi dado.

Hobbes distingue o cavilador e o intérprete. Umcomentário cavilador leva outros ao infinito. Mas deveexistir um intérprete, o juiz ordinário, que também deveinterpretar as leis não escritas. As sentenças desse juiz nãopodem obrigar outros juízes, “porque um juiz pode errar aténa interpretação das leis escritas; mas nenhum erro de umjuiz subordinado pode mudar a lei, a qual é a sentença geraldo soberano”. Quais as condições para que o juiz sejaintérprete das leis? Primeiro: entendimento reto da principallei da natureza, a eqüidade, que não depende das leituras deoutros homens, mas da bondade da razão natural própria.Segundo: desprezo de bens desnecessários e promoções.Terceiro: ser capaz de, em um julgamento, retirar de si todomedo, ira, ódio, amor e compaixão. E, finalmente, paciênciapara ouvir, atenção diligente na escuta, memória para reteras peças, aplicação ao que ele tiver ouvido. A razão, quechega à eqüidade, deve afastar ou controlar as paixões maisnotórias do trato entre as pessoas. Hobbes acentua a ambiçãocomo algo que não deve integrar a alma do juiz. Tanto, oumais do que as outras paixões, a fome de bens ou cargostolda o juízo, torna a mente fechada para as evidências e paraa fala das testemunhas, do réu, da outra parte.

No Leviatã, a mente apaixonada curva-se àfantasmagoria que ela própria gera, tendo como objeto osdemais seres humanos. É o reino da mentira. O Behemoth traza seguinte afirmação:

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Um Estado pode constranger à obediência, mas nãoconvence ninguém de erro, nem altera as mentes dosque acreditam possuir a melhor razão. A supressão dadoutrina não une, mas exaspera, aumentando a malíciae o poder dos que nela acreditam22.

“Por que as palavras não são isentas de jurisdição? Hobbes uneas falas sediciosas à atividade rebelde, particularmente naanálise da autoridade espiritual que tenta controlar a soberaniacivil.”23 Tais falsos mestres são os agentes do “Reino dasTrevas”, em contraste com a luz da verdadeira religião e doentendimento.

Em particular, os pregadores sediciosos do evangelhointerpretam a escritura para provar, acima de tudo,que sua igreja é o reino de Deus. Conseqüentemente,as pessoas que eles enganam obedecem a tais mestresmais do que aos soberanos civis24.

Se é preciso impedir a fraude, o truque, para conseguira estrita obediência às leis, urge que o soberano impeça adifusão de mentiras na República, o refinamento na arte deescrever com duplicidade: essa é a política de Hobbes. OEstado deve banir, com os mentirosos habituais, os quetrapaceiam no jogo político de maneira mais eficaz, poismodificam o sentido das palavras e das frases. Proibidas asarmas físicas, é preciso cuidar das espirituais, começandocom as exercidas na língua.

A polissemia atropela a obediência, enquanto a mentiraé truque insidioso que reintroduz o estado de natureza naRepública. Nos Elements of Law, os termos sleight andstrength são usados para definir o estado de natureza no tratodos homens. A dupla de palavras apresenta grande interessena análise hobbesiana da existência antes que a multidão setransformasse em Estado25. Os humanos, mesmo depois dopacto, enganam-se mutuamente com truques hábeis de lin-guagem, no mesmo instante em que desobedecem à lei etentam usar a força física26. Como o pacto não é obedecido portodos os indivíduos, sendo motivo da queixa e dos atos ilegais

22 HOBBES, T.Behemoth: or, thelong parliament(1682). Ed. F.Tönnies. London:Simpkin, Marshall, andCo., 1889. Reprint ed.:Chicago: University ofChicago Press, 1990.p. 62.23 HOBBES, T.Leviathan. Ed. C. B.Macpherson. cap.43, p. 609-661. Cf.KOW, S. Hobbes’scritique of miltonianindependency. In:ANIMUS, aphilosophical journalfor our time. Disponí-vel em: <http://www.swgc.mun.ca/a n i m u s / c u r r e n t /kow.htm> Kow cita oLeviatã: “there havebeen in all times in theChurch of Christ,false Teachers, thatseek reputation withthe people, byphantasticall andfalse doctrines; andby such reputation(as is the nature ofAmbition), to governthem for their privatebenefit”.24 Cf. WHITAKER, M.Hobbes’s view of thereformation. History ofPolitical Thought, 9,1988. 49 p. 54-55;HOLMES, S. Political

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dos que, na República, são importantes e ricos, o soberano éimpelido a agir de acordo com a simulação, a dissimulação ea mentira. O soberano, prestidigitador e mágico, deve sermestre na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Apro-ximemos a lente do panorama inaugural do Estado. Se, nagênese do Leviatã, à multidão fosse permitida a licença deenganar por meio de truques, jamais haveria segurança públi-ca. E se fosse permitido aos indivíduos o uso dos truquessofísticos no espaço coletivo, a insegurança permaneceria.Mas, se fosse proibido ao soberano o uso das simulações edissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidaspelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos ambiciososem vantagem própria, o que anularia as regras do pacto.

Surge o problema por excelência do pensamento filo-sófico e político: o acesso à razão e à vitória sobre os engodosde outros estados e dos particulares. Hobbes conhece ostextos de Seneca. A fama conduz aos atos mais insensatos,pois exige a boca e os ouvidos da multidão indiscreta, queaceita mentiras e se deixa enganar pelos demagogos. Serianecessário buscar algum vínculo entre o pensamentohobbesiano e a prudência? Esta última é tema da filosofiaanterior ao século XVII, de Aristóteles até o Renascimento27.Hobbes, no entanto, não segue a linha da prudência, a não sernos escritos introdutórios da sua tradução de Tucídides e emobras menores. No Leviatã e no De corpore, a prudênciarecebe tratamento negativo. Por ser restrita à experiência, aprudente sabedoria não possibilita a generalização cognitiva,não produz a medida universalmente válida do justo e doinjusto28. Nos Elements of Law, a prudência dá lugar à forçaque inibe as paixões desagregadoras dos particulares pelosoberano autorizado com o pacto29. A disciplina se apresentacomo o eixo político no De cive: ad societatem homo aptusnon natura; sed disciplina (I, 2). A prudência, no entanto,ligada à noção de razão de Estado, aparece aqui e ali no mesmoDe cive. No livro, Hobbes diz que os governantes conservama astúcia e a força (sleight or force). Vimos que nos Elementof law, sleight é palavra usada como o vocábulo strength, paradefinir o estado de natureza. Quando afirma, no De cive, uma

psychology inHobbes’s Behemoth.In: DIETZ, M. G. (Ed.).Thomas Hobbes andpolitical theory.Lawrence: Universityof Kansas Press,1990. p. 128-130. Se-gundo Kow, ThePolitical turmoil forHobbes was in part aresult of the misuse oflanguage and thec o n s e q u e n tdisjunction betweenthings and their propersignification.25 HOBBES, T.Elements of law, op.cit., I, XIX, 1-2.26 O CambridgeAdvanced Learner´sDictionary apresentaas seguintes explica-ções para sleight:“sleight of hand: speedand skill of the handwhen performingtricks: Most of theseconjuring tricksdepend on sleight ofhand". E também“skilful hiding of the truthin order to gain anadvantage: By somestatistical sleight ofhand the governmenthave produced figu-res showing thatunemployment hasrecently fallen". Asdefinições entram narazão de Estado, jogodesonesto vencidopor truques e por em-bustes.27 Numa bibliografiaimensa, cito apenaso texto de Aubenque,

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Reason of City (civitas, no latim), Hobbes guarda o sentidorenascentista dado à razão estatal, tendo como núcleo aprudência. Daí o apelo, notável no referido volume, aosegredo e aos espiões. Entre o segredo (a máxima obscuridade)e os espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia)a prudência do soberano traz segurança para a civitas. Ossoberanos que usam sleight or force permanecem no estadode natureza e podem usar a força, a fraude, a mentira, aespionagem e não precisam manter a palavra, porque nãoexiste nenhum pacto que una os estados e, portanto, nenhumsoberano que imponha uma lei obrigatória para todos.

Se no âmbito mundial opera a razão de Estado na guerrapermanente, no plano interno a transferência do poder mortalnão pode deixar ambigüidade na lei. Nas relações entrecidadãos, a mentira ou o engodo devem ser reprimidos. NoLeviatã, quase desaparecem as antigas formas de pensamentoprudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última operacom force and fraud, o uso de semelhantes técnicas dedominação entre cidadãos conduziria à ruina da República30.Contra o uso da força e da fraude na República, o soberanodeve providenciar para que o povo não seja ignorante

ou pouco informado das bases e razões dos seusdireitos essenciais; porque assim os homens sãoseduzidos facilmente e levados a resistir-lhe quando aRepública deve exigir seu uso e exercício31.

Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem aobediência, o povo é dissolvido por “homens poderosos quedigerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça umpoder para controlar suas afecções”. Os “eruditos tambémresistem ao poder que descubra seus erros e diminua a suaautoridade (Authority)”. Enquanto os poderosos estão cheiosde ambição de poder e os letrados mergulham na ambição deautoridade, porque suas mentes estão abarrotadas de doutri-nas mentirosas e fraudulentas,

as mentes do povo comum, enquanto não forem tingidaspela sua dependência diante dos poderosos, ourabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel

P. La prudence chezAristote. Paris: PUF,1963. Os interessadospoderão pesquisar otema com os especia-listas em Aristóteles.28 Cf. BORRELLI, G.Ragion di Stato eL e v i a t a n o :conservazione escambio alle originidella modernitàpolitica. Bologna: IlMulino, 1993. p. 230 etseq.29 “Pois vendo que asvontades da maioria doshomens são governa-das apenas pelo medo eque onde não existe po-der coercitivo não existemedo; as vontades damaioria dos homens se-guiriam suas paixõesambiciosas de prazer,avidez e semelhantes,para quebrar os seuspactos, quem desejas-se guardá-las, seria pos-to em liberdade, semoutra lei senão a que saidele mesmo”. Of the re-quisites to theConstitution of aCommonwealth. In:HOBBES, T. Elements oflaw, op. cit., pt. 2, cap. 1.30 “Every sovereignought to cause justiceto be taught, which,consisting in takingfrom no man what ishis, is as much as tosay, to cause men to betaught not to deprivetheir neighbours, byviolence or fraud, ofanything which by thesovereign authority is

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REFLEXÕES SOBRE O ESTADO E OS JUÍZES

limpo, apropriadas para receber tudo o que a AutoridadePública nelas imprimir32.

A crítica de Benjamin Constant a Hobbes, no tocante àsoberania vem do termo “absoluto”:

vê-se claramente que o caráter absoluto dado porHobbes à soberania do povo é a base de todo seusistema […] a palavra "absoluto" desnatura toda aquestão e nos arrasta para uma nova série deconseqüências; é o ponto em que o escritor deixa ocaminho da verdade para seguir rumo ao sofisma, aofim que ele havia proposto a si mesmo. […] Com apalavra "absoluto", nem a liberdade […] nem orepouso nem a felicidade são possíveis em nenhumainstituição. O governo popular é apenas uma tiraniaconvulsiva, e o governo monárquico, apenas umdespotismo concentrado.

Em face da tese da soberania absoluta, pensa Constant,Rousseau foi tomado de terror diante daquele

poder monstruoso e não encontrou preservativo contrao perigo inseparável de uma semelhante soberania, anão ser um expediente que tornava impossível o seuexercício. Ele declarou que a soberania não pode seralienada, delegada, representada. Era declarar emoutros termos que ela não pode ser exercida; era anularde fato o princípio proclamado.

E criticando a idéia de “absoluto” na soberania, mesmopopular, diz Constant :

O povo, segundo Rousseau, é soberano em um aspecto,súdito em outro. Mas, na prática, os dois aspectos seconfundem. É fácil para a autoridade oprimir o povocomo súdito, para forçá-lo a manifestar como soberanoa vontade que ela lhe prescreve33.

Após essa passagem pelas análises de Hobbes, fica bemclara a intenção de Benjamin Constant ao sugerir o PoderModerador como preventivo do poder tirânico. De um lado, ele

theirs”. (HOBBES, T.Leviatã, op. cit., cap.30: Of the office of thesovereign represen-tative). 31 O mesmo cap. 30,na ediçãoMacpherson, op.cit., p. 377.32 Ibid., p. 379.

33 CONSTANT, B.Principes de politi-que… ed. cit. (eu su-blinho, RR).

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limitaria as formas soberanas ligadas ao povo, sobretudo odespotismo do Legislativo. De outro, ele limitaria as pretensõesdo Executivo, garantindo o Judiciário34. Evidentemente, ascríticas aos abusos de poder descem nas noites dos tempos. Noperíodo absolutista, as denúncias contra tais abusos surgiramentre os puritanos e seus herdeiros, na América ou na França.No caso de Benjamin Constant, no entanto, existem antecedentesno instante em que a Revolução Francesa e a ditadura doLegislativo chegam à sua crise de morte. Como é o caso deSieyès, para quem “ os poderes ilimitados são um monstro empolítica […] a soberania do povo não é ilimitada”35. Notermodoriano por excelência, Boissy d´Anglas retoma a normahobbesiana, levando o cidadão particular ao plano estritamenteprodutivo, econômico, afastando dele as tarefas de governo.Assim, não se pode arrancar à atividade econômica “homensque melhor serviriam seu país pela atividade assídua em vez devãs declamações e debates superficiais”36. D´Anglas, na verdade,com o "Termidor", seleciona “os melhores” para dirigir oEstado, os que “possuindo uma propriedade são apegados aopaís que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade quea conserva”37.

Benjamin não foi um termidoriano ao modo de Boissyd´Anglas. Mas soube notar os excessos de poder de um setordo Estado e procurou definir o controle dos três Poderes porintermédio do Poder Moderador, indicado como tarefa do rei.“Para que não se abuse do poder, é preciso que pela disposiçãodas coisas o poder detenha o poder”. O sistema das balanças,no seu pensamento, opera na estrutura do Estado. O Legislativoseria bicameral, incluindo uma Casa dos Pares. Posteriormente,ele divide o poder entre Legislativo e Judiciário, composto dejuízes inamovíveis de ofício. Ideou, para corrigir a concentraçãodo poder, o sistema de poderes e direitos departamentais e dosmunicípios. O rei, como “poder neutro”, segue nessa orientaçãogeral.

No Brasil, a concepção do Poder Moderador seguiupara um rumo inesperado. Constant define aquele setor comoneutro, o que significa que ele serve para coordenar os trêsPoderes sem neles interferir, “do alto”. A operação de

34 A teoria do PoderModerador neutrotem sido estudadacom bastante insis-tência, nos últimosanos, na França e de-mais países. Cf.JAUME, L. (Org.).Coppet, creuset del’esprit libéral. Paris:Economica etP r e s s e sUniversitaires d’Aix-Marseille, 2000;GUEDES, T. D. Lepouvoir neutre et lepouvoir modérateurdans la Constitutionbrésilienne de 1824.In: ____ . BenjaminConstant en l’an2000: nouveauxregards. Actes duColloque des 7 et 8 mai1999, organisé àl’occasion duv i n g t i è m eanniversaire del’Institut et del’Association Benja-min Constant.35 Seção do 3Germinal, Ano III, ci-tado por PatriceRolland (professorda UniversidadeParis XII), no artigoLa garantie desdroits. DroitsFondamentaux, n. 3,déc. 2003. p. 183.36 Referido por Rolland,P., op. cit., p. 195.37 Citado por:BADIOU, A. Qu´est-ce qu ´un thermi-

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hierarquizar os quatro poderes foi seguida no Brasil com aConstituição de 1824. A tendência centralizadora do poder realjá fora iniciada em Portugal no século XVIII, com as reformaspombalinas.

As concepções de poder político, sociedade e Estadosão assim formuladas em torno da noção de impériocivil, com fins de legitimar a monarquia portuguesa econsubstanciar projetos de atuação política38.

Com as invasões napoleônicas de 1808 e a vinda daCasa Real para o Brasil, compõe-se uma Corte no Rio, na qualse integram a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais enegociantes. No projeto idealizado, continua a noção deImpério português, com sede no Brasil. A cidadania foientendida nos parâmetros da antiga metrópole: o “povo” eraa aristocracia, os “homens bons” (ricos proprietários) semsangue judeu. A representação “popular” faz-se por petições,dando-se o direito de voto sem que os cidadãos tivessempresença ativa na esfera pública. Outro projeto é mais radical,pois admite a presença cidadã na vida pública, definindoautonomia para o Brasil. Nos dois projetos, cidadão é títuloque não cabe aos escravos, evidentemente, nem aos homenslivres e pobres (“gente ordinária de veste”).

O debate sobre a cidadania surge em 1821, na Assem-bléia do Rio de Janeiro, na eleição de representantes provinci-ais à Assembléia de Lisboa, para redigir a Constituiçãoportuguesa. O debate conduziu ao inesperado questionamentoda autoridade de João VI. Foi proposto um projeto de governorepresentativo, visto pelos governantes como ligado “à forçaincontrolável da multidão”, sobretudo em um reino em que aenorme quantidade de escravos era perene ameaça (a revoltado Haiti em 1810 era um presságio).

A imensa dimensão do território brasileiro, as revoltasque se esboçavam, o exemplo dos países vizinhos, de tamanhoinferior ao do Brasil, que se tornaram repúblicas, a memóriada Revolução Francesa, as doutrinas de Benjamin Constant,todo esse amálgama de idéias, medos, repressão definiu o

dorien?. In: Kintzler,Catherine e Rizk,Hadi (Ed.). LaRépublique et laTerreur. Paris: Kimé,1995. p. 56.

38 Cf. OLIVEIRA, E.R. A idéia de impérioe a fundação damonarquia constitu-cional no Brasil (Por-tugal-Brasil, 1772-1824). In: ENCON-TRO REGIONAL DEHISTÓRIA, 17.Anais... ANPUH/SP/UNICAMP, 2004. CD-rom. Esta última par-te segue as análi-ses deste texto.

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momento inaugural do Estado independente que assumiu aforma de Império. Os que desejam um poder representativoe constitucional conseguem em 1822 a convocação daAssembléia. Mas no País surgem dois projetos não sintonizadose conflitantes: o da monarquia soberana, de São Paulo, sob aliderança de José Bonifácio; e o de um governo constitucional,do Rio de Janeiro, liderado por José Clemente da Cunha.Quando Pedro I é aclamado, Bonifácio enfatiza a supremaciado imperador, enquanto José Clemente afirma o princípio dasoberania popular.

Vence provisoriamente o primeiro projeto, sendo oimpério civil instituído por direito divino. Os defensores dosegundo plano são perseguidos, mas não deixam de conseguira consideração, nos trabalhos da Constituinte, de suas idéias.Desse modo, o novo governo admitiria a liberdade política,mas sob a égide do poder supremo, definido pela pessoa doimperador. Em 1823, José J. Carneiro de Campos, ao discutira sanção do soberano, apresenta a idéia do Poder Moderador.Exclusivo, aquele poder permite ao imperador controlar osdemais poderes. A Constituição de 1824 incorpora o quartopoder e o amplia, pois ele pode dissolver a Câmara deDeputados, afastar juízes suspeitos, etc. Tal poder foi alegadosempre que se tratava, no parecer dos governantes, dasalvação do Estado. No mesmo plano, é restrita a autonomiado Judiciário. Desse modo, o Poder Moderador torna-sesupremo no Estado, acima dos três outros Poderes.

A predominância do Poder Moderador sobre os demaismanteve-se durante o Império, incluindo o tempo de Regência,quando o País passou por rebeliões sufocadas manu militari denorte a sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanentesupremacia do imperador, tem-se como resultado uma difícil equase improvável democratização do Estado. O permanenteestado de rebelião e as necessidades do poder central definemo Império como excessivamente preso ao modelo deconcentração de poderes – o que molesta ainda em nossos diaso País – com o tipo de federação na qual os estados possuempouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal39. Com o fim doImpério, os positivistas tentaram acabar de vez com as forças

39 Em Homens livresna ordem escravo-crata (5. ed. São Pau-lo: Unesp Ed., 1997),Maria Sylvia CarvalhoFranco analisa a gê-nese do Estado brasi-leiro e as suas cone-xões com a socieda-de na qual imperam ofavor e a violência facea face. A autora explo-ra a passagem do pú-blico ao privado e asuperconcentraçãodos impostos no po-der central, o que levamunicípios e estadosà perene condição deinadimplentes junto aonúcleo do poder fede-rativo e junto aos con-tribuintes. Cf. os capí-tulos “Patrimônio Esta-tal e Propriedade Pri-vada” e “As peias dopassado”. Analisoesses pontos no textoA democracia e a ÉticaIn: ROMANO, R. Ocaldeirão de Medéia.São Paulo: Perspecti-va, 2001. p. 363 et seq.

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liberais, com o conceito de ditadura, que acentua e mantém apreponderância do Executivo sobre o Legislativo, concentrandoo poder diretor em uma única pessoa. Falar em Legislativo,nessa doutrina, é impreciso e mesmo errôneo, visto que aAssembléia teria função fiscal: aprovar o orçamento do Estado40.Em toda a República, as prerrogativas do Poder Moderadorforam incorporadas silenciosamente à Presidência do País.Com elas, a permanente pretensão dos ocupantes daquele cargoa assumir, como imperadores temporários, a preeminência e aintervenção nos demais poderes. Esse ponto permite indicar queo Estado é regido por força de pressupostos autoritários que,inclusive, produziram em plano mundial algumas lições demoderno despotismo.

Não por acaso, Carl Schmitt refere-se ao Poder Mode-rador brasileiro em "O Protetor da Constituição". O juristadefende, como em outros trabalhos, que apenas oReichspräsident pode defender a Constituição em tempo decrise. O tema gira em torno do artigo 48 da Constituição deWeimar41. Ao fazer seu apelo aos poderes do Protetor daConstituição, Schmitt nega que o Judiciário pode exerceraquele papel, porque ele é idêntico a normas e age post factum,sempre atrasado na correção dos desvios e fraturasinstitucionais. Para remediar aquelas situações, apenas oReichpräsident poderia ser movido, legal e constitucional-mente. Como é habitual, Schmitt afasta o Judiciário e, aomesmo tempo, o próprio Legislativo naqueles transes. Comodiz Hans Kelsen, Schmitt reduz toda a Constituição de Weimarao artigo 4842. Se, como diz Schmitt, “a independência é anecessidade primeira para um protetor da Constituição” e seos juízes ou deputados não podem cumprir aquele mister,segue-se que eles não são independentes ou independentes obastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dosdemais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetorem seu poder excepcional. O estudo desse caso, importantena história dos poderes soberanos e na conexão teórica entreo que se passou na Alemanha e no Estado brasileiro, poderesultar em esclarecimentos sobre o nosso centralismo exces-sivo, a nossa quase inexistente federação, os excessivospoderes da Presidência do Brasil43.

40 Cf. LINS, I. Históriado positivismo noBrasil. São Paulo:Cia. Editora Nacional,1964. p. 330. Cf. tam-bém ROMANO, R.Brasil, Igreja contraEstado. São Paulo:Kayrós, 1979.41 Recordemos o ar-tigo: “Caso a segu-rança e a ordem pú-blicas forem seria-mente (erheblich)perturbadas ou fe-ridas no Reich ale-mão, o presidente doReich deve tomar asmedidas neces-sárias para resta-belecer a seguran-ça e a ordem públi-cas, com ajuda senecessário das for-ças armadas. Paraesse fim, ele devetotal ou parcialmen-te suspender os di-reitos fundamentais(Grundrechte) defi-nidos nos artigos114, 115, 117, 118,123, 124 e 153.” Nãopor acaso disseCarl Schmitt que “ne-nhuma Constituiçãosobre a terra legali-zou com tamanhafacilidade um golpede Estado quanto aConstituição deWeimar”.42 KELSEN, H. Wersoll der Hüter derVerfassung sein?Die Justiz 6, 1930-1931 apudMCCORMICK, J. P.Carl Schmitt´s cri-

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Recordemos que o Poder Moderador antes da Repúbli-ca era vitalício e hereditário. Uma presidência imperial, limi-tada por quatro anos, sofre necessariamente a tentação depressionar o Legislativo para que este último faça ou aproveleis favoráveis ao programa e pretensões presidenciais. Demodo idêntico, as pressões sobre o Judiciário para quereconheça a legitimidade das mesmas leis.

Dificilmente o nosso estado e a sociedade entrariam naqualificação de forma democrática. É preciso apurar hoje asnoções de democracia, federalismo, sociedade civil, etc. sequisermos pensar o mundo brasileiro. O nosso modo de uniros estados tem pouco de “federalismo” e muito de Império.Constituintes, não totalmente independentes que, juntos,formam o sistema como um todo. Desde a Independência, opoder central brasileiro monopoliza todas as prerrogativas doEstado e não as partilha com os demais entes, supostamenteunidos hoje por laços de federação. Se, em nosso caso, foedussignificasse “pacto”, teríamos graus crescentes de autonomia,dos municípios ao poder central.

A partir de Brasília, regras uniformes determinam atéos detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamenteas diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoqueao Chuí, há uma uniformização gigantesca que obriga cadauma das regiões a se pautar pelo tempo longo da enormeburocracia federal, perdendo tempo precioso para o experi-mento e modificações das políticas públicas em plano particu-larizado. Enquanto em outras federações, como a norte-americana (apesar do grande centralismo daquele país) vigo-ram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos,etc., no Brasil, a mão de ferro do Estado central controla,dirige, pune e premia os estados segundo sustentem osinteresses dos ocupantes temporários da Presidência. Nessecontrole, as oligarquias regionais surgem como operadoras deface dupla: servem para trazer os planos do poder central aosestados e para levar ao mesmo poder as aspirações de estadose municípios. O lugar onde as negociações entre os dois níveis(central e estadual) ocorrem, normalmente, é o Congresso.Ali, Presidência e ministérios buscam apoio aos seus planos,

tique of liberalism:against politic ast e c h n o l o g y .C a m b r i d g eUniversity Press,1997. p. 144.43 Para os estudos fei-tos sobre Carl Schmittno Brasil, cito apenas,dentre outros,MALISKA, M. A, acer-ca da legitimidade docontrole da constitu-cionalidade. RevistaCrítica Jurídica, 18,mar. 2001, separatade artigo. Um livro im-portante para a análi-se filosófica e que ex-põe o pensamento deSchmitt com muio ri-gor Cf. RONALDOJUNIOR, P. M. CarlSchmitt e a funda-mentação do direito.São Paulo: MaxLimonad, 2001.

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inclusive e sobretudo, de leis. É impossível conseguir recur-sos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações”, enelas o modus operandi identifica-se ao conhecido “é dandoque se recebe”. Assim, os planos federais de inclusão sociale democratização societária patinam na enorme generalidadedo “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as “pro-vidências” de uma burocracia pesada, incapaz de entender osvários ritmos, formas de vida e pensamentos regionais.

Nos impostos, a concentração irracional de poderesdeixa estados e municípios sempre à míngua de recursos.Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como nocaso das exportações, não são repassadas às unidades ou nãosão repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dosministérios econômicos. Governadores e prefeitos são redu-zidos à quase mendicância junto ao poder central. Não ignoroas dificuldades gigantescas se quisermos modificar essaforma de relacionamento federativo em nosso país. É pratica-mente impossível chegar à democratização da sociedade sema efetiva federalização do Brasil.

Termino essas considerações citando o longo, masrelevante, texto de um jurista que muito se preocupa com aforma republicana do nosso país:

Atualmente, o presidente da República não se limita aexercer um poder absoluto no ramo executivo do Estado:ele é também legislador, e dos mais prolíficos. O volumede medidas provisórias editadas e reeditadas, a maiorparte delas sem a menor relevância ou urgência, jáultrapassa largamente o número de leis votadas peloCongresso Nacional, desde a promulgação da Consti-tuição. Para a convalidação espúria desse abuso,concorreu decisivamente a mais alta Corte de Justiça doPaís. Neste período crespuscular do Estado de Direito,o Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é “aguarda da Constituição” (artigo 102), tem transigidocom todos os desvios, relevado todas as arbitrariedades,admitido todas as prevaricações. A pá de cal naindispensável independência do Supremo Tribunal

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Federal para custodiar a inviolabilidade da Constituiçãofoi lançada com a Emenda Constitucional nº 3, de 1993,instituindo a “ação declaratória de constitucionalidade”(artigo 102 – I, a). O judicial control, sem sombra dedúvida a maior criação constitucional dos norte-americanos, surgiu como instrumento de defesa dosdireitos individuais contra o mais nocivo dos abusospolíticos, aquele que associa Legislativo e Executivo nacomum infringência da Constituição. No sistema presi-dencial de governo, com efeito, a lei não é apenas o atodo Poder Legislativo: ela conta também,necessariamente, com a aprovação do Executivo, quetem o poder de vetá-la. Quando o presidente da Repú-blica sanciona uma lei inconstitucional, ele se acumpliciacom o legislador na violação da Carta Magna. Ora, a“ação declaratória de constitucionalidade” veio sub-verter inteiramente os termos dessa equação política.Ela não é uma defesa da cidadania contra o abusogovernamental, mas, bem ao contrário, uma proteçãoantecipada do Governo contra as demandas que oscidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos. Éuma espécie de "bill" de indenidade que o Judiciáriooutorga aos demais poderes, um "nihil obstat"legitimador da ação governamental, antes que os cida-dãos tenham tempo de reclamar contra ela. Por issomesmo, o processo dessa aberrante demanda é "suigeneris": não há contraditório, porque não há lide. Emse tratando de argüição de inconstitucionalidade de leiou ato normativo, o procurador-geral da Repúblicadeve ser previamente ouvido, e o advogado-geral daUnião defende o ato ou o texto impugnado (artigo 103,§§ 1º e 3º). Mas, no processo da ação declaratória deconstitucionalidade, os autores agem sem contraditó-rio: o Governo tem as mãos livres para demandar, semque ninguém defenda os interesses dos governados. Porforça desse vicioso mecanismo, a nossa Corte Supremadeixa de ser um tribunal, para se tornar um órgão oficialde consulta. Troca a posição de guarda da Constituiçãopela de colaborador do Governo44.

44 COMPARATO, F.K. Réquiem parauma Constituição.Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/c o m p a r a t o /c o m p a r a t o _ r e -quiem.html>.

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Para refletir sobre a obediência às leis e o papel dosjuízes, acentuamos o começo do Estado moderno com asteorias absolutistas religiosas e laicas, as de James I e as deHobbes. Ali, o juiz único é o soberano e os juízes são por elecontrolados. Legislador, executor e juiz, o soberano não podeaceitar a independência dos tribunais inferiores. Esta diretiva foiquestionada durante as revoluções do século XVII, na Inglaterra,e do século XVIII, na América do Norte e na França. ARevolução Francesa, ao desembocar na ditadura e no terror,permitiu o retorno do Absolutismo. Não é preciso recordar quenesses regimes o juiz não é independente, pelo contrário. NoBrasil, com a tentativa de impedir aqui os “excessos” doliberalismo e, mesmo, da soberania popular, foi produzido umestado dirigido no cimo por um soberano que detinha a licençade intervir nos demais poderes, o que impedia a autonomia doJudiciário. Com a República, o centralismo e o papel eminentedo chefe de Estado o conduz a exercer poderes imperiais, o quenão raro atenua a autonomia dos demais poderes, incluindo oJudiciário. Como um juiz individual, como a categoria dos juízespode julgar de modo independente, se o Estado brasileiro nãopratica de fato a autonomia dos poderes e se o presidenteconsegue, nos tribunais elevados, decisões que atentam contrao magistrado comum?

Em interessante livro sobre Carl Schmitt, um autorrecente pergunta, em capítulo estratégico para sua análisesobre o rresidente do Reich: “Guardião ou Usurpador daConstituição?”45 Enquanto existirem no Executivo as preten-sões de manter a Constituição sob sua tutela, não teremosEstado de direito garantido entre nós.

O Estado de direito é bem traduzido pela réplica célebredo moleiro de Potsdam […] Es gibt noch Richter inBerlin. Nem Frederico II conseguiu se opor ao direito depropriedade do moleiro, mesmo que o seu moinho fossebarulhento e incomodasse o soberano no castelo de SansSouci. Isso é o Estado de direito. E nada mais46.

Como impor a obediência à lei, ao cidadão, se osgovernantes são eximidos de seu cumprimento? No País do

45 MACCORMICK, op.cit., p.141.

46 MOUZON, A.-S.Parlamento da Re-gião de Bruxelas-Capital. Bulletin desInterpellations etdes QuestionsOrales. Reunião de28 de abril de 2005.

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foro privilegiado concedido aos políticos, a pior tarefa dosjuízes é explicar aos contribuintes as causas da iniqüidadegeral. Sempre que um magistrado pune o crime das pessoascomuns, resta no horizonte a sombra da injustiça de Estado.E assim falece a fé pública, base dos tribunais e de todas asinstituições democráticas de direito.

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